Enunciação e discurso: tramas de sentidos – DI FANTI; BARBISAN (B-RED)

DI FANTI, Maria da Glória; BARBISAN, Leci Borges (orgs.). Enunciação e discurso: tramas de sentidos. São Paulo: Contexto, 2012. 196 p. Resenha de: MOTTA, Ana Raquel. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.8 n.1, São Paulo Jan./June 2013.

Enunciação e discurso: tramas de sentidos reúne doze artigos, de onze pesquisadores brasileiros e um francês, que abordam fenômenos da linguagem a partir de diferentes teorias do texto e do discurso. Trata-se, sem dúvida, mais de uma coletânea de artigos que de um livro organizado, no sentido de que não é fácil perceber uma linha que o defina com clareza, seja ela teórica ou temática. Essa característica o faz heterogêneo, não em termos de qualidade de cada artigo isolado, pois são todos textos interessantes e relevantes.

No entanto, ao invés de encarar essa característica como uma fragilidade, podemos ver aí uma proposta corajosa: o estabelecimento de uma ponte de diálogo entre teorias que, embora se dediquem a tentar explicar “o mesmo” fenômeno (com todas as ressalvas que pudermos fazer a esse “mesmo”, considerando que “o ponto de vista cria o objeto”), muitas vezes se ignoram mutuamente. Agrupar então, em um volume, artigos que abordam o discurso da perspectiva da análise da conversação ou da análise do discurso pecheutiana, da semiótica de origem francesa ou da teoria da argumentação na língua (dentre outras teorias), torna-se um manifesto importante no sentido de busca de contato entre diferentes linhas.

Seria possível argumentar que apenas colocar esses artigos lado a lado, compartilhando um ISBN, é pouco. Discordo. Primeiro porque geralmente não temos, em nossa área e em nosso país, o hábito de lermos produções de outras vertentes teóricas diferentes da que praticamos, ainda que se proponham a explicar um “mesmo” aspecto da linguagem. Segundo porque reunir uma coletânea de artigos num livro nunca é simplesmente colocá-los lado a lado. Trata-se, de algum modo, de propor parecerias, escolhas e debates, que é o que Enunciação e discurso: tramas do sentido faz.

O livro se divide em três seções, cada uma com quatro artigos. A primeira, Enunciação e discurso, engloba os artigos de Dominique Maingueneau, Diana Pessoa de Barros, José Luiz Fiorin e Marlene Teixeira. A segunda, Enunciação, discurso e produção de sentidos, contém os textos de José Gaston Hilgert, Aracy Ernst Pereira, Rosângela Hammes Rodrigues e Maria Cecília Souza-e-Silva. Por fim, a terceira, Enunciação, discurso e argumentação na língua, se compõe de um conjunto mais homogêneo e articulado, pois os três primeiros de seus quatro artigos tomam como fundamentação teórica a teoria da argumentação na língua (Anscombre e Ducrot) e seus atuais desdobramentos na teoria dos blocos semânticos (Ducrot e Carel). Os autores dessa seção são Leci Borges Barbisan (que também é coorganizadora e tradutora do artigo de Maingueneau), Telisa Furlanetto Graef, Tânia Maris de Azevedo e Valdir do Nascimento Flores. O artigo de Flores, que fecha o livro, é uma leitura atenta do Curso de linguística geral, de Saussure, destacando e analisando o tratamento dado à linguística da fala. Trata-se de um artigo de discussão teórica de base, que compõe harmoniosamente a terceira seção, embora não mencione diretamente Ducrot e a teoria da argumentação na língua.

Portanto, as duas primeiras seções, assim como seus títulos, deixam mais para o leitor a construção de sua coerência interna e suas possíveis parcerias e embates. Já a terceira apresenta-se como um pequeno dossiê mais amarrado entre si, quase um livro organizado dentro do livro maior. É a seção mais “comportada” do livro, não no sentido de falta de ousadia de seus artigos, mas no sentido da harmonia teórica e homogeneidade no uso de termos e conceitos entre seus artigos.

Não é dado ao leitor conhecer o projeto que motivou o livro, apenas inferimos alguma espécie de “encomenda” no início do artigo de Pereira (“Devo, porém, confessar que inicialmente várias questões me interpelaram: o que eu deveria ou poderia falar sobre texto e discurso?”(p.96)), mas não sabemos de onde veio esta demanda. Na Apresentação, as organizadoras assinalam, como ponto em comum entre os autores, o fato de todos se situarem nos estudos do discurso. Retomando o que ficou conhecido como “corte saussuriano” e refletindo sobre ele a partir das novas descobertas sobre Saussure (especificamente Escritos de linguística geral, publicado em 2002), as organizadoras afirmam que “as várias teorias do discurso têm como ponto em comum, o que permite colocá-las em um mesmo campo, a compreensão de que a língua e o emprego da língua são indissociáveis” (p.8). Após essa reflexão inicial, o texto da Apresentação se dedica a descrever cada um dos artigos, em parágrafos sucessivos, passando de um a outro sem relacioná-los (com a exceção já feita à terceira seção) e também sem explicitar o que levou a reuni-los em cada uma das três seções e a nomeá-las como foram nomeadas: a primeira sem acréscimos ao próprio título do livro – Enunciação e discurso -, e a segunda com o acréscimo de produção de sentidos – Enunciação, discurso e produção de sentidos.

Após a enumeração de um resumo de cada um dos artigos, as organizadoras concluem, a respeito especificamente dos textos que compõem o livro, que “são diferentes olhares voltados para um mesmo fim: explicar o funcionamento da linguagem em variadas materializações” (p. 10). Finalizando a Apresentação, convidam o leitor “a percorrer os labirintos da linguagem postos em cena” (p.10).

Todos os artigos compartilham uma maneira de fazer linguística que não se restringe ao sistema, e que inclui a situação de enunciação e a análise de textos efetivamente produzidos em contextos sócio-históricos localizados. Se fizermos, portanto, uma primeira separação geral entre pesquisas linguísticas que não levam em conta fatores sócio-históricos em suas análises e as que os levam, todos os doze artigos de Enunciação e discurso: tramas de sentidos estarão no segundo grupo. Teixeira chega a afirmar que “há uma espécie de consenso em torno da ideia de que o fechamento no sistema linguístico tem produzido o efeito equívoco de afastar o linguista de questões que (…) movimentam o debate contemporâneo e exigem uma tomada de posição e até mesmo uma intervenção” (p.63). Considero que a percepção e nominalização desse “consenso” (mesmo relativizado por “uma espécie de”) podem indicar a convicção da autora sobre a legitimidade deste segundo grupo.

Alguns dos artigos abordam justamente sua pertença à tendência acima mencionada e afirmam a legitimidade desse grupo. Isso acontece de maneira central no caso de Flores, Rodrigues e Barbisanou e, ainda, como estabelecimento da base teórica, no caso de Barros, Fiorin, Teixeira, Hilgert, Graeff e Azevedo. Outros não discutem essa questão, tomando sua pertença a uma linguística sócio-histórica como aspecto já estabelecido. É o caso de Maingueneau, Pereira e Souza-e-Silva. Partindo desse aspecto comum, o leitor que percorrer o livro todo poderá estabelecer pontos de aproximação e contato entre os artigos, bem como igualmente interessantes pontos de distanciamento entre eles.

Barros e Fiorin, por exemplo, compartilham o embasamento teórico na semiótica greimasiana, e alguns conceitos mobilizados pelos artigos de ambos são, por isso, expostos duas vezes no livro, como o caso da “enunciação enunciada” e o “enunciado enunciado”. O mesmo ocorre entre Teixeira e Souza-e-Silva quando expõem os pressupostos da ergologia, abordagem interdisciplinar da atividade de trabalho. Também há explanações teóricas semelhantes nos três primeiros artigos da terceira seção (Barbisan, Graeff e Azevedo), sobre as origens e fases do percurso teórico de Ducrot. Tais “repetições” parciais me pareceram relevantes, pois propiciam ao leitor entrar em contato com diferentes pontos de vista a respeito das teorias abordadas, podendo, inclusive, compará-los.

Outro tipo de relação também pode ser levantada no livro, quando diferentes autores, com referências teóricas diferentes, tomam “um mesmo” aspecto ou fenômeno da linguagem como objeto. É o caso, por exemplo, do quadro da enunciação proposto por Benveniste e retomado de modo diferente por Teixeira -que ressalta a importância de acolher a referência nesse quadro, argumentando ser possível “transitar com Benveniste para o âmbito do discurso socialmente situado” (p.62) – e por Barbisan -que destaca, do quadro de Benveniste, a noção de “forma vazia” atribuída aos dêiticos e propõe sua relativa ampliação a todos os signos. Hilbert, sem citar Benveniste, afirma algo semelhante. De modo análogo, as reflexões de Maingueneau mobilizam o conceito de gênero de Bakhtin para situá-lo frente à problemática da aforização e da autoria (duas formas de tensionar o gênero), diferentemente de Rodrigues, que também mobiliza, de forma central em seu artigo, o conceito de gênero, mas para propor que haja maior incorporação dos estudos de gênero pelos estudos linguísticos. Outras análises de “mesmo” objeto ou conceito, tomados de formas diferentes, poderiam ser igualmente postas em relevo aqui.

Indo das aproximações teóricas e passando pelas coincidências de objeto ou conceito, chegamos aos pontos de maior distanciamento entre os artigos deste livro, que fazem dele um volume heterogêneo, que abriga polêmicas, mesmo que elas não estejam explicitadas. Por isso, obviamente ficando longe de ser exaustiva, apenas destaco duas questões que perduram após percorrido todo o livro e que contribuem fortemente para que eu recomende sua leitura.

A primeira: Fiorin trata da argumentação como pertencente ao discurso, e não à língua. Já os três primeiros artigos da terceira seção falam da teoria da argumentação na língua, insistindo que o pressuposto teórico de que “a argumentação está na língua” (p.167) é de suma importância para toda a teoria de Ducrot.

A segunda: Hilbert trata do fenômeno da compreensão, “ou melhor, [d]a intercompreensão (…) [como] condição pressuposta para a eficiência comunicativa nas relações sociais” (p.77), chegando a afirmar que a situação de compreensão é como o ar que respiramos. Bastante diversa é a concepção de Pereira, que se filia a uma teoria (análise do discurso pecheutiana) “cuja proposta é a construção de interpretações que levam em conta a língua, em sua incompletude e equivocidade; o sujeito, em sua determinação pelo inconsciente e pela ideologia; e o sentido, em sua dimensão sócio-histórica” (p.96). Poderíamos, ainda, contrastar a noção de “intercompreensão”, exposta por Hilbert, com a de “interincompreensão regrada”, conceito de Maingueneau (1984) mobilizado no artigo de Souza-e-Silva.

Por fim, retomando a característica apontada como comum entre os autores reunidos em Enunciação e discurso: tramas do sentido, a de praticar uma linguística que leva em conta os aspectos sócio-históricos da enunciação e do discurso, cabe agora refletir sobre as consequências dessas aproximações e distanciamentos. Será que essas diferentes abordagens são marcas de diferenças quanto ao conceito de língua e de discurso? Parece-me que sim. São fortes o suficiente para que possamos questionar a pertença mútua a esse grupo de “linguistas da fala”? Penso que cabe a todos nós construir essa resposta. Acredito que as diferentes concepções têm muito a ensinar umas às outras, e que não devemos ter a pretensão de uma teoria única para abarcar toda a complexidade da linguagem. O confronto de abordagens leva ao refinamento das teorias e é isso que a leitura deste livro pode fazer. Por isso, é um tipo de publicação que vale a pena ler, e encarar os debates que, mesmo indiretamente, propõe.

Ana Raquel Motta – Pós-doutoranda da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP/FAPESP, São Paulo, São Paulo, Brasil; [email protected].

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