Hobbes e a liberdade republicana – SKINNER (C)

SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana. Trad. de Modesto Florenzano. São Paulo: Edunesp, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, Set/dez, 2011.

A história intelectual tem buscado forjar padrões de análise que a convertam num campo de estudo estabelecido e fixado como outros já consagrados, a exemplo da história política, da econômica, da social e da cultural. Por suas íntimas aproximações com a história filosófica e com a história das ideias, definir seguramente suas fronteiras teórico-metodológicas e seu alcance interpretativo do objeto, assim como seu corpus documental, torna-se, além de um problema tenso e contraditório, um desafio para o estudioso da temática. Se mesmo entre os lugares principais de produção, a história intelectual é ao mesmo tempo ambígua, sem necessariamente construir procedimentos de pesquisa comuns, como se observa nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Alemanha e na Itália, como então se deveria proceder ao seu estudo e à sua apropriação? A obra de Skinner está entre aquelas que, desde os anos 60 (séc.XX), tem se debruçado com afinco sobre a questão. Agrupando-se ao que ficou definido como contextualismo linguístico inglês, ele se esforçou para a criação de procedimentos adequados para que a história intelectual fosse, entre outras coisas, um instrumento apropriado para o estudo do pensamento e da ação política no tempo. Estudioso da história moderna, preocupou-se com a investigação do pensamento renascentista, reformista, contrarreformista, liberal e conservador, e com a maneira como estabeleceriam relações com seu contexto. Para ele, somente ao se agrupar o contexto de produção das obras é que se torna possível visualizar os jogos linguísticos usados pelos letrados e políticos do período e reconstituir como agem e se movimentam no campo de produção das obras e da ação política, estabelecer os nexos de ação do grupo e do indivíduo, analisar os discursos e as estratégias de ação, além de permitir definir quais são as intenções dos agentes sociais em sua escrita, por já formar nela uma ação política, com desdobramentos sociais profundos, ao ser apropriada pela sociedade.

Evidentemente, a proposta analítica do autor é consistente e articulada, o que não quer dizer que seja isenta de fragilidades. O ponto, talvez, mais criticado em sua proposta é justamente a de agrupar e definir as intenções dos agentes sociais, por meio do estudo de seus escritos.

Por certo, em várias ocasiões, Skinner (2005) procurou rebater as críticas e demonstrar as vantagens (e desvantagens) de suas propostas. Se o acompanharmos desde Razão e retórica na filosofia de Hobbes (1999) até Hobbes e a teoria clássica do riso (2002), veremos uma parte dessa dinâmica, entre os avanços e as continuidades metodológicos, teóricos e interpretativos apresentados.

Com a publicação de Hobbes e a liberdade republicana, oferece-se mais uma boa oportunidade para se revisitar a proposta do autor e analisar seus procedimentos. Sua principal intenção com essa obra foi “contrastar duas teorias rivais sobre a natureza da liberdade humana” (p. 9), que estariam em tensão na Inglaterra do período, mas também estariam intimamente relacionadas ao movimento interno das obras de Hobbes.

De Os elementos da lei natural e política, sua obra mais antiga que circula desde 1640, a Do cidadão, que reformula parte dos argumentos desse texto inicial e data de 1642, até Leviatã, cuja edição inglesa data de 1651, e a latina revisada, de 1668, para Skinner, as metamorfoses em seus argumentos seriam evidentes e facilmente circunstanciadas, por meio da comparação e do estudo sistemático das obras. Por esse motivo, a “análise de Hobbes da liberdade no Leviatã representa não uma revisão, mas um repúdio ao que ele havia anteriormente argumentado, e que esse desenvolvimento reflete uma mudança substancial no caráter de seu pensamento moral”. (p. 14). Nesse sentido, “eu abordo a teoria política de Hobbes não simplesmente como um sistema geral de ideias, mas também como uma intervenção polêmica nos conflitos ideológicos de seu tempo” e para “entender e interpretar seus textos, sugiro que precisamos reconhecer a força da máxima segundo a qual as palavras também são atos” (p. 15) – como já havia indicado Wittgenstein, em quem o autor se apoia.

Para ele, embora estudos mais recentes tenham apontado às mudanças argumentativas de Hobbes, no que tange à liberdade, de uma obra para outra, esses não se questionaram por que houve essa transformação. Vale notar ainda que, para Skinner, Hobbes foi o “mais formidável inimigo da teoria republicana da liberdade e seus esforços para desacreditá-la constituem um momento que faz época na história do pensamento político de língua inglesa”. (p. 13).

Para demonstrar seus argumentos, o autor explora, além das obras acima indicadas, as correspondências trocadas no período e o “catálogo da biblioteca Hardwick”, da qual Hobbes foi um constante leitor e pesquisador de seus textos. Ao refazer parte das leituras que Hobbes teria feito, ele acredita ser possível reconstituir alguns dos momentos de produção dos textos e as reviravoltas em seus argumentos. Destarte ser esse um ponto alto no texto, também essa tentativa tem lá suas fragilidades, porque, como o próprio autor observará, não há como reconstituir todos os momentos de produção do texto, tampouco suas mudanças de roteiro, interpretação e análise, efetuadas ao longo da vida.

Por outro lado, não há como sugerir adequadamente todas as suas intenções, porque os atos a serem visados são vários, e o que predispõe à mudança analítica pode muito bem ser aquele menos provável. Nisso também o texto de Skinner é rico em hipóteses.

Daí ser tão complexo o itinerário escolhido, tanto ao passar em revista as obras: Os elementos da lei natural e política, Do cidadão e Leviatã quanto ao sugerir comparar o contexto linguístico e sociocultural da Inglaterra (e indiretamente também da Europa), de 1630 a 1660, com as possíveis formas de apropriação escolhidas por Hobbes para a elaboração de seus textos.

Leitor voraz e tradutor dos clássicos gregos e romanos, Hobbes não apenas conhecia os debates de sua época, como também sabia de que maneira estavam sendo usados os autores antigos. De acordo com Skinner, apesar de “seu alto prestígio, a História de Tucídides desempenhou provavelmente um papel marginal na difusão das ideias gregas sobre os Estados livres na Inglaterra do início do século XVII”, mas importância “muito maior teve a Política de Aristóteles, especialmente depois de sua primeira tradução completa para o inglês, em 1598”. (p. 76-77). Daí, para o autor, a importância dos debates sobre escravidão e servidão no período, cujo fim não passaria de um ressentimento aristocrático. E foi justamente na década de 40 (1600), que aumentaram as tentativas de insurreição, que Hobbes “tomou subitamente consciência do fato de que suas próprias ideias sobre a soberania absoluta poderiam colocá-lo em perigo grave” (p. 93), em função dessas circunstâncias revolucionárias.

Se ele teve a oportunidade de ler, ao menos em parte os panfletos que circulavam no período, apenas isso não seria o suficiente para responder à sua “súbita tomada de consciência”. Mas “refletindo sobre o que poderia lhe acontecer se tais opiniões [contidas nos Elementos] se tornassem públicas, deixou-se tomar pelo pânico” (p. 94), e esse deve ter sido um dos motivos das reformulações que faria no texto, convertendo-o em partes dos capítulos d’O cidadão, quando esse seria publicado em meados de 1642. Não por acaso, Hobbes começa indicando que o que esteve ausente em sua discussão, e o que a seguir propõe fornecer, é uma abrangente definição do conceito geral de liberdade. Como sua análise subseqüente deixa imediatamente claro, o que ele procura é uma definição suscetível de englobar não apenas a liberdade dos que deliberam, com base na liberdade característica do estado de natureza, mas ao mesmo tempo a liberdade dos corpos naturais tais como (para citar seu próprio exemplo) os volumes de água e sua capacidade de se mover sem impedimento.

[…] Portanto, […] o conceito de liberdade humana precisa ser tratado essencialmente como uma subespécie da ideia mais geral do movimento não entravado. (p. 110-111).

Porque, entre outras coisas, a liberdade era entendida como a ausência de impedimento ao movimento. Daí ele se volta “para o mundo da liberdade humana, continuando a tratar as ações humanas essencialmente como movimentos físicos que podemos executar à vontade ou sermos impedidos de fazê-lo por obstáculos externos”. (p. 112). O que o teria feito reformular seus argumentos dos Elementos para Do cidadão, nesse caso, esteve relacionado tanto com o contexto tenso e revolucionário da Inglaterra no período quanto suas novas leituras e informações, bem como seu medo sobre o desenrolar daqueles acontecimentos, que o poderiam colocar em risco. Por essas evidências, ficam parcialmente indicadas as razões de ele tomar partido com um estilo mais conciliador do que inflamado, ao tratar da defesa da soberania absoluta. Mas uma ausência entre esses textos foi a de estabelecer uma “perspectiva clara sobre a relação entre possuir liberdade de agir e possuir o poder de executar a ação em causa”. (p. 129). Por isso, quando, em Do cidadão, definira o conceito de liberdade, havia argumentado que a liberdade humana pode ser tirada quer por impedimentos absolutos que nos impossibilitavam exercitar nosso poder à vontade, quer, também, por impedimentos arbitrários que inibem a própria vontade. Mas no Leviatã o conceito de um impedimento arbitrário é silenciosamente abandonado. Os únicos impedimentos que tiram a liberdade, é-nos dito agora, são os que têm o efeito de deixar um corpo fisicamente impotente. (p. 126-27).

Assim, “enquanto os impedimentos intrínsecos tiram o poder, somente os impedimentos externos tiram a liberdade”. (p. 130). Mas, ao fazer esse movimento, Hobbes teria deixado alguns pontos desamarrados, entre os quais, o “equívoco aparente […] sobre a questão de saber se é preciso distinguir entre agir sob compulsão e agir voluntariamente”. (p. 131). Além disso, para impor suas posições, Hobbes foi obrigado a elaborar sua interpretação, com a “consciência de que precisava enfrentar os teóricos da liberdade republicana em seu próprio território” (p. 143), tendo em vista que o que esses autores não conseguem é fornecer uma explicação sobre o que há de precisamente errado na afirmação republicana do simples fato de a dependência tirar a liberdade do homem livre. Quem consegue fornecê-la é Hobbes, no Leviatã, tornando-a um marco na evolução das teorias modernas da liberdade. Antes dele, ninguém havia oferecido uma definição explícita sobre o que significa ser homem livre em competição direta com a definição avançada pelos pensadores da liberdade republicana e suas referências clássicas. Mas Hobbes estabelece tão claramente quanto possível que ser um homem livre nada tem a ver com o ter que viver […] ou o ter que viver independentemente da vontade de outrem; isso significa simplesmente não estar incapacitado por impedimentos externos a agir segundo vontade e poderes próprios. Ele é, portanto, o primeiro a responder aos teóricos republicanos oferecendo uma definição alternativa na qual a presença da liberdade é inteiramente construída como ausência de impedimento e não como ausência de dependência. (p. 149).

Desse modo, ser “livre é simplesmente estar desimpedido para mover-se de acordo com os próprios poderes naturais, de tal sorte que agentes humanos carecem de liberdade de ação se, e somente se, algum impedimento externo tornar impossível a eles executar uma ação que, não fosse isso, estaria em seus poderes”. (p. 193).

Constituindo-se numa análise pormenorizada dos desdobramentos do conceito de liberdade operado na obra de Hobbes, entre 1640 e 1650, dos Elementos para o Do cidadão e desses até Leviatã, este livro também nos oferece uma bela e interessante aplicação do método proposto por Skinner, desde os anos 60 (séc. XX). Para reformular seus pressupostos, além de conhecer profundamente os clássicos do pensamento político grego e romano e seus contemporâneos, esse o faria em contraposição às pressões políticas de sua época e aos debates dos republicanos. Ao dar subsídios para a compreensão das metamorfoses que se operaram sobre o conceito de liberdade em Hobbes, Skinner também supõe dar maior consistência aos seus pressupostos teóricos e metodológicos, amplamente enraizados numa interpretação linguística e contextualista das obras e dos autores, para as quais os atos e as intenções de um autor podem muito bem ser rastreadas em seus escritos. Se há fragilidades nesse tipo de análise (qual não possui?), por não ser possível se verificar todas as condições de produção, leituras e apropriações que são feitas por um autor, nem tampouco alcançar todos os motivos que o levaram a ter certas intenções e não outras, não quer dizer que tais procedimentos não forneçam contribuições significativas ao entendimento de autores, obras e épocas, como já demonstrou a própria obra de Skinner. Não quer dizer, muito menos, que tal abordagem não seja um instrumento a mais para que a história intelectual possa forjar suas bases, para um estudo sistemático da história dos ideários e do pensamento político moderno na Europa (e, quem sabe, se aferidos adequadamente também para outros períodos e espaços).

Diogo da Silva Roiz– Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). Professor na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). E-mail: [email protected]

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