A escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da historiografia – BURKE (VH)

BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. REIS, José Carlos. Annales: a renovação da história. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1996. Resenha de: LOPES, Marcos Antonio. Varia História, Belo Horizonte, v.14, n.19, p. 209-212, nov., 1998.

Dois livros tematicamente aparentados, e que quase se confundem pelo conteúdo de seus títulos. E as semelhanças não se esgotam nisso. A concepção geral das duas obras converge numa distribuição quase idêntica das matérias em análise. O período abordado e praticamente o mesmo. Os autores tencionam traçar um quadro amplo do desenvolvimento da chamada Escola dos Annales, desde os tempos de seus heréticos pais fundadores – pela explosão inovadora de suas idéias em meio a um ambiente intelectual conservador — Lucien Febvre e Marc Bloch, até o final da década de 80.

Na verdade, esta é a intenção maior de Burke e de Reis, que acabam por estender o que seria o projeto de uma história circunscrita dos Annales. Escrever uma história dos Annales partindo somente de seus fundadores seria fazer uma “história de pernas curtas”, como diria o próprio Lucien Febvre. Ao tentarem compreender o conteúdo “revolucionário” da história proposta por Febvre e Bloch, alargam o foco da pesquisa, descendo ao leito complexo do pensamento filosófico, da sociologia e da história, da forma corno eram concebidas estas disciplinas no século 19, o que Peter Burke chama – para esta última área – de “o Antigo Regime da historiografia”. Nesse percurso, Burke e Reis estabelecem as “genealogias”, febvriana e blochiana, identificando as raízes mais profundas das filiações teóricas e metodológicas dos fundadores, para explicar de que forma foram absorvidas e de que modo atuaram as influências recebidas em meio aos primeiros “debates e combates” travados na luta pela elaboração de uma história renovada.

Outra convergência dos textos: analisam as obras mais importantes, os maiores “monumentos” erguidos pelos Annales, como Os Reis Taumaturgos de Bloch, o problema da descrença (…) de Febvre, 0 Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo (…) de Braudel, Camponeses do Languedoc de Le Roy Ladurie, entre outros. Ambos percorrem as “três gerações” dos Annales, sendo que Reis pretende avançar este quadro, levando a pensar numa “Quarta geração” surgida do tournant critique de 1988.

Entretanto, apesar de algumas semelhanças de superfície, trata-se de textos acentuadamente distantes um do outro. Com efeito, as obras de Burke e Reis são ótimos exemplos de como pesquisadores que se debruçam sobre um mesmo objeto podem obter resultados desiguais, podem chegar a respostas convergentes ou divergentes, sem que necessariamente uma delas esteja incorreta ou deva ser refutada. Abandonadas as exageradas pretensões cientificistas na história, o que conta para um bom resultado da pesquisa é o seu “questionário”, ou seja, o programa do pesquisador, o grau de complexidade de suas perguntas, o amadurecirnento intelectual de seu projeto, como, a propósito, enfatiza Reis. Não que os dois trabalhos destoem quanto a qualidade e rigor, antes pelo contrário.

A diferença está em outra parte, isto é, no calibre da discussão, no fôlego e na disposição em discutir amplamente as matérias. Se os autores seguem um roteiro semelhante, corno foi ressaltado, existem sensíveis disparidades na estratégia de seu desenvolvimento. Não há dúvida de que o livro de Burke é mais leve, de leitura mais fácil, muito mais dinâmico e povoado de personagens que fizeram e ainda fazem a história da historiografia de nosso tempo. Por outro lado, o livro do professor Reis e mais te6rico, mais “sisudo”, e bem mais compacto. Acerca desse aspecto, vale ressaltar que aquilo que Burke discute em dois ou três parágrafos, de maneira quase alusiva, Reis desenvolve em diversas páginas. Para ficar em alguns poucos exemplos, basta comparar o tratamento que recebem as influências fecundas de Max Weber, Ernile Durkheirn, Frangois Simiand e Henri Berr. Em média, sete ou oito páginas de análise profunda de cada um!

Desse modo, seria o caso de indagar: em dois livros que têm propósito comum de informar sobre urna mesma questão, de onde vem o descompasso? A resposta para isso talvez possa ser encontrada no “espirito” de cada obra, na intenção de cada autor, naquilo que se refere ao público-alvo que eles tinham em mente corno destinatário de seus textos.

Ora, o livro de Peter Burke é quase urna obra de circunstancia, no sentido de se voltar claramente para o grande mercado editorial – no que, aliás, teve bastante êxito numa área em que, apesar da presença de alguns títulos consagrados, ainda há um considerável vazio de textos dessa natureza. Poder-se-ia objetar que o livro em questão foi publicado por urna editora universitária, preocupada em destinar obras de grande valor acadêmico para um público restrito. Contudo, a Editora da Unesp há anos já está inserida no circuito comercial das grandes editoras nacionais, desempenhando, diga-se de passagem, um papel brilhante.

Já o livro de Reis e extrato de tese, escrita para atender a uma rigorosa banca examinadora europeia, visto que seu trabalho foi defendido na Universidade Católica de Louvain, sem querer dizer com isto que as bancas nacionais sejam pouco rigorosas. E sobre este aspecto, o autor não se preocupou nem um pouco em “aliviar” o seu texto das necessárias mas sempre pouco agradáveis arestas acadêmicas, em destitui-lo de suas feições de tese, em esvazia-lo de pelo menos uma parte de sua densidade doutoral, premeditando atingir um público mais amplo, muito provavelmente desamparado de suficientes dados para digerir informações transmitidas num nível tão elevado. Limitou-se em nos conceder urna versão em português, incorporando as indigestas citações e refer8ncias bibliográficas no corpo do texto. Mas, pensando melhor, esta pode ser uma opção legitima do autor, que não faz concessões a certas “profanações”, igualmente legitimas, do grande mercado editorial. Se não conhecesse a história da obra, seus percalços e peripécias, teria sérias dúvidas de que editoras comerciais aceitassem publica-la, no formato corno se encontra pela Editora Universitária da UFOP.

Nesse ponto, a obra de Burke é mais feliz. Seu texto, sem a menor pretensão de desmerecer o livro, é material paradidático – com direito até a Glossário para aqueles que passaram por Francois Dosse, H. Coutau-Bergarie, Guy Bordé e Hervé Martin, sem esquecer o livro-dicionário organizado por Jacques Le Goff, Roger Chartier e Jacque Revel. Apesar de seu desenvolvimento quase telegráfico, ou melhor, o seu tratamento bastante ligeiro dos temas enfocados, o autor atinge seu principal objetivo: dar a conhecer o “regime” historiográfico que havia antes dos Annales, o impacto e a influência da obra de Febvre e de Bloch, a recepção internacional dos Annales, até fins dos anos 80, passando pelas “gerações” intermediarias em trajetórias breves mas muito bem tecidas, com destaque para a atuação e o lugar de Fernand Braudel.

E o que nos oferece o livro de Reis? o mesmo que a obra de Burke. Mas com analises mais extensas, o que não deixa de ser um importante diferencial. Um bom exemplo disso e o quadro que o autor traça sobre a “contaminação” da história pelas ciências sociais, e com vantagens sobre Burke, pois não se limita a estabelecer influencias e filiações te6ricas: explicita metódica e pormenorizadamente cada sistema teórico, para, ato continuo, identificar os seus pontos de enraizamento junto a história. Aí está com certeza, o seu maior mérito. Além  de uma erudita exposição do desenvolvimento da historiografia francesa, o livro de Reis constitui-se ainda numa competente e bem informada aula de metodologia da história, posto que orienta sobre as especificidades da pesquisa histórica, suas dificuldades e riscos.

Apesar da identidade temática, de uma certa coincidência no desenvolvimento do texto, ‘bem como pela presença dos mesmos personagens e algumas referências bibliográficas cruzadas, as duas obras têm poucos traços em comum. Trata-se de pesquisas que chegam a resultados bem diferentes, porque desde seu ponto de partida perseguiram fins muito diversos. Acentua-se a disparidade principalmente porque são textos de níveis teóricos claramente distintos, o que para o leitor interessado nessa matéria e muito favorável: terá acesso a duas visões, a duas formas personalizadas de tratamento de um só problema. Mas, fora de qualquer dúvida, ao transformarem uma área importante da historiografia contemporânea em objeto de análise, tarefa sumamente espinhosa, cada trabalho desempenha com valor a sua meta: colaborar para a ampliação do conhecimento de um terna mais que relevante. Em síntese, dois livros inteligentes sobre uma questão a um só tempo complexa e fascinante.

Marcos Antonio Lopes – Departamento de História/ UNIOESTE-Pr.

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