Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural – ASSMANN (VH)

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011, 453 p. QUELER, Jefferson José. Varia História. Belo Horizonte, v. 29, no. 49, Jan./ Abr. 2013.

Ainda existe memória no mundo contemporâneo? Qual o papel da cultura em sua formulação ao longo do tempo? Tais são alguns dos desafios enfrentados por Aleida Assmann em seu livro Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. A obra foi recentemente traduzida do alemão por pesquisadores ligados à Universidade Federal do Paraná e publicada pela Editora da Unicamp, em 2011. Trata-se de versão modificada de uma tese de livre-docência apresentada à Universidade de Heidelberg, em 1992. Professora da Universidade de Konstanz, com formação em língua e literatura inglesa e em egiptologia, Assmann foi bem-sucedida em ultrapassar as fronteiras de suas especialidades. Atualmente seu trabalho desfruta de renome internacional entre as mais diversas áreas do pensamento, e pode estimular novas abordagens sobre a questão da memória no Brasil.

O livro foi produzido em meio ao rompimento do “silêncio coletivo” sobre o Holocausto e o período nazista na Alemanha, em momento em que tais temáticas assumem lugar de destaque em debates públicos naquele país. Da mesma forma, apareceu na esteira da crescente digitalização da mídia, em situação em que os computadores contribuem para modificar as formas de se lidar com o passado.

Diante de tais transformações, Assmann questiona posições que apontam o fim da memória nas últimas décadas. O alvo privilegiado de suas críticas, destacado desde as primeiras páginas do texto, é o historiador francês Pierre Nora. A obra deste último, em especial seu Les lieux de mémoire, obteve grande repercussão internacional ao proclamar a subsunção da memória pela história. Com o advento da modernização, a primeira, pautada por discursos espontâneos e naturais, seria cada vez mais incorporada pela história, marcada por um discurso artificial e racionalizado. Diante dessas colocações, Assmann coloca as seguintes perguntas: “É assim mesmo? Não existe mais memória? E que tipo de memória não existiria mais?”.

O eixo de sua argumentação consiste em demonstrar que não há uma essência da memória. Não apenas os indivíduos lembram-se das coisas, como também grupos e as mais diversas coletividades. Ou seja, os modos de recordar são definidos culturalmente, variam ao longo do tempo e segundo a formação cultural em que são formulados. Desse modo, se há o desaparecimento da memória, como quer Nora, isso é verdade apenas na medida em que há o descrédito de algumas formas de recordar. A mnemotécnica, tão exaltada na Antiguidade, sobretudo por Cícero, proclamava o valor do saber de cor, habilidade procurada em líderes e governantes. Entretanto, tal uso da memória cai em descrédito nos dias atuais, resvalando até mesmo na esfera do patológico. Afinal, perguntam-se muitos, por que decorar o que se pode registrar por escrito? Segundo a autora, não se considera mais a memória como vestígio ou armazenamento, mas como uma massa plástica constantemente reformulada sob as diferentes perspectivas do presente. Um pouco de exagero, pois poderíamos pensar na coexistência de diversas formas de se conceber e usar a memória atualmente.

Porém, a relevância do trabalho não deve ser diminuída. Assmann recorre a uma erudição impressionante para sustentar seus pontos de vista. Dialoga com autores clássicos das mais diversas épocas e áreas do conhecimento: Platão, Aristóteles, Shakespeare, Wordsworth, Halbwachs, Benjamin, Rousseau, Freud – mérito seu, evidentemente, mas que deve ser igualmente atribuído à situação institucional que abriu espaço para a elaboração desse trabalho de fôlego. E, a partir de tais autores, constata não apenas os mais diversos usos da memória, como também as diferentes formas pelas quais ela foi pensada e teorizada. Assim, enquanto Cícero notabilizou-se por delinear a arte da mnemotécnica, Nietzsche destacou-se por conceber a memória enquanto elemento central na formação da identidade. Outros embates são traçados: a memória recompõe cenas do passado, ou as reconstrói? Erige-se a partir tão-somente de um esforço deliberado, ou também de forma involuntária? Forma-se apenas com lembranças, ou também a partir de esquecimentos?

Nos horizontes de Assmann, destaca-se a preocupação de considerar tanto a memória quanto a história como formas de recordação. Elas, a seu ver, “não precisam excluir-se nem recalcar-se mutuamente”. As ciências históricas são vislumbradas como uma memória de segunda ordem, uma memória das memórias, a qual integra aquilo que perdeu relação vital com o presente. É o processo de formação dos Estados modernos o pano de fundo para o desenvolvimento delas. O interesse pela identidade nacional aumentou a velocidade do movimento arquivista, com a formação de coleções reunindo traços de um passado esquecido. E, uma vez reconquistado o passado das mãos dos monges e da Igreja, tornou-se premente a crítica das fontes. Mesmo diante de tais esforços, a autora aponta que os modos de recordar o passado nunca se concentraram exclusivamente nas mãos de profissionais ou especialistas. A memória nunca foi enquadrada totalmente pela história.

Os modos de recordação, por vezes, reconhecem revivescências. Assmann indica como a memória cultural tem seu núcleo antropológico na memoração dos mortos. Segundo tabu universal, estes devem ser sepultados e levados ao repouso; caso contrário, vão incomodar o mundo dos vivos. A Antiguidade, por sua vez, insistirá na eternização de alguns nomes. Poetas, cantores e historiadores serão mobilizados nessa tarefa. Concepção que, após interlúdio durante a Idade Média, será retomada no Renascimento. Casos como o memorial do Holocausto, por outro lado, marcariam o fim de quaisquer retóricas da Fama, voltando à forma original da lembrança histórica: a memoria dos mortos. Segundo a autora, contrapondo-se a Nora, a cobertura da Europa com locais de recordação da guerra não tem nada a ver com a modernização, mas com o regime totalitário e o genocídio planejado dos nazistas.

O livro de Assmann é publicado no Brasil em momento em que se instala uma Comissão da Verdade destinada a investigar, sem a prerrogativa da punição, crimes e abusos contra os direitos humanos cometidos durante a ditadura militar. Trata-se de situação bem distinta do contexto de produção da obra. Afinal, muitos dos criminosos nazistas foram julgados e condenados tão logo terminou a Segunda Guerra Mundial. Em seguida, é bem verdade, seguiu-se longo silêncio sobre o Holocausto entre a sociedade alemã. E a obra de Assmann foi construída justamente em conjuntura em que tal negação do passado era revista. No caso brasileiro, há que se perguntar se as diferentes formas de recordação presentes no debate público, tanto a memória quanto a história, serão capazes de iluminar os caminhos tomados pela Comissão da Verdade: suas formas de rememorar o passado talvez possam ser relativizadas a partir do trabalho de Assmann. Portanto, o livro em questão é de interesse não apenas para historiadores e cientistas sociais, como também para qualquer público interessado nas problemáticas colocadas pela memória.

Jefferson José Queler – Professor do Departamento de História. Universidade Federal de Ouro Preto. [email protected].

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