Razão e Emoção em Kant – BORGES (D)

BORGES, M. de L. Razão e Emoção em Kant. Coleção Dissertatio de Filosofia. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária, 2012. Resenha de: SANTOS, Robinson dos. Dissertatio, Pelotas, v.38, 2013.

Qual é o lugar das emoções e dos sentimentos na filosofia prática kantiana? Sentimentos, afetos, paixões e emoções são uma e mesma coisa? Podem ser cultivados enquanto tais? De que modo podem obstruir ou facilitar o aperfeiçoamento moral do homem? Para estas e outras questões em torno da relação entre razão e emoção, o livro de Maria de Lourdes Borges, professora e pesquisadora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, oferece algumas respostas e perspectivas que merecem ser consideradas quando se pretende analisar o tema.

Quanto à estrutura, o livro está dividido em duas partes. A primeira parte, intitulada razão, é composta por três capítulos, a saber, I. A obtenção e validade do princípio moral; II. Teoria da ação em Kant e III. Psicologia empírica, antropologia e metafísica dos costumes em Kant. A segunda parte, intitula-se emoções e moralidade e reúne os outros cinco capítulos do livro: IV. Simpatia e móbeis morais; V. Simpatia e outras formas de amor; VI. A estetização da moralidade; VII. As emoções no mapa kantiano da alma; VIII.

Fisiologia e controle dos afetos. Além destes capítulos, um texto breve fecha o livro, a título de conclusão. Embora a quantidade de tópicos ou capítulos da segunda parte possa sugerir um desequilíbrio no tratamento dado à primeira e segunda partes, tal impressão é desfeita quando se comparam as partes pelo respectivo número de páginas a elas dedicadas.

A autora trata, na primeira parte, de questões relacionadas à fundamentação da filosofia prática kantiana, abordando particularmente no primeiro texto o tema da fundamentação do princípio supremo da moralidade. As etapas mais importantes e os respectivos conceitos fundamentais da Fundamentação da Metafísica dos Costumes são revisitados e a análise culmina com uma abordagem de alguns problemas relacionados com a terceira Seção da Fundamentação e com a doutrina do fato da razão apresentada por Kant na segunda crítica. Borges, para além das polêmicas em torno do problema da dedução na Fundamentação e sua relação com a segunda crítica, parece inclinada a uma leitura que não privilegia a suposta contradição entre as obras.

A teoria kantiana da ação é o tema abordado no segundo capítulo. A pertinência da análise da mesma reside, segundo a autora, no fato de que sua compreensão é fundamental para entendermos a relação entre a razão prática e os sentimentos e emoções. Partindo da caracterização e respectiva distinção entre espontaneidade, liberdade prática e liberdade transcendental, bem como da definição de termos como arbitrium brutum e arbitrium liberum, Borges aproxima-se progressivamente do seu tema fundamental (as emoções) na parte central deste capítulo, que trata dos motivos e móbeis e do tema da fraqueza da vontade. Trata-se aí de estabelecer a relação das inclinações (móbeis sensíveis) com o valor moral da ação. Kant é enfático tanto na Fundamentação, quanto na segunda Crítica sobre as ações motivadas por inclinações. De fato, na KpV1 afirma ele que “O essencial de todo o valor moral das ações depende de que a lei determine a vontade imediatamente” (p.114). Destaca-se, outrossim, neste contexto, a apreciação da chamada “tese da incorporação” estabelecida por Henry Allison e as objeções levantadas a ele por Marcia Baron. A autora finaliza este capítulo com a análise do conceito de máximas considerando as interpretações de Onora O’Neill e Henry Allison. As interpretações de Christine Korsgaard e Barbara Hermann são retomadas para fazer frente às críticas quanto ao aspecto da universalização/contradição de máximas por um lado e, por outro, para rejeitar a crítica de cegueira moral da ética de Kant e sua suposta incapacidade para o julgamento de situações particulares.

A passagem da filosofia prática ancorada em princípios a priori para a Metafísica dos Costumes e para a Antropologia prática é a questão debatida no terceiro capítulo. Borges quer mostrar nesta parte do trabalho três momentos da relação entre psicologia empírica, antropologia e metafísica dos costumes na obra de Kant. O primeiro momento destaca a posição de Kant seguindo Baumgarten quando admite a psicologia empírica como parte da metafísica. O segundo momento diz respeito ao total isolamento da psicologia empírica e da antropologia no caso da Fundamentação. No terceiro momento é destacado que, a partir da Antropologia de um ponto de vista pragmático e da Metafísica dos Costumes, uma concepção de natureza humana faz parte da metafísica da moral. O fito de tal abordagem consiste em demonstrar que a despeito de Kant separar claramente o âmbito empírico do racional, o plano da fundamentação do plano da aplicação, ele não ignora e tampouco exclui de suas considerações os problemas e peculiaridades postos pela antropologia. Com efeito, nota a autora que “uma teoria moral, ainda que possa obter seu princípio moral supremo sem considerações sobre a natureza humana, não pode deixar de indagar sobre a aplicabilidade destes princípios aos seres racionais sensíveis” (p. 69). Assumindo a tese, postulada de modo mais explícito por Robert Louden em Kant’s Impure Ethics (2000) de que a teoria moral de Kant está assentada sobre uma parte pura e uma parte impura, Borges procura identificar as obras em que sobretudo a parte impura é apresentada, na qual os elementos particulares da natureza humana são tematizados e relacionados por Kant. Esta análise visa colher informações que possam lançar luz sobre a questão das emoções e dos sentimentos. “Na parte impura da ética, portanto, alguns sentimentos que não possuíam valor moral na Fundamentação, passam a tê-lo” (p. 86). Ainda neste contexto, a autora considera que, “A parte pura da ética deve, portanto, ser complementada pelas condições de validade desta para seres humanos, as quais só podem ser encontradas numa doutrina da sensibilidade moral” (p.90). Isso não significa aceitar que Kant estaria mais próximo dos empiristas do que gostaria. Pelo contrário, observa a autora, mesmo reconhecendo a pertinência do sensível, a instância que permite identificar o moralmente correto é a razão e não o sentimento.

A segunda parte é dedicada à análise da relação entre as emoções e a parte pura da filosofia prática de Kant. Os sentimentos são objeto de investigação, assim como a questão de se eles desempenham algum papel no âmbito da moralidade. Na abertura do capítulo IV a autora lança a pergunta: “Pode a simpatia cumprir algum papel na moralidade kantiana?” (p. 93). Para responder a esta questão ela analisa o percurso de Kant desde a Fundamentação até a Doutrina da Virtude e, na verdade, este tema é tratado também no capítulo V. Sentimentos como a simpatia podem auxiliar na realização de fins de virtudes. Incluem-se nesta análise também as definições que Kant apresentou sobre o amor. Na Doutrina da Virtude Kant refere-se ao dever de amor aos seres humanos quando aborda, nos deveres de virtude,  nossos deveres em relação aos outros. Beneficência, gratidão e simpatia são deveres que concorrem para a efetivação da virtude e são sentimentos que devem ser cultivados. A simpatia é tomada como exemplo para explicitar a possibilidade de tal cultivo. “A simpatia, que não é um afeto, mas um sentimento que pode ser modificado e cultivado pela razão, relaciona-se com o amor que pode ser um efeito da prática de boas ações. Ela será, assim, efetiva e útil na realização de beneficência, ao invés de ser uma mera condição de prazer ou dor, que afeta as pessoas cegamente, como uma doença contagiosa” (p. 120).

Os sentimentos são analisados em seguida, na perspectiva de condições estéticas para a receptividade do dever (cap. VI). Para tal, Borges toma o sentimento de prazer e desprazer em sua relação com a moralidade, considerando o §59 da terceira crítica (Crítica da Faculdade do Juízo) e a relação entre bondade e beleza. Em seguida, examina o sentimento moral na Metafísica dos Costumes e as considerações feitas por Kant acerca da relação entre o domínio do gosto e o domínio da virtude na Antropologia. A autora visa, com isso, demonstrar que existem aspectos estéticos na moralidade que efetivamente contrastam com o suposto formalismo da Fundamentação e da segunda crítica. Teria Kant mudado de rota nos seus textos tardios ou trata-se apenas de considerações diferentes de acordo com o conteúdo das respectivas obras? Para esta pergunta uma resposta definitiva ou categórica não é possível, admite a autora. No entanto, é digno de nota que se nos escritos dos anos oitenta havia uma espécie de rejeição ou condenação dos sentimentos de prazer e desprazer no campo moral, o quadro se modifica nos escritos dos anos noventa, na medida em que a autora observa que para Kant, se não os tivéssemos “estaríamos mortos moralmente” (p. 138).

No capítulo VII a autora apresenta o que considera um modelo para as emoções em Kant. Na medida em que um controle absoluto por parte da razão sobre as inclinações não é concebível, “as paixões e afetos são considerados doenças da mente (Krankheit des Gemüts)(…), excluem a soberania da razão; os afetos tornam a reflexão impossível, enquanto as paixões são ditas tumores malignos para a razão pura prática” (p. 139).

Tomando posição diante de outros intérpretes do tema das emoções na filosofia de Kant, Borges advoga que “o erro dos comentadores (…) é considerar que a emoção em Kant possui apenas um modelo e um fenômeno referente, quando de fato refere-se a uma multiplicidade de diferentes fenômenos, que devem ser explicados de formas diversas” (p. 153).

O capítulo VIII tem como objeto a possibilidade de controle dos afetos, dentro da teoria kantiana das emoções. A autora pretende demonstrar que o objetivo kantiano assemelha-se fundamentalmente ao dos estoicos no sentido de extirpar as paixões em busca da apathia. Este ideal, todavia, está diretamente relacionado com o dom natural das paixões moderadas e não é possível meramente por meio de uma decisão racional. Sua hipótese é de que “a teoria kantiana dos afetos está relacionada com a ideia de estados excitados presentes na fisiologia dos séculos XVII e XVIII, os quais tornariam os afetos difíceis de serem controlados pelo poder da vontade” (p. 156). A simpatia parece desempenhar neste contexto também um papel. No entanto Borges admite que a possibilidade de cultivo da simpatia não pode ser superestimada como possibilidade de controle das emoções em geral. “Ainda que seja verdade que Kant, na Religião, afirme que por si só as inclinações não sejam ruins, a Antropologia nos fornece uma visão negativa dos afetos e paixões, como doenças da mente, o que torna temerário afirmar que devemos celebrálas” (p. 167).

O tema das emoções em Kant inspira cuidados. Se, por um lado, a simpatia é destacada como elemento importante da vida moral, é preciso lembrar que isso é feito por Kant na Doutrina da Virtude, especificamente com vistas ao processo de aperfeiçoamento moral do homem sensível. Isso não pode ser considerado ou aplicado ao mesmo tempo para todo e qualquer tipo de afeto. As emoções não são uma fonte de conhecimento moral e não servem de critério para a tomada de decisões sobre o que é o correto a ser feito. Isso se aplica inclusive à própria simpatia. Borges reconhece que não se pode negar que “o aspecto fisiológico dos afetos e os efeitos perniciosos das paixões realmente instalam um abismo entre a razão prática e as emoções” (p.

169). Isso não elimina, todavia, a permanente tensão que ambos exercem um sobre o outro. Ao fim e ao cabo, um controle das emoções meramente por meio da razão, embora também seja útil e necessário, não é, contudo, suficiente. Cabe ressaltar que devem ser tomadas outras precauções, corporais e fisiológicas para o abrandamento dos afetos intensos. Como a autora lembra, o próprio Kant era mais favorável a um emprego de “altas doses” de um poderoso calmante “do que confiar no poder da razão” (p. 170).

O texto que Borges traz ao público permite uma incursão qualificada sobre o tema em Kant e mostra todas as credenciais de uma investigação que foi desenvolvida ao longo de mais de uma década de estudos e por meio de conferências, de debates e interlocuções com os pares. Isso evidencia a relevância e a pertinência de uma obra que explora um tema, em suas diversas facetas, que sem dúvida colabora para o preenchimento de uma lacuna significativa nas pesquisas sobre Kant no cenário brasileiro.

Notas

1 Sigo aqui a tradução da Kritik der praktischen Vernunft (KpV) de Valério Rohden, publicada pela Martins Fontes (3ª edição), de 2011.

Referências

BORGES, M. de L. Razão e Emoção em Kant. Coleção Dissertatio de Filosofia. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária, 2012. (184 p.)

KANT, I. Crítica da razão prática. Tradução de Valério Rohden. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

Robinson dos Santos – Universidade Federal de Pelotas.

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