Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988 | Daniel Arão Reis

Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense em “Ditadura e democracia no Brasil”, faz um passeio pela História política do país, dialogando sobre a gênese da ditadura e o frágil processo de construção da democracia, como se fora uma fina camada de gelo, prestes a rachar diante de momentos de impacto ou pressão social.

Seu livro discute as periodizações e memórias utilizados pelo senso comum e por historiadores sobre o período governado por generais, tecendo comentários provocadores e de aguda análise, sobre os diferentes sujeitos relacionados aos processos políticos brasileiros e seu envolvimento em uma multiplicidade de questões, muitas das quais, controversas.

A obra aborda a primeira metade da construção de ditaduras e democracias no Brasil, na primeira metade do século XX, chegando até os momentos que antecedem o Golpe de 1964, discutindo a renúncia do presidente Jânio Quadros e a tentativa de impedir a posse de seu vice-presidente e automaticamente sucessor, João Goulart, que conseguiu assumir o governo, devido a resistência de diversos setores da sociedade. As lideranças que se opuseram ao golpe de Estado contra Goulart passaram em seguida, da defesa da legalidade a ofensiva contra forças conservadoras: E então ocorreu uma notável inversão de tendências.

As lideranças reformistas que haviam construído sua força na luta pela posse de Jango e, em seguida, pelo restabelecimento do presidencialismo – em outras palavras, na defesa da ordem constituída e da legalidade – tinham evoluído, ao menos em parte, para uma linha ofensiva, alguns já contemplando o recurso à violência revolucionária. Suce diam-se discursos exaltados, ameaças veladas, uma retórica grandiloquente, sem correspondência com a força e a organização reais dos reformistas.

1 Reis considera que análises equivocadas da conjuntura social e da cultura política brasileira levaram estas lideranças a acreditar que era a hora certa para avançar, partindo ao ataque contra as forças conservadoras. Acreditavam ser momento certo para conquistas em novas frentes, “e a hora chegou, em março de 1964”.2 Em todo o livro, o autor problematiza as visões sobre o Golpe, provocando pesquisadores à pesquisa, destacando temas importantes que necessitariam de estudos mais focalizados: sobre os últimos dias de março de 1964 e os primeiros dias de abril, a resistência que não veio e o silêncio sobre estes eventos nos anos posteriores.

Ao fazer um quadro, no capítulo “A transição democrática (1979-1988)”, sobre as eleições de 1979, Reis faz uma análise sobre os Estados importantes em que o MDB venceu as eleições e todos os do Norte, aparecem como de menor importância política.

Esta afirmação é um dado concreto da política brasileira, mas cabe problematizar que a ausência de representatividade dos Estados da Amazônia serve de elemento para instrumentalizar e implementar a modernização autoritária, que se utiliza desta região apenas como um meio para alcançar determinados objetivos e nunca como um fim sem si mesmo.

Esta modernização autoritária ganhou força, sobretudo nos anos do milagre brasileiro, no governo de Emílio Garrastazu Médici, com obras de construção de hidrelétricas, rodovias e projetos de exploração mineral. No senso comum, com frequência se fala em defesa da Amazônia, mas o autoritarismo da política brasileira em relação a esta região é uma das permanências da ditadura para a democracia, pois as políticas desenvolvimentistas continuam não a incluindo, nem pensando sua autonomia e outras transamazônicas ainda são abertas por diferentes governos.

Sobre o governo do general Médici, alçado a condição de presidente popular, chegando a ser aplaudido pelo Maracanã lotado, e por uma população que comemorava os índices favoráveis da economia, Reis considera que este processo acelerou as desigualdades regionais e sociais, de forma que setores, categorias e regiões estavam pagando um preço altíssimo pela modernização do país. Entre eles, os pequenos posseiros e os proprietários que perderam sua parca terra no processo acelerado de concentração fundiária e se tornaram desterrados no próprio país – os boias-frias. As nações indígenas, escorraçadas e exterminadas nas vastas regiões do Norte e Centro-Oeste.3 As desigualdades regionais e o processo de desterro de cidadãos e povos dentro de seu próprio país são outros temas abordados em “Ditadura e democracia no Brasil” que necessitam de cada vez mais trabalhos historiográficos que aprofundem uma multiplicidade questões específicas nas diferentes regiões.

A obra analisa outros problemas deste período que podem envolver a cumplicidade de setores da sociedade brasileira, como a tortura de Estado, praticada pela ditadura.

Reis analisa o processo de construção de memórias após a ditadura que responsabilizou exclusivamente os militares pela tortura, como uma estratégia para inocentar e absolver a sociedade civil e construir um novo consenso nacional.

Não se trata de anacronismo, analisar os projetos da ditadura, e suas posteriores rupturas e permanências. Reis avança em um terreno sensível da historiografia, ao colocar lado a lado, como em um quadro, períodos aparentemente distintos para apontar as contradições do que se convencionou denominar democracia para opor a ditadura.

Ao analisar a periodização e os títulos que recebeu, aponta alguns problemas, como denominar os governos dos generais de ditadura militar. Esta denominação surgida na crítica das oposições, serviu de mote para justificar todos os civis individualmente e principalmente em grupos que apoiaram e/ou participaram ativamente do Golpe de 1964 e dos governos dos generais. Reis não nega que os militares estavam a frente do processo, mas ignorar os civis que participaram do regime e contribuíram de modo fundamental para consolidação da ditadura é uma forma de ocultar das memórias nacionais a participação de pessoas e organizações de diversos setores que até hoje possuem destaque na cena nacional.

Outro problema da periodização apontado é a construção histórica dos recortes cronológicos que estabelecem o fim da ditadura. O autor argumenta que a ditadura foi implementada com a subtração dos direitos civis e encerrada em 1979, com a retirada dos atos institucionais e progressiva restauração da ordem democrática.

De 1979 até 1988 seria o período da transição democrática em que se gestaram as alternativas para a afirmação da democracia e no qual a sociedade partiu para os embates sobre a superação do regime e a construção de uma nova ordem. Mas a ordem não seria absolutamente nova, como também a República e o sindicalismo. Novo sindicalismo, Nova República, para o autor, são termos que buscam apontar fortes rupturas e ocultar as contradições presentes na legislação vigente atualmente e na construção do período posterior a Constituição de 1988, contudo, na prática, não se rompeu rigidamente com o regime anterior.

Os esquecimentos sobre a participação de civis na ditadura permitem à sociedade se unir em torno de personagens e democratas de última hora, ignorando os pactos e cumplicidades de muitos destes com o período que agora fazem questão de demonizar e apartar-se como se fora algo totalmente contrário as suas atividades. Em diversos momentos do livro, Reis afirma que a ditadura é fruto de um processo histórico, para lembrar que foi a sociedade quem a construiu. Este período não surgiu unilateralmente da mente de alguns militares como se passou a divulgar posteriormente, mas foi tecido por diversos setores que participaram ativamente de todo o processo e pela conjuntura histórica.

O livro faz um importante percurso analítico pelo processo de construção da ditadura e da democracia no Brasil. O autor aponta lacunas na historiografia, desafiando outros pesquisadores a aprofundar cada vez mais estudos sobre temas como os momentos em que ocorreu o Golpe de 1964, a não resistência do III Exército e das esquerdas, As Marchas pela Família com Deus e pela Liberdade e a modernização autoritária.

Como percurso e desafio, é uma obra para iniciados e também iniciantes que buscam conhecer mais sobre uma temática fundamental à compreensão do Brasil República.

1. REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 38.

2. Ibidem, p. 39.

3. REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil, Op. cit. , p. 90.

Resenhista


César Augusto Martins de Souza – Doutor e Pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de Altamira. Universidade Federal do Pará, Campus de Altamira Rua Coronel José Porfírio, 2515 Altamira – Pará – Brasil. CEP: 68370-000 E-mail : [email protected].



Referências desta resenha

REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. Resenha de: SOUZA, César Augusto Martins de. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 8, n. 2, jul.-dez., 2015.

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