El dios bes de Egipto a Ibiza – BRIEVA (RMA)

BRIEVA, Francisca Velázques. El dios bes de Egipto a Ibiza. Elvissa: Museu Arqueològic d’Eivissa, 2007. Resenha de: BAKOS, Margaret M. Revista Mundo Antigo, v.1, jun., 2012.

Bês é uma divindade que nunca fez parte dos considerados grandes deuses egípcios, não pertencendo a nenhum dos sistemas cosmogônicos da religião egípcia. Ele foi, não obstante, desde priscas eras, um deus muito popular no Egito e em muitos sítios, ao longo do mar Mediterrâneo, inclusive, durante o período conhecido como Mare Nostrum, sob a dominação romana. Aliás, a sua presença é particularmente sentida na ilha de Ibiza.

A primeira análise científica realizada sobre essa divindade encontra-se na Description de l’ Egypte. Nesse texto, ele é identificado como Tifón, ser monstruoso, o menor dos filhos de Gea e Tártaro, com características de homem e de animal. Champollion, entretanto, logo se insurge contra essa proposição, advertindo que vários deuses estariam representados nessa mesma figura básica.

Nos anos seguintes, o deus Bês ou Besa torna-se objeto de inúmeros estudos que discutem sua possível origem: a Arábia, o oriente e/ou o sul da África. Esse último, foi considerado o local mais provável de seu surgimento, devido a evidências encontradas nos textos dos Templos de Dendera e de Phila; aos próprios epítetos e atributos exibidos por Bês, tais como penas de avestruz e peles de pantera e às associações de sua imagem com os baboons, originários da Núbia; aos seus traços faciais: lábios grossos, nariz achatado, arco superciliar proeminente, enorme cabeleira, barba espessa, semelhantes aos dos pigmeus; e, finalmente, à sua imensa popularidade no reino de Napata-Meroe.

Além disso, na iconografia do deus, chama a atenção o seu aspecto leonino, que, aos poucos, vai-se transformando, devido ao processo de antropomorfização a que Bês foi sendo submetido no decorrer do tempo. Essa hipótese explicaria as pernas curvadas do deus no Reino Médio, atribuídas à dificuldade de se manter em pé, devido à sua natureza animal.

No período greco-romano, as representações de Bês mostram-no segurando com a mão esquerda uma serpente e, com a direita, uma espada. Aos finais dessa etapa, começam a aparecer registros de sua presença em mamisis, edifícios dedicados às deusas Hathor e Tawret, nos quais aconteciam os nascimentos dos filhos divinos, o que comprovaria sua associação e subordinação às missões protetoras das deusas. Com o triunfo do cristianismo, em 392, o deus foi, aos poucos, sendo considerado uma espécie de gênio maléfico que atormentava os monges (BRIEVA, 2007, p. 31).

Para a autora, entretanto, Bés é uma divindade que, com o desenvolvimento do culto, foi adquirindo diferentes naturezas: o seu nome revela uma unidade dentro da aparente multiplicidade, até que sejamos capazes de resolver o problema (BRIEVA, 2007, p. 15). A imensa confusão que se criou, ainda não bem resolvida, sobre a origem e características do deus pode ter surgido ainda na época egípcia antiga, pois, já então, parecem existir divergências entre as posições canônica e a popular, entre as primeiras imagens originais levadas pelos que viajaram para fora do país, e as representações feitas a partir de suas cópias.

Cronologicamente, as primeiras referências a Bês aparecem nas facas mágicas, e as últimas, em estelas, tão famosas como a de Metternich, mandada fazer por Nectanebo (360-342 a.C.), agora no Museu Nacional de Napólis. Nessa estela, a imagem da cabeça de Bês é muito grande e está colocada sobre o corpo desnudo de Harpocrates, que segura, nas mãos, animais peçonhentos, para evitar que eles façam mal às pessoas.2 Sabidamente, Bês não fazia parte de um culto de Estado, pois inexistem templos dedicados a ele. Recebia rituais em nível doméstico, o que incluía sua presença tanto em casas habitadas por operários em Deir el Medina ou Tell el Amarna, como em moradias suntuosas e até mesmo palácios, como o de Amenófis III, onde sua imagem aparece esculpida na cabeceira do leito real e/ou nas diversas residências de Ramsés II. Bês, em linhas gerais, é configurado como um deus alegre e protetor dos lugares onde ficavam reclusas as parturientes. Acreditava-se ainda que ele velava também pelas crianças, pelo amor dos casais, pelos músicos e festas, pelos adormecidos, afastando deles as serpentes, bem como pelos defuntos no além.

No III, IV, e V capítulos, Brieva analisa a presença de Bês fora do Egito: no Mediterrâneo Oriental, Central e Península Ibérica. O primeiro exemplar encontrado de Bês foi uma figura em osso, localizada na Anatólia e datada do segundo milênio a.C.; mas, a partir daí, essas figuras começam a aparecer mais amiúde, nos mais diversos sítios, produzidas em outros materiais. Há, inclusive, figuras bizarras em escaravelhos representando Bês como esfinge. Acredita-se que a maioria dessas representações sejam fruto de manufaturas egípcias; mas, em algumas delas, há evidências, devido ao material utilizado em sua produção, de proveniência dos locais em que foram encontradas.

Finalmente, no VI capítulo, a autora dedica-se à análise minuciosa das representações do deus localizadas em Ibiza, constatando que, em alguns casos, Bês já se havia convertido em uma espécie de senhor dos animais.

Segundo Brieva, o reconhecimento da presença de Bês em Ibiza é resultado de um longo processo de pesquisa, pautado por longas discussões e a adoção de posições  controversas. O primeiro passo foi o aceite da existência de moedas de procedência ibicenca (BRIEVA, 2007, p. 100) nas quais a presença do deus pode ser identificada. Também foram localizadas, em Ibiza, dezenas de escaravelhos com a imagem de Bês, bem como imagens do deus em pé, desnudo sobre um sóculo. Essas descobertas são resultantes das escavações feitas na ilha e estão hoje depositadas no Museu Arqueológico de Ibiza. Nesse museu, também se encontra um importante número de amuletos de tipo egípcio, mas há ainda muitas dúvidas sobre suas procedências; alguns aventam que sejam originários das ilhas de Chipre, Cartago e Tharros. O famoso egiptólogo Jean Vercoutter (1911-2000) considerava que eles provinham de tumbas dos séculos VII e VI a.C., sendo autenticamente egípcias (BRIEVA, 2007, p. 130). Brieva constrói dez gráficos bastante complexos, registrando as peças encontradas, segundo o material empregado em sua produção, local das escavações em que foram encontradas e tipologias. A autora confessa, não obstante, a insuficiência de dados para conclusões mais objetivas sobre a história dessas peças.

O livro, de 259 páginas, é fruto da Licenciatura de Francisca Velázques Brieva, defendida na Universidad Autônoma de Madrid. Em tom acadêmico, a publicação contém densas descrições, imagens em preto e branco, exaustivas e minuciosas revisões historiográficas sobre a história do deus, o que confere ao texto uma tal densidade de informações que torna, por vezes, penosa a leitura. Recomenda-se, entretanto, a não desistência, pois a leitura vale a pena: induz os visitantes de Ibiza, para além de aproveitarem as praias da ilha3, a conhecerem o Museu Nacional, no qual todas essas peças podem ser melhor admiradas.

Notas

2 Essas imagens foram, por mim, apresentadas no I Congresso Internacional de Religião, mito e magia no mundo antigo, promovido pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, de 8-12 de novembro 2011, na comunicação intitulada: “Bês em Deir el Medina e no Mediterrâneo.”

3 Agradeço ao Dr. Phillip Gomes Jardim, querido sobrinho, que, de sua viagem a Ibiza, trouxe formidáveis subsídios para o futuro desenvolvimento desta pesquisa.

Margaret M. Bakos – Professora Dra. dos Cursos de Graduação e Pós-graduação (PUCRS), Bolsista Produtividade CNPq – [email protected]

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