Ensaio filosófico sobre a dignidade: antropologia e ética das biotecnologias – BAERTSCHI (C)

BAERTSCHI, Bernard. Ensaio filosófico sobre a dignidade: antropologia e ética das biotecnologias. Trad. Paula Silvia Rodrigues Coelho da Silva. São Paulo: Loyola, 2009. Resenha de: WEBBER, Marcos André. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 163-166, maio/ago, 2013.

Bernard Baertschi é professor e pesquisador no Departamento de Filosofia da Universidade de Genebra. Ao lado da pesquisa sobre a filosofia francesa dos séculos XVIII e XIX, Baertschi possui muitos livros e artigos publicados com o foco voltado ao pensamento ético, especialmente no que se refere aos fundamentos da ética, à ética das biotecnologias e à neuroética.

Atualmente, é titular da disciplina de Bioética no Instituto de Ética Biomédica e do Departamento de Filosofia da Universidade de Genebra.

Na obra Ensaio filosófico sobre a dignidade – antropologia e ética das biotecnologias, o autor sustenta fundamentalmente a tese de que “não somente os dados metafísicos têm um impacto sobre a moral, mas também que este impacto é profundo: concerne aos próprios fundamentos da ética”. (p. 21).

Por consequência, para saber como pensar e agir, precisamos antes saber quem nós somos, uma vez que a ética está intimamente ligada ao conhecimento que temos de nós mesmos. Nessa perspectiva, Baertschi assume uma posição naturalista, no sentido de que o discurso moral deve ser justificado por uma teoria da natureza humana.

O livro encontra-se dividido em seis capítulos. Inicialmente, e a fim de explicitar a importância da metafísica como fundamento da ética, o autor analisa a relação da ética com a metafísica e o normativo. A seguir argumenta acerca dos motivos pelos quais as ciências, e em especial a teoria da evolução, são insuficientes para substituir a metafísica como fundamento da ética. Posteriormente, Baertschi explica a distinção entre os valores morais e os valores ontológicos e por que estes se apresentam como base para a concepção de dignidade. Já nos capítulos finais, o autor debruça-se sobre algumas das mais importantes questões das éticas das biotecnologias, como a reprodução, a engenharia genética e os xenotransplantes, sob a luz das considerações metafísicas desenvolvidas nos capítulos precedentes.

O início do primeiro capítulo do livro tem como objeto a controvérsia entre John Rawls a Michael Sandel acerca do eu desimpedido, cujo intuito é o de evidenciar o impacto do metafísico sobre o normativo, e assim justificar por que o dever-ser depende do ser. Embora a natureza apresente-se ao homem ao mesmo tempo como um fato e uma norma, elas não estão no mesmo patamar: o fato determina a norma, pois a moral tem seu fundamento na metafísica. Nas palavras do autor, “não somente toda conclusão normativa apoia-se num momento ou no outro em uma premissa metafísica, mas também toda conclusão normativa se apoia em última instância em uma metafísica pura”. (p. 67). A própria posição original de Rawls já implica uma concepção metafísica do homem, que, no caso, é o sujeito liberal.

No segundo capítulo, o autor aborda a metafísica de Hans Jonas e apresenta argumentos para demonstrar por que o conhecimento científico, e especialmente a teoria da evolução, são insuficientes para elaborar uma concepção da natureza humana. Muito embora as ciências tenham proporcionado um grande avanço em relação à produção de conhecimento nos seus diversos campos de atuação, elas deixaram de lado a noção de finalidade. Por consequência, as teorias evolutivas nada dizem acerca dos fins que o homem deve perseguir, tornando-se inaptas a fornecer justificativas adequadas para o tema investigado, visto ser esta uma das funções primordiais do conceito metafísico desenvolvido ao longo da obra. O homem deve ser visto como um ser teleológico que tem como função alcançar o seu fim, o que nada mais é do que realizar a sua natureza.

A seguir ganha espaço a análise da relação entre o axiológico e o normativo. Ao passo que a prioridade da axiologia é uma tese comum à moral aristotélica e às morais utilitaristas; tal posição encontra oposição no deontologismo, que coloca as normas na origem dos valores. Baertschi, no entanto, busca solucionar o problema trazendo um elemento novo, ao que denomina de valor ontológico. Não se trata de valores morais, mas de propriedades intrínsecas aos seres humanos sobre os quais os valores morais se assentam: “São valores que têm um impacto moral, pois a ética leva eminentemente em conta o valor ontológico dos seres.” (p. 141). Afinal, ser humano significa cumprir sua natureza, e os fins estabelecidos por esta natureza dependem exatamente daquilo que o homem é, ou seja, dos seus valores ontológicos e da sua posição na escala dos seres.

No quarto capítulo, o autor passa a analisar o conceito de pessoa e a importância que o valor ontológico exerce sobre o que se deve compreender por dignidade. Para tanto, Baertschi revisita o pensamento de Aristóteles, Boécio, Tomás de Aquino e Kant, com o objetivo de evidenciar que não existe ética sem uma teoria da natureza humana (p. 169), a qual tem fundamental importância para a determinação do que seja a dignidade.

Além disso, Baertschi diferencia dois sentidos principais para a dignidade em sua dimensão moral. O primeiro sentido é pessoal: está ligado ao respeito a si e à conservação da autoestima. O segundo é impessoal: consiste no fato de um indivíduo ser uma pessoa, e como tal deve ser tratado. Tomando o primeiro sentido, é possível afirmar que uma pessoa pode perder a sua dignidade, como no caso de uma mentira que leve à negação da dignidade humana, como já afirmava Kant. A dignidade no segundo sentido, porém, não pode ser perdida, pois está ligada à natureza do ser humano. Nesse contexto, pode-se identificar a dignidade com o valor intrínseco que cada um possui, decorrente da própria natureza humana.

Os capítulos cinco e seis, agora amparados também em Dennett e Engelhardt, são dedicados ao estudo da forma pela qual as biotecnologias podem ser utilizadas, sem que a natureza humana e os seus fins sejam desrespeitados. Uma vez que a natureza mostra ao homem o que ele é e os fins que deve buscar, as biotecnologias precisam não só respeitar a natureza humana, mas não devem oferecer qualquer risco de mudá-la. Isso significa respeitar a dignidade da pessoa humana. A amplitude do objeto de análise de Baertschi parte do respeito à dignidade em relação a certos temas controvertidos, como a reprodução medicamente assistida (RMA), a clonagem, a engenharia genética, os xenotransplantes e o uso de animais para experiências, estendendo-se a situações que, embora aceitas pacificamente pela sociedade, podem ter os mesmos princípios rejeitados nos casos antes citados, como por exemplo certas vacinas que agem diretamente no sistema imunológico. Se estas vacinas se comportam como uma espécie de aperfeiçoamento do ser humano, em que diferem da engenharia genética de aperfeiçoamento, no tocante ao respeito à dignidade do ser humano? Outro importante tema abordado é a identidade pessoal. Uma vez que as biotecnologias podem acarretar profundas transformações genéticas no homem, o autor desenvolve uma análise do impacto que a evolução tecnológica pode ter sobre a identidade do ser humano. Afinal, podem as transformações genéticas provocar alterações na natureza humana? E como não confundir o pessoal com o humano? O homem perde a humanidade se receber órgãos transplantados de algum animal? Entre outras, essas são algumas das questões trabalhas nos capítulos finais.

Em sua conclusão, o autor destaca a pertinência da tese defendida ao longo do livro: “Toda ética tem necessariamente fundamento em uma metafísica que compreende uma antropologia filosófica e uma teoria da pessoa, à qual está associado um estatuto, quer dizer, uma dignidade.” (p.313). Ressalta ainda Baertschi que a dignidade dos seres depende do seu valor ontológico, e uma dignidade concebida de tal forma não é ameaçada pela utilização das biotecnologias, ao menos na persecução de bens como a saúde e a reprodução. Dessa forma, o homem deve pensar e agir como mortal no campo da ética, e conhecer sua natureza o ajuda a saber como agir, o que exige amparar-se na metafísica.

Ao mesmo tempo em que analisa o impacto que as biotecnologias produzem na vida humana, Baertschi oferece uma ampla análise das consequências que a evolução tecnológica pode trazer para a dignidade dos seres, tanto humanos quanto animais. Nesse sentido, o autor demonstra uma grande preocupação em refutar os argumentos contrários às teses que defende na obra, o que muito enriquece o seu trabalho, visto que os argumentos sustentados são justificados frente às posições divergentes.

Enfim, no Ensaio filosófico sobre a dignidade – antropologia e ética das biotecnologias, Baertschi tem o mérito de tratar de maneira clara temas que não só se apresentam controversos, mas que exigem um novo questionamento acerca da natureza do ser humano e da influência que a metafísica exerce sobre a fundamentação do pensamento ético. Trata-se de uma obra que fornece importantes contribuições, não só para o estudo das consequências que o uso das biotecnologias podem trazer para a esfera moral do comportamento humano, mas para uma melhor compreensão dos fundamentos da própria ética.

Marcos André Webber –  Mestrando no PPGFil – Mestrado em Ética. Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul – RS – Brasil. E-mail: [email protected]

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