As Ciências Sociais na educação médica – BARROS (TES)

BARROS, Nelson Filice de. As Ciências Sociais na educação médica. São Paulo: Hucitec, 1. ed., 2016. 185pp. Resenha de: ÁVILA E SILVA, Lidiane Mara de; FERREIRA, Jaqueline Teresinha. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.2, mai./ago. 2017

Neste livro, Nelson Filice de Barros faz uma análise das perspectivas e desafios ao ensino das Ciências Sociais na educação médica. Inicialmente, o autor resgata as bases sobre as quais se desenvolveu o campo das Ciências Sociais em Saúde no Brasil. Marcada pelo pensamento marxista, por estudiosos da Escola de Chicago nos Estados Unidos e por escolas francesas, a educação médica teve na década de 1960 a inserção de cientistas sociais nas escolas médicas diante da insuficiência do modelo médico-privatista e do cenário social que posteriormente culminou com a Reforma Sanitária Brasileira.

Os estudos sobre o tema, como o de Sergio Arouca e Cecília Donnângelo, analisaram esse contexto e são ainda hoje referências ao pensamento social em saúde. Para o autor, esse último estudo, ao analisar o trabalho médico em sua trama técnica e política, abriu um campo de estudos sobre a educação médica, medicalização e relação médico-paciente, dando corpo à sociologia na saúde brasileira.

No estudo de Nelson Filice de Barros, as bases conceituais se pautaram em análises macrossociológicas nos anos 1970, com caráter mais político do que científico, corroborando a crítica ao modelo vigente. Já a partir de 1990 e 2000, os estudos se concentraram em compreensões microssociológicas do processo saúde e doença, com a incorporação de estudos na linha do interacionismo simbólico, tendo como representantes Erving Goffman e Howard Becker.

No segundo capítulo, o autor analisa o conceito de tipo ideal em Max Weber e o utiliza para pensar as Ciências Sociais no campo da saúde, mais precisamente em como tem sido a inserção de cientistas sociais como antropólogos e cientistas políticos nos cursos da área de saúde no Brasil, incluindo graduação, pós-graduação e gestão em saúde.

Para ele, quando nos referimos à quantidade e qualidade do conhecimento produzido, há legitimidade mas uma ‘fraca credencial’, acompanhada de críticas que vão sendo adensadas ao longo da discussão. Sua experiência como docente do curso de medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) permitiu compreender algumas delas.

Nos estudos revisados, por exemplo, o autor encontra análises sobre a reformulação do ensino médico, que destacam a necessidade de formar profissionais atentos às questões sociais, capazes de “compreender, responsabilizar-se e resolver a maior parte das necessidades e demandas de saúde dos indivíduos e das populações; além de dirigir e organizar equipes de saúde nos diferentes níveis em que se desenvolve o exercício profissional” (p. 50). Assim, com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de medicina, o autor organiza um tipo ideal de currículo, dando enfoque às ações no campo da saúde e suas interações; conceito de cultura associado aos símbolos, valores e normas de usuários e profissionais de saúde; relações de poder e políticas de saúde. Essas questões permeiam o aluno como sujeito da aprendizagem e o professor como facilitador, rumo a uma emancipação crítica e à capacidade de atuar com usuários e outros profissionais.

No penúltimo capítulo, o autor analisa percepções de docentes e discentes sobre o ensino das Ciências Sociais na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Por meio de um questionário eletrônico, orientado pelo paradigma construtivista, foi possível colher informações que possibilitaram o adensamento do tema em questão que “pressupõe a forte dialética interacional entre estruturas e agenciamentos cognitivo, afetivo e cultural” (p. 71).

As percepções colocaram em evidência a invisibilidade das Ciências Sociais nesse contexto e a predominância do que ele considera uma contradição: os entrevistados reconhecem a importância das disciplinas na área para a formação, mas pouca valorização dos profissionais de Ciências Sociais e desconhecem a carga horária ou quando as disciplinas são ofertadas. Alguns temas possuem maior visibilidade, como a relação médico-paciente, o processo saúde-doença-cuidado, o desenvolvimento de atividades práticas, o cuidado integral em saúde.

No cerne dessa problemática está certamente a distinção epistemológica entre as disciplinas das Ciências Sociais e aquelas advindas do saber biomédico. O autor questiona como seria possível responder críticas em relação aos temas que partem da necessidade de compreensão do processo saúde e doença, de uma abordagem pautada na integralidade e no entendimento dos determinantes sociais da saúde, diante de uma formação predominantemente biomédica e intervencionista.

Em suas palavras, “trata-se de uma dificuldade paradigmática, pois a estrutura fundadora das Ciências Sociais opera com escolas de pensamento distintas e complementares de forma a não serem excluídas e assim perdurarem. Já o paradigma biomédico, em geral, opera com a lógica exclusiva, onde uma nova técnica, procedimento ou produto deve substituir o anterior” (p. 88).

Não obstante, para os alunos entrevistados no estudo há uma grande dificuldade em articular os conteúdos das disciplinas acima mencionadas com a visão biomédica e a prática. O autor dá ênfase à noção de interdisciplinaridade e complementaridade como via de integração diante das barreiras epistemológicas, ressaltando que precisamos formar profissionais com maior capacidade de interatuar, respeitando as diferenças e atribuindo igual valor aos diferentes saberes.

No ultimo capítulo são apresentados os resultados de uma revisão sistemática da literatura sobre o ensino de Ciências Sociais na medicina entre os anos 2001 e 2011. Trata-se de um capítulo mais denso que analisa o que foi discutido na literatura sobre o tema nesse período.

Para o autor, entre os principais desafios da formação médica para as Ciências Sociais está a falta de compreensão dos processos saúde doença e de sua complexidade, que podem ter resultados negativos como erros médicos e intervenções desnecessárias. Tal fato decorre de um reducionismo inerente ao modelo biomédico que se reflete na assistência e no cuidado, uma vez que valoriza o cuidado individual em um campo que demanda interação. É particularmente relevante no contexto do SUS, onde os princípios, dentre outros, são a integralidade e a universalidade.

Nelson Filice de Barros destaca que os alunos do curso de medicina somente ‘incorporarão’ os conteúdos das Ciências Sociais quando estiverem atuando como profissionais. Não são capazes de articular criticamente saberes em complementaridade com disciplinas de conhecimento biomédico, uma vez que os conceitos de Ciências Sociais põem em conflito as suas próprias identidades culturais.

Contudo, destaca a noção de responsabilidade social e a ética profissional, cada vez mais presente nas escolas médicas, que têm dado maior importância aos contextos sociais, às comunidades locais, estimulando o trabalho em equipe e a desmistificação da profissão como benevolência.

Sem o intuito de fomentar dicotomias entre disciplinas, Nelson Filice de Barros se preocupa em ensinar articulando sempre o saber à prática e buscando formas de desconstruir o ‘preconceito’ em relação ao conteúdo, sem deixar de lado a devida reflexão conceitual sobre a qual foram social e historicamente construídos. Trata-se, para o autor, de um campo fecundo onde se pulverizam conceitos que precisam ser desnaturalizados, reaprendidos e reincorporados à formação médica para que tenhamos profissionais que compreendam que as dimensões biológica e social não se separam.

As Ciências Sociais na educação médica é um estudo que interessa a cientistas sociais e sanitaristas, mas também a médicos, professores e a todos os profissionais da área de saúde. Nas palavras de Barros, “(…) enquanto para a maior parte dos que operam com a lógica médica o trabalho dos futuros médicos será curar doenças, para os que operam na ordem social o trabalho será de cuidar de pessoas, garantindo sua segurança e participação na tomada de decisões” (p. 146).

Ao analisar a inserção do pensamento social na saúde no Brasil, o autor resgata conceitos e ideais como os da fala acima que ainda encontram barreiras para serem absorvidos e incorporados na atenção à saúde no Brasil, diante de um modelo que se percebe cada vez mais insuficiente. Sua intenção não é contrapor esses modelos, mas reforçar sua complementaridade rumo à interdisciplinaridade, ultrapassando fronteiras a fim de que os saberes se interpenetrem.

Lidiane Mara de Ávila e SilvaUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

Jaqueline Teresinha Ferreira – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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