Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica – BAKHTIN (B-RED)

BAKHTIN, M. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011. 184p. Resenha de: CASTRO, Gilberto de. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.7 n.1, São Paulo Jan./June 2012.

De todos os capítulos presentes em Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (daqui em diante MFL), editado no Brasil pela primeira vez em 1981, os menos lidos certamente são os últimos quatro, cujo tema central são os processos de citação (discurso citado) no interior da narrativa literária. Não são poucos os leitores, principalmente aqueles que estão nos seus primeiros contatos com a obra bakhtiniana, que afirmam ter sentido certa estranheza ao ler esses capítulos, assim como os que leram MFL somente até o capítulo 7. À primeira vista, parece que esses capítulos não deveriam fazer parte de MFL. Penso, entretanto, que essa deva ser apenas a impressão do leitor ainda não estudioso do pensamento bakhtiniano, já que uma leitura horizontal dos escritos mostra que o tema do encontro vocal dentro das obras do Círculo é fulcral na construção de todo o seu arcabouço teórico sobre a linguagem e a cultura, de toda a sua concepção alteritária de mundo.

O tema do discurso citado, enfim, do discurso no discurso, da palavra na palavra, da voz na voz, é recorrentemente discutido. Bakhtin recorrerá a ele em sua discussão sobre Dostoiévski, na belíssima teoria do romance e também em alguns momentos de seu texto sobre os gêneros do discurso. Apesar dessa presença constante nas obras dos autores do Círculo, não seria exagero dizer que o tema da citação ainda não é o carro chefe da curiosidade acadêmica e das pesquisas no Brasil que, entre tantos outros, às vezes tem preferido alguns já bem batidos, como demonstra o exagero bibliográfico das discussões sobre os gêneros do discurso.

Nesse sentido, é muito bem vinda a publicação de Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação, realizada pela Pedro & João Editores, que tem se caracterizado pelo esforço editorial em traduzir e publicar obras sobre o universo bakhtiniano – vale lembrar que é da mesma editora a tradução de Para uma filosofia do ato responsável (2010), texto que demorou bastante para ser vertido para o português. O livro publicado agora contém dois capítulos, sendo que o segundo, que também dá o título à obra, é uma nova tradução dos quatro últimos capítulos de MFL de Voloshinov. Como introdução há um inédito de Augusto Ponzio, intitulado Problemas de sintaxe para uma linguística da escuta. E, como apêndice, a primeira versão para o português brasileiro do texto A palavra na vida e na poesia. Introdução aos problemas da poética sociológica, de Voloshinov, que aliás também aparece como parte do título na capa do livro.

A iniciativa de publicar esse texto de Voloshinov também é muito boa. Trata-se de um texto fundamental dentro do arcabouço bakhtiniano, em que o autor, na intenção de delimitar um método sociológico para os estudos literários, empreende um esforço intelectual no sentido de mostrar as raízes intrinsecamente sociológicas da obra literária, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Para isso, aborda um evento interativo extremamente simples do cotidiano de dois interlocutores (o já antológico – para quem conhece – exemplo da neve pela janela!) para discutir a dinâmica da interação socioverbal, mostrando o quanto a existência da linguagem só é possível na sua relação intrínseca com o mundo extraverbal. A partir desse exemplo, decorrem as considerações sobre o fato de que o texto literário, respeitadas as proporções e suas complexidades, contém os elementos próprios de qualquer ato interlocutivo, contemplando, nos moldes do enunciados cotidianos, um evento, um herói, um interlocutor. Já tinha passado a hora de traduzir esse texto para o português, visto que nele, além da ousadia e da simplicidade da abordagem sobre a construção literária e da revisitação muito clara de temas bakhtinianos, fica patente a expressão do intenso diálogo estabelecido entre Bakhtin e Voloshinov sobre a linguagem e a literatura.

Problemas de sintaxe para uma linguística da escuta, de Augusto Ponzio, também faz uma reflexão sobre o tema do encontro vocal nas obras bakhtinianas, o que dá uma tonalidade especial ao livro, singularizando a edição na direção da importância do debate sobre os problemas relativos ao encontro de vozes. Ponzio, que é seguramente um dos mais lúcidos e expressivos estudiosos do pensamento bakhtiniano no mundo, aproxima as discussões que Bakhtin faz sobre a palavra em Dostoiévski à reflexão realizada por Voloshinov sobre o discurso citado, com destaque para uma abordagem do discurso indireto livre. É particularmente interessante, na sua argumentação, a reprodução do que diz Pasolini sobre o discurso indireto livre, para quem esse tipo de citação representaria “o espião de uma ideologia” (p.39). De quebra, ao final do seu texto, Ponzio faz, revisitando informações biobibliográficas sobre o Círculo, uma justa reflexão sobre o significado dos termos “bakhtiniano” e “círculo de Bakhtin”. Ele vai destacar a “intensa e afinada colaboração, em clima de amizade, em pesquisas comuns, a partir de interesses e competências diferentes” (p. 46) que se efetivou entre Bakhtin e seus interlocutores mais próximos como Medevedev e Voloshinov, lembrando que eles seriam, “[…] junto a Bakhtin, as vozes. […] de forma ‘igualitária’.” (p.49).

Sobre a nova tradução do texto de Voloshinov, anteriormente publicado no final de MFL, e que agora faz parte do título deste livro da Pedro & João, valem algumas considerações. Em primeiro lugar, dizer que ela foi realizada a partir de uma tradução do italiano que se baseou no original russo de Voloshinov e que, comparando-a à tradução brasileira anterior, realizada a partir da tradução francesa, não apresenta praticamente nenhuma coincidência verbal. Apesar disso, vê-se claramente que se trata do mesmo texto, das mesmas ideias, das mesmas propostas, com exatamente as mesmas dificuldades de leitura impostas pela tradução anterior que são, diga-se de passagem, próprias mais à inovação e à natureza do tema discutido por Voloshinov que outra coisa. Enfim, a comparação entre as duas traduções tem lá o seu quê de pedagógico sobre o tema da tradução na medida em que expõe ao leitor variedades de formas de dizer e construir sentidos. Assim, não dá pra dizer que o teor textual de uma tradução é melhor que o da outra, nem mesmo quando focamos na comparação de pequenas partes, pois elas ora tendem positivamente para a tradução antiga, ora para esta de agora.

Mas a nova tradução do texto de Voloshinov supera a anterior na forma de apresentação. Além da nova edição apresentar um sumário detalhado, facilitando imensamente o trabalho do leitor na busca de um determinado tópico e/ou discussão, o texto foi enriquecido nas suas notas de rodapé, a partir de complementações feitas pelo tradutor e/ou organizador, que trazem novas e importantes informações sobre os autores citados e as ideias apresentadas. Porém, ao contrário da tradução anterior, a atual não tem todas as citações de excertos de literatura traduzidos, o que pode dificultar a leitura para alguns estudiosos.

Embora, como já ressaltei antes, seja extremamente positivo o fato de termos o texto de Voloshinov reeditado num livro à parte, juntamente com o trabalho de Ponzio, em que o tema do discurso citado ganha evidência central, creio que também haja alguma desvantagem nessa nova conformação. Refiro-me aqui basicamente ao fato de que, mesmo que seja um pouco difícil para muitos leitores pensarem a inclusão dos quatro últimos capítulos de MFL dentro daquele livro, prevalece o fato de que todo o fundamento teórico utilizado neles está desenvolvido nos capítulos anteriores do livro, o que evidentemente não ocorre na presente edição que, para compensar essa falta, se apoia em algumas notas de rodapé. Mas, quando Voloshinov, na última parte do seu texto, discute o discurso indireto livre em francês, alemão e russo, ao fazer alusão aos estudiosos que discutiram o tema teoricamente, ele os vincula às duas grandes correntes de estudos de linguagem (objetivismo abstrato e subjetivismo idealista) estudadas e criticadas por ele nos capítulos 4, 5 e 6 do MFL. Como as nominações empregadas por Voloshinov abarcam uma densa e complexa visão crítica e teórica sobre a linguagem, saber do que ele está falando é fundamental para uma compreensão mais completa da crítica que ele faz aos estudiosos do discurso indireto livre que se fundamentaram ora no objetivismo abstrato, ora no subjetivismo idealista.

Outro aspecto que, creio, ainda precisará ser mais bem avaliado, o que deve ocorrer na medida em que forem acontecendo leituras dessa nova tradução, diz respeito à mudança de terminologia empregada nela para descrever o que até hoje conhecíamos como “discurso citado”. Embora nossa cultura de estudos linguísticos tenha firmado certa nomenclatura em relação ao tema da citação, utilizando-se farta e recorrentemente da palavra “discurso” para encabeçar cada uma das denominações genéricas das formas de descrição do discurso citado, conhecidas como “discurso direto”, “discurso indireto” e “discurso indireto livre”, não foi essa a opção dos tradutores desse novo texto. Assim, fique atento o leitor para o fato de que, onde está escrito nos últimos capítulos de MFL “discurso citado”, leia-se, na nova tradução, “palavra outra”. Imagino que a opção dos tradutores veio na esteira das opções feitas por Ponzio no texto que inicia o livro; mas pensando em tradução, em que a consolidação de um sentido cultural e de sua ressonância em leitores concretos tem sempre lá o seu peso, fico na dúvida se a opção escolhida foi mesmo a melhor. Se serve de consolo para o leitor, outra coisa boa que esta nova tradução apresenta é a supressão daquele palavrão presente na tradução do MFL: “outrem”, que praticamente ninguém falava e escrevia no Brasil.

Uma última consideração diz respeito ao fato de apenas o nome de Mikhail Bakhtin aparecer na capa do livro (em desacordo com a ficha catalográfica). Depois de tudo que já se especulou e se sabe sobre a autoria dos textos do Círculo de Bakhtin, causa estranhamento ver que o nome de Voloshinov não aparece na capa de uma obra que traz dois textos assinados por ele. Observe-se, ainda, que a reflexão feita por Ponzio demostra que os chamados membros do Círculo eram todos impactados pela intensidade de um diálogo amigável e especulativo, embora preservando suas individualidades teóricas e autorais.

Enfim, traduzir é sempre um risco e uma ponderação de sentidos em progressão de interlocução. São sempre muitas vozes falando ao mesmo tempo a indicar e a reivindicar os seus sentidos. A oferta da linguagem é quase infinita e a decisão pelo sentido nem sempre é fácil. Do conjunto do trabalho apresentado nesta nova tradução, reitero o peso ideológico e teórico da iniciativa, que ajuda na evidenciação do tema do encontro vocal no Círculo de Bakhtin, o que para mim suplanta até mesmo as opções de sentido que eventualmente podem não agradar tanto assim.

Gilberto de Castro – Professor da Universidade Federal do Paraná – UFPR, Curitiba, Paraná, Brasil; [email protected] 270.

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