Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico – SGUISSARDI; SILVA JUNIOR (ES)

SGUISSARDI, Valdemar; SILVA JUNIOR, João dos Reis. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico. São Paulo: Xamã, 2009. 271p. Resenha de: Educação & Sociedade, Campinas, v.32 no.115 abr./jun. 2011.

A publicação do livro Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico, pela editora Xamã, não poderia ter sido mais oportuna. A precarização do trabalho docente e de pesquisa, especialmente nas instituições federais de ensino superior (IFES), chegou às raias do insuportável, com consequências avassaladoras não só para o professor, mas para o próprio desenvolvimento científico brasileiro. Em poucas palavras, além de prejudicar a condição do professor-pesquisador, também falhou no crescimento e eficácia científico-tecnológica. Aliás, é necessário registrar que a editora tem mantido importante portfólio de publicações que contribuem decisivamente para a discussão desse tema fundamental da educação no Brasil.

Os autores, João dos Reis Silva Júnior e Valdemar Sguissardi, possuem vasto conhecimento sobre o assunto, não só por publicações anteriores,1 mas fundamentalmente pela atuação como educadores. Silva Júnior é professor e pesquisador do Departamento de Educação e da Pós-Graduação, na mesma área, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com pós-doutorado em Sociologia Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Sguissardi também foi professor da UFSCAR, tendo-se aposentado como professor titular. Seus mestrado e doutorado em Ciências da Educação foram realizados na Universidade de Paris X (Nanterre).

Na pesquisa que empreenderam, os autores centraram o foco no setor de pós-graduação das instituições federais do Sudeste, polo mais concentrado de universidades e local onde a intensidade da precarização do trabalho docente e de pesquisa é mais evidente, embora saibamos que esse mal afeta – miseravelmente – todo o país.

A principal característica do estudo, e que merece ser ressaltada em primeiro lugar, é a tese dos autores de que “o movimento reformista na esfera educacional é parte das mudanças da racionalidade capitalista propiciadas pela mundialização do capital” (p. 255). Ou seja, o movimento reformista em geral não é estudado de modo isolado, como se não fizesse parte de um todo social que tem um sentido e um significado concretos. Sem desconsiderar as especificidades de cada país, a reforma é analisada como um movimento mundial, que mantém traços de identidade em todos eles, a partir da racionalidade da transição para essa mundialização do capital. Sem esquecer jamais que este processo se dá sob a influência do poder dos Estados Unidos.

Em relação à reforma educacional no Brasil, duas hipóteses principais orientaram o estudo dos autores: por um lado, as mudanças no processo acadêmico-científico e a intensificação do trabalho do professor-pesquisador; por outro, a centralidade da pós-graduação como polo gerador da efetiva reforma universitária das IFES, que resulta no produtivismo acadêmico, instrumental e ideológico. Portanto, a reforma promoveu mudanças na identidade da instituição universitária e de seus professores. Essas mudanças forjaram a emergência de uma “nova” universidade e as consequências disso para os professores estenderam-se para outros tempos de sua vida, invadindo a esfera pessoal e familiar. Essa extrapolação foi um de seus principais prejuízos.

Para a demonstração dessas hipóteses, Sguissardi e Silva Júnior desenvolveram suas reflexões com base na historicidade do tema e do foco teórico e empírico de vários autores do século XIX até os dias atuais. O resultado desse caminho de pesquisa demonstrou que o núcleo da ideologia do produtivismo acadêmico, como política de Estado e de cultura institucional, tem, no mínimo, duas graves implicações: no âmbito filosófico, o pragmatismo; no âmbito econômico, a mercadorização da ciência e da inovação tecnológica. Consequência: a pós-graduação – nestes moldes – tornou-se o polo gerador de uma reforma da instituição universitária que tende a colocá-la a reboque do mercado.

Os autores denunciam que este processo é sutil, mas extremamente eficaz, pois, ao usar a pós-graduação como núcleo gerador das mudanças na prática universitária, provoca um efeito multiplicador até a base da pirâmide educacional. Dito de outro modo, as reformas educacionais nos demais níveis e modalidades – da reforma do Estado à reforma da municipalização escolar – são orientadas por documentos produzidos pelos mesmos mentores que orientam a reforma no ensino superior. Portanto, os documentos que pautam a reforma, da educação infantil à pós-graduação e à indução da pesquisa pelo CNPq e sua regulação pela CAPES, são quase todos produzidos pelos mesmos especialistas e pesquisadores. Não é, enfim, um processo aleatório. Ao contrário, é um movimento geral muito bem articulado e amarrado.

Essa radical mudança da identidade da universidade promove continuamente um acréscimo do trabalho imaterial produtivo (pesquisa aplicada) do professor.

É este trabalho que garante boas notas aos programas de pós-graduação, segundo os critérios estabelecidos pelo CNPq. A perversidade do mecanismo é, grosso modo, o seguinte: o professor-pesquisador, por sua “própria vontade”, a fim de atingir as metas estabelecidas, aumenta em muitas horas seu trabalho semanal. E a universidade, que “deveria ser o lugar privilegiado da desalienação” (p. 264), promove justamente o oposto: por indução das políticas governamentais, “predomina o pragmatismo e, com ele, a utilidade alienante a que se submete grande parte dos professores” (idem).

O prefaciador do livro, Francisco de Oliveira, ressalta estes aspectos centrais da obra com sua habitual erudição, oferecendo ao leitor não só uma síntese privilegiada da pesquisa dos autores, como um quadro histórico do surgimento de universidades multisseculares tais como Bolonha, Sorbonne e Oxford, localizando o surgimento tardio das universidades brasileiras: “O Brasil é um país ‘tardio’: capitalismo tardio, independência tardia, abolição tardia, industrialização tardia e… universidade tardia” (p. 12). Com base nos dados fornecidos por Silva Júnior e Sguissardi, Oliveira aproveita a oportunidade para demonstrar que, no Brasil, enquanto se elevam os coeficientes de produção intelectual por docente, rebaixam-se os recursos para a universidade, numa contradição “bem brasileira” (p. 13).

É importante registrar que esses dados fornecidos pelos autores trazem um panorama das universidades hoje, com o propósito de dar ao leitor a compreensão da função estratégica das IFES. Isso é um aspecto fundamental do livro, pois apresenta uma parte bastante árida – porém, absolutamente necessária – da minuciosa pesquisa empreendida por eles, apresentando os números da precarização do trabalho docente nas IFES do Sudeste. A riqueza dos quadros estatísticos merece ser avaliada com tempo e dedicação, pois podem servir de base a uma ampliação ainda maior das reflexões suscitadas pelo livro. E isso apenas nos dois primeiros capítulos. Nos capítulos como um todo, são pelo menos cinco as questões mais importantes trabalhadas, e respondidas, pela pesquisa dos autores: a forma como as instituições concretizam as diretrizes e metas oficiais, como sujeito coletivo, por meio da prática universitária; os traços mais significativos do processo da identidade institucional pós-reforma; o trabalho e a identidade do professor universitário transformado em função da reforma; a reação do professor à racionalidade utilitária e pragmática da reforma no âmbito cotidiano; e as consequências da precarização do trabalho do professor-pesquisador para sua vida pessoal.

Para finalizar, os autores fazem uma instigante referência à cegueira, citando o polêmico romance de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira. Sguissardi e Silva Júnior quiseram caracterizar em seu livro a “cegueira branca” de parte significativa dos professores-pesquisadores na “crua realidade da nova universidade em construção dos tempos FHC-Lula”, que se preocupam em enriquecer seu currículo Lattes e cumprir à exaustão os deveres de ofício. O livro, fruto de árduo trabalho de investigação, contribui para a percepção de que esse professor também “se fatiga, adoece e ‘morre’ um pouco a cada minuto de suas práticas universitárias” (p. 254). Tomara que seja possível – pois é urgente – desvelar a mente, ler, refletir e tomar consciência da gravidade das questões denunciadas pelos autores.

Nota

1. Publicaram conjuntamente o livro Novas faces da educação superior no Brasil –reforma do Estado e mudança na produção (São Paulo: Cortez; EDUSF, 2001). Silva Júnior publicou também Pragmatismo e populismo na educação superior no Brasil de FHC e Lula(São Paulo: Xamã, 2005) e Reformas do Estado e da educação no Brasil de FHC (São Paulo: Xamã, 2003). Sguissardi também publicou Universidade, fundação e autoritarismo: o caso da UFSCAR (São Carlos: EDUFSCAR; Estação Liberdade, 1993) e organizou duas coletâneas: Avaliação universitária em questão – reformas do Estado e da educação superior (São Paulo: Autores Associados, 1997) e Educação superior: velhos e novos desafios (São Paulo: Xamã, 2000).

Paulo Douglas Barsotti – Doutor em História Econômica e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). E-mail: [email protected]

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