Ver História: O Ensino Vai aos Filmes – SILVA; RAMOS (RTA)

SILVA, Marcos; RAMOS; Alcides Freire (org.). Ver História: O Ensino Vai aos Filmes. São Paulo: HUCITEC, 2011. Resenha de: PEREIRA, Lara Rodrigues; ALAMINO, Caroline Antunes Martins. Entender história: os filmes e o ensino. Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 4, n. 2, pp. 205 – 208, jul/dez 2012.

 “Ver História: O Ensino Vai aos Filmes”, editado pela HUCITEC em 2011, é uma composição de vários artigos escritos por diferentes autores, cujo tema central é a linguagem cinematográfica na História. Organizado pelos pesquisadores Marcos Silva, professor titular de Metodologia da História da FFLCH – USP, e Alcides Freire Ramos, professor do programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia, o livro tenta abordar as possibilidades metodológicas existentes nos filmes para a construção do processo de ensino/aprendizagem. Ao analisar o título da obra, é possível perceber a leitura visual da História proporcionada pelo cinema através de suas narrativas, sejam elas baseadas em ficções ou não. Essa propriedade fica evidenciada no texto de apresentação da obra, através do qual seus organizadores partem do princípio de que “todo o filme ensina algo”. Tal premissa acompanhará a narrativa construída por cada articulador, pois através das leituras sistematizadas de seus objetos, vão apresentando para o leitor as tramas, conflitos, rupturas e permanências históricas retratadas pelo cinema.

O livro foi estruturado em dois blocos, sendo que no primeiro e mais extenso, composto por dezessete artigos, a abordagem do objeto cinema foi concebida através de Vai ao Cinema”, o tema ensino não é abordado de forma direta, há apenas uma análise precisa de um ou mais filmes, sendo que seu caráter didático fica a cargo da imaginação do leitor. Isso representa certa incoerência entre o título, que teoricamente guardaria as intenções do livro, e seu conteúdo, pois a palavra ensino (que está no título do livro) teria a propriedade de delimitar um campo de conhecimento voltado para a educação.

Em outros artigos fica evidente a preocupação com a apropriação de narrativas cinematográficas pelos professores em sua prática docente. Esta perspectiva está presente no texto de abertura do livro escrito pelo pesquisador Airton Cavenaghi, que recoloca em cena o filme de Humberto Mauro, “O Descobrimento do Brasil”, clássico do cinema educativo brasileiro da década de 30, e suas possibilidades para o ensino de História na contemporaneidade. O artigo subsequente relata experiência em sala de aula decorrente do uso de dois filmes produzidos nos EUA, que têm como mote a guerra fria. Neste texto o autor/professor Igor Carastan Noboa indica suas escolhas metodológicas para lidar com duas narrativas diferentes, que abordam o mesmo tema, buscando nelas um contraponto necessário ao entendimento do período que enfocam.

Temas como memória e disputas por poder são recorrentes nos artigos deste livro, mostrando que essas também são preocupações inerentes ao ensino, sobretudo de História. Os textos “Desvendando Glauber Rocha: Uma Interpretação de Terra em Transe” e “A Estratégia da Aranha: O Mito do Traidor e do Herói”, escritos por Maurício Cardoso e José de Sousa Miguel Lopes, são os exemplos mais contundentes dos usos, manipulações e disputas pela memória, pois esta seria a matriz dos mitos e ordenamentos políticos existentes tanto em Terra em Transe quanto em A Estratégia da Aranha. Estes dois textos representam trabalhos de pesquisa muito significativos, nos quais os objetos de estudo foram minuciosamente analisados pelos articulistas. Mas as possibilidades pedagógicas destas duas narrativas cinematográficas, que poderiam promover grandes discussões em sala de aula, não são aprofundadas pelos autores. Ainda no campo da memória, o livro nos traz três artigos sobre o mesmo filme: Narradores de Javé. Apesar do objeto comum, cada autor/a procurou enfatizar questões diferentes. Mas algumas leituras repetidas nos artigos sobre a patrimonialização da memória nos levam a identificar certas semelhanças entre os textos. O fato de existirem três artigos sobre Narradores de Javé no mesmo livro, nos faz perceber que o referido filme se tornou uma espécie de Blockbuster dos cursos vinculados às Ciências Humanas, sobretudo da História (do qual é praticamente impossível sair sem assisti-lo). Embora seja compreensível tamanha utilização deste filme, pois trata-se de rica obra artística, que propõe leituras multifacetadas sobre as disputas entre memória e a escrita da História. Mas sendo a indústria cinematográfica tão prolífica em criar e recriar narrativas cujo vetor é a memória, talvez devêssemos atentar para outros filmes além de Narradores de Javé, pois é dever dos pesquisadores do cinema trazer luz a novos objetos oriundos desta indústria, que possibilitem outras leituras sobre a História e a memória.

Outras temáticas de grande relevância para o ensino são abordadas no livro. No artigo intitulado “O Espetáculo Transformador” sobre Para Wong Foo, Obrigada por Tudo Julie Newmar, o autor Marcos Silva enxerga no filme a caracterização de circunstâncias de intolerância recorrentes no quotidiano da sociedade. Baseado em uma visita acidental de três drag queens a uma cidade pequena localizada no interior dos EUA, o filme aponta para a resistência na aceitação de indivíduos que expressam sua sexualidade de maneira a fugir dos padrões sociais vigentes. Tal obra cinematográfica representa uma grande oportunidade de trazer o debate sobre a diversidade e as relações de gênero para a sala de aula, conforme aponta o autor.

A diversidade de autores e objetos de estudo existentes no livro aponta para a grande gama de possibilidades metodológicas envolvendo a utilização de recursos audiovisuais em sala de aula, para além da simples ilustração de acontecimentos e caracterização de personagens históricos. O artigo “A História no Anfiteatro”, sobre Gladiador, foi um texto inteiramente construído com o intuito de afirmar as possibilidades de utilização de um filme baseado em fatos históricos em sala de aula. Através de suas representações sobre o império romano, o filme insere uma trama fictícia em uma história real, pautada por disputas políticas entre pai, imperador Marco Aurélio, e seu filho Cômodo. A autora Maria Luiza Corassin desenvolve eficiente análise do filme não tratando seus desvios históricos como grandes fragilidades da obra, trazendo inclusive discussões muito densas sobre como tratar a falta de fidedignidade histórica das narrativas cinematográficas em sala de aula. Corassim destrinchou o documento fílmico e utilizou outras fontes históricas como contraponto a ele, mostrando o quão consistente pode ser um trabalho em sala de aula baseado em um filme. O artigo “Opinião Pública e Imprensa”,sobre o filme de Costa Gavras O Quarto Poder, traz importantes considerações sobre a utilização da imprensa, seja escrita ou audiovisual, como fonte para o ensino. As disputas existentes entre as emissoras representadas no filme, por um furo de notícia, ajudam a levantar questionamentos a respeito dos telejornais e programas de TV sensacionalistas que existem no Brasil, dos quais a comunidade escolar em geral é expectadora.

Há no livro apenas um texto referente ao gênero documentário e sua linguagem cinematográfica. No documentário Pro Dia Nascer Feliz, a pesquisadora Regina Ilka Vieira Vasconcelos analisa a caracterização da Instituição pública escolar. Embates entre alunos, professores, comunidade, escola e governo perpassam a narrativa construída pelo diretor João Jardim, dando ênfase para a falta de perspectiva da educação pública brasileira. A autora optou por analisar o filme com o auxílio de outras fontes, sendo a principal delas uma entrevista feita com o diretor do documentário. A articulista, ao promover análise da entrevista, conseguiu identificar o lugar social do autor, entendendo assim seus pontos de vista impressos no filme.

Na última parte do livro há um artigo escrito por Jorge Nóvoa que destina-se a identificar as características artísticas e políticas dos filmes do cineasta soviético Sergei Eisenstein. Para isso o autor baseou seu estudo em biografia do cineasta, mostrando que suas preferências artísticas em muitos momentos representaram embargos, por parte do Estado Soviético, a sua obra. Nóvoa traça um perfil psicológico de Eisenstein, no qual suas inseguranças emocionais se mesclam com a efervescência criativa de suas produções no cenário cinematográfico soviético. Nóvoa, assim como Regina Ilka Vieira, nos mostra que compreender um autor, o período no qual produziu sua obra e sua inserção na sociedade retratada permite um entendimento muito mais significativo a respeito de suas escolhas (ou até mesmo a falta delas, no caso de Eisenstein).

O livro “Ver História: O Ensino Vai aos Filmes pode ao mesmo tempo encantar e frustrar o leitor. O encantamento fica por conta das investigações precisas feitas por seus autores de filmes que, produzidos em lugares e tempos diferentes, ajudam a decifrar certos processos históricos. Já a frustração poderá advir da falta de identidade que grande parte dos artigos inseridos neste livro tem com o ensino, ensino este evocado no título da obra. Apesar disso cabe ao leitor, sobretudo ao profissional da educação, apropriar-se deste livro com o intuito de identificar nele suas aptidões didáticas, sejam elas evidentes ou não.

Lara Rodrigues Pereira – Mestranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

Caroline Antunes Martins Alamino – Mestranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

 

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