2014
Boletim Historiar. São Cristóvão, n.6, 2014.
Artigos
- A historiografia do movimento operário brasileiro na década de 1980: uma análise política
- Angelita Cristina Maquera
- O nascimento da prisão em Londrina de 1930 a 1955.
- Ingrid Carolina Ávila
- Pelo poder de “fazer ver” e “fazer crer”: as relações Brasil-Estados Unidos a partir do jornal Última Hora (1951-1954
- Natália Abreu Damasceno
- Música, neofascismos e a Nova História Política: Uma análise sobre a presença do Hate Rock no Brasil (1990-2010)
- Pedro Carvalho Oliveira
- Wikileaks, Snowden e a Nova História Política
- Bruce Moreno Moraes dos Santos, Letícia Augustin
Resenhas
- Um quiosque na ponta extrema do Kamchatcka
- Sabrina Fernandes Melo
Publicado: 2014-12-31
Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais. São Cristóvão, v.14, n. 3, 2014.
Dossiê | Educação a Distância
Dossiê | Educação a Distância
- Políticas de formação de professores na modalidade da educação a distância no Brasil
- Jussara Borges da Silva, Claudio Pinto Nunes
- Comparação entre as características e percepções de alunos em curso e dos evadidos de um curso técnico a distância do IF Fluminense
- Márcia Gorett Ribeiro Grossi, Renata Cristina Nunes
- Diferenças no contexto de trabalho de professores e tutores na educação a distância:
- Camila Bruning, Luciana Godri, André Luis Marra do Amorim
- Competências pedagógicas e socioafetivas de tutores a distância na percepção de alunos
- André Tenório, Lucinere de Souza Quintanilha Carvalho, Ivonete Pereira Vital, Thaís Tenório
- Processo seletivo de tutores da UAB da UFAL: aspectos para uma seleção criteriosa e significativa
- Rosana Sarita de Araujo
- Análise de descritores comuns no material didático para a EAD: os materiais impressos do curso de Pedagogia da UAB
- Fernando Silvio Cavalcante Pimentel, Cleide Jane de Sá Araújo Costa
- O designer instrucional na modalidade de ensino a distância (EAD): concepções e reflexões
- Luciana Machado Marx
- Custos de material didático no ensino a distância: uma análise comparativa com os parâmetros de fomento do governo federal
- Marcia Athayde Moreira, Thatiana Marques dos Santos, Carolina Moreira Pereira, Mariana da Silva Pinto, Vanessa Yuri Miura, Uyara de Salles Gomide
Artigos Gerais
- A produção audiovisual como instrumento metodológico da aprendizagem
- Laiany Rose Souza Santos, Sayonara do Espirito Santos Almeida
- O uso do laboratório escolar de informática (LEI) e das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) no cotidiano escolar: o caso do 1º Ano da Escola de Ensino Médio Monsenhor Aguiar em Tianguá-CE
- Antonio Daniel Alves Carvalho, Marcelle Helena Silva de Carvalho
Bibliografia Comentada
- Bibliografia Comentada em Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais
- Luis Paulo Leopoldo Mercado
Publicado: 2014-12-30
Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais. São Cristóvão, v.14, n.2, 2014.
Culturas Digitais e Educação
Editorial: apresentação do dossiê Culturas Digitais e Educação
Culturas Digitais e Educação
- Questões extemporâneas das culturas digitais em educação
- Antônio Vital Menezes de Souza, José Mário Aleluia Oliveira
- Ser professor em tempos de cultura digital: marcas de permanência e indícios de mudança
- Luciana Silva dos Santos
- Entre a crítica ao progresso e as contribuições da tecnologia na sociedade atual: uma discussão da relação entre TIC, educação e o trabalho docente
- Rafael Alexandre Belo
- Webgincana como estratégia de ensino aprendizagem no ensino superior
- Marily Oliveira Barbosa, Arlete Rodrigues dos Santos, Luís Paulo Leopoldo Mercado
- Características da educação a distância no ensino superior
- Janderson Jason Barbosa Aguiar
- Curso de pós-graduação a distância da Universidade Federal de Juiz de Fora: tecnologias da informação e comunicação no ensino fundamental e mídias na educação
- Neuza Maria de Oliveira Marsicano, Márcia Helena Siervi Manso
- Internet e aprendizagens: olhares de jovens graduandos de Matemática
- Denise Maria Soares Lima, Carlos Ângelo de Meneses Sousa, Marcelo Nicomedes dos Reis dos Reis Silva Fillho
- Como enfrentar o racismo em escolas públicas: conquistas e desafios
- Geraldo Eustáquio Moreira, Luiz Eduardo Siqueira de Almeida
- Análise da evolução da educação com base no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica com a colaboração do PROUCA no estado de Sergipe
- Fabio Gomes Rocha, Rosimeri Ferraz Sabino, Jean Clemisson Santos Rosa
Bibliografia Comentada
- Bibliografia Comentada em Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais
- Luís Paulo Leopoldo Mercado
Publicado: 2014-12-20
Os 50 Anos do Golpe Civil-Militar / Crítica Histórica / 2014
As produções sobre o golpe civil-militar de 1964 e seus desdobramentos são muitas e com variadas temáticas. Livros de memória, filmes e documentários, pesquisas acadêmicas, enfim, uma gama de reflexões sobre esse passado recente da história do Brasil, que ainda suscita calorosas polêmicas. Da segunda metade da década de 1970 em diante, a maior parte das interpretações puseram em lados opostos Estado e sociedade. O primeiro, representante das forças opressoras, fez uso de mecanismos de manipulação e repressão, subjugando a segunda, que sofreu as consequências duras do autoritarismo estatal; mas que, mesmo com todos os percalços, não hesitou em resistir.
As abordagens que priorizam o estudo da repressão política e / ou dos focos de resistência ao Estado ditatorial possuem um papel social importantíssimo de denunciar os atos de violência e tortura, sobretudo num país como o Brasil onde o processo de redemocratização se deslanchou, em grande parte, através de acordos e negociações e não resultou em punições a torturadores. No entanto, a despeito da enorme relevância dessas interpretações, um aspecto foi, há tempos, silenciado: o golpe de 1964 e a ditadura civil-militar foram construções sociais e não simples invenções de cima para baixo ou de fora para dentro. Isto significa que o Estado é parte da sociedade e, muitas das vezes, práticas autoritárias, como a intervenção militar, foram reivindicadas por significativos setores sociais. Um passado incômodo para uma sociedade que pretende legitimar uma identidade de nação democrática. Acreditamos ser necessário enfrentar esses fantasmas até para evitar possíveis assombros e levantar debates em torno do comportamento da sociedade frente aos arbítrios praticados pelo Estado não apenas no momento da ditadura, mas sobretudo em momentos de democracia como o que vivemos atualmente.
Neste sentido, a edição da Revista Crítica Histórica nº 10 apresenta o dossiê Entre história e memória no cinquentenário do golpe de 1964 com o objetivo de fomentar o debate em torno dos 50 anos do golpe civil-militar e do regime autoritário inaugurado a partir deste evento histórico. Ao organizar o dossiê, pretendi reunir diferentes abordagens sobre temáticas variadas, que tratam do sistema repressor e da resistência, mas também, e sobretudo, da relação complexa entre Estado e sociedade, entre autoritarismo e democracia.
Abrindo o dossiê, o artigo de Rodrigo José da Costa, “Por uma História do Golpe Civil e Militar em Alagoas”, faz um balanço do que foi produzido em 2004, nos 40 anos do golpe, e no ano de 2014, nos 50 anos, com ênfase nas disputas pela memória, sobretudo na imprensa alagoana. Também analisa produções acadêmicas e memorialísticas de Alagoas e inventaria acerca de fontes históricas surgidas nos últimos anos. O autor é doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Seguindo, Carla Darlem Silva dos Reis, mestranda em História da Universidade Federal de Sergipe (UFS), discute a mudança de posicionamento político do periódico Gazeta de Sergipe após o golpe de 1964 no texto intitulado “Gazeta de Sergipe: ‘Gazeta Combativa’? (1959-1968)”. No terceiro artigo, intitulado “Ditadura no Paraná: ‘Foi na lavoura que a subversão encontrou resistência’”, Juliana Valentini, mestre em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), trata das formas de organização e posicionamento político de setores agrários do Paraná frente ao governo João Goulart e ao golpe de 1964. Logo depois, Ueber José de Oliveira, professor adjunto do Departamento de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), procura compreender, no artigo “A Fórmula para o caos: o golpe de 64 e a conspiração contra o governador Francisco Lacerda de Aguiar, no Espírito Santo (1964-1966)”, o posicionamento dos principais atores individuais e coletivos da realidade capixaba diante do golpe de 1964, com ênfase na ação de forças políticas oposicionistas que pretendiam destituir o então governador do Espírito Santo Francisco Lacerda de Aguiar. Professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Marylu Alves de Oliveira é autora do próximo artigo, intitulado “Esteja preso, comunista! Breves considerações sobre práticas anticomunistas no pós-golpe civil-militar de 1964 no Piauí”, que tem como objetivo apresentar as principais práticas anticomunistas após o golpe civil-militar de 1964 no Piauí. Com o título “O Serviço Nacional de Informações (SNI): o sindicalismo em Pernambuco como alvo (1964- 1967)”, o artigo de Dmitri Felix do Nascimento, doutorando pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (UL), analisa a constituição do aparato repressor da ditadura militar a partir da criação do Serviço Nacional de Informações (SNI) e a perseguição ao Conselho Sindical dos Trabalhadores (CONSINTRA) em Pernambuco. O sétimo artigo do dossiê, “Militares de esquerda e o regime militar: ‘Marechal da Legalidade’ na defesa da democracia”, foi escrito por Karla Guilherme Carloni, professora adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). A autora aborda a atuação política do marechal Henrique Teixeira Lott durante a crise de 1961 e o regime militar, destacando sua postura de esquerda e a perseguição a ele liderada pelos mentores da ditadura. Logo depois, Andréa Lemos, doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF), apresenta o artigo chamado “A Editora Brasiliense e a oposição à ditadura civil-militar brasileira”, destacando os principais aspectos da construção da linha editorial da Editora Brasiliense e as ações políticas de seus editores frente à ditadura civil-militar. No nono texto do dossiê intitulado “Friedrich Hayek e os liberais brasileiros na transição democrática”, o doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Gabriel Onofre analisa as ideias do filósofo e economista austríaco Friedrich Hayek sobre política, economia e sociedade que serviram de referência para os grupos (neo)liberais brasileiros durante a transição democrática. Por fim, fechando o dossiê, Cleidson Carlos Santos Vieira, mestrando em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), escreve o artigo “Anistia de 1979, justiça de transição e Comissões da Verdade: apontamentos e limites”, o qual analisa o processo de transição democrática e suas limitações institucionais e jurídicas.
Além do dossiê, a seção de fluxo contínuo traz quatro artigos com temas diferenciados sobre história política do Brasil republicado. O primeiro, intitulado “O negro nos meandros dos debates parlamentares da Primeira República (1889-1894)”, foi escrito por Talita Teixeira, mestranda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e tem como objetivo analisar a imagem de nação almejada por autoridades políticas após a Proclamação da República, identificando o papel destinado ao negro. Sob o título “O carnaval carioca oficializado: a aliança entre sambistas e prefeitura do Rio de Janeiro (1932-1935)”, o segundo artigo foi escrito por Paula Cresciulo de Almeida, mestra em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Fluminense (UFF). A autora pretende analisar o processo de reconhecimento e oficialização dos desfiles das escolas de samba no carnaval carioca pelo prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, em 1935. Em seguida, mestrando em História também pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Diego Carvalho da Silva escreve o artigo “Caminhos da redemocratização: alguns apontamentos da política no pós-guerra em Pernambuco (1945-1946)”, cujo objetivo é analisar o processo da reorganização dos principais partidos políticos em princípios de 1945 em Pernambuco, a partir do encaminhamento do processo de abertura política do Estado Novo. Por último, Leide Rodrigues dos Santos, graduanda em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), escreve o artigo “Mobral: a representação ideológica do Regime Militar nas entrelinhas da alfabetização de adultos” com o intuito de analisar as representações do discurso político do Estado presentes em materiais didáticos, publicações e propagandas utilizadas pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) no período equivalente a sua implantação e extinção (1967 -1985).
Na seção seguinte, Gisele Iecker de Almeida, doutoranda em História pela Universiteit Gent (Bélgica), apresenta uma entrevista feita com a historiadora Nina Schneider, que é pesquisadora de pósdoutorado Marie Curie na Universidade de Konstanz, na Alemanha e doutora em História pela Universidade de Essex (Reino Unido). A entrevista intitulada “Justiça de Transição no Brasil: uma entrevista com Nina Schneider” foi realizada em 20 de setembro de 2014 e aborda os debates atuais sobre o processo de transição democrática no Brasil, a justiça de transição e os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.
Encerrando o número 10 da Revista Crítica Histórica, o mestrando em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Flávio Pereira apresenta uma resenha da obra de Karl Marx O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, destacando a temática do político em torno do conceito de luta de classes.
Através de mais um número lançado pela Revista Crítica Histórica, esperamos contribuir proveitosamente com o debate historiográfico e com boas reflexões. Aproveito para agradecer aos autores, que se dedicaram e produziram textos de excelência para esta edição.
Michelle Reis de Macedo – Doutora. Professora Adjunta de História do Brasil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Organizadora da edição nº 10.
MACEDO, Michelle Reis de. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 5, n. 10, dezembro, 2014. Acessar publicação original [DR]
Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas. Londrina, v. 15, n. esp, dez. 2014.
Artigos
- Estação de Tratamento de Água e Ensino de Ciências: uma Experiência Didática | Fabio Alves de Souza, Ronaldo Senra, Leandro Carbo, Nadja Gomes Machado, Geison Jader Mello |
- Incentivo ao Uso da Compostagem de Resíduos Sólidos em uma Horta Escolar do Município de Jaciara-MT | Abigail Maria de Lima dos Santos, Rosilda Maria de Lima Martins, Ricardo Douglas de Souza, Raquel Martins Fernandes Mota, Cleonice Terezinha Fernandes |
- A Educação Inclusiva no Contexto da Formação de Professores à Distância | Edenar Souza Monteiro |
- Famílias Negras e Brancas: uma Visão sobre a Escola Pública | Edenar Souza Monteiro |
- Ensino do Gênero Literário no Cotidiano Escolar: Sugestões Metodológicas | Rosemar Eurico Coenga |
- O Ensino de Leitura: Algumas Provocações | Rosemar Eurico Coenga |
- Uso das TIC no Ensino de Ciências na Educação Básica: uma Experiência Didática | Irismar de França Dourado, Keith Leandro de Souza, Leandro Carbo, Geison Jader Mello, Lucy Ferreira Azevedo |
- Perfil dos Estudantes de Ciências do EJA da Escola Municipal Magda Ivana em Jaciara-MT | Dirce Moris Ternes, Érica Facincani, Marcos Vinícius Ferreira Vilela, Claúdia Lucia Landgraf Valério, Cilene Maria Lima Antunes Maciel |
- Ensino de Ciências na EJA: Relato de uma Experiência Didática | Cristiane Tatiane Duarte, Fabiana Cristina de Souza Almeida, Rodney Mendes de Arruda, Maria das Graças Campos, Nadja Gomes Machado |
- O Papel do Professor na Interação e Construção do Conhecimento em Aulas de Ciências | Graziela Fraga Ferreira Queiroz Muniz, Taize Geliane de Oliveira Fernandes, Dayse Iara Ferreira de Oliveira, Cilene Maria Lima Antunes Maciel, Epaminondas de Matos Magalhães |
- Ludicidade na EJA: Trabalhando uma Trilha Pedagógica como Recurso de Ensino e Aprendizagem na Área de Ciências | Ana Maria de Oliveira Neta, Dayse Iara Ferreira de Oliveira, Maria das Graças Campos, Imara Pizzato Quadros, Ronaldo Eustáquio Feitoza Senra |
- A Necessidade da Relação Entre Teoria e Prática no Ensino de Ciências Naturais | Ana Paula Azevedo de Souza, Jean Rycard da Silva, Rodney Mendes de Arruda, Laura Isabel Marques Vasconcelos de Almeida, Edione Teixeira de Carvalho |
- Casos de Bullying nas Escolas de Ensino Fundamental do Município de Jaciara-MT | Antônia Conceição da Costa, João Carlos Moreira Oliveira Gomes, Degmar Francisco dos Anjos, Lucy Ferreira Azevedo, Carla Lopes Velasquez |
- Ensino de Ciências e Sensibilização em Defesa da Conservação da Cachoeira da Mulata | Eva Aparecida Pereira, Michelle Cindy Carrion Martins, José Roberto Lopes, Edione Teixeira de Carvalho, José Serafim Bertoloto |
- Literatura Entre os Jovens? Será? Como? | Imara Pizzato Quadros |
O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos – MACEDO (AN)
MACEDO, Michelle Reis de. O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. Resenha de: COUTINHO, Renato Soares. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 553-558, dez. 2014.
Boas perguntas, por vezes, costumam gerar boas respostas.
É muito raro uma pesquisa consistente, com hipóteses originais e abordagem coerente partir de uma questão de menor relevância. Nas últimas décadas, as pesquisas na área de história e o pensamento social brasileiro vêm se debruçando sobre um debate gerado por uma indagação inquietante. Como Getúlio Vargas, presidente que governou durante período ditatorial, especialmente entre 1937 e 1945, conseguiu estabelecer suas bases de apoio eleitoral entre os trabalhadores brasileiros, com o Partido Trabalhista Brasileiro, no período democrático, entre 1946 e 1964? Indo direto ao problema, podemos sintetizar a pergunta da seguinte maneira: como explicar a popularidade de Vargas e de seu projeto político, o trabalhismo, entre os trabalhadores? Em linhas gerais, podemos identificar a existência de duas vertentes analíticas que percorrem caminhos bastante distintos para explicar o mesmo fenômeno. A mais antiga delas destaca as ações dos agentes estatais. Censura, repressão policial e propaganda política são os objetos mais investigados da perspectiva que busca, em última análise, entender a popularidade de Getúlio Vargas como resultado das bem-sucedidas estratégias de dominação social. Interpretações mais recentes preocupam-se com as relações mantidas entre o Estado e os setores populares, elevando os trabalhadores à condição de ator político. Projetos e crenças políticas, demandas sociais e organizações sindicais, ideias e valores culturais dos trabalhadores tornam-se objeto de estudo dos historiadores. Ou seja, temos duas correntes interpretativas que formularam variáveis independentes que se situam em polos distintos: para uma delas, as ações do Estado explicam o comportamento dos trabalhadores; para outra, as interações entre eles e o Estado se tornam a chave explicativa.
Para os leitores que estão familiarizados com o tema, não é difícil decifrar quais são as perspectivas apontadas acima. A primeira delas, a mais antiga, acabou por produzir e consolidar o conceito de populismo como ferramenta conceitual capaz de explicar a popularidade de líderes como Vargas – valorizado pelo seu carisma.
Segundo essa perspectiva, a estrutura social construída pelo processo de modernização capitalista tardia acabou conferindo ao Estado-Nacional uma condição privilegiada de dominação sobre os trabalhadores, por conta da ausência de um histórico de lutas capaz de gerar, entre essa camada da população, uma consciência de classe autônoma.
A segunda perspectiva delineada anteriormente vem cumprindo a tarefa de dialogar e enfrentar proposições que há décadas estão enraizadas não só no campo acadêmico, mas também no senso comum. Tendo como base trabalhos inovadores, como a A invenção do trabalhismo (GOMES, 2005), o suposto problema da falta de organização e consciência de classe dos trabalhadores brasileiros foi substituído por vasta pesquisa documental que visava a dar conta da construção da cultura política do operariado brasileiro a partir das suas próprias experiências de luta. A premissa de que a repressão e a propaganda foram capazes de gerar satisfação ou persuadir os trabalhadores foi abandonada. Pesquisas recentes, baseadas em fontes documentais, comprovam que o operário brasileiro interagiu com o Estado, resultando em trocas materiais e simbólicas que, em muitos aspectos, respondiam aos anseios e às reivindicações dos próprios trabalhadores. Vale destacar que não se trata de mudar os nomes, simplesmente trocando o termo populismo por trabalhismo. Não se trata da substituição de conceitos.
Trabalhismo é compreendido como um projeto político resultante das relações entre Estado e classe trabalhadora, em que ambos foram protagonistas na construção do projeto político.
O livro O movimento queremista e a democratização de 1945, da historiadora Michelle Reis de Macedo (Rio de Janeiro, 7 Letras, 2013), oferece sólida resposta para a pergunta que mobiliza diversos historiadores brasileiros. Nas palavras da autora: “[…] por que vários setores sociais, especialmente a maioria dos trabalhadores e setores populares, apoiavam o ditador?” (p. 17). Sem se perder nos intermináveis debates conceituais que envolvem a temática escolhida, a autora não se furta de destacar com clareza a sua filiação teórica e metodológica. Porém, o faz sem os andaimes das citações bibliográficas que, quando exageradas, tornam o texto enfadonho até mesmo para o especialista. O livro de Michelle de Macedo é uma obra sustentada por uma edificação conceitual rica e clara, mas com as estruturas teóricas cobertas pelo refinado acabamento documental. A utilização de uma vasta documentação e a análise das fontes são os maiores méritos do trabalho da historiadora, e, para a satisfação do leitor, as polêmicas conceituais são discorridas em meio aos problemas postos pela pesquisa.
O livro é o primeiro publicado sobre o movimento queremista no Brasil. Inspirados pela frase “Queremos Getúlio”, os queremistas organizaram comícios, produziram panfletos e pressionaram diretamente o presidente Getúlio Vargas a lançar sua própria candidatura para as eleições que colocaram fim ao regime ditatorial do Estado Novo, em dezembro de 1945. O movimento acabou não conseguindo sucesso na sua principal empreitada – a candidatura de Vargas –, mas teve influência determinante no resultado eleitoral das eleições presidenciais de 1946, além de ter contribuído decisivamente para a organização das bases programáticas e para a composição social do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Dividido em quatro capítulos, a obra destaca inicialmente a conjuntura internacional gerada pela vitória dos países aliados sobre os regimes fascistas ditatoriais na Segunda Guerra Mundial.
A autora mostra como o discurso de oposição ao Estado Novo buscou associar a imagem de Vargas aos líderes fascistas europeus.
A União Democrática Nacional (UDN), partido que inicialmente arregimentou um leque de oposicionistas a Vargas, iniciou a campanha eleitoral motivada pela certeza de que a imagem do ditador não poderia resistir ao contexto de ampla mobilização e exaltação dos valores liberais democráticos que ressurgiam prestigiados ao final da guerra. A campanha para a presidência, articulada em torno do brigadeiro Eduardo Gomes, começou contagiada pelo otimismo da certeza da vitória.
Nem mesmo o avanço das organizações queremistas a partir do segundo semestre de 1945 foi capaz de conter o ânimo da campanha udenista. Mesmo nos casos em que a mobilização queremista se mostravam coordenada e em crescimento, a resposta dos líderes udenistas era marcada pelo descrédito daqueles que julgavam os atos dos trabalhadores como “desvios” gerados pela propaganda estadonovista.
No segundo capítulo, Michelle de Macedo vai ao encontro do seu objeto de estudo. Ao analisar as ações coletivas dos queremistas, a autora mostra para o leitor os significados que norteavam as escolhas políticas dos trabalhadores que apoiavam Getúlio Vargas. Através de matérias veiculadas em jornais e de cartas enviadas para o presidente, a autora desvenda valores e anseios que orientavam os trabalhadores que defendiam a candidatura de Vargas. As divergências entre o pensamento liberal udenista e a cultura política dos trabalhadores entravam em conflito especialmente em torno da compreensão de “qual” democracia estava em jogo. Para os queremistas os avanços materiais promovidos pela legislação trabalhista conquistada nos anos anteriores eram mais importantes do que um sistema político baseado em regras formais de competição partidária. A cultura política popular mostrava-se alheia ao discurso liberal da campanha udenista, que tinha como princípio o fortalecimento das instituições da democracia representativa. Investigando quais eram as demandas populares em 1945, a autora mostrou como a questão da representatividade nos parâmetros da democracia liberal estava em segundo plano para o trabalhador brasileiro. Naquela ocasião, mesmo com a vitória das democracias liberais no conflito mundial, o interesse do trabalhador brasileiro era assegurar os benefícios trabalhistas que foram distribuídos durante o governo do presidente Vargas. Nesse contexto, a saída de Vargas representava uma ameaça aos ganhos materiais conquistados no regime que encerrava. E a ameaça era real. Afinal, a campanha udenista desqualificava a legislação social, acusando-a de “fascista”. Aliás, foi nessa época que surgiu a famosa expressão de que “a CLT era cópia da Carta del Lavoro”. Arroubos eleitorais udenistas, certamente, mas que assustaram os trabalhadores.
No capítulo seguinte, a análise do apoio dos comunistas ao queremismo é um dos pontos mais interessantes e elucidativos na disputa entre udenistas e queremistas. Os udenistas tinham como certo a oposição do líder comunista Luiz Carlos Prestes a Getúlio Vargas. Não foi o que ocorreu. Ao contrário, Prestes apoiou Vargas.
A partir daí, os liberais udenistas reforçaram a crítica aos partidários de Vargas e Prestes associando suas crenças aos regimes totalitários europeus. No discurso da UDN, o fascismo de Vargas e o comunismo de Prestes representavam a mais terrível ameaça aos valores democráticos. A participação do Partido Comunista do Brasil (PCB) foi um complicador a mais na campanha eleitoral udenista. Como também da imprensa, toda ela alinhada com a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes e com a UDN. Ainda no terceiro capítulo, a autora apresenta uma série de matérias publicadas nos jornais que visavam a ensinar a história do Brasil para o trabalhador brasileiro.
Nesses textos, o povo brasileiro sempre aparecia atuando em busca dos seus direitos sociais.
Por fim, Michelle de Macedo analisa o processo de institucionalização do movimento após a desistência de Getúlio Vargas de participar das eleições presidenciais. O queremismo é entendido nesse momento como um primeiro esboço das principais demandas dos trabalhadores que apoiariam, nos anos seguintes, o PTB.
Outro ponto de grande relevância do capítulo que conclui o livro é a pressão feita por facções do queremismo para que Getúlio Vargas declarasse seu apoio à candidatura de Eurico Gaspar Dutra, candidato do PSD. Isso realça o grau de autonomia que os defensores da candidatura de Vargas tinham em relação ao líder político. Durante toda a campanha eleitoral de Dutra, Vargas não pronunciou uma única palavra de apoio ao candidato do PSD. Apenas às vésperas da votação é que Vargas decidiu pedir o voto a Dutra, fato que, muito certamente, contribuiu para a derrota da UDN nas eleições de 1946.
A autora mostra como a pressão dos queremistas contribuiu para a decisão de Vargas, e esse evento comprova como as interações entre a liderança política e os agentes sociais são marcadas por pressões – mesmo que desiguais – vindas de ambos os lados.
Como já escrevi anteriormente, o livro de Michelle de Macedo é mais uma valiosa resposta a um problema que intriga muitos historiadores: a popularidade de Getúlio Vargas entre os trabalhadores.
Resposta que agrega mais substância ainda aos pesquisadores que se dedicam a compreender o fenômeno Vargas não apenas como o resultado de ações manipuladoras por parte do Estado, mas como o resultado da materialização de demandas sociais produzidas por agentes conscientes e organizados.
Referências
FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
MACEDO, Michelle Reis de. O movimento queremista e a democratização de 1945: Trabalhadores na luta por direitos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.
Renato Soares Coutinho – Doutor em História Social pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense e Professor de História do Brasil da Universidade Castelo Branco. Contato: rscoutinho@hotmail.com.
Périclès, la démocratie athénienne à l’épreuve du grand homme – AZOULAY (RMA)
AZOULAY, Vicent. Périclès, la démocratie athénienne à l’épreuve du grand homme. Paris: Armand Colin, 2010, 280p. AZOULAY, Vicent. Pericles of Athens. Princeton: Princeton University Press, 2014. (translated by Janet Lloyd, with a foreword by Paul Cartledge), 312 p. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Revista Mundo Antigo, v.3, n.6, dez., 2014.
Péricles (495-429 a.C.) pode ser considerado um dos personagens históricos mais citados e referidos em todos os tempos. Marcou não apenas a história de Atenas, no seu auge, como exerceu influência nos milênios posteriores, graças, em parte, às narrativas do historiador Tucídides no próprio século V a.C. e do filósofo de época romana Plutarco, autor de uma biografia do estadista. O historiador Vincent Azoulay aceitou o desafio de retratar o ateniense para a coleção de “novas biografias históricas” da editora parisiense, tendo o grande êxito da edição francesa e sua premiação (Prix du Sénat du livre d’histoire 2011), levado à tradução para o inglês e à edição recente em Princeton. O jovem historiador francês tem se dedicado à História cultural do mundo grego, a partir de uma perspectiva fundada na teoria social, e com o recurso sistemático não só à tradição textual, como à epigrafia e à Arqueologia. Pode considerar-se, ainda, que sua perspectiva se insere nos estudos de recepção e usos do passado, como neste belo volume. Desde a introdução, explicita que se trata de um ir e vir constante entre presente e passado, nessa ordem, com o uso de abordagens de cunho sociológico (como o conceito de habitus de Pierre Bourdieu), mas também com destaque para as evidências arqueológicas, referidas com frequência ao decorrer do volume. Leia Mais
A Justiça do Trabalho e sua história – GOMES; SILVA (RBH)
GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da (Org.). A Justiça do Trabalho e sua história. Campinas: Ed. Unicamp, 2013. 528p. Resenha de: LIMONCIC, Flávio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul./dez. 2014.
Nos últimos 70 anos, as vidas de milhões de mulheres e homens Brasil afora se cruzaram nas varas da Justiça do Trabalho. Nos próximos anos, outras tantas o farão. A Justiça do Trabalho é uma instituição central não apenas do aparato estatal que regula as relações de trabalho no Brasil, mas do próprio mundo do trabalho brasileiro. Por isso, causa estranheza o fato de que ela tenha sido tão pouco visitada pela historiografia e pela sociologia do trabalho no Brasil. A Justiça do Trabalho e sua história, volume organizado por Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva, constitui importante contribuição para a superação de tal lacuna. E o faz segundo a melhor tradição historiográfica, com base em exaustiva pesquisa de fontes produzidas por esse ramo do Poder Judiciário ao longo de décadas e em diferentes cidades e regiões do Brasil, envolvendo tanto trabalhadores individuais quanto categorias profissionais.
O livro é estruturado em cinco partes, além de uma apresentação na qual os organizadores realizam um apanhado histórico da trajetória do tribunal. A começar pelos organizadores, os autores têm longa trajetória acadêmica ou profissional e larga produção na área de estudos do trabalho.
A primeira parte, com textos de Clarice Gontarski Speranza e Rinaldo José Varussa, trata da conciliação entre patrões e empregados em torno das condições de vida e trabalho. Speranza desenvolve suas reflexões a partir das relações entre mineiros de carvão e seus patrões no Rio Grande do Sul, entre 1946 e 1954, ao passo que Varussa o faz a partir dos trabalhadores de frigoríficos do Oeste do Paraná nas décadas de 1990 e 2000. A segunda parte discute a Justiça do Trabalho na arbitragem dos conflitos entre patrões e empregados. O texto de Antonio Luigi Negro e Edinaldo Antonio Oliveira Souza desenvolve uma reflexão sobre a Justiça do Trabalho na Bahia entre 1943 e 1948, ao passo que Benito Bisso Schmidt realiza sua análise a partir da ação de uma trabalhadora da indústria de sapatos em Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, entre 1958 e 1961. Fernando Teixeira da Silva e Larissa Rosa Corrêa discutem a questão do poder normativo da Justiça do Trabalho na terceira parte, o primeiro em São Paulo às vésperas do golpe de 1964, a segunda tendo como tema a política salarial nos primeiros anos da ditadura civil-militar (1964-1968). A atuação da Justiça do Trabalho no mundo rural brasileiro é o tema da quarta parte. Antonio Torres Montenegro reflete sobre a ação de tal Justiça na ditadura civil-militar, ao passo que Frank Luce trata do estatuto do trabalhador rural na região do cacau. Por fim, na quinta e última parte se discute a Justiça do Trabalho diante das formas de contratação do trabalho oriundas de processos de flexibilização e precarização das relações de trabalho. Vinícius de Rezende concentra suas reflexões na indústria do calçado de Franca entre 1940 e 1980, Magda Barros Biavaschi reflete sobre a terceirização a partir de processos judiciais, e Ângela de Castro Gomes discute a Justiça do Trabalho diante do trabalho análogo à escravidão.
Muito embora historiadores que atuam em diversas universidades brasileiras componham a maioria dos trabalhos referidos – como, aliás, seria de se esperar em um livro que traz a História em seu nome –, Frank Luce é advogado trabalhista e professor de estudos do trabalho na York University, Toronto, e Magda Barros Biavaschi é desembargadora aposentada do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul. A reflexões de ambos evidenciam a importância não só do diálogo com outras disciplinas – no caso da Justiça do Trabalho, o diálogo com a área de direito parece de evidente importância –, como, também, da incorporação de ângulos novos ao tema, como os estudos sobre o mundo rural.
Na Apresentação, os organizadores introduzem, ainda, uma questão fundamental, dessa vez relativa às fontes.
Ainda que a compreensão do que constitui fonte histórica tenha mudado desde que a disciplina histórica se constituiu como campo do saber, fontes continuam sendo imprescindíveis para o trabalho do historiador, e este volume anda de par em par com a literatura histórica e sociológica que, nas últimas décadas, tem utilizado fontes judiciais. No entanto, advertem os organizadores do volume, a documentação produzida pela Justiça do Trabalho tem sido sistematicamente eliminada graças à Lei 7627, de 10 de novembro de 1987 (coincidentemente, o 50º aniversário do Estado Novo). Somente no ano de 2005, quase 540 mil processos foram eliminados no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, localizado em São Paulo.
A Lei 7627 é apenas uma das ameaças às fontes judiciais brasileiras. Outras provêm de projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional e de Resoluções do Conselho Nacional de Justiça, às quais vem somar-se a rápida e constante inovação tecnológica que torna obsoletos e, portanto, potencialmente inacessíveis, diversos suportes imateriais, como arquivos eletrônicos. Nesse sentido, o presente livro constitui, também, um alerta para o tipo de reflexão que pode ser perdido caso as fontes judiciais brasileiras em geral, e as da Justiça do Trabalho em particular, sejam efetivamente descartadas.
Suscitar questões, mais do que chegar a conclusões, parece ser a medida de um bom trabalho. E este o faz, ao sugerir ao menos duas, que são tratadas de passagem na “Apresentação”. Da longa manus do Estado de inspiração fascista a elemento do que Ângela de Castro Gomes chama, em outro trabalho, de pacto trabalhista, seria de grande interesse que a Justiça do Trabalho fosse pensada de forma mais sistemática na arquitetura institucional do corporativismo brasileiro. Seria de igual interesse, também, que o papel do Estado na mediação do conflito entre patrões e empregados fosse estudado num enfoque internacional comparativo. De fato, no contexto dos anos 1930 e 1940, vários países criaram agências estatais para a regulação de diferentes mercados, inclusive o de trabalho.
Ao sugerir tais questões, assim como ao reunir reflexões de tal qualidade, A Justiça do trabalho e sua história constitui contribuição fundamental não só para a compreensão da atuação da Justiça do Trabalho, como também para um melhor entendimento de como esta se enraizou nos corações e mentes de gerações de trabalhadores brasileiros.
Flávio Limoncic – Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). E-mail: limoncic@gmail.com.
[IF]
1964-2014: Memórias, testemunho e Estado / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2014
O número 24 da revista Fronteiras, a Revista Catarinense de História, traz o Dossiê – 1964-2014: memórias, testemunho e Estado, com discussões produzidas a partir do XV Encontro Estadual de História da ANPUH-SC – “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, ocorrido em agosto de 2014, em Florianópolis. Neste volume, o dossiê apresenta artigos de autores e autoras que se debruçaram, em diferentes perspectivas e enfoques, na temática que envolveu o período militar no Brasil, especialmente no Estado de Santa Catarina; e um relato da Comissão da Verdade em Santa Catarina. Também apresenta artigos de fluxo contínuo e resenhas.
Caroline Jacques Cubas apresenta o artigo Igreja Católica em tempo de ditadura militar: do diálogo à subversão em páginas impressas, onde problematiza os posicionamentos desta instituição religiosa em relação ao regime militar; as representações sociais e políticas observadas em periódicos nacionais entre 1968 e 1979. Reinaldo Lindolfo Lohn, no artigo intitulado Santa Catarina e a ditadura empresarial: o caso da política agrária, nos mostra como a política agrária dos setores vinculados à agropecuária empresarial em Santa Catarina, encontrou meios para impor diretrizes e interesses com a instauração do golpe militar; e analisa o aparelho estatal ao longo das décadas de 1950 e 1960.
O documentário “Que bom te ver viva” é tema de estudos de Arielle Rosa Rodrigues e Mariana Cristina Silva. As autoras analisam questões relacionadas com as memórias de mulheres ex-militantes da esquerda revolucionária brasileira, sobreviventes da tortura física e psicológica sofridas nas prisões da ditadura, entre as décadas de 1960 e 1970; refletem sobre a relação entre história e memória e as experiências traumáticas vividas por mulheres. Segue o tema das mulheres com o artigo Novembrada: as mulheres, o cárcere e as solidariedades, de Marlene de Fáveri. A autora recupera memórias de mulheres que participaram do evento contestatório ao regime militar ocorrido em Florianópolis, em novembro de 1979; mostra parte do cotidiano da prisão, os atos de solidariedade e as resistências, observando as relações de poder e gênero.
Em seguida, o artigo de Luiz Felipe Falcão que traz o título Alegorias da verdade: esboços nas conexões entre História Oral e História do Tempo Presente sobre a resistência à ditadura e o processo de democratização no Brasil nas últimas décadas do século XX. O autor analisa depoimentos de ex-militantes e ativistas das esquerdas brasileiras acerca de suas atividades de resistência ao regime militar, e o processo de democratização; aborda versões dos acontecimentos e reflexões historiográficas para formulações de uma história do Tempo Presente.
Derlei Catarina de Luca apresenta um relato dos trabalhos da Comissão Estadual da Verdade de Santa Catarina, criada para auxiliar a Comissão Nacional da Verdade; o intuito era de examinar e esclarecer as violações de direitos humanos praticadas por motivação exclusivamente política, ocorridas entre 1946 e 1988, no Estado de Santa Catarina. Esta Comissão foi criada por decreto governamental em março de 2013, com o objetivo de efetivar o direito à memória e à verdade histórica. Neste relato, que se intitula A Busca da Verdade, a autora historiciza os trabalhos da Comissão; seus resultados; publiciza nomes de pessoas que estiveram sob a mira do aparato repressivo; as resistências; assassinatos; torturas; e conclui que é “Para que nunca se esqueça. Para que nunca mais aconteça.” Derlei Catarina de Luca é membro da Comissão Estadual da Verdade e militante do Coletivo Catarinense Memória, Verdade, Justiça.
Na seção Artigos, André Souza Martinello e Marcos Fábio Freire Montysuma apresentam o texto intitulado Experiências e percepções ambientais de migrantes japoneses no sul do Brasil nos anos de 1950 a 197; observam, através das memórias destes migrantes, o contato com diferentes configurações geográficas, climáticas e culturais; as adaptações e as diferenciações em relação aos espaços de terra trabalhados. Noutro artigo, com o título “Não deixe o Canto do Morcego acabar”: embates entre preservacionistas e investidores na Praia Brava – Itajaí (SC), Gloria Alejandra Guarnizo Luna mostra as denúncias sobre a ocupação de forma desordenada e a consequente destruição da orla marítima no município de Itajaí, analisando discursos das mídias contemporâneas e os movimentos de resistência da população.
Na seção Resenhas, Waldir José Rampinelli faz uma análise sobre a trilogia de Elio Gaspari, que trata da ditadura militar brasileira: A ditadura envergonhada: as ilusões armadas; A ditadura escancarada: as ilusões armadas, e A ditadura derrotada: o sacerdote e o feiticeiro. Heloísia Nunes dos Santos resenha o livro de Derlei Catarina de Luca, No corpo e na alma; e Daniele Beatriz Manfrini apresenta a obra de Margareth Rago, A aventura de contar-se.
Marlene de Fáveri
Janine Gomes da Silva
Samira Moretto Peruchi
Organizadoras do Dossiê
FÁVERI, Marlene de; SILVA, Janine Gomes da; PERUCHI, Samira Moretto. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.24, 2014. Acessar publicação original [DR]
História das Sociedades africanas: temas, questões e perspectivas de estudo / Anos 90 / 2014
Desde pelo menos meados do século XX, pode-se falar da existência de uma área acadêmica denominada estudos africanos ou africanologia, integrada por profissionais de diferentes disciplinas (antropologia, arqueologia, arte, direito, filosofia, história, literatura, música, sociologia, entre outras), que têm em comum o interesse pela análise de aspectos relativos aos povos, às sociedades, instituições, atividades econômicas, aos sistemas simbólicos, discursos e às interpretações sobre a África e os africanos.
Esta área tem sido desenvolvida a partir de pelo menos três diferentes tendências gerais de abordagem. A primeira ganhou forma na Europa ocidental, desde o período da colonização na África, e evoluiu de uma perspectiva racializada e eurocêntrica para outra mais diversificada, em que as particularidades africanas passaram gradualmente a ser consideradas (DIALLO, 2001; GOERG, 1991; VYDRINE, 1995; MAINO, 2005). A segunda emergiu nos Estados Unidos nos anos 1950-1960 e teve a origem ligada em parte às demandas de conhecimento das universidades estadunidenses sobre as jovens nações africanas no momento em que elas eram inseridas no complexo jogo das relações internacionais do período da Guerra Fria; vincula-se também à emergência dos movimentos de reivindicação de direitos civis protagonizados por afro- estadunidenses, desejosos de ver seus laços históricos fortalecidos com o seu continente de origem (FERREIRA, 2010). A terceira é constituída por intelectuais nativos da África, de variada formação, e suas interpretações valorizam as referências locais, bem como a experiência dos próprios africanos, fundando-se em conhecimento erudito articulado a saberes tradicionais, endógenos (NZIEM, 1986; LOPES, 1995; KAKOMBO, 2005; BARBOSA, 2012).
No Brasil, a área ganhou força na última década, embora exista há mais de meio século em núcleos de pesquisa pioneiros, como o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), na Universidade Federal da Bahia, fundado em 1959; o Centro de Estudos Africanos (CEA), da Universidade de São Paulo, criado em 1965, e o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), da Universidade Cândido Mendes, em 1973. Fora desses, não obstante iniciativas isoladas, somente no início do século XXI assiste-se a um movimento no sentido da institucionalização dos estudos africanos, através de atividades em diversas disciplinas – sobretudo história e literatura, e em menor proporção antropologia e sociologia (MARQUES; JARDIM, 2012).
Esta alteração corresponde a uma resposta da comunidade acadêmica diante das exigências colocadas pela obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no ensino fundamental e médio após a promulgação da lei federal nº 10.639 / 2003, ampliada pela lei federal nº 11.645 / 2008. É a partir deste momento que ocorre, ao que parece, uma progressiva inserção curricular de temas africanos, com a criação de disciplinas nos cursos de história de 34 universidades públicas. É também desse momento em diante que se pode observar uma tendência à ampliação do interesse pela África, para além da docência, com pesquisa acadêmica formal incipiente (PEREIRA, 2013).
Tal movimento implica, em certa medida, uma tomada de posição em relação aos referenciais de estudo, aos métodos e instrumentos conceituais e analíticos empregados nas análises, bem como uma definição mais clara deles quanto à sua aplicabilidade aos temas e problemas específicos das sociedades africanas em sua experiência social, cultural e histórica. Implica igualmente a definição mais precisa de fronteiras entre os estudos africanos e estudos afro-brasileiros, em especial aqueles vinculados ao tráfico atlântico e à diáspora que, embora próximos em certos pontos, não são necessariamente equivalentes (PIAULT, 1997; SANSONE, 2002; ZOUNGBO, 2012). As condições para que isso venha a ocorrer de modo cada vez mais consistente foram ampliadas com a criação de uma rede nacional de NEABs (Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros) e, em 2011, com a criação do GT Nacional de História da África, vinculada à Associação Nacional de História (ANPUH).
O presente dossiê tem a finalidade de contribuir neste processo de afirmação institucional. Dele participam especialistas em estudos africanos provenientes de diversas regiões brasileiras, da África ocidental, Estados Unidos e Europa, com experiência em distintos temas de investigação, em sua maior parte colaboradores da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Instituto Latino de Estudos Avançados da UFRGS (http: / / grupodeestudosafricanos.blogspot. com.br / 2014 / 06 / tendencias-de-estudo.html), criada em 2014, sob nossa coordenação e do jovem pesquisador guineense Frederico Matos Alves Cabral.
No que diz respeito ao enfoque do dossiê, maior atenção veio a ser dada aos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), devido muito provavelmente às afinidades culturais que nos unem a Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, mas também comparecem textos sobre outros espaços africanos, na Costa do Marfim e na Namíbia, com o desenvolvimento de questões políticas e sociais que lhe são próprias. Quanto ao espectro da análise, abrange os modos de organização social, instituições e tipos de exercício do poder, relações de dominação e resistência, processos identitários, elaborações discursivas, formas de representação e preservação da memória coletiva em diferentes áreas geográficas e contextos, no lapso temporal compreendido entre o século XV e o início do século XXI.
Neste amplo quadro geográfico e histórico, cumpre identificar em primeiro lugar o papel diferencial das dinâmicas sociais e a grande capacidade de adaptação e interação das sociedades africanas ou de indivíduos provenientes delas em situações de contato dentro e fora do continente. Do que se pode depreender dos trabalhos iniciais do dossiê, relativos à alta Guiné e ao litoral centro-ocidental durante os séculos XV-XIX, no período de formação do “mundo atlântico”, os africanos não se fecharam em costumes e instituições imutáveis, mas abriram-se a diferentes inovações. Não se trata, muito longe disso, de assimilação, nem mesmo de processos de mestiçagem ou crioulização pura e simples, mas de transformações decorrentes da ampliação de suas possibilidades históricas ou de alterações que afetaram suas estruturas sociais originais.
É o que indica o estudo do africanista português José da Silva Horta, da Universidade de Lisboa, ao examinar a tessitura das primeiras redes de contato intracontinentais de que participaram africanos livres. Delas tomaram parte indivíduos de diferentes grupos de origem, entre a Senegâmbia, o arquipélago de Cabo Verde, os rios da Guiné e Serra Leoa, de onde sua diferencial participação na formação de aristocracias africanas e luso-africanas nas elites locais. Neste trânsito também circularam conceitos, práticas e experiências religiosas de origem africana em paralelo aos elementos do sagrado cristão, produzindo o que o autor designa de imaginários comunicantes – optando desse modo pela ideia da coexistência, ou no máximo de justaposição de elementos das diferentes cosmologias postas em contato, em vez das sínteses ou mesclas sugeridas pela ideia de imaginários mestiços.
Noutra área geográfica, mas com sentido parecido, verifica-se o processo de reconfiguração desencadeado pela cristianização do Congo na primeira metade do século XVI, quando foi decisiva a atuação de sacerdotes e catequistas congueses na estruturação de novas práticas religiosas. Ao aliar elementos cristãos aos elementos tradicionais de sua sociedade, estes serviram de destacados mediadores culturais, algo posto em evidência pela pesquisadora Marina de Mello e Souza, da Universidade de São Paulo.
Por razões diferentes, mas relacionadas com as alterações impostas pela gradual importância do porto de Luanda no tráfico transatlântico, surgiram desde o século XVII comunidades de escravos fugitivos, conhecidas pelos nomes de mutolos ou quilombos, que funcionavam como foco de resistência em áreas sob controle português. Em detalhado estudo, o brasileiro Roquinaldo Ferreira, que atua há anos na Universidade de Brown, examina os fatores associados a esta questão – que ganhou maior projeção no século XIX, no contexto da crise do tráfico internacional de escravos.
Outro aspecto a ser sublinhado tem a ver com a alta capacidade de resiliência daquelas sociedades, que souberam resistir a pressões e determinações exteriores, mantendo vivos seus traços essenciais, sobretudo em face da situação colonial – para usar a conhecida expressão cunhada por Georges Balandier. Nesse sentido, o trabalho de Regiane Augusto de Mattos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, desenvolve uma questão pouquíssimo explorada no estudo da institucionalização da conquista colonial europeia ao fim do século XIX: o protagonismo das mulheres anciãs chefes de linhagens do norte de Moçambique, chamadas pia-mwene – com quem as autoridades portuguesas, para garantir sua influência local, foram forçadas a se relacionar, e inclusive a negociar.
Por sua vez, as contradições inerentes às relações desequilibradas entre a metrópole lusa e as colonias de Angola e Moçambique são evidenciadas na interpretação do significado da proclamação da república portuguesa, em 1910, feita por Valdemir Zamparoni, da Universidade Federal da Bahia. O autor examina o contraste entre o ideal universalista do conceito político de república, sua efetiva manifestação conservadora em Portugal e as espectativas frustradas das camadas dirigentes coloniais em face do pragmatismo administrativo de cariz racista inerente ao projeto imperial transplantado para a África.
A busca da complexidade das estratégias africanas norteia por sua vez o texto de Marçal de Menezes Paredes, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, no estudo sobre a formação nacional em Moçambique no período posterior à independência. A atenção recai especificamente no projeto político e ideológico da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), que se baseia na ideia de um homem novo, em consonância com uma noção particular de moçambicanidade.
Saindo da comunidade linguística oficial lusófona, a proposta de análise do brasileiro Acácio de Almeida Santos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e do marfinês Aghi Bahi, da Universidade Félix Houphouët-Boigny, recoloca em outros termos as categorias e os conceitos retirados da literatura sociólogica e da ciência política para entender as relações entre sociedade civil e participação política na Costa do Marfim. Trata-se de pensar os componentes e as variáveis da ação política de diferentes segmentos sociais, desde o período colonial até o momento presente, o que põe em causa a ideia corriqueira de um suposto apolitismo ou de uma suposta passividade da sociedade civil diante das elites que controlam o Estado.
Os três últimos artigos privilegiam os discursos e as representações nas sociedades africanas do século XX, pondo acento nas dinâmicas culturais que dão sentido à história e à memória e orientam a ação social e política no período contemporâneo.
O circuito em que transitaram teorias e ideias políticas e a maneira criativa como foram lidas, apropriadas e reinterpretadas pelos intelectuais africanos em diferentes locais, condições e contextos é o que confere grande originalidade ao pensamento social africano, tal como demonstra o artigo de Leila Leite Hernandez, da Universidade de São Paulo.
A maneira pela qual a produção didática em livros de história escritos no período posterior à independência de Angola tem retratado os portugueses, examinada por Anderson Ribeiro Oliva, da Universidade de Brasília, permite entrever o quanto a relação especular com o antigo colonizador continua a conferir sentido a uma identidade nacional em construção.
Por fim, a disputa pela preservação da memória de determinados atores envolvidos em acontecimentos traumáticos do período colonial do sudoeste africano, em especial o caso do massacre dos Herero e dos Nama pelos alemães, entre 1904-1908, sugere leituras multifacetadas e divergentes das relações euro-africanas ou afro- europeias na Alemanha e na Namíbia. As diferentes formas de celebração dos acontecimentos na memória coletiva dos grupos envolvidos e as interpretações fornecidas pela história levantam a questão da descolonização do passado, como bem aponta o estudo de Silvio Marcus Correa, da Universidade Federal de Santa Catarina, que encerra o dossiê. Para concluir, resta agradecer aos colaboradores que gentilmente enviaram seus textos, acreditando e confiando no dossiê temático aqui publicado. Os resultados alcançados, vistos em conjunto, provam a qualidade dos estudos africanos produzidos no Brasil, vislumbrando caminhos, perspectivas de análise e grandes possibilidades de um futuro promissor.
Referências
BARBOSA, Muryatan Santana. A África por ela mesma: a perspectiva africana na História Geral da África (UNESCO). Tese (Doutorado). São Paulo: Programa de Pós-Graduação em História – USP, 2012.
DIALLO, Youssouf. L’Africanisme en Allemagne, hier et aujourd’hui. Cahiers des Études Africaines (Paris), n. 161, tome XLI-1, 2001, p. 13-43.
FERREIRA, Roquinaldo. A institucionalização dos estudos africanos nos Estados Unidos: advento, consolidação e transformações. Revista Brasileira de História (ANPUH), v. 30. n. 59, 2010, p. 73-90
GOERG, Odile. L’historiographie de l’Afrique de l’Ouest: tendances actuelles. Gêneses (Paris), n. 6, 1991, p. 68-78.
KAKOMBO, Jean-Marie Mutamba. L’histoire de l’Afrique vue par les africains. In: MANDÉ, Issiaka; STEFANSON, Blandine (Orgs.). Les historiens africains et la mondialisation. Actes du 3º congrès international des historiens africains, Bamako, 2001. Paris: Bamako: Éditions Karthala; AHA / ASHIMA, 2005. p. 237-251.
LOPES, Carlos. A pirâmide invertida: historiografia africana feita por africanos. In: VVAA. A Construção e ensino da História de África. Colóquio de Lisboa, 7-9 de junho de 1994. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 12-32.
MAINO, Elisabetta. Pour une genealogie de l’africanisme portugais. Cahiers des Études Africaines, n. 177, tome XLV-1, 2005, p. 165-215.
MARQUES, Diego Ferreira; JARDIM, Marta da Rosa. O que é isto: a África e sua história? In: TRAJANO FILHO, Wilson (Org.). Travessias antropológicas: estudos em contextos africanos. Brasília: Associação Brasileira de Antropologia (ABA), 2012. p. 31-61.
NZIEM, Ndaywel. African historians and africanist historians. In: JEWSIEWICKI, Bogumil; NEWBURY, David (Eds). African historiographies. What history for which Africa?. Beverly Hills; London; New Delhi: Sage Publications, 1986. p. 20-27.
PEREIRA, Márcia Guerra. A pesquisa em história da África nas universidades brasileiras: um panorama. In: XXVII Simpósio Nacional de História – Conhecimento histórico e diálogo social. Disponível em: http: / / www.snh2013.anpuh. org / resources / anais / 27 / 1364762337_ARQUIVO_ApesquisaemHistoriadaAfrica. pdf. Acesso em: 12 jul. 2014. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 13-20, dez. 2014
PIAULT, Marc H. Images de l’Afrique, Afrique imaginaire ou question d’identité brésilienne. Journal des Africanistes (Paris), tome 67-1, p. 9-25, 1997.
SANSONE, Lívio. Da África ao afro: uso e abuso da África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século XX. Afro-Ásia (UFBA), v. 27, 2002. p. 249-269.
VYDRINE, Valentin. A propos des études africains en Russie. Journal des Africanistes (Paris), tome 65-2, 1995. p. 235-238.
ZOUNGBO, Victorien Lavou. Idas e vindas: Áfricas, Américas. Trajetórias imaginárias e políticas. Projeto História (PUCSP), n. 44, p. 9-22, 2012. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 13-20, dez. 2014
José Rivair Macedo – Departamento de História e PPG de História – UFRGS; Pesquisador do CNPq; Sócio-correspondente da Academia Portuguesa da História; Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Indígenas e Africanos – UFRGS; Coordenador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos – UFRGS.
MACEDO, José Rivair. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, dez., 2014. Acessar publicação original [DR]
História e Sociologia / História e Cultura / 2014
A Sociologia surge durante o século XIX, o século das especializações, inspirada nas Ciências Naturais, em busca da explicação da regularidade dos “fatos sociais”. A História, por sua vez, é um campo do saber de longa data, por muito tempo considerada como uma área que visa acentuar a singularidade dos acontecimentos. Nessa linha interpretativa, enquanto a primeira se propõe a estabelecer um olhar geral e abrangente, buscando a interpretação e a generalização, a segunda se define pelo olhar da lupa que enxerga ao nível do detalhe e é capaz de dar luz ao arbitrário do movimento histórico. Esta é uma narrativa possível, embora há muito superada, sobre as duas ciências e suas fronteiras, pois, ao estabelecer tais definições de forma estanque, não é capaz de compreender as trocas e influências mútuas que as constituem. Essa visão também não considera as possibilidades criativas apresentadas por perspectivas contemporâneas, em ambas as áreas ou em focos interdisciplinares, que buscam ir além dos olhares que põem demasiada ênfase às “determinações estruturais” ou às ilimitadas escolhas conscientes dos agentes que conduzem as mudanças sociais.
Tal interpretação remonta às narrativas do século XIX de origem das disciplinas científicas que, embora não sejam falsas, são criações que dependem da seleção e da organização de eventos. É lugar-comum que a França é o contexto no qual a Sociologia se consolida como ciência, a partir das ambições levadas a cabo, entre outros, em primeiro lugar por Auguste Comte e, de forma mais sofisticada e definitiva por Émile Durkheim. A nova ciência buscava a explicação dos fenômenos sociais a partir de análises comparativas que possibilitassem a generalização e o estabelecimento de modelos explicativos da dinâmica social, portanto, em perspectiva antagônica com a historiografia prevalecente, aquela desenvolvida por Leopold von Ranke, centrada no estudo do fenômeno histórico compreendido em sua singularidade. A História serviria como ciência auxiliar às pretensões universalizantes da Sociologia.
Entretanto, ainda se referindo ao mesmo contexto francês, foi a partir da perspectiva inovadora dos Annales, desde a sua primeira geração de historiadores, que se estabeleceu uma revolução na maneira de se conceber a historiografia na década de 1930. Busca-se nessa perspectiva a interdisciplinaridade, especialmente entre a Antropologia, a Geografia, a Linguística, a Economia e a Sociologia. Houve, desta forma, uma influência muito grande da Sociologia neste novo e decisivo paradigma de se estudar a História a partir da perspectiva da “história-problema”, da preocupação com a interpretação e não mais com a simples narração e cronologia de fatos. A História incorporava elementos da Sociologia, recriando-se a partir de uma tradição que lhe é própria, recolocando novos “problemas” a desafiarem historiadores e sociólogos. Este é somente um exemplo, de importância inegável, do diálogo profícuo que se estabeleceu entre as duas áreas do conhecimento, renovando seus objetivos e as formas de produção do conhecimento acadêmico.
As ciências se configuram enquanto campos de saber específicos a partir de sua institucionalização, das definições de métodos, técnicas e objetos de pesquisa. Compreender o aspecto contextual, dinâmico e de natureza renovadora das ciências nos permite vislumbrar seu caráter plural, com as contribuições distintas da historiografia e sociologia francesas, norte-americanas, inglesas, latino-americanas, dentre outras que poderíamos provisoriamente classificar, bem como acompanhar seu desenvolvimento e suas trocas enriquecedoras. É no diálogo, muitas vezes contrastivo, que se fundam e se renovam as tradições teóricas e é por meio dele que os campos do saber se reinventam. A sociologia e a historiografia contemporânea, com sua ampla diversificação de autores, abordagens teóricas e metodologias renovam as questões e possibilidades de encontro entre as áreas.
Muito tem sido discutido mais contemporaneamente sobre as fronteiras e contribuições entre as duas áreas. O sociólogo Norbert Elias, expoente da sociologia histórica, apresenta-se como crítico de modelos explicativos sociológicos sistêmicos que pouco dão atenção à dinâmica histórica, mas não busca no elemento histórico algo “único” ou uma “singularidade absoluta”, em direção divergente, em uma abordagem que aproxima as duas áreas do conhecimento, visando analisar os processos históricos. Assim, Elias fomenta uma teoria sociológica que permite interpretar a mudança histórica como aspecto fundamental do social e a história de maneira menos subjetiva. Já o historiador Paul Veyne, em O inventário das diferenças. História e Sociologia (1983), acredita que a História deva recorrer e caminhar junto à Sociologia para ser interpretativa e problemática, mostrando que não há leis na História e que a História é, na verdade, o inventário das diferenças. O historiador deve, segundo Veyne, incorporar as teorias da Sociologia para perceber os tempos históricos em suas diferenças dentro do que há de constantes.
Para além das fronteiras demarcadas entre História e Sociologia, outros saberes, do qual se destacam aqueles originários dos Estudos Culturais, como as correntes teóricas contemporâneas dos estudos queer, pós-coloniais e feministas, apresentam-se como perspectivas críticas às limitações disciplinares. Críticos dos pressupostos normativos, presentes em diversificados campos de conhecimento, constroem a partir de incorporações criativas de diversos saberes, novas formas de conhecimento sobre o social e o histórico. É, portanto, na interdisciplinaridade que surgem outras abordagens inovadoras e críticas às relações de saber e poder institucionalizadas, que reproduzem ou invisibilizam diversas hierarquias e subalternizações da vida social.
Embora tenhamos alguns exemplos de reflexões nos estudos acadêmicos nacionais, notamos que são sempre importantes e mesmo necessárias produções que busquem refletir sobre a dinâmica entre as áreas, suas fronteiras e, especialmente, suas contribuições, tanto no âmbito teórico, como na realização de pesquisas empíricas, principalmente porque as reflexões e aportes teóricos das Ciências Sociais mudam com o passar do tempo. Tal é a proposta deste dossiê, apresentar artigos, tanto fundamentados em discussões teóricas, quanto baseados em pesquisas empíricas, que mostrem as contribuições, aproximações e o diálogo entre a Sociologia e a História.
Com base na proposta do dossiê, de apresentar uma interlocução entre áreas do conhecimento, a partir de uma perspectiva histórica e sociológica, incorporamos o Serviço Social ao debate, tendo em vista seu reconhecimento como profissão inserida no campo das ciências humanas e sociais.
O Serviço Social no Brasil surge nos anos de 1930, na fase monopólica do capital, como resposta às demandas e necessidades sociais da época. Com a emergência da questão social, entendida também como questão política, resultado da luta de classes e das desigualdades sociais produzidas no capitalismo, a profissão foi requisitada pelo Estado e pelos setores privados, objetivando, num cenário tenso, contraditório e antagônico, enfrentar as mazelas sociais pela via das políticas públicas.
Sendo assim, o Serviço Social não surge como uma ciência inscrita oficialmente num campo de saber, mas como uma profissão inserida na divisão social do trabalho, ou seja, como uma especialização do trabalho coletivo, dada sua dimensão interventiva. Isso não significa ausência da dimensão investigativa na profissão, tendo em vista que o Serviço Social atualmente é reconhecido e considerado área de produção do conhecimento. Nesse caso, as ciências humanas e sociais, especialmente a História, a Sociologia, a Economia e a Ciência Política, têm contribuído de forma significativa para a produção de conhecimento na área de Serviço Social. Concomitantemente, sobretudo nas últimas décadas, pesquisas, reflexões e produções teóricas do Serviço Social também têm contribuído com essas áreas do saber.
Tendo em vista a complexificação da realidade social, marcada pelas especializações e pela fragmentação do saber, inúmeros são os desafios do tempo presente no que se refere ao conhecimento produzido. Em muitas situações, esse conhecimento aparece descontextualizado, isolado, desconexo e justaposto, o que exige dos pesquisadores e estudiosos das diversas áreas do saber uma postura interdisciplinar.
A interdisciplinaridade pressupõe interlocução, diálogo, pluralismo de ideias, de posicionamentos, de concepções e abordagens. Nesse sentido, a interdisciplinaridade como postura, permite amplitude na análise e apreensão da realidade social a partir de várias angulações e perspectivas. A postura interdisciplinar contribui para a apropriação da natureza epistemológica e ontológica da realidade social, com vistas ao conhecimento de fatos, fenômenos e processos sócio-históricos.
Nesse cenário complexo e desafiador para a produção de conhecimento foi que surgiu a proposta desse dossiê, tendo em vista a necessidade de aproximação e interlocução entre as diversas áreas do saber.
O dossiê conta com treze artigos de estudiosos e pesquisadores das áreas de História, Sociologia e Serviço Social, voltados à temática das relações entre as áreas de História e Sociologia. Também apresenta uma entrevista com o pesquisador e professor Richard Miskolci que versa sobre sua trajetória acadêmica, refletindo sobre a importância da interdisciplinaridade no desenvolvimento de suas pesquisas focadas na temática das diferenças e dentro de uma perspectiva queer.
No primeiro artigo, Encontros entre História e Sociologia: primeiros embates metodológicos na França, Brunno Hoffmann perfaz uma discussão própria da virada do século XIX para o XX no contexto francês, quando a Sociologia e a História delimitavam suas fronteiras e disputavam no campo acadêmico as formas legítimas de abordagem do mesmo objeto: a vida do homem em sociedade.
Ulisses do Valle, no texto A relação entre História e Sociologia no horizonte da conceitualização e da explicação dos objetos históricos: reflexões sobre o pensamento de Max Weber, reflete sobre a História e a Sociologia a partir das propostas de Max Weber.
O terceiro artigo, História e Sociologia: a contribuição de Norbert Elias, de Tereza Cristina Kirschner, discute a elaboração criativa e interdisciplinar do sociólogo alemão e sua recepção entre sociólogos e historiadores.
Em As contribuições da Sociologia para o desenvolvimento da História Intelectual, Marcos Sorrilha Pinheiro analisa os “empréstimos teóricos” da sociologia de Pierre Bourdieu, Raymond Williams e Charles Tilly na elaboração de métodos de pesquisa da área de História Intelectual.
Elisângela de Jesus Santos problematiza, em Intelectuais e História: identidade caipira e o com-texto civilizatório brasileiro do século XX, a partir da perspectiva dos estudos culturais latino-americanos e dos estudos descoloniais, a construção do personagem literário Jeca Tatu na obra de Monteiro Lobato, dando destaque ao conceito de “colonialidade”.
O artigo de Maria Cecília Adão, Análise Histórico-Sociológica das Mudanças Comportamentais Femininas e do Impacto destas nas Famílias Militares, busca compreender como as mudanças comportamentais empreendidas pelas mulheres, desde a década de 1960 até os dias atuais, impactam nos arranjos familiares dos oficiais militares. Para isso a pesquisa realiza uma análise complementar entre elementos teóricos sociológicos e metodologias de pesquisas históricas.
Karen Fernanda da Silva Bortoloti, em seu artigo, Anísio Teixeira e as Ciências Sociais, apresenta reflexões sobre a contribuição e o legado de Anísio Teixeira para as Ciências Sociais e a educação brasileira.
Já o artigo Mapas Afetivos: recursos metodológicos baseados na história oral e reflexões sobre identidades espaciais e temporais em estudo sociológico, de Andréa Vettorassi, apresenta, por meio de metodologia baseada na história oral, com ênfase nos “mapas afetivos”, reflexões sobre o cotidiano, memória e identidade de trabalhadores migrantes em cidades do interior do Estado de São Paulo.
O manuscrito Paradoxos da Cidadania à Brasileira: sociologia histórica do campo jurídico no Brasil, de Márcio Caniello, aborda o sentido paradoxal da cidadania no Brasil, tendo como referência uma análise da formação sócio-histórica brasileira.
Quanto ao artigo de Clóvis Carvalho Britto, Paulo Brito do Prado e Raquel Miranda Barbosa, Vendo o sol nascer bordado: poderes, saberes e fazeres de reeducandas na Unidade Prisional de Goiás, os autores analisam, sob o crivo da memória e a ótica das relações de gênero, o Projeto Cabocla, implantado na Cidade de Goiás, como forma de trabalho e geração de renda para mulheres. Com base em entrevistas com mulheres, idealizadoras e trabalhadoras do projeto, enfatizam suas trajetórias de vida, suas redes de sociabilidade, cultura, relações de poder e identidades.
No artigo Os movimentos populares no Brasil: elementos sócio-históricos e desafios atuais, Michelly Ferreira Monteiro Elias retrata os movimentos sociais de caráter popular no Brasil no contexto de acirramento da luta de classes, tendo como referência temporal as últimas décadas do século XX e os primeiros anos do século XXI. Em uma conjuntura adversa, sob hegemonia do capital financeiro, apresenta as fragilidades, potencialidades e desafios postos aos movimentos populares na cena contemporânea.
Meire de Souza Neves, em seu artigo, A contribuição da Teoria Social Crítica para a formação em Serviço Social, apresenta os desafios e dilemas contemporâneos da formação em Serviço Social, destacando a importância e necessidade de se reafirmar uma perspectiva crítica, ancorada na tradição marxista, no projeto de formação profissional.
No último artigo, Confissões de um sociólogo, aprendiz de historiador (ou viceversa): aspectos da relação entre Sociologia e História em uma pesquisa sobre Oswald de Andrade, Giordano Barbin Bertelli em uma perspectiva dialógica entre os dois saberes, visa refletir sobre sua própria trajetória de pesquisa sobre Oswald de Andrade, buscando uma visão dinâmica e processual da realidade social e considerando a prática de pesquisa um campo de tensionamento e confrontação ao poder.
Como apresentamos, este dossiê é composto por trabalhos que trazem temáticas e metodologias variadas visando um mesmo propósito, refletir sobre o diálogo entre a História e a Sociologia numa perspectiva interdisciplinar. Desejamos, assim, boas leituras!
Reginaldo Guiraldelli – Professor da Universidade de Brasília, UnB Doutor em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista, UNESP / Franca.
Fernando de Figueiredo – Balieiro Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, UFSCar.
Semíramis Corsi Silva – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista, UNESP / Franca Organizadores do Dossiê História e Sociologia.
GUIRALDELLI, Reginaldo; BALIEIRO, Fernando de Figueiredo; SILVA, Semíramis Corsi. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.3, n.3 (Especial), dez., 2014. Acessar publicação original [DR]
O uso da calculadora nos anos iniciais do ensino fundamental – SELVA; BORBA (Bo)
SELVA, A.C.V. BORBA, R.E.S.R. O uso da calculadora nos anos iniciais do ensino fundamental. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. Resenha de: KISTEMANN JR., Marco Aurélio. BOLEMA, Rio Claro, v.28, n.50, p.1579-1582, dez., 2014.
Este livro das educadoras matemáticas Ana Selva e Rute Borba, já na sua introdução, revela que a discussão sobre o uso da calculadora nas salas de aula do Ensino Fundamental é atual e controverso, dividindo opiniões nos diversos segmentos educacionais, uma vez que a polêmica se dirige para a questão de como a calculadora pode auxiliar no desenvolvimento de atividades em sala de aula, influenciando positivamente o aprendizado matemático de alunos de séries iniciais.
De acordo com as autoras, algumas defesas do uso da calculadora embasam-se no amplo uso dessa ferramenta em situações matemáticas extra-escolares. Por outro lado, sujeitos que se opõem ao uso da mesma, argumentam que crianças que ainda não dominam as operações aritméticas não devem ser expostas ao uso da calculadora para a solução de problemas matemáticos. Corroboramos a opinião das autoras de que a mera introdução da calculadora, sem reflexões sobre suas reais possibilidades e seus limites, não é suficiente para que essa mídia seja propulsora de desenvolvimento de conceitos matemáticos, na correção de erros e como instrumento de autoavaliação.
Apesar das divergências, as autoras defendem que, se bem utilizada em situações didáticas planejadas com critério, a calculadora constitui-se como ferramenta que pode auxiliar o aluno, por exemplo, na constituição do sistema de numeração decimal, na operação com números naturais e racionais, entre outros conceitos matemáticos. Para guiar suas ações investigativas, Selva e Borba traçam questionamentos centrais buscando investigar se: (i) o uso de calculadora por alunos em séries iniciais inibe o raciocínio dos mesmos; (ii) o uso de calculadora impede avanços matemáticos; e (iii) a calculadora pode auxiliar o desenvolvimento do raciocínio matemático de alunos dos anos iniciais.
No capítulo II, intitulado O que pensam professores sobre o uso da calculadora, fica claro, nas falas das autoras, que o principal responsável pelo uso da calculadora em sala de aula é o(a) professor(a), cabendo a este profissional a decisão final de elaboração de atividades para que os alunos, desde cedo, possam interagir usando a calculadora. Nesse sentido, percebemos que discussões sobre o uso de computadores e calculadoras em sala de aula propiciarão aos professores conhecimentos sobre como e porque utilizarem essas ferramentas enquanto instrumentos de ensino e de aprendizagem. As autoras, neste capítulo, apresentam ainda um levantamento realizado junto a professores que atuam nos 4º e 5 º anos, buscando descobrir se estes propõem atividades e como são as propostas elaboradas para o uso de calculadora no Ensino Fundamental. Esse levantamento tem como escopo analisar, de uma forma abrangente, a concepção de professores com relação ao uso da calculadora, a importância da mesma, as (des)vantagens percebidas quando de sua utilização e quais conteúdos são mais apropriados para serem desenvolvidos com esse recurso didático. Um resultado importante desse levantamento, dentre outros, é o que revela que, embora os professores afirmem reconhecer a necessidade do uso da calculadora em sala de aula, apontando as (des)vantagens de sua utilização, os mesmos reconhecem que não têm feito uso sistemático deste recurso no seu cotidiano escolar.
O que as pesquisas mostram sobre o uso da calculadora dá nome ao terceiro capítulo desse livro, no qual Selva e Borba discutem como e o que dizem os pesquisadores em Educação Matemática sobre o uso de calculadora em sala de aula. Embora defendam que o uso de computadores e calculadoras pode promover uma reorganização da atividade matemática, ressalta-se, ao longo do capítulo, que a calculadora é um mero instrumento coadjuvante e acessório nas atividades matemáticas propostas, uma vez que as tarefas devem ser interpretadas e consumadas pelos alunos.
As autoras relatam que estudos nacionais e internacionais vêm apresentando resultados que demonstram que a calculadora pode exercer um papel importante na compreensão de conceitos matemáticos, explicitando que a calculadora pode e deve ser proposta em sala de aula a partir de situações que estimulem os alunos a refletirem, subsiando também o professor na proposição de atividades matemáticas.
O Capítulo IV, Usando a calculadora em sala de aula, apresenta uma série de seis observações realizadas pelas autoras, em 2006, em uma escola particular em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, em uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental e de quatro observações em uma turma de 4º ano do mesmo nível e na mesma escola. A escolha por essa escola e essas séries se deve ao histórico – de pelo menos quatro anos – de desenvolvimento de atividades envolvendo a calculadora em sala de aula. Nesta escola buscam-se diversas formas de se superar dificuldades no trabalho com o uso da calculadora, tais como a resistência dos pais, a dependência dos alunos com relação ao uso de calculadora e o despreparo docente para o uso de tecnologias. Em suma, este capítulo mostra exemplos de atividades que podem ser utilizadas em sala de aula com o apoio da calculadora e os momentos prazerosos de aprendizagem resultantes das discussões de conteúdos matemáticos por parte de professor e alunos do Ensino Fundamental de uma escola particular pernambucana.
O capítulo intitulado Como os livros didáticos têm tratado o uso da calculadora, concentra-se no papel desempenhado pelos responsáveis por planejar e elaborar os livros didáticos, bem como no papel daqueles que analisam livros didáticos de Matemática dos anos iniciais e suas propostas concernentes ao uso de calculadora. Para tanto, realizou-se a análise detalhada de coleções de livros didáticos em particular no que se referia às atividades nas quais se observava a necessidade do uso da calculadora, buscando também uma verificação acerca das reflexões que os compêndios didáticos, no que diz respeito ao uso de tecnologias, proporcionam aos professores em suas práticas pedagógicas.
Percebemos também neste capítulo que, embora a importância da calculadora como ferramenta de cálculo seja reconhecida, o seu uso em sala de aula com sua representação simbólica alternativa, perfazendo-se como instrumento de explorações conceituais em cenários variados de resolução de problemas, ainda apresenta-se como alvo de muitos preconceitos, pois muitos profissionais consideram que a inserção da calculadora pode inibir o raciocínio dos alunos, além de gerar a denominada preguiça mental.
O penúltimo capítulo, Outras atividades com calculadora, apresenta propostas de atividades com a calculadora organizadas de forma criteriosa, levando-se em consideração o tipo de atividade, o eixo matemático a que se refere e os conceitos trabalhados. As atividades buscam entre outras propostas: (i) explorar o valor posicional do sistema de numeração decimal; (ii) propor a resolução de problemas com grandezas e medidas; (iii) explorar a divisão como geradora de números decimais e a multiplicação de decimais; (iv) explorar diferentes representações dos conceitos matemáticos e as relações entre operações inversas; e (v) estimular atividades de estimativas e realização de cálculos confirmadores de resultados.
No capítulo que encerra o livro, as autoras enfatizam que o fato da calculadora enriquecer o processo de ensino aprendizagem não significa que se deva extinguir o ensino de algoritmos com o uso de papel e lápis na resolução de problemas matemáticos. Em oposição a essa ideia absurda, as autoras asseveram que o tradicional uso do papel e do lápis permitem também aos alunos evoluir na resolução de um problema, ampliando as possibilidades de estratégias favorecedoras da construção dos conceitos matemáticos que permeiam o algoritmo. Contudo, ressaltam a importância do uso de novas tecnologias no processo de ensino e aprendizagem matemática já nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Para Selva e Borba é fundamental que ocorra a elaboração de propostas pedagógicas que tragam em seu bojo o uso de tecnologias que perpassem todos os níveis e modalidades de ensino, carecendo também de uma contundente conscientização da comunidade escolar como um todo, pais, alunos, professores, e gestores, para a relevância do trabalho envolvendo tecnologias diversas na escola.
Entendemos que a riqueza do tema exposto por Selva e Borba se revela inicialmente quando se ressalta, em diversos pontos do livro, que o uso da calculadora para a exploração de conceitos matemáticos vem desmistificando o papel da calculadora na sala de aula dos anos iniciais. Entendemos que essa desmistificação é gradativa, mas pode levar os agentes educacionais a adquirir uma visão mais abrangente sobre a utilização de calculadora na escola por meio de atividades que promovam a construção de conceitos matemáticos.
Por fim, a riqueza do tema se revela também quando são apresentadas investigações realizadas pelas autoras que demonstram que a presença da calculadora pode ser motivadora para os alunos, gerando um ambiente de reflexões acerca de situações matemáticas que se tornam repetitivas, enfadonhas e dominadas por práticas mecânicas nas quais se utilizam somente lápis e papel. Ao optar por essa tecnologia, ou seja, pela calculadora, aos alunos é dada uma opção distinta da mera aprendizagem de um algoritmo, o que se torna uma ferramenta valiosa para a reflexão sobre conceitos matemáticos, constituindo-se em um recurso pedagógico complementar para as propostas do professor de Matemática.
Marco Aurélio Kistemann Júnior – Doutor em Educação Matemática pela Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), Rio Claro, São Paulo. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro-RJ. Professor e pesquisador do Departamento de Matemática e do Mestrado Profissional em Educação Matemática, onde lidera o GRIFE/UFJF (Grupo de Investigações Financeiro-Econômicas em Educação Matemática), na Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. E-mail: marco.kistemann@ufjf.edu.br.
[MLPDB]Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas | Jörn Rüsen
A obra de Jörn Rüsen (1938 –) tem sido bem divulgada entre as ciências humanas no Brasil, sobretudo em função dos esforços concentrados de alguns grupos de pesquisa, em teoria da história e historiografia ou na área de educação histórica, por meio de seus periódicos; entre eles, esta Revista de Teoria da História (UFG). A maneira como o autor tem sido recepcionado entre nós pelo público universitário, isto é outra questão. É fora de dúvida, todavia, que encontram-se entre nós pesquisadores muito bem equipados e habilitados para uma avaliação apurada das contribuições de Rüsen e da aplicabilidade de suas teorias à historiografia ou à didática da história. Para uma análise detida de sua Historik, aprendemos com eles que há que se considerar as discussões da historiografia alemã pós-guerra e, igualmente, os debates teóricos e epistemológicos nas ciências humanas desde o XIX – ou antes, desde a filosofia das luzes – até a atualidade. Além disso, o contexto de europeização e história global, assim como algumas questões políticas, tais quais a alteridade, os direitos do homem e o meio ambiente, próprias do humanismo contemporâneo. Notem-se bem, por fim, a amplitude e a impressionante coerência interna de seu projeto e a filosofia da história subjacente, mantenedora de uma compreensão otimista do mundo. Leia Mais
A invenção de África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento – MUDIMBE (AN)
MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção de África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde (Portugal), Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013. Resenha de: WEBER, Priscila Maria. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 563-568, dez. 2014.
“O mito é um texto que se pode dividir em partes e revelar a experiência humana e a ordem social” (MUDIMBE, 2013, p. 180).
A obra A invenção da África: Gnose, Filosofia e a Ordem do conhecimento1, de Valentin Yves Mudimbe2, caracteriza-se por abranger uma perspectiva historicista que problematiza os conceitos e discursos do que conhecemos como uma África mitificada. As verdades veiculadas por filósofos, antropólogos, missionários religiosos e ideólogos, bem como imagens ocidentalizadas e/ou eurocêntricas, inerentes aos processos de transformações dos vários tipos de conhecimentos, são desconstruídas por Mudimbe pari passu aos padrões imperiais ou coloniais. Para tal empreitada, vale ressaltar as inúmeras referências que compõem um sólido corpus documental utilizado pelo autor em sua investigação, ou seja, estas transitam da filosofia romana ao romantismo alemão. Ou ainda, o questionar e investigar através do termo gnose, cunhado com o intuito de erguer uma arqueologia do(s) sentido(s) do Pensamento Africano.
Para o autor, o sentido, assim como os usos de um conhecimento “africanizado” e a forma como foi orquestrado, ou seja, um sistema de pensamento que emergiu estritamente de questões filosóficas, pode ser observado através dos conteúdos veiculados pelos pensadores que o forjam, ou ainda, através dos sistemas de pensamento que são rotulados como tradicionais e as possíveis relações destes com o conhecimento normativo sobre África. Logo, uma sucessão de epistemes, assim como os procedimentos e as disciplinas possibilitados por elas são responsáveis por atividades históricas que legitimam uma “evolução social” no qual o conhecimento funciona como uma forma de poder. As africanidades seriam um fait, um acontecimento e a sua (re)interpretação crítica abrange uma desmistificação que se calca na argumentação de uma história africana inventada a partir de sua exterioridade.
Essa exterioridade que veste a África de roupagens exóticas é problematizada com as inúmeras missões e alianças que arranjavam um forte compromisso com os interesses religiosos e a política imperial. No entanto, o cerne da problematização presente no texto de Mudimbe concentra-se na análise da experiência colonial, um período ainda contestado e controverso, visto que propiciou novas configurações históricas e possibilidades de novos ícones discursivos acerca das tradições e culturas africanas. Sobre a estruturação colonizadora, o autor a coloca como um sistema dicotômico, com um grande número de oposições paradigmáticas significadas. São elas: as políticas para domesticar nativos; os procedimentos de aquisição, distribuição e exploração de terras nas colônias; e a forma como organizações e os modos de produção foram geridos.
Assim, emergem hipóteses e ações complementares, como o domínio do espaço físico, a reforma das mentes nativas e a integração de histórias econômicas locais segundo uma perspectiva ocidental.
Os conceitos de tradicional versus moderno, oral versus escrito e impresso, ou os sistemas de comunidades agrárias e consuetudinárias versus civilização urbana e industrializada, economias de subsistências versus economias altamente produtivas, podem ser citados para que exemplifiquemos o modo como o discurso colonizador pregava um salto de uma extremidade considerada subdesenvolvida para outra, considerada desenvolvida. Queremos com isso dizer que houve um lugar epistemológico de invenção de uma África. O colonialismo torna-se um projeto e pode ser pensado como uma duplicação dos discursos ocidentais sobre verdades humanas.
Para que seja possível obter a história de discursos africanos, é importante observar que alterações no interior dos símbolos dominantes não modificaram substancialmente o sentido de conversão da África, mas apenas as políticas para sua expressão ideológica e etnocêntrica. É como se houvesse uma negritude, uma personalidade negra inerente à “civilização africana” que possui símbolos próprios, como a experiência da escravidão e da colonização como sinais dos sofrimentos dos escolhidos por Deus.3 Contudo, à medida que compreendemos o percurso dos discursos e rompemos epistemologicamente com posições essencializadas, podemos questionar, como sugere Mudimbe, quem fala nestes discursos? A partir de que contexto e em que sentido são questões pertinentes? Talvez consigamos responder essas questões com uma reescrita das relações entre etnografia africana e as políticas de conversão.
Desse modo, o texto de A invenção da África traz com pertinência o refletir sobre alguns autores como E. W. Blyden,4 que rejeitava opiniões racistas ou conclusões “científicas” como os estudos de frenologia populares nos oitocentos. Frequentemente cognominado como fundador do nacionalismo africano e do pan-africanismo, Blyden em alguma medida comporta esse papel, visto que descreveu o peso e os inconvenientes das dependências e explorações, apresentando “teses” para a libertação e ressaltando a importância da indigenização do cristianismo e apoio ao Islã. Para Mudimbe, essas propostas políticas, apesar de algum romantismo e inconsistências, fazem parte dos primeiros movimentos esboçados por um homem negro, que aprofundava vantagens de uma estrutura política independente e moderna para o continente.
A obra segue com reflexões que esboçam embates a respeito da legitimação da filosofia africana enquanto um sistema de conhecimento, visto que algumas críticas expõem esse pensée como incapaz de produzir algo que sensatamente seja considerado como filosofia.
A história do conhecimento na África é por vezes desfigurada e dispersa em virtude da sua composição, ou seja, o acessar de documentações para sua constituição por vezes não apenas oferece as respostas, mas as ditam. Além disso, o próprio conjunto do que se considera por conhecimento advém de modelos gregos e romanos, que mesmo ricos paradoxalmente são como todo e qualquer modelo, incompletos. Muitos dos discursos que testemunham o conhecimento sobre a África ainda são aqueles que colocam estas sociedades enquanto incompetentes e não produtoras de seus próprios textos, pois estes não necessariamente se ocupam de uma lógica do escrito (DIAGNE, 2014).
A gnose africana testemunha o valor de um conhecimento que é africano em virtude dos seus promotores, mas que se estende a um território epistemológico ocidental. O que a gnose confirma é uma questão dramática, mas comum, que reflete a sua própria existência ou, como uma questão pode permanecer pertinente? É interessante lembrar que o conhecimento dito africano, na sua variedade e multiplicidade, comporta modalidades africanas expressas em línguas não africanas, ou ainda categorias filosóficas e antropológicas usadas por especialistas europeus veiculadas em línguas africanas. Isso quer dizer que as formas protagonizadas pela antropologia ou pelo estruturalismo marxista onde havia uma lógica original do pensamento trans-histórico inexistem.
As ciências, ou a filosofia, história e antropologia são discursos de conhecimento, logo, discursos de poder e possuem o “[…] projeto de conduzir a consciência do homem à sua condição real, de restituí-la aos conteúdos e formas que lhe conferiram a existência e que nos iludiram nela” (FOUCAULT, 1973, p. 364). Sucintamente, a obra de Mudimbe comporta a análise de algumas teorias e problematizações, como a escrita africana na literatura e na política, propositora de novos horizontes que salientam a alteridade do sujeito e a importância do lugar arqueológico. Ou ainda podemos salientar a negritude, a personalidade negra, e os movimentos pan-africanistas como conhecidas estratégias que postulam lugares.
Contribuições de escolas antropológicas, o nascimento da etnofilosofia, a preocupação com a hermenêutica, ou o repensar do primitivo e da teologia cristã, dividem as ortodoxias que podem ser visibilizadas, por exemplo, com a discussão sobre a Filosofia Bantu, de Tempels ou ainda com as revelações de Marcel Griaule acerca da cosmologia Dogon. A antropologia que descreve “organizações primitivas”, e também programas de controle advindos das estratégias colonialistas, produziu um conhecimento que demandava aprofundamento nas sincronias dessas dinâmicas. Com isso, é plausível considerarmos que os discursos históricos que interpretam uma África mítica são apenas um momento, porém significativo, de uma fase que se caracteriza por uma reinvenção do passado africano, uma necessidade que advém desde a década de 1920.
Notas
1 Editada recentemente no ano de 2013 pelas edições Pedago em parceria com as Edições Mulemba, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, o volume é uma tradução do original em inglês publicado em 1988 pela Indiana University Press.
2 Nascido em Jadotville no ano de 1941, antigo Congo Belga e atualmente República Democrática do Congo, Valentim Yves Mudimbe posicionou seus interesses de pesquisa no campo da fenomenologia e do estruturalismo, com foco nas práticas de linguagens cotidianas. O autor doutorou-se em filosofia pela Catholic University of Louvain em 1970, tornando-se um notável pensador, seja através de suas obras que problematizam o que se conhece como história e cultura africana, ou ainda pela oportunidade de trabalhar em instituições de Paris-Nanterre, Zaire, Stanford, e ainda no Havard College. Mudimbe ocupou cargos como a coordenação do Board of African Philosophy (EUA) e do International African Institute na University of London (Inglaterra), e atualmente é professor da Duke University (EUA). Disponível em: <https://literature.duke.edu/people?Gurl=& Uil=1464&subpage=profile>. Acesso em: 16 jun. 2014 3 “A negritude é o entusiasmo de ser, viver e participar de uma harmonia natural, social e espiritual. Também implica assumir algumas posições políticas básicas: que o colonialismo desprezou os africanos e que, portanto, o fim do colonialismo devia promover a auto-realização dos africanos. (MUDIMBE, 2013, p. 123). “A negritude destaca-se como resultado de múltiplas influências: a Bíblia, livros de antropólogos e escolas intelectuais francesas (simbolismos, romantismo, surrealismo, etc.) legados literários e modelos literários (Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé, Valéry, Claudel, St. John Perse, Apolinaire, etc.). Hauser apresenta várias provas das fontes ocidentais da negritude e duvida seriamente da sua autenticidade africana. HAUSER, M. Essai sur la poétique de la négritude. Lille: Université de Lille III, 1982, p. 533.” (MUDIMBE, 2013, p. 116) 4 Para informações mais precisas sobre Edward Wilmot Blyden, sugere-se A Virtual Museum of the Life and Work of Blyden. Disponível em: <http://www.columbia.edu/~hcb8/EWB_Museum/Dedication.html>. Acesso em: 30 jun. 2014.
Referências
DIAGNE, Mamoussé. Lógica do Escrito, lógica do Oral: conflicto no centro do arquivo. In: HOUNTONDJI, Paulin J. (Org.). O antigo e o moderno: a produção do saber na África contemporânea. Mangualde; Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2014.
FOUCAULT, Michel. Les Mots et les Choses. Paris: Gallimard, 1973.
HAUSER, Michel. Essai sur la poétique de la négritude. Lille: Université de Lille III, 1982.
MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Mangualde, Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013.
Priscila Maria Weber – Doutoranda em História PUCRS – Bolsista CAPES. E-mail: priscilamariaweber @yahoo.com.br.
Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée – MBEMBE (AN)
MBEMBE, Achille. Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée. Paris: Éditions La Découvert, 2010, 246p. Resenha de: MIGLIAVACCA, Adriano Moraes. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 559-562, dez. 2014.
Desde as descolonizações e retiradas de seus países dos antigos poderes coloniais europeus, a situação do continente africano vem sendo assunto frequente e polêmico entre intelectuais, políticos e formadores de opinião no próprio continente e fora dele. Os diversos problemas econômicos e sociais, a instabilidade política e os conflitos internos fazem com que a metáfora da “caixa sem chave”, usada como epígrafe de um dos capítulos do livro Sortir de la grande nuit: essai sur l’Afrique décolonisée, do cientista político camaronês Achille Mbembe, pareça se justificar. O hermetismo presente nessa metáfora amplifica-se com a imagem que o leitor encontra logo no título do livro: a da “grande noite”.
A obra de Mbembe apresenta um exame complexo da natureza desse fechamento em que se encontram o continente e os fenômenos que o compõem. Obra de teor político, Sortir de la grande nuit, além de se valer de imagens poéticas, parte de um relato pessoal de memórias do próprio autor, camaronês com formação acadêmica na França e longa passagem pelos Estados Unidos, que vive atualmente na África do Sul, onde leciona na Universidade de Witwatersrand. O percurso intelectual da obra reflete, portanto, a trajetória do próprio autor: tendo importante foco na África francófona e seu relacionamento ambíguo e tenso com os poderes coloniais franceses, não deixa de considerar as possibilidades e visões que advêm desses diversos países que perfaz a experiência do autor.
Em seu ecletismo literário, o ensaio inicia-se com uma narrativa dos anos de infância, no Camarões, estabelecendo a África, incontroversamente, como núcleo de onde o pensamento do autor se organiza e a partir do qual se articulam as influências de fora. De sua infância em Camarões, Mbembe destaca e elabora seu convívio inicial com os dois elementos que, articulados, dão o teor do livro: a noite e a morte. O autor recorda como o impressionaram, quando criança, os cadáveres ao relento, revolvidos por escavadeiras; relembra também os revolucionários tornados terroristas pelo discurso do poder colonial, mortos aos quais foi negado o reconhecimento de uma sepultura. Acima de tudo, o autor lembra como buscava simbolizar e entender essa realidade que o cercava, e é aí que a metáfora central do livro aparece em sentido denotativo e conotativo: era à noite que o jovem Achille Mbembe buscava construir um discurso sobre a morte. Não é negado o papel que teve o encontro com o cristianismo nessa busca por entendimento: a religião que veio de fora aparecia tanto como discurso de insubmissão quanto como possibilidade de haver, após o escuro da morte e da noite, algo de vida.
Mbembe deixa evidente, no decorrer da obra, o ceticismo com que encara a cultura do colonizador em seus anos de estudante na França. Lá, ele se depara com um povo orgulhoso de sua tradição republicana humanista e universalista, de sua língua como uma “língua humana, universal”. Mbembe não deixa de apontar e elaborar uma contradição entre esse humanismo universalista e o racismo que vê no bojo da própria sociedade francesa e na forma como esta se impusera em seu país natal. A obra do autor antilhano Frantz Fanon abre para ele novas perspectivas sobre o tema da raça, o faz ver o confinamento em uma raça como algo que pode ser superado, bem distante da rigidez dos postulados raciais com que as tradições francesas formaram narrativas de cidadania e pertença a uma humanidade; postulados nos quais o estatuto de “cidadão” é barrado àqueles que, embora admitidos na grande esfera da “humanidade”, o são com certas limitações: são seres humanos “primitivos”, limitados em sua humanidade última. O pensamento de Fanon o coloca à frente com o desafio de romper tal clausura identitária e fazer ver que o homem negro, longe de ser um “primitivo”, é um “homem”, ao qual não faltam quaisquer predicados que definem essa categoria.
Para além da França, Mbembe articula as oportunidades de entendimento que se lhe apresentaram suas experiências nos Estados Unidos e na África do Sul. Uma história de luta por direitos civis, a presença de personalidades negras altamente influentes e a capacidade, mais pronunciada que a da França, de captar para suas universidades as elites africanas, fazendo dos Estados Unidos um destino mais atraente do que a França, cuja influência Mbembe vê declinar. A África do Sul não consegue esconder os vestígios de seu passado discriminatório, que faz o autor ver nela “o signo da besta”; no entanto, o trânsito étnico, nacional e cultural do país dá a ele um cosmopolitismo que é incorporado pelo autor em seu pensamento.
Acima de tudo, é enfatizada a necessidade de uma descolonização, mais que política ou econômica, subjetiva, interior; ou, para usar as palavras do autor, é necessária uma “reconstituição do sujeito”, no qual se desmontem as estruturas coloniais e o possível seja reabilitado. Mbembe é inequívoco em afirmar que esta não é uma tarefa meramente prática-política: um trabalho epistemológico e estético deve ser efetuado, por meio do qual um novo conhecer-se a si mesmo pode emergir. Em particular, a importância da literatura e da crítica literária é enfatizada nesse movimento de descolonização.
A exclusão da África enquanto realidade surge no discurso ocidental primeiramente como uma operação da linguagem. A literatura africana surge como uma reação contra a falta de realidade que reveste o signo africano, enquanto a crítica literária busca operar a desconstrução da prosa colonial, sua montagem mental, suas representações e formas simbólicas que serviram de infraestrutura ao projeto imperial.
Em quaisquer áreas disciplinares, Mbembe identifica no discurso africano três paradigmas político intelectuais, não necessariamente autoexcludentes: o nacionalismo anticolonial, o marxismo e o pan- -africanismo. O primeiro teve uma influência importante na esfera da cultura, da política e economia; o segundo foi fundamental na formação do que veio a ser conhecido como “socialismo africano”; e o terceiro enfatizou a solidariedade racial e transnacional. Para Mbembe, parece, tais paradigmas tendem a ser excessivamente fixos, não dando conta da complexidade e do dinamismo que caracterizam o continente africano. O autor lembra como a África não compreende apenas os negros, mas também as diversas etnias que vieram lançar raízes em seu solo; não compreende apenas os que lá ficam, mas os que de lá saíram, mas continuam sendo, não obstante, africanos.
A África de Mbembe constitui-se, então, não como fonte estática, mas como intervalo de modificações e passagens; seu é o discurso, não mais das origens, mas do movimento, de uma “circulação de mundos”, como conceitua o próprio autor. A esse novo paradigma, Mbembe dá o nome de “afropolitanismo” – movimento no qual a África relativiza suas raízes e busca se reconhecer no distante e o distante no próximo, o próprio no outro. Esse novo paradigma, Mbembe enfatiza, torna insustentável mesmo a “solidariedade negra” proposta pelo pan-africanismo; a raça, afinal, resulta do discurso colonial e externo, exatamente aquele que se busca superar.
Talvez não seja coincidência o fato de o livro se iniciar com as palavras “Il y a um demi-siécle” (há meio século) e terminar com “temps nouveaux” (novos tempos). No título mesmo, já se insinua a inclinação do pensamento do autor para o que há de vir, ao qual todo o trabalho histórico, biográfico e crítico, estendendo-se ao longo da obra. A saída da grande noite a que o autor insta seu leitor é uma busca de vida, uma vontade de comunidade; a noite e a morte englobam as heranças do passado colonial – o confinamento racial, a dependência política e econômica, a subordinação psíquica e intelectual. A vida que busca o empreendimento do autor passa pela negação mesma dessas heranças, mas se dirige a uma nova identidade, um novo centro, que não negue, mas celebre sua multiplicidade.
Notas
1 O livro acaba de ser publicado em língua portuguesa, com o título Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Mangualde; Luanda: Edições Pedagô; Edições Mulemba, 2014. 204p.
Adriano Moraes Migliavacca – Formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; doutorando em Literaturas Estrangeiras Modernas pela mesma universidade. E-mail: adrianomigglia@gmail.com.
Mochileiros da fé | R. Bitun
Na busca por uma melhor compreensão sobre o cenário religioso brasileiro, Ricardo Bitun, sociólogo da religião e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), privilegia-nos com um assunto pertinente de uma maior reflexão, o fenômeno nominado por ele “mochileiros da fé”. Nessa obra, Bitun aborda tal movimento a partir do dinamismo e da fluidez com que os adeptos da fé protestante se deslocam de uma Igreja para outra sem qualquer restrição. Usando essa figura de linguagem, o autor compara esses indivíduos aos backpakers, ou seja, “aquele[s] que carrega[m] uma mochila nas costas”, turistas ou peregrinos que agem por conta própria sem dar satisfação a nenhum grupo coletivo de viajantes. Assim, Bitun divide o trânsito religioso em duas etapas: interorganizacional e intraorganizacional. A primeira ocorre de adeptos do catolicismo, espiritismo ou religiões de origem africana para o pentecostalismo; a segunda refere-se àqueles indivíduos que se encontram no pentecostalismo, porém se movimentam entre as igrejas pentecostais e neopentecostais. O livro, além da introdução e das considerações finais, apresenta quatro capítulos: “Em que mundo transitam os mochileiros”, “Os espaços sagrados da peregrinação”, “Por onde vagueiam os mochileiros” e “Eles… os mochileiros”. Leia Mais
Religiosidade no Brasil | J. B. B. Pereira
O primeiro artigo tem como título “As religiões indígenas: o caso tupi-guarani”. Nele, o autor Roque de Barros Laraia não se apropria de fazer um inventário das diferentes religiões indígenas do Brasil, mas, sim, por meio do exemplo tupi-guarani, possibilitar ao leitor o entendimento de algumas características dos sistemas de crenças existentes entre os índios do Brasil. Laraia se detém na descrição do pajé e de tupã, e trata do entendimento de alma para os indígenas. Assim, o autor levanta os quatro tipos de alma: espíritos errantes (aqueles que morreram e não alcançaram ser bons), espíritos criadores ou heróis culturais, os donos das florestas, das águas e dos rios, e os espíritos de animais. Outros dois pontos norteadores para a compreensão das religiões indígenas, segundo o autor, referem-se ao entendimento de “céu” que indica onde estão as almas dos antepassados, o herói mítico, e à perda da vida eterna, em que, como nas religiões cristãs, há uma Eva, só que Tupi não colheu o milho desobedecendo à ordem de Mahyra.
Faustino Teixeira é o autor do segundo artigo da coletânea: “As faces do catolicismo brasileiro”. Inicialmente, Teixeira apresenta dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre as religiões no censo de 2000, em que o catolicismo continua como a religião com o maior número de fiéis, porém apontando para um grande crescimento de evangélicos e dos sem religião. Muito instrutivo, o autor aponta a complexidade da religião católica no Brasil e de forma bastante lúcida enumera quatro vertentes dos meandros do catolicismo: santorial, oficial, de reafiliados e midiático. Ao findar sua análise, Teixeira conclui que o Brasil é um país do sincretismo religioso, mas que ainda há de se elucidar o intenso trânsito entre tradições opostas. Leia Mais
Historicidade e literatura / História da Historiografia / 2014
Este dossiê tem como objetivo pensar a historicidade a partir de sua complexa e por vezes conflitiva relação com a literatura. Com “literatura”, algumas vezes, os acadêmicos se referem a escritos literários geralmente ficcionais, como os romances, e centram suas análises na questão da demarcação entre a disciplina historiográfica e o trabalho criativo de escritores não constrangidos pelas fontes documentais nem pelo que realmente ocorreu. No contexto dessa discussão, surgem os sempre vigentes debates filosóficos em torno da possibilidade de conhecer o passado, da questão do ceticismo, do realismo, do relativismo histórico e, é claro, da relação entre história e ciência. Todas essas questões conformam um corpus de problemas subsumidos sob a denominação filosofia crítica da história, criada para distingui- -la da filosofia substantiva da história. Esta última, também denominada filosofia especulativa da história, busca desvelar o sentido ou finalidade do devir humano, lendo no teatro de horrores que a humanidade atravessou e atravessa a presença de etapas no caminho progressivo até a realização de uma sociedade moralmente melhor. Os historiadores acadêmicos e os filósofos críticos da história têm se afastado da especulação sobre o sentido da marcha da história, mas por diferentes razões pelas quais se distinguiram da literatura. A diferença entre as referidas áreas de conhecimento e a literatura residia no propósito de contar ou não o que realmente havia acontecido e na necessidade ou não de constrangimento em vista das evidências. Por sua vez, o rechaço da filosofia substantiva da história adveio de sua pretensão de referir-se ao passado em si para emitir juízos avaliadores acerca do futuro sem ater-se às fontes documentais. A filosofia especulativa, a bem da verdade, aproximava-se mais da literatura que a investigação científica, ainda que de maneira não intencional. Leia Mais
O terror renegado: a retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura Civil-militar no Brasil, 1970-1975 | Alessandra GAsparotto
O livro é resultado de uma adaptação da dissertação de mestrado de Alessandra Gasparotto, agraciada com o Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas 2010. Portanto, a obra cumpre com o pré-requisito de reunir informações relevantes sobre os fatos da história política recente no país a partir de meticulosa pesquisa.
O tema desenvolvido é o dos “arrependimentos” durante a ditadura civil-miliar no Brasil, em que jovens militantes de esquerda foram apresentados aos veículos de comunicação entre 1970 e 1975, renegando suas atividades na luta-armada e oposição ao regime imposto em 1964. Como apurado no livro, “as retratações eram apresentadas na forma de manifestações públicas, entrevistas coletivas, cartas escritas “de próprio punho” e aparições em programas de televisão, além de declarações de arrependimento atribuídas aos militantes por autoridades policiais e militares”. A autora coloca os termos “arrependidos” ou “arrependimento” sempre em itálico, pois considera que foram construídos pelo regime autoritário e pela imprensa da época.
Através de 42 casos referidos no livro, fica evidente que o período de maior incidência desses casos deu-se entre 1970 e 1971, porém o artifício estendeu-se de forma esporádica até 1975. A estratégia do regime foi a de apresentar uma mudança radical no posicionamento e no sentido das ações de antigos militantes que lutaram conta ele de armas na mão. Uma vez “arrependidos”, passavam a defensores do regime ao qual combateram. Essas retratações eram tidas como ações individuais, de militantes que se arrependeram da luta por aquisição de consciência de seus erros, foram exploradas com o objetivo apontar a fraqueza moral da esquerda e, principalmente, da luta armada.
Apresentados como “terroristas arrependidos”, também chamados na época de “desbundados” os militantes tiveram suas vidas sujeitadas à exposição, ganhando muito destaque na mídia nacional. Em alguns casos os protagonistas nunca foram perdoados pela suposta delação ou abandono da causa. Seus atos repercutiram “nas celas dos presídios, no isolamento da clandestinidade ou do exílio, foram recebidos como traição”, observa a autora. O tema nebuloso da traição e do arrependimento é tratado de forma madura, sem explicações simplistas e sem julgamentos de valores precipitados.
Preocupada em contextualizar de forma criteriosa e não repetir a desqualificação a qual foram submetidos por longos anos os “arrependidos”, a autora transita pela bibliografia do tema ditadura civil-militar com desenvoltura e naturalidade, dando assim um sentido acurado na análise de suas fontes primárias que são diversas e muito qualificadas: jornais, revistas, vídeos feitos para televisão, entrevistas pela internet, entrevistas com os “arrependidos” e familiares. Dessa maneira, Gasparotto dá voz as suas fontes, mas coteja suas posições com outros dados e caminhos de forma equilibrada, fazendo um balanço contextualizado e jamais anacrônico ou abusivo.
Merece destaque no livro, além de toda a construção teórico-metodológica clara, a abordagem muito bem articulada na reconstrução dos passos do primeiro grupo de “arrependidos” tornado público em 22/5/1970 no Rio Grande do Sul e veiculado com destaque pela televisão e nas capas de três dos principais jornais de Porto Alegre. Mobilizados por Rômulo Fontes, um grupo de cinco jovens chegou a tecer elogios ao governo do presidente Médici e sua realizações. Essa retratação serviu como pedra basilar na construção de uma estratégia de retratações. Foi de fato uma manifestação arquitetada pelos militantes “arrependidos”, porém o episódio espontâneo deu o tom para uma série de outros “arrependimentos”, ora negociados com contrapartidas de redução de penas ou liberdade, ora impostos a partir de brutal tortura. Também deu margem para diversos convites ao arrependimento e, ainda, falsificação ou alegação de arrependimentos. Então, se houve um movimento espontâneo, ele foi logo ampliado e transformado em ação psicológica para atingir a população, seus desdobramentos contaram com o terrorismo de Estado como meio de convencimento para os reticentes.
Pouco depois do primeiro caso de arrependimento, ganhou notoriedade o caso de Massafumi Yoshinaga de 21 anos, cuja entrevista foi exibida na TV Tupi de São Paulo, no Telejornal Ultra-Notícias do Dia, também foi capa da Revista Veja. Yoshinaga teria sido inclusive referido em discurso do próprio Presidente segundo a Folha de São Paulo em 4 de julho de 1970, e sua manchete “Médici indica o caminho da reconciliação”. O teor da matéria dava voz ao Presidente da República: “afirmou que a política nacionalista de desenvolvimento é o caminho para vencer o terrorismo e reconciliar o país, unindo a todos no esforço para a construção de um futuro promissor”. Médici ainda teria citado “o caso do ex-terrorista Massafumi Yoshinaga, que se entregou às autoridades em São Paulo, impressionado pelas recentes iniciativas do Governo”. Anos mais tarde, sem conseguir estabilidade emocional o jovem Yoshinaga suicidou-se.
Ainda no campo dos casos célebres, a autora dedica uma análise considerável a Celso Lungaretti. Foi tratado de forma muito dura, durante muitos anos por antigos militantes da esquerda que o responsabilizavam, ao que tudo indica injustamente, pela delação de um campo de treinamento da VPR. Ao ser apresentado na televisão, Lungaretti havia sido terrivelmente torturado.
“Foi assim que, na noite do dia 9 de julho de 1970, durante a exibição do Jornal Nacional, os telespectadores da TV Globo que esperavam por mais um capítulo da novela Irmãos Coragem, grande sucesso da época, viram-se surpreendidos pela aparição de Lungaretti – um jovem franzino, de 19 anos e aparência abatida, que renegou sua militância política, negou a tortura nos porões do regime, fez um apelo à juventude para que não ingressasse na luta armada e chegou até mesmo a elogiar algumas obras do Presidente Médici” (Gasparotto, 76-77).
Os anos do governo Médici atestam a face mais dura do regime, mas também revelam a mídia em estreita colaboração com o regime na desqualificação de seus opositores. A televisão foi vista como veículo apropriado para atingir o ambiente psicossocial dos grandes centros urbanos, sua utilização foi priorizada por uma ótica de comunicação capaz de mobilizar e sensibilizar a opinião pública ao mesmo tempo em que ela própria, a TV, se valia do tema do “terrorismo arrependido” para e aumentar os índices de audiência.
Ao longo de seu trabalho Alessandra Gasparotto não somente localiza, data, organiza e expõe de forma consistente como foram explorados na época através da televisão e das páginas de jornal as retratações públicas dos ditos “arrependidos”. Na verdade, ela investiga, dá voz e valoriza a subjetividade dos envolvidos, interpreta resgatando memórias e construindo a história como deve ser; rica e plural. A construção do objeto de sua pesquisa é minuciosamente desenvolvida, sem que isso prejudique a narrativa e a compreensão do leitor, seu rigor não é rigidez, mas compromisso com os personagens, com o contexto, com a memória e com a história, buscado na fluidez de sua escrita e nos filtros de diferentes prismas e fontes. Livro essencial para quem estuda a história do período da ditadura Civil-militar, livro essencial para a memória do Brasil.
Nilo Andé Piana der Castro – Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
GASPAROTTO, Alessandra. O terror renegado: a retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura Civil-militar no Brasil, 1970-1975. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012. Resenha de: CASTRO, Nilo Andé Piana der. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.11, p. 138-140, dezembro, 2014. Acessar publicação original [DR]
Intelectuais, ciência e modernidade / Intellèctus / 2014
A revista Intellèctus (Uerj), em seu segundo número do volume XIII, dá início a uma nova fase de seu projeto editorial, passando a incluir dossiês temáticos organizados por especialistas convidados, como este que temos o prazer de apresentar sobre o tema “Intelectuais, ciência e modernidade”.
Os artigos que reunimos trazem resultados de pesquisas originais, vinculadas às distintas matrizes no campo da história intelectual, na sua especial interface com a história da ciência. Voltam-se a temáticas como a circulação de ideias e saberes – por meio da formação de redes de interlocução, leituras e correspondência entre intelectuais –, e o surgimento dos espaços formais e informais a partir dos quais, no Brasil e no espaço ibero-americano, de modo mais amplo, se constituíram os campos científicos na modernidade. Leia Mais
Outros Tempos. São Luís, v.2 n. 2, 2005.
Apresentação
Artigos
- OS CONCEITOS ARISTOTÉLICOS DE CIDADE E DE CIDADÃO
- Moisés Romanazzi Tôrres
- ESCRAVIDÃO E LAÇOS DE COMPADRIO: um estudo preliminar
- Antônia de Castro Andrade
- ANTÔNIO SÉRGIO, ENSAIOS POR DESCOBRIMENTO DA CULTURA EM PORTUGAL
- Ana Luiza Marques
- ENSAIOS SOBRE IMAGENS (QUADROS) E ESCRITORES ERUDITOS: uma analise da obra 1789: os Emblemas da Razão, de Jean Starobinski.
- Júlia Constança Pereira Camelô
- A CRIAÇÃO DE UM MITO
- Maria de Lourdes Lauande Lacroix
- ESPAÇO, UM CONCEITO HISTÓRICO: DESDOBRAMENTOS DA EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO, DA ESCOLA ALEMÃ À DÉCADA DE 1950
- Cláudio Eduardo Castro
- ASSENTAMENTOS RURAIS NO MARANHÃO: Territorialização ou (des) organização da produção familiar
- José Sampaio de Mattos, José Ribamar Gusmão Araújo
- “NÓS, OS OSSOS QUE AQUI ESTAMOS, PELOS VOSSOS ESPERAMOS”: O SÉCULO XIX E AS ATITUDES DIANTE DA MORTE E DOS MORTOS
- Agostinho Júnior Holanda Coe
- O TINO DE EXCLUSÃO AOS DESATINADOS DA RAZÃO: Visões e práticas sobre a loucura em São Luís no final do século XIX
- Fabio Henrique Gonçalves Sousa
- CRIMINALIDADE E RESISTÊNCIA ESCRAVA EM SÃO LUÍS (1860-1880)
- Leudjane Michelle Viegas Diniz
- CARNAVAL: Um dos Elementos Constituintes do Mecenato Brasileiro no Final do Século XX
- Fábio Henrique Monteiro Silva
- DO ORAL AO ESCRITO: IMPLICAÇÕES E COMPLICAÇÕES NA TRANSIÇÃO DE NARRATIVAS ORAIS
- José Guilherme dos Santos Fernandes
- SAINDO DOS TRILHOS : UMA VISÃO SOBRE A ADMINISTRAÇÃO DO TRANSPORTE ELÉTRICO LUDOVICENSE
- Sylvânio Aguiar Mendes
- “QUESTÕES DE HONRA”: SEXUALIDADE FEMININA E SOCIEDADE EM SÃO LUÍS NA VIRADA DO SÉCULO
- Veracley Lima Moreno
Publicado: 2014-11-29
Boletim Historiar. São Cristóvão, n.5, 2014.
Artigos
- O tempo de Karl Marx: as bases filosóficas da concepção materialista da história
- Giselda Brito Silva
- A extrema direita argentina em ação: intolerância, violência e antissemitismo (1995-2002)
- Gabriela Resendes Silva
- Reflexões sobre concepções de cultura na história: a historiografia da cidade de Fortaleza do século XIX
- Patrícia Marciano de Assis
- “Liberdade, só Fora do Hospício”: Rodrigo de Souza Leão, as instituições e as políticas de assistência psiquiátrica
- Thamara Parteka
- A tentativa de controle do corpo das mulheres na modernidade inglesa: as relações entre o romantismo e o falacioso diagnóstico da histeria feminina
- Felipe Salvador Weissheimer
- Fetichismo de mercadoria no cinema: o universo Yuppie no filme Psicopata Americano (2000)
- Andreza Maynard
Resenhas
A Conferência de Viena e a Internacionalização dos Direitos Humanos | Matheus de Carvalho Hernandez
O livro apresenta uma detalhada análise da II Conferência Mundial dos Direitos Humanos, a Conferência de Viena, de 1993, situando-a como importante ponto de inflexão para os direitos humanos internacionais. Com o objetivo de proceder a uma nova avaliação global do tema dos direitos humanos, no sentido de aperfeiçoar e fortalecer a proteção internacional desses direitos, a Conferência de Viena destacou como principais temas a ser tratado: a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, o problema da violação dos direitos humanos, a vinculação entre direitos humanos, democracia e desenvolvimento (o chamado 3Ds, tema pelo qual a Conferência é mais lembrada), a erradicação da pobreza e da exclusão social, a necessidade de maior coordenação e a retirada de reservas aos tratados de direitos humanos.
O principal questionamento que move a investigação é sobre “o lugar da Conferência de Viena no desenvolvimento dos direitos humanos, bem como em seus possíveis impactos para o processo de legitimação e efetivação dos direitos humanos no sistema internacional” (p. 75). Para contextualizar a discussão, Hernandez traça os antecedentes históricos desta conferência a partir do pós-Segunda Guerra: a instrumentalização dos direitos humanos na lógica da Guerra Fria e uma detalhada análise, da pouco mencionada, I Conferência Mundial de Direitos Humanos, a Conferência de Teerã, em 1968. Muitos dos embates ali travados, principalmente as questões sobre a indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos, voltariam com força total em 1993. Leia Mais
Child Migration and Human Rights in a Global Age | Jacqueline Bhabha
O tema das migrações internacionais tende a ser mais estudado nas Ciências Sociais do que nas Relações Internacionais (RI). Ainda assim, esse é um assunto que transcende fronteiras nacionais e que também poderia ser explicado pelas teorias das RI. Dentre as muitas óticas pelas quais as migrações podem ser vistas, destaca-se o número de crianças desacompanhadas atravessando a fronteira rumo aos Estados Unidos da América (EUA). Ainda que isso não seja uma novidade, o volume desse fluxo vem aumentando nos últimos anos, sendo inclusive noticiado pela mídia internacional. Nessa linha, Jacqueline Bhabha analisa o tema da migração infantil.
A autora adota uma ótica da criança como sujeito de direitos, presentes na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989) para estudar como os Estados lidam com a migração das crianças desacompanhadas (incluindo o seu direito à reunificação familiar), a situação das crianças cidadãs cujos pais são imigrantes irregulares, a adoção internacional, as crianças traficadas, as crianças soldado, as crianças refugiadas e os adolescentes migrantes por causas econômicas. As crianças começam a aparecer nos estudos migratórios relacionadas em trabalhos sobre migrações femininas e familiares. Contudo, a abordagem das crianças como atores com voz própria nem sempre é observada, pois essas normalmente são tratadas como objeto. Ao mesmo tempo, nas RI, os temas que envolvem esse grupo são considerados low politics e recebem pouca atenção internacional e da Academia. Apesar disso, Watson (2006) defende que as crianças são atores da disciplina que impactam as relações interestatais. Leia Mais
EaD em Foco. Rio de Janeiro, v.4, n.2, 2014.
Editorial
- Editorial do Vol. 4, No 2, 2014) – Educação a distância: Uma Prática da Liberdade?
- Esteban Lopez Moreno, Luiz Gustavo Ribeiro Rolando, Gabriella Dias de Oliveira
- Artigos Originais
- EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: UMA PRÁTICA DA LIBERDADE?
- Aurivar Fernandes Filho
- NOTAS SOBRE A AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
- Simone Becher Araujo Moraes
- UM ESTUDO DA APLICAÇÃO DO MODELO DE ACEITAÇÃO DE TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR COM FOCO NOS AMBIENTES VIRTUAIS DE APRENDIZAGEM
- Amanda Amorim Costa e Silva
- SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: CONHECENDO O PERFIL DOS ALUNOS DO BACHARELADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (EAD) DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
- Alessandra Simão, Julio Cesar Andrade de Abreu, Roberta Evaristo
Estudos de Caso
- EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO AUTOGERENCIAMENTO DA APRENDIZAGEM PELOS ESTUDANTES
- Suselei Bedin Affonso, Eliane Quinelato
- A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES SOCIOINSTITUCIONAIS A PARTIR DE INTERAÇÕES EM UM FÓRUM DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
- Marco Aurelio Silva Souza, Veronica da Silveira Pedro, Rita de Cássia da Silva Soares
- A UTILIZAÇÃO DA FERRAMENTA MOODLE EM CURSOS PRESENCIAIS EM UMA INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR
- Fabiana Sesmilo de Camargo Caetano, Isabela Quaglia
- COMPARAÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS IMPRESSOS DE MICROBIOLOGIA DE DOIS CURSOS BRASILEIROS SEMIPRESENCIAIS DE LICENCIATURA EM CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
- Ludmila Silva ludmilasb@gmail.com
Publicado: 2014-10-30
Traduções de Maquiavel: da Índia portuguesa ao Brasil / Tempo / 2014
Desde há muito, no vocabulário português, “tradução” significa o ato de converter um texto falado ou escrito de um idioma a outro, desejando-se, para o tradutor, um ótimo conhecimento da língua a lhe servir de fonte, bem como uma familiaridade maior com a língua almejada. Conforme o muito citado clérigo luso-francês setecentista Bluteau, as boas traduções não seriam feitas por palavras, mas por equivalências. Para ele, o vocábulo seria ainda uma figura retórica, ao repetir-se a mesma palavra com diferentes sentidos. Alude, então, ao famoso ditado”traduttore, traditore”, todavia, ponderando sobre a possível fidelidade dos bons trabalhos. 1A acepção de transferir e transformar, relativa ao termo, foi enfatizada em dicionários posteriores da língua portuguesa,2 sem prejuízo dos primeiros significados, mas conotandoo ato de traduzir como esclarecer o significado de algo. Ou seja, traduzir seria, principalmente, uma interpretação, uma compreensão e uma explicação do que pretende ser entendido.3
O dossiê ora apresentado lida com algumas “traduções” do autor Niccolò Machiavelli (1469-1527) e de suas obras, valendo-se não apenas do primeiro sentido apontado, mas também dos outros, em busca de equivalências e / ou interpretações. Em todos os casos, nele procura-se entender certas expressões assumidas por Maquiavel no mundo lusofônico através dos tempos. Essas expressões foram buscadas no império ultramarino português da época moderna, do século XVI ao XVIII, mas também no Brasil independente do século XX.
Nas histórias de Portugal, suas conquistas coloniais e do Brasil, os escritos desse florentino vivenciaram uma trajetória peculiar. Inicialmente, foram lidos com interesse por humanistas durante a expansão lusa na primeira metade do século XVI, com avanços na África, na Ásia e na América nos reinados de D. Manuel I e D. João III. Em um de seus proêmios, Maquiavel ousadamente comparou-se aos navegadores que, então, descobriam o Novo Mundo, fazendo um paralelo entre a sua teoria política e as viagens ultramarinas.4Embora ele não tenha incorporado em seus livros maiores reflexões sobre as novas conquistas então encetadas pelas monarquias ibéricas, após sua morte, suas ideias incidiram na elaboração de textos que dissertavam sobre a natureza e a legitimidade do governo de Portugal nas partes do mundo, principalmente no Oriente. Naquele momento, a censura eclesiástica em Roma e nos países ibéricos ainda não condenara plenamente as obras do secretário florentino. Comparavam-se, então, as epopeias lusitanas aos feitos dos antigos romanos, sendo os Discorsi – cuja tradução para o espanhol fora encomendada por Carlos I e dedicada ao futuro Felipe II de Espanha – uma fonte principal.5
Procura-se entender certas expressões assumidas por Maquiavel no mundo lusofônico através dos tempos, no império ultramarino português da época moderna, mas também no Brasil independente do século XX
Sucedeu-se na segunda metade do Quinhentos o tempo dos índices de livros proibidos (romanos, portugueses e espanhóis) e do reforço da ortodoxia católica. Entretanto, paradoxalmente, a pecha de autor proibido e o surgimento do antimaquiavelismo não diminuíram o interesse por essas ideias – ou pelo que elas representavam – no ambiente ibérico e marcadamente português. Nesse mundo de guerras e afirmações de poderes com pretensões mundiais, Il principe – como seria conhecido o opúsculo – e seu autor eram referências incontornáveis. No ambiente católico que formalmente o rechaçou, Maquiavel personificava os vícios da política, frequentemente contrapostos a uma atuação cristã. Mas ele também podia inspirar de forma velada ações tidas como irreprocháveis. Naquele tempo, a má fama do autor de Florença associava-se aos próprios preceitos de uma pérfida razão de Estado. Contudo, suas ideias eram também encontradas em autores formalmente definidos como antimaquiavélicos.6
Nos séculos XVII e XVIII, em Portugal e no Brasil, surgiram governantes cujas práticas políticas podem ser identificadas como outra vertente de exercício do poder, mais objetiva e temerária, distinta da comumente veiculada aos pactose mediações característicos de uma monarquia católica respaldada pela filosofia neoescolástica. Em Portugal,essa cultura politicafoireforçada na conjuntura da Guerra da Restauração (1640-1668).7Todavia, mesmo nesse meio, não raro administradores e rebeldes incorporaram em seus discursos estratégias de dissimulação, que sabemos não terem sidoexclusivas de Maquiavel, mas foram recorrentemente a ele associadas como maquiavelismos. Mais tarde, a participação de nobres portugueses na Guerra de Sucessão da Espanha (1701-1713) constituiu um outro grande momento de internacionalização e contato com ideias excêntricas ao tradicional ambiente reinol lusitano.8
Essa breve remissão diacrônica aponta para uma perspectiva teórica e metodológica diferente para o estudo dos governos, ideias e práticas na monarquia portuguesa e emsuas conquistas ultramarinas.9Diante desse mundo apenas superficialmente hostil às ideias de Maquiavel, é aconselhável ler as fontes a contrapelo e desconfiar das banais acusações de maquiavelismo, facilmente proferidas a fim de denegrir os inimigos. Esse era um tempo no qual a má reputação do autor florentino contaminava outras formas de dissimulação e de ardil político, existentes desde a cultura clássica.10 Abre-se, assim, o leque de possibilidades à heterodoxia e à singularidade, mais frequentesdo que as análises modelares dos Estados modernos europeus deixam entrever, para captar esse grande contexto político e cultural – na realidade, multifacetado. Por cópias manuscritas cuidadosamente guardadas e hoje desparecidas, ou por livros proibidos depositados nas bibliotecas monásticas, ou por edições nunca expostas pelos seus detentores, sobreviviam as ideias maquiavelianas, evitando-se, a todo custo, sua vinculação ao maquiavelismo – o que as fragilizaria ante os possíveis acusadores.
Mais adiante, no Brasil já republicano e na esteira da Revolução de 1930, desponta a primeira tradução em língua portuguesa de Il principe, antecedendo em dois anos a sua congênere europeia. Contudo, no país liberto há muito da censura inquisitorial, sobrevivia o tom depreciativo para tratar do que fosse alusivo a Maquiavel. O livro foi publicado por uma editora carioca de perfil socialista para denegrir a escalada ascensional e estrategista de um Getúlio Vargas “maquiavélico”, conforme o seu prefácio. Em Portugal, a tradução da mesma obra, conhecida como o “Maquiavel fascista”, com prefácio de Mussolini, fazia também a ponte entre a política então vivida, em pleno salazarismo, e as ideias seminais do florentino quinhentista.11
Voltemos, então, aos vários sentidos da palavra “tradução”. Do toscano ou italiano ao português, mas também do político brasileiro contemporâneo, posto como equivalente ao escrito outrora pelo afamado autorno século XVI em relação à prática do poder. Um Maquiavel que falou a outros tempos não poderia, ainda, ter suas ideias e conselhos comparados à atuação de uma personagem coeva, encontrada nos quadros do império ultramarino luso? A correspondência do grande Afonso de Albuquerque, governador da Índia portuguesa no tempo em que era escrito o pequeno livro sobre os principados, mostra o quanto suas preocupações com a conquista e a conservação dos territórios assemelhavam-se aos textos dos Discorsi, Il principe e Dell’arte della guerra, não obstante algumas diferenças em outros tópicos. Albuquerque não leu Maquiavel, mas equivalia-se a suas ideias. Ele seria, portanto, uma sua tradução.
Diante desse mundo apenas superficialmente hostil às ideias de Maquiavel, é aconselhável ler as fontes a contrapelo e desconfiar das banais acusações de maquiavelismo
É possível perceber também Maquiavel e / ou elementos do maquiavelismo mediante a realização de interpretações, como nos casos do governador-geral do Estado do Brasil no anos de 1660, 1ºconde de Óbidos, e do governante de capitania D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, então futuro 3ºconde de Assumar, no segundo decênio do Setecentos. Suas ações e escritos apresentam semelhanças com os conselhos proferidos pelo florentino, sobretudo em Il principe. Embora – dados os constrangimentos culturais e políticos já indicados – seja ousado demais atestar cabalmente a leitura feita por esses nobres portugueses dos livros de Maquiavel, seus governos podem ser entendidos como maquiavélicos, pela sobreposição criada na época moderna entre o próprio estereótipo e a sua fonte. Em outras palavras, os elementos de Maquiavel estariam também nesses maquiavelismos que, não obstante, seriam já a sua caricatura.12
Sem dúvida, trata-se de um horizonte complexo de investigação, para o qual são importantes os estudos realizados, de matiz filológico ou quantitativo, bem como a sensibilidade e o bom senso das suas análises. Também é fundamental operar com o termo “maquiaveliano” – surgido na Itália do século XX como uma tentativa de remissão às ideias do afamado autor mais despojada de seus estereótipos- e com os outros vários vocábulos derivados de Maquiavel (“maquiavelista”, “maquiavélico”, “maquiavelizar” etc.), cujo nome já se costuma proferir na forma aportuguesada. Tudo isso evidencia sua importante recepção em países de língua portuguesa.13
O pequeno dossiê integra-se ao conjunto de realizações pertinentes ao projeto Machiavellismo e machiavellismi nella tradizione politica occidentale (secoli XVI-XX), dirigido por Enzo Baldini, da Universidade de Turim, elaborado com o fito de promover a formação de grupos e colóquios no Ocidente em função da efeméride dos 500 anos da escrita de Il principe, redigido entre fins de 1513 e início de 1514. Desde 2007, cursos, oficinas, jornadas de estudos e um colóquio internacional foram organizados na Universidade Federal Fluminense – em parceria com outro evento realizado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa -, para perceber o papel das ideias de Maquiavel nos universos português e brasileiro, do século XVI ao presente.14Ao longo desse tempo, lidamos com várias “traduções” e “traições”: de livros, ideias e representações. Portanto, os artigos de Ângela Barreto Xavier, Luciano Figueiredo, Rodrigo Bentes Monteiro, Vinícius Dantas e Sandra Bagno constituem uma breve mostra das enormes possibilidades de pesquisa que o campo da história das ideias políticas pode, no momento, descortinar.
Companhia das Índias, junho de 2014.
Notas
1. Rphael Bluteau, Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, achitectonico… vols. 8 e 9, Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728, p. 233-234; 261. Disponível em: http: / / www.brasiliana.usp.br / pt-br / dicionario / edicao / 1 . Acesso em: 09 de junho de 2014.
2. Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa: recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado… Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1789, p. 793. Disponível em: http: / / www.brasiliana.usp.br / pt-br / dicionario / edicao / 2 . Acesso em: 09 de junho de 2014.
3. Antônio Houaiss; Mauro de Salles Villar; Francisco Manoel de Mello Franco (orgs.), Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2004, p. 2.745.
4. Maquiavel, Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio: “Discorsi”, 4. ed., Tradução de Sérgio Bath, Brasília, Editora da UnB, 2000, p. 17.
5. Giuseppe Marcocci, L’invenzione di un impero: politica e cultura nel mondo portoghese (1450-1600), Roma, Carocci, p. 45-88; Giuseppe Marcocci, “Construindo um império à sombra de Maquiavel”, In:Rodrigo Bentes Monteiro; Sandra Bagno (orgs.), Maquiavel no Brasil: dos descobrimentos ao século XXI, Rio de Janeiro, Editora FGV; Faperj, no prelo; Helena Puigdomènech, Maquiavelo en España: presencia de sus obras en los siglos XVI y XVII, Madrid, Fundación Universitaria Española, 1988, p. 81-133.
6. A título de exemplo, o piemontês Giovanni Botero (1544-1617), com especial entrada no mundo ibérico. Luís Reis Torgal; Rafaella Longobardi Ralha (orgs.),João Botero. Da razão de Estado, Tradução de Rafaella Longobardi Ralha, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992; Enzo Baldini (org.), Botero e la ‘ragion di stato’. Atti del convegno in memoria di Luigi Firpo (Torino 8-10 marzo 1990), Firenze, Leo S. Olschki, 1992.
7. Luís Reis Torgal, Ideologia política e teoria do Estado na Restauração, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981-1982, 2 v.
8. David Martín Marcos, Península de recelos. Portugal y España, 1668-1715, Madrid, Marcial Pons, 2014.
9. Distinta, por exemplo, da promovida por Martim de Albuquerque, Maquiavel e Portugal: estudos de história das ideias políticas, Lisboa, Aletheia, 2007, com base no anterior A sombra de Maquiavel e a ética tradicional portuguesa: ensaio de história das ideias políticas, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Instituto Histórico Infante Dom Henrique, 1974.
10. Pablo Badillo O’Farrell; Miguel A. Pastor (orgs.), Tácito y tacitismo en España, Madrid, Anthropos, 2013.
11. Sandra Bagno, “Il principenell’area luso-brasiliana e le sue prime traduzioni in portoghese”, In:Alessandro Campi (org.), Il principe di Niccolò Machiavelli e il suo tempo. 1513-2013, Roma, Treccani, 2013, p. 219-220.
12. Michel Senellart, Machiavélisme et raison d’Etat. XIIe-XVIIIe siècle, Paris, PUF, 1989.
13. Sandra Bagno, “‘Maquiavélico versus‘maquiaveliano'” na língua e nos dicionários monolíngües brasileiros”, Cadernos de Tradução, vol. 2, n. 22, Florianópolis, 2008, p. 129-150. Disponível em: https: / / periodicos.ufsc.br / index.php / traducao / issue / view / 1121 . Acesso em: 25 de setembro de 2013.
14. Hypermachiavellism. Disponível em: http: / / www.hypermachiavellism.net / . Acesso em: 19 de janeiro de 2014. Como resultados desses empreendimentos, o dossiê de Gustavo Kelly de Almeida; Bento Machado Mota (orgs.), “Maquiavel dissimulado: heterodoxia no mundo ibérico”, 7 Mares. Revista dos pós-graduandos em História Moderna da Universidade Federal Fluminense, vol. 1, n. 1, Niterói, 2012, p. 6-49. Disponível em: http: / / www.historia.uff.br / 7mares / ?cat=6 . Acesso em: 24 de fevereiro de 2014, e o livro de Rodrigo Bentes Monteiro; Sandra Bagno (orgs.), Maquiavel no Brasil: dos descobrimentos ao século XXI, Rio de Janeiro, Paz & Terra; Faperj, no prelo. Essas inciativas também vinculam-se ao projeto coordenado por Ronaldo Vainfas, Linguagens da intolerância: religião, raça e política no mundo ibérico do Antigo Regime (Pronex CNPq / Faperj) e ao dirigido por Ângela Barreto Xavier, O governo dos outros: imaginários políticos no império português (1496-1961) (Portugal, FCT). Disponível em: <http: / / governodosoutros.wordpress.com>. Acesso em: 10 de junho de 2014.
Rodrigo Bentes Monteiro – Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: rodbentes@historia.uff.br
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Apresentação. Tempo. Niterói, v.20, out., 2014. Acessar publicação original [DR]
Barcelona 1714. Jacques Rigaud: crònica de tinta i pólvora – HERNÀNDEZ; RIART (I-DCSGH)
HERNÀNDEZ, F.X.; RIART, F. Barcelona 1714. Jacques Rigaud: crònica de tinta i pólvora. Barcelona: Librooks, 2014. Resenha de: H. PONGILUPP, Mar. Íber – Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, n.78, oct., 2014.
El libro que presentamos se centra en los seis grabados que dibujó el artista provenzal Jacques Rigaud en 1732 para dar a conocer cómo se asediaba y asaltaba una ciudad según las técnicas y pautas militares determinadas por el célebre ingeniero francés Sébastien Le Prestre de Vauban. Rigaud se inspiró en uno de los episodios más cruentos de la Guerra de Sucesión española: el asedio de Barcelona, que era el último gran cerco que había conocido la Europa del xviii. Dado que la expugnación de la ciudad fue meticulosamente cartografiada por los ingenieros franceses, pudo disponer de unas fuentes fiables y precisas para desarrollar su proyecto.
Sin embargo, su objetivo no era mostrar el asalto concreto de Barcelona, sino exponer, de manera didáctica, qué pasos debían seguirse para expugnar y rendir una plaza. Este hecho explica por qué los grabados no son del todo fieles a la Barcelona de 1714, pues contienen errores en lo que respecta a su representación histórica. Rigaud dedicó su obra al joven marqués de Montmirail, que, a pesar de su juventud, ejercía como coronel de la guardia suiza del rey de Francia, y se esforzó en plasmar detalladamente la tecnología y los pormenores de los asedios con la intención de que Montmirail pudiera entender qué era lo que debía hacerse para atacar una ciudad fortificada.
Hernàndez y Riart retoman el espíritu pedagógico de Rigaud y nos ofrecen una relectura de los grabados que permite comprender la poliorcética -el arte de atacar y defender una plaza fuerte- del siglo xviii en clave educativa. Uno a uno, los seis grabados son diseccionados por los autores, que, a partir de recuadros y dibujos ampliados, describen qué es lo que está sucediendo, cuáles son los personajes y qué objetivos persiguen las diversas acciones militares. El resultado es un impresionante documento didáctico que, a través del análisis de una fuente casi primaria, nos aproxima a las aplicaciones bélicas de la ingeniería del siglo xviii. Así, Hernàndez y Riart se sirven de los dibujos de Rigaud para ilustrar las distintas fases y dinámicas del asedio: la excavación de las trincheras, los preparativos de los bombardeos, los contraataques, la apertura de las brechas, los problemas del asalto y las medidas de represión.
Pero Rigaud, un grabador extraordinario, también estaba interesado en reflejar los más pequeños detalles de la vida cotidiana alrededor del cerco, de modo que, en sus iconografías, las figuras humanas, que aparecen realizando las más diversas ocupaciones, cobran un especial protagonismo. En este sentido, los autores resaltan cómo Rigaud presenta a los soldados (los vivos y los muertos) y de qué manera evoca la miseria de los hospitales de campaña, la frialdad de los oficiales, el cansancio de los soldados o el terror de los civiles caídos. Como valor añadido cabe destacar que el conjunto de los grabados constituye una fuente de primer orden para documentar las fortificaciones y el asedio que sufrió Barcelona durante el periodo de 1713-1714. De modo que tanto los grabados como los comentarios conforman una herramienta pedagógica de gran utilidad para implementar múltiples actividades en el aula.
Mar H. Pongiluppi
[IF]Competencias profesionales. Herramientas de evaluación: el portafolios, la rúbrica y las pruebas situacionales – DEL POZO FLÓREZ (I-DCSGH)
DEL POZO FLÓREZ, J. Á. Competencias profesionales. Herramientas de evaluación: el portafolios, la rúbrica y las pruebas situacionales. Madrid: Narcea, 2013. Resenha de: CALDERÓN GARRIDO, Diego. Íber – Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, n.78, oct., 2014.
al como describe el libro que tenemos entre manos, «el concepto de competencia profesional va tomando fuerza en el mundo de la educación», ya que se ha de procurar un completo desarrollo de las habilidades y destrezas del alumnado de secundaria. En este sentido, y como elemento indispensable en la formación, la evaluación constituye un proceso continuado en el cual los docentes hemos de asegurarnos de ofrecer una retroalimentación en consonancia con las necesidades que la sociedad demandará a nuestro alumnado en un futuro.
José Ángel Del Pozo, experto en formación permanente para el profesorado, nos presenta un manual teórico-práctico que, a través de 140 páginas divididas en cinco capítulos, dirige a cualquier docente hacia la obtención sistemática de evidencias que ayuden a formular un juicio de valor que, en definitiva, oriente a su alumnado en el paso al «mundo adulto».
Se invita al lector a conocer a fondo el concepto de competencia profesional para, después, centrarse en el uso del portafolios, la rúbrica y las pruebas situacionales. Primero, realiza una presentación teórica sobre los elementos que constituyen cada herramienta para, rápidamente, pasar a unas nociones sobre su construcción y mostrar ejemplos sobre las múltiples aplicaciones y posibilidades que ofrecen. Finalmente, el autor describe un caso práctico en el cual se usa una combinación de las tres herramientas de evaluación descritas.
En definitiva, esta obra se postula como un material de referencia para todos los docentes, de la etapa educativa de secundaria y posteriores, interesados en fomentar capacidades tales como la observación, locución, organización, etc., en, y que en ocasiones no sabemos cómo valorar ni evaluar.
Diego Calderón Garrido
[IF]O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem – RIEGL (PL)
A obra intitulada como O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem foi redigida por Alois Riegl, historiador da arte vienense, designado como presidente da Comissão de Monumentos Históricos da Áustria em 1902. Esta produção trata da basicamente do valor da arte em diversas perspectivas. O livro possui 85 páginas e está dividido em capítulos da seguinte forma: 1) Os valores dos monumentos e sua evolução histórica; 2) A relação dos valores de memória com culto dos monumentos; e, 3) A relação dos valores de atualidade com o culto dos monumentos. Leia Mais
Intelectuais e Estado Brasileiro | Escrita da História | 2014-2015
“A organização burocrática situa-o, protege-o, melancoliza-o e inspira-o”.1
Foi utilizando essas palavras que Carlos Drummond de Andrade justificou a relação entre os intelectuais e o Estado. Atuar no funcionalismo público, além de ser um resguardo financeiro, na concepção de Drummond, eliminaria os cuidados imediatos e não abriria perspectivas “de ócio absoluto”. Ainda que concordássemos com as assertivas do poeta, já é sabido que o relacionamento entre os homens de ideias e o aparelho estatal foi e continua sendo complexo. Muitos consideram essa relação como cooptação, outros apenas como um jogo de interesses, mas o fato é que ela movimenta pesquisadores do passado e da atualidade.
No âmbito dessas questões, novamente a Revista Escrita da História (REH) se apresenta como sendo um canal de discussões por meio do qual são expostos trabalhos acadêmicos oriundos de análises e pesquisas que têm por objetivo refletir acerca do “fazer científico” da História. O segundo dossiê do periódico tem a intenção de promover o debate a respeito da relação intelectuais e Estado, destacando novas perspectivas sobre o tema que nesta edição tem em comum a atuação dos intelectuais-funcionários na promoção da edição de livros, ou seja, o processo de monumentalização da História e da memória através de suas publicações.
Embora tenham a ação editorial como uma questão comum, os artigos que compõem o Dossiê “Intelectuais e Estado brasileiro” têm suas particularidades. Sendo assim, abrimos nosso segundo número com a ampliação de perspectivas comparativas, pois no artigo de Nuno Medeiros, da Universidade Nova de Lisboa, o autor explicita, para o caso de um exemplo do outro lado do Atlântico, a duplicidade de maneiras pelas quais o governo português atuou quando da publicação de livros durante o regime do Estado Novo. O pesquisador apresenta de que forma a ditadura impôs regras que cercearam a edição de livros e, ao mesmo tempo, incentivou uma “literatura oficial” do próprio Estado.
No âmbito brasileiro, André de Lemos Freixo, professor da Universidade Federal de Ouro Preto, apresenta-nos um artigo realizado a partir dos trabalhos do intelectual José Honório Rodrigues na publicação da coleção “Documentos Históricos” da Biblioteca Nacional entre os anos 1946-1953. A indagação do professor procura abranger a produção de memória dos intelectuais enquanto agentes em instituições de preservação e difusão cultural. Para isso adota as reflexões de Paul Ricœur, Jan e Aleida Assmann e de alguns representantes que considera como uma “terceira onda” de estudos da memória.
Com uma reflexão também sobre a memória, a doutoranda Maria Claudia Cavalcante, da Universidade Federal de Pernambuco, propõe um debate a partir da análise dos livros Presença na política (1958) e Depois da política (1960), ambos de Gilberto Amado. Segundo a autora, por meio dessa leitura é possível discutir as imagens construídas pela literatura memorialística de Gilberto Amado acerca de sua participação política e movimentação intelectual.
Por fim, mas não menos importante, temos o trabalho de Paula Rejane Fernandes, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a respeito da coleção Mossoroense criada por Jerônimo Vingt-un Rosado Maia. Essa coleção tinha a finalidade de promover práticas culturais na cidade de Mossoró e também o propósito de construir uma memória para a cidade e seu lugar de destaque no meio intelectual. Além disso, Fernandes destaca de que maneira as relações entre Rosado Maia e políticos influentes nos anos 1960-70, tais como Ney Braga e Jarbas Passarinho, foram importantes para a publicação dos livros do projeto.
Na seção de artigos livres contamos com a colaboração de vários jovens pesquisadores, membros das mais diversas instituições de ensino do país e com propostas de trabalho inovadoras. Temos os artigos de: Diego Ramos, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro; Nittina Botaro, da Universidade Federal de Juiz de Fora; e Endryws Felipe Souza de Moura, da Universidade Federal de Campina Grande. Além desta seção, nesta edição contamos com uma entrevista inédita oferecida pelo professor Renán Silva, da Universidad de Los Andes (Colômbia), na qual discute os novos desafios enfrentados pelo historiador no século XXI.
E assim concluímos mais um número desejosos de que todos os leitores e leitoras façam excelentes reflexões a partir do material da mais nova edição da REH.
Atenciosamente,
Nota
1 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos apud MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel, 1979, p. 129.
Organizadora
Mariana Rodrigues Tavares
Referências desta apresentação
TAVARES, Mariana Rodrigues. Apresentação. Escrita da História, v.1, n.2, p.10-12, out./mar. 2014-2015. Acessar publicação original [DR]
História e usos de mídias: pesquisas históricas a partir de diferentes suportes de comunicação / Sobre Ontens / 2014
Caro leitor,
O Dossiê “História e usos de mídias: pesquisas históricas a partir de diferentes suportes de comunicação” é mais um número especial da Revista Sobre Ontens, que busca trabalhar a questão das novas mídias na construção e na escrita histórica. Tão habituado aos documentos textuais, os historiadores devem ter em vista a atualidade da questão: a interação com a internet, as mídias de massa, a velocidade dos sistemas de comunicação e informação, todos esses processos tem levado a um repensar do estudo e da escrita histórica. Esses novos suportes não apenas auxiliam na pesquisa, mas são também, agora, objeto da própria pesquisa histórica: como eles servem de veículo a construção de novas concepções de história, memória e passado? Quais suas contribuições diretas na formação de utopias – ou mesmo, da realidade social e cultural contemporânea? O exame dessas questões é o objetivo desse dossiê.
Numa segunda parte, dispomos também alguns textos escolhidos para compor a edição, bem como uma resenha. O ato de pesquisar, escrever e publicar o trabalho histórico é, antes de tudo, uma peça fundamental na formação do pesquisador, e na difusão mais ampla das descobertas e saberes da área. Nesse mister, a Revista Sobre Ontens vem abrir um espaço para a publicação dos escritos de pesquisadores pioneiros, sempre pensando na construção de uma consciência histórica mais profunda e abrangente.
Por fim, faz parte dos planos deste Periódico transformar o Dossiê em livro, brevemente. Sabemos hoje da capacidade de difusão que um ebook tem, por meio das redes eletrônicas, de atingir milhares de leitores: nada mais coerente, portanto, que esse Dossiê integre, igualmente, uma nova mídia. Agradeço a todos os participantes,
Atenciosamente,
André Bueno – Professor. Comissão Editorial.
BUENO, André. Apresentação. Revista Sobre Ontens. Apucarana, out. 2014. Acessar publicação original [DR]
Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré | Reza Aslan
Muito se fala sobre Jesus Cristo. Muito se escreve sobre ele. Mas Jesus de Nazaré, o Jesus histórico ainda é muito pouco conhecido. O livro de Reza Aslan procura apresentar não só o judeu da Galileia, executado pelos romanos durante a Páscoa judaica no começo do século I, como também a sociedade em que ele viveu.
Reza Aslan nasceu no Irã, mas sua formação acadêmica foi toda nos EUA. É interessante observar, que logo no início do livro o autor nos fala dessa experiência. Como ele relata nas Notas do Autor, na parte inicial do livro, Aslan nasceu em uma família de muçulmanos, que emigraram do Irã após a revolução sua família acabou por afastar-se do islamismo. Aslan deu mais um passo na integração ao novo país quando se converteu ao cristianismo aos quinze anos num acampamento evangélico para universitários. Parecia-lhe que agora ele estava mais de acordo com a América.
No entanto, com a continuidade de seus estudos acadêmicos, um fosso entre o Jesus que pregavam na Igreja e o Jesus histórico o levou a dar mais uma guinada em sua vida. Acabou rejeitando a sua fé. No entanto suas pesquisas lhe revelaram um Jesus mais real e digno de confiança do que aquele da igreja. Seu livro é uma tentativa de apresentar as demais pessoas esse Jesus de Nazaré.
O livro está dividido em três partes e concluído por um Epílogo. Na parte I (capítulos 1 ao 6), ele descreve a Palestina do tempo de Jesus, com suas tensões entre as classes sociais, entre os grupos religiosos e entre a população local e os invasores romanos. Na parte II (capítulos 7 ao 12), ele vai tratar da vida de Jesus, seus ensinamentos e alguns dos episódios que Aslan considera chaves para entender quem foi e o que pregava Jesus de Nazaré. A parte III (capítulos 13 ao 15) é dedicada a apresentar como a Igreja foi desconstruindo a imagem do Jesus histórico e a substituindo pela de Jesus Cristo, o filho de Deus, modificando sua mensagem estritamente judaica (apresentada na parte II) por uma mensagem mais universal, que transcendesse as fronteiras do judaísmo. Por fim o Epílogo, mostra o que ele considera o desfecho: a transformação do camponês galileu do século I em Deus, com o concílio de Nicéia codificando e tornando ortodoxa uma crença que já era bastante comum na Igreja da época.
O autor acrescentou a obra um mapa da Palestina do século I e uma ilustração descritiva do Templo de Jerusalém, construído durante o reinado de Herodes, o grande. Aslan também fornece dezenas de notas explicativas sobre cada capítulo do livro que valoriza a obra como um recurso para o pesquisador de religiões que desejar aprofundar-se mais sobre o tema do Jesus histórico e a Palestina do primeiro século.
Aslan explica que os evangelhos foram escritos décadas após a morte de Jesus, por volta do ano 70. Fora eles, os escritos mais antigos sobre Jesus são as cartas de Paulo, que também foram escritas algumas décadas depois de sua morte, por um homem que afirma expressamente não ter conhecido Jesus, nem buscado informações sobre ele com aqueles que foram seus discípulos diretos. Foi durante essa ausência de documentos escritos que ele acredita que a imagem que se tinha de Jesus foi radicalmente alterada.
Mas qual então era a imagem que os primeiros discípulos e seguidores tinham de Jesus? Para o autor, Jesus era sim mais um dos legítimos representantes do conturbada Palestina do século I. Uma terra na qual os invasores romanos impunham suas leis e seus impostos e onde era cada vez maior a crítica aos privilégios da rica classe sacerdotal, que em aliança com os invasores governava o país. Por todos os cantos daquela terra homens levantavam-se contra o estado das coisas, muitos deles acreditando serem enviados de Deus para expulsar os romanos e restaurar a pureza do culto a Deus no grande templo de Jerusalém.
Dessa forma, desde a conquista romana até a destruição de Jerusalém e do Templo, os judeus viram levantar-se messias e profetas, alguns mais bem-sucedidos que outros, conduzindo multidões a revolta contra o poder constituído. Mas Jesus ainda era uma figura controvertida. Sua pregação, registrada nos evangelhos muitas vezes se contradiz. Numa hora ele prega a paz e em outra diz ter vindo a terra para trazer a espada. Muito dessa contradição pode ser, segundo o autor, fruto dos evangelhos que mesclavam fatos históricos, com fábulas e mitos sobre Jesus, como se costumava fazer na escrita oriental da época, para dar autoridade e beleza ao texto. Aslan chama a atenção para o fato que os escritores dos evangelhos não teriam como estar familiarizados com a nossa noção de veracidade histórica, de se aterem aos fatos.
Para Aslan, Jesus seria uma adepto da chamada “Quarta filosofia”, assim chamada para diferenciar dos outros grupos: saduceus, fariseus e os essênios. Essa filosofia teria sido fundada por dois líderes rebeldes judeus que assumiram um fervoroso compromisso com a libertação de Israel e sua insistência a não servir a nenhum senhor a não ser Deus. Seriam zelotas, palavra derivada de zelo, que segundo Aslan (pag. 65)
…implicava uma adesão estrita a Torá e à Lei, uma recusa em servir a qualquer mestre estrangeiro – servir a qualquer mestre humano de maneira geral – e uma devoção à soberania de Deus. Ser zeloso ao Senhor era andar nas pegadas ardentes dos profetas e heróis do passado, homens e mulheres que não toleraram ninguém que quisesse se associar a Deus, que não se curvaram a nenhum rei exceto o Rei do Mundo e que lidaram cruelmente com a idolatria e com aqueles que transgrediram a lei de Deus.
Não eram um partido político ou uma associação, faz questão de esclarecer o autor, nem se pode confundir com o partido zelota surgido décadas depois em 66 dc. Era um desejo, uma ideia de piedade, ligado a uma expectativa apocalíptica. Uma crença que se difundia principalmente entre os camponeses e as camadas mais pobres da população de que o reino de Deus estava próximo.
E era este o cerne da pregação de Jesus e de sua atuação. Para exemplificar Aslan utiliza uma conhecida passagem do evangelho, quando em resposta a pergunta de que se era ou não lícito pagar impostos a César, Jesus responde, “devolvei a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” O autor mostra que essa resposta é uma das principais evidencias de que Jesus era um zelota. Nesta afirmação Jesus reivindica a terra que os romanos tomaram porque seu legítimo proprietário é Deus. Seria o bastante para que ele fosse enquadrado como um bandido, o que seria confirmado depois, quando da prisão de Jesus, quando um grupo armado de espadas e clavas é enviado a seu encontro.
Mas o que faria de Jesus diferente de tantos candidatos a messias surgido durante aquela época conturbada. Aslan mostra que sua fama como curandeiro e exorcista o tornou uma figura diferente das demais. Diferente de nosso pensamento racional atual, no tempo de Jesus as pessoas estavam mais abertas ao sobrenatural, ao impacto do maravilhoso em suas vidas, e aquele pregador itinerante judeu respondia a suas expectativas com milagres, e, o que era mais espantoso para a época, nada cobrava por eles. Aqui, Aslan delimita a separação entre o acadêmico, o estudioso de Jesus e o seguidor: a crença nos milagres. Mas ele chama a atenção para o quão estéril é essa discussão, e argumenta que as pessoas que seguiam Jesus acreditavam nesses milagres e em nenhum momento foi posta em dúvida as qualidade de Jesus como milagreiro e exorcista sejam por fontes canônicas ou não. Mesmo os inimigos da Igreja, em suas lutas e debates contra ela colocaram em dúvida a capacidade de Jesus de realizar milagres, preferindo acusa-lo de fazê-lo por meio de magia, afirmando mesmo que ele não passava de um mágico.
Uma outra diferenciação entre Jesus e os demais milagreiros e exorcistas da época era a reivindicação messiânica que Jesus fazia para si mesmo. Seus prodígios, milagres e sinais eram a prova de que o Reino de Deus estava chegando.
Como o Reino de Deus estava próximo de ser estabelecido e ele escolheu 12 apóstolos (representando as 12 tribos de Israel), que estariam a frente de Israel. Nesse reino não haveria espaço para estrangeiros, ou para aqueles que não se submetessem ao Deus de Israel. O Deus sangrento que ordenou aos israelitas não pouparem nem mesmos os animais dos povos que habitavam Canãa, quando da conquista, o Deus coberto em sangue dos inimigos tão presente nas mensagens proféticas de Israel. Aslan acredita que não há evidencias que comprovem que seja outra concepção que Jesus tinha sobre Deus. Nos evangelhos ele se recusa abertamente a atender estrangeiros e quando ordena a seus discípulos para irem pregar sobre o advento do Reino de Deus, os adverte a não entrar em cidades estrangeiras.
Durante seu ministério Jesus prepara-se para a tomada do poder e no livro de Aslan pode-se acompanhar passo a passo essa preparação. No entanto no momento final, ele falha. Em Jerusalém, na Páscoa, a mais importante festa judaica, com a cidade lotada de peregrinos o drama de Jesus se desenrola. Jesus é preso e crucificado como sedicioso. Ele ousara assumir funções régias. Aslan acredita que diferentemente do que é apresentado no evangelho, não houve julgamento. Considerado criminoso político ele foi crucificado para que servisse de exemplo a todos os que também desejassem revoltar-se contra Roma. A história de Jesus poderia ter terminado ali, assim como a de vários aspirantes a messias que vieram antes ou depois dele.
No entanto, os seguidores de Jesus continuaram juntos e sua pregação consistia que ele fora ressuscitado dentre os mortos. Judeus que vivam fora da Palestina, helenizados e desejosos de praticar um judaísmo mais atenuado, começam a converter-se a esse ramo do judaísmo e começam a transformá-lo para que o cristianismo se tornasse mais aceitável fora dos círculos judaicos. Paulo, um judeu converso anos depois da morte de Jesus, foi um dos principais agentes dessa transformação do cristianismo. Eles se desvencilhavam das escrituras do judaísmo e faziam sua crença mais universal, mais cosmopolita.
Aqui entra o que Aslan considera um dos primeiros embates do cristianismo: a luta pela hegemonia entre a posição defendida por Paulo a posição do Conselho Apostólico, sediado em Jerusalém e liderado por Tiago, o irmão de Jesus. Para o autor as cartas de Paulo foram escritas como armas nessa luta que segundo Aslan, Paulo acabou perdendo, conforme descrito nos Atos dos Apóstolos, ao ter que submeter-se aos rituais de purificação que ele deplorava.
No entanto, a vitória de Tiago e do seu cristianismo primitivo e fechado, um ramo do judaísmo, foi provisória. Quando os romanos destroem Jerusalém, os cristãos decidem cortar os laços com o judaísmo e apresentar os judeus como culpados pela morte de Jesus. Buscam então inspiração em Paulo, para transformar o camponês zelota, cujos os seguidores acreditaram ter ressuscitado depois de sua execução em Deus.
Aslan percorre em seu livro boa parte da história da Palestina. Para entender Jesus como um homem de seu tempo, para mostrar que além da figura que é apresentada pela Igreja, há uma figura tão fascinante quanto, que foi esquecida sobre camadas de doutrina elaboradas depois de sua morte. Apresenta um Jesus histórico. Apresenta um Jesus revolucionário. Apresenta um Jesus humano.
Wagner Pires da Silva – Graduando em História pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.
ASLAN, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Trad. Marlene Suano. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Resenha de: SILVA, Wagner Pires da. Sobre Ontens. Apucarana, p.184-187, out. 2014.
Acessar publicação original [DR]
Esbozo de una Antropologia Filosófica Americana – KUSCH (ER)
KUSCH, Rodolfo. Esbozo de una Antropologia Filosófica Americana. Buenos Aires: Ediciones Castañeda, 1978. Resenha de: MENEZES, Magali Mendes de; VAZ E SILVA, Neusa; DORNELES, Leonardo Castro. Esboço de uma antropologia filosófica americana. Educação & Realidade, Porto Alegre, v.39 n.4 oct./dec., 2014.
A obra intitulada Esboço de uma antropologia filosófica americana apresenta a problemática de pensarmos o(s) sentido(s) do humano desde a realidade latino-americana. Rodolfo Kusch, filósofo argentino, parte do pensamento popular, permeado por sabedorias marginalizadas para mostrar a riqueza e diversidade de um pensamento. A cultura e sua relação profunda com a terra são elementos centrais desta obra.
ara tanto iremos analisar a trajetória seguida pelo pensador nesta obra para mostrar uma reflexão que traz contribuições importantes para pensarmos a educação e sua relação com o pensamento filosófico. Destacamos também a importância de resgatarmos a obra de um filósofo ainda pouco conhecido no Brasil, mas fundamental no debate sobre a interculturalidade e suas implicações no contexto latino-americano.
Günther Rodolfo Kusch nasceu e faleceu em Buenos Aires. Era filho de alemães radicados na Argentina. Graduou-se em filosofia pela Universidade de Buenos Aires em 1948. Atuou no Ministério da Educação de Buenos Aires na área de Psicologia Educacional e orientação profissional.
O propósito do autor na presente obra é organizar uma antropologia tendo como base as experiências do povo, formuladas a partir do silêncio que permeia a fala popular, que nem sempre é visível. Kusch busca pensar à margem da preocupação de uma definição de ser humano, que é própria da história do pensamento filosófico ocidental. Objetiva desconstruir o que já foi dito acerca do homem americano, no entanto, não afirma nem indica nenhum outro tipo de definição acerca do humano. Ou seja, numa perspectiva heideggeriana, o filósofo enfatiza um humano incompleto, um ser não mais metafísico, mas que se constrói na exata medida que se faz. Kusch não tem a pretensão de resolver o problema do homem moderno a partir dos povos campesinos. O que deseja é recolocar o problema desde as origens de nossa sociedade, pois os povos do campo são um exemplo daqueles que romperam a homogeneidade da cultura dominante.
No primeiro capítulo da obra, intitulado Geocultura do Pensamento, Kusch analisa a importância da geocultura, afirmando que o pensar dos grupos humanos está condicionado pelo lugar, ou seja, faz referência a um contexto estruturado mediante a intersecção do geográfico com o cultural. Apresenta uma nova dimensão de cultura tomando-a não só como acervo, mas como atitude. Cultura é, sobretudo, decisão, afirmação existencial de um coletivo. É desse modo, que o autor coloca que todo diálogo de alguma forma é intercultural, implicando processos necessários de negociação com o Outro.
Um diálogo é antes de tudo um problema de interculturalidade. A distância física que separa os interlocutores e as voltas retóricas para entenderem-se, fazem referência a um problema cultural. Entre os interlocutores tende a existir uma diferença de cultivo, não no sentido de grau de culturalização construído por cada um, ou seja, que um seja mais culto que o outro, e sim antes de tudo no estilo cultural, ou melhor, no modo cultural que se encarnou em cada um (Kusch, 1978, p. 13). A cultura encarnada mostra uma existência tecida pela dimensão cultural, pelo cultivo de um cotidiano feito por indivíduos e coletivos.
No segundo capítulo, O mito no pensamento popular, Kusch considera que é no pensamento popular e não no pensamento culto, que estão contidas as linhas gerais de pensar o humano em sua totalidade. Suas reflexões têm como base, entrevistas que realiza com pessoas simples do campo que orientam sua vida a partir da tradição mítica presente em suas culturas. Neste momento, o filósofo expõe sua metodologia de trabalho que consiste em quatro pontos fundamentais: 1) determinar as unidades simbólicas (aqui poderíamos traçar uma relação com as unidades de sentido); 2) a estruturação destas unidades; 3) as linhas de sentido que propiciam uma conexão entre estas unidades; e por último, 4) o contexto simbólico de todo discurso. Kusch salienta que o informante da pesquisa não é visto como um objeto a ser pensado, mas como um sujeito que define o próprio olhar interpretativo (e muitas vezes imperativo) do pesquisador. É assim que Ceferina e Sebastiana, interlocutoras de Kusch nesta obra, surgem não como personagens que emprestam voz a cultura popular, mas como traços fundamentais que nos ajudam a compor este esboço do humano. Esboço é um “[…] conjunto de traços iniciais, provisórios, qualquer trabalho ou obra em estado inicial”1; o humano é, portanto, esta obra inicial, incompleta, que no diálogo com o outro vai se reafirmando. O humano aqui não é um projeto pronto, é este fazer-se constante, amparado por uma terra que dramatiza a existência de cada um de nós.
A questão do humano aparece em sua obra não apenas para formular novas respostas a questão histórica da Filosofia, mas para fazer ressoar um silêncio que perpassa o sentido do humano. O esboço também é feito de silêncios que não são o resultado de um abafamento da voz dos povos, da imposição da mudez, mas resistência, de uma existência que fala pelo simples fato de estar (conceito este extremamente significativo para Kusch), arraigada a um solo que a nutre. Nesta obra acompanhamos o trabalho de um pensador em ler o cotidiano, no desafio de uma hermenêutica que coloca o pesquisador mesmo sob suspeita. Assim, a forma como as pessoas vão lendo a si mesmas, surge no texto em sua transparência, traçando novos sentidos a realidades que parecem já tão pré-determinas. Não há apenas algo a ser revelado na fala de suas interlocutoras, é a própria fala que define o movimento dos olhos de quem a lê. Este é o desafio de um pensador em penetrar estas realidades inventando caminhos poéticos (talvez nada metódicos na visão da academia).
Ao longo de sua narrativa faz-se notar que para Kusch o novo está no popular e no indígena e não no chamado saber culto. Ao buscarmos um pensamento popular percebemos a possibilidade de descobrir um pensamento próprio, americano.
No capítulo terceiro, Mito e Racionalidade, Kusch continua tomando como referencial as entrevistas com representantes das culturas campesinas para analisar o mito e a racionalidade. Para o autor, no pensamento popular há uma religação com o absoluto, uma conjugação, um estar sendo; aspecto este que foi perdido pela cultura ocidental. Para recuperar o mistério de nosso estar temos que recuperar os sentidos de nossos símbolos e nossa relação com o solo, que de certa maneira traduzem a vinculação com o absoluto. Assim o filósofo nos apresenta uma diferença entre o mito narrado (oralidade) e o mito vivido. No mito narrado (objetividade), que se faz verbo, percebemos uma defasagem da palavra, e novamente o autor nos fala de uma palavra que transcende a si mesma, revelando um vazio, que não é ausência de sentido, mas algo que não cabe dentro da palavra. O mito vivido pode ser pensado como ritual, onde não se relata nada, apenas se vive. Desse modo, ele é anterior à palavra, quando esta chega, chega já em atraso. No entanto, estas duas dimensões se complementam. A narrativa também fala de uma realidade que expõe, na visão de Kusch, uma ontologia do contrato social. Ou seja, o que chamamos realidade se sustenta numa visão contratual da inteligência.
Se instrumentaliza uma teoria do conhecimento para determinar a solidez da realidade que, ao final de contas, já estava dada desde sempre por uma estrutura contratual. Uma vasilha servirá sempre para tomar líquidos e nisso estamos todos contratualmente de acordo (Kusch, 1978, p. 53).
No quarto capítulo, Os arquétipos da economia popular, o autor enfatiza que a análise do popular fica em muitos momentos exclusivamente reduzida a uma dimensão econômica. As relações de trocas, de comercio que fazem parte do cenário popular (e são elementos fundamentais para entendermos este contexto) não podem se reduzir ao aspecto econômico, como um meio de sobrevivência diante de uma realidade que se mostra carente. O problema do homem assim seria transferido para um problema de coisas e é isto que se fez no ocidente nestes últimos tempos. Vive-se praticamente em um mundo coisificado, pois o pensamento e nossas preocupações se centram no econômico, convertendo-o em fator determinante de toda e qualquer leitura sobre o meio popular. O autor manifesta a necessidade de não só preocupar-se com a distribuição dos bens, mas adequar o econômico ao humano. Afirma que a ênfase no desenvolvimento é o mal da América Latina e postula que o fracasso em atingir essa meta se deve muito à ansiedade de impor-se uma hegemonia cultural. Propõe alguns caminhos para reflexão, embora não tenha o objetivo de dizer como deve ser a economia, apenas apresenta linhas gerais na esperança de dissolver o econômico no cultural. Conclui o capítulo afirmando que a fome não é só de pão, mas de uma incompletude do humano que dificilmente pode ser saciada.
No quinto capítulo, O arcaico no pensamento, o arcaico é compreendido como aquilo que escapa a determinação, ou melhor, “[… ] aponta a uma determinação que se opõe ao tipo de determinação que exige uma consciência crítica” (Kusch, 1978, p. 74). Afirma que o arcaico aponta para algo que não exige uma consciência crítica, pois é um saber que está no nível do simbólico, ou seja, fora do âmbito da ciência. Enquanto a ciência tenta delimitar o objeto, o símbolo transcende ao determinado. Ao longo do capítulo o autor analisa detalhadamente a estrutura do símbolo e sua consolidação no ritual. É neste momento que podemos perceber as influências do pensamento de Paul Ricoeur na reflexão de Kusch.
O sexto capítulo, O que passa com o estar? Kusch parte de toda a fundamentação abordada nos capítulos anteriores para redimensionar o estar. Inicia contextualizando nossa América, ressaltando a base de nossa cultura assimilada, nossos hábitos de pensamento, em face à cultura que moldou nossa forma de estar no mundo. Movemo-nos entre as perspectivas populares, indígenas e a ocidental, contexto no qual se funda nosso modo de pensar como intelectuais. É dentro deste contexto que nos interrogamos a respeito de nosso estar. Nota-se a exigência colocada pelo autor em buscar a compreensão do que passa com o pensamento em geral, percebendo o humano que o sustenta com vistas a superar o vazio intercultural dentro do qual nos movemos.
Kusch alerta para o fato de que somos marcados pela ocidentalização e em consequência, analisamos a realidade (com suas diferenças) a partir de um ponto de vista já internalizado, que surge como a única referência possível para pensarmos. O racional implica certa coerência e lógica dentro de um modo de pensar. Desse modo, pensar de outras formas significa agir irracionalmente, fora de uma ordem estabelecida que não aceita novas racionalidades. O pensamento popular nos apresenta outro modo de ser e isso nos exige outra postura filosófica e novas metodologias que sejam capazes de reconhecer o saber popular como um pensar legítimo. Dentro de uma lógica ocidental, construímos o saber ancorado na necessidade de definição, devemos sempre responder a pergunta pelo que é. Porém, no pensamento popular, como descreve nosso autor, tudo está, nem tudo é determinável, pois com relação aos deuses, por exemplo, não se pode afirmar isto é. Para recuperar o mistério de nosso estar temos que penetrar nos símbolos e no solo (gravidez de nosso pensar), e assim, recuperar nossa vinculação com o absoluto. Kusch interroga se a necessidade deste resgate se dá por que “[…] esta cultura está enferma de ser e perdeu o mistério de seu estar?” (Kusch, 1978, p. 99). O estar é tema de profunda análise ao longo de todo o capítulo sexto e continuará iluminando o restante da obra.
No sétimo capítulo, O humano na América, Kusch parte de duas interrogações: Como se desenvolve o homem na América? Que é o humano a partir do popular? Segundo ele, falta uma antropologia nova que não reduza o homem a compartimentos, mas que recupere sua essencialidade. Seu propósito é o de assumir o pensamento popular em toda sua profundidade, ou seja, esboçar uma antropologia do homem americano fora do julgamento já formulado pela cultura ocidental. Para tanto, devemos partir do descobrimento do humano desde seu próprio acontecer, regressando à consciência natural; isso implica em um recomeço. Neste capítulo o autor estabelece a distinção entre pensar e filosofar. Afirma que o pensar se refere a uma tomada de consciência, mas que é assistemática, enquanto que a filosofia assume apenas o papel metodológico (com suas regras), e apoio de nossa universalidade.
No oitavo capítulo, A importância do lugar filosófico, Kusch destaca a necessidade de que seja consolidada, no campo da filosofia, uma antropologia. Coloca que a antropologia filosófica consiste na intuição do ser humano como uma referência ao sentido do humano. Enfatiza que a concepção de homem, presente no ocidente, não a exaure. Devemos considerar a circunstância especial de estar na América, partindo não de abstrações já colocadas, mas do concreto ainda não refletido adequadamente. O autor afirma que assumir o lugar filosófico de onde se fala, ou seja, pensar a partir da América não significa apenas considerar o aspecto geográfico, mas vincular a reflexão em torno da circunstância, do dado, que permite a gestação deste pensar. O mistério da verdadeira Sofia, da fé ou da esperança, se dá quando recuperamos a globalidade do pensar, nesse processo perdemos a segurança que a racionalidade proporciona e entramos no terreno do simbólico.
No capítulo nono Fenomenologia da afirmação, o autor parte da afirmação de que o pensamento supõe um ato de concretização. Daí que, pensar os objetos e as coisas mostra-se como possibilidade para atingir a objetividade. Toda afirmativa inclui aquele que afirma. O ato em si de afirmar é de certa maneira afirmar-se, buscar a si próprio. Kusch analisa toda a ambiguidade do ato de afirmar algo e de afirmar-se a si mesmo, uma vez que esse ato carrega a subjetividade que conduz ao mistério. Sua reflexão orienta à suposição de uma alteridade, ou seja, afinal, quem funda o fundamento?
A vida humana transcorre nesse movimento que parte do que não se pode afirmar para o afirmável. Refletir então sobre o viver poderia nos levar a uma vida autêntica. Ao analisar o termo viver, o autor não define o que seja a vida, pois este termo transita entre o estar e o ser, entre uma área do impensável e do pensável. Por trás do conceito de vida há sempre “uma consciência de invalidez ontológica” (Kusch, 1978, p. 124).
No décimo capítulo, Estar-sendo como jogo, o autor centra aí toda a reflexão sobre o saber viver. Em que consiste então o jogo do viver? A fórmula de “estar-sendo” parece ser a chave para significar o viver. O jogo é a possibilidade que busca, indefinidamente, a coincidência feliz que constitui o humano em sua profunda liberdade e, ao mesmo tempo, condenação de não atingir o seu fundamento. Assim, percebe-se que não há diferença entre os humanos, independente de sua cultura e de seu contexto. A diferença está somente no modo de assumir o jogo do viver. A variabilidade das civilizações está justamente neste aspecto. Cada povo ensaia o mesmo jogo para as distintas áreas da objetividade, ou seja, outro modo de dizer isto é. Talvez o homem inverta a fórmula de ser homem e, ao invés de efetivar o estar sendo, caía na armadilha do ser para estar.
No último capítulo, O jogo e a prática do humano na América, o autor ao tentar determinar outro modelo do humano, analisa uma nova perspectiva de ver e tratar as dimensões humanas, como a educação, a cultura, a economia. Dedica vários parágrafos analisando a finalidade concreta da educação e em que ela consiste. O mesmo cuidado dispensa ao sentido da economia aclarando-a através das experiências vivenciadas.
Retoma a questão do humano, porém, nos diz que ao definirmos de uma única maneira o seu sentido, estaremos perdendo mais uma vez algo que para Kusch é fundamental: o humano deve ser pensado na sua relação sempre inacabada com o solo, ou seja, em sua dimensão existencial da cultura. Devemos desse modo, realimentar a transitoriedade do fundante, ganhar a inseguridade para atingir a plenitude do humano e, segundo o autor, a nossa própria missão na América. Isso supõe o campo das possibilidades do estar sendo. Toda reflexão aponta a uma gama do humano, mas também a sua indefinição radical, pois o fundamento nunca se concretiza. Conclui a obra em análise, afirmando que devemos assumir o paradoxo do viver e sua sacralidade.
A obra de Kusch nos desperta a pensarmos a partir de uma postura que se aventura a sair de perspectivas filosóficas determinadas e fechadas do ocidente, superando padrões de pensamento que impedem a invenção de uma América descolonizada e de sujeitos que pensam desde seu contexto.
Nota
1 Houaiss. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. São Paulo: Ed. Objetiva, 2009. p. 1196. verbete Esboço.
Referências
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. São Paulo: Ed. Objetiva, 2009. [ Links ]
KUSCH, Rodolfo. Esbozo de una Antropologia Filosófica Americana. Buenos Aires: Ediciones Castañeda, 1978. [ Links ]
Magali Mendes de Menezes – Doutora em Filosofia, professora/pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, FACED, área de atuação Filosofia da Educação. Presidente da Associação Sul Americana de Filosofia e Teologia Interculturais (ASAFTI). E-mail: magalimm@terra.com.br
Neusa Vaz e Silva – Doutora em filosofia Ibero-americana. Pesquisadora na área de filosofia Intercultural. Autora do livro: Teoria da Cultura de Darcy Ribeiro e a Filosofia Intercultural, Ed. Nova Harmonia. E-mail: neusavazsilva@yahoo.com.br
Leonardo Castro Dorneles – Mestre em Processo e Manifestações Cultural, graduado em Filosofia. Atua nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase em Interculturalidade. E-mail: orcaoito@yahoo.com.br
Acessar publicação original
Concepções conservadoras e autoritarismos | Escrita da História | 2014
Organizador
Felipe Cazetta
Referências desta apresentação
CAZETTA, Felipe. Apresentação. Escrita da História, v.1, n.1, p.9-11, abr./set. 2014. Acesso apenas pelo link original [DR]
Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.3, n.11, 2014.
Mobilidade Social e Formação de Hierarquias
Dossiê
RLAH Editores | PDF
- Apresentação do Dossiê
- Gabriel Santos Berute
- “Assim como vive o Rei, vivem os vassalos”: as práticas de Antigo Regime de Manuel José de Freitas Travassos na Madre de Deus de Porto Alegre
- Denize Terezinha Leal Freitas | PDF
- Os criadores de expostos nas hierarquias sociais do Antigo Regime: Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1822)
- Jonathan Fachini da Silva | PDF
- “Capitães, comendadores, negociantes”: A primeira geração de charqueadores de Pelotas e a sua elite (1790-1835)
- Jonas Moreira Vargas | PDF
- PDF ()
- Criadores de gado vacum e seus escravos: a posse de escravos entre pecuaristas (primeira metade do século XIX)
- André do Nascimento Corrêa | PDF
- Troncos Missioneiros: Guaranis e mobilidade social na região das Missões (Rio Grande de São Pedro, primeira metade do século XIX, notas de pesquisa)
- Leandro Goya Fontella | PDF
- Mestiçagem e os regimes de classificação da população nos registros batismais (Capela de Santa Maria, 1798-1834)
- Max Roberto Pereira Ribeiro | PDF
- La movilidad del clero inmigrante en las Provincias de Córdoba y La Rioja (1877-1927)
- Milagros Gallardo | PDF
- Por entre as frestas das normas: elites senhoriais e estratégias de ascendência social, Rio de Janeiro, séc. XVIII
- Julia Ribeiro Aguiar | PDF
- Algumas notas sobre demografia, terras e elites no Recôncavo da Guanabara do século XVIII
- Victor Luiz Alvares Oliveira | PDF
- Entre chefe e correligionários: negociação, hierarquia e mobilidade social na Primeira República (Rio Grande do Sul, 1899-1900)
- Carina Martiny | PDF
- A trajetória de dois imigrantes italianos no Brasil Meridional (1878-1900)
- Maíra Ines Vendrame | PDF
- De Inácios e Antônios: práticas de nomeação e estratégias sociais de duas famílias da elite do Rio Grande de São Pedro (C.1750-C.1820)
- Rachel dos Santos Marques | PDF
- Aqueles que deveriam disciplinar a sociedade e normatizar o espaço urbano: o perfil dos juízes almotacés na Vila de Rio Pardo, Província do Rio Grande de São Pedro, 1811-1828
- Ricardo Schmachtenberg | PDF
Artigos
- Ficciones imaginadas: sujeto, Constitución y Estado en el pensamiento de los intelectuales liberal-conservadores argentinos (1959-1969)
- Martin Vicente | PDF
- Canções para as salas de aula: as mulheres nos tempos da ditadura civil-militar através de Chico Buarque
- Marcelo Dantas de Oliveira | PDF
Resenhas Críticas
- Entre dois mundos: a curiosidade planetária
- Kellen Cristina Silva | PDF
Publicado: 2014-09-14
Boletim Historiar. São Cristóvão, n.4, 2014.
Artigos
- O teatro ateniense na formação do Historiador
- José Maria Gomes de Souza Neto
- Construção de uma escala para avaliar liderança em residentes universitários
- Carla Regina Santos Almeida, Zenith Nara Costa Delabrida
- Ação latino-americana de informação e alfabetização-Brasil: o projeto de educação de jovens e adultos da Igreja Assembleia de Deus em Sergipe – 2006 a 2008
- Clotildes Farias de Sousa, Jailton Santos Moraes
- Sob Suspeita: o combate aos estrangeiros em Sergipe durante a Segunda Guerra Mundial
- Mônica Porto Apenburg Trindade
- Intolerância.com: as extremas direitas colombiana e venezuelana na internet (2005-2013)
- Anailza Guimarães Costa
Resenhas
- Calúnia e difamação no século XVII francês
- Edla Tuane Monteiro Andrade
- Nova Batalha: a Reintegração Social dos Veteranos da FEB
- Marlíbia Raquel de Oliveira
- Belém: Zona de Conflito
- Carla Albala Habif
Publicado: 2014-09-05
Ensaios de um percurso: estudos e pesquisas de teatro | Esther Priszkulnik
A editora Perspectiva contribui, já há algumas décadas, de forma decisiva para os debates sobre a arte teatral no país. Não é diferente com o livro Ensaios de um percurso: estudos e pesquisas de teatro, lançado em junho de 2013. Nessa obra, a pesquisadora Esther Priszkulnik, falecida em 2009, lança luz e estabelece um diálogo entre três universos teatrais distintos: o da Rússia do início do século XX, o do mundo judaico e o do Brasil dos imigrantes e do modernismo. Baseado em textos apresentados no curso de Pós-graduação do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e na dissertação de mestrado da autora, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o livro é organizado por J. Guinsburg e Luiz Henrique Soares e dividido em três partes: Ensaios, Projeto de uma encenação e O teatro ídiche em São Paulo. Leia Mais
Nova História Política: “novos” e “velhos” caminhos para se fazer história / Boletim Historiar / 2014
O Boletim Historiar encerra 2014 com a sensação de dever cumprido. Desde o nosso primeiro número, enfrentamos e vencemos diferentes desafios. Para fechar com chave de ouro, estamos publicando nesta edição nosso primeiro dossiê intitulado Nova História Política: “novos” e “velhos” caminhos para se fazer história, organizado por Natália Abreu Damasceno. O dossiê discute a Nova História Política a partir de trabalhos com abordagens aparentemente mais tradicionais, bem como através de análises mais inovadoras.
O dossiê é composto por cinco artigos. Iniciando temos Angelita Cristina Maquera em A historiografia do movimento operário brasileiro na década de 1980: uma análise política, que procura compreender a historiografia sobre o operariado brasileiro. Em seguida, O nascimento da polícia em Londrina de 1934 a 1955, Ingrid Carolina Ávila analisa a ação do aparato policial na cidade de Londrina por meio da perspectiva de Michel Foucault. O terceiro artigo, de autoria Natália Abreu Damasceno, Pelo poder de “fazer ver” e “fazer crer”: as relações Brasil-Estados Unidos a partir do jornal Última Hora (1951-1954), observa questões das relações internacionais a partir de um periódico impresso fundamental nos estudos do Brasil de meados do século XX.
O dossiê ainda conta com o texto Música, neofascismos e a Nova História Política: Uma análise sobre a presença do Hate Rock no Brasil (1990-2010), de Pedro Carvalho Oliveira, que investiga o fascismo no Brasil através da análise de músicas como ferramentas disseminadoras do discurso de ódio. Por fim, Bruce dos Santos e Letícia Augustin em Wikileaks, Snowden e a Nova História Política analisam os vazamentos de informações dos casos Wikileaks e Snowden.
Para fechar a edição também publicaremos a resenha de Sabrina Fernandes Melo Um quiosque na ponta extrema do Kamchatcka. Assim, desejamos um Feliz Ano Novo e agradecemos a colaboração e apoio de todos.
Os editores
Editores. [Nova História Política: “novos” e “velhos” caminhos para se fazer história]. Boletim Historiar. São Cristóvão, n.6, 2014. Acessar publicação original [DR]
História da educação indígena e colonialidade – PESOVENTO et al. (RBHE)
PESOVENTO, A; SÁ, N. P.; SILVA, S. J. História da educação indígena e colonialidade. Cuiabá: EdUFMT, 2012. Resenha de: QUINTERO, Sara Evelin Urrea. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 14, n. 3 (36), p. 325-330, set,/dez. 2014.
Los pueblos indígenas, sus saberes, tradiciones, formas de ser, hacer y habitar el mundo han estado silenciados o nombrados desde voces occidentales en la mayor parte de la historia; fenómeno que hapermitido construirla en clave europea, desde sus tiempos y espacios constituyendo como lo señala Lander (2000 apud PESOVENTO 2012) una gran narrativa universal.
En la superación de la visión eurocéntrica/colonizadora de esta narrativa, han venido configurándose nuevos marcos teóricos que permiten una lectura desde otras ópticas, haciendo emerger estúdios tanto de los mecanismos de imposición y colonialismo de las culturas, como de las resistencias de las mismas.
El libro História da educação indígena e colonialidade1 de Adriane Pesovento, Nicanor Palhares Sá y Sandra Jorge da Silva (2012, p. 11), se presenta en esa perspectiva utilizando como “[…] fundamento os conceitos relativos à colonialidade, como defendido por Lander (2005), Castro Gómez (2005), baseado em Quijano (2005)”. Para hacer sobresalir la presencia y la resistencia de los pueblos indígenas en la Provincia de Mato Grosso del siglo XIX.
A través de 7 capítulos los autores discuten el proceso educativo colonizador que supera lo escolar, creando mecanismos de subyugación los cuales incluyen discursos, prácticas e imaginarios; legitimadores del modelo modernizador eurocéntrico, como el único posible y verdadero.
En el primer capítulo titulado ‘Saberes locais e o processo civilizatório pós-colonial’ los autores dilucidan un interés por comprender los saberes indígenas a través del reconocimiento de la marginalización a la cual fueron sometidos. Partiendo del concepto ‘gnosis fronteriza’ de Walter Mignolo (2005 apud PESOVENTO, 2012) se presenta un abordaje al conocimiento desde las ópticas historicamente subalternizadas, más que desde las lógicas colonizadores las cuales han opacado y despreciado los saberes diferentes al proyecto epistemológico occidental. Sin embargo, es reconocida la dificultad del acceso a las fuentes, pues estas, en el caso indígena, son dispersas y escasas, además, el silencio es latente en este asunto; es por ello que la búsqueda por comprender esa historia de la educación, inicia entrelazándola con la perspectiva occidental para hallar en registros (como el realizado por Antonio Pires de Campos) y discursos oficiales indicios o datos que posibiliten ampliar la mirada reconociendo la presencia y el saber indígena. Este primer capítulo se vincula con el segundo ‘Aspectos da educação e colonialidade indígena’ ubicado espacio-temporalmente en la capitanía de Mato Grosso, fundada en el año 1748, teniendo al frente a Don Antônio Rolim de Moura. Los estudios, a través de los escritos de Don Antônio permiten comprender los imaginarios construidos por los colonizadores frente a los indios, escritos que los describen como brutales, salvajes, y sin raciocinio por su desinterés frente a la adquisición de bienes propios (teniendo en cuenta que para los colonizadores lusitanos, la ambición y el deseo de vivir com ‘comodidades’ era símbolo de civilidad). Los autores describen algunas medidas educativas del momento, como la sugerencia de enviar índios para Europa, quienes aprenderían a comportarse civilmente, convirtiéndose a su regreso en maestros de los demás, y la catequización por parte de los Jesuitas (A pesar de esta sugerencia la presencia de la Compañía de Jesús no es muy significativa en Mato Grosso; según los autores lo anterior no implica que no hubiese religiosos en el área, por el contrario es posible encontrarlos aún hoy). En este capítulo se reconocen las intenciones políticas detrás de las educativas, en el marco de um período cruzado por las luchas de dominación y ocupación del território entre españoles y portugueses. Por lo cual, para la capitanía Matogrossense y el Directorio de los Indios era fundamental la utilización de
los indígenas como ‘guardianes de las fronteras’, tornándolos fieles al rey de Portugal.
Para el análisis de los aspectos de la educación, los autores recurren al documento donde se informa sobre la creación de comitivas para la búsqueda de Minas de oro y destrucción de Quilombos, organizado por el señor Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres.
Las descripciones de este viaje permiten conocer un modelo de educación de las comunidades próximas al Rio do Piolho, en donde moraban indígenas, cerca de viviendas de negros, generando relaciones y trocas culturas. Citando a los autores, es posible afirmar que fue “[…] na confluência de culturas que se dava a educação por meio de trocas apropriações e ressignificações dos diversos elementos próprios de cad povo, tecendo e tramando suas histórias para além dos domínios ocidentais e dos saberes coloniais” (PESOVENTO, 2012, p. 35) configurando una circularidad de significados, que pueden ser pensados como micro resistencias.
Finaliza el segundo capítulo reconociendo la permanencia de la colonialidad en el siglo XIX, a pesar de no existir ya el colonialismo com respecto a Portugal. Tal como lo define Mignolo (2004 apud PESOVENTO, 2012) el proyecto para la modernidad no existe sin colonialidad, por lo cual en Mato Grosso que camina hacia esta debieron ser aniquilados y sustituidos los saberes y tradiciones indígenas considerados como saberes incivilizados. Lo anterior sustenta la necesidad de educar al indígena a través de la Catequesis y el trabajo.
El tercer capítulo ‘Thereza Cristina: de colonia militar a colônia indígena’, presenta no sólo los mecanismos colonizadores, sino las resistencias que el pueblo Bororo-coroado generó frente a los processos educativos colonialistas tanto en manos de los militares como posteriormente de los salesianos. Los autores presentan un estudio de los informes oficiales de la época (presentados desde la dirección de la Colonia, la presidencia de la provincia de Mato Grosso, la dirigencia del Directorio de los indios, entre otros entes gubernamentales) que permiten encontrar en los objetivos de la creación de la Colonia (año 1887) um proyecto modernizador que garantizaría el progreso de la provincia de acuerdo con los imaginarios eurocéntricos, en el cual la integración del indígena como mano de obra, serviría en la explotación de la vasta riqueza natural mato-grossense; integración que se daría en tanto e pueblo indígena estuviese ‘civilizado’.
Bajo un ideal evolutivo los indígenas pasarían de un estado primitivo y bárbaro a uno civilizado y euro-céntricamente ‘adecuado’, proceso del cual el colonizador se sentía responsable, esto justificaba no sólo la fuerza utilizada sino la imposición de una cultura sobre otra. Sin embargo, tal como es señalado en el libro, este proceso de subyugación subalternización no se dio pacíficamente en la colonia Thereza Christina, a pesar de las prácticas violentas y la vivencia al lado del colonizador ‘civilizado’, el proceso educativo (civilizador) era insuficiente; incluso con la posterior incursión de las misiones catequizadoras salesianas y la educación de los hijos indígenas, que servirían como intérpretes, no se consiguieron los objetivos planteados por las élites de la época.
En la misma línea de análisis, en donde el trabajo se constituye no sólo como el medio educativo sino como el objetivo mismo en el proceso civilizatorio, se presenta el cuarto capítulo ‘O trabalho como possibilidade de educar os indígenas’. A través del estudio de registros históricos (informes y correspondencias oficiales de la época) es realizada una reflexión teórica sobre el trabajo y la educación indígena como conceptos enlazados en la colonización de los pueblos indígenas mato-grossenses. Educación que no se limita al escenario escolar, constituyéndose en un fenómeno que permea discursos y prácticas cotidianas buscando inserir a los indígenas en el mundo occidental a través del trabajo y para este mismo, ya que era reconocida la necesidad de mano de obra en la explotación de la riqueza natural del estado. Sin embargo, los autores encuentran cautelas y silencios en los documentos frente al uso de mano de obra indígena, presentándose como uma recomendación que auxiliaría la ‘civilización’; permitiendo visualizar nuevamente el imaginario colonialista, que ubica a sus autoridades em estatus de héroes, redentores de la provincia, velando por el progreso y el buen curso de Mato Grosso hacia la modernidad.
La cultura tradicional indígena calificada como bárbara, primitiva, perezosa y salvaje, reforzaba la idea de inferioridad con respecto al colonizador, que era dotado por tanto de legitimidad para ‘civilizar’ estos pueblos a través de diversas formas: la fe cristiana, el trabajo, la fuerza e incluso la violencia, como lo relatan los autores en este capítulo.
Dichos procesos civilizadores poseen, además, un claro interés em borrar las huellas de las tradiciones indígenas que estuviesen en contra de las formas eurocéntricas, sin embargo algunas voces pueden ser descubiertas, aún, en registros oficiales, para desentrañar saberes y costumbres de los pueblos indígenas; es así como en el quinto capítulo ‘Imbuére: educação Apiaká’ , los autores recurren al documento Sobre los usos, costumbres y lenguaje de los Apiaccás, y el descubrimiento de las nuevas minas en la provincia de Mato Grosso, publicado por e Instituto Geográfico Brasileiro en el año 1844, para estudiar los mecanismos utilizados en la enseñanza, y el sentido que los Pueblo indígenas daban a la educación. Es importante señalar que la publicación de este documento se da en el marco de la búsqueda por crear uma identidad nacional, con la incorporación de los indígenas a través de su ‘civilización’.
Los autores, reconocen en el documento un proceso educativo que se da en la vida misma de los Apiaká, no se reduce a la idea occidental de control de los procesos de aprendizaje, pues este se genera en la cotidianidad, en la interacción, transmisión y recreación de sus sabere tradicionales, por lo cual describen las diversas prácticas educativas y la importancia de ellas en la permanencia de la cultura a través del tiempo.
La creación de imaginarios sociales se constituye, también, en uma herramienta educativa; es así como en el sexto capítulo ‘Um nome Occidental para un Terena: Alexander Bueno’ se presenta la configuración de una imagen del indígena ‘civilizado’ que comprende su lugar en la jerarquía social y lucha por los intereses colonialistas en Mato Grosso de finales del siglo XIX. De acuerdo a los autores, el estúdio sobre este capitán, altamente influyente debido a su origen indígena y posteriores acciones militares, trasparece los mecanismos de construcción de modelos de comportamiento para los indígenas, que permitirían no sólo la ‘pacificación’ y ‘civilización’ de estos, sino la creación de un ambiente tranquilo para la sociedad no india, en tanto demostraría la capacidad de las élites en transformar los hábitos, costumbres y conductas indígenas.
El capítulo final titulado ‘A educação pós-colonial em O Selvagem’ cierra esta publicación presentando un estudio sobre la historia de la educación indígena a partir del documento O Selvagem de Couto de Magalhães (apud PESOVENTO, 2012) de finales del sigl XIX; el cual representa un registro valioso para la comprensión de la propuesta civilizatoria de este período. Los autores señalan cómo e amplio conocimiento de Magalhães sobre el territorio mato-grossense le permitía hablar con mayor facilidad sobre las características de los pueblos indígenas y por tanto de sus ‘necesidades’ educativas, visión que estaba dada desde un lugar colonialista y occidental, el cual, a través de una racismo epistemológico, negaba los saberes y mecanismos de transmisión y aprendizaje de los indígenas, para imponer las formas eurocéntricas de educación, que a su vez se presentaban como las redentoras de la cultura en el proceso de modernización de Mato Grosso.
Esta publicación consigue, a partir de los anteriores estudios, su propósito de hacer emerger la historia de la educación indígena desde dos ópticas diferentes, tanto la educación para el indígena como herramienta fundamental en los procesos ‘civilizatorios’ y colonizadores, como aquella propia de los pueblos indígenas que hacía resistencia a la imposición eurocéntrica, y velaba por la permanencia de la cultura y saberes locales. Es por ello que el libro Historia da educação indígena e colonialidade se hace relevante y cobra notable importancia para la historia de la educación mato-grossense y brasilera, y para la apertura investigativa hacia nuevos territorios y objetos de pesquisa.
Notas
1Estudio originado de las discusiones e investigaciones realizadas en el Grupo de
Pesquisa en Educación, Historia y Memoria (GEM) de la Universidad Federal de
Mato Grosso.
Sara Evelin Urrea Quintero – Licenciatura em Gestão Educativa pela Universidade de San Buenaventura –USB (2011). Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade
Federal de Mato Grosso (PPGE/IE/UFMT) pelo Convênio Organização dos Estados
Americanos (OEA) Grupo COIMBRA. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), integrante do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória (GEM) da UFMT. Email: saraurrea0718@gmail.com
Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1930) – SOUZA et al. (RBHE)
SOUZA, R. F.; SILVA, V. L. G.; SÁ, E. F. Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1930). Cuiabá: EDUFMT, 2013. Resenha de: SÁ, Jauri dos Santos. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá, v. 14, n. 3 (36), p. 319-323, set,/dez. 2014.
Por uma teoria… reúne as reflexões de um grupo de pesquisadores de distintos estados brasileiros que se ocuparam da investigação em perspectiva comparada, com ênfase na escola graduada, no período compreendido entre 1870 e 1930. Às pesquisadoras Rosa Fátima de Souza, Vera Lucia Gaspar da Silva e Elizabeth Figueiredo de Sá coube a difícil tarefa de selecionar e organizar uma amostra desse material, síntese de parte da produção desenvolvida ao abrigo do projeto de pesquisa Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1930), coordenado por Rosa Fátima de Souza.
O projeto original envolveu 15 estados brasileiros, interligando 27 pesquisadores doutores, organizados em 17 Programas de Pós- Graduação em Educação. Com tamanha pluralidade de experiências, a produção foi organizada em quatro grupos temáticos, que, reunidos neste livro, sistematizam a produção dos GTs, refletindo sobre a difusão da escola nova, a cultura material escolar, as representações sociais sobre os grupos escolares ou a institucionalização da escola graduada nos vários estados do Brasil.
O primeiro texto, ‘A escola modelar da República e escolarização da infância no Brasil: reflexões sobre uma investigação comparada em âmbito nacional’, de Rosa Fátima de Souza, nos oferece uma análise comparativa sobre o processo de institucionalização das escolas graduadas nos diferentes estados brasileiros participantes da investigação, expondo ao leitor o universo da pesquisa. Ao “[…] inquirir sobre as características fundamentais desse tipo de escola, o modo pelo qual ele foi apropriado e se consolidou no Brasil, as alterações sofridas ao longo do tempo e os fundamentos de sua legitimidade” (SOUZA, 2013, p. 24), a autora nos propõe uma reflexão acerca da compreensão dos problemas educacionais e das soluções consideradas para os mesmos.
O segundo artigo, intitulado ‘Os grupos escolares nas memórias e histórias locais: um estudo comparativo das marcas da escolarização primária’, de autoria de Antonio Carlos Ferreira Pinheiro, Antonio d Pádua Carvalho Lopes, Luciano Mendes de Faria Filho e Fernanda Mendes de Resende, discute a questão do ‘acervo’ histórico educacional, particularmente o mineiro, o piauiense e o paraibano, relacionando, comparativamente, a ‘cultura histórica’ numa perspectiva analítica em torno da ideia da ‘cultura educacional’. O artigo trata da fonte escrita a partir das obras de memória e de história dos municípios, forjadas por ‘historiadores de não ofício’, que, no entanto, “[…] por estarem mais próximos do seu lugar de origem exercem papel relevante junto a sua comunidade” (PINHEIRO et al, 2013, p. 96).
José Carlos de Souza Araujo, Rosa Fátima de Souza e Rubia-Mar Nunes Pinto são os autores do terceiro artigo do livro, ‘A escola primária e o ideário republicanista nas mensagens dos presidentes de estado: investigações comparativas (1893-1918)’, que propõe uma ampla análise a respeito da institucionalização dos grupos escolares no Brasil, examinando o discurso político de diferentes estados da federação em relação à instrução pública. Para tal empreendimento, orientam-se pelas Mensagens dos Presidentes dos Estados, questionando sobre a relevância dessa modalidade de escola, sobre as distintas realizações educacionais ou, ainda, se é possível afirmar a existência de um projeto republicano de educação popular no período. As fontes investigadas pelos autores apontam para um processo não uniforme de organização e instalação dos grupos escolares nos Estados, resultado das particularidades políticoeconômicas e culturais, específicas de cada um deles.
‘O Federalismo republicano e o financiamento da escola primária pública no Brasil’, que constitui o quarto artigo, de autoria de Jorge Nascimento e Lucia Maria Franca Rocha, investiga o financiamento da Educação nos Estados durante a Primeira República. Para isso, utiliza, como fonte, as Mensagens Presidenciais de 11 unidades da federação, centrando a comparação em cinco deles. A primeira constatação apontada foi a de que houve uma diversidade de modelos de escolas implantadas em um mesmo Estado, sendo o dos grupos escolares gestado em São Paulo a principal fonte de inspiração. A partir daí, problematizam a questão do financiamento das escolas públicas, o impacto desse tipo de gasto nos orçamentos estaduais e, sobretudo, nos discursos produzidos no âmbito político. De caráter exploratório, o estudo primeiramente compara números, observando-se, como traço comum, o discurso do crescimento dos gastos com a educação na Mensagens, ainda que nem sempre os dados apresentem proporção uniforme. Não obstante, incorpora também as iniciativas privadas e associativas que abordam o problema do financiamento da educação.
O quinto capítulo, ‘A expansão da escola primária graduada nos Estados na primeira república: a ação dos poderes públicos’, de Alessandra Frota Martinez de Schueler, Elizabeth Figueiredo de Sá e Maria do Amparo Borges Ferro, registra que, apesar da paulatina centralidade adquirida pela escola primária graduada nos distintos estados da federação nas primeiras décadas republicanas, não se observou sua diminuição nas mesmas proporções em relação à hegemonia da escola isolada ou singular.
Em ‘Institucionalização do modelo de escola graduada’, o sexto capítulo do livro, as autoras Elizabeth Miranda Lima e Maria Auxiliadora Barbosa Macedo apresentam uma primeira aproximação comparativa do percurso de institucionalização da escola graduada no Brasil, especialmente referente ao processo de circulação, recepção e apropriação do modelo pedagógico. Tendo como base as pesquisas realizadas nos estados do Mato Grosso, Rio de Janeiro, Acre e Goiás, as autoras identificaram diferentes modelos de oferta e organização da instrução pública, onde predominou “[…] a modalidade de Escola
Primária Elementar e Escola Primária Complementar, distribuídas em áreas rural e urbana” (LIMA; MACEDO, 2013, p. 182). Embora materializada em distintos formatos, foi na monumentalidade e no funcionamento didático-pedagógico dos grupos escolares que modernidade educacional do período republicano era visível, ainda que a oferta do ensino primário permanecesse, quantitativamente, com as escolas isoladas.
Marta Maria de Araújo é a autora do sétimo artigo do livro, ‘A criança, educação de escola (São Paulo e Nordeste do Brasil, 1890- 1930)’, que examina a institucionalização da escola primária republicana, em São Paulo e nos Estados do Nordeste – Sergipe, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte e Bahia. As fontes investigadas centram-se em decretos, leis, mensagens governamentais, regimentos, relatórios de diretor-geral da instrução pública etc. Os propósitos da autora são de recompor as modalidades de escolas postas e repostas no período, assim como cotejar as similaridades nas suas propriedades gerais e nas suas particularidades e variantes.
O oitavo capítulo, ‘Modernidade metodológica e pedagógica: apropriações do método de ensino intuitivo nas reformas da instruçã pública de Minas Gerais, Santa Catarina e São Paulo (1906-1920): ideias e práticas em movimento’, de Vera Teresa Valdemarin, Gladys Mary Ghizoni Teive e Juliana Cesário Hamdem, registra o movimento de irradiação das ideias pedagógicas difundidas no Brasil ao final do século XIX, tendo o método de ensino intuitivo como o “[…] elemento pedagógico imprescindível para estabelecer diferenciações entre o futuro desejado e a realidade a ser modificada” (VALDEMARIN; TEIVE; HAMDEM, 2013, p. 240). Adotando a lógica comparativa, as autoras analisam a circulação do método intuitivo nos Estados de Minas Gerais,
Santa Catarina e São Paulo, considerando as diferenças como elementos constitutivos. As análises demonstram que o método de ensino intuitivo estabeleceu lugares de irradiação de ideias e práticas, apoio interpretações comuns, contribuindo para pôr em circulação ideias de distintos autores.
Em ‘Cultura material escolar: fontes para a história da escola e da escolarização elementar (MA, SP, PR, SC e RS, 1870-1925)’, nono artigo do livro, os autores César Augusto de Castro, Diana Gonçalves Vidal, Eliane Peres, Gizele de Souza e Vera Lucia Gaspar da Silva examinam algumas fontes indicativas da materialidade da escola primária brasileira. Variando o período eleito para a pesquisa, entre a segunda metade do século XIX até o ano de 1925, os autores definiram cinco tipos de fontes: carta de professor, da escola; documentos administrativos; relatórios; jornais e legislação, documentos com potencial de revelar pistas de determinados objetos escolares.
Buscando favorecer “[…] o entendimento das possíveis táticas de apropriação diversificadas e até discordantes dos múltiplos dispositivos da cultura escolar” (CASTRO et al, 2013, p. 295), os autores desse último artigo tratam de identificar os modos de produção e disseminação de um modelo de escolarização no Brasil, a partir da comparação entre os distintos estados, retratando, por meio da materialidade escolar, os investimentos que mantinham e faziam funcionar as escolas públicas.
O leitor interessado em conhecer as diversas experiências concretizadas nas muitas realidades do país encontrará nessa obra uma rica coletânea de artigos. O livro assume, conforme as palavras das organizadoras1, “[…] o desafio da comparação […]” (SOUZA; SÁ, 2013, p. 15), oferecendo um bom panorama das pesquisas sobre a história da escola primária no Brasil, orientadas por quatro grupos temáticos: representações, práticas, apropriações e materialidades.
Notas
1 Rosa Fátima de Souza é professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, no Departamento de Ciências da Educação e Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Campus de Araraquara. Vera Lucia Gaspar da Silva é professora do Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAEd) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Coordenadora do Museu da Escola Catarinense entre 2004 e 2008. Elizabeth Figueiredo de Sá é coordenadora do grupo de Pesquisa História da Educação e Memória – GEM-IE-UFMT, pesquisadora na área da História da Educação no Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa em História da Educação (NIEPHE) da FEUSP. Atua como professora adjunta no Instituto de Educação e no Programa de Pós-Graduação da UFMT
Jauri dos Santos Sá – Arquiteto. Doutor em Arquitetura pela Universidade Politécnica da Catalunha, Barcelona/Espanha. Atualmente desenvolvendo estagio Pós-Doutoral no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Participa do Observatório de Educação – projeto Núcleo em Rede na mesma instituição. Bolsista CNPq. E-mail: arqjauri@gmail.com
Mulheres, práticas políticas e gênero: História(s), Vivência(s) e Experiência(s) do(s) feminino(s) / História Revista / 2014
A introdução dos estudos de gênero no Brasil encontrou campo fértil na história das mulheres, caracterizada como uma produção de saber interdisciplinar, que ganhou consistência nos anos de 1970. As pesquisas envolveram esforços de historiadoras, sociólogas e antropólogas, feministas que tiveram coragem de dar voz às mulheres, retirá-las do apagamento e do silêncio da História, destacando as “vivências comuns, os trabalhos, as lutas, as sobrevivências e as resistências das mulheres no passado” (PEDRO, 2005, p.85). Nesse avanço das lutas sociais e das críticas feministas, tem vazão a controvérsia em torno da história das mulheres, que parecia sinalizar a exaustão da categoria mulher, vista, muitas vezes, como generalizada e universal. Abria-se, então, o campo para os gender studies ou o estudo das relações de gênero, que ganharam relevância nos Estudos Unidos, no início dos anos 1990 (RAGO, 1998, p.89).
A partir disso, abriu-se um campo de pesquisa interdisciplinar que busca compreender como se constituem o masculino e o feminino cultural e historicamente, na perspectiva das relações de gênero. A introdução dessa categoria iluminou a análise ao incorporar à experiência a dimensão da sexualidade e das identidades construídas, contrapondo-se à tendência de se pensar a identidade sexual como algo biologicamente dado (NICOLSON, 2000, p.9).
Dentre as contribuições do conceito de gênero, destacam-se: a rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual; a dimensão relacional entre as mulheres e os homens, indicando que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois sexos poderia existir sem um estudo que os tomasse em separado; a ênfase no caráter social e cultural das distinções baseadas no sexo, que contribuiu para desnaturalizar o discurso biológico; a dimensão das relações de poder que perpassa as assimetrias e hierarquias nas relações entre homens e mulheres (SOIHET e COSTA, 2008, p.43). Como Jane Flax (1991, p.226) afirma, a problematização das relações de gênero consiste no mais importante avanço isolado da e na teoria feminista no final do século XX. Definitivamente, inaugura-se um novo paradigma para compreensão da História.
O presente dossiê representa e confirma a importância e a abundância de pesquisas em torno da temática das relações de Gênero na História. As pesquisas pretendem compreender como as vivências e experiências de mulheres e homens questionaram / conformaram / inventaram a profunda desigualdade nas relações de gêneros, e simultaneamente espaços e lugares públicos e privados interditados e repensados. As construções sociais, históricas e culturais em torno dessa rede simbólica é, muitas vezes, composta de silêncios ratificados em discursos que buscam naturalizar a diferença, significados criados politicamente e necessariamente imprecisos (SCOTT, 2012).
Alcileide Cabral do Nascimento e Alexandre Vieira da Silva Melo fazem uma profícua parceria no artigo “Melindrosas em revista: Gênero e sociabilidades do início do século XX (Recife, 1919-1929) ao analisar o corpo feminino e suas ressignificações através da figura da Melindrosa – personagem instigante e amendrontadora da ordem de gênero – na moderna Recife da Primeira República.
Ana Maria Colling e Losandro Tedeschi abordam as questões sobre “Os Direitos Humanos e as questões de Gênero” analisando a desigualdade de gênero como “uma afronta à igualização proposta pelos Direitos Humanos desde a sua fundação no século XVIII”. Violência, direito à cidadania e espaços conquistados por mulheres ultrapassam assim fronteiras políticas para tentarem realizar um espaço de vivências igualitárias e democráticas, que deveriam ser asseguradas às mulheres, mas as disputas de poder das relações de gênero nos mostram que a história é repleta de conflitos e exceções.
Maria Izilda de Santos Matos nos brindou com o trabalho “Maria Prestes Maia: trajetória, luta política e feminista na qual investiga a importância da esposa do prefeito e urbanista Francisco Prestes Maia em meados do século XX – Maria Prestes Maia, imigrante lusa – nas atividades políticas, sociais, sua atuação na Federação das Mulheres no Brasil e como sua influência pode ter tido relevância para o traçado urbano de São Paulo efetivado pelo “Plano Avenidas”.
No artigo “Mulher, casamento e trabalho: um triângulo que não fecha?” de Maria Beatriz Nader embarcamos para outra cidade brasileira: Vitória e suas transformações nas três últimas décadas do século XX. A participação das mulheres nesse desenfreado processo de implantação de grandes indústrias, aumento populacional e econômico, sofre intensas mudanças, pois o mercado de trabalho rompe, ou pelo menos esgarça a tessitura do bordado tradicional do destino feminino de casamento e família.
Gleidiane de Sousa Ferreira aponta que o debate sobre o feminismo não é apenas nacional, mas internacional. Sua contribuição ao apresentar elementos de atuação política do Mujeres creando, grupo de atuação feminista anarquista boliviano desde 1992, é literalmente um espaço de reflexão sobre o que significa pensar as práticas do feminismo nos dias contemporâneos. Seu artigo “Produzir conhecimento sobre si mesmas: uma reflexão histórica sobre práticas feministas autônomas na Bolívia”, aborda as diversas formas de comunicação estabelecidas por essas mulheres, tendo como ponto de partida a noção de “tomar la palabra”: escrita teórica, rádio independente, o jornal alternativo, arte de rua.
“Tomar la palabra!”. É o que queremos e esperamos. Aproveitem os textos sobre práticas políticas e gênero e que destes surjam outras e tantas mais História(s), Vivência(s) e Experiência(s) do(s) feminino(s)!
Referências
FLAX, Jane. Pós-moderno e relações de gênero na teoria feminista. In: BUARQUE DE HOLANDA, Heloísa (Org.). Pós-modernidade e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p.217-250.
NICOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v.8, n.2, p.9-41, 2000.
SCOTT, JOAN W. Os usos e abusos do gênero. Tradução: Ana Carolina Eiras Coelho Soares. Projeto História, São Paulo, n. 45, pp. 327-351, Dez. 2012.
SOIHET, Rachel e COSTA, Suely Gomes. Interdisciplinaridade: história das mulheres e estudos de gênero. Gragoatá, Niterói, n.25, p.29-49, 2008.
Alcileide Cabral do Nascimento – Professora Doutora em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco; Coordenadora Nacional do Gt de Gênero ANPUH; Coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Gênero / NUPEGE / UFRPE / CNPq.
Ana Carolina Eiras Coelho Soares – Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em História e da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás; Coordenadora do GT regional de Gênero – Seção Goiás; Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero / FH-UFG / CNPq.
NASCIMENTO, Alcileide Cabral do; SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 19, n. 3, 2014. Acessar publicação original [DR]
Diálogos paradigmáticos sobre informação para a área da saúde – PINTO; CAMPOS (TES)
PINTO, Virgínia Bentes; CAMPOS, Henry de Holanda (Orgs.). Diálogos paradigmáticos sobre informação para a área da saúde. Fortaleza: Edições UFC, 2013, 444p. Resenha de: CUNHA, Elenice M. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.12, n.3, set./dez. 2014.
A relevância da área de Informação e Informática em Saúde (IIS) para o alcance dos princípios do SUS e melhoria de sua efetividade é indiscutível. Entretanto, o desenvolvimento da IIS, por sua transdisciplinariedade, depende da contribuição de referenciais de distintas áreas do saber. A obra Diálogos paradigmáticos sobre informação para a área da saúde, organizada por Virgínia Bentes Pinto e Henry de Holanda Campos, veio ao encontro dessa necessidade.
De início, prefácio e apresentação promovem de forma consistente a familiarização com a amplitude e interfaces do objeto ‘informação em saúde’ e com o conjunto dos capítulos e temáticas abordadas. O livro, com mais de quatrocentas páginas e 15 capítulos, abrange tanto questões teórico-metodológicas para abordagem do objeto quanto discussões e definições mais diretamente relacionadas à prática dos serviços, com ênfase em questões relativas aos requisitos das Ciências da Computação.
Pela abrangência da obra, a nossa opção foi por destacar os capítulos iniciais, que tratam de temáticas que supostamente profissionais e pesquisadores da saúde estejam menos familiarizados. O primeiro capítulo apresenta uma proposta de modelo de análise para o objeto ‘informação em saúde’. A análise de domínio, abordagem teórica e metodológica de uso corrente nas Ciências da Informação, teria duas etapas bem demarcadas. A primeira etapa, em que se buscaria entender e descrever o escopo e abrangência do objeto com base na análise de suas premissas ontológicas, epistemológicas e sociais, encontra-se de forma mais detalhada e em uma aproximação com o objeto. Já a segunda etapa da análise, que supostamente permitiria intervir sobre as informações do domínio em questão, não chega a ser discutida. Há apenas a menção de que esta consiste em um “conjunto de metodologias” (p. 35) de uso frequente na Ciência da Informação.
Para os que não estão familiarizados com estudos no campo da Ciência da Informação e com a complexidade do objeto ‘informação em saúde’, a compreensão do capítulo exige dedicação e releituras. Contudo, o esforço é recompensado, posto que conceitos e proposta de análise apresentados lançam luzes sobre a complexidade do objeto e sobre implicações de tê-lo como objeto de pesquisa.
De perspectiva mais geral e abrangente, o segundo capítulo contextualiza a chamada ‘sociedade da informação’ na atualidade, com destaque para características como a interatividade e o compartilhamento, que modificam e ampliam as possibilidades de ‘saber, produzir e atuar’ dos indivíduos. Tais possibilidades, que estariam condicionadas pelo desenvolvimento de tecnologias digitais, juntamente com a sobrecarga de dados, promoveriam impactos na prática da medicina, permitindo, ou exigindo, modificações no padrão de atuação de profissionais e pacientes. A abordagem, em linguagem clara, amplia a compreensão e contribui para superar uma perspectiva tecnicista do objeto ‘informação em saúde’.
O terceiro capítulo, “Informação para o monitoramento de risco em saúde”, de abordagem mais prática, apresenta um panorama do que seria o uso das informações e a aplicação das tecnologias de informação e comunicação (TICs) no Sistema Único de Saúde, sem muitas novidades para aqueles profissionais do setor saúde que já atuam na área, mas provavelmente contribuirá para profissionais da Ciência da Informação e das Ciências da Computação que tenham interesse no tema ‘informação em saúde’.
O quarto capítulo contempla discussão atual, que, no âmbito do setor saúde, precisa ser ampliada e aprofundada: o acesso livre à informação científica. No texto, a autora explicita fatos e situações que têm contribuído, no Brasil, para o movimento em favor do acesso livre à informação, como a abertura política, a crise econômica e o desenvolvimento das TICs; e ainda eventos e discussões, em âmbito nacional e internacional, relevantes para o desenvolvimento da questão. Reforça os repositórios institucionais como projeto que possibilita a implementação da ideia como política de apoio ao desenvolvimento científico e à democratização do acesso ao conhecimento, mostrando potencial para impactar positivamente na atenção à saúde.
O capítulo quinto trata da possibilidade e necessidade da representação indexal para o tratamento informacional do prontuário do paciente. Requer esforço, não para a compreensão do texto, mas para motivar-se à leitura, pois, embora básica na Ciência da Informação, a temática é pouco abordada no setor saúde, e não estamos familiarizados com ela. Contudo, deve-se ter em conta, na leitura e compreensão da obra, que é preciso empenho para desenvolver o objeto ‘informação em saúde’, dadas as interfaces da temática. O texto é elucidativo na medida em que esclarece aos iniciantes a funcionalidade e relevância da representação indexal, que em síntese agiliza a recuperação da informação.
Os capítulos seguintes discutem terminologias e padronização. Um desses capítulos, inicialmente escrito no idioma espanhol, apresenta resultados de trabalho empírico sobre identificação de termos representativos da linguagem médica especializada, por profissionais supostamente envolvidos com a questão, e relata a falta de consenso e outras dificuldades. A certa atura, no entanto, esse capítulo traz trechos em catalão, o que dificulta a compreensão do texto em sua totalidade, posto que é um idioma pouco falado no Brasil.
Arquitetura da informação em meio digital e interoperabilidade dos sistemas também são temas abordados na obra, em uma linguagem clara que possibilita a compreensão mesmo por aqueles ainda não familiarizados.
No último capítulo, os autores explicitam alguns dos dilemas e implicações da informatização dos documentos gerados nas instituições de saúde. Destacam que o prontuário do paciente não é o único documento produzido nessas instituições, pois a maioria dos processos de trabalho administrativos também geraria documentos. Nesse aspecto ressalta a importância do referencial analítico e organizativo da disciplina Gestão de Documentos. Apresenta, de forma sucinta, a legislação e instituições que deveriam nortear o processo de informatização e os possíveis interesses envolvidos.
A superação das limitações da IIS depende menos de iniciativas pontuais internas ao campo específico da saúde e mais de outros referenciais. Visto por uma profissional de saúde que se ocupa da Educação Profissional na área de Informações e Registros em Saúde, pelos temas abordados, a obra assume grande importância.
Por sua abrangência temática e consistência teórica, o livro tem potencial para servir de referência para pesquisas e como subsídio para o ensino.
Elenice M. Cunha – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: elenc@fiocruz.br
[MLPDB]Depois da utopia: A história oral em seu tempo – SANHIAGO (RTA)
SANHIAGO, Ricardo; BARBOSA, Valéria (Org.) Depois da utopia: A história oral em seu tempo. São Paulo: Letra e Voz, 2013. Resenha de: SCHÜTZ, Karla Simone Willemann. Um campo em (constante) reflexão. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.13, p. 240 ‐ 245, set./dez. 2014.
O campo da História oral chegou de maneira efetiva ao Brasil em meados da década de 1970, e desde este momento até a contemporaneidade muitas transformações podem ser visualizadas nele como frutos de recorrentes discussões epistemológicas e metodológicas entre seus adeptos, que buscaram através delas afirmar este campo e combater as críticas oriundas de muitos historiadores céticos em relação à utilização de fontes orais nos trabalhos historiográficos.
Advindo de mais um destes momentos de auto‐reflexão aos quais o campo da História oral se lança, o livro Depois da utopia: A história oral em seu tempo pretende, nas próprias palavras de seus autores, “pesar o que o tempo filtrou” (MAGALHÃES; SANTHIAGO, 2013, p.10). Seus organizadores, juntos, são responsáveis pela fundação, em 2009, do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória – Gephom –, situado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), responsável pelo desenvolvimento de pesquisas que lançam mão da História oral e que se dedica a pensar questões pertinentes a teoria a metodologia deste campo e seus encontros com a memória.
Ainda vale lembrar que ambos foram orientados em suas teses de doutorado defendidas na USP pelo historiador José Carlos Bom Meihy, nome de destaque dentro da História oral brasileira e um dos idealizadores do livro intitulado (Re)introduzindo a história oral no Brasil, lançado há quase uma década, em 1996, e que tem uma perspectiva que se assemelha muito a que guia Depois da utopia. A publicação da década de 1990 é resultado do I Encontro Regional de História Oral Sudeste/Sul (1995), entendido como um marco importante nos rumos que haviam tomado os pesquisadores da História oral no Brasil. Como está colocado no próprio título da obra, estes percursos se pautaram numa espécie de “reinvenção” daquele campo que havia se instalado em terras brasileiras durante a década de 1970. Naquele momento – a década de 1990 ‐ foram percebidas mudanças na inspiração destas pesquisas, que se desgarraram da exclusividade temática norte‐americana e voltaram‐se para as relações entre memória e História, para os modelos biográficos, para o desenvolvimento de uma história dos “vencidos”, da História do Tempo Presente, e para o caráter transdisciplinar da História oral.
Muitos destes tópicos ainda podem ser encontrados no livro de Magalhães e Santhiago (2013), além de alguns dos autores participantes daquela primeira publicação ‐ inclusive a organizadora Valéria Magalhães, que figura com um artigo escrito em conjunto com outros quatro pesquisadores. Olga Rodrigues de Moraes von Simson e Alice Beatriz da Silva Gordo Lang, sociólogas articulistas de (Re)introduzindo a história oral no Brasil, reaparecem na publicação de 2013 com capítulos que pretendem fazer um balanço do campo e de seus trabalhos desde 1990 até a contemporaneidade. Nesse sentido, vale mencionar que Depois da utopia está organizado em 5 temáticas – Matéria: Memória; O método em seu tempo; Auto‐olhares; As histórias e seus usos; Memória é cultura ‐, e no total conta com 15 artigos que ressaltam a índole transdisciplinar vinculada à História oral e quem vem, nas ultimas décadas, estabelecendo um diálogo profícuo com outros campos das ciências sociais: jornalistas, sociólogos e historiadores brasileiros e estrangeiros, reunidos para pensar a “história oral em seu tempo”.
Como mencionado anteriormente, muitos dos assuntos em voga na década de 1990 ainda estão presentes na obra objeto desta resenha, como é o caso do lugar que ocupa e das formas que assume a memória nas pesquisas que lançam mão da História oral, tópico que toma toda a parte inicial do livro, com destaque para o artigo da italiana Luisa Passerini, nomeado Memória e utopia em um mundo global. Nele, a autora apresenta a relação entre memória e utopia como chave para entender os processos de formação de subjetividades e identidades no mundo contemporâneo marcado pelo trânsito de pessoas, que migram e transitam ao redor do globo em função de motivações tanto econômicas quanto culturais. Passerini caracteriza a memória como algo que se direciona ao passado, enquanto a utopia se direcionaria para o futuro, estando o segredo da relação entre elas no encontro que estas efetuam na dimensão do presente. De maneira geral, a sugestão que Passerini oferece, não só aos oralistas, mas também àqueles que são adeptos da História do Tempo Presente, é ampliar a atenção dedicada às subjetividades presentes na memória, problematizando o papel das utopias individuais não universalizantes no presente. Passerini (2013), acerca destas multiplas temporalidades, assim afirma: “Estou convencida que hoje, além de explorar o passado para olhar para as formas de memórias esquecidas, precisamos também explorar o presente, a fim de encontrar traços do futuro” (p.24).
As outras principais questões que saltam aos olhos nessa publicação de 2013 estão relacionadas sobretudo as temáticas e problemáticas que surgiram no campo desde a primeira “virada” na década de 1990. Dentre elas estão a utilização crescente das chamadas “novas mídias” em trabalhos de História oral; dos testimonios e o cuidado com os usos políticos de entrevistas orais; e da História Pública, que no cenário historiográfico brasileiro dos últimos anos vem sendo tema de inúmeros eventos e publicações.
O papel das “novas mídias”, sobretudo no formato audiovisual – blogs, redes sociais, Youtube ‐ na conjuntura historiográfica atual, aparece pontuado em diversos artigos do livro. Entretanto, dois deles – de autoria de Mônica Rebecca Ferrari Nunes e Ana Maria Mauad ‐ se propõem a discutir com maior detalhamento os limites e possibilidades que se fecham e se abrem tanto em relação a função de mediadoras que estas estabelecem entre a memória e os pesquisadores, quanto no que tange à utilização destas na própria produção da narrativa histórica – tema candente que possibilita aos historiadores lançar novos olhares sobre estes “suportes da memória” e também difundir o conhecimento histórico por meio de diferentes formatos. Vale lembrar ainda que a disseminação da tecnologia audiovisual aparece nesse contexto como fator essencial para entender esse novo horizonte de possibilidades, num cenário muito parecido com aquele que se refere ao momento inicial da História oral e a popularização do gravador de voz portátil: novos suportes fomentam novas discussões.
O segundo tema aqui relevante se refere à noção de testimonio, tema de discussão da historiadora Daphne Patai e termo que remete aos depoimentos cedidos por pessoas consideradas à margem de determinada sociedade e que tenham vivenciado experiências traumáticas de sofrimento. Apesar de seu formato originalmente de “entrevista oral”, os testimonios são divulgados em forma impressa por iniciativa de algum intelectual, normalmente engajado politicamente mais “à esquerda” (de acordo com Patai). Tais depoimentos trazem consigo traços marcantes da ação política. Nesse sentido, Daphne alerta para seus usos por parte dos historiadores e, principalmente, para a transformação destes no próprio discurso histórico, sem que estes tenham passado pela mediação de um historiador, ou problematizados levando‐se em conta seu contexto de produção e difusão. Este tema está intimamente relacionado ao crescimento do espaço que a “testemunha” ganhou nos trabalhos historiográficos e na própria sociedade, a ponto da historiadora Annette Wieviorka caracterizar a segunda metade do século passado como a “era da testemunha”. Como exemplos desse fenômeno aparecem, com destaque, os sobreviventes do holocausto, em contexto europeu, e na América do Sul, as vítimas das ditaduras militares vigentes no século XX. Portanto, a partir do que expõe Patai, pode‐se ponderar acerca do próprio ofício historiador e o imperativo de observar estas falas “à distância”.
A história pública, por sua vez, pode ser considerada um “velho tema novo” que ganha espaço na cena historiográfica brasileira dos últimos anos, mas que, na verdade, já podia ser visualizado em iniciativas que aludem ao próprio momento em que a História oral aqui dava os seus primeiros passos. Ricardo Santhiago dedica um capítulo inteiro à tentativa de traçar em linhas gerais um pouco da trajetória deste campo, buscando pontuar iniciativas de recolhimento de entrevistas orais que escapavam ao circuito universitário, considerado, por excelência, o espaço onde a História oral floresceu no Brasil. Dentre estas iniciativas se destacam o Museu da Imagem e do Som, com várias unidades ao longo do país e que já no início dos anos 1970 se dedicava a constituir um acervo com entrevistas visando à consulta de pesquisadores futuros; e o Museu da Pessoa, fundado no início de 1990 e voltado a coleta de histórias de vida de pessoas dos mais variados segmentos sociais. No atual contexto, onde estas iniciativas são cada vez mais recorrentes, percebe‐se que a discussão sobre o crescimento dos debates acerca da história pública estão interligados a temas como a divulgação do conhecimento histórico produzido academicamente, a história popular e aos usos do passado – debates já, de certa forma, estabelecidos, mas ainda muito pertinentes.
Como nota‐se, o campo da História oral ainda dedica muito espaço ao debate acerca da sua natureza e de seus métodos. O livro (Re) Introduzindo a História Oral no Brasil, da década de 1990, aqui colocado como objeto de comparação, e Depois da utopia, mostram que o caminho percorrido por este campo conservou muitos pontos de debate, mas, naturalmente, ao incorporar novas temáticas, sentiu a necessidade de também problematizar os limites e possibilidades ligados à estes novos métodos e objetos, sendo as “novas mídias”, os testimonios e a história pública apenas alguns deles. Enfim, a auto‐reflexão parece ser característica intrínseca ao campo, que apesar de plenamente estabelecido ‐ dado o números de trabalhos historiográficos que lançam mão das fontes orais atualmente ‐ permanece se “reinventando”.
Referências
MEIHY, José Carlos Sebe Bom (Org.). (Re) Introduzindo a História Oral no Brasil. São Paulo: USP, 1996.
SANHIAGO, Ricardo; BARBOSA, Valéria (Org.) Depois da utopia: A história oral em seu tempo. Letra e Voz: São Paulo: Letra e Voz, 2013.
Karla Simone Willemann Schütz – Mestranda do Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Brasil. E-mail: karlawschutz@gmail.com.
Mídia, Religiões e Religiosidades / Revista Brasileira de História das Religiões / 2014
A vigésima edição da Revista Brasileira de História das Religiões conta com um Dossiê sobre Mídia, Religiões e Religiosidades.
Ao pensarmos nas formas de difusão de informações, visões de mundo, representações e ideias religiosas nos séculos XX e XXI, torna-se necessário lidar como outros tipos de suporte, tais como rádio, televisão, computador, cinema e ciberespaço. Torna-se, portanto, um desafio ao historiador refletir sobre os meios de expressão, adotados pelas religiões e religiosidades, intencionalmente ou não, para transmitir uma mensagem, seja por um canal específico ou por meios de comunicação de massa.
O dossiê Mídia, Religiões e Religiosidades, organizado por Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho, conta com seis contribuições. São elas: “Mediatización televisiva de los rituales religiosos: Las Mañanitas a la Virgen de Guadalupe” de Margarita Zires – que trata sobre o uso dos meios de comunicação e processos rituais no México; “Apocalipsis maya: una creencia posmoderna en la era de la información” de Renée de la Torre e Lizette Campechano – que analisam a importância das indústrias culturais e dos meios de comunicação e seu papel ante as profecias de fim dos tempos de 2012; “A representação do Ritual Romano de Exorcismos no filme O Exorcista (1973)” de Solange Ramos de Andrade e Michel Bossone – dedicados a compreender os meandros entre crenças e cinema com um etudo de caso; “Educação e produção de subjetividades da intolerância: As novas fronteiras da intolerância com a Umbanda” de Sidney Nilton de Oliveira – dedicado a analisar como grupos conservadores e fundamentalistas, em especial os neopentecostais, lidam com a umbanda; “Complexidades da religiosidade afro-brasileira no “terreiro” do ciberespaço” de Cristiana Tramonte – que se volta à análise de outras formas de organização e crença de grupos de religiosidade afro-brasileira; e “Ciberespaços para a crítica: Difusão e imagens da Igreja Universal pelo ciberespaço latino-americano” de Marcelo Tadvald – que analisa aprsença da IURD no espaço virtual.
Agradecemos a colaboração de Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho na organização do dossiê!
Em diálogo com a temática das Mídias, temos ainda duas comunicações: “Feições político-midiáticas da concorrência cristã brasileira” de André Ricardo de Souza, Giulliano Placeres e Vinicius Manduca e “Tradição oral e novas tecnologias no candomblé da metrópole” de Ivete Miranda Previtalli.
Na Seção “Artigos Livres”, que conta com 6 artigos, temos as contribuições de Eliane Cristina Deckmann Fleck e Mauro Dillmann, Fabio Augusto Scarpim, Beatriz Teixeira Weber e Renan Santos Mattos, Ronaldo de Oliveira Rodrigues, Andreia Martins e Gizele Zanotto.
Por fim, concluímos com as resenhas de Anna Maria Salustiano e Emerson Sena da Silveira, respectivamente sobre as obras Religiões e Religiosidades no (do) Ciberespaço e Religião e Juventude: os novos carismáticos.
Boa leitura!
Vanda Serafim
Gizele Zanotto
SERAFIM, Vanda; ZANOTTO, Gizele. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.7, n.20, set.., 2014. Acessar publicação original [DR]
Amérique Latine – Political Outlook – OPALC (RTA)
Amérique Latine – Political Outlook (Observatoire politique de l’Amerique latine et des Caraïbes). Paris: Les Études du CERI, n. 198‐199, décembre 2013. Resenha de: SILVA, Daniel Afonso da. Visões Boreais. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.13, p. 246 ‐ 252, set./dez. 2014.
Acaba de sair o mais recente Political Outlook sobre a América Latina, do Observatoire politique de l’Amerique latine et des Caraïbes do Centre d’études et de recherchers internationales (CERI), da Sciences Po de Paris. Muito bem informado e formidavelmente apresentado, o relatório procura pôr em evidência os pontos fortes das mais variadas dimensões da vida política e social dos países latino‐americanos durante o ano de 2013. Orientado, coordenado e organizado pelo professor Olivier Dabène, esse Political Outlook vem se impondo como leitura obrigatória aos interessados em América Latina.
Onze textos, distribuídos em três seções, somados a uma esclarecedora introdução, compõem o Outlook. Seu ponto de partida, de não pouca importância, contempla o desaparecimento de Albert Hirschman (1915‐2012), com uma ode ao que foi um dos mais importantes latino‐americanistas de todos os tempos. Na sequência, são apresentados diversos temas e reflexões muitíssimo estimulantes: a presença chinesa na região; a visita do presidente Xi Jinping a Trinidad e Tobago, Costa Rica e México e seu crescente interesse pelo setor petroleiro local; o impacto da morte de Hugo Chaves (1954‐2013) sobre o imaginário venezuelano; o balanço do primeiro ano de Enrique Peña Nieto e o regresso do Partido Revolucionário Institucional à frente do México; a “justiça transicional” na Colômbia; a designação do argentino Jorge Bergoglio à condição de Sua Santidade o Papa; a situação da Guatemala após o julgamento do ditador Efraín Ríos Montt, acusado de assassinar mais de 200 mil pessoas entre 1960 e 1996, junto com o questionamento da possibilidade de alguma reconciliação; a situação, na Colômbia, das FARC, que sugeria avançar sobre o caminho de negociação de paz; a celebração dos 40 anos do 11 de setembro de 1973 no Chile, que depôs do poder e da vida Salvador Allende (1908‐1973); dos 40 anos do golpe de estado no Uruguai – pouco lembrado na região, mas que continua vivo na memória dos uruguaios –; dos 30 anos da iniciativa Contadora para a América Central, que auxiliou na superação do espírito de “década perdida” na região e dos dez anos de governos petistas na presidência do Brasil.
Muitas impressões podem ser registradas, ora para ressaltar momentos inegavelmente ricos ‐ como a feliz lembrança do marcante desaparecimento de Albert Hirschman e de Hugo Chaves ‐, ora para mencionar momentos não tão ricos, com certo menosprezo que recobre praticamente todos os textos, pelo contexto mais global da organização internacional ao longo de 2013, ano que registrou fortes movimentos de superação definitiva da crise financeira de 2008 nos países centrais, avanços e retrocessos nos conflitos do mundo árabe, a aproximação entre americanos e russos na gestão do caso sírio, o acordo prévio com o Irã, entre outros. Toda a América Latina tem a ver, de alguma maneira, com esses movimentos.
Excluída qualquer avaliação, a impressão mais diretamente justa e honesta deve estar no sentido de saudar e reconhecer o imenso esforço de criação e formação de expertise – muito competente, por sinal – sobre essa parte do continente americano. Impressionam a capacidade de síntese e a profundidade de algumas avaliações. Uma delas, demonstrada no estudo de Frédéric Louault sobre o Brasil.
Louault avalia o ano brasileiro de 2013 pelo prisma dos dez anos de PT no poder. Reconhece a densidade do projeto de governo que permite à presidente Dilma Rousseff ter 79% de aprovação popular e seu governo, 63% de opinião positiva. Da mesma forma, põe em questão as qualidades que os protestos de junho de 2013 impõem. Ressalta que milhões de pessoas nas ruas, reivindicando o saneamento da classe política, poderia expressar a vitalidade da democracia. Tendo em conta a sombra do passado ditatorial brasileiro, as vozes das ruas precisariam ser saudadas. Acentua que essa demonstração de insatisfação representaria a fragilidade da democracia brasileira e dos governos petistas que, ao não avançar sobre reformas para a melhoria da vida, especialmente dos segmentos médios, frustram os anseios gerais.
Argumenta que a estabilidade dos indicadores macroeconômicos e sociais (sujeito), apresentados ao longo dos governos do presidente Lula (2003‐2010) e da presidente Dilma (2011‐2014), vai invertendo os sinais.
O entusiasmo dos tempos do presidente Lula dá lugar a inquietações. Daí questionar:
“S’agit‐il d’un simple ralentissement conjoncturel ou bien est‐ce la fin d’un cycle économique, l’épuisement d’une ‘formule’ de développement qui s’est appuyée durant dix ans sur un environnement international favorable aux économies exportatrices d’Amérique Latine (en raison notamment des cours élèves des matières premières)?” (p. 55). (TRADUÇÃO EM NOTA DE RODAPÉ).1
Uma excelente questão, para um excelente problema.
Louault demonstra ser um pouco de cada. Mostra a importância da estratégia do presidente Lula da Silva na diversificação de parceiros comerciais e no estímulo às relações ditas Sul‐Sul. Acentua a importância da China, que em 2009 superou os Estados Unidos como parceiro de exportação‐importação. Mas analisa, neste sentido, o caráter desequilibrado da relação, uma vez que: 85% das exportações brasileiras para a China se compõem de matérias primas (45,5% de minerais, 24,7% de soja e 11% de petróleo). Já as importações chinesas ‐ 97% ‐ são de produtos manufaturados. Depois de 2010, os ventos econômicos foram mudando. Mas ganhos sociais permaneceram. As políticas de distribuição de renda, alocadas no programa Bolsa Família, beneficiaram mais de 10 milhões de famílias de baixa, baixíssima ou nenhuma renda. Isso permitiu não apenas a melhoria dos meios de subsistência, mas também favoreceu a escolarização e vacinação, seguida de acompanhamento médico, de mais de 14 milhões de crianças. Com isso, a real diminuição da desigualdade social referendada pelo coeficiente de Gini passou de 0,59 em 2003 para 0,49 em 2012. Tudo isso, interpreta Louault, explica o sucesso eleitoral do PT. Mesmo que a contemporização com os demais segmentos políticos – “Lula sans cesse a cherché à éviter toute confrontation avec les elites politiques traditionnelles” (p. 61) – tenha sido permanente, o “mensalão” deixa marca profunda na trajetória do partido, sobretudo pela prisão dos principais acusados, entre eles José Dirceu e José Genuíno, líderes históricos do PT.
Não resta dúvida que Frédéric Louault – como, de resto, Olivier Dabène, Gaspard Estrada, Damien Larrouqué, Nordin Lazreg, Delphine Lecombe, Antoine Maillet, Frédéric Massé, Kevin Parthenay, Eduardo Rios, Darío Rodrígues e Constantino Urcuyo‐Fournier, demais colaboradores do Political Outlook 2013 – continua muito bem postado nas discussões gerais de seu objeto de análise. Entretanto, algumas impressões, para além das evidências estampadas nos dados oficiais que sustentam o artigo, podem auxiliar na melhor qualificação e sofisticação da abordagem.
O sucesso eleitoral do presidente Lula e do PT nesses anos vem ganhando uma classificação inapelável: lulismo. Criação do cientista político André Singer, porta‐voz da Presidência da República de 2003 a 2006, a classificação indica elementos tangíveis para se compreender a reeleição do presidente Lula da Silva em 2006. Tem razão Louault ao sugerir que camadas sociais, especialmente localizadas nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil, beneficiadas pelos programas de distribuição de renda a partir de 2003, votaram massivamente nele em 2006. Entretanto, vale lembrar que menos de um ano antes da eleição de 2006, o presidente Lula e o PT estavam praticamente em vias de desaparecimento político em função das denúncias do deputado Roberto Jefferson que revelaram o “escândalo do mensalão”. A imprensa e os segmentos políticos de oposição, ato contínuo e sem pudor, envolviam o presidente e seu partido no escândalo. Muitos diziam que era o fim da linha, sobretudo por ser o PT o partido que mais reivindicara, em tempos recentes, os atributos da ética e da não‐corrupção na política. Em meio ao alvoroço, peças centrais do governo – como o ministro fazenda, Antonio Pallocci, e o ministro‐chefe da Casa Civil, José Dirceu – tiveram de deixar os cargos. O presidente Lula e toda equipe político‐partidária ficaram amplamente fragilizados. Muitos simpatizantes históricos deixaram o partido. Os fundadores do PSOL, dissidentes avessos à postura majoritária do PT que conduzira a vitória de Lula da Silva nas eleições de 2002, festejavam. Exaltados da oposição, como o senador Jorge Bornhausen, diziam, alto e bom som, o que diversos outros pensavam, mas não diziam, que era o momento de se livrar dessa “raça”. Outros pediam o imediato impeachment do presidente. Enfim, só a pessoa do presidente Lula pode dimensionar com precisão a intensidade da pressão. E tudo isso ocorria no segundo semestre de 2005. As eleições de 2006 já estavam sendo programadas. A participação do presidente Lula era, para muitos, incerta. Sua vitória, improvável. A compreensão da reversão dessas tenebrosas expectativas ganha muito com o arranjo de André Singer sobre o lulismo, entendido como a base de sustentação eleitoral do PT. Louault acentua o fato da ampliação do número de eleitores de Lula em 2006, mas não avança sobre algumas constatações fundamentais. Desde 1980, a bandeira do PT era de diminuir as desigualdades sociais e melhorar as condições de vida dos menos favorecidos. No entanto, nas quatro primeiras apresentações de Lula ao sufrágio universal (1989, 1994, 1998 e 2002), esses desfavorecidos jamais lhe conferiram o voto. Isso ocorreu porque, enquanto a imprensa e a oposição massacravam o presidente Lula e o PT no âmbito do escândalo do mensalão, o governo ia ampliando os programas sociais. Essa ampliação e manutenção da melhoria da vida de milhões de pessoas, somada ao caráter pedagógico de identificar o presidente Lula como responsável direto, proporcionou uma evidente alteração à sua base eleitoral e à do PT.
Reeleito, Lula foi reconduzido ao poder em janeiro de 2007. Em poucos meses, aparecem os sinais de alerta mundiais sobre a possibilidade de uma crise econômica nos países centrais. Esse assunto – suposto, mas não frontalmente abordado por Louault – vai se mostrando essencial para a compreensão do Brasil atual. O segundo mandato do presidente Lula foi o momento de gestão da crise financeira.
Dotado de inegável tino político, o presidente Lula percebeu que era imperativo administrar as emoções de sua nova base eleitoral, que corria o risco de perder seus benefícios em função do tsunami das finanças que atingia o Brasil. Passou, de início, a responsabilizar os países ricos, afirmando que os países pobres não deveriam ser responsabilizados pela insanidade dos “brancos de olhos azuis”. Na sequência, aumentou políticas de crédito bancário e incentivou os brasileiros dos segmentos médios a consumir. Essas duas medidas, somadas a um sem‐fim de estratégias econômicas anticíclicas, permitiram a efetivação da percepção de suave “marolinha” econômica no Brasil, enquanto o resto do mundo vivia o inferno. Mas essa sagacidade do presidente e de sua inquestionável retórica presidencial, somadas a muitas doses de sorte e esperteza não foram transferidas a Dilma Rousseff, como os votos de credibilidade do povo brasileiro em 2010. Isso ajuda a explicar vários dos episódios de insatisfação vividos no Brasil desde junho de 2013.
Daniel Afonso da Silva – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba e chercheur invité do CERI‐Sciences Po de Paris. Brasil daniel.afonso66@hotmail.com.
Secretaria de Educação Básica. Caderno de Educação Especial – A alfabetização de crianças com deficiência: uma proposta inclusiva – BRASIL (REE)
BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Caderno de Educação Especial – A alfabetização de crianças com deficiência: uma proposta inclusiva. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Brasília, 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Marli dos Santos de; BEZERRA, Giovani Ferreira. (Pro)posições do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa para a Educação Especial: uma proposta inclusiva? Revista Educação Especial, v.27, n.50, Santa Maria, p. 777-780, set./dez., 2014.
O caderno de educação especial A alfabetização de crianças com deficiência: uma proposta inclusiva constitui-se como um dos vários materiais criados pelo Ministério da Educação para auxiliar os docentes em relação às novas exigências do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Tal pacto se apresenta como um compromisso formal assumido pelo governo federal, estados e municípios, a fim de assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos de idade, ao final do 3º ano do ensino fundamental.
Organizado em seis capítulos, o caderno busca discutir sobre a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, sob a ótica de diversos autores/as: Tícia Cassiany Ferro Cavalcante, Ana Gabriela de Souza Leal, Wilma Pastor de Andrade Sousa, Carlos Antonio Fontenele Mourão e Rafaella Asfora. As orientações propostas neste caderno buscam ampliar e potencializar as possibilidades de ensino e orientar a utilização de jogos e brincadeiras em contextos inclusivos de alfabetização. Entretanto, o material se restringe somente à alfabetização de crianças com deficiência de ordem motora, cognitiva e sensorial (visual ou auditiva), não abordando casos de altas habilidades, nem os transtornos globais do desenvolvimento.
O capítulo I, intitulado A pessoa com deficiência motora frente ao processo de alfabetização, apresenta uma breve caracterização do que é a deficiência motora, focalizando as discussões nos alunos com paralisia cerebral. Argumenta-se que esta se coloca como uma das principais causas de deficiência motora presente nas escolas.
Em seguida, descreve que a falta de recursos de acessibilidade e de comunicação das pessoas com deficiência nem sempre está relacionada estritamente à questão financeira, uma vez que o professor pode utilizar sua criatividade para construí-los e/ou realizá-los. Enfatiza, ainda, que a Comunicação Alternativa e Suplementar (CAS) possibilita a erradicação das barreiras de comunicação presentes na escola, ocorrendo de forma eficaz à medida que o professor cria laços com o aluno, conhecendo-o em suas especificidades.
O capítulo II, Pensando a alfabetização da pessoa com deficiência intelectual, discute alguns aspectos históricos da deficiência intelectual, demonstrando que a escola não está adequada para atender as diferenças de crianças sem qualquer deficiência e, sobretudo, para atender (sem segregar) as necessidades das crianças com deficiência.
Em seguida, destaca que a deficiência intelectual não pode ser encarada como uma condição estática, e nem apenas sob a ótica dos impedimentos que a pessoa nessa condição pode ter. Descreve que o trabalho docente, juntamente com o apoio da família, deve estar direcionado para a perspectiva de que a criança aprende em sua interação com o mundo, mediante as oportunidades a ela destinadas, no decorrer de sua trajetória de vida, sendo capaz de se comunicar, se alfabetizar, enfim, de aprender.
Seguindo com as discussões, o capítulo III, Estratégias de ensino na alfabetização da pessoa cega e com baixa visão, inicia discutindo que, durante a história das pessoas com deficiência, no Brasil, a cegueira foi sempre caracterizada pelo impedimento e incapacidade do sujeito. Em seguida, apresenta uma caracterização da deficiência visual, demonstrando que a visão não é a única forma para a locomoção e interação com o mundo, e que as pessoas com deficiência são iguais às demais em relação a suas capacidades produtivas e relacionais, podendo desenvolver ações em várias esferas da sociedade, desde que lhe sejam ofertadas as condições necessárias. Desse ângulo, não basta somente a escola apresentar a escrita braille à criança com deficiência visual, pois esta, sozinha, não garantirá a sua alfabetização, sendo necessário que o professor utilize vários instrumentos que desenvolvam e explorem os demais sentidos.
No capítulo IV, A alfabetização da pessoa surda: desafios e possibilidades, discute- se que a alfabetização da pessoa surda em Língua Portuguesa é encarada como um dos grandes desafios de escolarização desses sujeitos. Ressalta-se que a perda total ou parcial da audição não significa incapacidade cognitiva, sendo que as condições e situações ofertadas à pessoa com surdez influenciam em seu desenvolvimento, bem como em suas relações escolares e sociais. Nesse sentido, para que ocorra a alfabetização da pessoa com deficiência auditiva, é necessário que ela visualize seu professor, intérprete e/ou professor intérprete, estabelecendo uma relação de confiança, sendo-lhe um direito a comunicação e o esclarecimento de todas suas dúvidas. Logo, é necessário que os professores dominem a Língua Portuguesa, bem como a Língua Brasileira de Sinais, para que, primeiramente, a partir desta última, se consiga alfabetizar a pessoa com deficiência auditiva, proporcionando-lhe a comunicação e o aprendizado.
O capítulo V, O Atendimento Educacional Especializado nas Salas de Recursos Multifuncionais, inicia situando o leitor historicamente acerca das muitas conquistas em relação aos direitos das pessoas com deficiência, sendo que o direito à educação e a aprendizagem devem ocorrer em um sistema educacional inclusivo, que disponha de recursos e serviços especializados para que a pessoa com deficiência se desenvolva com igualdade de acesso e permanência às escolas comuns.
Nessa direção, o Atendimento Educacional Especializado (AEE), que acontece em salas de recursos multifuncionais, no contraturno, coloca-se também como um importante direito conquistado a partir da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva de uma Educação Inclusiva, oficializada em 2008. Na sequência, o capítulo apresenta algumas definições sobre o público-alvo do AEE, sobre os materiais disponibilizados nas salas de recursos multifuncionais de tipo I e II, salientando que cabe ao profissional do AEE trabalhar de modo articulado com o professor da escola regular.
Finaliza-se o capítulo com diversas sugestões acerca do trabalho que o profissional especialista deve realizar com os alunos com cegueira, baixa visão, surdez, deficiência física e deficiência intelectual.
Encerrando as discussões do Caderno de Educação Especial, o capítulo VI, Compartilhando, é subdividido em três tópicos e não trata especificamente sobre uma deficiência em particular. Nesta ordem, aborda-se uma sequência didática acerca de um projeto desenvolvido por uma professora com alunos surdos do 1º e 2º anos do ensino fundamental; apresentam-se relatos de experiências de uma professora sobre a inclusão de um aluno com paralisia cerebral, bem como relatos de outra professora sobre a inclusão de uma aluna com Síndrome de Down em uma turma de 1º ano do ensino fundamental; e, por fim, aborda-se o uso de jogos para a alfabetização numa perspectiva inclusiva. Ao término do livro, aparecem, ainda, algumas sugestões de leituras para que o leitor/professor possa refletir mais sobre a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva.
Percebe-se, todavia, com a leitura do Caderno de Educação Especial, que esse material disponibilizado aos professores alfabetizadores apresenta algumas lacunas.
Primeiramente, no que diz respeito à brevidade das abordagens que compõem o material, visto que as orientações feitas aos professores ocorrem minimamente sobre algumas especificidades dos alunos com deficiência, não havendo nenhum outro material no contexto do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa que contemple a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Além disso, não se discorre sobre as possibilidades de alfabetização dos alunos com altas habilidades e com transtornos globais do desenvolvimento.
Nesse sentido, ao se considerar o objetivo de se alfabetizar todas as crianças, é necessário subsidiar os docentes tanto no que se refere aos materiais diversificados, quanto, sobretudo, em sua formação. De forma análoga, outra questão que merece atenção diz respeito à responsabilidade demasiadamente atribuída ao professor. O Caderno de Educação Especial, em sua totalidade, dirige-se aos professores como sendo os únicos responsáveis por criar materiais e recursos diversos para contribuir no processo de alfabetização das crianças com necessidades educacionais especiais, desconsiderando-se que este trabalho deve ser realizado de modo conjunto, pela instituição escolar e por demais profissionais que apoiem o trabalho pedagógico especializado.
Como apreciação final, pode-se dizer que pensar a alfabetização de todas as crianças da rede regular de ensino exige, de início, uma compreensão de totalidade por parte dos elaboradores desses materiais de formação docente, bem como das políticas educacionais, sobretudo no que tange à Educação Especial na perspectiva de Educação Inclusiva. Afinal, este “Pacto de Alfabetização” deve ser firmado com todas as crianças brasileiras, respeitando-as em suas diferenças e necessidades.
Marli dos Santos de Oliveira – Acadêmica do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPNV), Naviraí, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: marli.oliveiras@hotmail.com – gfbezerra@gmail.com
Giovani Ferreira Bezerra – Professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS/CPNV), Naviraí, Mato Grosso do Sul, Brasil.
Representações e identidades / Monções / 2014
Saudações a todos os leitores.
Este é o primeiro número da MONÇÕES: revista do curso de História da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – campus de Coxim. A universidade brasileira em tempos recentes vive um processo de franca expansão e interiorização. Este é o resultado dos ventos democráticos que sopram na sociedade brasileira atual. A expansão da UFMS proporcionou o acesso a Universidade Pública ao povo coxinense e de sua região formada por cidades como Pedro Gomes, Rio Verde e Sonora. A Revista Acadêmica de História Monções representa um novo momento do curso de História da UFMS – campus de Coxim. Momento em que o curso de História recomeça um ciclo de produções acadêmicas que o projetará nacionalmente.
O nome da revista faz referência às Monções ou às expedições fluviais, também chamadas de Bandeirantismo Fluvial. Os monçõeiros encontravam em Coxim um importante ponto de parada e reabastecimento para a continuidade da viagem até as margens do rio Cuiabá. A História das monções é caríssima ao Mato Grosso do Sul, pois significa, sobretudo, um elo cultural e histórico entre a região sudeste e Centro Oeste do Brasil. Certamente, não existe nome mais apropriado para uma revista do curso de História da UFMS – campus de Coxim. Este fato confere legitimidade ao nome MONÇÕES que foi escolhido de forma unânime pelo corpo docente da UFMS/CPCX. A Revista Acadêmica de História Monções/História-UFMS segue na esteira do recente “boom” das revistas eletrônicas acadêmicas indexadas e submetidas ao sistema Qualis Capes. Uma política que confere economicidade, agilidade, otimização e ampliação das produções acadêmicas.
O campus da cidade de Coxim sempre priorizou, em seu projeto pedagógico acadêmico, os estudos do Movimento Monçõeiro. Esses estudos possuem como objeto as estórias da comunidade local que se relacionam com essa cultura ribeirinha, assim como os resquícios das monções paulistas. O curso de História também conta com a existência de importante projeto financiado pelo PROEXT intitulado: “monções, patrimônio cultural sul-mato-grossense”. É preciso destacar também a vinculação da Revista Acadêmica de História Monções ao Memorial e Centro de Documentação Regional denominado “Memorial das Monções Henrique Spengler” que recebe turistas, acadêmicos e a comunidade local.
A Revista Acadêmica de História Monções da UFMS/CPCX é uma contribuição para a circulação do trabalho intelectual que precisa sempre de espaços abertos e este é um deles. A profusão do conhecimento através do estabelecimento de veículos editoriais fomenta a pluralidade democrática, afasta as trevas da ignorância (que macula o avanço social) e permite o debate, necessário à consolidação da cultura democrática.
Samuel de Jesus – Professor Doutor. Editor Responsável
JESUS, Samuel de. Apresentação. Monções. Coxim, v.1, n.1, set., 2014. Acessar publicação original [DR]
Nunca antes na diplomacia…A política externa brasileira em tempos não convencionais | Paulo Roberto de Almeida
Nunca antes um governo mereceu tanto destaque nem foram empreendidos tantos estudos acerca do seu plano de atuação e suas medidas de política externa quanto o governo do Partido dos Trabalhadores no poder central do Brasil. Tal governo, iniciado em 2003 com a posse de Luís Inácio Lula da Silva e que teve plano de continuidade com a eleição de Dilma Rousseff, em 2010, representou e representa uma ruptura diplomática com a linearidade de atuação do Itamaraty. O livro “Nunca antes na diplomacia … A política externa brasileira em tempos não convencionais”, do diplomata e acadêmico Paulo Roberto de Almeida, procura analisar essa transição. Como uma coletâneas de artigos, o livro traça o plano da diplomacia brasileira dando destaque de forma crítica à atuação do governo petista e à chamada era do “Nunca antes”.
Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), a diplomacia brasileira tem passado por mudanças. De fato, a partir de FHC o Brasil inaugura, mais fortemente, a chamada diplomacia presidencial que apresenta ininterrupção com Lula. A figura do presidente, nestes períodos, ganhou destaque e projeção no cenário internacional, mas foi o governo de Luís Inácio que administrou de forma grandiloqüente essa imagem presidencial. Leia Mais
Intelectuais e circulação de ideias na América Latina / Varia História / 2014
O presente dossiê de Varia Historia é dedicado à História Intelectual Latino-Americana, com ênfase na história dos impressos, das ideias e de sua circulação.
A História Intelectual é um campo de estudos que vem crescendo nas universidades e instituições de pesquisa latino-americanas, particularmente a partir dos anos 1980 e 1990, juntamente com os processos de redemocratização em vários países do continente e a necessidade de se repensar o papel dos intelectuais na vida política e social de cada um dos países e na América Latina como um todo.
O importante ensaísta e crítico literário uruguaio Ángel Rama já havia, em seu famoso livro La ciudad letrada, de 1984, indicado alguns caminhos que seriam percorridos pela história intelectual latino-americana nas décadas seguintes, particularmente sobre as vinculações entre os intelectuais e os núcleos urbanos de poder.[1]
Conforme Carlos Altamirano, em sua introdução geral aos dois volumes da Historia de los intelectuales en América Latina, além das ideias, era necessário aprofundar a reflexão sobre a posição dos letrados latino-americanos no “espaço social, suas associações e formas de atividade, instituições e campos da vida intelectual, seus debates e relações entre ‘poder secular’ e ‘poder espiritual'”.[2]
Os estudos na área de História Intelectual, em um sentido amplo, têm como seus objetos de pesquisa e reflexão não apenas a história do pensamento e o debate de ideias e ideologias, mas questões como a constituição de redes e sociabilidades intelectuais; os variados tipos de impressos, sua circulação e articulação com o debate público; as viagens e intercâmbios; as experiências de exílio e deslocamento etc. São estudos que buscam analisar as conexões entre os intelectuais e as diversas instâncias da vida pública, como a política, a diplomacia, os meios de comunicação, as instituições educativas e científicas, as expressões artísticas, associações e movimentos sociais, entre outras.
Na América Latina, as pesquisas nessa área tiveram um incremento muito vigoroso a partir dos anos 1990. A criação do Programa de História Intelectual da Universidad Nacional de Quilmes, na Argentina, em 1994,[3] e a publicação de Prismas – Revista de historia intelectual pela editora da UNQ, desde 1997, são marcos importantes para essa área de estudos. Em vários países latino-americanos – com destaque para Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru e Uruguai – é crescente o número de pesquisadores e trabalhos publicados na área de História Intelectual. Esse aumento teve, como um de seus desdobramentos, a realização do I Congreso de Historia Intelectual de América Latina, em Medellín, Colômbia, em setembro de 2012, e o II Congreso de Historia Intelectual de América Latina, que será realizado em Buenos Aires, em novembro deste ano.
O dossiê que ora apresentamos traz cinco artigos que abordam algumas das temáticas elencadas acima: o debate de ideias e sua circulação entre países e continentes; os periódicos, sua importância e repercussão; as trajetórias e inserção de intelectuais na cena pública.
Abrindo o dossiê, Maria Ligia Coelho Prado analisa os artigos publicados a respeito do México na famosa publicação francesa Revue des Deux Mondes, entre 1840 e 1870. A revista, muito lida pelos intelectuais latino-americanos, expressava, como demonstra a autora, os interesses nacionais e a perspectiva imperial da França. De todos os países latino-americanos abordados pela Revue, o México foi o objeto predileto das reflexões do periódico, no período estudado, em cerca de 30 artigos. Os intelectuais franceses que escreveram na Revue defendiam que seu país deveria ocupar um papel de liderança do “mundo latino”. O México era representado, nesses artigos, como um país “exótico, atrasado, anárquico, vivendo nos tempos de Felipe II”. E, como lembra Prado, durante o governo de Napoleão III, os franceses colocaram em prática esta perspectiva, ao enviar tropas para sustentar a monarquia no México, numa intervenção, afinal, derrotada pelos liberais mexicanos. Sendo assim, o artigo de Ligia Prado traz elementos para uma melhor compreensão de um aspecto pouco salientado da ação francesa na América Latina no século XIX, seu papel imperial, para além do lugar da França – e de Paris, especialmente – como o principal centro intelectual, literário e cultural, para onde convergiam, ou desejavam convergir, os intelectuais latino-americanos.
José Luis Bendicho Beired, em seu artigo Hispanismo e latinismo no debate intelectual ibero-americano, analisa a constituição de vertentes defensoras do hispanismo e do latinismo nos dois lados do Atlântico, entre meados do século XIX e meados do XX. Utilizando-se de revistas e jornais como principais fontes documentais, o autor mostra que, até inícios do século XX, não havia evidente oposição entre essas duas correntes, sendo predominante, inclusive, uma visão de complementaridade. Para intelectuais franceses, assim como para espanhóis, devia-se contrapor, às intervenções norte-americanas sobre a América ao sul do Rio Bravo, a “cultura latina”. E nos países hispano-americanos, principalmente após a intervenção dos Estados Unidos na guerra de independência de Cuba, fortaleceu-se uma afirmação latino-americanista. Após a Primeira Guerra Mundial, entretanto, as distinções entre o latinismo, vinculado às pretensões hegemônicas francesas, e o hispanismo, encabeçado pela Espanha, ficaram mais pronunciadas. O autor faz referências, também, acerca do debate sobre o iberismo, tanto na Espanha como em Portugal. Ao analisar concepções formuladas por intelectuais da península Ibérica e da América Hispânica, além de ações concretas para incrementar os vínculos com os países ibero-americanos, tanto por parte da França como da Espanha, Beired mostra a riqueza dos debates que envolviam, por um lado, filiações e vínculos intelectuais entre hispano-americanos e europeus, e, por outro, afirmações identitárias dos países latino-americanos – que cada vez mais se reconheciam como parte de uma região denominada América Latina –, sem ignorar as alterações que se estabeleceram nos termos do debate em função das significativas mudanças ocorridas na Espanha, a partir da Guerra Civil e da vitória franquista, em outros países europeus e nas Américas, ao longo do período enfocado.
No terceiro artigo do dossiê, Alejandra Mailhe analisa a revista Archivos de psiquiatría, criminología, medicina legal y ciencias afines, dirigida pelo médico e ensaísta argentino de origem italiana José Ingenieros (1877-1925), um dos mais importantes intelectuais latino-americanos de sua geração. A revista Archivos, publicada em Buenos Aires de 1902 a 1913, ocupou um lugar central, como mostra Mailhe, no desenvolvimento da psiquiatria e da criminologia como áreas especializadas do conhecimento, não só na Argentina como em muitos países da América Latina, contribuindo para a formação de uma rede de contatos e de ideias no continente. Entre seus colaboradores, Archivos teve autores latino-americanos e europeus. Entre os primeiros, brasileiros como Evaristo de Moraes, Francisco Franco da Rocha e Raimundo Nina Rodrigues. Conforme esclarece a autora, a revista tinha, como principal objetivo, o “estudo científico dos homens anormais”, especialmente criminosos e dementes, com ênfase em concepções positivistas de começos do século XX, mas com aberturas para outros enfoques. Para o leitor brasileiro, é de especial interesse a abordagem de Mailhe sobre as contribuições de Nina Rodrigues a Archivos e as divergências entre o autor brasileiro e José Ingenieros. O artigo de Mailhe procura mostrar, também, como a revista contribuiu para um processo, ainda que “muito moderado”, de “latino-americanização” dos intelectuais argentinos.
Regina Crespo, no artigo seguinte, intitulado O México de Rodrigo Otávio e de Cyro dos Anjos: entre as atribuições do funcionário e o olhar do escritor, analisa os olhares dos dois intelectuais brasileiros sobre o México, a partir de suas experiências no país setentrional em atividades diplomáticas. Depois de breves considerações sobre autores brasileiros que escreveram sobre o México – como Ronald de Carvalho, Erico Verissimo e Vianna Moog –, Crespo dedica-se à análise dos textos que, sobre o México, escreveram dois outros escritores brasileiros: o jurista Rodrigo Otávio e o escritor e funcionário público Cyro dos Anjos. Otávio esteve no México algumas vezes, entre 1923 e 1926, nas quais atuou em missões diplomáticas. Cyro, por sua vez, viveu na Cidade do México três décadas depois, de 1953 a 1954, atuando como professor da cátedra de Estudos Brasileiros na Universidad Nacional Autónoma de México e, a serviço da Embaixada brasileira, dando palestras sobre o Brasil em várias cidades mexicanas. No caso de Rodrigo Otávio, a principal fonte de Crespo foi seu livro México e Peru, publicado em 1940, além de jornais mexicanos da década de 1920 e da correspondência diplomática. Para analisar a visão de Cyro dos Anjos sobre o país hispano-indígena, a autora também se utilizou, principalmente, da correspondência diplomática, além das cartas entre o romancista de Montes Claros e o conterrâneo mineiro Carlos Drummond de Andrade.
Carlos Cortez Minchillo, no artigo que fecha o dossiê – intitulado A América Latina de Erico Verissimo: vizinhança, fraternidade, fraturas –, aborda a presença da América Latina na obra e trajetória do escritor gaúcho Erico Verissimo, com ênfase no seu relato de viagem México, publicado em 1957, e no romance O senhor embaixador, de 1965. Como sustenta o autor, Verissimo pensou a América Latina tendo os Estados Unidos como contraponto, tanto em razão do contexto da Guerra Fria como da polarização do debate político nos países latino-americanos, particularmente após a vitória, em 1959, da Revolução Cubana. A contraposição entre a América Latina e os Estados Unidos deu-se, também, face à própria vivência pessoal e profissional de Erico nos Estados Unidos, como palestrante e professor visitante em universidades norte-americanas, em 1941 e 1943-1945, e como diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, de 1953 a 1956 – períodos em que Verissimo ampliou sua sociabilidade intelectual não só com norte-americanos como também com vários hispano-americanos. Se nos anos 1940, no contexto da Segunda Guerra, Erico assumiu a defesa do pan-americanismo, na década seguinte, em plena Guerra Fria, o escritor brasileiro tornou-se cada vez mais crítico da política interna e, principalmente, da política externa dos Estados Unidos, e mais sensível às sociedades latino-americanas, suas culturas, histórias e problemas sociais. Carlos Minchillo mostra, entretanto, as ambiguidades das representações do “povo” latino-americano nessas duas obras de Erico. O artigo busca avaliar, ainda, a recepção das obras de Verissimo entre os anos de 1950 e 1970, assim como as possíveis implicações das posições políticas do autor, um social-democrata crítico tanto dos regimes ditatoriais de direita como dos regimes totalitários do Leste Europeu, naqueles anos polarizados e de intensos debates em torno do compromisso político dos escritores e intelectuais.
Esperamos que este dossiê de Varia Historia contribua com o crescimento do interesse pela História Intelectual Latino-Americana e para incrementar as pesquisas, o intercâmbio e a circulação de ideias entre pesquisadores brasileiros e hispano-americanos.
Notas
1. RAMA, Ángel. La ciudad letrada. Hanover, New Jersey: Ediciones del Norte, 1984. [ Links ] A primeira edição brasileira foi publicada no ano seguinte: A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. Vale lembrar que Rama teve fortes vínculos com a cultura e a literatura brasileiras, tendo ministrado aulas na Universidade de São Paulo, em 1974, em disciplina sob a responsabilidade de Antonio Candido, e retornado ao Brasil em 1980 e 1983, apenas dois meses antes do acidente aéreo que o vitimou. Cf. AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra G. T. (orgs.). Ángel Rama: literatura e cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001, p. 30-35. [ Links ] 2. ALTAMIRANO, Carlos (dir.). Historia de los intelectuales en América Latina. Buenos Aires: Katz, 2008, p. 11. [ Links ] 3. O Programa de História Intelectual esteve sob a direção de Oscar Terán até 2005, Carlos Altamirano até 2009 e, desde então, Adrián Gorelik. Em 2011, foi criado o Centro de História Intelectual da UNQ. Cf. http: / / www.unq.edu.ar / secciones / 243-centro-de-historia-intelectual-chi / . Acesso em: 15 set. 2014.
Kátia Gerab Baggio – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais.
BAGGIO, Kátia Gerab. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.30, n.54, set. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]
The Fourth Revolution: The Global Race to Reinvent the State | John Micklethwait e Adrian Wooldridge
John Micklethwait and Adrian Wooldridge are categorical: Democracy is at crisis. Governments are overloaded and bloated. The average share of government spending in thirteen rich countries has climbed from 10% at the beginning of the XX century to around 47% nowadays. People have unreal expectations and contradictory demands. To win elections, politicians act irresponsibly by making false promises or by offering more benefits. The vicious circle is quite clear. The more responsibilities the state assumes, the worse it performs and the angrier people get. And they react with even more demands. The same mechanism that allows democracy to function is leading it to a collapse. By listening to the general public and trying to cope with their expectation of what should be done, politicians are increasing spending, overstretching regulations and turning opposition ever more radical in the process. The combination of state’s inefficiency, political paralysis and people’s dissatisfaction feeds disbelief. For a political system that bases its legitimacy in representation and trust, that’s a very bad sign.
According to the authors, the Western world is living an apparent paradox. The state is on a mission to give people evermore of what they want. Yet, no one seems happier. America has gotten into a fiscal mess. The debt is rising while the government is stuck with gridlocks. Democracy everywhere faces cynicism. No one trusts politicians anymore. Just 17% of Americans say they trust the federal government and Congress has only 10% of approval rating. By contrast, 85% of the Chinese people approve their government’s decisions. Europe is also in trouble. As predicted by Milton Friedman, the monetary union is leading to political disunion. European Union accounts for 7% of the world’s population and 50% of its social spending. The moderates’ inability to solve problems is making the extremists gain popularity. Besides all, demography is against everybody. The aging of the populations will be an additional weight on overloaded societies. In short, the welfare fantasy is coming to an end and the state is going to start to take things away. Leia Mais
Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola – QUINSANI (CTP)
QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014. Resenha de: DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. A Guerra contra o esquecimento da Guerra. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 17, p. 74-78, set./out. 2014.
Tempo de mudanças substanciais na História da Humanidade, o Século XX foi um período repleto de disputas, sejam elas entre classes sociais, como a Revolução Russa, sejam elas de caráter ideológico, como a Guerra Fria. Se na primeira o socialismo saiu vencedor, ao forjar uma sociedade de modulações totalmente novas, na disputa da Guerra Fria o projeto de formação econômico-social capitalista sobressaiu-se em detrimento da proposta representada pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Esse Século XX foi claramente cortado em sua metade. O conflito de maiores proporções de destruição, morte e terror que ocorreu em todo o desenvolvimento humano foi a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Esse conflito foi tão peculiar, porque único, que foi capaz de alicerçar uma aliança entre a vencedora da Revolução de 1917 e o bastião maior do capitalismo, os Estados Unidos da América (EUA). Uniram-se, a despeito de tudo o que mais acreditavam, pelo objetivo de enfrentar e vencer o Nazismo. Ao impingirem a derrota militar às forças do Eixo permitiram que a História se desenvolvesse como hoje a conhecemos.
Mas a Segunda Guerra Mundial não foi de todo uma novidade na experiência histórica. Trazia, em seu bojo, reminiscências extremamente próximas de um conflito que também se fez militar, que também se fez ideológico e que – como tão bem se reportou o jornalista Herbert Matthews2– dizimou metade de um país. Esse conflito foi a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
O “maior historiador nato de nosso tempo”,3 Eric Hobsbawm, afirma que “as disputas da década de 1930, travadas dentro dos Estados ou entre eles, eram portanto transnacionais. Em nenhuma parte isso foi mais evidente do que na Guerra Civil Espanhola de 1936-9, que se tornou a expressão exemplar desse confronto global”.4 Estavam em confronto, dentro do território espanhol, as forças que defendiam a República com seu projeto de um Estado laico, com desenvolvimento social, educação pública não confessional e reforma agrária versus o agrupamento de forças que tinha na Igreja Católica e no alto oficialato das Forças Armadas, com seu projeto de conservação social, de apoio aos latifundiários e de manutenção da ordem tradicional. O que conferia esse caráter transnacional e, porque não, de laboratório da Segunda Guerra Mundial, era o apoio dos fascistas, com seus mais de 70 mil soldados italianos e dos mais de 40 mil membros das Brigadas Internacionais, oriundos de 53 países, dentre eles a URSS, os EUA, a França, e inclusive do Brasil.
Mas as novas gerações, principalmente fora da Espanha, mas não só, quase não sabem disso, como atesta Eric Hobsbawm: “Hoje parece pertencer a um passado pré-histórico, mesmo na Espanha”.5 Passados pouco mais de 75 anos do conflito, vivemos “uma era de esquecimento”,6 um tempo no qual a experiência histórica parece estar perdendo o seu valor. Vivemos imersos no presente, reféns do imediatismo em todos os tipos de relações, até mesmo com nossa consciência. E isso representa um perigo, pois, se o passado deixa de ser um ponto de reflexão, o mesmo pode ocorrer ao futuro e, com isso, podemos perder a capacidade de perseguir projetos de vida, sociais ou individuais.
Mesmo em plena era de esquecimento, ainda há possibilidades de lembrança. E uma das mais eficientes se dá pela arte, em especial aquela que é a expressão artística por excelência do Século XX: o Cinema. Ao associá-lo com a História, temos, então, uma poderosa ferramenta de análise. É o que acontece no livro A Revolução em Película,7 do historiador Rafael Hansen Quinsani.
Nessa obra, o autor parte da premissa de que “nossa função [dos historiadores] continua sendo lembrar e tornar inteligível o que muitos (propositalmente ou não) esquecem.8 Quinsani, desse modo, demonstra a mesma preocupação de Judt, quer seja, combater o esquecimento, trazer a História para o centro da vida social. E ele faz isso com muita competência.
O livro está organizado a partir de uma Introdução ao tema, seguido de um capítulo teórico-metodológico intitulado Cinema-História. Na introdução, é realizada uma rápida historicização do Cinema. Em seguida, é evidenciado a forma como serão analisados os filmes elegidos para o estudo, todos relacionados com a Guerra Civil Espanhola. A introdução ainda traz uma importante reconstituição do conflito, a partir de suas bases materiais e ideológicas. No capítulo primeiro, é elaborada uma densa e consistente reflexão teórica-metodológica. A partir das noções de imagem, representação e ideologia, Rafael Hansen Quinsani perscruta o desenvolvimento da História ao longo do Século XX. Para tanto, toma mão de autores consagrados, como Marc Ferro, Roger Chartier e Michel Vovelle.
No capítulo intitulado Primeira Projeção: !Ay, Carmela! Arte, Guerra e o Início do Debate é abordado o filme !Ay, Carmela!, do diretor espanhol Carlos Saura, produzido em 1990. Além do filme, esse capítulo traz outras fontes que foram muito bem trabalhadas pelo autor, como algumas canções da época da Guerra Civil Espanhola e a peça de teatro homônima de autoria de José Sanchis Sinisterra. Essa triangulação de fontes produz um capítulo muito rico em termos de História da Cultura, pois Quinsani realiza, de forma acurada, a crítica externa e interna dos documentos escolhidos, realizando, inclusive, um debate muito interessante sobre a adaptação da literatura para o cinema.
O filme traz o impacto que os soldados italianos do regime fascista de Mussolini causaram na Guerra Civil Espanhola. Realiza uma potente crítica ao fascismo, ao demonstrar como os soldados italianos transformaram uma escola em prisão! E realiza, através da analise do autor, uma síntese da sociedade espanhola do período a partir de seus personagens principais: Os três personagens acabam compondo um só personagem que, no seu somatório de características, simboliza a Espanha daquele contexto. Carmela é o lado emotivo, sentimental, preocupado com os outros e direta em suas declarações, representa os combatentes e os simpatizantes da República, Paulino está disposto a sobreviver a qualquer custo, maleável a diferentes contextos, propício a se adaptar às exigências nacionalistas, e Gustavette é a jovem geração, silenciada pelas bombas, pelo terror já presente e que se estenderá sob os anos do Franquismo.9 Ainda é realizada pelo autor uma associação entre a personagem Carmela com as distintas representações da República, em especial com uma tela muita estimada por mim, A Liberdade Guiando os Povos, de Delacroix. Embora as batalhas típicas do conflito militarizado não estejam presentes na película, fica muito patente a forma pela qual a vida das pessoas foi modificada durante o conflito. E, mais além, como se deu a relação da cultura sob o regime de Franco.
A Segunda Projeção: Terra e Liberdade, o enfoque estrangeiro: as disputas e conflitos no interior do processo revolucionário, trabalha com o filme Terra e Liberdade, do cineasta britânico Ken Loach. É nessa película, de 1995, que fica mais em evidência o caráter internacional do conflito, “uma versão em miniatura de uma guerra europeia” de acordo com Hobsbawm.X A composição das Brigadas Internacionais, o apoio intensivo de Hitler e Mussolini aos nacionalistas espanhóis, o apoio e os limites estratégicos impostos por Stálin bem como a política de apaziguamento, para não dizer total omissão, do governo de Frente Popular de Léon Blum na França estão presentes nas análises feitas pelo autor.
Assim como no capítulo anterior, neste, Rafael Hansen Quinsani analisa detalhadamente também uma fonte literária, o famoso Lutando na Espanha, de George Orwell – que, assim como Ernest Hemingway participou da Guerra Civil Espanhola. Há uma polêmica, destacada por Quinsani, a respeito de Terra e Liberdade ser ou não baseado no livro de Orwell. Mesmo assim, muitas são as semelhanças entre o livro e o filme, e elas são deslindadas com elegância nesse capítulo.
Neste capítulo há uma excelente análise de História Política, na qual o autor esmiúça as divergências entre os grupos que defendem a República, sejam eles anarquistas, membros do Partido Comunista ou trotskistas vinculados ao Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM): Outra cena que explicita claramente a fragmentação da esquerda e faz uma crítica à centralização e à stalinização é aquela em que David, após deixar as milícias, ingressa no exército e acaba envolvido num combate com anarquistas durante os “eventos de maio de 1937”. No filme todo o contexto e os debates são sintetizados e condensados na cena em que anarquistas e comunistas estão frente a frente nos telhados de prédios vizinhos. Entre tiros esparsos e insultos mútuos, os referenciais históricos de cada grupo se fazem presente: “– Você deveria estar matando fascistas e não outros. –Ei, você, o sócio de Stalin. Em que divisão estava você? – A divisão de Karl Marx. E você é da Terceira Divisão? – Não, seu bastardo. Somos da Divisão de Durruti, o melhor”.XI Na Terceira Projeção: Libertárias. As milícias, o papel das mulheres e o auge do debate, a obra analisada é o filme Libertárias, do diretor Vicente Aranda, realizado quase simultaneamente ao filme de Ken Loach. O centro da análise empreendida por Quinsani é o protagonismo das mulheres na Guerra Civil Espanhola e no Cinema. Para tanto, o autor realiza uma eficiente síntese abarcando as décadas de 30 a 70 do século passado. Em relação a Guerra Civil, é elaborado um histórico sobre a emancipação feminina a partir da organização Mulheres Livres, fundada no mesmo ano em que o conflito se iniciou. Além disso, a análise remete a representação das mulheres protagonistas do filme: O mérito do filme de Aranda é fugir da dicotomia puta-miliciana presente no imaginário espanhol e inserir no front de batalhas personagens complexas e dotadas de diferentes visões de vida. Maria representa a mulher pura que aos poucos vai descobrindo elementos que estiveram ausentes em sua vida reclusa. Charo é uma prostituta que decide mudar de vida e é influenciada pelos valores anarquistas. Pilar é uma revolucionária determinada. Floren mistura sua ideologia anarquista com um espiritismo peculiar.XII Nesse capítulo, ainda são abordados o papel recalcitrante exercido na Espanha “por uma Igreja Católica que rejeitava tudo o que aconteceu no mundo desde Martinho Lutero”XIII e a dimensão do anarquista Buenaventura Durruti, para a Guerra Civil Espanhola.
Na conclusão, o autor compara os três filmes analisados. Para tanto, faz uso da aplicação do seu método histórico-cinematográfico, uma inédita – e sofisticada – classificação elaborada a partir de uma dedicada leitura da obra de Marc Ferro.
A riqueza da análise presente nesse livro demonstra um autor seguro sobre seu objeto de pesquisa. Além da apreciação de elementos cênicos – que muitas vezes passam despercebidos por espectadores menos atentos – passando pelo movimento das câmeras, até chegar a crítica externa das fontes, o que temos em mão é uma aula de História. E o melhor: uma aula ilustrada, pois o livro conta em seus três capítulos de análise, com 119 imagens reproduzidas dos filmes analisados, o que configura como uma das grandes jogadas desse livro, pois quando o autor se reporta a determinada passagem de um dos filmes analisados, na sequencia é possível conferir quase como se estivéssemos no Cinema.
A concepção de História de Quinsani está em consonância com Eric Hobsbawm para quem “o ofício dos historiadores é lembrar o que os outros esquecem”XIV e com Tony Judt, quando adverte à nossa sociedade de que “de todas as nossas ilusões contemporâneas a mais perigosa é a ideia de que vivemos em um tempo sem precedentes”XV. Ao analisar o filme de Ken Loach, o autor foi capaz de ler “que o filme busca educar às novas gerações e alertá-las do perigo do esquecimento”.XVI Pois bem, A Revolução em Película também cumpre esse papel.
Notas
2 MATTHEWS, Herbert. Metade da Espanha morreu: uma reavaliação da Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
3 JUDT, Tony. Reflexões sobre um Século Esquecido (1901-2000). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 149. Judt também observa que Hobsbawm é o “historiador mais conhecido do mundo”. Idem, p. 137.
4 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos – O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 157.
5 Idem, p. 161.
6 JUDT, op.cit., p. 13.
7 QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014.
8 Idem, p. 10. Interpolações minhas.
9 Idem, p. 77.
10 HOBSBAWM, op.cit., p. 162.
11 QUINSANI, op.cit., p. 109.
12 Idem, p. 144.
13 HOBSBAWM, op.cit., p. 158.
14 Idem, p. 13.
15 JUDT, op.cit., p. 32-33.
16 QUINSANI, op.cit., p. 112.
Referências
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos – O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
JUDT, Tony. Reflexões sobre um Século Esquecido (1901-2000). Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
MATTHEWS, Herbert. Metade da Espanha morreu: uma reavaliação da Guerra Civil Espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014.
Charles Sidarta Machado Domingos – Doutor em História pela UFRGS. Professor DIII-3 do IFSUL – Câmpus Charqueadas.
A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos – TOCQUEVILLE (CTP)
TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Resenha de: SOUZA, Clotildes Farias de. Associativismo voluntário, uma categoria central no pensamento de Alexis de Tocqueville. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 17, p. 79-82, set./out. 2014.
A noção de associativismo voluntário foi apresentada por Alexis de Tocqueville2 na célebre obra “A Democracia na América”, escrita no ano de 1832, quando o autor retornara à França, depois de nove meses de estadia nos Estados Unidos da América em busca de informações sobre o sistema prisional e sobre a realidade política e cultural daquele país.3 Em que pese a importância da totalidade da obra para compreensão das idéias tocquevilianas sobre a democracia e os princípios de igualdade e liberdade inerentes que determinam o desenvolvimento sócio-político dos países europeus em comparação com os Estados Unidos da América, salienta-se aqui as idéias acerca do associativismo voluntário a partir do segundo volume da clássica obra.
Membro da nobreza francesa, Alexis de Tocqueville nasceu em Paris em 1805 e tinha menos de trinta anos quando escreveu o texto que marcaria a sua trajetória intelectual, ainda profundamente focado nas observações realizadas sobre a vida americana. O primeiro volume da sua principal obra foi publicado em 1835, com o subtítulo “leis e costumes”, contendo muitas impressões e interpretações acerca das diferenças constatadas entre o modelo norte-americano de sociedade e os padrões aristocráticos europeus.4 O segundo volume de “A Democracia na América” é de 1840 e tem como subtítulo “sentimentos e opiniões”; nele o autor reflete mais a própria natureza da democracia como modelo político, tratando do associativismo voluntário especificamente.
O associativismo voluntário ocupa lugar especial no segundo volume do livro que se apresenta dividido em quatro partes. A primeira parte trata da “Influência da democracia no movimento intelectual dos Estados Unidos” e a segunda parte é dedicada ao estudo de “A influência da democracia sobre os sentimentos dos americanos”. A terceira parte do livro aborda a “Influência da democracia sobre os costumes propriamente ditos” e a quarta parte trata “Da influência que as ideias e os sentimentos democráticos exercem sobre a sociedade política”. Encontra-se na segunda parte do livro o tema do associativismo, desenvolvido em quatro capítulos intitulados: 1. Como os americanos combatem o individualismo por meio de instituições livres; 2. Do uso que os americanos fazem da associação na vida civil; 3. Da relação entre as associações e os jornais; 4. Relações entre associações civis e associações políticas. Na quarta parte do livro ainda é encontrado um capítulo diretamente voltado ao tema, intitulado “A igualdade dá naturalmente aos homens o gosto pelas instituições livres”.
O conteúdo do livro evidencia o fato do associativismo voluntário ser uma noção central em Tocqueville, caracterizada como a força da democracia pelas oportunidades políticas que gera para os cidadãos reunidos em torno de um interesse geral. O espírito do associativismo expressa a liberdade política dos americanos que participam efetivamente do processo de elaboração das leis e da sua aplicação, organizados em instituições livres criadas na sociedade civil e voltadas para tomada de decisão sobre as questões banais do cotidiano e as mais relevantes questões da nação. Trata-se de uma tradição, de um hábito ou simplesmente de uma crença capaz de politizar a sociedade civil, tão importante quanto à legislação e mais importante que as condições geográficas favoráveis a democracia norte-americana.
Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos, se unem sem cessar. Não apenas têm associações comerciais e industriais de que todos participam, mas possuem além dessas mil outras: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito particulares, imensas e minúsculas; os americanos se associam para dar festas, fundar seminários, construir albergues, erguer igrejas, difundir livros, enviar missionários aos antípodas; criam dessa maneira hospitais, prisões, escolas. Enfim, sempre que se trata de pôr em evidência uma verdade ou desenvolver um sentimento com o apoio de um grande exemplo, eles se associam.5
A força das associações voluntárias no dia a dia da vida americana chega a ser uma lei mais extensiva que a do Estado aos olhos tocquevillianos; é a lei do autogoverno que orienta os americanos no sentido da conquista dos próprios objetivos. É a primeira lei da democracia que faz o povo americano sentir a coisa pública como sua e de todos, assim como a defender a igualdade porque assim os homens permanecem ou se tornam civilizados.
Quando os cidadãos são forçados a se ocupar dos negócios públicos, são necessariamente tirados do meio de seus interesses individuais e arrancados, de tempo em tempo, à visão de si mesmos. Quando o público governa, não há homem que não sinta o preço da benemerência pública e que não procure cativá-la, atraindo a estima e a afeição daqueles em meio dos quais tem de viver.6
Do movimento associativista fazem parte as associações políticas com a importante função de ensinar os homens a agirem cooperativamente em vista do bem-comum, gratuitamente, sem comprometimento do patrimônio particular. As associações políticas são instituições que cumprem a função de “[…] grandes escolas gratuitas, onde todos os cidadãos aprendem a teoria geral das associações”.7 Às sociedades políticas impõem-se limites para garantia da paz e do respeito às leis, dado o perigo da liberdade à democracia; ao direito dos cidadãos de se reunirem não pode haver restrições. Não há motivos para temer as sociedades políticas porque ao tempo em que exercem controle são também controladas pela própria sociedade civil que está subordinada a centralização governamental do Estado, ainda que livre da burocratização da administração pública. Em geral, nas associações políticas são renovados os sentimentos e as idéias tão necessários ao desenvolvimento humano; a liberdade e a civilização são garantidas em tais instituições porque a união dos membros que se encontravam separados inibe o individualismo ameaçador imposto pela igualdade de condições.
As instituições livres que os habitantes dos Estados Unidos possuem e os direitos políticos de que fazem tanto uso recordam sem cessar, e de mil maneiras, a cada cidadão, que ele vive em sociedade. Trazem a todo instante seu espírito à idéia de que o dever, tanto quanto o interesse dos homens, é tornarem-se úteis a seus semelhantes e como não vê nenhum motivo particular para odiá-los, já que nunca é nem seu escravo nem seu amo, seu coração se inclina facilmente para a benevolência.8 Justamente na capacidade de congregação reside a força de uma associação porque ali se consegue manter a relação de reciprocidade entre os homens tão necessária à democracia. Ali está o potencial de comunicação entre os membros da sociedade porque há instrumentos que representam as instituições e são criados para o exercício da liberdade de expressão; instrumentos como os jornais, por exemplo, os quais proporcionam a fala de uma só vez a todos aqueles que não se vêem ou se juntam diariamente, transmitindo simultaneamente os sentimentos ou ideais que estariam dispersos em cada individuo.
Acerca do associativismo voluntário de Alexis de Tocqueville resta afirmar que é uma categoria de análise bastante profícua para se pensar a cultura norte-americana e também outras formas de organização social e institucional em contextos históricos variados. É uma noção útil aos estudos comparados de modelos internacionais que foram apropriados pelos brasileiros, inclusive de modelos educacionais cujas representações históricas e culturais requerem observações específicas para reconhecimento e compreensão das analogias e diferenças existentes entre os diferentes fenômenos analisados.
Notas
2 TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
3 BASTOS, M. H. C. ARRIADA, E. A democracia na América, de Alexis de Tocqueville: uma leitura para a história da educação. Revista Educação Unisinos, 11(1), n. 1, p. 5-14, jan.-abr. 2007. Disponível em <http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAmWoAI/a-democracia-na-america-alexis-tocqueville-leitura-a-historia-educacao>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2012.
4 BEIRED, J. L. B. Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: três visões sobre a democracia nas Américas. Revista História [online], vol.22, n.2, p. 59-78, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n15/a06n15.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2014.
6TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 131.
6 Idem, p. 124.
7 Idem, p. 143.
8 Idem, p. 129.
Referências
TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BASTOS, M. H. C. ARRIADA, E. A democracia na América, de Alexis de Tocqueville: uma leitura para a história da educação. Revista Educação Unisinos, 11(1), n. 1, p. 5-14, jan.-abr. 2007.
BEIRED, J. L. B. Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: três visões sobre a democracia nas Américas. Revista História [online], vol.22, n.2, p. 59-78, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n15/a06n15.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2014.
Clotildes Farias de Sousa – Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe-UFS. Coordenadora Pedagógica do Centro de Educação Superior a Distância – UFS. E-mail: clotildesfs@gmail.com.
A novela História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito (1682): compêndio dos saberes antropológicos e psicológicos dos jesuítas no Brasil Colonial – MASSIMI (HU)
MASSIMI, M. (org.). A novela História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito (1682): compêndio dos saberes antropológicos e psicológicos dos jesuítas no Brasil Colonial. São Paulo: Edições Loyola, 2012. 298 p. Resenha de: DILLMANN, Mauro. Literatura religiosa e jesuítas no Brasil Colonial. História Unisinos 18(3):645-648, Setembro/Dezembro 2014.
O livro aqui resenhado é uma análise psicológica – mas também histórica – da obra História do Predestinado Peregrino e de seu Irmão Precito escrita pelo padre jesuíta Alexandre de Gusmão2 (1629-1725) e publicada inicialmente em 1682.
Organizado por Marina Massimi, professora titular do Departamento de Psicologia da USP, a obra conta com sete textos, incluindo uma grande introdução escrita pela própria organizadora, quatro textos desta em coautoria com “jovens pesquisadoras” – três alunas do curso de Psicologia da USP, Lidiane Ferreira Panazzolo, Nayara Aparecida Saran e Lívia Tieri Kuga –, com uma mestre em Psicologia pela mesma Universidade – Maira Allucham Gulart Naves Trevisan Vasconcellos – e, por fim, um texto de um pós-doutorando em Cultura Contemporânea na UFRJ – José Eduardo Ferreira Santos.
A literatura investigada é uma novela do padre Gusmão que aborda a peregrinação de dois personagens, um chamado Predestinado e outro chamado Precito, que escolhem diferentes caminhos, percursos de vida, representados, respectivamente, pela viagem do Egito a Jerusalém (o paraíso, a salvação) ou do Egito à Babilônia (o inferno, a condenação), procurando demonstrar metaforicamente que a peregrinação representa o próprio percurso existencial e as escolhas de cada sujeito ao longo da vida.
Esta novela do padre Gusmão – dedicada ao peregrino e missionário Francisco Xavier Apóstolo do Oriente (1506-1552) – se configura, segundo Massimi (2012, p. 52), enquanto um compêndio da visão antropológica e dos saberes psicológicos elaborados pela Companhia de Jesus na América Portuguesa, cujo enredo é a peregrinação como figura alegórica da vida. Os dois personagens, Predestinado e Precito, aspirando à felicidade, iniciam sua peregrinação; o primeiro em direção a Jerusalém, em busca da salvação, segue com sua esposa, a Razão, com a qual tem dois filhos, Reta Intenção e Bom Desejo; o segundo segue em direção à Babilônia, em busca de satisfações materiais, com sua esposa Própria Vontade e seus filhos, Mau Desejo e Torta Intenção. A intenção de Gusmão, segundo Massimi e Panazollo (in Massimi, 2012, p. 203), ao intitular seu livro como a história de um Peregrino, servindo aos propósitos contrarreformistas, era a de recuperar fiéis perdidos, no sentido de atrair leitores, uma vez que alguns anos antes, em 1678, John Bunyan, um autor protestante, publicou O Peregrino.
Podemos incluir o livro de Gusmão, analisado por Massimi e outros, na categoria que chamamos “manuais de devoção”, obras da literatura religiosa moderna destinadas a difundir a doutrina cristã e os modelos de comportamento moral esperados para a vida virtuosa, a boa morte e a salvação da alma. Em um dos textos (O percurso de Predestinado Peregrino: encontros, lugares e imagens edificantes na História de Alexandre de Gusmão) do livro, as autoras, Lidiane Ferreira Panazzolo e Marina Massimi, reconhecem a obra do padre como “uma espécie de manual de conduta provavelmente utilizado nos colégios jesuítas” (p. 204). Na conclusão deste artigo, as autoras destacam que “havia poucos exemplares originais do livro”.
Pude constatar, em um prévio levantamento nos catálogos de arquivos de Portugal e do Brasil, a existência de edições de 1682, 1685 e 1728. Na Biblioteca Nacional de Portugal, constam três exemplares de 1682, formato livreto de mão, como quase todos manuais de devoção do final do século XVII e do século XVIII, com 15 cm, impresso na oficina Miguel Deslandes; quatro exemplares microfilmados da edição de 1685, publicada pela oficina da Universidade de Évora, e um exemplar de 1728, indicando ser de quarta edição, impresso à custa do mercador de livros Domingos Gonçalves na oficina de Felippe de Sousa Villela. Por esta mesma oficina e mesma edição, existem exemplares na Biblioteca Joanina, em Coimbra, e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, indicando ainda pertencer à Coleção da Real Biblioteca, o que demonstra o sucesso da obra no período e a circularidade da mesma entre a América Portuguesa.3 Além da interessante análise psicológica com enfoque histórico, o livro tem o mérito de apresentar a íntegra da obra analisada, transcrita com português atualizado, facilitando o acesso e a consulta deste documento para outros pesquisadores e interessados em geral. Além disso, as autoras “traduziram” o texto do padre Gusmão em dois interessantes anexos para a compreensão do texto.
Um deles é uma árvore genealógica dos personagens, o outro são dois mapas com descrições, rabiscos, setas e desenhos literalmente feitos de modo manuscrito, esquematizando a peregrinação de cada um dos personagens.
Ainda que uma estratégia didática e criativa das autoras, tal espécie de “mapa conceitual” poderia ter sido feita com melhores recursos gráficos, podendo manter a mesma diagramação do manuscrito, a fim de apresentar ao leitor uma melhor compreensão e leitura analítica.
Na construção da novela, em que Gusmão aborda a prática da peregrinação como a busca de um sentido de vida, as autoras identificam influências de Inácio de Loyola (Exercícios espirituais) e de Antônio Vieira (sermão Undécimo do seu dia). Loyola estaria presente no exemplo do uso pedagógico que fez de imagens para veicular a mensagem cristã e para agir na subjetividade do leitor, especialmente na memória e na imaginação, de modo a facilitar a meditação (Massimi, 2012, p. 24). Já Vieira destacaria o mundo em que se anda, a peregrinação, designando-a como “aquisição de experiência da qual se tira um ensinamento, uma moral”, diferenciando-a do desterro, um simples caminhar sem aprendizagem alguma (Saran e Massimi in Massimi, 2012, p. 222-223).
A obra do padre Gusmão foi entendida como uma “metáfora da existência humana”, imagem muito empregada no período moderno para “comunicar conceitos”, pois as alegorias atuavam como “dispositivos retóricos” (palavras eficazes na ação do dinamismo psíquico dos destinatários) capazes de provocar atividades sensitivas e imaginativas (Massimi, 2012, p. 18, 23, 28). O uso destas alegorias, metáforas e recursos retóricos estaria de acordo com a pretensão do padre de “mover a curiosidade do leitor”, muito comum nas obras devotas do período moderno.
Essa “novela alegórica” estabelece uma relação de diálogo com o leitor, enquanto manual de instrução para ser (re)lido inúmeras vezes, que exemplifica os “requisitos para chegar à salvação” com suas dificuldades e riscos, tornando-se “mais próxima da vivência dos leitores” (Panazzolo e Massimi in Massimi, 2012, p. 207). A eficácia da proposta apresentada pelo padre estaria na disposição do leitor e na importância que o mesmo atribuiria à leitura (passatempo ou proveito), de modo que somente a leitura “para proveito” seria de grande “lição espiritual” (Massimi, 2012, p. 46).
O livro organizado por Massimi é uma contribuição à História do Brasil, especialmente à historiografia do período colonial, por considerar e interpretar a sensibilidade religiosa jesuíta no contexto de expansão da moral tridentina e da retórica dual barroca (paraíso-inferno, salvação-condenação, verdade-mentira, bem-mal), bem como as práticas de leitura dos manuais de devoção e sua circulação pela América Portuguesa, como se percebe, sobretudo, nos elucidativos textos de Marina Massimi (Texto introdutório) e de Nayara Aparecida Saran e Massimi (A peregrinação como percurso anímico: o percurso da Palavra e do Entendimento). No entanto, não há muitas referências ou exploração do contexto colonial em si, sobretudo em relação aos aspectos sociopolíticos, econômicos ou culturais da Colônia, das cidades por onde possivelmente o texto tenha circulado, como Salvador, Rio de Janeiro e Recife. Além disso, é possível dizer que os primeiros textos do item “Leituras da novela à luz da história dos saberes psicológicos e da história da cultura”, destacado no sumário, são construídos com repetição dos argumentos, que podem ser encarados como reforço intencional na análise da obra de Gusmão.
Na análise que empreendem do manual do padre Alexandre de Gusmão, o objetivo parece ser plenamente alcançado, qual seja, o de destacar a pretensão do manual de “evidenciar a importância do cuidado de si” e os “efeitos do descuido”, enfatizando o “conhecimento da pessoa e prática de orientação” do sujeito (Massimi, 2012, p. 34). É nesse sentido que, ao longo de todos os textos, os autores enfatizam a importância atribuída pelo padre Gusmão ao processo do desengano, que implicava o uso consciente da razão, à confiança na razão para atingir um entendimento considerado verdadeiro da realidade e para ordenar a vontade,4 levando ao discernimento. Esse processo de desengano seria facilitado na prática do exame de consciência e nas demais práticas religiosas, como a confissão, já que eram acompanhadas de recursos culturais como imagens sagradas, pinturas, músicas, etc.5 Na novela de Gusmão, “Desengano” seria um personagem que “fixa os olhos na verdade” (Massimi, 2012, p. 42, 48), e o desenganado seria aquele que reconhecesse a enganação do mundo, que conseguisse visualizar as virtudes do céu desvinculando-as das aparências e prazeres imediatos do mundo terreno (Saran e Massimi in Massimi, 2012, p. 230).
No artigo A experiência corporal na História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito, a relação corpo e alma foi abordada por Lívia Tieri Kuga e Marina Massimi para enfatizar as metáforas do corpo que remetem aos sentimentos dos personagens (coração, olhos, carne, vestimentas/trajes e corpo/alma), baseadas na filosofia clássica e escolástica (Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino), de modo a demonstrar que as escolhas feitas em vida modificam não apenas o espírito, mas também o corpo de cada um. As autoras elaboraram um interessante índice ao final do capítulo, na medida em que referenciaram todas as expressões, metafóricas ou não, em que aparecem as estruturas corporais, como, por exemplo, “coração a ouvir”, “disse em seu coração”, “coração humilde”, etc.
Esse vínculo corpo/alma aparece ao longo dos textos que compõem o livro. Massimi destacou as “dimensões do dinamismo” do sujeito que seriam o corporal, o psíquico e o espiritual. O corporal estava no “gesto físico de peregrinar”, cujo movimento se vinculava aos estudos dos corpos e às teorias médicas acerca dos temperamentos.
O espiritual, o “núcleo temático central da novela”, uma vez que a leitura implicaria “envolvimento” e atitudes espirituais como a devoção – o apelo ao “devoto leitor” – estava no aprendizado de virtudes divinas, como a piedade, a obediência e a perseverança. Por fim, o dinamismo psíquico relacionava-se ao “funcionamento das potências da alma, suas operações, suas doenças e seus remédios”. As potências principais eram o entendimento e a vontade, cujo cultivo era de fundamental importância para o “bem viver” e para identificar as “enfermidades” da alma (Massimi, 2012, p. 34-37).
Massimi destaca que, no século XVIII, foi comum a presença do médico espiritual para a ordenação da vida pessoal dos fiéis, a partir da obra de Cláudio Acquaviva (1543-1615), Normas para a cura das enfermidades do ânimo (1600), que definiu os “vários tipos de doenças espirituais e de remédios para cada doença”; daí, então, o rótulo de medicina da alma muito recorrente na literatura jesuíta.
A atuação jesuíta, aliás, estaria vinculada à medicina do ânimo, à pregação e à pedagogia. Por “medicina da alma” a autora entende “um conhecimento do ser humano e de sua dinâmica psicológica que visa à adaptação deste ao contexto social de inserção” (Massimi, 2012, p. 50).
Marina Massimi assina outro texto com Maira Allucham Goulart Naves Trevisan Vasconcellos, que analisa outra obra que trata de peregrinação. Trata-se do Compêndio narrativo do Peregrino da América, escrito pelo padre Nuno Marques Pereira (1652-1728) e publicado em 1728.6 As autoras indicam a “grande circulação” e as várias reimpressões do manual do padre Pereira, nos anos de 1731, 1752, 1760 e 1765, mas não indicam quaisquer informações sobre os arquivos em que se encontram.7 No entanto, destacam que utilizam a sexta edição, publicada pela Academia Brasileira de Letras em 1939. A novela de Pereira conta a viagem de um peregrino da Bahia a Minas Gerais no início do século XVIII. O Compêndio teria a finalidade de instruir e divertir o leitor por meio de contos e instruções de “como se deve viver para manter corpo e alma saudáveis e salváveis” (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 263). Para persuadir quanto aos preceitos de bem viver, Nuno Pereira buscava seus argumentos na Sagrada Escritura, em São João Crisóstomo e em Santo Agostinho.
Tal como a novela de Gusmão, a peregrinação é tanto o percurso geográfico percorrido pelo personagem principal – o Ancião – quanto o caminho existencial que conduz à eternidade (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 267), no qual era oportunizado ao homem o conhecimento de si e o desenvolvimento de virtudes.
Vale uma descrição um pouco mais apurada sobre a obra de Nuno Pereira – embora ocupe apenas um artigo do livro – para demonstrar a proposta do livro, que é a de apresentar os saberes dos jesuítas no Brasil Colonial. Se havia, no Compêndio, uma relação entre o bem viver e o bem morrer, da mesma forma havia doenças do corpo e da alma. A tristeza era um mal que, por exemplo, traria efeito na saúde do corpo, levando muitas vezes à morte súbita (uma má morte). As paixões eram empecilhos ao uso prudente da razão, e a demasiada tristeza levaria a doenças como lepra, sarnas, magreza, etc., cujos remédios variavam entre conversas, cheiros, ar do campo ou do mar e música. Aconselhava-se alimentação moderada, sono adequado, consumo de vinho, exercícios físicos, penitência, paciência, jejuns e disciplina. A salvação ou condenação da alma após a morte era determinada pela conduta na existência mundana (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 271-278). O Compêndio, tal como A novela História, recebeu infl uência dos Exercícios espirituais de Inácio de Loyola e se apoiava nos escritos de Tomás de Kempis.8 O último artigo a integrar o livro organizado por Massimi é de José Eduardo Ferreira Santos (Peregrinos e viajantes: o homem em movimento, rumo ao destino, através da cultura popular e da música brasileira), um pequeno texto que, exceto por tratar de um tema em comum – a peregrinação, tomada genericamente como sinônimo de viagem e de romaria – destoa do objetivo geral da obra.
O texto de Santos busca identificar o peregrino/romeiro/ viajante na “cultura brasileira”, especialmente na música popular, o que é feito não sem algum juízo de valor, como ao se referir à canção “A triste partida”, de Luiz Gonzaga, destacando ser “muito famosa” e “belíssima”, que “revela uma das características mais complexas do homem moderno, que é a perda de suas raízes ocasionada pelas difíceis condições sociais” (Santos in Massimi, 2012, p. 288-289).
A obra organizada por Marina Massimi atinge plenamente os objetivos propostos, demonstrando a contribuição de autores da Companhia de Jesus no contexto luso-brasileiro da Idade Moderna para a “criação de formas, de métodos e de justificativas de um tipo de conhecimento da subjetividade e do comportamento humano” que deram origem à psicologia moderna (Massimi, 2012, p. 17).
Mesmo sem seguir uma perspectiva metodológica estritamente histórica, o livro é uma importante refl exão e contribuição à atual historiografia dedicada às práticas de leitura e à circulação, no Brasil, de obras religiosas editadas e publicadas inicialmente em Portugal da época moderna, bem como voltada à análise dos discursos cristãos para instruir a vida devota, para conduzir o fiel no caminho do bem viver, para exemplificar as condutas morais que garantiriam uma boa morte e uma eternidade feliz.
Referências
DAVIS, N.Z. 2001. Histórias de Perdão e seus narradores na França do século XVI. São Paulo, Companhia das Letras, 300 p.
DELUMEAU, J. 1989. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo, Pioneira, 301 p.
FLECK, E.C.D.; DILLMANN, M. 2013. Os sete pecados capitais e os processos de culpabilização em manuais de devoção do século XVIII. Topoi, 14(27):285-317.
FLECK, E.C.D.; DILLMANN, M. 2012. “A Vossa graça nos nossos sentimentos”: a devoção à Virgem como garantia da salvação das almas em um manual de devoção do século XVIII. Revista Brasileira de História, 32(63):83-118. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882012000100005 PERIER, A. 1724. Desengano dos pecadores, necessário a todo o gênero de pessoas, utilíssimo aos missionários e aos pregadores que só desejam a salvação das almas. Roma, Oficina Antônio Rossis na via do Seminário Romano, 439 p.
WITTMANN, R. 1999. Existe uma revolução da leitura no final do século XVIII? In: G. CAVALLO; R. CHARTIER (org.), História da leitura no mundo ocidental. São Paulo, Ática, vol. 2, p. 135-164.
Notas
2 Alexandre de Gusmão nasceu em Lisboa em 1629 (português, embora a autora se refira ao mesmo como “baiano” [p.18]), foi diretor do Colégio do Menino Jesus de Belém em Cachoeira do Campo, próximo a Salvador, na Bahia, local onde viveu e morreu em 1724. Foi autor de inúmeras outras obras sobre a “arte de viver”, como Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia [1685]; Escola de Belém, Jesus nascido no Presépio [1678]; Menino Christão [1695]; Maria Rosa de Nazaret nas montanhas de Hebron, a Virgem nossa Senhora na Companhia de Jesus [1715]; Eleição entre o bem e o mal eterno, O corvo e a pomba da Arca de Noé no sentido alegórico e moral [1734] (Massimi, 2012, p. 18).
3 É possível conferir os catálogos on-line em: http://www.bnportugal.pt; http://www.uc.pt/bguc; http://www.bn.br/portal.
4 Considerando que o público leitor (e ouvinte) das obras manuais de devoção era, em grande medida, feminino, é importante considerar a observação feita pela historiadora Natalie Davis para as características atribuídas às mulheres na França do século XVI. Elas eram caracterizadas com o termo “imbecillité”, que designava “a fraqueza mental e de vontade” (Davis, 2001, p. 126). Sobre a difusão maior da leitura entre o público feminino e para as instruções voltadas às mulheres, ver Wittmann, 1999, p. 143; Fleck e Dillmann, 2012, e Eliane Cristina Deckmann Fleck, Mauro Dillmann. “Remédios para amansar a fera”: as regras para o bem viver e as orientações para os mal casados viverem em paz em um manual de devoção do século XVIII (texto inédito).
5 Reflexões sobre o “desengano” parecem ter sido foco comum de muitos jesuítas, principalmente daqueles dedicados à pregação e à conversão. Um exemplo interessante, nesse sentido, é a obra do jesuíta italiano Alexandre Perier, que no final do século XVII atuou no Brasil, publicando em Lisboa, no ano de 1724, um manual que leva no título a palavra “desengano”. Alexandre Perier, Desengano dos pecadores, necessário a todo o gênero de pessoas, utilíssimo aos missionários e aos pregadores que só desejam a salvação das almas. Roma: Oficina Antônio Rossis na via do Seminário Romano, 1724. Uma análise desta obra pode ser conferida em Fleck e Dillmann, 2013.
6 As autoras indicam a influência da obra de Gusmão em Nuno Marques Pereira, mas destacam que teria sido retomada “quase cem anos depois”, quando, na verdade, entre a primeira edição de História do Predestinado Peregrino [1682] de Gusmão, e o Compêndio [1728], de Pereira, não chegou a se passar meio século.
7 No catálogo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi possível localizar quatro exemplares, dois de 1760, um de 1767 e um de 1939. Todavia, a obra continuou sendo editada, considerando que no Acervo da Biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – São Leopoldo/RS, existe edição de 1988 pela Academia Brasileira de Letras.
8 Tomás de Kempis (1379-1471) era alemão, autor da obra A imitação de Cristo, uma das que conheceu extraordinária difusão no início do período moderno, segundo Delumeau, e que recebeu impressão em diversas línguas, “umas sessenta vezes antes de 1500” (Delumeau, 1989, p. 77).
Mauro Dillmann – Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande. Campus São Lourenço do Sul Rua Marechal Floriano Peixoto, 2236, Centro 96170-000, São Lourenço do Sul, RS, Brasil. E-mail: maurodillmann@hotmail.com.
Ética prática – SINGER (C)
SINGER, Peter. Ética prática. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. 3. ed. São Paulo: M. Fontes, 2012. Resenha de: LEITE, William Wiltonn. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p. 229-232, set/dez, 2014.
O livro Ética prática está composto de um prefácio, 12 capítulos e um apêndice. Peter Singer, filósofo utilitarista nascido na Austrália, atualmente professor na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, expõe, inicialmente, em seu livro, o que não considera ética e o que pensa ser ética. Em seguida, conduz a uma exposição argumentativa sobre a aplicação prática de determinadas concepções éticas a alguns temas relevantes e polêmicos do momento histórico que vivemos. Singer confronta a ideia de uma singularidade atribuída à vida humana, principalmente quanto a uma interpretação como algo sagrado, que impeça que essa seja examinada em relação a si mesma, à vida dos outros seres vivos com que o homem compartilha esse momento no Planeta e ao próprio meio ambiente como um todo. Analisando várias concepções de condutas éticas, conclui por defender a ideia de um tipo de utilitarismo preferencial, não clássico, por estar baseado no princípio da igualdade na consideração dos interesses dos agentes envolvidos numa específica conduta ética.
Singer começa o Capítulo 1 referindo que os assuntos relacionados à sexualidade ou uma teoria bem-elaborada em um sistema ideal de grande nobreza na teoria, mas inaproveitável na prática ou que a religiosidade, o relativismo, e u subjetivismo não são questões éticas. Leia Mais