O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal – VIGARELLO (HE)

VIGARELLO, Georges O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal. São Paulo: Martíns Fontes, 1996. Resenha de: JOANILHO, André Luiz. O limpo e o sujo: anotações sobre um livro. História & Ensino, Londrina, v.4, p. 173-176, out. 1998.

Um texto límpido. Não é bom começar uma resenha sobre um livro fazendo trocadilho com o título e objeto, porém é irresistível. A objetividade traçada desde o princípio, a clareza da linguagem, cria uma imagem muito precisa sobre o que Georges Vigarello propõe no seu livro O limpo e o sujo, uma história da higiene corporal, da Martins Fontes, 1996. Dividido em quatro partes que ganharam títulos apropriados: “Da água festiva à água inquietante”, “A roupa branca que lava”, “Da água que penetra o corpo àquela que o reforça” e “A água que protege”. A propriedade dos títulos está no texto que segue cada um, pois apresenta justamente o que foi anunciado.

Viajando no tempo desde o século XIV, chega até meados do nosso século, tratando de um único assunto, a higiene corporal. Mas, surpresa, não se trata de como os homens evoluíram no trato com o seu próprio corpo, e sim de uma linha sinuosa ao longo dos séculos que parte do banho medieval e chega no banho moderno.

Insuspeitamente acreditamos que os banhos medievais tinham o mesmo caráter dos banhos contemporâneos: limpar. Ledo engano, eles não visam a higiene, e sim a lubricidade (desculpem a palavra). A umidade dos banhos é prenúncio dos prazeres da cama. Os banhos são tomados em estabelecimentos específicos, porém, como contíguos à bordéis, tavernas, e eles visam a excitação e não ahigiene.

Tudo muda. Estamos em plena Renascença. O temor das epidemias se associa ao temor das águas. Água que enlanguesce os músculos, os orgãos, abre os poros aos miasmas com as suas doenças. O conselho é evitar de toda forma os banhos e muito mais a imersão completa. O ideal é manter o corpo limpo através de uma segunda pele: a roupa branca justa, limpa e, de preferência feita de finos tecidos -é claro que isto se aplica à nobreza. Ela absorveria as impurezas naturais expelidas pelo próprio corpo e manteria uma certa proteção dos ares malsãos. No entanto, por mais contraditório que seja, a fuga dos banhos não significa que o período barroco foi mais descuidado da higiene corporal, muito pelo contrário, é nesse momento que surge a idéia de limpeza mais íntima, pois o que está além do olhar é que deve ser cuidado, ou melhor “o íntimo é gradualmente incluído no visível” (p. 251).

É o espetáculo do que é visível dentro do processo civilizatório, isto é, o processo de recalcamento das pulsões na sociedade (podemos lembrar do consagrado estudo de Norbert Elias, O processo civilizatório, da Jorge Zahar, sobre a etiqueta no Antigo Regime, associando-a ao desejo de distinção de classe por parte da nobreza). Aquilo que é vergonhoso e não deve ser visto, e ao contrário, o que é valorizado e todos devem ver.

De novo tudo muda. Insinua-se novas idéias sobre o corpo e as correspondentes práticas de limpeza. O vigor do organismo deve ser estimulado agora pela água. Assim passamos da água lúbrica, para aquela que é veículo de doenças e no século XVIII, para água que revigora. Representações de classe no trato do corpo e a limpeza. Para uma burguesia que quer conquistar é preciso corpos rígidos, fortalecidos, longe do enlanguecimento corporal provocado pelas representações que a nobreza “ociosa e devassa” tem de si mesma. A ciência do final do século XVIII corrobora a imagem que a burguesia tem de si ao legitimar que a limpeza protege e reforça o corpo. O banho frio enrijece, revigora o organismo, enquanto que o banho quente enlanguesce.

Durante o século XIX vamos assistir o reforço dessa idéia de vigor proporcionado pela limpeza, e mais ainda, a limpeza íntima é fundamental nesse novo processo. O asseio corporal passa a ser a salvaguarda contra as doenças, mas ao mesmo tempo há um avanço inexorável do pudor. Nos séculos XVII e XVIII a roupa branca íntima representava o ideal de limpeza e delicadamente deveria ser notada pelos outrosrendas saindo nos punhos, ou visíveis através de decotes ousados, sendo comum os camareiros pessoais participarem da higiene do patrão. Já no século XIX se torna impensável a presença de alguém estranho nos momentos de higiene pessoal, muitas vezes se estendendo aos familiares.

Esse novo pudor, inventado pela burguesia, mostra as práticas que envolvem o corpo nas sociedades capitalistas, e com o avanço da ciência, essa higiene se personaliza cada vez mais. Mas, de novo a surpresa. A paranóia em relação aos micróbios, desvelados como agentes patológicos, leva a idéia de higiene ao paroxismo. Médicos, higienistas propõem, na passagem do século, a lavagem das paredes, a desinfecção das casas, rígidas quarentenas, uma perseguição sem tréguas à sujidade e à falta de asseio. E com isso triunfa a idéia do banho diário e a higiene íntima. Porém, é demonstrável que a essa nova concepção de higiene é muito mais uma representação que a sociedade ocidental criou sobre o corpo.

As cidades, a arquitetura, os fluxos de água, ar, esgotos, fazem parte desse imaginário sobre o corpo e sobre o indivíduo. É antes uma psicologia, sensações que se traduzem em práticas cotidianas. O bem-estar, o consumo, o temor do que não é visível. Assim, a higiene não é simples imperativo com bases científicas, é antes de mais nada, uma imagem que a sociedade produz sobre si mesma, sobre os indivíduos, sobre os cuidados de si.

Pode-se afirmar que na realidade o trabalho de Geoges Vigarello trata de parte da história da idéia de intimidade. Entretanto, além dessa viagem surpreendente, uma outra questão chama a atenção do leitor mais atento, e que é uma vantagem para os desatentos: não há enunciações teóricas, ou melhor, o autor prescinde da citação de autoridade, o que lhe dá um ganho, pois não precisa enunciar métodos e nem complicadas fórmulas para compreender o objeto, e não que o autor não tenha reflexão. Atentamente transparece vários conceitos teóricos, mas que, pelo menos é o que transparece, não são citados pela segurança que o autor demonstra nas suas discussões, dispensando o recurso à autoridade. É desnecessário citar este ou aquele teórico para corroborar com as conclusões da pesquisa. Dispensável porque antes de serem aqueles que conformaram o objeto sem o saber, eles aparecem como inspiradores da análise e conclusão.

Ele bebe em vários filósofos e historiadores. Alguns aparecem claramente, outros nem tanto. Foucault, para começar, mas também Norbert Elias -já destacado acima. Além destes cabe lembrar Jacques Le Goff, Georges Duby e Roger Chartier, não por estarem citados, mas por trabalharem com o que se convencionou chamar de mentalidades. Há também que lembrar de Pierre Bordieu, este sociológo, e que trabalhou com a noção de hábito. Isso para não apontar outros mais clássicos, como Freud, para questões da psicologia, e Marx para as questões de classe. Porém, apesar de toda essa inspiração, o autor não faz referências diretas a elas, e por isso que os leitores mais desatentos, ou melhor, o leitor não especialista em história pode ter o prazer de ler um grande livro, e ainda por cima refletir um pouco sobre si mesmo.

André Luiz Joanilho – Professor do Departamento de História -Universidade Estadual de Londrina -PR.

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