A geografia dos afectos pátrios. As reformas político-administrativas (sécs. XIX-XX) – CATROGA (LH)

CATROGA, Fernando. A geografia dos afectos pátrios. As reformas político-administrativas (sécs. XIX-XX). Coimbra: Almedina, 2013. 406 p. Resenha de: MARQUES, Tiago Pires. Ler História, v.66, p. 179-182, 2014.

1 É difícil fazer justiça, em poucas páginas, a um livro denso, de esmagadora erudição, que complica consideravelmente a história do Estado-nação português, ao mesmo tempo que oferece inovadoras linhas de intelecção dos seus processos. Com efeito, sob pretexto de uma análise histórica da organização administrativa do território do Portugal contemporâneo, o novo livro de Fernando Catroga mapeia os imaginários de modernidade em confronto, no seio das elites governantes e intelectuais intervenientes no espaço público, e observa os efeitos das sucessivas rearticulações territoriais na história política e sócio-cultural do país. Obra construída a partir de um conjunto de textos autónomos publicados desde 2004, tal como nos explica o autor em nota final, a sua novidade está, para além de alguns acrescentos inéditos, na forma como constrói uma perspectiva unitária da concretização de uma modernidade portuguesa. É que, abdicando do habitual dispositivo sequencial, este livro claramente não é uma soma de elementos, mas um conjunto de unidades que se vão encaixando umas nas outras no interior de uma circunferência comum. Concretizando, tal circunferência parece-nos definida por um tema, um problema e uma perspectiva: 1) pelo tema da institucionalização de um ordenamento político-administrativo e territorial adequado aos princípios da soberania nacional, da divisão de poderes e do carácter público de todas as funções administrativas (p. 31); 2) pelo problema da fraca base social para apoiar tal processo de institucionalização, que se corporizou socialmente em diversas formas de integração e de tensão entre centro e periferia; e 3) por uma perspectiva, a saber, de que no debate entre centralistas e descentralistas se jogou a questão da organização territorial e governo das populações, sendo esta indissociável de ideias de pátria, nação e cidadania (p. 12). Assim, esta obra constitui-se por uma operacionalização do conceito foucaultiano de governamentalidade que integra os imaginários de ordem político-social da modernidade portuguesa.

2 O livro compõe-se formalmente de quatro partes, cada uma delas percorrendo a totalidade do período analisado. Vamos assim avançando em espiral, desde a circunferência mais ampla do território (Parte I), à região ou província (Parte II), à organização dos micro-poderes locais (Parte III), e, enfim (Parte IV), à organização dos afectos patrióticos que, à maneira de eixo central, ligaria o imaginário nacional aos fogos familiares, «fisiológicos», do lugar. Na primeira parte, o autor ataca a questão ampla do território nacional, nomeadamente a sua ocupação pelo poder estatal na mira de governar a população. Trata aqui de seguir, no debate em torno dos modelos de divisão administrativa, dos alvores do Liberalismo ao Estado Novo, o olhar estratégico dos políticos e administradores sobre o alinhamento entre centro e periferias, ao tentarem fazer repercutir o sentido universal do contrato social fundador do poder central nos poderes regionais e locais. Catroga mostra como em torno do «município» se constituiu uma luta política e simbólica, opondo liberais e restauracionistas, e diferentes modos liberais de entender a «liberdade dos modernos» (p. 37). Para os liberais descentralistas, o município surgiu como resposta à dificuldade prática de operacionalizar o sistema representativo na governação do território nacional. Construindo-se sobre a noção anglo-saxónica de «self-government», para os descentralistas o município parecia assim «saído das mãos de Deus» (nas palavras citadas de Alexandre Herculano), já que dava um conteúdo palpável, uma factualidade institucionalizada, à noção «abstracta» e «artificial» de nação sobre o qual o também abstracto «pacto social» adquiria um conteúdo concreto: as «sociabilidades naturais» cristalizadas pela história. Para outros, porém, o município permitia mobilizar uma versão mitificada do passado com uma finalidade restauracionista (p. 38). Vingou a solução do «constitucionalismo histórico», a demarcação distrital do país ao serviço, segundo Catroga, de uma visão hierárquica do poder que subalternizava as periferias ao centro político do Estado-nação (p. 53 e sgs.). Esta malha saída do modelo triunfante de poder – finalmente, ao estilo jacobino – teria estruturado, na prática, as formas observadas pela sociologia histórica comparativa da modernização política portuguesa, nomeadamente o caciquismo, o clientelismo e o nepotismo. Formas de sociabilidade típicas das «capitalidades distritais», elas seriam o complemento funcional da figura, tão diabolizada, do «burocrata» (p. 86).

3 A segunda e terceira partes podem ler-se conjuntamente como uma genealogia do provincianismo e paroquialismo portugueses enquanto forma de organização do poder na base de uma certa «cultura», ancorada não só nos discursos dos políticos mas também na história social do país. A ausência histórica de ordens intermédias entre o centro político e as periferias locais gerou dinâmicas supletivas, apoiadas nos modelos do regionalismo francês e espanhol, que viriam a desembocar nos diversos movimentos federalistas da segunda metade do século XIX e da I República e, em sentido antiliberal, nos movimentos favoráveis à noção de «província», de ressonâncias imperialistas, visando casar regionalismo e patriotismo (p. 152). Este segundo modelo triunfou, como sabemos, como forma de organização territorial do Estado Novo. Tornam-se claros os elos entre as sociabilidades que floresceram no Portugal contemporâneo – grémios, casas regionais, associações, congressos, partidos políticos com lógicas clientelares, movimentos militantes (ex. a Cruzada Nun’Álvares) e político-intelectuais (ex. o Integralismo Lusitano) – e estas diferentes formas de estruturação territorial do poder. Neste sentido, é luminosa e convincente a análise de uma governamentalidade característica do caso português, cujas linhas de compreensão se devem buscar em combinatórias de escalas – nacional, regional e paroquial.

4 A quarta parte do livro é porventura a mais ousada e sugestiva. Articulando agora estas várias governamentalidades estruturantes da sociedade portuguesa, Fernando Catroga analisa os afectos que produziram e de que se alimentaram para a sua própria reprodução. Os processos históricos em causa revelam uma mesma tensão estrutural: como fazer surgir patriotismos locais e nacionais, isto é, à escala do lugar étnico e do lugar cívico – consoante o posicionamento ideológico –, que não só não fossem antagónicos, mas que se reforçassem mutuamente? Esta questão atravessou os três regimes observados, tendo obtido com o Estado Novo uma solução relativamente original que autor chama de «patriotismo de campanário». Neste, as pequenas pátrias de que se fazia a grande pátria – e que nas visões liberais coincidia com a pátria cívica e contratual – foi complementada com a ideia de uma protecção divina de legitimação católica (p. 383). Na linha do Integralismo Lusitano, o Estado Novo enfatizou a ideia de «sociabilidade natural» – que, no entanto, já encontramos em descentralistas como Herculano –, recorrendo agora a uma argumentação biológica e psicológica colhida na ciência, e sacralizou-a através de um providencialismo católico que abrangia, bem entendido, a «missão» político-espiritual do Império. Seria, assim, dialéctica e eminentemente ideológica a via portuguesa para o autoritarismo e corporativismo. Por um lado, o Estado Novo construiu-se num discurso que, contrariamente ao fascismo italiano, atribuía prioridade ôntica à nação, entidade simultaneamente histórica e fisiológica, e não ao Estado. Por outro, na prática, o regime traduzia a necessidade de ajustar a sociedade a uma suposta natureza histórica através de uma bem conduzida concepção pastoral da política. Neste sentido, o Estado Novo assumiu a função condutora na concretização histórica do que alegava ser, em nome dos «factos», a essência da nação. Por outras palavras, se no plano discursivo o Estado Novo assentava no mote «from nation to state», na prática, e porque se tratava de «colocar a nação no Estado», a sua acção foi no sentido «state to nation» (p. 380). O Estado Novo foi, nesta óptica, um jacobinismo erguido em nome do anti-jacobinismo (p. 385), construindo-se culturalmente como um «positivismo do espírito» (p. 389).

5 Como vemos, a estrutura concêntrica do livro é possibilitada pela observação de que o debate entre centralismo e descentralismo, com todas as suas gradações e efeitos de sociabilidade, atravessou a Monarquia Constitucional, a I República e o Estado Novo. Porém, o dispositivo interpretativo que possibilita ao autor conduzir com eficácia o seu empreendimento é a noção foucaultiana de governamentalidade, explicitada nas páginas iniciais. Contrariamente a algumas críticas feitas aos que em Foucault buscam utensílios de análise, a leitura da história pela perspectiva do poder não funciona como rolo compressor das singularidades históricas. Pelo contrário, Fernando Catroga singulariza uma diversidade de lógicas de governamentalidade, nelas vendo inter-relações específicas também no plano dos afectos políticos que produziram. Contudo, e embora o autor nunca o afirme, a obra sugere um determinismo último de configurações de poder, observadas a partir da aplicação de modelos. Esta perspectiva, ainda que meta-histórica, é certamente legítima. Ficam, no entanto, por explorar as formas de mobilização de indivíduos e colectivos e os processos da sua adesão a imaginários e instituições: se parece certo que os poderes produzem afectos, não é de descartar que estes se liguem a recursos simbólicos a imaginários com força criativa relativamente autónoma. Ora, esta acção criativa dos afectos parece-me mais eficazmente observável numa história de interacções sociais que, sem deixar de lado a problemática dos poderes, permita equacionar a relação entre assimetrias sociais concretas (urbano vs. rural, classe e status, diversos capitais simbólicos) e significados culturais.

Tiago Pires Marques – Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra. E-mail: [email protected].

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