Como se deve escrever a história (Luciano de Samósata)

LUCIANO. Como se deve escrever a história. Tradução, introdução, apêndices e o ensaio “Luciano e a história”: Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, 278 pp. Resenha de RODRIGUES, Henrique Estrada. Luciano de Samósata e a escrita da história. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 03, p.194-197, setembro 2009.

Como se deve escrever a história é o nome de um pequeno texto de Luciano de Samósata. Natural da Síria, ele vivera no segundo século de nossa era, num mundo submetido à influência do Império Romano e à do patrimônio cultural grego. Cultor de gêneros como o diálogo cômico-filosófico, o panfleto e o romance, Luciano nunca adentrou pelo terreno da historiografia, embora tenha produzido, com esse como se escreve, um significativo “tratado” sobre a história.

As aspas para o “tratado” são de Jacyntho Lins Brandão, autor da mais recente tradução do texto luciânico para a língua portuguesa, publicada em edição bilíngue, anotada e comentada. De fato, o intérprete de Luciano, em ensaio aposto à obra traduzida, prefere nomear o texto como uma espécie de panfleto político anti-romano, cujos aspectos teóricos estariam “a serviço da polêmica e das necessidades que o presente impõe” (BRANDÃO 2009, p.165).* O presente, no caso, diz respeito à época do reinado de Marco Aurélio (161 a 180 d.C.), com destaque para o período em que o Império Romano entra em guerra contra os partos, no Oriente, entre 162 e 166 d.C. Já a polêmica era dirigida contra historiadores que, perante os eventos em curso, escreviam histórias de Roma com esperança ou temor: a esperança de obter ou o medo de perder recompensas do público filo-romano – salário, proteção, vitória em concursos. Então, para Luciano, como se deveria escrever a história? Segundo a leitura de Lins Brandão, como se o historiador fosse estrangeiro nos livros. Ou seja: escrevendo de um ponto de vista outro que o daqueles autores excessivamente harmônicos com os interesses do momento, pródigos em ditarem fartas lições de servilismo ou adulação.

Em muitas de suas obras polêmicas e, freqüentemente, satíricas, Luciano evita apresentar embates de ordem geral, “sem que as idéias se encarnem em personagens” (BRANDÃO 2009, p.231). O mesmo teria ocorrido em Como se deve escrever a história, cuja crítica ao servilismo se faz a partir da identificação dos vícios de um amplo leque de historiadores, notadamente daqueles empenhados em narrar as recentes guerras párticas. Toda essa crítica é reconstituída e analisada com detalhe pelo ensaio de Lins Brandão, enfrentando a dificuldade de lidar com nomes ou obras que têm, nos testemunhos do polemista de Samósata, sua única fonte conhecida. Contudo, apesar de encarnasse suas críticas em historiadores específicos, Luciano também não deixara de condensar seus pensamentos no plano das formulações universais.

Por esse motivo, Lins Brandão interpela essas formulações a partir de uma questão bem específica, que parece orientar todos os passos de sua análise: se a história procura dizer a verdade – por intermédio da qual ela se separa da poesia –, sob quais condições o historiador poderia ser verdadeiro? Essa foi uma questão chave para Luciano. E é a partir dela que o tradutor brasileiro, desdobrando estudo anterior, intitulado A poética do hipocentauro (BRANDÃO 2001), orienta os dois eixos centrais de seu comentário: de um lado, trata-se de analisar os pressupostos teóricos da diferença entre poesia e história, a partir dos quais a historiografia fora pensada, na Antiguidade, em meio a um debate sobre os diferentes gêneros de discurso; de outro lado, Lins Brandão investiga detidamente qual seria o estatuto da verdade da escrita historiográfica, contraposta, em Como se deve escrever a história, não apenas à mentira, mas, especialmente, à adulação interesseira.

É certo que Luciano era tudo, menos historiador, reafirma o ensaísta brasileiro na esteira de Hartog (HARTOG 2001, p.223). Mas teria vindo do polemista grego (ou melhor, que escrevera em grego) uma “teorização explícita” sobre a história, do mesmo modo que a teoria poética, na Antiguidade, ganhou direito de existência pela obra não de poetas, mas de filósofos (Platão e Aristóteles) e, depois, retores (BRANDÃO 2009, p. 254). Aproximando-se da teoria, esse contemporâneo de Marco Aurélio amplia o diálogo da história com uma ampla tradição, não só historiográfica, como também retórica, poética e filosófica, não deixando de atribuir ao historiador as mais altas qualidades que espera encontrar em qualquer que se dedique à atividade intelectual, independentemente da disciplina de que se ocupe. (BRANDÃO 2009, p.262-263).

Entretanto, uma vez que a história compõe um patrimônio que se transmite de geração a geração, Luciano de Samósata também dirigira sua verve crítica e teórica para um outro diálogo: o da historiografia com a esfera dos assuntos públicos. Estrangeiro nos livros – e não aos assuntos da cidade –, uma das mais altas qualidades de um historiador é a de ser dotado de “inteligência política” (LUCIANO 2009, p. 65). Em outros termos, na síntese proposta por Lins Brandão, de nada adiantaria ser amigo da verdade sem ter a coragem de exercitar, ao menos, três virtudes: a “parrésia”, ou seja, a obrigação de falar com franqueza; a “justeza” no julgamento, com a qual o intelectual se diferencia dos que avaliam em vista da recompensa; e a “isenção” na análise, ou melhor, o dever de escrever com autonomia, sem se preocupar com o que achará este ou aquele.

Ressalte-se, nas trilhas de seu tradutor brasileiro, que Luciano intercala, à figura do historiador justo e imparcial, qualidades como “autonomia”, “equidade” e “liberdade”, reforçando, por este caminho, a presença do político no interior do debate historiográfico. Essa presença não se revelaria, apenas, na delimitação de um objeto específico de análise ou na defesa de determinadas teses. Antes disso, o político se apresentaria, no ensaio luciânico, como uma certa “política da história”. Em outros termos, Luciano delineia, como próprio de seu panfleto, uma contínua interrogação sobre o contexto em que se inserem os intelectuais quando escrevem seus textos, sobre as práticas de legitimação das obras historiográficas. Particularmente, Como se deve escrever a história questiona autores que, incorporando a heteronomia na própria ordem do conhecimento, escreviam suas histórias como caução de interesses que não ousavam se dizer enquanto tais. Reconhecendo o interesse e a adulação como as pátrias da servidão, mereceria o nome de historiador, para Luciano, quem fosse verdadeiramente apátrida.

Foi, assim, um estrangeiro à própria disciplina que renovou os combates pela história a partir de uma perspectiva explicitamente reflexiva e sistemática, da qual a historiografia era até então carente. Segundo Lins Brandão, essa carência talvez se justifique pelo fato de a prosa historiográfica ter ultrapassado, na Antiguidade, a forma narrativa da poesia, sem, contudo, “assumir a dicção argumentativa da retórica ou da filosofia” (BRANDÃO 2009, p. 254). É certo que os historiadores antigos sentiram necessidade de justificar suas opções, seus objetivos e suas referências canônicas. A esse respeito, Lins Brandão relembra, por exemplo, certas reflexões de Políbio e de Flávio Josefo, interpostas no decorrer de suas próprias narrativas historiográficas. Porém, a partir do livro que aqui se resenha, não deixa de ser interessante pensar que a teoria da história ganha foro específico com um desafio vindo de fora – ou como o próprio foro desse desafio, sem o qual a relevância teórica poderia esmorecer perante hábitos ensimesmados.

*Nesta resenha, todas as citações de Jacyntho Lins Brandão são provenientes do ensaio “Luciano e a história”, que acompanha a obra traduzida.

Referências

BRANDÃO, Jacyntho Lins. A poética do hipocentauro: literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

HARTOG, François (org.). A história de Homero a Santo Agostinho. Prefácios de historiadores e textos sobre a história reunidos e comentados por Hartog, traduzidos para o português por Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

LUCIANO. Como se deve escrever a história. Tradução, introdução, apêndices e o ensaio “Luciano e a história”: Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Tessitura, 2009.

Henrique Estrada Rodrigues Professor substituto de Brasil Contemporâneo Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) [email protected] Rua Apucarana, 85/103 – Ouro Preto Belo Horizonte – MG 31310-520 Brasil.

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