Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde – RAMOS (TES)

RAMOS, Marise. Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; UFRJ, 2010, 290 p. Resenha de: SAVIANI, Dermeval. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.8, n.3, Rio de Janeiro, nov. 2010.

Licenciada em Química em 1990 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Marise Ramos passou a lecionar a disciplina físico-química no ensino médio e em 1995 concluiu o mestrado com a defesa da dissertação “Do ensino técnico à educação tecnológica: (a)-historicidade das políticas públicas dos anos 90”. Em 2001, concluiu o doutorado mediante a defesa da tese “Da qualificação à competência: deslocamento conceitual na relação trabalho-educação”, da qual resultou o livro A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação?, publicado no mesmo ano de 2001. Entre 2002 e 2010, simultaneamente ao exercício da docência na Escola Politécnica da Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), desenvolveu vários projetos de pesquisa sobre o tema “trabalho, conhecimento e formação humana” como base teórica para o estudo da educação profissional em saúde. Do projeto “Educação profissional em saúde: concepções e práticas nas Escolas Técnicas do SUS” resultou o livro objeto desta resenha.

A obra trata das concepções, políticas e práticas da formação dos profissionais da saúde. Para o tratamento desse objeto a autora desenvolveu uma densa investigação baseada em fontes primárias colhidas por meio de pesquisa de campo junto aos agentes das Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (ETSUS), apoiada numa ampla e significativa gama de fontes secundárias que lhe permitiram examinar as políticas de formação dos profissionais da saúde como expressão de projetos de formação humana em suas bases filosóficas e pedagógicas.

Cumprida a trajetória da pesquisa, Marise se dedicou à ordenação dos achados tendo em vista a socialização dos resultados alcançados. No método de exposição que guiou a escrita do livro, ela começa por aclarar as políticas que orientaram as ações das Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde e, passando por um longo détour, desvela os fundamentos e contradições das concepções e práticas das Escolas Técnicas do SUS reveladas pela pesquisa empírica. Em consequência, o livro se apresenta com a seguinte estrutura:

Após uma introdução em que situa e justifica a escolha do tema, a autora aborda as políticas de formação em saúde no Brasil no período de abrangência do estudo, isto é, entre 1980 e 2000. É essa a problemática tratada no primeiro capítulo denominado “Políticas de educação profissional em saúde no Brasil (1980 a 2000)”, no qual ela aborda a gênese das Escolas Técnicas do SUS, as concepções educacionais em disputa na origem dessas escolas, o Programa de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem, considerado como um diferencial na história das Escolas Técnicas do SUS, e a educação permanente que apresenta novos desafios para as referidas escolas técnicas.

Situado o objeto, a autora dele se afasta momentaneamente em busca das mediações filosóficas dos projetos de formação humana, das concepções de educação e das correntes pedagógicas. São esses os temas tratados respectivamente nos capítulos 2, 3 e 4.

No capítulo 2, “Projetos de formação humana e mediações históricas”, Marise começa pelo trabalho como base da formação humana na medida em que constitui a síntese da essência e da existência do ser humano; prossegue analisando as categorias de trabalho e práxis; e conclui com o estudo da prática e experiência no pragmatismo e na filosofia da práxis.

No capítulo 3, “Sentidos filosóficos e políticos da educação”, são analisadas a pedagogia da essência, a pedagogia da existência e sua superação pelas perspectivas de uma educação orientada pela filosofia da práxis.

O capítulo 4, “Um panorama sobre as correntes pedagógicas”, é dedicado ao estudo das pedagogias não críticas e das pedagogias críticas.

Apetrechada com esses elementos mediadores que asseguram a consistência de sua análise teórica, Marise retorna ao seu objeto sistematizando os elementos captados nos depoimentos dos educadores das Escolas Técnicas do SUS. É esse o objeto do capítulo 5, que examina os fundamentos e contradições das concepções e práticas das Escolas Técnicas do SUS.

Completam a obra as “Conclusões”, nas quais se mostra a não confirmação das hipóteses iniciais, discutem-se as contradições presentes nas concepções dos agentes das Escolas Técnicas do SUS, resumem-se os principais resultados e se fecha a exposição com a constatação de que o referencial epistemológico e etico-político das políticas de educação profissional em saúde vem sendo hegemonizado, desde a década de 1980, pelo pragmatismo associado à micropolítica.

Se a hipótese inicial foi que a emergência da pedagogia das competências como orientação teórica se deveu a um vazio epistemológico e etico-político provocado pela tentativa da educação profissional em saúde de superar a supremacia tecnicista e conteudista no ensino, a conclusão revelada pela pesquisa não confirmou essa hipótese. O resultado a que se chegou indica que, em lugar do vazio epistemológico, aquela tentativa de superação das pedagogias tradicional e tecnicista se desenvolveu apoiada na epistemologia pragmatista na qual se funda o escolanovismo. Consequentemente, nas palavras da autora, “a pedagogia das competências se constituiu em referência para as escolas não em razão de uma lacuna teórica produzida por uma concepção epistemológica e pedagógica sincrética, mas sim pelo fato de essa pedagogia se constituir numa atualização do escolanovismo no contexto de indeterminações da sociedade contemporânea” (p. 276). Assim, em lugar da síncrese, o que se deu foi uma síntese entre o pragmatismo e a micropolítica que impediu a assunção da concepção de educação politécnica e omnilateral pelos trabalhadores das escolas técnicas da saúde.

Mas a autora encerra o trabalho observando que a hegemonia do pragmatismo associado à micropolítica é exercida em meio a contradições teóricas e práticas que, se adequadamente aprofundadas, podem abrir novas possibilidades, entre as quais destaca a perspectiva teórica por ela adotada e enunciada como “o referencial epistemológico e etico-político do materialismo histórico-dialético” que fundamenta a concepção de educação politécnica e omnilateral da formação humana.

Para tratar do tema específico da pesquisa voltado para a compreensão da formação dos trabalhadores técnicos da saúde, a autora ampliou consideravelmente a abrangência do estudo ao fundamentar sua análise em considerações filosóficas sobre o trabalho como princípio educativo, sobre o significado filosófico e político da educação e sobre as correntes pedagógicas.

Destaque-se que Marise Ramos moveu-se de forma segura, guiada pelo método do materialismo histórico explicitamente assumido, corretamente compreendido e aplicado de forma coerente e competente.

Desenvolvendo um trabalho original pelo tema tratado, pelas fontes utilizadas, pela perspectiva teórico-metodológica e pelo método adotado no trato das fontes, na construção da pesquisa empírica e na análise dos resultados, a autora traz contribuições importantes para fazer avançar o debate sobre as relações entre educação e trabalho de modo geral e, especificamente, sobre a educação profissional.

Considerando o recorte temático, o livro interessa de modo imediato e direto aos profissionais da saúde, com destaque para os professores e alunos das escolas técnicas de saúde, além dos pesquisadores, professores e estudantes de pós-graduação da área de Educação e Trabalho. No entanto, como situa a questão específica no quadro mais amplo da fundamentação filosófica, política e pedagógica referente à relação entre educação e trabalho e às correntes pedagógicas, esta publicação interessa a todos os que trabalham no campo da educação profissional, da política educacional, da história e filosofia da educação e das teorias pedagógicas.

Em suma, pela atualidade, originalidade e relevância do tema tratado, assim como pela clareza e consistência da fundamentação teórica, o livro Trabalho, educação e correntes pedagógicas no Brasil: um estudo a partir da formação dos trabalhadores técnicos da saúde, de Marise Ramos, traz uma contribuição importante para um melhor entendimento do momentoso problema da educação profissional e se constitui num material de grande utilidade para as atividades de gestores, professores e estudantes das escolas técnicas, dos cursos de pedagogia e demais cursos de formação de professores.

Dermeval Saviani – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]

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