O Jogo da Dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil – ALBUQUERQUE (Tempo)

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da Dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, 319 p. Resenha de: GOMES, Tiago de Melo. Dissimulação e outros jogos. Tempo v.15 no.29 Niterói jul./dez. 2010.

“‘Saber o seu lugar’ é uma dessas expressões capazes de traduzir regras de sociabilidades hierarquizadas que, sendo referendadas ou contestadas, atualizam-se cotidianamente. É construindo e conhecendo tais ‘lugares’ que as pessoas estabelecem relações, reconhecem formas de pertencimento e estruturam disputas próprias ao jogo social. Mas quais seriam os sentidos imprimidos a essa expressão no contexto das mudanças políticas e sociais das últimas décadas do século XIX? Em que medida a desarticulação da escravidão fundamentava as leituras que os contemporâneos faziam dos diferentes lugares naquela sociedade?” (p. 33).

Essa é a maneira pela qual Wlamyra R. de Albuquerque define a problemática de seu livro em sua introdução. O tema central de O Jogo da Dissimulação é uma interrogação a respeito da reorganização das hierarquias sociais com o fim da escravidão, um dos pilares centrais de todo um sistema de dominação que dava sentido àquela sociedade. Sendo esse alicerce removido, como os senhores poderiam manter suas políticas de domínio? E como os dominados poderiam buscar uma nova inserção em um mundo sem a presença da escravidão? Sobre tais questões, Albuquerque constrói seu O Jogo da Dissimulação.

O livro possui, dessa maneira, uma ancoragem muito sólida na história social, algo que é mantido com coerência pelos quatro capítulos do livro. Os quais, por sinal, a despeito de interligados, podem ser lidos em separado sem maiores prejuízos para o leitor. Mas o livro não carece de unidade: a problemática enunciada na citação acima é perseguida da primeira à última página, de modo que o que se tem não é uma coleção de artigos, mas um livro com início, meio e fim.

Segundo a autora, o primeiro capítulo seria centrado “nas dissensões flagrantes nos meetings e ações dos abolicionistas, diante das atitudes da população de cor” (p. 39). No entanto, não é uma definição particularmente feliz. Os abolicionistas só entram em cena com o capítulo bem adiantado, na terceira (e última) parte. Através deles, a autora nos mostra que para Salvador valia algo que outros autores já haviam demonstrado para Rio de Janeiro e São Paulo: abolicionismo não é incompatível com racismo. E naquele contexto não era raro as duas coisas andarem juntas, pois muito do abolicionismo de elite era fundado exatamente no desejo de se livrar dos negros para substituí-los por imigrantes brancos.1 Albuquerque nos mostra isso com competência, o que, embora não seja propriamente original, nunca deixa de ser relevante, principalmente com a exaltação que muitos ainda se ocupam de fazer a figuras como Joaquim Nabuco2.

Mas o que efetivamente vale a leitura do capítulo são suas primeiras duas partes. A partir da chegada de dezesseis africanos em 1877, com intenção de se estabelecer em Salvador como comerciantes, a autora nos conduz por uma história incrível. Embora livres e portadores de passaportes ingleses, o grupo é proibido de se estabelecer e mandado de volta para a África. Um episódio que gerou um pequeno choque diplomático com os ingleses e envolveu o chefe de polícia da cidade, o governador da província, chegando à alta instância do Conselho de Estado. Mais admirável é que Albuquerque nos mostra não ter se tratado de fenômeno isolado. Pode ser mais bem definido como parte de um esforço consciente do Estado brasileiro de impedir a entrada de imigrantes de cor sem que houvesse a necessidade de recorrer a uma legislação específica. Ao mostrar outros casos com a mesma problemática e o mesmo final, Albuquerque deixa claro que o Estado brasileiro lutou em várias frentes pelo embranquecimento da nação. Não apenas se esforçou para trazer imigrantes que clareassem o Brasil, mas deliberadamente impediu africanos e afrodescendentes de outras nacionalidades de entrar no país.

O que é uma importante contribuição para inserir de forma mais consistente o papel do Estado brasileiro na promoção da desigualdade racial. A ausência de legislação discriminatória tem feito com que historiadores não deem ao Estado um papel de destaque nesse processo.3 Estudos sobre ações semelhantes em outros contextos, aliados ao trabalho de Albuquerque, fornecem elementos impossíveis de serem ignorados, que apontam claramente nessa direção.4

O segundo capítulo, centrado no contexto imediatamente anterior e posterior ao 13 de maio, é um dos pontos altos do livro. Albuquerque nos conduz por um intenso jogo de reconstrução de sentidos causado pela remoção de um dos pilares sobre o qual se construía a sociedade brasileira até então. Sem a escravidão, os senhores percebiam a derrocada de toda uma política de domínio longamente estabelecida, e o medo do caos social se disseminava (para não mencionar as consequências econômicas, em especial para uma província já decadente). Do lado dos subalternos, a excitação ante a possibilidade da reconstrução de todo um contexto social em termos que lhes fossem mais favoráveis.

Em meio às festividades e desafios políticos que os dominados promoviam, ou a tentativas desesperadas e eventualmente patéticas de manter a antiga ordem social por parte dos dominantes, Albuquerque nos introduz a repensar algo há muito consagrado sobre aquele período. Há uma tendência a pensar na década de 1880 como uma desagregação definitiva da escravidão, e no 13 de maio como apenas o último ato de uma situação praticamente já consolidada. Mergulhando em bairros negros de Salvador, em engenhos do recôncavo e em vilas afastadas no interior, Albuquerque nos lembra com muita intensidade o quanto a escravidão ainda era naquele momento a peça-chave de todo um sistema de dominação que era intensamente presente no cotidiano daquela sociedade.

Já o terceiro capítulo tem um brilho menor. Contém uma ideia muito interessante, e que em certos momentos consegue fascinar o leitor: a de que a racialização da visão de mundo do universo dominante de fins do século XIX não se deve apenas à influência do ideário racista europeu, mas também deve ser vista como uma tentativa de reorganização das hierarquias a partir do declínio da escravidão. Uma ideia das mais interessantes, mas que às vezes é soterrada no capítulo por discussões menos originais. Pintar republicanos como essencialmente brancos bem educados de classe média e alta, em contraposição a uma paixão popular (e sobretudo negra) pela monarquia, por exemplo, é algo que hoje já se transformou em lugar-comum. Muitas páginas são dedicadas a essa questão, sem trazer ganhos palpáveis a uma discussão que, se perseguida de forma mais sistemática por todo o capítulo, poderia ter resultado em uma discussão do mais alto interesse.

Já o quarto e último capítulo muda o rumo da discussão, se embrenhando em uma discussão aberta há muitos anos por Beatriz Góis Dantas,5 mas que poucos tentaram prosseguir. Trata-se da imagem da Bahia como capital afro-brasileira, ideia em grande parte referendada em uma determinada africanidade (a jeje-nagô), que nessa visão seria mais “pura” ou até mesmo “superior” às outras áfricas que aportaram em território nacional.

Se Albuquerque segue o trabalho de Dantas ao se ocupar da visão de atores como Nina Rodrigues, Manoel Querino, Édson Carneiro e Artur Ramos (fundadores e difusores daquela imagem), inova ao acrescentar um dado novo: os próprios africanos e afro-brasileiros que viveram aqueles anos. No capítulo, podemos ver os portadores daquela cultura afro-brasileira que foi alvo de tantos escritos representando a si próprios e a própria África. Aprendemos que não era apenas na faculdade de medicina de Salvador ou nas publicações de literatos que o tema estava na ordem do dia. Blocos carnavalescos, terreiros, batuques, bancas de jogo do bicho, qualquer espaço parecia bom naquele momento para pensar a relação entre África e Bahia.

E o mínimo que se pode dizer a partir da leitura do capítulo é que naquele contexto havia uma multiplicidade de representações disponíveis sobre o continente africano, que não aparecia apenas como espaço da barbárie. Havia outros elementos a ele associados, tais como resistências ao imperialismo europeu. Disso resulta que era evidente o conflito de significados associados àquele continente, com evidentes implicações político-raciais. Áfricas diferentes também significavam diferentes percepções sobre o lugar de seus descendentes em território brasileiro.

O último capítulo de O Jogo da Dissimulação é um convite para que o tema da construção de uma determinada leitura da capital baiana seja mais problematizado por historiadores. O capítulo não é propriamente conclusivo, trazendo mais perguntas do que respostas. De toda forma, desperta a curiosidade do leitor para o tema sobre o qual se debruça, o que é sem dúvidas um mérito dos mais relevantes.

Um pequeno reparo que deve ainda ser feito em uma leitura global do livro se refere ao título. Que poderia ser ótimo, se fosse adequado ao seu conteúdo. Mas a verdade é que não temos em mãos um livro sobre dissimulação. O termo só aparece no primeiro capítulo, para descrever as tentativas do Estado brasileiro de barrar a entrada de africanos e afrodescendentes no país, sem recorrer a uma racialização explícita. No mais, o que temos são confrontos, projetos, choques de visão de mundo, mas nunca dissimulação.

O Jogo da Dissimulação, ao fim, mostra-se um livro instigante, que deixa no leitor uma vontade de saber mais sobre o assunto. É de esperar que sua publicação contribua para que as questões discutidas possam avançar. São temas muito importantes e nem sempre tratados como deveriam pela historiografia brasileira.

Gostaria de encerrar com uma questão de caráter mais geral que o livro levanta: o papel da escravidão na trajetória posterior dos afro-brasileiros. Albuquerque nos lembra de algo muito importante: o destino dos afro-brasileiros após 1888 poderia ter sido muito diferente. A escravidão não pode ser vista, portanto, como uma origem que explica toda uma trajetória posterior de desigualdades raciais. Vemos claramente no livro como o encaminhamento da “questão servil”, desde o momento em que a abolição afigurou-se como inevitável, foi conduzido de forma a produzir desigualdades em um mundo sem escravidão. Vemos os grupos dominantes buscando na racialização uma maneira de reorganizar as hierarquias de forma a manter a existência de senhores, mesmo em um mundo sem escravos. Em um momento em que essa questão está na ordem do dia, Albuquerque nos lembra com muita propriedade o quanto essas diferenças e hierarquias se reconstroem permanentemente. Somos todos atores desta história.

1 O trabalho seminal sobre o assunto é Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites – século XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
2 Novamente é preciso lembrar o trabalho de Célia Azevedo, em textos como “Quem Precisa de São Nabuco?”, Estudos Afro-Asiáticos, vol. 23, nº 1, Rio de Janeiro, 2001, p. 85-97.
3 Uma exceção importante é o trabalho de Anthony Marx, em obras como “A Construção da Raça e o Estado-Nação”, Estudos Afro-Asiáticos, nº 29, Rio de Janeiro, 1996, p. 9-36 e Making Race and Nation: a comparison of the United States, South Africa and Brazil, Cambridge-New York, Cambridge University Press, 1998.
4 Episódios semelhantes foram documentados na década de 1920, ver Teresa Meade e Gregory Alonso Pirio, “In Search of the Afro-American ‘Eldorado’: attempts by North American blacks to enter Brazil in the 1920s“, Luso-Brazilian Review, vol. 25, nº 1, Madison, 1988, p. 85-110; Tiago de Melo Gomes, “Problemas no Paraíso: a democracia racial brasileira frente à imigração afro-americana (1921)”, Estudos Afro-Asiáticos, vol. 22, nº 2, Rio de Janeiro, 2003, p. 307-331; Jair de Souza Ramos, “Dos Males Que Vêm Com o Sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 1920”, in: Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (orgs.), Raça, Ciência e Sociedade, Rio de Janeiro, Fiocruz-CCBB, 1996, p. 59-82.
5 Beatriz Góis Dantas, Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1988.

Tiago de Melo Gomes – Professor Adjunto da Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-mail: [email protected].

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