Cidade: Os Cantos e os Antros – LAPA (RBH)

LAPA, José Roberto do Amaral. Cidade: Os Cantos e os Antros. São Paulo, EDUSP, 1996, 361 p. Resenha de: MOURA, Denise A. Soares de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.18 n. 35, 1998.

A história da cidade de Campinas, a partir da década de 50 do século XIX, foi marcada por tensões que confundiam elementos culturais coloniais e nascentes práticas modernizantes. A transição de uma economia açucareira para a promissora e lucrativa produção cafeeira elevou a cidade à condição de “capital agrícola da província”1 provocando a ascensão de uma nova elite que, contrapondo-se aos antigos hábitos aristocráticos locais empenhou-se num projeto de redimensionamento do público e do privado.

Num livro denso e primoroso, apoiado em farta documentação manuscrita e impressa dos anos 1850-1900, José Roberto do Amaral Lapa desvela as inúmeras faces deste projeto, abordando temas da história social, cultural e econômica num total de quinze capítulos que prometem fecundar muitos temas de pesquisa. Profundo conhecedor da história da antiga Vila de São Carlos e intensamente envolvido na preservação da sua memória, o historiador Amaral Lapa além de prof. titular no Departamento de História da UNICAMP, foi um dos responsáveis pela fundação e direção do Centro de Memória-atualmente coordena a área de publicações -, estabelecido na mesma universidade e que reúne vasto acervo de documentos e livros, além de competente grupo de pesquisadores e funcionários cujo trabalho e dedicação entusiasma e estimula a difícil tarefa de percorrer as trilhas da investigação histórica.

Conforme Amaral Lapa percebeu, a modernidade parece ter chegado muito timidamente a Campinas, urdindo-se e eludindo-se à escravidão, aos castigos infligidos aos escravos, à Guarda Nacional, aos muares, às diligências, festas e quermesses. Conforme constata, até 1869 a cidade ainda conservava muitos traços urbanos coloniais, com ruas sem calçamento, cheias de buracos, atoleiros, parcos meios de comunicação e minguados transeuntes durante a semana. Sobrevivências e resistências coloniais que o autor alude a um “componente de caipirice”, pois o enriquecimento da cidade através da lavoura de açúcar era recente e a camada superior que se favorecia dos seus lucros” contentou-se com padrões de vida que ofereciam no atendimento maior quantidade e não maior qualidade”2.

Aos lucros gerados pelo café e à nova camada dominante que se configurou neste contexto outros ritmos somaram-se ao cotidiano da cidade, com a diversificação do quadro ocupacional, a transformação lenta das relações de trabalho e a agilização dos deslocamentos através das estradas de ferro. Na medida em que a escravidão convivia com as modificações urbanas e econômicas, as posturas municipais procuraram regrar este convívio cativo em meio ao mundo livre, restringindo os ajuntamentos e os jogos nas praças, aguadas e subúrbios.

Os prelúdios da chegada da modernidade em Campinas puderam ser sentidos ainda em 1833, quando o francês Hércules Florence – um dos pintores da expedição Langsdorff – , estabelecido na cidade, obteve a fixação da imagem através da camera obscura, descobrindo a fotografia no Brasil, mas parece ter sido a fundação do Teatro São Carlos (1850) que inaugurou o movimento efetivo em busca da modernização.

Muito vagarosamente a cidade foi deixando de lado a taipa de pilão e substituindo-a pelos tijolos. O arquiteto Ramos de Azevedo levou monumentalidade para a cidade, promovendo uma remodelação urbanística e arquitetônica com aspirações cosmopolitas. O traçado do perímetro urbano-largura das vias e calçadas-passou a levar em conta o coletivo, o circular das pessoas e as posturas detiveram-se no aformoseamento das fachadas e ruas, procurando padronizar os prédios, disciplinar a privacidade e os olhares através da proibição das rótulas de madeira, cancelas, balcões e folhas que abriam para fora.

Esta modificação e modernização dos hábitos urbanos brotou em meio a práticas de enforcamento e exibição pública e permanente de corpos esquartejados dos escravos rebeldes, tendo sido atribuído a um deles, Elesbão, poderes mágicos e milagrosos, pois suas mão teriam ficado brancas no alto do poste ao qual havia sido expostas3.

Seguindo a trajetória proposta por Amaral Lapa e entrando nas casas populares ou nas aristocráticas era possível perceber que até meados do Dezenove sua arquitetura ignorava o banheiro. Nos fundos da casa havia um recinto destinado aos banhos e o ato de defecar comumente praticava-se à noite, no quarto e durante o dia, de cócoras no quintal. No intuito de normatizar estes hábitos o saber público uniu-se ao médico, desodorizando e saneando a cidade e os corpos das pessoas. A higienização incluía o controle do lixo nas casas e quintais, a fiscalização intensa de uma polícia sanitária, a compulsoriedade da construção dos “gabinetes de latrina,” com o intuito de combater os recipientes mantidos no quarto e o estímulo ao banho diário.

Numa cidade em vias de modernização, mas ainda convivendo com práticas seculares o ritmo da vida no interior dos sobradões corria ao sabor senhorial, através do uso de titulações do Império e de todo um gestual que legitimava valores de nobreza. Nestes sobradões expressava-se a convivência contraditória dos “recursos da modernização urbana, capitalista e burguesa a serviço de um estilo de vida estamental e refratário à exposição que a cidade reclama, mas não tanto aos serviços que ela oferece”4.

Neste sentido e conforme o autor enfatiza, a transição de uma ordem senhorial para uma burguesa fez-se lentamente, incluindo investimentos particulares na saúde, educação, religião, cultura, trabalho, lazer, esporte e filantropia. Ao crescimento do operariado somou-se intensos esforços de controle social de suas “horas urbanas” no interior e exterior das fábricas, disciplinando seu morar, trabalhar, descansar, jogar, rezar, instruir-se e movimentar-se.

No cerne de uma cidade improvisada diariamente pelos escravos e pobres livres, clandestina, transgressora das posturas e sem pudores germinava uma moral atenta à rotina dos cortiços, pardieiros, becos e ruelas. Combatia-se o modo de se vestir e as conversas. Tentou-se normatizar a própria mendicidade, restringindo-se a prática do esmolar às quartas e sábados. Aos poucos a lógica capitalista criava uma maneira urbana de existir.

Conforme mostra Amaral Lapa, a aspiração a modernidade que se espraiava pela ainda senhorial sociedade campineira racionalizou as práticas filantrópicas e esforçou-se por confinar os sofrimentos humanos, pois dor, pobreza e fragilidade não coadunavam com a imagem de civilidade e imponência que se buscava. Portanto, cabia à Santa Casa de Misericórdia atender os desvalidos, regrando a assistência com a disciplinarização moral e social.

Às entidades voltadas para o confinamento das pessoas impunha-se a tarefa de subtrair da circulação das ruas mendigos, indigentes, loucos, prostitutas e bandidos, pois com seus comportamentos vistos como desviantes, abalavam os alicerces de uma modernidade desejada e que se tentava impôr. Segundo Amaral Lapa, a modernização implicou em” confinamentos compulsórios”, predominando, nos bastidores da filantropia, objetivos racionais e práticos, próprio de uma sociedade capitalista. Neste sentido, atenção especial era dedicada aos leprosos e andarilhos com os corpos chaguentos e deformados. Com o aburguesamento das relações sociais a própria sensibilidade assumia outra face e tanto a pobreza como a doença passavam a causar medo e apreensão na” cidade sã”5.

A epidemia de febre amarela que atingiu dezenas de pessoas a partir de 1889 e ao longo de toda a década de 90 é um outro capítulo da história de Campinas ressaltado pelo livro, tendo em vista o sério abalo provocado no projeto modernizante em curso, através do esvaziamento da cidade pelo êxodo das pessoas, evidenciando a precariedade do saneamento público vigente6. A epidemia forçou intervenções abruptas das autoridades e a criação de políticas públicas visando a higienização e a saúde das pessoas. Estas, diferentemente dos cariocas, não reagiram com a mesma violência em relação à obrigatoriedade da vacina, mas mostraram certa resistência, entrando com processos na justiça visando suspender a ação do poder público.

Neste sentido, vê-se que desde as reflexões filosóficas sobre a origem do mundo do moleiro de Carlo Ginzburg, na Itália da Renascença, passando pelas práticas de leitura dos camponeses de Roger Chartier na França do século XVIII, não é possível subestimar a participação dos iletrados em muitas esferas da vida social. Aos pobres e desprivilegiados de poder econômico e prestígio cabia também a busca da resolução de seus problemas no plano jurídico7.

Mas no processo modernizante da cidade de Campinas, aos inúmeros desamparados gerados pelos surtos epidêmicos as autoridades e a elite local respondiam com a criação de instituições encarregadas de abrigar menores órfãos e abandonados, distribuir roupas e alimentos e prestar socorros aos doentes pobres. Toda esta preocupação com a saúde pública e amparo dos desvalidos, sempre liderada pela atuação particular, moveu-se em torno de uma prática visando a força de trabalho, a busca da urbanidade e o controle social.

No cerne deste processo civilizador o olhar perscrutador das posturas deteve-se no comércio e nos mercados, dado seu potencial de ilicitude. Nestes espaços uma série de situações propiciavam a violentação do que era entendido como decoro, higiene, silêncio, moral, justiça e convívio social,8 pois não só sitiantes e serviçais se dirigiam para estes locais com o objetivo de comerciar. Na realidade, estes eram espaços multifacetados da sociabilidade, onde as pessoas se reuniam para prosear, esmolar ou cantar. A narrativa de Amaral Lapa acompanha os passos dos vagabundos, loucos e ébrios nestes “cantos” da cidade, sempre cerceados na sua presença e movimentação nos mercados, sendo proibidos os ajuntamentos tanto de livres como de escravos. Ao longo do capítulo “Comércio & Mercados”, o autor desvenda a trama comercial que envolvia o abastecimento local, envolvendo tanto o comércio lícito como aquele que fugia às determinações das posturas.

“De chafarizes e águas” surpreende pela sensibilidade em perceber as nascentes de água potável, os próprios chafarizes e as bicas enquanto locus de sociabilidade, abrigando encontros, cantorias, danças e inúmeros comportamentos coletivos arredios ao prescrito. Em meio ao processo de abastecimento de água e a implantação de uma rede de águas e esgotos na cidade, o autor projeta questões ligadas à história social. Destaca-se muito na narrativa do autor a fluidez das temáticas abordadas, captadas através do entrelaçamento da sua dimensão física, econômica, política, simbólica, social e cultural.

Assim, a visita do Imperador em 26 de março de 1846 é tratada não só no seu aspecto político, mas no seu conteúdo cultural, mostrando à resistência de padrões tradicionais de honra e fidalguia em meio a um cenário social que se aburguesava com os lucros oriundos da economia agrária. Os mercados não eram apenas locais para abastecimento, compra e venda, mas para a manifestação da sociabilidade necessária e para o reordenamento das prescrições através da improvisação de outros papéis sociais, como o esmolar, a cantoria, o comércio ambulante.

Obra da maturidade, “Cidade: os cantos e os antros” nasceu clássico e percurso obrigatório para quem deseja embrenhar-se pela história de Campinas. Com narrativa agradável, sem fugir à erudição e rigor, é um livro rico em informações sobre a cidade. No cerne deste tenso processo de modernização eludindo a cidade colonial e burguesa o rural parece absorvido por esta urbanidade nascente, mas mesmo esta ausência não abala o mérito do estudo.

Notas

1 LAPA, José Roberto do Amaral. Cidade: os cantos e os antros.São Paulo, EDUSP, p. 20, 1996.

2 Idem, p. 23.

3 Idem, p. 74.

4 Idem, p. 106.

5 Idem, p. 227.

6 Sobre este assunto, a coleção campiniana, editada pela área de publicações do Centro de Memória da UNICAMP e coordenada pelo próprio Prof. Amaral Lapa lançará ainda neste mês de dezembro o inédito estudo “A febre amarela em Campinas 1889-1900”, de Lycurgo de Castro Santos Filho e José Nogueira Novaes.

7 CARLO, Ginzburg. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Trad. Betania Amoroso, São Paulo, Companhia das Letras, 1987 e Chartier, Roger.” Textos, impressos, leituras. Práticas e representações: leituras camponesas em França no século XVIII”. In A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa, Difel, 1990.

8 LAPA, José Roberto do Amaral. op cit., p. 275.

Denise A. Soares de Moura – Doutoranda pela Universidade de São Paulo.

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