Os inimigos íntimos da democracia – TODOROV (EH)

TODOROV, Tzevetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 215p. Resenha de: LA QUADRA, Fernando M. Os riscos da democracia no mundo contemporâneo. Estudos Históricos, v.27 n.53 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

No seu breve e incisivo ensaio, o filólogo, historiador das ideias e intelectual búlgaro radicado na França expõe com proverbial claridade os principais riscos que as democracias enfrentam no mundo contemporâneo, a saber, o messianismo, o ultraliberalismo e o populismo.

O mais assustador desse perigo é que ele nasce da própria esfera democrática, quando os valores e mecanismos mutuamente compartilhados adquirem um “descomedimento” (húbris), ou seja, quando ocorre um uso excessivo e distorcido de tais valores. Isso acontece quando os ideais da vida democrática como progresso, liberdade ou povo são absolutizados a tal ponto que se transformam em elementos de coerção das comunidades e dos indivíduos. Nas palavras de Todorov, “o povo, a liberdade, o progresso são elementos constitutivos da democracia; mas se um deles se emancipa de suas relações com os outros, escapando assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em único e absoluto, eles transformam-se em ameaças: populismo, ultraliberalismo, messianismo, enfim, esses inimigos íntimos da democracia” (Todorov, op. cit.: 18).

No início do livro, Todorov tenta demonstrar que, ao contrário do que é difundido permanentemente pelos políticos, pelos experts e pela mídia em geral, o islamismo integrista e os grupos terroristas jihadistas (como a Al-Qaeda) não representam uma ameaça significativa para as democracias ocidentais se comparados com aquelas formas totalitárias ocorridas durante o século XX, como o comunismo ou o nazifascismo. A ideia de tal ameaça é uma perspectiva errada, construída intencionalmente para ocultar os verdadeiros riscos que enfrentamos atualmente: o perigo realmente imperante está nas forças deletérias internas que a própria democracia produz, e combatê-las e neutralizá-las é tanto mais difícil, pois elas invocam o espírito democrático quando na realidade estão corroendo seus pilares. Como dizia Blaise Pascal, “nunca se faz tão perfeitamente o mal como quando se faz de boa vontade”. É o Mal surgindo do Bem.

Na história humana, a procura do Bem frequentemente se ergueu a partir do convencimento de que os outros precisam de ajuda e “salvação”, razão pela qual me transformo na encarnação da missão de construir a redenção universal. Esse messianismo se expressou em diversos momentos históricos – nas guerras revolucionárias e coloniais, bem como no projeto comunista -, mas na forma contemporânea ele se veste com as roupagens dos valores democráticos universais, quando são simplesmente desejos de poder e riqueza travestidos de humanismo.

De fato, o conceito de “guerra humanitária” representa uma contradição flagrante, dado que dificilmente se pode pensar que as ações decorrentes de uma guerra possam trazer algo de humanidade no seu seio. No entanto, o que é passível de apreciar através de todos esses conceitos é que a grande maioria das intervenções tem sido motivada por razões de orgulho e de poder e que sua justificação aduzindo pretextos humanitários representa um tipo de messianismo interessado que provoca mais danos que benefícios para os povos que se pretende proteger. Efetivamente, o resultado desses empreendimentos somente conduziu a um aumento dos desastres da guerra com sua enorme sequela de vítimas inocentes.

A outra forma que a democracia possui de converter-se em sua própria inimiga diz respeito à perda do equilíbrio que deveria existir entre o poder consagrado ao povo e a liberdade dos indivíduos. Portanto, o vínculo que se estabelece entre a soberania do povo e a autonomia da pessoa – nos adverte Todorov – precisa ter uma limitação mútua, em que “o indivíduo não deve impor sua vontade à comunidade, e esta não deve interferir nos assuntos privados de seus cidadãos” (Todorov, op. cit.: 16).

A oposição entre populismo e ultraliberalismo convoca-nos então a pensar nos limites que é indispensável estabelecer para que as duas dimensões se mantenham em equilíbrio, ainda que, parafraseando Norbert Elias, isto se dê através de um “equilíbrio móvel de tensões”. Sempre existe o perigo de que a consagração do popular possa se tornar a encarnação do bem coletivo e, consequentemente, alimentar a ideia de que certos valores como a pátria, a raça ou a comunidade devem ser compartilhados pela totalidade dos seres humanos. Na verdade, se o equilíbrio é instável, isso implica que se pode transitar facilmente para expressões de autoritarismo, xenofobia, racismo e intolerância à diversidade, quando o diferente é rejeitado por constituir ameaça à essência de determinado povo.

Dessa maneira, o populismo hipertrofiado impede que se reconheça a humanidade dos outros e dissemina a intolerância em relação àquilo que é diferente. Por isso a democracia corre um grave risco quando é substituída pelo populismo, “que ignora a diversidade interior da sociedade e a exigência de visar, para além das satisfações imediatas, as necessidades do país em longo prazo” (Todorov, op. cit.: 195).

Contrariamente, no conflito com o populismo e suas formas autoritárias, a hipervalorização dos indivíduos pode acarretar o desprezo por tudo aquilo que visa ao coletivo. Sendo assim, a liberdade individual e a vontade do indivíduo se superpõem a qualquer intento de construir o bem-estar geral; as pessoas são movidas por um repertório de preferências individuais, especialmente econômicas, veem-se isoladas umas das outras e rejeitam a tessitura social. Sabemos por toda a tradição sociológica que a sociedade não se resume à mera soma dos indivíduos que fazem parte dela: diferentemente disso, ela é um produto das interações precedentes e constantes que se estabelecem entre seus membros.

Sendo a liberdade individual um aspecto fundamental da democracia, ela pode também constituir-se numa ameaça quando se cinde do todo social, quando consagra a vontade dos indivíduos acima da coletividade, quando adquire um poder ilimitado acima da vontade geral. No intento de libertar as pessoas das ataduras e da subordinação do Estado, o ultraliberalismo deixa os indivíduos à mercê do mercado e das empresas. Opondo-se a toda medida de regulação por parte dos poderes públicos, o ultraliberalismo deixa a humanidade órfã de proteção, entregue ao livre jogo da oferta e da procura, dos mercadores, dos financistas e dos poderosos.

Estamos finalmente na presença de uma tríade (messianismo, populismo, ultraliberalismo) que vai corroendo os fundamentos da própria promessa democrática, de sorte que os princípios essenciais do discurso democrático se transformam em ameaças concretas: “a liberdade torna-se tirania, o povo se transforma em massa manipulável, o desejo de promover o progresso se converte em espírito de cruzada. A economia, o Estado e o direito deixam de ser meios destinados ao florescimento de todos e participam agora de um processo de desumanização” (Todorov, op. cit.: 197).

Que podemos fazer para superar esse cenário aparentemente irreversível? Quiçá uma resposta possa ser procurada nas palavras finais do autor, quando ele assinala que um remédio para os nossos males contemporâneos deveria consistir numa evolução das mentalidades que permitisse “recuperar o entusiasmo do projeto democrático” e tentar construir um melhor equilíbrio entre seus princípios fundamentais, progresso, povo e liberdade.

Nelson Mandela costumava dizer que, assim como a escravidão e o apartheid, a pobreza não é um acidente. É uma criação do homem e pode ser eliminada com ações dos seres humanos. Talvez as aspirações e esperanças de Todorov passem longe dos desafios que temos pela frente, mas seu diagnóstico das sociedades modernas e seu apelo incontestável à força da vontade humana são um primeiro intento válido de avançar no esforço coletivo para fazer do mundo um espaço de convivência mais plural, afetuosa e fraterna.

Fernando Marcelo de La Cuadra – Sociólogo formado pela Universidade do Chile e doutor em Ciências Sociais pela UFRRJ. È pesquisador da Rede Universitária de Pesquisadores sobre a América Latina (RUPAL) e do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO) ([email protected]).

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