Esperança Equilibrista. Resistência feminina à ditadura militar no Brasil – JOFFILY (RTA)

JOFFILY, Olivia Rangel. Esperança Equilibrista. Resistência feminina à ditadura militar no Brasil. Florianópolis: Insular, 2016. Resenha de: SARAIVA, Daniel Lopes. Mulheres do Brasil: as diversas formas da resistência feminina durante a ditadura militar no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.22, p.494-500, set./dez., 2017.

Nos últimos anos, temos visto um aumento considerável de trabalhos a respeito do período ditatorial no Brasil (1964-1985). Entretanto, a maioria deles é centrada em figuras com destaque político ou lideranças da época – poucos são focados na participação feminina na resistência. Portanto, o livro da jornalista, mestra e doutora em Sociologia pela PUC Olivia Rangel Joffily, Esperança Equilibrista, ajuda a preencher uma lacuna nas pesquisas da área.

A autora aborda a trajetória de 18 mulheres que, de diversas formas, participaram da resistência ao governo. Olivia Rangel Joffily atuou contra o regime militar e se exilou na Albânia, onde trabalhou na Rádio Tirana, redigindo e apresentando um programa sobre as notícias do Brasil. Mesmo com a proximidade com as entrevistadas e com o tema, a jornalista destaca o esforço metodológico para se distanciar do objeto e ser aquela que realiza a pesquisa. A autora faz esse movimento a partir da epistemologia feminista, como observa Saffioti (1991, 1992), não desprezando a emoção como via de conhecimento. Ao mesmo tempo deixa claro que não sobrepõe a emoção à razão, mas busca uma alternativa epistemológica que reflita a interação e entre a maneira pela qual as pessoas entendem o mundo e se situam nele (p. 17).

O livro, dividido em cinco capítulos, desenvolve uma narrativa que faz o leitor questionar privilégios e repensar a história por meio de trajetórias consideradas por alguns como secundárias. No primeiro capítulo, a autora abordou a busca de uma história pelo ângulo do oprimido. Questões como ética e história do termo são desenvolvidas de forma que o leitor perceba que há de se buscar uma história além da oficial ou além da história de um grupo com privilégios. O personagem referencial na história é o homem branco, heterossexual, de classe média ou alta, central na maioria das narrativas e pesquisas. Nas palavras da autora, ela buscou amplificar a fala das mulheres, já que estão quase sempre ausentes nos relatos da história, incluindo-se a história da resistência militar (p. 26).

Seguindo a narrativa, a pesquisadora trabalhou com as ferramentas metodológicas e teóricas da pesquisa. Ela trata o gênero como categoria histórica de análise e sua abordagem em relação aos relatos de vida. Ao elogiar as pesquisas sobre as origens da exploração-dominação, no sentido de buscar fundamento no biológico, a autora já mostrava o que iria abordar mais adiante: a forma pela qual os militantes do sexo masculino, em sua maioria, lidavam com as companheiras mulheres – muitas vezes relegando suas funções aos bastidores ou mostrando resistência ao poder das mulheres quando essas assumiam posições de destaque (p. 43). Outro ponto central no trabalho foram os relatos de vida que possibilitaram que as mulheres rompessem um bloqueio que muitas vezes parecia invisível e transformava a experiência em realidade (p. 57).

O terceiro capítulo contextualiza o leitor sobre o período em que a ditadura militar esteve vigente no Brasil, de forma sucinta, objetiva e usando pesquisas sobre a época como referência. Esta parte do livro possibilita entender como o golpe foi aplicado no país, seus antecedentes, suas ondas de repressão, o momento de maior recrudescimento do regime militar e de que forma isso afetou a sociedade. Além disso, mostra de que maneira os ditadores militares foram “abrindo” os caminhos para o retorno da democracia ao Brasil. Esta parte é essencial para que, mais adiante, seja possível compreender a trajetória das 18 entrevistadas.

Na quarta parte do livro, os movimentos que promoviam a resistência contra o governo ditatorial são o mote central: o movimento estudantil; o movimento operário e sindical; e a luta armada. Joffily destaca de que forma esses movimentos atuaram na resistência. Um aspecto central é que a autora não focaliza sua obra no eixo Rio-São Paulo. Em diversos momentos foram citados outros estados da federação e suas ações, além de acontecimentos em relação à resistência. Ao abordar a luta armada, a socióloga nomeia as principais organizações guerrilheiras: ALN, MN-8, VPR, VAR-Palmares, entre outras. Essas organizações realizaram ações armadas, como sequestros e assaltos, atraindo uma reação maior da repressão. O objetivo dessas ações era financiar a resistência e conseguir a liberdade de combatentes presos em troca dos sequestrados. A guerrilha urbana, entretanto, entrou em declínio conforme suas lideranças foram presas, torturadas e assassinadas pela repressão, principalmente no governo do general Médici. Foi um momento dramático para a esquerda armada, pois as organizações políticas, fragmentadas e divididas, não conseguiam recrutar novos militantes (p. 92). Ao fim do capítulo foi ressaltada a participação das mulheres nessas ações de resistência. Destacando as diversas mulheres que foram assassinadas durante este período, e a porcentagem de mulheres que participaram da resistência no Araguaia, no total de 20%, fica evidente que mesmo que a guerrilha tenha sido predominantemente masculina, houve um número considerável de mulheres presentes em todos os grupos.

A última parte do livro é, talvez, a de maior destaque. Ao revisitar a memória dessas mulheres, a pesquisadora possibilitou que elas repensassem suas trajetórias e percebessem a importância que tiveram em suas caminhadas contra o governo imposto. Os depoimentos, além de fornecerem sua forma de resistência, ofereceram algumas contradições que essas mulheres enfrentaram em sua militância, tanto no interior das organizações quanto em todos os outros aspectos de sua participação política (p. 98).

A autora enumera cinco formas de resistência e, como frisado por ela, muitas vezes essas formas se entrecruzavam e uma só resistente participava de várias delas. A primeira era de mães, filhas e esposas que entraram na luta pelos caminhos do coração, apoiando seus familiares. A segunda, de militantes que decidiram atuar nos partidos e entidades, introduzindo a duras penas o feminino na estrutura das organizações clandestinas. O terceiro tipo, das exiladas que foram obrigadas a deixar o país pra garantir sua integridade física e mental – seja pela perseguição, seja por acompanharem os companheiros. A quarta forma é das mulheres que foram presas e torturadas, tendo seus corpos transformados em campos de batalhas. E, por último, das guerrilheiras urbanas e rurais que ousaram pegar em armas e desafiar a ira dos poderosos (p. 100).

Dessa forma, a autora consegue englobar as diferentes trajetórias das 18 entrevistadas. Como a de Carmela, que tinha filhos que participavam do Comando de Libertação Nacional (Colina), que começou a ler e lutar pela liberdade por influência deles e foi torturada na mesma época que seus filhos. Ou a de Nice, que participou da resistência em função de amor e preocupação com a filha, militante estudantil (p. 106-107).

Há também as mulheres que chegaram a presidir partidos e organizações, como Eleonora Menicucci, que foi presa e torturada. Mesmo com uma porcentagem feminina considerável em seus quadros, as organizações de esquerda tiveram dificuldade em assimilar as mudanças que aconteciam na época, especificamente no que se refere às relações entre homens e mulheres. Mesmo pregando o inverso, muitas vezes as mulheres eram relegadas a posições secundárias e, quando no poder, enfrentavam a resistência masculina ao darem ordens (p. 120).

As mulheres que eram levadas presas sofriam não apenas com a tortura, mas também com o medo do abuso sexual. Os torturadores, em sua maioria homens, aproveitavam por vezes a situação de vulnerabilidade delas naquele momento. Muitas relataram que tinham as roupas rasgadas, levavam choques em suas partes íntimas, tinham sua moral questionada, eram sempre ligadas à proximidade de um homem e, dificilmente, consideradas líderes. Também tinham seus entes queridos usados nas torturas: diversos foram os relatos das presas cuja família era ameaçada durante os interrogatórios ou cujos filhos e pais eram levados para assistir às sessões de tortura.

Os relatos se aproximam à medida que as ex-presas falavam sobre o sofrimento. Gilse Cosenza afirma que “com a gente que é mulher, eles usam, além da tortura normal para os homens, a afetividade e a questão sexual”. Eleonora Menicucci diz que “fui torturada setenta dias, não fui violentada sexualmente, não fui estuprada, mas fui violentada porque colocaram um pau de vassoura com fio amarrado na minha vagina e deram choque”. Amelinha conta que “toda mulher ali na tortura era puta, amante de todas pessoas da organização. Nunca fui torturada com roupa”(pp. 128-135). Esses três depoimentos são alguns dos que mostram de que maneira os torturadores usavam a questão do gênero nas torturas contra as presas. Seja ameaçando com o abuso e praticando, seja ameaçando os familiares ou levando-os para as sessões de tortura. Essas mulheres foram brutalmente torturadas em sessões que destruíam não apenas seu físico, mas também o psicológico. Porém, mesmo com a vulnerabilidade do corpo feminino, as presas resistiam bravamente aos interrogatórios e chegavam a surpreender inclusive os torturadores com tamanha força e resistência.

As mulheres, mesmo que não fossem maioria em cargos de destaque na resistência, estiveram presentes na luta: tanto na luta armada quanto na resistência em partidos ou em passeatas, sendo ativas no combate contra a ditadura militar impingida no Brasil. A luta feminina acontecia não apenas contra o governo ditatorial, mas, muitas vezes, dentro dos movimentos e partidos, já que a ocupação da mulher em locais de destaque não era bem vista por parte dos setores da esquerda.

Fica perceptível que o livro traça de forma objetiva um panorama do contexto histórico que o Brasil viveu entre 1964 e 1985. A obra possibilita, desse modo, que o leitor entenda por que a figura dessas mulheres é tantas vezes deixada em segundo plano, explicando didaticamente que a história tem seus personagens centrais, e as mulheres, os negros e os gays dificilmente fazem parte desse centro.

Para terminar, cito o nome das 18 entrevistadas: Dulce Maia, Edira Amazonas, Eleonora Menicucci, Eunice Gitahy, Guiomar Lopes, Leda Gitahy, Loreta Valadares, Maria Amélia Teles (Amelinha), Maria Auxiliadora Arantes, Maria Liège dos Santos Rocha, Sandra de Negraes Brisolla, Telma Lucena, Tereza Costa Rego, Gilse Consenza, Criméia Alice Schimidt de Almeida, Vera Silvia Magalhaes, Carmela Pezzuti e Clarice Hezog. Essas mulheres ousaram não apenas enfrentar a ditadura, mas também enfrentar e vasculhar suas memórias, expor suas dores, angústias e lembranças mais íntimas para que possamos lembrar sempre do que aconteceu durante a ditadura no Brasil.

Referências

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Novas Perspectivas Metodológicas de Investigação nas Relações de Gênero. In: MORAES SILVA, Maria Aparecida de (Org.). Mulher em seis tempos. Araraquara: Unesp, 1991.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O Poder do Macho. São Paulo: Moderna, 1992.

JOFFILY, Olivia Rangel. Esperança Equilibrista. Resistência feminina à ditadura militar no Brasil. Florianópolis: Insular, 2016.

Daniel Lopes Saraiva – Doutorando em História na Universidade do Estado de Santa Catariana (UDESC). Brasil. E-mail: [email protected].

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