A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário – LINEBAUGH; REDIKER (Tempo)

LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Tradução de Berilo Vargas. Resenha de: ALADRÉN, Gabriel. História atlântica vista de baixo: marinheiros, escravos e plebeus na formação do mundo moderno. Tempo v.16 no.30 Niterói  2011.

“Deus não é respeitador de Pessoas”: evocando essa passagem bíblica, os Diggers3 lutavam contra o cercamento dos campos na Inglaterra. A frase tinha uma conotação universalista que remontava às origens do cristianismo e advertia que Deus não diferenciava a humanidade por critérios de raça, etnicidade, classe, gênero ou nação. A terra seria uma criação divina e seu uso comunitário deveria ser livre para todos, de forma igualitária, “sem respeitar pessoas”. Versões semelhantes apareciam nas palavras de homens e mulheres que integravam grupos religiosos dissidentes durante a Revolução Inglesa.

Suas ações fizeram parte da resistência do proletariado atlântico ao processo de formação do capitalismo global nos séculos XVII e XVIII. Essa “história oculta do Atlântico revolucionário” é o tema do livro de Peter Linebaugh e Marcus Rediker, A hidra de muitas cabeças, publicado originalmente no ano 2000 e trazido ao público brasileiro em uma bela edição da Companhia das Letras.

Trata-se de um livro inovador, narrado com maestria e paixão e lastreado em uma sólida pesquisa documental. Sua metodologia e estrutura de apresentação são originais. Os autores percorrem casos de motins, revoltas, conspirações e situações que expressam a oposição das classes populares ao nascente capitalismo inglês, construindo uma história do Atlântico vista de baixo.

Para simbolizar esse confronto, Linebaugh e Rediker recorrem ao mito clássico de Hércules. Políticos, filósofos e proprietários o usaram como um emblema do poder e da ordem, no qual seus doze trabalhos representavam o desenvolvimento econômico. O segundo trabalho de Hércules foi a destruição da hidra de Lerna, um monstro de várias cabeças, as quais renasciam constantemente quando decepadas.

Da expansão colonial inglesa aos primórdios da industrialização no século XIX, “os governantes usaram o mito de Hércules e da hidra para descrever a dificuldade de impor a ordem em sistemas de trabalho cada vez mais globais, apontando aleatoriamente plebeus esbulhados, delinquentes deportados, serviçais contratados, extremistas religiosos, piratas, operários urbanos, soldados, marinheiros e escravos africanos como as cabeças numerosas e sempre cambiáveis do monstro” (p. 12).

Ao adotar um ângulo de visão inusitado e ao utilizar com criatividade fontes de natureza variada, os autores demonstram a existência de conexões raramente observadas entre histórias a princípio tão diversas como a dos grupos radicais na Revolução Inglesa, dos náufragos nas primeiras expedições colonizadoras da Virgínia, dos maroons jamaicanos, dos escravos rebeldes e dos servos irlandeses no Caribe, dos piratas e marinheiros, dos conspiradores das cidades portuárias do Atlântico e dos operários ingleses. O impacto do livro na historiografia é significativo e será duradouro, em especial para os estudos sobre a Idade Moderna e para a história do trabalho, pois ele descortina uma perspectiva toda nova para a análise da expansão capitalista e das origens da classe operária.

Um de seus maiores méritos é o de realizar uma genuína história atlântica, na qual os diferentes fatores que condicionam a formação do capitalismo são integrados em uma análise densa e apresentados com uma narrativa primorosa. Em cada um dos casos discutidos ficam claras as forças transnacionais e a circulação de experiências que influenciaram as ações e os anseios revolucionários do proletariado atlântico.

Sublinhar isto não é de menos importância, pois atualmente há uma certa avidez entre os historiadores por vincular seus trabalhos ao rótulo da história atlântica, sem que necessariamente empreguem metodologias e formulem problemas de pesquisa que efetivamente transcendam os quadros nacionais ou, na melhor das hipóteses, imperiais. Tal movimento é salutar na medida em que exige o redimensionamento dos esquemas conceituais de fenômenos históricos usualmente explicados a partir de cadeias de causalidade circunscritas, mas muitas vezes serve apenas para apresentar temas e abordagens tradicionais – e nem por isso menos meritórias – em novas roupagens.4

Isso posto, é necessário fazer uma ressalva ao caráter atlântico do livro, especialmente para os pesquisadores da América do Sul e particularmente do Brasil. Na verdade, se trata de uma história do Atlântico Norte de língua inglesa o que, aliás, é reconhecido pelos próprios autores.

No Atlântico Norte operava o chamado comércio triangular, que conectava os portos ingleses, africanos e americanos e seguia as correntes marítimas que partiam da Europa, passavam pela costa da África e atingiam o Caribe, retornando depois ao noroeste europeu. Tal sistema não gerava simplesmente uma articulação mercantil transoceânica, mas também possibilitava o contato de pessoas de diferentes sociedades que compartilhavam ideias e experiências e criavam novas formas de comunicação e cooperação. Essa circulação levava as ondas revolucionárias e as tradições proletárias, sempre recriadas em cada contexto por novos sujeitos, a todas as margens do Atlântico Norte, acompanhando o fluxo das marés e das transações comerciais.

No Atlântico Sul, funcionava um sistema diferente.5 Desde o século XVII, o tráfico negreiro assentava-se na base de um comércio bilateral, que unia a América portuguesa diretamente à África – em especial o Rio de Janeiro a Luanda e Salvador à Costa da Mina. Essa ligação foi duradoura, passou praticamente incólume pela independência do Brasil e só foi ser rompida com o término do tráfico atlântico em 1850.6 A veiculação de ideias e tradições de resistência no Atlântico Sul passava mais por essa comunicação direta entre Brasil e África do que por rotas triangulares que eram típicas do sistema mercantil do Atlântico Norte.7

Outro  ponto  importante  é  a  discussão  sobre  o  proletariado  atlântico, um conceito chave do livro. Linebaugh e  Rediker  partem  de  Marx  para  ir além, encontrando conexões e vínculos insuspeitados e até uma espécie de consciência   coletiva   contra-hegemônica  –  no  que  às  vezes  incorrem  em certo impressionismo – entre os trabalhadores das diferentes partes do império britânico. O proletariado atlântico era constituído de camponeses ingleses expropriados,   ameríndios   inseridos em regimes de trabalho compulsório, africanos escravizados, marinheiros de diversas  nações  e  indentured servants irlandeses.  Homens  e  mulheres  que não eram, necessariamente, indivíduos livres vendendo sua força de trabalho em troca de salário, conforme a acepção mais restrita de Marx.

A ousadia de incluir trabalhadores tão distintos – sob critérios étnicos, raciais, nacionais, culturais e jurídicos – em um mesmo conceito é uma das forças do livro. Permite que se faça uma leitura ampla da história do mundo atlântico e se identifiquem relações geralmente encobertas entre as diversas formas de exploração do trabalho que foram cruciais para a gênese da modernidade.

Nesse sentido, o livro navega na tradição teórica que enfatiza as relações entre modernidade, capitalismo e escravidão.8 Um de seus mais notáveis representantes é C.L.R. James, que há muito divisou a proximidade das condições dos escravos das plantations com o proletariado moderno.9 No entanto, essa identificação era pensada por James em uma chave de leitura mais convencional, na medida em que ele considerava que os escravos antecipavam as experiências coletivas dos proletários – e aqui pensava em trabalhadores fabris –, mas não se confundiam com eles.10

Na conclusão, Linebaugh e Rediker apresentam uma síntese da constituição histórica do proletariado no Atlântico Norte. Na primeira fase, de 1600 a 1640, o capitalismo surgiu na Inglaterra e se expandiu via comércio e colonização, deixando para trás uma massa de plebeus expropriados transformados em proletários na África, na Irlanda, na Inglaterra, no Caribe e na América do Norte. Na segunda fase, de 1640 a 1680, o espectro da resistência se ergueu, inicialmente com a revolução na metrópole e posteriormente com as revoltas de escravos africanos e indentured servants em Barbados e na Virgínia. Suas derrotas abriram caminho para a estruturação do tráfico negreiro britânico na África Ocidental e para a montagem das plantations nas colônias.

A terceira fase, de 1680 a 1760, foi marcada pela consolidação do capitalismo atlântico, baseado na organização de um Estado marítimo inglês que garantia política e militarmente os capitais que operavam no lucrativo comércio colonial. Nesse cenário, o controle da mão-de-obra dos navios mercantes e da marinha de guerra tornou-se fator decisivo, e o uso da violência e do terror passou a ser fundamental no recrutamento de marinheiros e na repressão aos motins nos portos e em alto mar.

Em oposição à rígida hierarquia do Estado marítimo, os piratas construíram uma ordem alternativa e democrática que ameaçou a estabilidade do comércio britânico no Caribe e na costa africana. As várias gerações de piratas e marinheiros rebeldes foram reprimidas até serem silenciadas na década de 1720.

As lutas do proletariado atlântico passaram a se manifestar no ciclo de rebeliões escravas caribenhas nas décadas de 1730 e 1740 e culminaram com uma conspiração na zona portuária de Nova York em 1741, da qual participaram soldados, marujos e escravos irlandeses, hispano-americanos e africanos, que foram chamados pelas autoridades de “os párias das nações da Terra”.

A quarta e última fase ocorreu entre 1760 e 1835. Na Jamaica, a Revolta de Tacky envolveu quilombolas e escravos e assustou os proprietários das plantations. Na América do Norte, a horda heterogênea de marinheiros, escravos e negros livres lutou para marcar a Revolução Americana com um caráter abolicionista, mas foi contida pelos pais da pátria que arquitetaram uma república escravista. Na década de 1790, uma segunda onda de revoltas estourou na América e na Europa e contribuiu para difundir os direitos do homem e, a longo prazo, para abolir o tráfico e a escravidão.

A “era das revoluções” foi o canto do cisne do proletariado atlântico. A industrialização metropolitana, a construção dos estados nacionais e a repressão à revolução no Haiti concorreram para quebrar seus vínculos e bases materiais. A formulação da ideia biológica de raça e da categoria política e econômica de classe em fins do século XVIII expressa a divisão, que se aprofundaria nas décadas subsequentes, entre os operários brancos ingleses e os escravos negros nas Américas.

A historiografia sobre a classe operária costuma iniciar daí, sem observar que em suas origens, as aspirações dos operários ingleses estavam profundamente carregadas de uma dimensão atlântica. Linebaugh e Rediker formulam uma crítica às narrativas dominantes sobre o tema, sobretudo à influente obra de E.P. Thompson11, por apenas identificarem as tradições estritamente nacionais que conformaram a classe operária na Inglaterra. Essa crítica é ilustrada pela análise da conspiração de Edward e Catherine Despard e da Sociedade Correspondente de Londres, fundada por Thomas Hardy.

Edward Marcus Despard era irlandês, coronel do exército britânico e servira na Jamaica, na Nicarágua e em Belize, antes de retornar a Inglaterra e ser executado em 1803, sob acusação de ter planejado um atentado contra o rei. Catherine, sua esposa, era uma afro-americana que o conhecera no Caribe. Juntos chegaram a Londres no ano de 1790, e naquela década turbulenta, participaram do movimento abolicionista que então entusiasmava os trabalhadores ingleses. Linebaugh e Rediker argumentam que os Despards compartilhavam, junto com pessoas como o poeta William Blake, Thomas e Lydia Hardy, o escritor C.F. Volney e os ex-escravos abolicionistas Olaudah Equiano e Ottobah Cugoano, uma concepção de liberdade e igualdade universais, expressa na ideia de “raça humana”, em oposição aos critérios de raça e nação que estavam se impondo.

Thomas e Lydia Hardy e Olaudah Equiano eram amigos e viveram juntos entre 1790 e 1792. Quando Thomas fundou a Sociedade Correspondente de Londres, evento considerado por Thompson como um marco na formação da classe operária inglesa, pediu auxílio a Equiano para estabelecer contatos em Sheffield. No início, a Sociedade tinha entre seus objetivos o combate à escravidão e a luta pela igualdade de todos “fossem negros ou brancos, superiores ou inferiores, ricos ou pobres” (p. 288). No entanto, logo passou a se dirigir a um público mais restrito, britânico e branco, deixando para trás a questão da igualdade racial. Essa mudança foi fruto da reação inglesa à revolução de São Domingos, que empregou o racismo para combater o exército negro de Toussaint L’Ouverture. Nesse contexto, Hardy preferiu evitar discutir o tema, que se tornou delicado, e circunscreveu o escopo da Sociedade aos limites nacionais.

O argumento de Linebaugh e Rediker é de que a década de 1790 foi um divisor de águas para a história do proletariado atlântico. Ao mesmo tempo em que chegou ao seu auge, a circulação de ideias revolucionárias foi duramente reprimida e a solidariedade entre os trabalhadores da Inglaterra e das Américas foi quebrada com a gênese das concepções modernas de raça, classe e nação: “O que ficou para trás era nacional e parcial: a classe operária inglesa, os negros haitianos, a diáspora irlandesa” (p. 300). É como se o bumerangue revolucionário, para retomar expressão utilizada por Linebaugh,12depois de ter ido tão longe, tivesse caído bruscamente, abatido pela forte rajada de vento que reprimiu as aspirações do proletariado atlântico.

A análise e a periodização proposta pelos autores são apropriadas para a história do Atlântico Norte e do capitalismo inglês. Na América Latina, a construção dos estados nacionais e a afirmação das concepções modernas de raça e classe seguiram ritmos bem distintos. Talvez justamente por isso, as contribuições do livro são potencialmente interessantes para a historiografia latino-americana. Novas pesquisas poderão dizer se a hidra, decepada no hercúleo processo de globalização capitalista no Atlântico Norte, no Sul ainda levantaria suas subversivas e heterogêneas cabeças ao longo do século XIX.

3 Os Diggers, Levellers e Ranters eram grupos populares radicais que atuaram na Revolução Inglesa defendendo ideais igualitários. Ver Christopher Hill, O mundo de ponta-cabeça. Ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.         [ Links ] 4 Uma excelente análise de exemplos positivos da “virada atlântica” na historiografia do Brasil colonial pode ser encontrada em Stuart B. Schwartz, “A historiografia dos primeiros tempos do Brasil moderno: tendências e desafios das duas últimas décadas”, História: Questões & Debates, n. 50, Curitiba, 2009, pp. 175-216.         [ Links ] 5 Mesmo no Atlântico Norte, o comércio triangular era complexo e envolvia rotas mercantis que escapam a um modelo simplificado. Ver Herbert S. Klein, The Atlantic Slave Trade, Nova York, Cambridge University Press, 1999.         [ Links ] 6 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.         [ Links ] 7 João José Reis, por exemplo, discute as dimensões africanas da Rebelião dos Malês. Ver João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.         [ Links ] 8 Sobre o tema ver Robin Blackburn, A construção do escravismo no Novo Mundo: do barroco ao moderno, 1492-1800 , Rio de Janeiro, Record, 2003.         [ Links ] No campo dos estudos culturais ver Paul Gilroy, O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro, Editora 34/UCAM, 2001.         [ Links ] 9 C.L.R. James, Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos, São Paulo, Boitempo, 2007.         [ Links ] A publicação original é de 1938.
10 Convém lembrar o importante trabalho de Sidney Mintz, que escreveu sobre a necessidade de integrar analiticamente o estudo dos escravos e dos proletários, sem distingui-los radicalmente do ponto de vista conceitual. Ver Sidney W. Mintz, “Was the plantation slave a proletarian?”, Review, vol.2, nº1, 1978, pp. 81-98.         [ Links ] 11 E. P. Thompson, A formação da classe operária inglesa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.         [ Links ] 12 Peter Linebaugh, “All the Atlantic mountains shook”, Labour/Le Travailleur, n. 10, 1982, pp. 87-121.         [ Links ] Linebaugh usa o termo bumerangue para simbolizar a circulação de experiências históricas de luta contra a exploração capitalista no Atlântico que levava tradições revolucionárias da Europa para as Américas e para a Àfrica e vice-versa.

Gabriel Aladrén – Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense.

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