Econômicos – ARISTÓTELES (RA)

ARISTÓTELES. Econômicos. Coleção. Obras Completas de Aristóteles, Volume  VII – Tomo 2. Introdução, notas e tradução do original grego e latino de Delfim F. Leão. São Paulo: Martins Fontes, 2011. Resenha de: COITINHO, Denis. Revista Archai, Brasília, n.14, p. 155-158, jan., 2015

Qual a relação adequada que deve haver  entre a ética e a economia? Uma relação de subordinação da economia à ética e, assim, os valores  morais serviriam de fundamentação para os valores econômicos ou, alternativamente, economia e  ética não teriam nada em comum, uma vez que  os juízos morais seriam puramente prescritivos  e, por isso, subjetivos e arbitrários, enquanto os  juízos econômicos seriam objetivos por descreverem um certo estado de coisas? Mas, dessa forma, não teríamos um empobrecimento da ciência  econômica? Dados os problemas atuais de crise  financeira global, pobreza, desemprego, impacto  da globalização econômica e crise ambiental, por  exemplo, não seria reducionista tomar a economia apenas como um saber técnico na determinação dos meios necessários ao enriquecimento, tais como os relacionados à produção, distribuição e consumo  dos bens e serviços? Levando em consideração uma visão de economia mais atenta a esses problemas, a relação mais adequada entre as duas disciplinas parece ser a de complementaridade, uma vez que a ética poderia auxiliar à economia na determinação do fim bom para o ser humano, enquanto que a  economia poderia auxiliar na identificação dos meios mais eficientes para a realização desse fim (Ver A. Sen, On Ethics and Economics, Blackwell, 1988, p. 2-7). Esse contexto parece evidenciar a atualidade e urgência do pensamento de Aristóteles, uma vez que ele vincula o saber econômico à ética e à política, com a especificação da vida virtuosa como àquela que deve ser vivida e a eudaimonía como o bem a ser perseguido. Mas qual é a posição aristotélica  a respeito dos meios adequados para a realização desse fim? A obra Econômicos pode nos auxiliar a responder a essa questão. E, mais ainda, penso que ela pode nos ajudar a compreender que a relação  que está sendo proposta é a de complementaridade entre a ética e a economia e não uma relação de total subordinação.

Dito isso, é com enorme satisfação que recebemos a publicação no Brasil dos Econômicos em língua portuguesa. Esta obra pertence ao  corpus aristotelicum e sua datação provável é do último  quarto do Séc. IV e o primeiro do Séc. III AC e,  provavelmente, foi escrita por algum discípulo do Liceu. Importante frisar que, até o presente, só se contava com uma tradução para o vernáculo feita por Moses Bensabat Amzalak, em 1945. Essa publicação faz parte da coleção Obras Completas de Aristóteles, que é organizada pelo Prof. António Pedro Mesquita. Obra originalmente editada pela Imprensa  Nacional – Casa da Moeda em 2004, no quadro do projeto de tradução anotada das Obras Completas de Aristóteles, promovido e coordenado pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e subsidiado pela Fundação para Ciência e a Tecnologia. A coleção está sendo adaptada para publicação no Brasil pela Editora Martins Fontes. A edição em questão conta com a tradução, introdução e notas de Delfim F.  Leão, além de apresentar um eficiente glossário dos termos gregos e latinos e índice onomástico no final.

Delfim Ferreira Leão é doutor em filologia  clássica e professor catedrático da Faculdade de  Letras, docente do Instituto de Estudos Clássicos e investigador do Centro de Estudos Clássicos e  Humanísticos da Universidade de Coimbra. É uma importante referência na área dos estudos clássicos, com inúmeras traduções do grego e latim para a  língua portuguesa. Sua tradução ao  Econômicos é segura e competente e adota o texto de Van  Groningen-Wartelle (1968), que também serviu  de guia para boa parte de seu comentário feito na introdução. Além disso, a tradução é enriquecida com esclarecedoras notas de rodapé que ora buscam elucidar o significado das palavras em grego e latim e ora contextualizá-las. Na maior parte das vezes, as notas apresentam a palavra em grego (Livros I e II) e latim (Livro III) do original, o que é muito positivo por situar o leitor na complexidade semântica do texto peripatético e mostrar a escolha de tradução que está sendo adotada. Também é  relevante frisar o acerto no uso da transliteração em caracteres latinos dos termos e expressões  gregos, o que possibilita ampliar o alcance da obra para um público não versado na língua grega, mas que pode ter um interesse especial no tema, tais como estudiosos de teoria política e econômica,  direito, história, filosofia etc. Delfim F. Leão procura destacar em sua introdução os motivos do por que a obra, em que pese seu título, não despertou muito interesse no quadro do debate em torno da economia antiga: “(…) em primeiro lugar, porque o trabalho de Xenofonte constitui um exemplo muito mais significativo da abordagem tradicional (…); em segundo, porque as reflexões feitas nos Econômicos são, apesar de tudo, bastante menos fecundas do que as apresentadas no Livro V da Ética nicomaquéia e no Livro I da Política “(p. VIII).

Em que pese a verdade da afirmação acima, sobretudo por não contar com uma teoria do valor como na Ética Nicomaquéia (EN V, 5, 1133 a 7-18), quero destacar três conceitos chaves que parecem estar pressupostos nas teses apresentadas nos  Econômicos  e que são fundamentais no  corpus aristotelicum. Em primeiro lugar, há uma reflexão teleológica, isto é, se partirá da finalidade do ente para se identificar qual é o seu dever. Aqui o conceito de função (ergon) e natureza parecem ser determinantes na administração da casa, que tem como  centro o homem e a propriedade. Em segundo lugar, a pesquisa em economia parece se fundamentar no conceito de virtude (arete), uma vez que a formação do caráter virtuoso do agente será fundamental para a eficiência econômica. Por último, a finalidade buscada na economia é a autárkeia (autossuficiência) e, assim, o parâmetro normativo da casa é o mesmo que o dos agentes e da comunidade política.

Mas, quais as teses mesmas que são apresentadas nos Econômicos ? No Livro I, já há a tentativa de um enquadramento geral da ciência econômica a partir de uma importante distinção feita entre a economia (oikonomike administração da casa) e  a política (politike administração da  pólis) que  revelará uma certa prioridade da casa frente à pólis:

A pólis resulta, por conseguinte, de um agregado  constituído por casas, terras e bens que seja autossuficiente (autarkes) e capaz de garantir o bem-estar (to eu zen). Essa realidade afigura-se evidente, pois, quando as pessoas não se mostram capazes de atingir aquele objetivo, a comunidade (koinonia) acaba por dissolver-se. (1343 a 10-14).

Assim sendo, há um espaço relevante deixado em aberto para o saber específico da administração da oik îa, que será condição de possiblidade da  política e que se concentrará na investigação dos elementos da casa, a saber, o homem e a propriedade. Nesse livro, teremos por destaque os deveres dos homens para com as mulheres e os escravos  (1343 b 8 – 1344 b 21) e, também, se destacará as funções do senhor da casa no tocante aos bens, consistindo na capacidade de adquirir e manter os bens, além da capacidade de organizar e fazer bom uso das posses (1344 b 22 – 1345 b 4). Isso parece revelar a importância da virtude para a economia. Assim, o que parece ser a tese central nesse primeiro livro é que o caráter virtuoso é peça chave da boa administração da casa. Além de um conhecimento específico ser importante para a vida boa, tal como saber as melhores técnicas de produção, armazenamento, compra e venda, o agente econômico deverá ser um agente moral, no sentido de ter um caráter virtuoso, o que lhe propiciará estabelecer as relações adequadas com os indivíduos (esposa, filhos e escravos), com o trabalho e, também, com os bens.

O papel do Livro II parece ser o de buscar  delinear um enquadramento geral da economia de uma forma mais apropriada e, para tal, estabelecerá uma relação de complementaridade entre a esfera econômica e a esfera ética em razão da importância desses dois saberes para a vida boa: “A pessoa que tiver intenção de administrar uma casa da forma  correta terá de estar familiarizada com os lugares de que vai se ocupar, ser dotada, por natureza, de boas qualidades e possuir, por vontade própria, sentido de trabalho e justiça”(1345 b 7-10). Esse livro também distingue quatro formas de economia, a saber, a real (basilike), dos sátrapas (satrapike), política (politike) e individual (idiotike), e trata de alguns dos temas centrais da economia, tais como: cunhagem da moeda, exportação, importação, controle nas despesas, impostos, produção agrícola, comércio, pecuária,  juros, entre outros temas econômicos (1345 b 20 – 1346 a 15). Também, faz uma acurada descrição de casos econômicos bem-sucedidos, apresentando pessoas e cidades que usaram os meios adequados para obter riqueza e administrá-la corretamente  (1346 b 1 – 1353 b 25).

O Livro III reforça a ideia ética já apresentada no Livro I, ressaltando os deveres e sentimentos  necessários do marido para com a esposa e filhos, principalmente, para a obtenção de uma vida bem-sucedida. Em que pese o problema da não conservação do original grego, sendo o texto conhecido por traduções latinas medievais, em especial a translatio Durandi, creio que esse livro tem um importante  papel de reforçar a ideia da necessidade da ética  para a economia. Nele se ressalta a tese da virtude ser necessária tanto para os homens quanto para  as mulheres, uma vez que ambos “são guardiões de interesses comuns”(145 7), além de defender uma divisão de trabalho entre os sexos, sendo a mulher responsável pela administração do interior da casa. Também, a fidelidade aparece como um dever central do marido à esposa em razão dela assegurar a concórdia e a harmonia, isto é, a “sintonia das vontades entre marido e mulher”na maneira de administrar uma casa (146 18).

Creio que a exposição dos principais temas que são tratados nos Econômicos mostra a relevância do pensamento do Estagirita para o atual estágio da  economia, uma vez que está no cerne da discussão contemporânea a tentativa de abordar a ciência  econômica de uma forma menos descritiva e mais prescritiva. Por fim, só resta recomendar vivamente a leitura e esperar que ela possa contribuir com a qualificação do estudo do pensamento aristotélico no Brasil, além de possibilitar o surgimento de  alguma(s) alternativa(s) aos desafios que enfrentamos enquanto coletividade.

Denis Coitinho – Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected]

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