O Direito às Avessas: por uma história social da propriedade – MOTTA; SECRETO (S-RH)

MOTTA, Márcia; SECRETO, María Verónica (Orgs.). O Direito às Avessas: por uma história social da propriedade. Guarapuava: Unicentro; Niterói: Ed. UFF, 2011. 480 p. Il. Resenha de: PESSOA, Ângelo Empilio da Silva; GONÇALVES, Reginna Célia. Para aquém do latifúndio: construindo uma História Social da propriedade. SÆCULUM REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [26] jan./jun. 2012.

A história das diversas formas de apropriação territorial e da configuração da propriedade fundiária no Brasil tem ensejado investigações de longo curso, muitas das quais se constituíram em obras seminais do pensamento social brasileiro. Desde estudiosos da formação territorial do quilate de Felisbello Freire e Basílio de Magalhães, no início do século XX, até pensadores marcantes da nossa estrutura agrária como Alberto Passos Guimarães ou Caio Prado Júnior, em meados da mesma centúria, além de copiosos exemplos mais recentes. A questão da terra e do território permanece como fonte de numerosos estudos e controvérsias, que estão longe de apresentar qualquer consenso.

As acirradas lutas pela posse e propriedade da terra que tomaram o proscênio de nossa vida política, ensejaram debates acalorados e significativa elaboração intelectual em torno das mesmas. Uma das questões que se afirmou quase como axioma foi o do absoluto predomínio da grande propriedade, num quadro asfixiante sobre o conjunto da sociedade, que ficou celebrizado numa visão do latifúndio plenamente dominante em todo o vasto território brasileiro e os códigos legais apenas como a cobertura para os grandes latifundiários governarem essa sociedade segundo os seus interesses. Certamente, essa visão está estribada numa percepção geral e válida em larga medida, perceptível nos diversos processos de apropriação territorial, mas que exige aproximações para a análise dos casos concretos, nos quais esse predomínio está longe de ser tão exclusivo e o exercício do poder tão plácido e absoluto. A própria configuração dos princípios legais que orientaram os direitos de propriedade esteve, todo o tempo, imersa nas tensões sociais e disputas abertas entre diversos sujeitos. Dentre esses, as pesquisas mais recentes revelaram povos indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais de diversas condições, pequenos proprietários, numa amplitude de agentes que se colocaram e se colocam aquém de um latifúndio que domina sozinho a paisagem territorial do país.

Outrossim, o avanço das pesquisas e a abertura de novas áreas de investigação, permitiram perceber que a questão das disputas pela posse e propriedade da terra estão relacionadas não apenas ao meio rural, mas também às contradições relativas à apropriação do solo urbano. A recente história ambiental trouxe importantes contribuições para a percepção da importância de diferentes formas de atividades econômicas e formas de propriedade territorial, que estiveram ligadas a processos de degradação ambiental e social, com conseqüências significativas para o conjunto da sociedade. Assim, além do meio rural e do latifúndio, a questão do direito de propriedade se coloca como um das mais controversas em nossa sociedade e novas pesquisas e debates estabelecem frentes de discussão extremamente férteis.

Em relação ao meio rural, a conhecida questão agrária já teve maior ressonância entre os historiadores e, inclusive, a própria Revista Brasileira de História, publicada pela Associação Nacional de História (ANPUH) já dedicou dois de seus números a temas relacionados à questão da terra, respectivamente os volumes 6, nº 12 (Terra & Poder, 1986) e 11, nº 22 (Estruturas Agrárias e Relações de Poder, 1991). Nos anos mais recentes outros temas e questões ganharam maior visibilidade e a própria RBH não dedicou mais dossiês temáticos específicos sobre a questão. Não obstante, numa análise mais geral, é possível perceber que a mesma continua suscitando importantes trabalhos, seja nesse prestigiado periódico seja em outros de grande relevância acadêmica.

Apesar de parecer, para alguns apressados, como temática supostamente datada ou “engajada” (num sentido empobrecedor do termo), a questão da apropriação do território e da configuração da estrutura agrária se mantém como tema candente de nossa historiografia e de nossa sociedade. À frente dessas discussões, diversos pesquisadores e instituições têm trazido estudos inovadores, tais como o Núcleo de Referência Agrária (http://www.historia.uff.br/nra/NRA%20T.html) da Universidade Federal Fluminense, que reúne estudiosos de renome e jovens pesquisadores que começam a trilhar sua vida acadêmica e participam desse movimento.

Considerando essas observações preliminares, destacamos a publicação de um conjunto de livros da Coleção Terra, coordenada pela historiadora Márcia Maria Menendes Motta e publicada pela Editora da Universidade Federal Fluminense. Dessa coleção, destacamos um dos títulos para uma breve apreciação, que é o livro O Direito às Avessas: por uma história social da propriedade, organizado pelas historiadoras Márcia Motta e María Verónica Secreto.

A alentada obra, estruturada em três partes (I. Propriedade, riqueza e seu avesso, II. Posse, propriedade e identidades e III. Propriedade e desejos de rupturas), conta com o total de 17 capítulos e a colaboração de 19 autores, que discorrem sobre questões ligadas à história social da propriedade, formulação que amplia os marcos teóricos na abordagem dos problemas que se referem à estrutura agrária no Brasil. Englobando balanços historiográficos, estudos de caso em épocas e regiões distintas, a obra apresenta um painel simultaneamente aprofundado e abrangente de tais estudos em tempos mais recentes. A questão do direito às avessas, como bem expressa no título, mais que pressupor uma normatização estática da propriedade, o considera objeto de disputa constante e os próprios códigos legais, em sua formulação legislativa ou em sua prática judicial, como elementos de controvérsia. Certamente, isso não implica em ignorar as diferentes capacidades de acesso à prática legislativa e judiciária – apanágio de grupos mais poderosos em âmbito local ou mais amplo – ou em desconsiderar as formas de enfrentamentos extra-legais, mas em considerar a questão do direito também como uma arena de enfrentamentos bastante acirrada e significativa.

Na Introdução, as organizadoras apresentam os diversos capítulos da obra e tecem considerações de ordem mais geral, discorrendo sobre questões relativas à dimensão histórica do conceito de propriedade e às lutas relacionadas à sua constituição sob diversas formas. Apresentam a própria definição legal de propriedade como alvo de disputas entre diversos agentes sociais e foco de lutas marcantes em nossa formação histórica. Observam que os autores têm clara percepção das polêmicas em torno da definição do direito de propriedade e têm posicionamentos sobre elas, sem abolir a necessária abordagem crítica das questões que estudam. Como as próprias autoras advertem “a propriedade, como qualquer outra coisa, é uma construção histórica, marcada por diversas percepções e distintas análises”.3

A primeira parte, Propriedade, riqueza e seu avesso, inicia-se com o capítulo Das discussões sobre posse e propriedade da terra na história moderna: velhas e novas ilações, de Márcia Motta, no qual a autora realiza um amplo e importante balanço da produção historiográfica a respeito da constituição da propriedade territorial no Brasil, situando a produção advinda dos trabalhos de Maria Yedda Linhares, Francisco Carlos Teixeira da Silva e Vera Lúcia Amaral Ferlini, chegando-se à produção mais recente e incorporando contribuições teóricas inovadoras de autores como Giovanni Levi, Edward Thompson e Rosa Congost. Sem desprezar a valiosa contribuição da história econômica, amplia seu escopo para valorizar atitudes extra-econômicas dos atores sociais que lutam em torno das definições de propriedade, considerando, além do mais, que essa própria definição encontra-se escorada no conjunto de atitudes e valores definidos por distintas culturas.

Rafael Chambouleyron e Raimundo Moreira das Neves Neto, em Terras jesuíticas na Amazônia colonial, segundo capítulo da obra, chamam a atenção para um aspecto pouco explorado da numerosa produção historiográfica sobre a presença jesuítica na região. A par da sempre espinhosa questão da catequese e das disputas pelo controle da população indígena, a gestão dos bens dos jesuítas, especialmente de seu patrimônio territorial, não era das mais pacíficas. A fim de sustentar suas atividades, a Companhia necessitava, ou alegava necessitar, de um suporte econômico, que aparecia para boa parte dos colonos, e até para algumas autoridades locais, como abusos dos religiosos além de sua esperada tarefa de zelar pela vida espiritual de seu rebanho. Os autores apresentam diversos casos nos quais se verificaram atritos em relação à propriedade de determinadas terras, consideradas férteis e bem localizadas, o que implicou em numerosas demandas que chegavam ao Reino, com queixas repetidas dos distintos agentes dessa sociedade.

No terceiro capítulo, Propriedade e conflitos nos sertões de Minas, Francisco Eduardo Pinto, nos apresenta um controverso caso, verificado na freguesia de Itaverava, Comarca do Rio das Mortes, ao longo de três décadas na segunda metade do século XVIII, no qual diversos agentes questionaram judicialmente o direito de propriedade de seus litigantes, a partir da alegação de erros em medição em relações a terras lindeiras, realizada em 1758. Os querelantes argumentavam direitos conflitantes sobre os limites dessas terras e apresentaram as mais diversas razões e documentos comprobatórios de suas posições, solicitando o reconhecimento de suas posições, suscitando, inclusive, nova medição, que foi efetivada em 1773. O caso mostra como numa série de procedimentos judiciais, como era o caso da medição, se estabelecia uma delicada situação, em função da necessidade de citação de vizinhos, que não raro usavam o procedimento para legalizarem suas próprias posses ou contestarem os direitos do solicitante à medição. Inclusive, as dificuldades técnicas dos processos de medição suscitavam contradições ou abusos, fonte de situações bastante conflituosas. Outro aspecto que ressalta é a morosidade dos processos judiciais, que tendiam a se arrastar por décadas e poucas vezes garantiam a efetiva satisfação do desejo de justiça das diferentes partes em litígio.

Em Propriedade e pobreza: os dilemas do Império do Brasil, a historiadora Elione Silva Guimarães nos apresenta o rico e instigante caso de Honório Ribeiro de Miranda (1826-1895), um dos herdeiros de uma família de consideráveis posses do arraial de João Gomes, então pertencente ao município de Barbacena. Após várias peripécias familiares, Honório recebeu usufruto de bens familiares, a fim de não dilapidá-los completamente, dada a sua reconhecida prodigalidade. Junto a um irmão ilegítimo, a quem caberia o destino final dos bens em usufruto, entre os quais se destacava a fazenda Tapera, principal item do patrimônio, conseguiu desfazer-se dos entraves jurídicos e liquidou a propriedade, tornando-se pessoa empobrecida e gerando um longo confronto jurídico entre os parentes pobres e o adquirente da fazenda Tapera.

Em A distância entre a legalidade e a facticidade: o conflituoso processo de apropriação da terra no Brasil meridional, Graciela Bonassa Garcia aborda o hiato entre a letra da lei e a prática efetiva dos agentes sociais dotados de poder de mando local. Para tanto, investiga uma série de casos em relação à apropriação de terras, localizadas em Alegrete, fronteira oeste da Província do Rio Grande do Sul, durante boa parte do século XIX. Frequentemente se verificavam abusos da lei por parte dos indivíduos mais poderosos e bem relacionados com as autoridades locais. O efetivo descumprimento de obrigações de sesmeiros (medição, cultivo, entre outros), não se tornou óbice para ganhos de causa contra posseiros que efetivamente ocupavam e cultivavam aquelas terras. Através da investigação de inventários post mortem e litígios judiciais, a autora observou o acirrado processo de apropriação territorial e concentração agrária, com a constituição de latifúndios, naquela região da Campanha gaúcha.

Encerrando a primeira parte da obra, o sexto capítulo, Por última vontade: doação e propriedade no Oitocentos, de Maria Sarita Mota e María Verónica Secreto, aborda a questão da transmissão de terras através de doações (ou a possibilidade de sua revogação posterior), que aparecem como uma forma política de fazer valer as vontades pessoais do doador, premiando ou punindo as pessoas de suas relações, conforme suas preferências ou interesses, reforçando, assim, sua condição senhorial pelo controle de terras e homens. A propriedade da terra implicava também num valor moral, por permitir a preservação de um nome familiar, garantir redes de compromissos e reafirmar as hierarquias vigentes Além disso, muitas vezes as brechas na legislação portuguesa relativa à transmissão de bens possibilitavam abusos de particulares, além de observarem que a situação das diferentes regiões e o desenvolvimento de atividades econômicas específicas, condicionavam formas peculiares de apropriação e transmissão da propriedade, influindo nas suas dimensões e formas de sua exploração. Situações desse tipo geraram acirradas contendas judiciais, que se arrastaram, às vezes, secularmente. Analisaram em especial os patrimônios de Ordens ou Irmandades religiosas, que reuniam avultadas propriedades rurais e urbanas, boa parte das quais recebidas através de doações pias de colonos. Dois confrontos judiciais em torno das Fazendas da Barra de Guaratiba e da Pedra de Guaratiba, situadas no Recôncavo da Guanabara, foram apresentados em detalhe. A primeira, doada para a Matriz de São Salvador e a Irmandade do Santíssimo Sacramento de Guaratiba, em 1750, englobando ilegalmente terras de marinha. Essa doação gerou contestações posteriores que chegaram ao século XX. No segundo caso, em meados do século XIX a Irmandade de Nossa Senhora do Desterro e a Ordem de Nossa Senhora do Carmo se engolfaram em um confronto judicial que tinha por base a alegação do abandono da Capela do Desterro e a necessidade de sua recuperação pelos primeiros, tendo os segundos argumentado pelo seu direito garantido por títulos antigos. Em situações dessa natureza, as autoras procuram demonstrar as vicissitudes do processo de consolidação da propriedade territorial plena e os confrontos entre diversos agentes sociais pelo que alegavam a validade de seus direitos em contraposição a outros.

Inicia-se a segunda parte da obra, Posse, propriedade e identidades, com o sétimo capítulo, Sendo senhor eu grilo: a desconstrução das cadeias sucessórias, da lavra de Cristiano Luís Christillino, no qual o autor analisa a constituição de vastos patrimônios fundiários nos municípios de Cruz Alta, Taquari e Estrela (Província do Rio Grande do Sul), ao longo do século XIX, que tinham sua constituição obtida através de diversos expedientes, nos quais não faltaram falsificações de documentos de propriedade e burlas em relação aos parâmetros legais vigentes ou o apossamento abusivo de terras no período entre a revogação da legislação sesmarial (1822) e a aprovação da Lei de Terras (1850). Acompanhando os processos de legitimações de posses obtidas por pessoas de grandes cabedais após 1854, pode perceber como as relações de parentesco e amizade, o patrocínio de autoridades coniventes ou o exercício de cargos proeminentes, permitiu extrapolar os limites da legalidade e garantir a formação de grandes propriedades na região. Instrumentalizar a lei a favor dos senhores e fazer vistas grossas para fraudes evidentes permitiam que a prática da apropriação ilegal de terras – conhecida como grilagem – se tornasse possível para um restrito círculo de pessoas próximas ao poder provincial ou às autoridades locais. Alguns senhores chegaram a proceder engenhosos expedientes para a constituição de cadeias sucessórias forjadas sobre determinadas terras, a fim de garantir artificiosamente o seu reconhecimento legal. Para os pequenos posseiros, muitos dos quais com provas cabais de sua legítima ocupação e desenvolvimento de atividades produtivas, não havia qualquer amparo legal ou contemplação de autoridades quando se defrontavam com a “fome de terras” de grandes senhores. Numa área de fronteira beligerante até datas bem recentes, permitir o abuso desses senhores trazia, por sua vez, a garantia de seu apoio no domínio de uma região de contornos ainda pouco definidos e consolidados em relação ao próprio território imperial.

Prosseguindo com Entre a lei e sua aplicabilidade: a gestão das “terras devolutas” na região de matas do Rio Grande do Sul durante a Primeira República (1889-1925), Márcio Antônio Both da Silva desenvolve estudo sobre a ocupação das terras de matas na região norte do Rio Grande do Sul, nas primeiras décadas do regime republicano, quando se estabeleceu legislação estadual de terras (1889), com a criação de órgãos de controle, e se intensificou a ocupação agrícola modernizante nessa região. Uma das questões em jogo dizia respeito às formas tradicionais de ocupação e cultivo de terras por populações indígenas, negros e nacionais, sobre as quais foi imposta uma nova ordem de exploração pretensamente racional, em acordo com os princípios de uma economia capitalista. Em meio a essas transformações, a difusão de novas técnicas rurais preconizava o desejo de transformar o Rio Grande do Sul numa espécie de “celeiro do Brasil”. A análise de documentação da Diretoria de Terras e Colonização do Estado revelou que a lei estadual de terras e a regulamentação dela derivada não conseguiram garantir uma normalização dos problemas agrários e o efetiva respeito às terras públicas (fonte de eventuais recursos para o Tesouro Estadual proveniente de sua comercialização), em função de pressões distintas de grandes proprietários e especuladores ou mesmo da resistência de lavradores pobres contra a perda de suas terras. Mesmo a nova legislação de 1923, que pretendia resolver as pendências existentes, fazia alusão a “detalhes” a serem resolvidos por instruções governamentais pontuais, que foram percebidos e investigados pelo autor como inúmeros casos de conflitos que preexistiam e subsistiram à referida legislação. No jogo de forças entre os diversos agentes, o autor argumenta que não havia uma pretensa polarização entre uma ordem moderna capitalista e outra arcaica, mas formas distintas de inserção e participação nos processos concretos em curso. Assim, mesmo os lavradores pobres não eram apenas vítimas passivas, joguetes de forças superiores ou representantes de culturas rudimentares, mas agentes sociais que buscavam obter algum espaço em meio aos desafios concretos com os quais se defrontavam.

No nono capítulo No jogo das identidades: terras indígenas e conflito no Oitocentos, de Marina Monteiro Machado, apresenta-se um conflito de terras entre sesmeiros e posseiros em Valença, na Província fluminense, na segunda década do século XIX. Um documento dos posseiros, em 1817, denunciava concessões irregulares de sesmarias, em localidade que antes havia pertencido ao aldeamento de Nossa Senhora da Glória e que fora indevidamente apropriado por homens influentes na região. Voltando ao século anterior, a autora observou que houve a iniciativa de instituição do referido aldeamento, mas a morte precoce de seu fundador evitara que o processo fosse efetivamente institucionalizado. Na contestação dos sesmeiros, justificava-se que aquelas terras poderiam ser concedidas, uma vez que não haveria documentação comprobatória do referido aldeamento. Na análise do trâmite da questão, a autora percebeu que os meandros dos argumentos traziam uma instrumentalização das partes em relação às terras indígenas: para os posseiros, confundir-se com os índios e assumir sua suposta defesa poderia ser uma brecha para obter a legalidade de sua ocupação, a partir do apelo a uma presença indígena mais remota; para os sesmeiros, a inexistência de documentos que comprovassem a existência do aldeamento, tornava legítima e legal sua propriedade sobre aquelas terras.

Francivaldo Alves Nunes, no capítulo décimo, Terras estranhas: colonização, imigração e conflito no Norte do Império, estuda a presença de colonos europeus e norte-americanos na Província do Pará, nas últimas décadas do século XIX e as suas estratégias de inserção social e acesso a terras mais favoráveis aos seus propósitos. Analisando os limites e contradições das políticas oficiais de imigração, em particular naquela região de “terras estranhas” – segundo a retórica dos imigrantes –, o autor procura perceber como os colonos provenientes de outros países, boa parte dos quais sem qualquer relação com a atividade agrícola, buscaram negociar condições mais promissoras, avançando, inclusive, para além dos projetos governamentais. Nas brechas do discurso que desqualificava o trabalhador nacional, os estrangeiros procuraram espaços a partir dos quais obtivessem algumas perspectivas de ascensão social e econômica, que ultrapassavam as expectativas governamentais de ter acesso a “braços qualificados” para a lavoura.

Inicia-se a terceira parte da obra, Propriedade e desejos de rupturas, com o capítulo onze, O mais útil de todos os instrumentos: o arado e a valorização da terra no Brasil do século XIX, de Teresa Cribelli. A autora aborda uma série de escritos publicados na imprensa em torno de 1860, especialmente pelo maranhense Antônio Marques Rodrigues, que procuravam criticar uma agricultura marcada pelo “atraso e a rotina”, além de exaltar o arado como o indício de uma tecnologia mais moderna e revolucionária nas práticas agrícolas. Embutida nesses argumentos estaria uma perspectiva de modernização agrícola, que traria consigo novas e sofisticadas formas de exploração econômica e de valorização das terras, com a conseqüente geração de riqueza, mas que esbarrou em diversos limites. Entre eles, foi tangenciada prudentemente a discussão sempre explosiva da democratização do acesso à terra, além de se ignorar formas de racionalidade econômica próprias das práticas consideradas arcaicas, que recorriam à rotina e evitavam o incremento tecnológico a partir de um cálculo bastante imediato dos custos envolvidos nessas operações. A autora destaca que, longe dessas propostas se constituírem em mero e ingênuo exercício de otimismo por parte de membros de uma elite intelectual, revelavam a existência de uma acesa discussão sobre a agricultura, que se preocupava com a questão do valor da terra, para além de puramente a sua propriedade.

Em “A questão fundiária na ‘transição’ da Monarquia para a República”, Cláudia Santos aborda alguns acalorados debates travados na década de 1880, através da imprensa que, concomitante à questão da abolição da escravidão, também preconizavam a discussão sobre a grande propriedade rural, identificada, por alguns autores, como foco de atraso para o país. Em diversos momentos, os grandes proprietários eram vistos como “landlords” ou ‘aristocratas rurais”, sendo identificados como forças adversárias do progresso do país. Dessa forma, se afirma uma vertente reformadora mais profunda no movimento abolicionista – e menos percebida por boa parte da historiografia – que colocava em xeque a grande propriedade e defendia medidas mais profundas, com a própria reestruturação da propriedade fundiária. Entidades como a Confederação Abolicionista, nesse contexto, além de defenderem a abolição imediata e sem indenização, preconizavam um segundo ponto de “destruição do monopólio territorial” e a “terminação dos latifúndios”.

No capítulo treze, Nas fronteiras de um desejo: posse e propriedade na Amazônia, Betty Nogueira Rocha realizou ensaio sobre a política de colonização da Amazônia durante a ditadura militar, no âmbito dos grandes projetos de “Brasil Potência” e ocupação dos “vazios demográficos”, abordando questões referentes à posse e propriedade da terra na região. Enfocando o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste (PROTERRA), promulgado em 1971, que objetivava desenvolver projetos agrícolas e possibilitar a aquisição ou desapropriação de terras e sua redistribuição para atender a interesse social, a autora percebe que grandes empreendedores do setor agropecuário mobilizaram forças e manipularam o Programa, a fim de garantir o acesso a recursos e bloquear o acesso à propriedade por parte de trabalhadores. Na análise do caso pontual do município de Lucas do Rio Verde, norte do Mato Grosso, foi possível perceber os embates pela terra, as artimanhas dos fazendeiros para o acesso ao crédito pretensamente destinado aos colonos, o emprego brutal da violência para garantir seus privilégios, o aprofundamento da concentração fundiária e de renda na região, articulando perversamente a geração de riquezas privadas e o aprofundamento das desigualdades sociais.

Segue-se Os que têm fome e sede de justiça: conflitos rurais na mesa de Getúlio Vargas, de Vanderlei Vazelesk Ribeiro, que parte de uma carta enviada ao Presidente em 1940, pelo trabalhador rural de Ilhéus (BA), José Calisto, denunciando os abusos do fazendeiro Chafic Suet e a conivência das autoridades locais que acobertavam as violências sem fim do referido latifundiário. A partir desse documento, transparece a política varguista de se tentar fazer intérprete das necessidades dos desvalidos, que a ele se dirigem diretamente, com o intuito de obter justiça. Mobilizadas as instâncias da burocracia, a carta tramita de alto a baixo, até chegar a Ilhéus, onde o funcionário da antiga Conciliação e Julgamento informa que o processo teria sido apreciado pela Justiça local, com a derrota de Calisto, indicado pelo funcionário como pessoa dada a mover intrigas e levantar calúnias. A análise de diversas outras cartas ao Presidente, como a de uma proprietária que demandava por terras contra o irmão do governador do Paraná, solicitando o apoio de Vargas, demonstra a expectativa do atendimento de boa parte da população às suas aspirações por justiça. Nos diversos casos apontados e na análise de outras cartas, o autor percebe as diversas formas de mobilização tentadas por agentes do campo, entre os quais os trabalhadores rurais, para buscar o atendimento de suas esperanças, além do agenciamento, por parte do governo, de expedientes, entre os quais responder cartas, independente do resultado concreto e favorável dos pedidos, fortalecendo a propalada imagem de “pai dos pobres”. Outrossim, a não extensão da legislação trabalhista ao campo não implicava na inexistência de mobilização e confrontos acirrados no meio rural.

No capítulo quinze, De colonos a posseiros: do reconhecimento à ilegitimação da propriedade, de Marcus Dezemone, são analisados os impasses da política agrária nas décadas de 1970 e 80. Em um conjunto de decretos de desapropriação de terras em vários Estados brasileiros, devido a “interesse social” e finalidades de “reforma agrária”, promulgado, em 1987, pelo então Presidente José Sarney, observa-se o jogo das tensões agrárias envolvidos no contexto da ditadura e da redemocratização brasileira. No caso particular da Fazenda Santo Inácio, no Município de Trajano de Moraes (RJ), pertencente ao General José Antônio Barbosa de Moraes, desapropriada nessas circunstâncias, reconstrói-se um prolongado conflito judicial entre 1971 e 1984, no qual os antigos colonos passaram a se identificar paulatinamente como posseiros e deixaram de reconhecer o legítimo direito, que outrora reconheciam, do General em relação à terra. Em entrevistas realizadas pelo autor no ano 2000, foi possível perceber os deslocamentos de sentidos e as mudanças nas correlações de força, levando-se em consideração, inclusive, a ditadura militar e as manobras do General, que usou suas relações para tentar garantir a propriedade. Retrocedendo às décadas anteriores, pode-se perceber a substituição da produção cafeeira pela pecuária, o que estreitou as possibilidades de circulação dos colonos nas propriedades da região. Os colonos da Santo Inácio, mesmo sob a repressão subseqüente ao golpe de 64 e o fechamento do seu sindicato, utilizaram uma brecha legal referente à ampliação da previdência rural e adotaram a publicização do conflito através da FETAG e da CONTAG. A disputa se judicializou a partir de ações de reintegração de posse e despejo por parte do fazendeiro, contestadas por ações de manutenção de posse pelos colonos, que assumiram a condição de posseiros numa segunda ação de manutenção. Arrastando o caso até 1984, os colonos tiveram perda da causa em virtude do entendimento do juiz de que os mesmos colonos da primeira ação se apresentavam como posseiros na segunda, o que descaracterizava suas pretensões. Ante ao iminente despejo, em 1986, os posseiros recorreram ao apoio político, num contexto de intensa pressão social decorrente do final da ditadura, e obtiveram sucesso na luta para conseguirem se assentar em parte da propriedade, sob o argumento de sua não-produtividade e do interesse social envolvido. O autor argumenta a importância de estarmos atentos a conflitos mais localizados e cotidianos, situados mesmo no bojo de um regime repressivo, mas que mostram um lado importante na disputa pela terra e na sua compreensão como objeto de direito social.

Em Nas brechas da lei: remanescentes de quilombos, luta pela terra e memória no território da Fazenda Volta (Bom Jesus da Lapa – BA), Ely Souza Estrela desenvolve investigação sobre um processo de luta por terras da antiga Fazenda Volta, região do médio São Francisco, levada à frente por antigas comunidades remanescentes de quilombolas, fundamentadas em tradições locais e no princípio de reconhecimento de seus direitos após a Constituição de 1988. Reconstruindo a ocupação da região, outrora componente do antigo morgadio da Casa da Ponte, a autora identifica a formação concomitante de comunidades quilombolas que se mantém às duras penas ao longo do Império e da República, sofrendo intensificação da brutal repressão dos latifundiários em meados do século XX. A persistente resistência social e étnica e a luta pelo direito à terra ganha novos contornos com a Constituição e a existência de uma arraigada memória quilombola – expressa em diversos depoimentos e tradições, apresentados pela autora – possibilitando seu reconhecimento pelo INCRA como área quilombola no ano de 2009. Continua, no entanto, em curso, a luta pela desocupação dessas terras por alguns fazendeiros que se recusam a obedecer as determinações legais e as decisões judiciais que reconhecem esse direito.

Encerra-se a obra com Constituição Cidadã! Direito à terra e conflito nas leituras da Carta-Magna, de Mariana Trotta Dallalana Quintans, que analisa os acirrados debates em relação à elaboração e posterior implementação da Carta Magna e a persistência de inúmeros conflitos agrários que não foram resolvidos pelo novo diploma legal, muito embora o mesmo pretenda se colocar como garantidor da cidadania no país. Ao investigar, através de ações judiciais bastante controversas, a situação agrária nos Estados do Rio de Janeiro e Pará e os impasses para se fazer valer uma compreensão da função social da terra, mesmo reconhecido constitucionalmente o direito à propriedade privada, a autora demonstra como a garantia de diversos direitos sociais não é plenamente efetivada devido à pressão de grupos detentores de poder econômico, muitos dos quais ligados à grande propriedade, o que leva a uma crescente demanda de ações judiciais e uma persistente violência no campo. O texto constitucional, marcado pela ambigüidade, é resultado de um impasse social mais amplo, no qual forças bastante distintas se digladiam em torno do desenho pretendido para os caminhos futuros do país.

Numa obra de tal magnitude e de tão variado número de autores e períodos e regiões investigados, além de resultante de etapas diversas de maturação de pesquisas em andamento, certamente cabe a discussão de questões mais polêmicas ou até eventualmente insuficientes, que se podem ressaltar aqui acolá, mas que escapariam ao escopo de uma resenha e demandariam discussões mais alongadas e pontuais. Entretanto, a obra como um todo cumpre, de forma mais que elogiável, o papel fundamental de demonstrar o fôlego e o alcance das pesquisas mais recentes no âmbito da história social da propriedade, revelando um quadro bastante complexo dessa história, que está aquém do puro e simples predomínio inconteste do latifúndio – a partir da percepção da existência, no tempo longo, de diversas formas de relação com a posse e a propriedade da terra –, e está além da pretensão daqueles intelectuais que pensam que essa é uma questão datada e superada ou dos grandes latifundiários, que bem desejariam que se contasse uma outra história num livro de Histórias.

Notas

3 MOTTA, Márcia e SECRETO, María Verónica (orgs.). O Direito às avessas: por uma história social da propriedade. Guarapuava: Unicentro; Niterói: Ed. UFF, 2011. p. 15.

Ângelo Emílio da Silva PessoaProfessor do Departamento de História da UFPB e do Programa de Pós-Graduação em História da mesma Universidade. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: <[email protected]>.

Regina Célia Gonçalves Professora do Departamento de História da UFPB e dos Programas de Pós-Graduação em História e em Arquitetura e Urbanismo da mesma Universidade. Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: <[email protected] >.

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