História da Maria do Céu na terra CFEA – (REF)

CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA. História da Maria do Céu na terra. Brasília: CFEMEA, 2009. Resenha de: FLEISCHER, Soraya. Revista Estudos Feministas, Vol. 18, No. 3, setembro-dezembro – 2010.

Há algumas décadas, os movimentos feministas, brasileiros e internacionais, vêm tentando desenvolver argumentos e tecnologias para tratar do tema do aborto, seja simplesmente falando do tema, seja intervindo em grande escala pela descriminalização e/ou pela legalização da prática. Muitas iniciativas foram experimentadas, com maior ou menor sucesso, principalmente em termos de eficiência da comunicação.

Chega-nos, agora, um material que me chamou excepcional atenção pela sua criatividade e singeleza. O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) e a Rede de Desenvolvimento Humano (REDEH), com o apoio da Safe Abortion Action Fund (SAAF) do Governo britânico, lançaram no final de 2009 o livreto História da Maria do Céu na terra. Em 32 páginas, o material contém um conto mezzo ficcional (à frente explicarei esse ponto); informações estatísticas sobre a realidade do aborto; razões vividas pelas mulheres para interromper uma gravidez; razões para se ser a favor do aborto legalizado; um glossário das palavras recorrentes; e uma listagem de referências bibliográficas.

Mas o que vem em primeiro lugar no livro, a meu ver, em termos de originalidade e potencial de aplicação, é o conto. O plot do conto pode ser assim resumido: Jeovelina teve uma filha sozinha, o Companheiro lhe deixou assim que soube. Hoje, Ana é adolescente e se descobriu grávida. A notícia impacta a família, mãe e filha oscilam entre aceitação e revolta. A gravidez da jovem mobiliza várias amigas da casa até que, por fim, a moça decide priorizar sua carreira, realiza o aborto e segue com a vida.

Enquanto ficamos sabendo do impacto de uma gravidez não planejada na vida de Ana, outras informações aparecem e ajudam a criar um quadro bastante realista da vida de muitas mulheres deste país. Sexo sem consentimento dentro do casamento, violência sexual, dificuldade de comunicação entre mães e filhas, morte materna, reprodução de padrões de gênero e conjugalidade são, por exemplo, fragmentos paralelos que conferem densidade à trama e servem de ganchos para aprofundar discussões, ao se usar o livreto como material didático.

Eunice Borges, jornalista do CFEMEA, criou um conto que reúne poderosos elementos para tratar do aborto. Poderosos no sentido de facilitar a conexão, no nível biográfico, com as personagens, as situações, as decisões e os desfechos. Assim, o conto não é de todo ficcional porque, como explica ao final, “qualquer semelhança com outras [histórias] que você já ouviu falar é só porque foi inspirada na vida de muitas mulheres que nem sabemos quem são, mas que devem existir de verdade” (p. 14). É uma espécie de pout pourri biográfico.

Mas a outra metade, que de fato considero como ficcional, oferece justamente o poder de enredamento dos romances, dos mitos. O público se deixa levar, o conto provoca a imaginação de quem o ouve (e aqui, imagino como ganhará ainda mais força se for lido em voz alta ou encenado). É o poder do “Era uma vez…” que permite que esse livreto ganhe um potencial extra para mobilizar suas audiências. Não é preciso ter passado pelo aborto para se conectar com essa história. Ao simplesmente acompanhar Jeovelina, Ana, Maria do Céu e sua turma pelas ruas e pelo hospital de seu bairro, que poderia ser em qualquer canto do Brasil, o conto se torna um primeiro estímulo que nossa imaginação apanha e recheia como quiser ou puder.

Contudo, o conto nos abre novas possibilidades interpretativas e também assim, sofrendo algumas críticas, permite que avancemos na reflexão sobre o aborto.

A história do aborto de Ana é, de certa forma, sanitizada. Para começar, felizmente, a gravidez não foi fruto de incesto ou estupro. Ana e o Namorado tinham um relacionamento feliz e também o conhecimento de métodos contraceptivos e o acesso a esses. O Médico que diagnostica sua gravidez é excepcional e idealmente laico, pragmático, gentil, acolhedor. Não moraliza a gravidez e sua interrupção. Instrui a família com várias informações disponíveis. Apresenta os limites legais de nossa realidade jurídica. O Namorado de Ana é carinhoso e receptivo com a notícia, quer casar e assumir a família. Sustento não se apresenta como um problema, mesmo com a possibilidade de chegada de mais uma boca para alimentar. Por fim, o aborto acontece, mas o/a leitor/a não fica sabendo em que condições: se foi usado medicamento, como foi comprado, se havia a garantia de não ser falsificado, se o aparato hospitalar foi acionado e, mais importante, se a escolha pelo aborto sucedeu dilemas morais significativos e geradores de conflitos intrafamiliares e subjetivos.

Não entrar nesses detalhes e nessas tecnicalidades foi uma escolha proposital? Ou foi um ato falho que, como em outros trechos do livro, reproduz o “não dito” que cerca o tema do aborto? Por exemplo, uma vizinha lembra que à prima “deram um chá para fazer descer” (p. 9). Vitória, amiga de Ana, conta que outra “fez em casa mesmo” (p. 10). Mesmo entre mulheres com laços de intimidade, permanecem os verbos intransitivos, “fez”, “tirou”, “desceu” etc. Evita-se falar a palavra “aborto”?

Ainda nessa linha, por um lado, Tia Tonha, a mais velha do grupo, lembra que “Antigamente, era uma coisa natural, das mulheres” (p. 9) e “Mulheres fazem isso desde que o mundo é mundo. Era uma coisa natural, agora é que complicaram tudo” (p. 11). A tia traz um balanço interessante, era positivo que a prática do aborto ficasse nas mãos das mulheres, que sabiam escolher e administrá-lo com alguma segurança e sem alardes morais tão impactantes. Porém, por outro lado, embora o conto traga um realismo com essa estratégia, é preciso cuidar para que isso não reforce uma retórica dos eufemismos e, consequentemente, o isolamento e a vergonha que, no Brasil, facilmente se associam à interrupção de uma gravidez. É preciso cuidar para que o aborto (e também o incesto, o estupro, a violência) não seja resolvido por indivíduos desamparados em seus espaços domésticos. Manter o aborto encoberto – seja no discurso, seja no privado – é dificultar que ele alce as esferas idealmente protetivas da lei, das instituições, da tecnologia médica etc.

Outro ponto que me preocupa nesse texto e também em vários outros, inclusive de origem acadêmica, é certa naturalização da relação entre as mulheres. É como se somente elas soubessem de seus corpos e manter esse saber circunscrito reforçaria os laços entre seus membros. Mera convenção de gênero, que mitifica e positiva a relação entre mulheres, essa sororidade – perigosamente naturalizada – pode ser irrealista e incauta. As relações entre as mulheres são tão complexas como quaisquer outras. Torna-se fundamental não deixar essa complexidade de lado para conseguirmos entender, por exemplo, ex-pacientes que denunciam suas médicas; deputadas e senadoras que se recusam a debater o aborto dentro dos parlamentos; amigas e vizinhas que negam auxílio ante uma hemorragia teimosa de uma conhecida, com medo de serem presas; profissionais da saúde que demonizam e punem mulheres que chegam aos hospitais em processo de abortamento espontâneo ou provocado; mães que forçam suas filhas a abortarem, mesmo que estas não desejem etc.

Ainda sobre as relações de gênero, é interessante notar que no conto os homens não receberam nomes, apenas foram identificados por um papel circunstancial: Marido, Médico, Namorado etc. Ao que me parece, o intuito aqui é centrar a história nas mulheres. Mas será que, dessa forma, não estaríamos reforçando o papel coadjuvante e conveniente que tantos homens têm desempenhado nos momentos reprodutivos, inclusive no aborto?

Na parte técnica do livro, suspeito que, na seção “Por que muitas pessoas são a favor da legalização”, cometeu-se um mesmo equívoco de materiais anteriores (e que o próprio livro tentou sanar com a introdução da seção “Conheça o significado de algumas palavras e expressões”): persiste um tom endogâmico. Quero dizer que, se o conto é feliz no sentido de ampliar o acesso à discussão e à realidade do aborto, a parte técnica continua a utilizar termos próprios do jargão feminista e da militância pró-aborto. Se o conto abre ao diálogo, a parte técnica, a meu ver, parece falar para si mesma, reproduzindo um erro comum nas comunicações do feminismo. Seria interessante também que o livro tivesse contado com uma lista de perguntas sobre o conto para facilitar o uso didático e interpretativo da história. As duas importantíssimas normas técnicas existentes, “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes” (de 2002) e “Atenção humanizada ao abortamento inseguro” (de 2004), não foram incluídas na seção “Referências”. E, nesta última parte, teria sido útil incluir leituras futuras para quem deseja se aprofundar no tema e na luta.

As críticas tecidas não diminuem o potencial do livro para animar criativamente os debates sobre a realidade do aborto no Brasil e a urgência de sua legalização. Materiais como esse são fundamentais para tirarmos definitivamente o aborto das três esferas em que, persistentemente, nossa cultura tem o colocado: a solidão, o segredo e a aflição, como bem notou Jeovelina quando, numa passagem emocionante nos últimos momentos do conto, confidencia às amigas e à filha que praticou um aborto aos 16 anos. A versão do livro em papel está disponível gratuitamente na sede do CFEMEA e sua versão eletrônica encontra-se no sítio da organização: <www.cfemea.org.br>.

Referência bibliográfica

CENTRO FEMINISTA DE ESTUDOS E ASSESSORIA. Disponível em: <www.cfemea.org.br>. Acesso em: 10 mar. 2010.         [ Links ]

Soraya Fleischer – Universidade de Brasília

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