A invenção da cidade: leitura e leitores – MELO (HP)

MELO, Orlinda. C. A invenção da cidade: leitura e leitores. Goiânia: Editora da UFG, 2007. 245 p. Resenha de: COSTA, Keila Matilda de Melo. A reconstrução da cidade: história de leitores, lugares de leituras. História & Perspectivas, Uberlândia, v.33, n.42 – Jan./Jun. 2010.

A invenção da cidade: leitura e leitores, livro de Orlinda Carrijo Melo1, tem como tema as práticas e as representações de leitura numa cidade planejada — Goiânia —, de acordo com os preceitos da modernidade, do progresso e da cultura urbana. Nesta obra, a autora apresenta a transferência da Cidade de Goiás para Goiânia a partir do imaginário social de diferentes leitores. Construção que evidencia não apenas histórias de leitores, lugares de leituras, mas também lutas econômicas e políticas que envolveram a região de Goiás no período em estudo. Dividida em seis partes, abrange a reconstrução das práticas, dos modos e das representações de leitura na cidade inventada a partir de sua fundação, em 1933, até o ano de 1959.

A trajetória profissional da autora, O começo de tudo…, introduz a obra. No contato com alunos, ela retoma discursos sobre leituras e leitores que, desde a época colonial, persistem em justificar a “carência cultural brasileira”. Em busca da sistematização desses discursos, com o objetivo de compreendê-los em um contexto real e idealizado, justificativa do título da obra, a autora se propõe não somente a investigar as práticas de leitura, mas também identificar os modos como elas se constituem na vida dos leitores dessa cidade planejada e civilizada. A explicitação desses modos tem como pressuposto “a reconstrução das diferentes maneiras como os leitores se apropriaram dos textos nos espaços que os constituíram historicamente”.

De História e histórias: o espaço dos interlocutores, Orlinda apresenta o percurso teórico e metodológico de seu trabalho. A interlocução possível é a História Cultural. Por meio do diálogo com essa fundamentação teórica são reconstruídos “os lugares praticados de leitura por operações de sujeitos sócio-históricos, nos tempos construídos pelo improviso, pelo descontínuo, pela falha, pelo lacunar”. Reconstrução feita a partir da narrativa de 16 protagonistas, incluindo uma empregada doméstica e benzedeira. Todos compõem a elite cultural de uma época marcada pelo analfabetismo.

Impasses, cotejo de fontes, indícios e diálogos contribuem para que as histórias dos leitores se entrelaçassem com a história de leitura da cidade construída. Memória individual, coletiva, afetiva, traída e recriada florescem, buscando em fontes variadas o respaldo para os fatos narrados.

A destruição criativada cidade do passado : a teia dos discursos, segundo capítulo da obra, aponta o processo de mudança: para a construção de Goiânia, a descontrução da Cidade de Goiás, do sertão goiano atrasado e inculto. Os preceitos de modernidade e de progresso atingem o interior do Brasil por meio da Marcha para o Oeste. Entre o velho e o novo, entre a tradição e a modernidade, a cidade decadente dá lugar à cidade planejada.

Motivações políticas, sociais, econômicas, sanitaristas, criação de mitos e heróis impulsionaram esta mudança. Na “contramão” do discurso, a Cidade de Goiás surge como um espaço de intensa efervescência cultural e intelectual. Efervescência que dá sustentação à riqueza cultural que irá caracterizar Goiânia. Modernidade e cultura urbana são afinal os paradigmas dos novos tempos.

A cidade inventada: o progresso chegando apresenta esse prenúncio. Neste capítulo são construídas as representações e as imagens da cidade planejada como uma cidade moderna. O progresso se evidencia a partir da dicotomia “sertão civilizado” e “sertão inculto”. Os intelectuais foram os promulgadores dessa construção, uma vez que, antes de se tornar um lugar habitável, Goiânia foi constituída através de narrativas. Do cenário internacional ao brasileiro, profissionais foram chamados para definir esse novo espaço, o art-déco caracterizou-lhe o projeto urbanístico. O nome Goiânia foi escolhido enquanto continuidade à “Nova Goiaz”, prolongamento do passado que se estendeu também pelas práticas culturais. Documentos e depoimentos apontaram a expansão dos espaços de leitura. Espaços formais e informais que contribuíram para a construção das práticas e representações de leituras e de leitores no imaginário da época.

Em Lugares da modernidade : o espaço da leitura instituições diversas foram lembradas. Das instituições de leitura públicas e formais, a autora resgata a história da Biblioteca Pública Municipal de Goiânia, da Escola Normal Oficial e do Grupo Escolar Modelo. Instituições que se situam como “centros culturais e literários de igual valor aos eixos Rio-São Paulo”. Das Instituições de leituras particulares e formais, os “lugares praticados de leitura” estiveram associados ao Colégio Santa Clara, aos vendedores ambulantes, a livrarias, a bancas de revistas etc. Práticas que alcançaram espaços informais como : bibliotecas particulares, bares, farmácias, casas de famílias. A leitura se irrompe para lugares inusitados, revelando leitores que buscam a modernidade em impressos variados, por exemplo em revistas e jornais. Instituições culturais são também lembradas. O “Batismo Cultural de Goiânia” é o evento que dá origem à Associação Brasileira de Escritores – Seção Goiás e à Bolsa Hugo Carvalho. A constituição do imaginário social da cidade planejada foi assim se solidificando com os aspectos da riqueza cultural e da formação intelectual dos goianos.

Leitores: valores e representações, quinto capítulo do livro, evidencia histórias de leitores e suas práticas de leituras — valores e representações atribuídos à leitura pelos moradores da cidade inventada. “Jogos de imagens da cidade e de si mesmos”, reproduzem a nova ordem mundial centrada no progresso e na modernidade. Na leitura herdada de família “não há rito de passagem para a escola”. A leitura se consolida nas relações dos grupos que praticam as formas dominantes de cultura. A posse do livro representa o acesso a essa cultura. A partir desse objeto, outros ícones de leitura marcam essas histórias. Paralelo à leitura familiar, encontra-se a leitura herdada da escola. Ambas reproduzindo valores burgueses. Escola e família se fazem presentes nas representações da cidade que se pretende culta e civilizada.

Espaços reconstruídos aparentemente sem contradições, mas que, em determinados momentos, “memórias traídas” revelam as leituras de vida dupla. Leituras cruzadas entre permissões e censuras a partir do papel do selecionador. No entanto, a “memória coletiva” resiste e conserva viva as leituras consideradas menores.

Por meio do ato de ler, o indivíduo também “se forma e se informa”. É a leitura, ilustração técnica para o trabalho que carrega consigo estigmas do discurso liberal e define postos de trabalho.

Nesse universo de representações e imagens de leitura ganham contornos ainda a leitura feminina e a leitura masculina.

Para as mulheres, leitura de evasão, de sonhos, ocultando conflitos — limitações de leitura. Para o homem, leituras sérias pressupondo tomadas de decisões e escolhas para adentrar o campo competitivo da cidade moderna — acesso ilimitado ao impresso.

Acesso possibilitado pela ampliação de materiais escritos. Daí, a leitura, consumo da modernidade. Práticas modernas e estrangeiras são rapidamente absorvidas. A crônica social, os cartazes, os folhetos, os anúncios e os jornais propagam os eventos culturais.

Cinema, rádio, teatro, fotografia e televisão são representações motivadoras de leitura. “Leituras modernas que sugerem felicidade, conforto e sucesso”. Retrato de uma realidade que não esconde a outra margem da leitura, ou da leitura sem leitores.

Nas lembranças evocadas: analfabetismo, fracasso dos programas escolares, exclusão da maioria da população “pela negação do acesso à escola e pelas práticas de leitura pobres e estereotipadas que engrossam as estatísticas da evasão escolar”. Revelação de um cenário de leitura não autorizado, reservando a milhares de leitores um espaço à margem da ordem social.

A desinvenção da cidade: memória traída é o capítulo que finaliza esta obra. Nele, a autora retoma as cartas escolhidas pelos participantes da pesquisa para a reconstrução do passado. Na montagem desse cenário, mito e realidade permeiam as “memórias seletivas” e revelam as contradições do discurso por meio das “memórias traídas”. A face oculta da cidade inventada se evidencia e duas cidades surgem: uma harmoniosa, que fervilha em leituras; e, outra, com restrições inúmeras. Da memória traída o que resta é a possibilidade de ruptura e do dizer a mais. Da memória seletiva, o anivelamento do discurso e a definição do espaço ocupado nas práticas de leitura da cidade planejada. No entanto, “o caminho sugere vários lugares […]”.

Das inúmeras narrativas de constituem esta pesquisa, mãos experientes sustentam esta história reconstruída pelo discurso de uma “ouvinte-narradora”que, segundo Valéry, faz tornar visível o que está dentro das coisas, o que está submerso nas palavras. A capacidade de ir além do que é revelado, percorrendo diferentes fontes, de apreender a realidade a partir da “metáfora do olhar, que não se deixa levar pelas primeiras aparências”, como dizia Veiga Neto, são as características que definem um pouco da riqueza desta obra. Um livro que vale a pena ser lido não apenas pelos aspectos históricos que o constitui, mas, e sobretudo, pelas inúmeras narrativas as quais caracterizam histórias de leitores, lugares de leituras.

Keila Matida de Melo Costa – Doutoranda em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Bolsista da Capes. [email protected] 1 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp – SP. Professora de graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Autora do livro Alfabetização e trabalhadores : o contraponto do discurso oficial.

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