História & outras eróticas | Marcos Antonio de Menezes, Martha S. Santos e Robson Pereira da Silva

Historia e outras eroticas3 História & outras eróticas
Orestes perseguido por las Furias, de William-Adolphe Bouguereau (1862) | Domínio público |

SANTOS M Historia e outras eroticas 2 História & outras eróticasNinguém vai poder, querer nos dizer como amar
Um novo tempo há de vencer
Pra que a gente possa florescer
E, baby, amar, amar, sem temer
Eles não vão vencer
– Johnny Hooker

Apesar dos constates ataques que a educação e a ciência têm sofrido no Brasil, principalmente nos últimos anos, por conta da gestão genocida empreendida por Jair Bolsonaro bem como por todos os outros ignóbeis que se somam a ele, ainda assim é possível notar uma resistência por parte daqueles que não aceitam abaixar a guarda e continuam firmes na produção de um conhecimento que busca reflexões contínuas da sociedade atual e da pluralidade de indivíduos nela inseridos.

Desse desejo de resistir é que nasceu História e outras eróticas (2020), organizado por Martha S. Santos, Marcos Antonio de Menezes e Robson Pereira da Silva. A obra mostra a que veio logo em suas primeiras páginas, ao dar as boas-vindas aos leitores com uma citação do sociólogo inglês Anthony Giddens que, dentre outros assuntos, investiga as transformações contemporâneas e seus reflexos nas relações amorosas e eróticas, e também com um trecho do single God Control (2019), de Madonna, que em sua música faz um manifesto contra o porte de armas nos Estados Unidos e relembra no clipe da canção o massacre [2] ocorrido em uma boate LGBT, no mesmo país.

A coletânea de textos que se seguem é inaugurada por Tamsin Spargo, que no primeiro capítulo do livro tece considerações abarcando sexo, gênero e sexualidade, partindo principalmente dessas temáticas para promover reflexões que vão desde o tratamento misógino que observou em ambientes de trabalho dos quais fez parte até a maneira como a pornografia colabora para as representações sexualizadas de corpos hiperbólicos. Em seu texto, Spargo dialoga em grande medida com o filósofo Michel Foucault, umas das maiores referências no que diz respeito as temáticas de sexualidade e educação, bem como a relação destes com o poder. Ademais, a autora ainda relembra a publicação de seu ensaio Foucault e a teoria queer (1999), onde ela explora o modo como o pensamento do filósofo teria refletido na construção e entendimento da referida teoria.

Na sequência, Luisa Consuelo Soler Lizarazo reflete sobre as fronteiras sexuais que ainda perduram paralelamente a diversidade de gênero, sobretudo àquelas observadas em sociedades transculturais, ao mesmo tempo em que problematiza a ordem moral que continuamente busca impor um modelo de família funcional apenas à sistemas patriarcais e capitalistas. A autora faz um levantamento de como as questões relacionadas ao assunto foram observadas ao longo dos séculos e evidencia a importância do direito de se exercer a possibilidade de escolha de cada sujeito.

Ao longo do tempo tem-se observando a História e a ficção protagonizando discussões acaloradas que resultaram em mudanças e reestruturações no fazer historiográfico. Seguindo nessa linha de raciocínio, Peterson José de Oliveira constrói seu texto a partir da relação dos historiadores com a verdade e a ficção e traz para o leitor a novela, um gênero um tanto quanto subestimado e ainda pouco estudado. Para suas análises, Oliveira concentra seu trabalho principalmente a partir do uso da montagem e da polifonia, duas formas narrativas essenciais para a construção de O mezz da gripe (1998) de Valêncio Xavier que, por meio maneira de sua narrativa, mescla ficção e realidade e, por conseguinte, reflete sobre os efeitos de verdade presentes na novela.

No capítulo seguinte a autora Lúcia R. V. Romano promove reflexões importantes a respeito das intersecções entre as artes cênicas e o feminismo, elucidando a importância da história para a construção de um diálogo entre os dois campos e pontuando a colaboração cada vez mais notável da historiografia para os estudos feministas. Em seu texto, Romano deixa claro que muitas são as questões atuais envolvendo a história, o teatro e o pensamento feminista e abre espaço para se pensar o artivismo feminista, com ênfase no Madeirite Rosa, um coletivo teatral paulistano.

Outra linguagem artística colocada em pauta ao longo da obra História e outras eróticas (2020) é o cinema, abordado no texto de Grace Campos Costa e Lays da Cruz Capelozi, que trazem para os leitores um debate precioso sobre a representação feminina a partir da filmografia de Catherine Breillat. Em um texto bastante didático e rico em imagens, as autoras apresentam uma discussão que vai de encontro a um tabu ainda muito atual: o prazer feminino. Como objeto de estudo é analisado o filme Romance X (1999) e ao longo do texto, além de conhecer um pouco mais sobre o cinema de Breillat também é possível compreender a forma como ela se posiciona antagonicamente aos estereótipos que ainda são observados no que diz respeito ao desejo feminino em representações cinematográficas.

No capítulo seguinte, Ana Lorym Soares faz um interessante paralelo entre a realidade a qual temos vivido e a distopia, lançando seu olhar para o romance O conto da Aia (1939), de Margaret Atwood. A autora explica que em outras obras de distopia o que se observa é um padrão onde os personagens principais são, na grande maioria das vezes, homens, de modo que no romance estudado, Margaret Atwood inova ao trazer uma mulher como personagem central da obra, fugindo dos padrões observado neste gênero da literatura. Desse modo, além de importantes reflexões a respeito da escrita feminina de Atwood, direito das mulheres e seus corpos enquanto campo de poder, Ana Lorym Soares ainda deixa evidente a importância de um olhar atento a realidade, a fim de que as distopias permaneçam no campo de conhecimento da ficção.

Também no campo da literatura, Marcos Antonio de Menezes, constrói seu texto a partir de romances e poesias, sendo que nas páginas que se seguem os leitores serão levados a refletir sobre a(s) representações do(s) feminino(s) na obra de Charles Baudelaire, levando em consideração questões postas em pauta pelo movimento feminista atualmente. Indo contra a grande maioria das produções literárias do século XIX, tecidas a partir da ótica masculina e burguesa, os leitores poderão conhecer um pouco mais sobre a estética, a recepção e as temáticas abordadas nos enredos de grandes obras, como As flores do mal (1857), de Baudeleire e Madamy Bovary (1856), de Gustave Flaubert.

No capítulo seguinte, Robson Pereira da Silva, apresenta-nos ao subversivo Hélio Oiticia, um dos artistas mais completos e importantes da arte brasileira. No texto é apresentada e discutida a antiarte e a arte de subversão de Oiticica nos anos de 1960 e 1970, onde através da performance o mesmo combatia todo e qualquer autoritarismo institucionalizado. O texto é essencial para compreender as configurações do corpo como objeto inventivo bem como do uso da contraviolência de Hélio Oiticica, que se valia da arte para combater a repressão vivida no contexto da ditadura militar no Brasil. O trabalho de ativistas/artivistas negros queer no estado da Bahia é preconizado por meio do texto de Tanya Saunders, que a partir do seu estudo relacionado a discussões de gênero, raça e sexualidade debate de que maneira se tem observado a construção crescente do “não humano”. No capítulo, o retrocesso vivido atualmente no Brasil é colocado em xeque e debatido através da ótica da colonialidade, do afrofuturismo e da necropolítica, que de maneira cada vez mais pungente e perigosa busca ditar quem têm ou não importância em sociedade.

No capítulo seguinte, Martha S. Santos toca com coragem em uma ferida ainda aberta, especialmente, ao problematizar a importância da compreensão da instituição da escravidão no Brasil a fim de que se entenda de uma vez por todas os reflexos desta para a criação e manutenção de privilégios desfrutados por determinadas classes sociais em nosso país. Em seu texto, a autora busca fazer um rápido balanço historiográfico dos estudos ligados a escravidão nas últimas quatro décadas no Brasil além de apresentar seus estudos, concentrados no interior do Ceará, e dialogar intrinsicamente com os estudos de gênero ao refletir sobre a maneira pela qual mulheres e crianças aparecem inseridas no processo da escravidão.

Com um olhar voltado também para a escravidão, Murilo Borges da Silva dialoga com o texto anterior ao abordar os relatos de viajantes no estado de Goiás, bem como as contribuições destes para a produção de corpos femininos negros e representações do feminino muitas vezes equivocadas.

Em seu texto, Silva trabalha com os relatos de Saint-Hilaire (1975) e Johann Emanuel Pohl (1976) para verificar como as mulheres negras aparecem nestes relatos, através dos quais nota-se que há uma tentativa de silenciamento por parte dos viajantes em questão, que não raras vezes, faziam de seus escritos um lugar seletivo, tornando visível determinados fatos e invisíveis outros, da maneira como lhes era favorável e de acordo com aquilo que consideravam necessário.

Logo em seguida os leitores são postos frente a questões direcionadas principalmente aqueles que se dedicam a produção de conhecimento, pois Fábio Henrique Lopes lança um problema grave que diz respeito a maneira como muitas vezes utilizam-se de pessoas transsexuais e de outras identidades de gênero apenas como objetos de estudo. Partindo dessa colocação, o autor torna possível um olhar mais atento ao lugar de fala que cabe a nós, pesquisadores. Aqui, fica claro que é necessário que haja um repensar do fazer historiográfico e epistemológico de modo a não ferir o outro e deixa a todos uma breve, mas, importante advertência: “incluir, excluindo é fácil […]” (LOPES, 2020, p. 276).

O próximo capítulo é um nó na garganta, daqueles que a cada palavra lida cresce um pouco mais, pois logo de cara, Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Diego Aparecido Cafola lançam alguns fatos que não podem serem ignorados: a heterossexualidade e a cisgeneridade compulsória tem acarretado na invisibilização e precarização da existência da população LGBTQI+ e, consequentemente, na sua eliminação física. Os autores afirmam que o conhecimento produzido na academia não tem ultrapassado seus muros e que os reflexos dos discursos construídos em cima de conservadorismos podem ser notados cada vez mais através da violência com que a população LGBTQI+ tem sido alvo constante. Em um texto tocante, os autores colocam em xeque a noção atual de humanidade e questionam o processo de exclusão de grupos marcados pela diferença, ou melhor, que as maiorias silenciadas têm sofrido.

No texto que se segue as problemáticas levantadas dialogam com estas do texto anterior, porém, são levadas para o espaço escolar ao demonstrar como a escola tem atuando como agente da normatividade. Neste capítulo, Aguinaldo Rodrigues Gomes problematiza a hierarquização e o silenciamento de corpos dissidentes por meio do discurso falacioso da “ideologia de gênero” difundida, inclusive, como uma das principais bandeiras levantadas e defendidas durante a eleição de Jair Bolsonaro. O autor reitera os ataques aos quais a educação tem sofrido no campo dos estudos de gênero e da educação sexual, além de expor o cerceamento de professores, aos quais os conservadores e reacionários tentam colocar em uma redoma cujas grades é a ignorância e o preconceito.

Por fim, o último capítulo traz aos leitores uma “greve selvagem” que resultou na derrota do capitalismo em uma luta protagonizada por estudantes e trabalhadores. Em seu texto, João Alberto da Costa Pinto aborda a Revolução do Maio de 1968, a mais importante revolução anticapitalista do século XX. Sua análise parte da trajetória política e teórica de Raoul Vaneigem e se expande para outros militantes que fizeram parte do movimento que ficou conhecido como Internacional Situacionista (IS). De forma clara, Pinto explana o que levou dez milhões de trabalhadores e estudantes a frearem o capitalismo na França de forma totalmente espontânea e auto-organizada.

Dessa feita, levando em consideração o cenário hostil em que a produção de conhecimento científico se encontra em discrédito, como política de governo, bem como os ataques que as populações negras, índigenas, de mulheres e LGBTQI+, sobretudo àqueles sujeitos e sujeitas marcadas pela pobreza e precariedade da vida e do mundo do trabalho tem sofrido cotidianamente com as políticas de morte e indiferença, conclui-se que a coletânea de textos reunida em História e outras eróticas (2020) além de sinônimo de resistência é também um contributo a produção intelectual que se preocupa em pensar, refletir e problematizar os campos de estudo da política, raça, femininos e performatividades de gênero. Nas páginas desta obra, os leitores irão encontrar questionamentos relevantes acerca de temas atuais e necessários, fazendo com que a obra se configure como um alento a defesa dos direitos humanos, revestido de esperança, força e coragem para continuar na luta por igualdade.

Nota

2. O massacre na boate “Pulse” aconteceu em Orlando, no dia 12 de junho de 2016. Na data, Omar Mateen abriu fogo dentro do local e assassinou quarenta e nove pessoas e deixou cinquenta e três gravemente feridas.

LOPES, Fábio Henrique. Efeitos de uma experimentação político-Historiográfica com travestis da primeira geração. Rio de janeiro. In: MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.

MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.

Natália Peres Carvalho – Graduada em História pela Universidade Federal de Goiás e mestranda no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de Goiás. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9841094387536865. E-mail: nperescarvalho@gmail.com.


MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: CARVALHO, Natália Peres. História & outras eróticas (2020) – Uma obra urgente e necessária. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.184-188, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

Resenha Crítica, Aracaju & Crato, n.4, 1 jul., 2021.

Rio Vaza Barris Aracaju 26 jun 2021 IF 2 História & outras eróticas

 


Edição n.4 (2021)

Apresentação

Nesta edição, disponibilizamos as aquisições do período 01 a 30 de junho de 2021. Destacamos resenhas sobre livros de história das mulheres, histórias do erotismo, do colonialismo em Moçambique e dos governos progressistas na América Latina. Também reblogamos resenha em periódico espanhol que avalia o escrito de autor brasileiro sobre Epistemologia Histórica.

Necessariamente, o tema da pandemia continua a pautar dossiês de modo objetivo ou como instrumento de contextualização.

Das novas revistas incorporadas ao acervo, destacamos dois periódicos: Filosofia e História da Biologia (USP/2020) e Palavras ABEHrtas (ABEH/2021), revista especializada em Ensino de História.

Aproveitamos para anunciar a finalização da captura dos dossiês de 120 revistas brasileiras de História. Cerca de 2100 textos de apresentação, linkados aos seus seus respectivos artigos, estão à disposição, via busca livre ou consulta parametrizada no índice de objetos de dossiê.

O trabalho de captura de resenhas continua. Hoje, acumulamos cerca de 3200 textos produzidos nos últimos 40 anos, já disponíveis para a consulta no índice de  objetos de resenha,

Saúde e trabalho para todos nós!

Itamar Freitas e Jane Semeão (Editores)


Resenhas


Dossiês


Sumários


Revistas recentemente incorporadas ao acervo

 


Conheça a totalidade do acervo

Para adequado uso do espaço na página inicial deste blog, destacamos até  treze resenhas, cinco dossiês, cinco sumários correntes e cinco periódicos recentemente incorporados ao acervo em cada edição mensal do Resenha Crítica.

A quantidade de textos, porém, se altera à medida que incorporamos novos periódicos, retroativamente, aos nossos bancos de dados.

Para conhecer a totalidade das aquisições de resenhas, apresentações de dossiês e sumários, publicados originalmente no período 1839-2021, utilize os filtros da barra lateral.

Das Amazônias | Rio Branco, v.4, n.1, 2021.

Dossiê RESISTÊNCIA: A construção de saberes históricos em tempo de pandemia

Apresentação da Capa

Ficha Técnica

Sumário

Editorial

Artigos

Resenha

Publicado em 09 jun | v.4, n.1 (2021)

A vida e o mundo: meio ambiente patrimônio e museus | Paulo H. Martinez

MARTINEZ Paulo Henrique1 História & outras eróticas
 MARTINEZ P A vida e o mundo1 História & outras eróticasEstela Okabayaski Fuzii, Angelita Marques Visalli, Paulo HenriqueMartinez e Chico Guariba | Foto: Agência UEL |

Estabelecer conexões concretas entre as potencialidades de ação educativa dos patrimônios e museus com o meio ambiente foi o desafio do historiador Paulo Henrique Martinez em seu mais recente trabalho A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. Publicado em 2020 pela editora Humanitas, o livro reúne textos de diferentes naturezas escritos pelo autor em sua extensa trajetória de pesquisa e ensino voltada a cooperação técnica, cuja atuação permeou universidades, Câmara dos Deputados, conselhos municipais, organizações não-governamentais, entre muitos outros.

A reunião das produções entre os anos de 2003 e 2017, demonstra a atuação deste historiador diante os acontecimentos que atravessaram as áreas de meio ambiente, patrimônio e museus.

A variedade do material, entre capítulos de livros, artigos de revista científica, resenhas de obras publicadas, artigos em revista universitária e jornais locais, evidencia um trabalho atento às transformações do presente e da vida cotidiana, além da preocupação em ampliar o acesso aos conhecimentos produzidos na universidade e nas instituições culturais ao público geral.

Nesses moldes, a primeira parte do livro denominada Museus e mudança social procura delinear um diagnóstico da situação dos museus no Brasil, no momento da escrita dos textos. Partindo de questões do presente e da esfera local, Martinez articula os acontecimentos com documentos, instituições e agendas nacionais e internacionais tal como a Política Nacional de Museus (2003), o Conselho Internacional de Museus (1946) e a Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (DEDS, 2005-2014).

A sensível tarefa de repensar o processo de desenvolvimento, sobretudo mediante as significativas transformações no meio ambiente, analisando e promovendo a distribuição de seus benefícios ao conjunto da sociedade global, exige tratar as especificidades culturais, de gênero, classe social e raça. O desenvolvimento sustentável, conceito orientador no século XXI, contempla com atenção este último aspecto do desenvolvimento humano, emergindo as demandas de formação de cidadãos, geração de emprego, combate à pobreza, igualdade de gênero e acesso à educação e saúde de qualidade.

Qual o potencial dos museus na educação para o desenvolvimento sustentável? As diretrizes estabelecidas em documentos internacionais tal como a Agenda 21, elaborada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, documento gerador da já mencionada DEDS e, atualmente, da Agenda 2030 com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2015-2030) encontram um fértil terreno nos patrimônios ambiental e cultural presente nos museus.

A cultura, protagonista nas atividades museológicas, é uma das bases do desenvolvimento sustentável pois concentra os mecanismos e finalidades do desenvolvimento.

Vida humana e não humana se encontram em um mundo diversificado, identificado por valores, crenças, saberes, técnicas, instrumentos de produção e consumo que se estabelecem em meio as harmonias e conflitos entre estes dois universos profundamente conectados. A reordenação das atividades humanas e o meio ambiente, o “pensar ecológico” é, para Martinez, parte do trabalho de profissionais das ciências sociais, em geral, e dos historiadores, em particular, que atuam em instituições museológicas.

Atento às transformações do tempo presente, o caráter de experimentação proporcionado pelos museus em exposições e acervos apresentam um novo plano de realidade com o aprimoramento dos usos dos recursos naturais e do capital humano. Parece ser esta a participação institucional de parques e museus no desenvolvimento sustentável, a preservação, valorização, pesquisa e comunicação da cultura material e imaterial e dos patrimônios ambientais. Articulados, garantem a cidadania, inclusão social e vida digna a toda população.

Estas características ganham maior expressão quando vinculados à cultura indígena no Brasil.

A Lei n°11.645 de 2008 institucionaliza a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena nos currículos escolares da educação básica e superior. O patrimônio indígena, fundamental para a constituição e conhecimento da história do Brasil, encontra debates fecundos e atuais na segunda parte do livro Patrimônio indígena no Brasil. A localização dos elementos indígenas na sociedade brasileira constitui um dos primeiros passos para o conhecimento da história nacional.

A rivalidade dos discursos hoje predominantes, como aquele vivido pela Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, nos auspícios da Copa do Mundo, corresponde aos conflitos de narrativas de dominação enraizadas no cotidiano brasileiro. As diferentes simbologias presentes nessa experiência narrada na obra, o futebol, a hostilidade com os indígenas, o desenvolvimento econômico no qual os grupos tradicionais são vistos como obstáculos naturais e o autoritarismo da política nacional, são explicativas para compreensão da realidade O sincretismo no uso da palavra “Maracanã” e a luta pela permanência da aldeia indígena naquela região do Rio de Janeiro complementa aquilo que já havia observado o historiador Caio Prado Jr sobre o passado vivo no cotidiano dos brasileiros. Os aspectos coloniais dessa experiência no Brasil, faz aquele “lugar de memória” converter o passado sua forma de resistência e respeito ao compreender os processos no qual deram origem a esta sociedade tão diversificada.

Em todas as situações discutidas, seja nos museus municipais, exposições itinerantes, centros culturais ou universidades, Martinez conduz a educação como inerente às transformações para o século XXI. Em consonância com documentos legislativos e acordos institucionais como as citadas Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI) e a Convenção sobre Diversidade Biológica, a afirmação e o reconhecimento da cultura e dos direitos dos povos indígenas, a inclusão na vida social, a garantia de participação nos planos de gestão é diretamente dependente de um processo educativo que valoriza a cultura, a natureza, as mulheres, a cooperação e a democracia.

O Parque do Xingu e o Museu do Índio no Rio de Janeiro são alguns exemplos concretos desses anseios que relembram a trajetória violenta da colonização e preservam a cultura e a memória dos grupos indígenas. Para além destas instituições, as universidades também desempenham função importante com o desenvolvimento de disciplinas que abordem os temas, no gerenciamento de museus universitários, na formação de profissionais qualificados e na inserção destes grupos no ambiente universitário.

Apresentando a “Universidade da Selva” como ficou proclamada a Universidade Federal do Mato Grosso através de uma resenha da obra Museu Rondon: Antropologia e indigenismo na Universidade da Selva da antropóloga Maria Fátima Roberto Machado, Martinez testemunha os aspectos institucionais da identificação e preservação da cultura material e imaterial na universidade. Estas instituições acompanham os processos de formação intelectual e produção de conhecimentos em conjunto com os museus, embora os últimos tenham sua data de nascimento anterior às primeiras, no Brasil. Este fato, no entanto, reforça as complementaridades entre ambas e os benefícios do trabalho conjunto, adicionando, ainda, a escola de educação básica.

As perspectivas de trabalho nos museus para a abertura de temas relacionados ao meio ambiente, principalmente para a constituição da história dos municípios, destacam o valor do patrimônio indígena. Os processos de formação nacional em seus aspectos econômicos, sociais e políticos esbarram com a trajetória desses povos cujos reflexos ainda permeiam no século XXI. A PGNATI foi um material analisado para demarcar os complexos desafios de preservação e recuperação dos recursos naturais e o reconhecimento da propriedade intelectual e do patrimônio genético. A educação ambiental e indigenista é definida como a principal estratégia destes objetivos, beneficiando não apenas a população indígena, mas todos os cidadãos.

A partir dos exemplos observados, o volume encerra com um caráter pedagógico de demonstração prática das potencialidades da educação patrimonial e ambiental na formação da cidadania.

Uma organização documental para auxiliar historiadores, em especial aqueles dedicados à História Ambiental, aos profissionais da área de museus e professores de educação básica e superior, que permite visualizar as narrativas presentes nos objetos e paisagens como fontes de observação e pesquisa histórica.

O significado cultural da alta produção de carrancas, marcante na paisagem do São Francisco, os processos de utilização deste rio para transporte e comércio, a formação da cidade e da cultura material, dos valores, saberes e comportamentos da população da região são demonstrativos da promoção do patrimônio na construção do conhecimento histórico. Os objetos cotidianos, como o automóvel e os elementos da cultura afro-brasileira também são destacados como mecanismos para compreender a organização da vida social, os processos de industrialização e seus efeitos, principalmente nos centros urbanos.

A pandemia de COVID-19 colocou em evidência as consequências do modelo industrial globalizado na vida humana e não humana. O surgimento de novas doenças, a perda de ecossistemas e da biodiversidade desloca a atenção para fora das cidades e marca os estreitos vínculos entre seres humanos e natureza. Esta experiência demonstra os sintomas de um planeta cujos padrões da vida atual não consegue sustentar e no qual deve-se estar atento. Como observou Donald Worster, todas as epidemias ao longo da história tiveram origem onde o equilíbrio com a natureza estava abalado.

Em sua argumentação sobre o patrimônio indígena, Martinez reforça o utilitarismo como obstáculo para a proteção desses povos e do meio ambiente. Percebe-se que esta perspectiva atravessa diferentes dimensões da vida humana, atribuindo valores distintos, muitas vezes alimentados pelo objetivo do crescimento econômico. Assim, os recursos naturais são destruídos, os objetos musealizados perdem a importância em sua função prática e se fortalece a narrativa dos museus “viverem do passado”. São para estes critérios que a pandemia exige observação, pois escancarou as desigualdades sociais e a crise ambiental da atualidade.

Ao mesmo tempo o isolamento social, para impedir a propagação da doença, fortaleceu os meios de comunicação e incentivou as instituições culturais a se renovarem para acompanhar as novas demandas. As redes sociais se tornaram ferramentas apropriadas pelos museus. A 14° dos Primavera dos Museus, em 2020, trouxe como tema Mundo Digital: museus em transformação e convidou os profissionais a pensar a inserção destas instituições nos novos mecanismos de comunicação.

Martinez nos mostra que as possibilidades de atuação são muitas e trazem consigo resultados positivos à sociedade.

Ao demonstrar os frutíferos e os frustrantes trabalhos que presenciou ao longo de sua carreira, transmite um apelo para a expansão das instituições que já existem e para a valorização e o investimento daquelas que ainda não tem usufruído de seu potencial. Demonstra com clareza os benefícios da cooperação nas dimensões individuais, institucionais e sociais do trabalho. A leitura da obra é direcionada aos profissionais da educação e museus, em etapas de formação inicial ou continuada, para vislumbrarem os contextos no qual fazem parte, integrar e valorizar os conhecimentos locais e aplicar essas ações em todas as oportunidades que vierem à frente.

Os desafios emergentes já visíveis neste século e aqueles que ainda estão por vir convergem na ação educativa como ferramenta fundamental. O trabalho educativo dos museus na promoção da cidadania e da preservação do patrimônio cultural e ambiental convergem com as diretrizes de ação internacional, fortalecendo, ainda, a cooperação para o desenvolvimento sustentável.

Referências

MARTINEZ, Paulo Henrique. A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. São Paulo: Humanitas, 2020.

NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961.

WORSTER, Donald. Otra primavera silenciosa. Historia Ambiental Latioamericana y Caribeña, 10, ed. sup. 1, p. 128-138, 2020. Disponível em: https://www.halacsolcha.org/index.php/halac/ issue/view/40 Acesso em: 26 fev. 2021.

Cíntia Verza Amarante – Mestranda em História pela Universidade Estadual Paulista, UNESP, câmpus de Assis. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8845494592325213. E-mail: cintia.amarante@unesp.br.


MARTINEZ, Paulo Henrique. A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. São Paulo: Humanitas, 2020. Resenha de: AMARANTE, Cíntia Verza. Educação Ambiental em Museus. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.189-193, jan./jun.2021. Acessar publicação original [IF].

Antonio Fagundes no palco da história: um ator | Rosangela Patriota

PATRIOTA R Antonio Fagundes História & outras eróticas
 PATRIOTA R Antonio Fagundes2 História & outras eróticasAntônio Fagundes e Rosângela Patriota | Foto: Agenda |

Professora aposentada da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Rosangela Patriota é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), coordenadora do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC/UFU), e coordenadora do GT Nacional de História Cultural da ANPUH e da Rede Internacional de Pesquisa em História e Cultura no Mundo Contemporâneo. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Artes e História da Cultura (PPGEAHC) da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Com uma trajetória sólida nos debates que se endereçam a pensar as relações e imbricamentos entre História e Teatro, sobretudo no que se refere à produção da História Cultural, a historiadora Rosangela Patriota se desafia a inserir o ator no centro desses debates de maneira crítica, na contramão de grande parte das pesquisas acadêmicas que estão voltadas para a História do Teatro Brasileiro que, de certa maneira, tendem a privilegiar dramaturgos, críticos e companhias teatrais.

Assim, a autora busca suprir uma lacuna, na área de História, acerca da inserção histórica de atores e atrizes em “termos de periodização da história do teatro no Brasil” (PATRIOTA, 2018, p. 401).

Essa obliteração, ou, a secundarização do ‘trabalho atorial’ que, segundo Rabetti (2012), consiste em interpretação, atuação e presença cênica que corporifica de maneira mediada anseios múltiplos, inclusive os seus, diante deste circuito que configura o funcionamento da arte teatral no Brasil. Assim como Rabetti (2012), Patriota (2008) aponta para as dificuldades de lidar com a figura do ator por dois pontos específicos: a efemeridade da cena no acontecimento do fenômeno teatral e pela hierarquia da crítica cultural, ou mesmo, a tirania do texto escrito, como bem salientado por Roger Chartier (2010), evocando as formas de corporeidade, representação, apropriação e vocalização desses textos.

Dessa feita, o ator seria um ponto fulcral na circulação e personificação de textos e ideias. Porém, mesmo sendo um elemento e figura tão primordial para a construção cênica, o trabalho do ator acontece no espectro temporal do efêmero, que é construído na delicadeza de expressões e gestos e, talvez, por esse motivo seja mais dificultoso lidar com ele no campo da pesquisa, mas não impossível, pois o teatro não se restringe apenas a zona do espetacular ou as características específicas do trabalho de performance atorial que, inclusive, é parcialmente capturada em registros audiovisuais, fotográficos e por índices de recepção fragmentados, como grande parte dos documentos utilizados em História. Sobre isso, Patriota afirma que o fenômeno teatral faz com que o teatro possua inúmeras linguagens (PATRIOTA, 2018, p. 400).

No coração de seu tempo Para o enfrentamento de tal empreitada de contar a história do teatro sob o ponto de vista de uma historiadora de ofício, Rosangela Patriota escolheu Antonio Fagundes como sujeito no palco da História, especialmente, para não dizer que não falou dos atores por causa da efemeridade da ação teatral. Esse desafio está estampado nas páginas de Antonio Fagundes no palco da História: um ator, lançado em 2018, pela Editora Perspectiva. Sempre com um diálogo em primeira pessoa com os leitores, Patriota é franca ao afirmar como será difícil essa jornada, porém em vários momentos reafirma com argumentos muito bem sustentados que a biografia intelectual traz questões impres cindíveis, mesmo dispondo de poucos documentos que façam referência específica a performance do ator. Mas, nem por isso, o cotejamento com outros fragmentos documentais é menos eficaz em responder as perguntas dela enquanto historiadora. Assim, ela insiste que a fabricação de tais documentos está carregada de intenções e, por isso, a ajudam na construção histórica da trajetória e carreira de Antonio Fagundes, pois:

Todavia, uma trajetória é muito mais que a mera exposição de vontades e realizações. Pelo contrário, ela, de acordo com meu entendimento, deve ser vista, interpretada e compreendida à luz das circunstâncias históricas e sociais que a acolheram.

Sob essa óptica, Fagundes é uma personagem fascinante, na medida em que construiu suas experiências em meio a debates e tensões possíveis de serem analisadas, sob o horizontes de expectativas diferentes, ou, em outras palavras: é sabido que o tempo não é apreendido da mesma forma por sujeitos e esferas sociais distintos, isto é, as rupturas vistas e sentidas, por exemplo, no campo da política não se apresentam necessariamente nos mesmos termos na esfera cultural, assim como os ditames e os ritmos da ordem econômica muitas vezes são sentidos e definidos sob regimes e expectativas próprias. (PATRIOTA, 2018, p. 52)

O aporte teórico está afetuosa e devidamente baseado na obra A Teia do Fato (1997), de Carlos Alberto Vesentini, que se acerca da compreensão da construção, disseminação e cristalização do fato histórico, inclusive, de seu poder hipnótico de condução das narrativas que em volta dele gravitam, seja pelo aspecto dos temas, marcos temporais, personagens e acontecimentos, conduzindo e produzindo o sentido e seus respectivos ordenamentos periodizadores. No teatro, por exemplo, a ideia e o desejo de modernização enquanto bandeira, especialmente calcada em referenciais eurocentrados, fez com que o ‘teatro do ator’ fosse relegado como aspecto menor a ser superado, chamado inclusive de ‘teatro velho’ em prol da estetização resumida à atmosfera da cena, especificamente, na passagem do ensaiador para o encenador. Tal procedimento, por exemplo, fez de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, peça encenada pelo polonês Zbgniev Ziembinski, em 1943, um marco convencionado moderno e tido como um referencial na história do teatro brasileiro, por sua renovação cênica, cristalizando assim uma memória histórica carregada de hierarquias da consagração especialmente constituídas pela crítica, como consta no Dicionário do Teatro Brasileiro.

[…] consolidam-se no âmbito profissional vários projetos de renovação cênica que contestam o protagonismo do ator na concepção do espetáculo. O deslocamento do foco do ator para o encenador é explicitado pelo crítico Décio de Almeida PRADO aos seus leitores em uma crítica publicada em 1947: ‘Presenciamos então, já no nosso século, esse fato inacreditável: a fama e o prestígio dos metteurs em scéne obscurecem a dos atores, e mesmo a dos autores. (GUINSBURG; FARIA; LIMA, 2006, p. 43).

Afirmamos aqui que a historiadora Rosangela Patriota se propôs o desafio de tratar sobre o ator, sobretudo, por ela já possuir uma trajetória frutífera nos debates do campo da historiografia do teatro brasileiro. Ao fazê-lo se coloca diante de um salto frente às suas próprias produções anteriores que se dedicaram a pensar sujeitos históricos que transitaram no circuito teatral, especialmente na qualidade de dramaturgos, críticos, grupos e companhias teatrais; agora foi chegada a hora de pensar a presença do ator em meio a esse emaranhado de questões. Nesses termos, suas contri buições nos estudos sobre teatro já se apresentam em sua primeira obra, Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo (1999) e Crítica de um Teatro Crítico (2007). Não podemos deixar de mencionar a frutífera parceria entre a historiadora com o saudoso professor Jacó Guinsburg, que está registrada em livros, como J. Guinsburg, a cena em aula: Itinerários de um professor em devir (2009) que reúne a transcrição de fitas da disciplina Estética Teatral, ministrada pelo professor Jacó Guinsburg, e também em Teatro Brasileiro: Ideias de uma História (2012).

Dessa feita, sob a posse desse debate e aporte teórico-metodológico bem definido, a autora faz com que, a partir da experiência profissional de Antonio Fagundes, surja a figura do ator diante desses e de outros acontecimentos históricos. A biografia se dedica a pensar a vida artística de Fagundes desde o início, com a peça A Ceia dos Cardeais (Julio Dantas, 1902), encenada em 1963, nos tempos que o protagonista ainda era estudante colegial, até a peça Tribos (Nina Raine, 2013). Respaldada pela micro-história italiana de Giovani Levi, Patriota torna Antonio Fagundes protagonista de uma narrativa histórica que o considera como eixo norteador da relação entre sujeito e sociedade e, neste interstício, apresenta-se o processo histórico no qual ele se inseriu e continua inserido.

Por conseguinte, a autora faz com que o texto biográfico suscite a abertura de ângulos interpretativos em relação à história do teatro brasileiro, tendo a vida e obra desse ator como eixo condutor. Deste modo, essa biografia não se apresenta como convencional, mas como uma biografia intelectual que ganha forma a partir de temas e problematizações que em outras oportunidades ficaram restritas aos dramaturgos, críticos e companhias.

Entrementes, a narrativa biográfica produzida por Patriota, sobre Fagundes, enfrenta com profundidade a construção e a cristalização de marcos na história do teatro brasileiro. Assim posto, fica claro que Rosangela Patriota tem fôlego para tal discussão que está por vir, a trajetória do ator Antonio Fagundes, conhecido nacionalmente e internacionalmente, por seus trabalhos no teatro, televisão e cinema. Sobretudo, a autora inverte a consagração do galã dessas últimas linguagens, especialmente por sua profícua e longeva atuação em telenovelas, e privilegia o ator e produtor de teatro. Assim, a autora demonstra como os trabalhos de Fagundes na TV e no cinema, de certa forma (não sem restrições e limites), constituíram capital financeiro e de público que sustentaram a sua consolidação no campo teatral, inclusive angariando público para suas produções no Teatro (locus onde ele iniciou sua carreira), proporcionando-lhe este espaço como formativo.

Como bem apontamos, o livro Antonio Fagundes no palco da História: um ator é uma biografia crítica que nos apresenta momentos marcantes, de um ator que iniciou suas atividades e paixão pelo teatro ainda como estudante do Colégio Rio Branco. Fagundes atuou em alguns espetáculos infantis dirigido por Afonso Gentil, que também trabalhava na seção de teatro infantil do Teatro de Arena de São Paulo, e assim aconteceu o convite para Antonio Fagundes participar do núcleo de teatro infantil do grupo de teatro paulista. Ou seja, Rosangela Patriota produz ‘poeira da estrela’[3], porém sem glamourização, pois demonstra que Antonio da Silva Fagundes Filho não esteve predestinado a ser o ator/galã Antonio Fagundes, ou, até mesmo ter uma carreira de sucesso especialmente cristalizada por sua presença em telenovelas.

A autora trata de uma construção artística balizada em processos de formação e atuação teatral, trabalho e uma rede de sociabilidade construída pari passu com a constituição de Antonio Fagundes enquanto ator. A referida rede foi formada por Afonso Gentil, Carlos Augustos Strazzer, Myriam Muniz, Gianfrancesco Guarnieri, José Renato, Augusto Boal, Ademar Guerra, Marta Oberbeck, Armando Bógus, Oswaldo Campozana, Sylvio Zilber, Othon Bastos, Consuelo de Castro, Fernando Peixoto, Antônio Bivar, etc.Antonio Fagundes História & outras eróticas

No palco das palavras.

O primeiro capítulo intitulado Antonio Fagundes ou Estratégias para a composição de uma narrativa biográfica, trata-se de um balanço crítico que perpassa discussões teórico-metodológicas que esbarram na carreira do ator. Patriota consegue englobar discussões que são caras, não só a nós, historiadores, mas a todos que trabalham com objetos artísticos em geral, pois essas questões se apresentam como um quiasma na trajetória de Fagundes.

Uma das perguntas que move a autora a pensar esse trabalho, como um todo, é: por que Antonio Fagundes passa despercebido perante a historiografia do Teatro Brasileiro até então? Mesmo com sua participação no Teatro de Arena, que foi a sua primeira escola formativa e trabalho atoral profissional. A pergunta é respondida com uma digressão importante sobre as construções que foram feitas ao longo da escrita da História do Teatro, que não foi feita apenas por historiadores, mas também por críticos que estabeleceram certos marcos e fatos, incluindo assim certos grupos teatrais.

Nessa concepção foi estabelecida uma diferença entre teatro empresarial e teatro de grupo. O primeiro foi denominado como um teatro comercial, que visa lucros com a bilheteria, teoricamente sem se importar com o público ou a qualidade do espetáculo, o segundo foi denominado como um teatro sério, que busca o diálogo com os dramaturgos e é composto por grupos teatrais que possuem uma proposta de diálogo entre arte e sociedade.

Antonio Fagundes, por seu sucesso como galã de telenovelas, foi sumariamente engessado como pertencente a categoria de teatro empresarial, como uma espécie de distinção hierárquica estabelecida no circuito teatral, o espoliando de um capital cultural formado no teatro anteriormente ao seu ingresso nas produções televisivas. Diante dessas reflexões, o segundo capítulo intitulado O Teatro de Arena, os espetáculos da resistência democrática e a formação de um ator e de um cidadão, Patriota se debruça na formação intelectual e profissional de Fagundes nos primeiros anos de carreira, focando principalmente na sua frutífera estadia no Teatro de Arena.

No final da década de 1970, Fagundes assinou o contrato com a Rede Globo de Televisão e aceita integrar o elenco da novela Dancin’ Days (Gilberto Braga; direção de Daniel Filho, Gonzaga Blota, Marcos Paulo e Dennis Carvalho; codireção: José Carlos Pieri, 1978). Patriota explica aos leitores a historicidade da palavra galã e, assim, nos demostra como seu protagonista começa a ser reconhecido como galã ao interpretar o papel do ‘mocinho’ Carlos Eduardo Amaral Cardoso, o Cacá, par romântico da personagem Júlia Matos interpretada por Sônia Braga, que já havia estado em cena com Fagundes em Hair (direção de Ademar Guerra, 1969). Em um breve intervalo de tempo, ele estreia, também na televisão, a série composta por cinquenta e quatro episódios, Carga Pesada, na qual toda a sensibilidade de Cacá é posta de lado para dar vida ao viril Pedro, um caminhoneiro que percorre as estradas do país, na companhia de Bino (Stênio Garcia).

A Companhia Estável de Repertório (CER) é objeto do terceiro capítulo, no qual Rosangela Patriota consta a consolidação do homem de teatro e de cultura que passa a colocar em prática de maneira sistematizada todos os seus aprendizados e formação no circuito e no mercado teatral, inclusive, como alguém que se dispõe a debater publicamente as políticas culturais do país ou a falta delas. A referida companhia surge em um contexto de horizontes de expectativas marcado pelo campo da experiência de uma ditadura militar em processo de abertura e redemocratização, momento no qual setores da cultura começam a discutir suas posições na constituição de uma memória histórica sobre a resistência democrática e pensando novos rumos e maneiras diversas de lidar com a linguagem teatral. Como aponta Patriota (2018, p. 198), o telos que antes unira distintos grupos no compromisso com a luta democrática já não atendida mais os anseios de alguns segmentos, inclusive dos mais jovens.

Nesse contexto, em 1981, a CER inicia suas atividades que estiveram em cartaz até 1991, com peças dentre as quais destacamos: O Homem Elefante (de Bernard Pomerance, com direção de Paulo Autran, em 1981); Morte Acidental de um Anarquista (de Dario FO, 1982, direção de Antônio Abujanra); Xandu Quaresma (de Chico de Assis, 1984, sob a direção de Adriano Stuart); Cyrano de Bergerac (de Edmond Rostand, 1985, direção de Flávio Rangel); Carmem Com Filtro (de Daniela e Gerald Thomas, 1986, sob a direção de Gerald Thomas) e Fragmentos de um Discurso Amoroso (de Roland Barthes, 1988, com direção de Ulysses Cruz).

Antonio Fagundes no palco da História: um ator aponta para a confirmação da tese de que a importância do ator para o teatro no Brasil foi de certa maneira suprimida, especialmente, entre a década de 1940 e 1950, devido ao adensamento e a propagação de ideias-força (nacionalismo, modernidades, modernização, politização, estetização) que secundarizaram a figura do ator em meio aos anseios por um moderno teatro brasileiro. Isso, inclusive fez com que o ‘teatro de ator’[4] tão latente na primeira metade do século XX, especialmente, caracterizado por figuras que aproximaram o trabalho atoral com o empresarial na área teatral, como João Caetano, Armando Gonzaga, Dulcina de Moraes, Leopoldo Fróes, etc., fosse considerado como ‘velho teatro’ e visto de certa forma como um entrave para uma pretensa linha evolutiva do teatro brasileiro que deveria ter como destino o signo do novo, o encenador estrangeiro, para se constituir enquanto moderno. Parte desse debate é expressado por Patriota, especialmente, no quinto e último capítulo que recebe o título O ator no centro da narrativa: contribuições à escrita da história do teatro brasileiro, no qual afirma:

De posse desse repertório teórico-metodológico, acredito que comecei a refinar meu olhar interpretativo sobre as histórias do teatro brasileiro, tanto que, em 2012 tive o privilégio de escrever, em parceria com J. Guinsburg, o livro Teatro Brasileiro: ideias de uma História. Nele, foi possível aprofundar questões referentes à urdidura da narrativa histórica e evidenciar como os embates e os anseios dos contemporâneos orientam as ideias-forças que organizam e alicerçam os marcos identificados como a história do teatro brasileiro. […] conseguimos, eu e J. Guinsburg, expor a maneira pela qual as bandeiras artísticas, defendidas por críticos teatrais, em sintonia com grupos e/ou companhias, tornaram-se o leitmotiv da escrita da história de inúmeras histórias do teatro brasileiro. (PATRIOTA, 2018, p. 383)

Em suma, recomenda-se a leitura de Antonio Fagundes, no palco da História: Um Ator, pois através da narrativa biográfica balizada em um robusto trato da documentação (críticas, fotografias, gravações audiovisuais, programas de peças, entrevistas, cartas), Rosangela Patriota nos convida conhecer os ângulos interpretativos de enfrentamentos historiográficos e embarcar na imersão em 50 anos de história cultural brasileira, especificamente, com foco na história do teatro. O grande mérito dessa obra está na sua capacidade intelectual de perspectivar debates e problemáticas es pecíficas da História e Historiografia do Teatro em atravessamentos transversais da vida e obra do ator/produtor teatral Antonio Fagundes, assim desconstruindo a sua atuação do engessamento da cristalizada imagem de galã televisivo, o conduzindo junto com o seu público das telas e palcos às páginas, ou seja, o livro trata da singularidade e o percurso de um ator no meandro de um debate político e cultural do teatro brasileiro.

Referências

BRANDÃO, T. Ora, direis ouvir estrelas: historiografia e história do teatro brasileiro. Sala Preta, v.1, p. 199-217, 28 set. 2001.

CHARTIER, Roger. Escutar os mortos com os olhos. Estudos avançados, v. 24, n. 69, p. 6-30, 2010.

GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de (orgs). Dicionário do

Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. [S.l: s.n.], 2006.

PATRIOTA, Rosangela. O teatro e historiador: interlocuções entre linguagem artística e pesquisa histórica. In: RAMOS, Alcides Freire; PEIXOTO, Fernando; PATRIOTA, Rosangela. A história

invade a cena. São Paulo: Editora Hucitec, 2008.

PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999.

PATRIOTA, Rosangela. A crítica de um teatro crítico. São Paulo: Perspectiva, 2007.

PATRIOTA, Rosangela; GUINSBURG, J. (org.). J. Guinsburg, a cena em aula – itinerários de um professor em devir. São Paulo: EDUSP, 2009.

PATRIOTA, Rosangela; GUINSBURG, Jacó. Teatro Brasileiro: ideias de uma história. São Paulo: Perspectiva, 2012.

PATRIOTA, Rosangela. Antonio Fagundes no palco da história: um ator. São Paulo: Perspectiva, 2018.

RABETTI, Maria de Lourdes. Subsídios para a história do ator no Brasil: pontuações em torno do lugar ocupado pelo modo de interpretar de Dulcina de Morais entre tradição popular e projeto moderno. ILINX-Revista do LUME, v. 1, n. 1, 2012.

VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a Memória Histórica.

São Paulo: Hucitec; História Social da USP, 1997.

Notas

3. Como bem salienta Tania Brandão (2001, p. 199): “Escrever história do teatro é, em mais de um sentido, produzir poeira de estrelas, escrever a história das estrelas.”

4. Sobre o teatro do ator conferir: (GUINSBURG; FARIA; LIMA, 2006, p. 44-45).

Robson Pereira da Silva – Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás (Mestrado). Licenciado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Membro do Laboratório de Estudos em Diferenças & Linguagens – LEDLin/ UFMS e do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC/UFU). Membro associado da Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo. Tendo experiência na área de História, com ênfase em História Cultural e Ensino de História. Autor do livro Ney Matogrosso…para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976-1977). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.  br/5608673598392485. E-mail: robson_madonna@hotmail.com.

Lays da Cruz Capelozi – Doutoranda em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pela mesma instituição, estudado o Mestrado em História e o Curso de Graduação em História – Bacharelado e Licenciatura -. É membro do NEHAC – Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura. Membro associada da Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8785972568211269. E-mail: syalcc@gmail.com.


PATRIOTA, Rosangela. Antonio Fagundes no palco da história: um ator. São Paulo: Perspectiva, 2018. Resenha de: SILVA, Robson Pereira da; CAPELOZI, Lays da Cruz. Antonio Fagundes: o ator do palco às páginas. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.176-183, jan./jun.2021. Acessar publicação original [IF].

Povos originários e Covid-19: Experiências indígenas diante da Pandemia na América Latina | Albuquerque | 2021

Covid 19 blue História & outras eróticas
Covid-19 | Foto: OPAS |

Apresentação

Las bacterias y los virus fueron los aliados más eficaces. Los europeos traían consigo, como plagas bíblicas, la viruela y el tétanos, varias enfermedades pulmonares, intestinales y venéreas, el tracoma, el tifus, la lepra, la fiebre amarilla, las caries que pudrían las bocas. La viruela fue la primera en aparecer. ¿No sería un castigo sobrenatural aquella epidemia desconocida y repugnante que encendía la fiebre y descomponía las carnes? «Ya se fueron a meter en Tlaxcala. Entonces se difundió la epidemia: tos, granos ardientes, que queman», dice un testimonio indígena, y otro: «A muchos dio muerte la pegajosa, apelmazada, dura enfermedad de granos». Los indios morían como moscas; sus organismos no oponían defensas ante las enfermedades nuevas. Y los que sobrevivían quedaban debilitados e inútiles. El antropólogo brasilero Darcy Ribeiro estima que más de la mitad de la población aborigen de América, Australia y las islas oceánicas murió contaminada luego del primer contacto con los hombres blancos. (GALEANO, 2008, p. 35) La rápida expansión del COVID-19 ha tenido un fuerte impacto sobre la vida diaria y la organización sanitaria, escolar, política y económica de las sociedades en su conjunto. Si bien la pandemia afectó de modo simultáneo a poblaciones y territorios a lo largo y ancho del planeta, a partir de la proliferación de un virus que no distingue clivajes de clase, etnia, género ni religión, a poco tiempo de transcurrida no fue difícil discernir sus impactos diferenciales en territorios y poblaciones concretas. Leia Mais

RESISTÊNCIA: A construção de saberes históricos em tempo de pandemia | Das Amazônias | 2021

Casarao da Rua 20 Goiania História & outras eróticas

Iniciamos esta edição com sinceras condolências em respeito a todos os brasileiros e brasileiras que partiram devido à crise sanitária ocasionada pelo novo coronavírus, mas sobretudo pesarosos do contexto ideológico em que o Brasil está inserido. A Revista Discente das Amazônias se irmana no sentimento de tristeza de cada ente querido que sente a dor da saudade, palavra encontrada apenas no português do Brasil (e que faz muito sentido face a falta do avô, da mãe, do irmão, do pai, da tia, do primo, do próximo ou do distante), na ausência da vida. Externamos nossa solidariedade aos que permanecem e lastimamos por aquelas pessoas que se tornaram montante numérico superior a 470.000 mil mortos, vítimas de um genocídio resultante da ignorância, do negacionismo e da pseudociência.

Mas, nos apeguemos aos respingos de esperanças. Paulo Freire, fugindo da norma, já nos convidava a conjugar o substantivo “esperança” – esperançar é preciso. É nesses embalos de incerteza de um viver marcado por lutas, que devemos acreditar na ciência, na educação pública e gratuita e sua fundamental importância e contribuição para à sociedade. Assim, caros(as) leitores e leitoras, lhes convidamos a lerem os trabalhos submetidos à Das Amazônias, Revista Discente de História da Ufac (em seu volume 4, número 1), que compõe o conjunto de periódicos da área de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), da Universidade Federal do Acre (Ufac). Leia Mais

Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia (II) / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2021

Filosofia e Historia da Biologia 28 História & outras eróticas
Rancho na região da serra do Caraça, MG, Spix e Von Martius, 1817-1820 | Imagem: JLLO |

É com satisfação que publicamos a segunda parte do dossiê Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia. Os artigos selecionados tratam das interfaces entre o poder, as culturas políticas e a sociedade, a partir de perspectivas teórico-metodológicas que focalizem as rupturas, as permanências, os antagonismos e as ambivalências historicamente tecidas nas múltiplas formas de relações sociais entre as elites e as camadas populares no Brasil durante o século XIX, nas mais diversas dimensões do poder e seus reflexos na sociedade e na economia. Atualizações e ressignificações do local e do regional diante das injunções produzidas pela dinâmica do global, assim com os processos e as tramas que singularizam as histórias do local e regional, em suas demissões social, econômica e de poder são também contempladas.

O primeiro artigo que abre o Dossiê, de Francivaldo Alves Nunes, intitulado na gigantesca floresta de metais: O Engenho Central São Pedro do Pindaré e os debates sobre a lavoura maranhense no século XIX, nos remete a implantação dos engenhos centrais como solução para o processo de modernização da atividade açucareira em fins do século XIX, tendo como palco a província do Maranhão. Em diálogo com a historiografia, o autor demonstra o quanto o otimismo presente na imprensa e nos relatórios dos presidentes de província em relação a essa inovação produtiva contrastava com as dificuldades e os obstáculos encontrados para sua realização, tais como a falta do concurso do capital externo para atender aos seus vultosos custos, o conflito de interesses entre produtores de cana e o Engenho central e a ausência de inovação na atividade agrícola.

Já o artigo Ofícios mecânicos e a câmara: regulamentação e controle na Vila Real de Sabará (1735-1829), de Ludmila Machado Pereira de Oliveira Torres, analisa a ação de reguladora exercida pela Câmara municipal de Sabará no território sub sua jurisdição e na ausência de corporações com essas funções em Minas Gerais, em fins do período colonial e início do Imperial. Nessa direção, a autora procede à verificação da eficiência deste poder público em regulamentar o trabalho mecânico por meio da realização de exames dos candidatos aos ofícios, proceder às eleições de juízes de ofício, tabelar preços e conceder licenças à categoria. Por outro lado, o texto ainda se detém no universo dos ofícios mecânicos na região, na maior ou menor presença de escravizados no seu meio e na relação desses trabalhadores com a instituição que os fiscalizava e regulava.

No texto de Jeffrey Aislan de Souza Silva, “Nunca pode, um sequer, ser preso pela ativa guarda”: a Guarda Cívica do Recife e as críticas ao policiamento urbano no século XIX (1876-1889), temos a abordagem de um aparato policial criado na capital de Pernambuco com a dupla função de combater a criminalidade e disciplinar a população. Nele é investigada a lei que criou essa força pública em seus diversos aspectos, como também a sua estrutura hierárquica, funções e os requisitos para o ingresso na corporação Além disso, o autor discute a eficácia e comportamento desse aparato de segurança, que mereceu uma avaliação nada lisonjeira dos seus contemporâneos na imprensa.

Com o título Gênero, raça e classe no Oitocentos: os casos da Assembleia do Bello Sexo e do Congresso Feminino, Laura Junqueira de Mello Reis pesquisa dois jornais na Corte, A Marmota na Corte e O Periódico dos Pobres, que possuíam seções especificamente dedicas às mulheres, e que tinham como seus principais colaboradores homens. Ao longo do artigo discutem-se os assuntos e as abordagens constantes nesses impressos do interesse de suas leitoras, como matrimônio, adultério, maternidade e emancipação feminina, entre outros. A perspectiva teórico-metodológica da autora busca realçar a questão de gênero sempre levando em conta a condição racial e de classe das mulheres a que os dois periódicos almejavam cativar e orientar, no caso as mulheres brancas, alfabetizadas e da elite.

O trabalho Arranjos eleitorais no processo de eleições em Minas Gerais na década de 1860, de Michel Saldanha, versa sobre importante temática política que cada vez mais vem merecendo a atenção da historiografia: as eleições. Embora as eleições sejam um assunto sempre referido nos trabalhos sobre a histórica política do Império, só recentemente vimos surgir inúmeras pesquisas que têm como seu objetivo particular o processo e a dinâmica eleitoral em diversos momentos e espaços do Brasil oitocentista. A autora se debruça sobre as eleições em Minas Gerais, na década de 1860, com um intuito de discutir as estratégias informais e formais utilizadas pelos candidatos e partidos para obtenção de sucesso nas urnas. Neste sentido, a difícil feitura da chapa de candidatos, a busca de aproximação dos dirigentes políticos com o seu eleitorado e a qualificação dos votantes estão entre as práticas eleitorais analisadas.

Educação e trabalho: a função “regeneradora” das escolas nas cadeias da Parahyba Norte é o título do artigo Suênya do Nascimento Costa. Nas suas páginas, são abordadas as práticas pedagógicas no Brasil do século XIX direcionadas à população carcerária, em sua maioria constituída de pessoas de origem humilde, no intuito não só de discipliná-las, mas também instruí-las sobre os valores dominantes que deveriam reabilitar os indivíduos criminosos para o convívio social, especialmente através do trabalho, em conformidade as ideias em voga no século XIX.

O artigo de Paulo de Oliveira Nascimento, intitulado Até onde mandam os delegados: limites e possibilidades do poder dos presidentes de província no Grão-Pará e Amazonas (1849 – 1856), versa sobre o executivo provincial cujos titulares, na qualidade de representantes do governo central, buscavam impor a orientação dos gabinetes às diversas partes do Império nem sempre com sucesso. No território do Amazonas o autor explora as dificuldades enfrentadas pelos presidentes para administrar um conflito antigo em particular, o que envolvia o religioso e diretor da Missão de Andiras e as autoridades locais pelo controle dos indígenas.

O estudo sobre a instância de poder provincial é também o assunto do artigo Instituições entre disputas de poder e a remoção dos párocos em Minas Gerais, de Júlia Lopes Viana lazzarine, que aborda a interferência dos presidentes de província no Padroado Régio, tida como supostamente prevista no Ato Adicional. Como aconteceu frequentemente por todo o país à época da Regência, a extrapolação das atribuições de poder na esfera províncias, prevista naquela lei descentralizadora, terminou por conflitar diversas instâncias político-administrativas. Em Minas Gerais não foi diferente. No caso discutido, ocorreu o embate, de um lado, entre o governo provincial e a Igreja; e de outro, entre a Assembleia Provincial e a Câmara dos deputados.

O artigo de Rafhaela Ferreira Gonçalves, Contornos políticos em torno dos processos cíveis de liberdade na zona da mata pernambucana: a denúncia de Florinda Maria e o caso dos pardos Antônio Gonçalves e Bellarmino José (1860-1870), discuti como base documental os processos cíveis, que constam na atualidade como fontes valiosas para a compreensão da luta dos escravizados pela liberdade. Por meio da análise de um deles, a autora consegue muito bem desvendar as estratégias encontradas pelos escravizados para se valerem do sistema normativo dominante a seu favor nos tribunais. A ação de liberdade escolhida pela autora para apreciação não poderia ser melhor. Trata-se do caso de uma liberta que engravidou de seu antigo senhor e depois viu seus filhos, nascidos do ventre livre, serem vendidos pelo pai como se fossem cativos.

Manoel Nunes Cavalcanti Junior, em A Revolta dos Matutos: entre o medo da escravização e a ameaça dos “republiqueiros” (Pernambuco-1838), investiga uma revolta da população livre e pobre do interior, na região da Zona da Mata e Agreste, que teve como estopim um decreto do governo interpretado pelos populares como uma medida visando escravizá-los. Na sua abordagem o autor investiga o levante em dupla perspectiva. Primeiro, no contexto do conflito intra-elite no período regencial , quando a boataria sobre o cativeiro da população foi atribuída pelas autoridades aos inimigos do governo, os chamados Exaltados, os quais procuraram aliciar para o seu lado os habitantes do interior tidos à época como “ignorantes” e de fácil sedução. Segundo, procurando compreender a revolta a partir das motivações próprias da gente livre e pobre do campo, que era a que mais penava com o recrutamento militar e tinha razões de sobra para desconfiar de tudo que vinha das elites e do Estado.

O trabalho O julgamento do patacho Nova Granada: embates diplomáticos entre Brasil e Inglaterra no auge do tráfico atlântico de escravizados nos anos de 1840, de Aline Emanuelle De Biase Albuquerque, nos remete à questão da repressão ao comércio negreiro e dos envolvidos nesse negócio ilícito, arriscado e lucrativo. Por meio de um processo crime que durou anos e que não condenou ninguém, a autora desvenda o conluio entre o governo brasileiro e os traficantes, os desacordos entre as autoridades britânicas e brasileiras no caso, assim como quem eram os integrantes dessa atividade mercantil proibida desde 1831. Na sua apreciação, aspectos interessantes da logística e da organização do tráfico são também revelados, como o tipo de equipamento encontrado nas naus que seguiam para África ou de lá retornavam, e que era considerado prova da atividade negreira, independe da presença de cativos na embarcação.

A imprensa no período de emancipação do Brasil de Portugal, no momento de definição dos rumos da nação que se pretendia construir, consta como temática do artigo O Reverbero Constitucional Fluminense e as interpretações do tempo no contexto da Independência (1821-1822), de João Carlos Escosteguy Filho. Nesse sentido, o autor expõe e problematiza a compreensão do tempo e da trajetória histórica do Brasil e das Américas presentes nas páginas da folha em tela, cujos propósitos eram o de influenciar o debate público e os rumos políticos do país.

Amanda Chiamenti Both, em seu trabalho Imediatos auxiliares da administração: o papel da secretaria de governo na administração da província do Rio Grande do Sul, estuda a secretaria de governo provincial, de grande importância para as presidências, mas ainda pouco explorada pela historiografia. Em meio à substituição frequente de presidentes, o artigo demonstra a relativa permanência dos indivíduos indicados para o posto de secretário da presidência no Rio Grande do Sul, além de explorar quem eram seus titulares, como se dava sua escolha e quais as suas atribuições. Suas conclusões apontam para a posição estratégica desse funcionário para o desejado entrosamento entre os presidentes e a sociedade local.

O texto de Ivan Soares dos Santos encerra o dossiê, intitulado Uma trama de fios discretos: alianças interprovinciais das sociedades públicas de Pernambuco (1831-1832). Ele retoma os estudos de duas importantes associações federais por um viés diferenciado daquele geralmente presente na historiografia sobre o período regencial. Neste sentido, o autor procura explorar e realçar as estratégias políticas construídas pelos liberais federalistas de Pernambuco para além das fronteiras da sua província, no intuito de fortalecê-los como grupo em luta pelo o poder.

Em vista dessas considerações, convidamos todos os interessados na produção histórica recente, inédita e de qualidade à leitura deste dossiê dedicado ao Brasil oitocentista.

Cristiano Luis Cristillino

Suzana Cavani Rosas

Maria Sarita Cristina Mota


CRISTILINO, Cristiano Luís; ROSAS, Suzana Cavani; MOTA, Maria Sarita Cristina. Apresentação. CLIO: Revista de Pesquisa Histórica. Recife, v.39, p.1-6, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].

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Clio – Revista de Pesquisa Histórica. Recife, v. 39, n. 1, jan./jun, 2021. (S)

Dossiê: Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia – Parte 2

Apresentação

  • Apresentação | Suzana Cavani Rosas, Cristiano Luís Christilino, Maria Sarita Cristina Mota | PDF | 01-05

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El pueblo contra la democracia: por qué nuestra libertad está em peligro y cómo salvarla | Yascha Mounk

A onda de recessão democrática global gerou outra onda: a de livros teóricos sobre o tema, que surgiram aos montes em tempos recentes. Um desses é El pubelo contra la democracia, de Yascha Mounk, professor de Harvard. Yascha, como grande parte dos pesquisadores do Norte, prefere trabalhar com o conceito de populismo, evitando outras noções também em voga como fascismo, democratura e afins. Independente do rótulo utilizado, Yascha prossegue com a discussão que se tornou em voga: por que a democracia liberal passou a dar sinais de decadência após décadas de estabilidade?

Enquanto autores como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018, p. 33-34) preferiram focar sua obra, na fragilização das instituições através de um processo de autoritarismo gradual, Mounk direciona o seu livro para uma visão menos institucional e mais “popular”. Isto é, busca compreender menos os líderes por trás desses movimentos anti- democráticos, e mais a base que os sustentam: o povo, conforme até mesmo o título deixa claro. Para isso, se propõe a debater os motivos que levaram parte da população mundial a rejeitar a democracia, que, outrora com apoio majoritário, atualmente encontra-se, na melhor das hipóteses, desacreditada (MOUNK, 2018, p. 64).

A surpreendente vitória de Donald Trump em 2016 serviu para evidenciar um tumor no âmago da democracia liberal (MOUNK, 2018, p. 10): se a suposta democracia mais estável e poderosa do planeta pode eleger um demagogo, o que será das outras? Previsível, portanto, que essa eleição tenha acabado por impulsionar também a eleição de outros demagogos ao redor do planeta (MOUNK, 2018, p. 10). Apesar de suas idiossincrasias variáveis de nação para nação, todos esses “homens fortes” (MOUNK, 2018, p. 13) possuem características interseccionais entre si: os ataques à mídia livre; a perseguição à oposição; a existência de inimigos invisíveis, dentro e fora de seus países; e, mais notável, a simplicidade com que tratam a democracia, interpretando a realidade como crianças mimadas, se propondo a solucionar todos os problemas possíveis (apenas para suas seitas), mas sem propostas reais de como fazê-lo (MOUNK, 2018, p. 12-16). Mas o que leva as pessoas desejarem isso, almejarem trocar a estabilidade da democracia liberal por um movimento populista autoritário, quando não fascista?

Para Mounk (2018, p. 159) o primeiro motivo é pragmático: estagnação econômica. Crises e estagnações historicamente sempre favoreceram o surgimento ou ascensão de regimes autoritários, principalmente quando aliadas a altos índices de corrupção. A crise de 2008 e as medidas de austeridade que se seguiram a ela, adicionaram ainda mais caldo ao ressentimento criado pela estagnação. Na impossibilidade de prover a família ou de desfrutar do mesmo conforto que outrora possuíra, as pessoas direcionam o seu ressentimento e frustração para a política e para bodes expiatórios conforme a necessidade: alguém precisa ser culpabilizado pelo fracasso. No caso europeu e estadunidense, os imigrantes; no caso brasileiro, a corrupção e o fantasma invisível e onipresente de um comunismo inexistente.

Segundo Mounk (2018, p. 172), a segunda razão, principalmente na Europa e na América do Norte, é a imigração. A presença do alien, do desconhecido, o contato com novas culturas, principalmente em momentos de crise, é um ingrediente importante para o bolo do nacionalismo populista. Como efeito, Mounk também constata que homens são mais suscetíveis a sucumbir à hipnose populista pela perda de autoridade masculina conforme, nas últimas décadas, a tradição de poder é progressivamente questionada. Da mesma forma, o Partido Republicano, nos EUA, é particularmente forte entre os homens brancos, o maior eleitorado de Donald Trump, dado que sentem um esvaziamento de seu poder e se colocam, eles próprios, como vítimas (STANLEY, 2018, p. 98, 104-105). Assim, surgem narrativas que apontam mulheres independentes, negros, judeus, árabes, homossexuais, ou qualquer desviante da tradição, como responsáveis por um suposto declínio da nação.

O terceiro motivo, o grande diferencial dos populismos contemporâneos, é a ascensão da internet e das redes sociais como ferramenta de comunicação em massa (MOUNK, 2018, p. 152-153). Ao passo que fenômenos como a tão em voga fake news pouco têm de novo, as redes sociais ajudaram na disseminação da mentira, bem como na organização de grupos de ódio e na padronização dos pensamentos através de algoritmos. Se na realidade somos constantemente expostos ao outro, a uma alteridade forçada, na internet podemos facilmente nos fechar em pequenos grupos, repetindo mentiras até que se tornem verdades. Como Orwell (2009, p. 338) já mostrava, 2 + 2 passa a ser 5 se assim for conveniente, e quem mostrar que é 4 é obviamente um (insira aqui o rótulo do inimigo objetivo do movimento).

Foucault (1979, p. 77) já dizia que “as massas, no momento do fascismo desejam que alguns exerçam o poder, alguns que, no entanto, não se confundem com elas, visto que o poder se exercerá sobre elas […]; e, no entanto, elas desejam este poder, desejam que esse poder seja exercido.” Embora Mounk evite trabalhar com a ideia de fascismo, conforme já foi aventado, o conceito de populismo que desenvolve lida com a mesma ideia: a necessidade das pessoas, em um momento de frustração e desilusão com o establishment político, desejarem avidamente por um “homem forte”, pouco importando seu preparo para o cargo. A capa da edição espanhola, edição que aqui está sendo resenhada, um rebanho de ovelhas, ilustra justamente a submissão do homem-massa ao messias, ao líder.

O modus operandi desses populistas autoritários é padrão e já foi bastante relatado nos últimos anos: a classificação maniqueísta do mundo em uma oposição binária. Consequentemente, todos aqueles que não apoiam esses grupos, são automaticamente classificados como “malignos”. Os meios de comunicação, a oposição e as universidades são alvos preferenciais, e inimigos invisíveis aparecem por todos os lugares. Se há uma característica em comum, a despeito de todas as diferenças, entre esses grupos, essa é o conspiracionismo paranoico.

Um dos exemplos mais mencionados por Mounk (2018, p. 17) é a Hungria de Orbán, sugerida por politólogos após a queda da União Soviética como um dos antigos satélites com mais chances de consolidar uma democracia liberal. Mounk (2018, p. 18) aponta alguns dos pontos que indicavam que a democracia iria se tornar resiliente na Hungria: experiência democrática no passado; legado autoritário mais frágil do que os demais ex- satélites soviéticos; país fronteiriço com outras democracias estáveis; crescimento econômico; mídia, ONGs e universidades fortes. Trinta anos depois, verifica-se justamente o contrário: após anos gradualmente dissolvendo as instituições do país, aparelhando a corte, perseguindo jornalistas e acadêmicos, Viktor Orbán conseguiu, no escopo da crise do coronavírus, enorme poderes (O GLOBO, 2020) e poucos discordariam que a Hungria é, hoje, autoritária.

Outra força importante da obra de Mounk é ressaltar a diferença entre liberalismo e democracia, discussão pouco levantada por outros autores sobre a temática. Com a queda do Muro de Berlim, e o suposto fim da história, o homem se acostumou à falácia de que democracia e liberalismo são sinônimos, de que não há democracia sem liberdade individual, e que não há liberdade individual sem democracia. Viktor Orbán classifica o seu regime como uma “democracia iliberal”, nome orwelliano que, em última análise, sintetiza o seu autoritarismo e o de tantos outros atuais: uma ditadura velada, com uma democracia de fachada, inexistente na prática, com restrição de liberdades individuais e do livre-pensamento (MOUNK, 2018, p. 18). Um método eficiente de “democratura” desenvolvida pela escola Putin de governar.

Mounk divide essas “democraturas” em dois tipos: liberalismo antidemocrático e democracia iliberal. Em outras palavras, uma cisão na noção de democracia liberal, que se parte em duas. A primeira é caracterizada por um sistema fechado, que exclui a população, através do representativismo, da participação política, concentrando o poder nas mãos de uma elite oligárquica. Ou, como Robert Dahl (2005, p. 31) já havia apontado quase 50 anos atrás em Poliarquia, uma hegemonia ou uma semi-poliarquia, considerando que, para Dahl, somente um regime inclusivo e igualitário poderia ser classificado como poliarquia, isto é, o mais próximo possível de uma democracia, esta um ideal utópico a ser perseguido mas nunca alcançado. Entrementes, o liberalismo antidemocrático de Mounk, assim como a hegemonia ou semi-poliarquia de Dahl, é marcado pela concentração de poder e limitação da liberdade apenas para a elite, enquanto o restante da população é progressivamente excluído. O segundo sistema, a democracia iliberal, é uma consequência do primeiro. A população politicamente invisível acaba por ser presa fácil de movimentos populistas anti-democráticos, que supostamente visam subjugar o primeiro sistema, embora, muitas vezes, como ocorreu no Brasil de 2018, sejam parte dessa própria elite. Conforme aponta Jason Stanley (2018, p. 82), “a democracia não pode florescer em terreno envenenado pela desigualdade”. O povo é, assim, capturado pelo discurso do “homem forte”, que retomará o país aos tempos de glória, não importando se a morte da democracia real é uma consequência inevitável desse processo. Soma-se a isso a diminuição da representatividade na democracia representativa. Embora, por sua própria definição, a democracia representativa implica em certo afastamento do povo em relação ao político, dado que o primeiro fica, em grande parte, impossibilitado de tomar decisões diretas, há uma ascensão no sentimento desse afastamento. Isto é, a democracia está supostamente cada vez menos representativa, e os políticos profissionais progressivamente mais afastados da opinião popular (MOUNK, 2018, p. 64).

Talvez o maior defeito da obra de Mounk – um defeito que não é exclusivo seu, mas sim de grande parte dos livros sobre movimentos anti-democráticos contemporâneos -, é vender suas ideias como se fossem novidades, quando Robert Dahl, meio século atrás, já apontava as mesmas questões com nomenclaturas distintas, ressaltando ainda a importância de perceber que a democracia plena é impossível e utópica. Tanto mais, a insistência de Mounk com o rótulo de populismo autoritário recusa, possivelmente para evitar utilizar um termo tão desgastado, a ideia de que parte desses movimentos anti-democráticos sejam de fato movimentos fascistas. Entretanto, se por um lado é realmente necessário evitar elasticizar o conceito de fascismo para não englobar tudo, por outro somente com malabarismo intelectual é possível classificar um Jair Bolsonaro, para usar um exemplo de nosso país, como apenas um “populista de extrema-direita, ultraconservador e nacionalista”. Mesmo porque um populista de extrema-direita, ultraconservador e nacionalista é justamente um fascista.

Referências

DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

O GLOBO. Parlamento da Hungria aprova lei de emergência que dá a Orbán poderes quase ilimitados. O Globo, Rio de Janeiro, 01 abr. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/parlamento-da-hungria-aprova-lei-de-emergencia-que-da-orban-poderes-quase-ilimitados-24338118 . Acesso em: 15 ago. 2020.

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MOUNK, Yascha. El pueblo contra la democracia: por qué nuestra libertad está em peligro y cómo salvarla. Espasa Libros: Barcelona, 2018.

STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Porto Alegre: L&PM, 2018.

Sergio Schargel – Mestrando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, mestrando em Ciência Política pela UNIRIO. Bolsista CNPq. E-mail: sergioschargel_maia@hotmail.com


MOUNK, Yascha. El pueblo contra la democracia: por qué nuestra libertad está em peligro y cómo salvarla. Barcelona: Espasa Libros, 2018. Resenha de: SCHARGEL, Sergio. Velhas ideias sob novas roupagens. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 24, p. 220-224, jul./dez., 2020.

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Rock cá/ rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985 | Paulo Gustavo da Encarnação

Bichos escrotos saiam dos esgotos

Bichos escrotos venham enfeitar […]

Bichos, saiam dos lixos

Baratas me deixem ver suas patas

Ratos entrem nos sapatos

Do cidadão civilizado

(TITÃS, 1986).

Nas favelas, no Senado

Sujeira pra todo lado

Ninguém respeita a Constituição

Mas todos acreditam no futuro da Nação

(LEGIÃO URBANA, 1987)

O primeiro fragmento citado compõe a letra da música “Bichos escrotos”, do álbum Cabeça Dinossauro da banda Titãs. Ainda que apresentada em shows desde o começo da década de 1980, a música foi gravada apenas em 1986. O motivo: a censura imposta no regime militar. Já o segundo excerto compõe o disco Que país é este, da banda Legião Urbana. Lançado no álbum de 1987, a música, igualmente intitulada “Que país é este”, rapidamente se transformou num hit da banda e embalou gerações. Ambas foram oficialmente lançadas nos anos iniciais do processo de redemocratização do Brasil. Contêm críticas profundas ao período e aos fundamentos da Nova República, denominação cunhada para tratar do período iniciado com o fim da ditadura militar (FERREIRA; DELGADO, 2018).

Elas foram (e são) entoadas por jovens de diferentes gerações como canções de protesto e contestação à ordem política vigente e à estrutura social. Embora trintonas, são extremamente atuais para pensarmos o cenário político brasileiro, as relações entre Executivo e Legislativo e, principalmente, as práticas políticas adotadas. Afinal, atualmente ainda sobram “bichos escrotos” que desrespeitam a Constituição, mas, apesar da dura realidade enfrentada pelo cidadão brasileiro, entoam fábulas encantadoras sobre o “futuro da Nação”.

Não obstante, as canções também possibilitam aprofundar a discussão acerca das complexas relações entre história, rock, mídia e política. E suscitam outras importantes indagações, tais como: O que é rock? É um gênero nacional ou estrangeiro? É popular ou elitista? É música de caráter alienante ou música de protesto? É expressão de posturas progressistas ou conservadoras? Como é comumente classificado por agentes do campo midiático?

Esses são alguns dos problemas argutamente debatidos pelo trabalho recém-publicado por Paulo Gustavo da Encarnação, doutor em história pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e com estágio pós-doutoral realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Fruto da sua tese de doutorado, sob a orientação do professor doutor Áureo Busetto, e com estágio de pesquisa em Portugal, o historiador publicou o livro intitulado Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa (1970-1985).

A obra apresentada se inscreve no horizonte da chamada “história política renovada”, que, como formulado por René Rémond (1996), concebe a amplitude dos objetos enfocados pela história política. Toma o rock como objeto com potencial para o conhecimento de práticas políticas diversas e múltiplas dimensões da identidade coletiva — perspectiva que possibilita adentramos “terrenos que, mesmo aparentemente apresentados como paisagens desérticas e estéreis, são searas para serem trilhadas pelo historiador do contemporâneo” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 32). O autor do livro observa a “relação rock/política como resultado de um feixe de relações sociais, cujos subsídios principais podem ser percebidos em discursos, nos comportamentos e, inclusive, nas aparentes ausências de elementos e ingredientes da política” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 32).

Com tais preocupações, Paulo Gustavo da Encarnação procura demonstrar as proximidades entre o rock brasileiro e o lusitano entre as décadas de 1970 e 1980. Aponta semelhanças entre os países; por exemplo, os períodos de ditadura. Mas também cuida das particularidades. Munido de uma perspectiva comparativa, afasta-se de visões totalizantes, hegemônicas e uniformes para pensar os agentes e expedientes dos universos roqueiros brasileiro e português. Como bem lembrou Marc Bloch sobre o trabalho do historiador (2001, p. 112), “no final das contas, a crítica do testemunho apóia- se numa instintiva metafísica do semelhante e do dessemelhante, do Uno e do Múltiplo”.

Assim, o livro busca refletir comparativamente acerca das características do rock lusitano e do brasileiro. Para tanto, leva em conta parâmetros linguístico-poéticos e musicais na análise de canções com críticas sociais e políticas. Procura demonstrar como o gênero foi classificado, respectivamente, por agentes brasileiros e portugueses, ocupando-se especialmente das definições e dos estereótipos formulados pelos integrantes do universo midiático, assim como da constituição e atuação da crítica musical veiculada em cadernos jornalísticos específicos e/ou em revistas especializadas. Portanto, historiciza o rock e o modo como o gênero foi tomado pela imprensa nos universos brasileiro e português.

Com relação à imprensa, concebe as diferentes e, por vezes, antagônicas facetas que conferem existência a uma empresa midiática. Compreende o estatuto das suas fontes e explica, detalhadamente, os passos trilhados para a realização do estudo. Apresenta, por exemplo, o modo como constituiu quadros temáticos para realização da pesquisa documental e para o trabalho com a bibliografia — expediente que possibilitou estruturar uma narrativa fluente e pouco afeita apenas à exposição cronológica e linear dos fatos.

Com base nos dados obtidos em pesquisa documental de fôlego e a partir da consulta crítica e assertiva à ampla e diversificada bibliografia, o pesquisador expõe consistente tese sobre o tema:

O rock produzido em língua portuguesa, no Brasil e em Portugal, desde os anos 1950 vinha num processo de nacionalização que culminaria, a partir da década de 1970 e, com especial destaque, para os anos 1980, no denominado rock nacional. […] defendemos a tese de que o rock produzido durante o período de 1970-1985 expressou e lançou mensagens musicais e críticas políticas. Ele se tornou, por conseguinte, um catalisador e um difusor de anseios e visões de mundo de uma parcela da juventude que não estava disposta a ver suas expectativas com relação à vida cultural e à política encerradas nas dicotomias: nacional/ estrangeiro, popular/elitista, capitalismo/socialismo (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 25).

Além de fértil e sólida tese, o leitor terá a oportunidade de conhecer o trabalho de um pesquisador incansável que minerou e lapidou dados e elementos históricos. Ademais, o livro de Paulo Gustavo da Encarnação é leitura obrigatória para pesquisadores que apreciam a constituição de séries no trabalho de pesquisa documental, a organização do material e sua exposição numa narrativa envolvente, sem, contudo, renunciar ao enfretamento de densas e qualificadas questões teórico-metodológicas. Ao longo dos quatro capítulos, o leitor terá a chance de conhecer a história do rock e, também, uma potente análise sobre as relações desse gênero musical com a mídia e a política no Brasil e em Portugal.

Se, por um lado, o trabalho de Paulo Gustavo nos ensina sobre um objeto específico e a operação do historiador num recorte temporal definido, comparando práticas em dois espaços distintos, por outro lado, chama atenção para a importância de entendermos o universo político para além das leituras simplistas sustentadas por visões duais e dicotômicas de mundo. Essa não seria, aliás, uma necessidade da nossa frágil democracia? Que a leitura de Rock cá, rock lá fomente a reflexão e o debate. E que os leitores experimentem mais do que visões binárias e esquemáticas de mundo. Afinal, como o autor colocou, o rock “é uma miscelânea de difícil definição”, mas como “posicionamentos que buscam criticar os pilares da sociedade”, expressando, “muitas vezes, elementos, mensagens e linguagem contestadoras” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 267-8).

Referências

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

ENCARNAÇÃO, Paulo Gustavo da. Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985. São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2018.

FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucila de Almeida Neves (Org.). O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016 – Quinta República (1985-2016). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. v. 5.

LEGIÃO URBANA. Que país é este. In: LEGIÃO URBANA. Que país é este. Rio de Janeiro: EMI-Odeon Brasil, 1987. 1 áudio (2 min. 57).

RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.

TITÃS. Bichos escrotos. In: TITÃS. Cabeça Dinossauro. Rio de Janeiro: Warner, 1986. 1 áudio (3 min. 17).

Edvaldo Correa Sotana – Mestre e doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Assis). Professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: edsotana11@gmail.com


ENCARNAÇÃO, Paulo Gustavo da. Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985. São Paulo: Intermeios/Fapesp, 2018. Resenha de: SOTANA, Edvaldo Correa. Rock, mídia e política: história numa perspectiva comparada. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 24, p. 225-228, jul./dez., 2020.

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Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (AF)

KILOMBA Grada Foto Divulgacao História & outras eróticas

Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (AF)

Grada Kilomba. Foto: Divulgação.

KILOMBA G Memorias da plantacao História & outras eróticasKILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira.1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. Resenha de: ARAUJO, Débora Oyayomi. Artefilosofia, Ouro Preto, v.15, n.28, abr., 2020.

Ao ler Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, de Grada Kilomba, a primeira sensação é de um lago calmo, de águas paradas que, quando tocado, provoca ondulações que reverberam em camadas. Quando as fraturas e os traumas produzidos ao longo de séculos são ratificados no contexto político atual por meio de uma política genocida de corpos e identidades diaspóricas, ler Grada Kilomba é uma convocação a revisarmos nossa existência. Por isso, ainda que muito depois de sua publicação original, esse livro chega ao Brasil no tempo certo.

A versão em português de sua tese de doutorado, tese esta laureada, em 2008, com a “mais alta (e rara) distinção acadêmica” (p. 12), nos diz muito mais do que havia sido registrado em sua versão original, escrita em inglês, pois reitera o quanto nosso idioma oficial é colonial e colonizado. Na “Carta da autora à edição brasileira”, coube à Grada Kilomba criar um glossário de termos coloniais, racistas e patriarcais para ressaltar terminologias produtora s do trauma racial, nos lembrando de que “cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (p. 14). Assim, enquanto algumas palavras são registradas em itálico devido à problemática “das relações de poder e de violência” (p. 15), outras são simplesmente abreviadas e grafadas em letra minúscula para que, no processo almejado por seu estudo, que envolve a “desmontagem da língua colonial” (p. 18), não rememoremos termos que expressam traumas. Essa primeira característica é imprescindível para o exercício proposto pela autora de produzir oposição absoluta ao “que o projeto colonial predeterminou” (p. 28). Por isso, neste texto, eu também utilizarei os mesmos formatos e, tal qual ela, produzirei o texto em primeira pessoa. Escrever em primeira pessoa e demarcar sua subjetividade é, sem dúvida, uma convocação de Grada Kilomba a todas as pessoas negras que lêem seu livro. Mas vai além, pois propõe o despojamento das armaduras coloniais e acadêmicas que nos aprisionam em modelos rijos de produção científica. Isso se evidencia não somente pela introdução (denominada “Tornando-se sujeito”), mas por todo o sumário, cuja proposta é de identificar, tratar e curar o trauma vivenciado pelo contato da pessoa negra com a branca, no processo de colonização de corpos e mentes da segunda sobre a primeira. Por isso, nada mais propício do que Memórias da plantação como título da obra, dada a capacidade de captura e dissecação do trauma colonial produzido por meio da Plantation. O seu subtítulo compromete-se com a contemporaneidade e a atemporalidade do trauma: o racismo cotidiano que “de repente coloca o sujeito negro em uma cena colonial na qual, como centro do cenário de uma plantação, ele é aprisionado como a/o ‘ Outra/o ’ subordinado e exótico” (p. 30).

Seu estudo tem como objetivo exprimir a realidade psicológica do racismo cotidiano manifestado, na forma de episódios, por relatos subjetivos, autopercepções e narrativas biográficas, de duas mulheres negras, sendo uma afro-alemã e outra afro-estadunidense que vive na Ale manha. Nesse processo, uma segunda marcante característica é o comprometimento da obra com uma abordagem interpretativa fenomenológica, envolvendo duas importantes dimensões: a escrita em primeira pessoa, entendendo que “[e]u sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como ato político. […] enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade da minha própria história.” (p. 28); o investimento na mais descrição do fenômeno em si e menos na abstração dos relatos subjetivos de mulheres negras, sob pena de esse processo “facilmente silenciar suas vozes no intuito de objetivá-las sob terminologias universais” (p. 89). Assim, seu estudo responde a um “desejo duplo: o de se opor àquele lugar de ‘Outridade’ e o de inventar a nós mesmos de (modo) novo” (p. 28).

Dividido em quatorze capítulos, Grada Kilomba perfaz as estratégias raciais operadas pela Plantation e atualizadas nas ações cotidianas contemporâneas. O silêncio é metaforizado, no primeiro capítulo, pela máscara, representante do colonialismo. De outro lado, as metáforas do mito da objetividade e da neutralidade acadêmica são exploradas no segundo capítulo (intitulado “Quem pode falar? Falando do Centro, Descolonizando o Conhecimento”), atuando, ao lado do primeiro, como um exercício de dissecação do racismo como discurso, e explorando e denunciando os processos de descrédito intelectual e acadêmico produzido sobre os corpos e identidades postas à margem. Com isso, a primeira cura ao trauma proposta pela autora envolve a necessidade de descolonização do conhecimento, reconhecendo a potência da posição à margem: “Falar sobre margem como um lugar de criatividade pode, sem dúvida, dar vazão ao perigo de romantizar a opressão. […] No entanto, bell hooks argumenta que este não é um exercício romântico, mas o simples reconhecimento da margem como uma posição complexa que incorpora mais de um local. A margem é tanto um local de repressão quanto um local de resistência […]” (p. 69). Isso envolve, pelo próprio exercício realizado pela autora, o reconhecimento de outras metodologias investigativas e de outros olhares interpretativos. O modo de produzir a pesquisa é impactado diretamente, pois realça as maneiras com o nos apresentamos ao mundo e como somos afetados pelo mundo à nossa volta. Assim, no texto de Grada Kilomba, somos, com nossa subjetividade e experiência individual com o racismo, convocadas/os a nos apresentar ao estudo, como interlocutoras/es ativas/os, críticas/os e conscientes do nosso papel social. É nessa perspectiva que sou impelida a assumir minha posição neste texto resenhístico a partir da minha trajetória pessoal como mulher negra e vivenciadora de experiências cotidianas com o racismo. Não seria possível de outro modo produzir qualquer síntese crítica da obra em questão.

O capítulo 3, “Dizendo o indizível – Definindo o racismo”, produz uma revisão teórica condizente com a proposta de descolonização do conhecimento: ao invés de recuperar a etimologia do termo e sua trajetória ao longo dos séculos, o racismo é apresentado por meio de autoras/es que o interpretam no plano cotidiano das relações sociais. Philomena Essed e Paul Mecheril são os nomes de destaque responsáveis por expor as próprias teor ias raciais e o protagonismo branco em suas definições: “Nós somos, por assim dizer, fixadas/os e medidas/os a partir do exterior, por interesses específicos que satisfaçam os critérios políticos do sujeito branco […]” (p. 73). Assim, a autora acena uma problemática pouco explorada quando se discute o mito da neutralidade: a de que as formulações, teorizações e epistemologias sobre o racismo podem estar sendo confortavelmente produzidas por intelectuais brancas/os que não necessariamente revisam sua própria condição de branquitude. Por isso o capítulo ressalta a necessidade de a pessoa negra tornar-se sujeito falante, ou, nas palavras de Mecheril (p. 74), a “perspectiva do sujeito”, em nível político, social e individual. Ao fazer isso, a autora encaminha-se para a definição do racismo por meio de três características simultâneas por ele assumidas: a construção de/da diferença; a ligação com valores hierárquicos intrínsecos; e o poder de base histórica, política, social e econômica. E, ao expor tais características, a autora ressalta uma afirmação amplamente difundida por nós, estudiosas/os negras/as das relações raciais, em especial no contexto brasileiro: “É a combinação do preconceito e do poder que forma o racismo. E, nesse sentido, o racismo é a suprema cia branca. Outros grupos raciais não podem ser racistas nem performar o racismo, pois não possuem o poder” (p. 76). É imprescindível, para nós, que intelectuais negras/os e intelectuais brancas/os engajadas/os assumam tal perspectiva pois, ainda que seja um aspecto simples e óbvio na interpretação das relações raciais, a compreensão de que poder e racismo são intrinsecamente ligados é uma operação complexa para muitos que resistem em manter sua perspectiva colonial e colonizadora de enxergar o mundo.

Contudo, um aspecto pouco explorado pela autora são as facetas desse racismo: ao passo que ela se dedica a explorar com relativo detalhamento alguns aspectos do cotidiano dos discursos racistas, ao procurar definir racismo estrutural e institucional, Grada Kilomba restringe-se a apresentá-los de modo sintético e sinonímicos, em certa medida. Já a descrição e conceituação do “racismo cotidiano”, uma categoria proposta pela autora – e que, como já destacado desde o início deste texto, representa sua base analítica –, há um maior detalhamento, com destaque para as formas em que o sujeito negro é percebido e que o relegam à condição de “outro”: infantilização, primitivização, incivilização, animalização e erotização. Nesse sentido, a autora conclui que é nos contextos cotidianos que a pessoa negra se depara com tais formas e, por isso, não se trata de experiências pontuais e sim corriqueiras que se repetem “incessantemente ao longo da biografia de alguém” (p. 80).

Nesse capítulo são apresentados os pressupostos metodológicos da pesquisa a partir da perspectiva da “pesquisa centrada em sujeitos ”, tomando como referencial analítico a teoria psicanalítica e pós-colonial a partir de Frantz Fanon. Nessa dimensão, a pesquisa emerge no exame das “experiências, autopercepções e negociações de identidade descritas pelo sujeito e pela perspectiva do sujeito ” (p. 81) e do study up, proposta metodológica em que pesquisadoras/es investigam membros do seu próprio grupo social. Tal proposta é mediada por uma “subjetividade consciente”: a compreensão de que ainda que a/o pesquisadora/a – e membro do grupo – não aceite sem críticas todas as declarações da pessoa entrevistada, ela respeita seus relatos acerca do racismo e demonstra “interesse genuíno em eventos ordinários da vida cotidiana” (p. 83). Assim, as relações hierárquicas frequentemente produzidas entre pesquisadoras/es e informantes é diminuída, considerando o compartilhamento de experiências semelhantes com o racismo. Co m o desenho da pesquisa delimitado, o capítulo adentra na descrição dos procedimentos das entrevistas “ não diretivas baseadas em narrativas biográficas ” (p. 85), que envolveram eixos como: percepções de identidade racial e racismo na infância; experiências pessoais e vicárias de racismo na vida cotidiana; percepções de branquitude no imaginário negro ; percepções de beleza feminina negra e questões relacionadas ao cabelo; percepções de feminilidade negra, entre outras. Foram, ao todo, seis mulheres negras participantes: “três afro-alemãs e três mulheres de ascendência africana que vivem na Alemanha: uma ganense, uma afro-brasileira e uma afro-estadunidense” (p. 84), mas ao final apenas duas – Alicia (afro-alemã) e Kathleen (afro-estadunidense) – tiveram suas entrevistas analisadas, devido ao fato, segundo a autora, de que as demais narrativas “não eram tão ricas e diversas quanto as de Alicia e Kathleen” (p. 84). As entrevistas, respondidas em inglês, alemão e português, captaram as mais diversas percepções acerca das memórias e contato com o racismo cotidiano, tema dos capítulos seguintes do livro.

Mas antes das análises, a autora mais uma vez assume a subjetividade como marca da descolonização acadêmica e mental para conectar raça e gênero a partir de uma experiência pessoal vivida: no capítulo 4 “Racismo genderizado – ‘(…) Você gostaria de limpar nossa casa?’ – Conectando ‘raça’ e gênero”, Grada Kilomba explora a necessidade de interpretações entrecruzadas sobre o racismo cotidiano que marca as experiências de mulheres negras, que são racializadas e generificadas. Para tanto, recupera perspectivas de Essed, Fanon, bell hooks, Heidi Safia Mirza e outras para interpretar, analisar e argumentar como operam as correlações entre mulheres negras e homens negros, mulheres brancas e homens brancos na interface de temas como patriarcado, feminismo, sexismo e violência. São expostas contradições do discurso feminista branco, da ideia de sororidade universal, e são evidenciados os limites do homem negro que não é “beneficiado” com o patriarcado. Por outro lado, sua perspectiva também ressalta a condição em que o termo “homem” é utilizado por Fanon tanto para designar “homem negro ” quanto “ser humano”, que acaba por realçar o masculino como condição única de representação da humanidade. Por isso, ressalta a autora, que a “reivindicação de feministas negras não é classificar as estruturas de opressão de tal forma que mulheres negras tenham que escolher entre solidariedade com homens negros ou com mulheres brancas, entre ‘raça’ ou gênero, mas ao contrário, é tornar nossa realidade e experiência visíveis tanto na teoria quanto na história” (p. 108).

Por meio de categorias, trechos das narrativas das entrevistadas foram divididos em capítulos, por temas. No capítulo 5, “Políticas espaciais”, os relatos dimensionam as experiências relacionadas à “Outridade”, ao estrangeirismo e ao estranhamento daquelas mulheres na Alemanha, país onde vivem. Perguntas como “De onde você vem?”, “Como ela fala alemão tão bem?” ou afirmações do tipo “Mas você não pode ser alemã!” são marcadores latentes nos relatos das entrevistadas, refletindo uma espécie de fantasia que domina a realidade acerca da história alemã, ignorando que existem várias histórias sobre uma mesma localidade. Assim, analisa a autora: “racismo não é a falta de informação sobre a/o ‘Outra/o’ – como acredita o senso comum –, mas sim a projeção branca de informações indesejável na/o ‘Outra/o’. Alicia pode explicar eternamente que ela é afro-alemã, contudo, não é sua explicação que importa, mas a adição deliberada de fantasias brancas acerca do que ela deveria ser […]” (p. 117).

O capítulo seguinte, “Políticas do cabelo”, analisa as experiências de violência e opressão que incidem sobre a imagem, autoestima e identidade das mulheres entrevistadas, ressaltando que existe “uma relação entre a consciência racial e a descolonização do corpo negro, bem como entre as ofensas racistas e o controle do corpo negro ” (p. 128). Na tentativa de aliviar as violências sofridas, a adoção de procedimentos de desracialização do “sinal mais significativo de racialização” (entendido, pela autora, como sendo o cabelo) é uma ação latente nas narrativas das entrevistadas. Mas oscilam, em seus discursos, a percepção da invasão de seus corpos por meio do toque, dos olhares de nojo e desprezo e experiências de resistência e consciência política.

“As políticas sexuais” são abordadas no sétimo capítulo da obra e apresentam o cerne da discussão em torno da objetificação e expropriação da humanidade do corpo negro. As histórias, cantigas, mitos e narrativas difundidas desde a infância constroem, para negras/os e brancas/os, uma barreira racial repleta de violência, sadismo e ódio. A autora explora, por meio da noção de “constelação triangular” (forjada a partir do complexo de Édipo em Freud e das ampliações analíticas de Fanon), as situações cotidianas em que o racismo é produzido sem nenhum cerceamento e, pelo contrário, muitas vezes apoiado por outrem: “Por conta de sua função repressiva, a constelação triangular, na qual pessoas negras estão sozinhas e pessoas brancas como um coletivo, permite que o racismo cotidiano seja cometido” (p. 137). Esse processo de triangulação também opera em contextos em que o homem negro é alvo do ódio do homem branco: “Dentro do triângulo do racismo, o sujeito branco ataca ou mata o sujeito negro para abrir espaço para si, pois não pode atacar ou matar o progenitor” (p. 140).

No capítulo 8, intitulado “Políticas da pele”, os relatos das entrevistadas são analisados sob a perspectiva d a deturpação versus identificação racial, que envolvem processos de negação da negritude feita pela pessoa negra ou branca, a depender das relações afetivas estabelecidas entre ambas. É o caso relatado por Alicia, ao ouvir de sua amiga branca que ela não era negra, ou de sua família adotiva, que se referia a ela como mestiça (Mischling), ao passo que as demais pessoas negras eram referidas pejorativamente como N. (Neger). Grada Kilomba interpreta tal processo como um misto entre fobia racial e recompensa: “Isso permite que sentimentos positivos direcionados a Alicia permaneçam intactos, enquanto sentimentos repugnantes e agressivos contra sua negritude são projetados para fora” (p. 147).

Numa categoria maior, intitulada anteriormente em seu texto como “cicatrizes psicológicas impostas pelo racismo cotidiano” (p. 92), a autora engloba os capítulos de 9 a 12. O primeiro deles, “A palavra N. e o trauma”, a dor, aspecto central de sua tese, é retomada a partir de narrativas que envolvem o contato com a violência exotizadora por meio da utilização discursiva de termos racistas. Para tanto, o capítulo inicia com a narrativa de Kathleen que ouviu de uma criança branca: “Que Negerin [Feminino de Neger ] linda! A Negerin parece tão legal. E os olhos lindos que a Negerin tem! E a pele linda que a Negerin tem! Eu também quero ser uma Negerin !”. Ao afirmar que quer ser uma Negerin também, a menina produz um efeito duplo: de reafirmação de sua posição d e sujeito branco – pois Negerin “nunca significa ser chamada/o apenas de negra/o; é ser relacionada/o a todas as outras analogias que definem a função da palavra N. ” (p. 157) – e recolocação da vítima na cena colonial original: “Essa cena revive, assim, um trauma colonial. A mulher negra continua a ser o sujeito vulnerável e exposto, e a menina branca, embora muito jovem, permanece a autoridade satisfeita” (pp. 157-158). O trauma causa dor, demonstrando os efeitos psicossomáticos do racismo por meio da necessidade de transferir a experiência psicológica para o corpo, buscando “uma forma de proteção do eu ao empurrar a dor para fora (somatização)” (p. 161).

“Segregação e contágio racial” é o título do capítulo 10, no qual o medo branco é acionado pela metáfora da luva branca utilizada por pessoas negras forçadamente quando tinham que tocar o mundo branco. Como descreve a autora, as luvas atuavam como uma “membrana, uma fronteira separando fisicamente a mão negra do mundo branco, protegendo pessoas brancas de serem, eventualmente, infectadas pela pele negra ” (p. 168). O efeito nefasto vai, contudo, além, pois as luvas que aliviavam o medo branco da contaminação “ao mesmo tempo, evitavam que negras e negros tocassem os privilégios brancos ” (p. 168). Outra metáfora acionada no capítulo é: “uma pessoa negra tudo bem, é até interessante, duas é uma multidão” (p. 170), expondo a faceta da solidão de pessoas negras em espaços segregados e o quanto suas ações são constantemente vigiadas e avaliadas. Esse tema liga-se diretamente ao capítulo seguinte, “Performando negritude”, em que o sujeito que representa a exceção é exposto e cobrado pois, ao mesmo tempo em que é alvo do medo e do ódio, deve “representar aquelas/es que não estão lá” (p. 173). Por isso, o questionamento e a comprovação da capacidade intelectual é uma marcante nas narrativas das entrevistadas. Ser “três vezes melhor do que qualquer pessoa branca para se tornar igual” (p. 174), faz dela uma pessoa “tríplice” e, assim, a compensação é acionada: “Você é negra, mas…” inteligente. A inteligência existe “desde que seja comparada à branquitude” (p. 177). Outros aspectos explorados no capítulo relacionam-se à recolocação geográfica do estrangeira/o ou da pessoa negra para fora, para a margem, e o racismo explícito, endossado por um processo discurso alienante, pois a pessoa é insultada sem ser alvo direto do insulto, retomando, novamente, as constelações triangulares. Tais contextos são ressaltados mais uma vez pela autora como mostras do racismo cotidiano.

O último capítulo da categoria “cicatrizes psicológicas…” é intitulado “Suicídio”. Sem dúvida é o máximo e último estágio do trauma e o mais eficaz do racismo. É quando o “ sujeito negro representa a perda de si mesmo, matando o lugar da Outridade” (p. 188). Tal capítulo é fruto da recorrência de narrativas das mulheres entrevistadas sobre experiências diretas com o suicídio (seja da mãe, da amiga…) e da necessidade de tratar o trauma. Assim, nos lembra Grada Kilomba que, no contexto da escravização, toda a comunidade negra era punida quando um de seus membros tentava ou cometia suicídio. Isso não explicita apenas o óbvio (o interesse das/os escravizadoras/es em não perder sua propriedade), mas, principalmente, “revela um interesse em impedir que as/os escravizadas/os africanas/os se tornem sujeitos ”. Por isso o suicídio “é, última instância, uma performance de autonomia” (p. 189). Mas não somente esse aspecto é explorado: a autora também analisa como a figura da mulher negra forte e, portanto, sem necessidade de apoio psicológico, é recorrente na trajetória de vítimas de suicídio. Essa imagem é uma resposta à outra figura estereotipada da mulher negra como preguiçosa e negligente em relação às suas filhas e filhos. Portanto, num duplo processo de estereotipia, as “mulheres negras só se encontram na terceira pessoa, quando falam de si mesmas através de descrições de mulheres brancas ” (p. 195).

Por fim, os últimos capítulos são dedicados ao tratamento: correspondem à categoria “estratégias de resistência” (p. 92). “Cura e transformação” intitula o 13º capítulo, e analisa situações vivenciadas por Kathleen (ao enfrentar um contexto de racismo) e Alicia (ao se reconectar consigo mesma). Dois marcadores desse capítulo são, portanto, a desalienação e o reencontro com seu coletivo. O contato com leituras, com suas histórias e com seus iguais emergiram nos discursos das duas mulheres entrevistadas atuando de modo a reparar uma conexão interrompida. É latente, nesse sentido, a narrativa de Alicia sobre o fato de inicialmente não entender e aceitar que pessoas negras desconhecidas a cumprimentassem e depois reconhecer o laço histórico que as une. Ao ser chamada de irmã (sistah) por um jovem negro, sua percepção foi de que “‘Sim, sistah, eu sei o que você passou. Eu também. Mas eu estou aqui… Você não está sozinha.’” (p. 210).

A “reparação traumática” é acionada por Alicia, assim como foi por Kathleen, quando enfrentou sua vizinha que insistia em manter um boneco negro como “enfeite” na varanda de sua casa. Esse processo liga-se diretamente à conclusão do livro, no capítulo “Descolonizando o eu”. Entre outros elementos explorados e retomados pela autora, está a proposição mais significativa para a cura do trauma: ao invés de perguntar à vítima o que ela fez diante do racismo cotidiano (e sempre inesperado), sua proposição é que a pergunta seja: “O que o racismo fez com você?”. “A pergunta é direcionada para o interior […] e não para o exterior”, produzindo um efeito de empoderamento “no qual alguém se torna o sujeito falante, falando de sua própria realidade” (p. 227). Mas, principalmente, a proposição de novas fronteiras é o elemento central da cura: é quando, para a autora, o triângulo é modificado e não mais são respondidas as perguntas produzidas pela branquitude que, verdadeiramente, não está interessada em respostas, mas sim na experiência de ocupar a posição de falantes sobre o sujeito negro. A cura também ocorre com a superação do perfeccionismo e a assunção da desalienação. A autora demonstra como todo esse processo opera por meio de cinco mecanismos diferentes de defesa do ego: negação (do racismo e reprodução da linguagem da/o opressora/opressor); frustração (percepção de sua condição de exclusão no mundo conceitual branco); ambivalência (coexistência de amor e ódio, nojo e esperança, confiança e desconfiança para com pessoas brancas); identificação (a busca por sua história e a produção da identificação positiva com sua própria negritude); descolonização: “não se existe m ais como a/o ‘Outra/o’, mas como o eu” (p. 238).

Ao pensar no contexto contemporâneo em que o racismo à brasileira vem assumindo novas configurações, a obra de Grada Kilomba não somente oferece respostas à cura do trauma, mas reafirma a necessidade de assumirmos a nossa história. Retomando a metáfora inicial do lago antes calmo e agora agitado pela reverberação das ondas, um convite inicial e retomado ao final do livro também é feito neste texto: “Somos eu, somos sujeito, somos quem descreve, somos quem narra, somos autoras/es e autoridade da nossa própria realidade […] tornamo-nos sujeito ” (p. 238).

Débora Oyayomi Araujo-Doutora Educação (UFPR) e Licenciada em Letras (Unespar). Professora de Educação das Relações Étnico-Raciais na Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenadora do LitERÊtura-Grupo de estudos e pesquisas em diversidade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para as infâncias. E-mail: debora.c.araujo@ufes.br

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Cultura e democracia: convergências, conflitos e interesses públicos / Albuquerque: revista de história / 2020

Até ontem a palavra do alto César podia resistir ao mundo inteiro. Hoje, ei-lo aí, sem que ante o seu cadáver se curve o mais humilde. Ó cidadãos! Se eu disposto estivesse a rebelar-vos o coração e a mente, espicaçando-os para a revolta, ofenderia Bruto, ofenderia Cássio, que são homens honrados, como vós bem os sabeis. Não pretendo ofendê-los; antes quero ofender o defunto, a mim e a vós, do que ofender pessoas tão honradas. (Marco Antônio, em Júlio César de William Shakespeare)

O dossiê Cultura e Democracia: convergências, conflitos e interesses públicos, ainda que esteja ligado a temas e problemas temporais próximos ao que estamos vivendo no imediato presente, abrange uma temporalidade mais ampla que envolve os diversos meandros que compõe a estrutura do mundo e do Estado modernos. Desde as revoluções burguesas, que marcaram o surgimento de uma nova sociedade, homens e mulheres em vários espaços geográficos passaram por diferentes tipos de instabilidades políticas, o que gerou muitos debates intelectuais além de lutas e disputas frequentes pelas formas de entendimento sobre o poder de atuação das pessoas no espaço público.

O século XIX, por exemplo, é caracterizado no âmbito do continente europeu por numerosas lutas de trabalhadores que perceberam as possibilidades de transformação de suas condições de sobrevivência e de atuação política inaugurada pelo enredo liberal no final do século anterior. Um dos exemplos mais importantes nesse sentido ocorreu em Paris em 1848 quando a utopia da transformação atingiu inúmeras pessoas que incendiaram e subverteram as ruas da capital. A população invadiu e saqueou o Palácio das Tulherias, então residência do rei Luís Felipe. E antes que um governo provisório fosse formado e a Dinastia dos Orleans perdesse o poder, populares arrastaram o trono pelas ruas e o incendiaram na Bastilha. A força política e simbólica do que ocorreu a partir desse acontecimento foi retratada por imagens e palavras, mas nada mais forte que a análise produzida por Karl Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

Escrito entre dezembro de 1851 e fevereiro de 1852, Marx elaborou no calor dos acontecimentos uma análise cortante sobre a amplitude da atuação política de setores sociais explorados na vida democrática da França à época. O mesmo país que poucos anos antes havia legado ao mundo o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” utilizou o discurso da democracia para que as subversões e lutas de 1848 fossem acalmadas e conformadas. A derrota imediata dos trabalhadores que ocupavam as ruas de Paris ocorreu a partir de junho de 1848, quando a Assembleia Nacional Constituinte foi formada e começou a elaboração das bases da Segunda República Francesa. O trono queimado de 1848 foi calmamente reconstruído até que, em 1851, o sobrinho imitou o tio e fez do dia 2 dezembro o seu 18 de Brumário.

Esse é apenas um exemplo onde os temas da democracia e da cultura estiveram fortemente imbricados em um “momento de perigo” do século XIX. Nele podemos observar muitas coisas e tirar diversas conclusões, mas o mais importante é perceber que o discurso democrático, por si mesmo, não garante a ampla e profunda participação política de diferentes estratos sociais. Aqui é desnecessário realçar a habilidade de Marx em tratar desse tema, inclusive porque O 18 de Brumário é inquestionavelmente um clássico, mas é impressionante perceber que desde 1852, quando ele foi publicado, temos condições de desdobrar essa discussão principalmente para entender que a democracia não é um bem em si, mas um constructo social que depende de variáveis históricas e, portanto, de condições sociais que precisam ser cotidianamente pensadas e, claro, reescritas. Inclusive o próprio Marx nas linhas iniciais de seu texto chama a atenção para o fato de que “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2001, p. 25). A participação política requer responsabilidade de todos. As noções de cidadania, igualdade e direitos, entre outros, como todos os aparatos discursivos, possuem correspondentes na prática. O autor alemão nos mostrou no século XIX, que quando alguns grupos colocam em prática a igualdade, outros reagem, inclusive no campo do discurso lançando mão do vocabulário de participação política inaugurado pelas revoluções burguesas.

Tomando essa reminiscência do século XIX como referência, podemos buscar outras no século posterior. O que nos motiva nesse caminhar é o vocabulário político do Estado Moderno, lembrando sempre que nosso escopo são as convergências entre democracia e cultura.

Ao longo do século XX, as duas guerras mundiais foram acontecimentos que alteraram profundamente os debates sobre democracia. Se antes de começar, o primeiro conflito fora saudado em prosa e verso por inúmeras pessoas embaladas pelo nacionalismo e o imperialismo de fins de século na Europa, 1918 apresentou um quadro muito distinto. Além dos problemas econômicos decorrentes da guerra e do novo quadro de forças políticas mundiais, o nacionalismo adquiriu cada vez mais traços xenófobos e chauvinistas. Isso sem contar o peso que a Revolução Russa de 1917 teve para os debates ideológicos da época bem como a acentuada gravidade do processo de exploração do continente africano para a política internacional. Não por acaso, as derrotas mais duras para o campo democrático não tardaram a chegar. Em 1922, Benito Mussolini promoveu a conhecida Marcha sobre Roma, com isso o fascismo entrava triunfal na cena pública contemporânea e, em 1933, Adolf Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha pelo presidente Paul von Hindenburg. Daí até a Segunda Guerra Mundial foi uma questão de tempo e novamente o mundo se viu diante de inúmeros debates sobre a questão democrática.

Muitos autores se dedicaram à discussão sobre democracia e espaço público nesse amplo contexto que abarca também o período posterior a 1945, quando inclusive se coloca em prática no ambiente europeu o Estado de bem estar social. Uma das reflexões mais marcantes da época surge das letras da filósofa Hannah Arendt, em especial por ela entender que o espaço da ação política é o espaço da ação pública por excelência. A política se efetiva onde os Homens se unem aos seus iguais, são capazes de assumir posicionamentos, persuadem, sofrem e aceitam derrotas.

Arendt se dedicou, desde As Origens do Totalitarismo (1951), amplamente às reflexões que envolvem “ação” e “pensamento” no ambiente dos autoritarismos inaugurados no século XX. Os leitores atentos encontram nos seus livros análises primorosas sobre as incongruências que o tema da democracia carrega, entre eles Sobre Revolução (1963), Entre o passado e o futuro (1968) e Crises da República (1969). Nesse último, tratando especificamente da realidade dos Estados Unidos, país que acolheu a autora quando ela fugira do Nazismo, a análise se volta para a revisão da ideia de representatividade política frente às questões da liberdade pública:

Queremos participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público, e queremos ter uma possibilidade de determinar o curso político do nosso país. Já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para determinar nosso destino, precisamos de um certo número de espaços públicos dentro dele. As cabines em que depositamos as cédulas são, sem sombra de dúvida, muito pequenas, pois só têm lugar para um. Os partidos são completamente impróprios; lá somos, quase todos nós, nada mais que o eleitorado manipulado. Mas se apenas dez de nós estivermos sentados em volta de uma mesa, cada um expressando a sua opinião, cada um ouvindo a opinião dos outros, então uma formação racional de opinião pode ter lugar através da troca de opiniões. (ARENDT, 2010, p. 200)

É perceptível pela ótica da autora, entre outras coisas, que a participação democrática ampla depende de fatores que vão além do depósito do voto nas urnas e inclui a ampliação dos espaços públicos, a capacidade de diálogo, o processo formativo cultural e educacional, daí a importância do ambiente escolar e da escolarização, discutidos de maneira tão contundente no texto A Crise na Educação. Ninguém nasce em um mundo livre de construções humanas, por isso cada nova geração tem responsabilidade com o passado e com o futuro. Portanto, sem o processo educacional, corremos o risco de ignorar o que as gerações anteriores construíram e, com isso, desprezamos os perigos autoritários inaugurados no passado. E isso, infelizmente, é possível sem o diálogo frequente e a expansão da esfera pública.

Com tantos e profundos autoritarismos no século XX percebemos, lendo autores diferentes e refletindo sobre momentos e sociedades distintas, que é impossível não ser constantemente vigilantes com o processo formativo das pessoas. É ele que minimamente pode garantir um debate mais consistente sobre os meandros democráticos e, principalmente, condições de sobrevivência onde existam conflitos e convergências de interesses públicos.

Apesar de termos percorrido apenas vinte anos do século XXI, está claro que a força autoritária recrudesce imensamente no mundo e no Brasil nos últimos anos. Há inclusive uma extensa bibliografia sobre o tema que vem colocando acentos interpretativos distintos e importantes sobre a ideia de democracia. Desde a publicação de Como as democracias morrem (2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, temos acesso no Brasil aos livros Como a democracia chega ao fim (2018), de David Runciman; O povo contra a democracia (2019), de Yascha Mounk; Na contramão da liberdade (2019), de Timothy Snyder, entre outros. Já entre autores e pesquisadores brasileiros a situação não é diferente e merece destaque o livro do sociólogo Leonardo Avritzer, O pêndulo da democracia (2019).

Levando em conta toda essa discussão e entendendo, desde os escritos mais contundentes do século XIX, que a democracia é um tema sempre a ser discutido, construído e cultivado que estruturamos a proposição deste dossiê. Assim, a articulação entre Cultura e Democracia não é apenas um jogo de palavras que diz respeito às urgências intelectuais da época em que vivemos, mas é um retorno ao passado carregado de historicidade e de respeito aos contínuos movimentos das lutas de homens e mulheres que formaram nossa sociedade ao longo do tempo. Está também relacionada à constatação de que o conhecimento acadêmico é fundamental para uma época que despreza a ciência e a racionalidade como sintoma de autoritarismos políticos e sociais que desprezam a vida e a multiplicidade humana.

Abrindo o dossiê, Durval Muniz de Albuquerque Júnior no texto Narrar vidas, sem pudor e sem pecado: as carnes como espaço de inscrição do texto biográfico ou como uma biografia ganha corpo problematiza a noção de biografia histórica, trazendo à tona como o ato de escrever biografias maneja a dimensão temporal e carnal da existência. Para tanto, o historiador lança mão da obra Roland Barthes por Roland Barthes (2017) e permite que os leitores compreendam que o ato de narrar e ler sobre vidas é carregado de significados variados. No campo do debate sobre democracia, o texto adquire singularidade por nos permitir compreender que quando lidamos com agentes do passado por meio de biografias estamos diante de uma “potência carnal que corporifica a escrita biográfica”.

Na sequência, disponibilizamos as reflexões de Rosangela Patriota sobre as incertezas contemporâneas em torno de práticas democráticas, por meio do artigo A questão democrática em tempos de incertezas. Com essa preocupação, a autora realiza um mergulho no cenário político internacional das últimas décadas para, posteriormente, discutir o tema do antissemitismo em sociedades contemporâneas, a partir do revisionismo na historiografia do Holocausto e por intermédio da peça teatral Praça dos Heróis de Thomas Bernhard. Articulando diálogos entre passado / presente, Patriota problematiza dúvidas e impasses de nossa história imediata.

Ainda no contexto de elaboração de narrativas históricas, cabe destacar o artigo do historiador Antonio de Pádua Bosi, Trabalho, Imigrantes e Política em “Greve na Fábrica”: o maio de 68 para Robert Linhart. Homem público francês, que viveu um dos momentos mais intensos dos debates democráticos da segunda metade do século XX, Linhart produziu um texto revelador sobre identidades culturais e experiência de trabalho industrial a partir da vivência de operários de diferentes nacionalidades na linha de montagem da Citroën, em 1969. Bosi recupera esses escritos e dá dimensão histórica e crítica ao livro do autor francês. Ler o artigo nos ajuda a perceber o quanto a dinâmica do trabalho e o debate sobre democracia se alterou ao longo do tempo, ao mesmo tempo que trouxe consequências marcantes para a vida e a luta dos operários.

Caminhando para a compreensão das discussões da democracia no Brasil, o artigo Paulo Freire: el método de la concientización, em la educación, para analizar y compreender el contexto actual de la Globalización, escrito por José Marin Gonzáles, traz para o debate sobre democracia o tema da educação por meio do método de Paulo Freire no atual contexto de Globalização. O texto é fundamental para um momento em que muito se critica o educador brasileiro sem nenhum tipo de fundamentação acadêmica e mais ainda quando o processo educacional é pensado prioritariamente como corpo que oferece aos sujeitos, desvinculados de quaisquer coletividades, ferramentas exclusivas para o mercado de trabalho. Freire é um chamamento à coletividade, à noção de educação voltada para o bem comum e principalmente para a justiça social, temas caros às experiências democráticas.

Entrando especificamente no diálogo com linguagens artísticas no Brasil dos últimos anos, o dossiê conta com quatro artigos. Em O homem de La Mancha: aspectos da utopia no teatro musical brasileiro da década de 1970, André Luis Bertelli Duarte promove importantes discussões sobre o teatro brasileiro nos duros anos da repressão política brasileira, com destaque para as possibilidades do debate democrático promovido pela encenação musical de O homem de la mancha (Dale Wasserman, 1965), produzido por Paulo Pontes, sob a direção de Flávio Rangel, em 1972-1973. No ambiente de autoritarismos diversos e em especial contra a figura de artistas e intelectuais, a releitura de Quixote se apresentava como ideal de justiça e liberdade.

Ainda dialogando com o campo teatral, Rodrigo de Freitas Costa promove no artigo O teatro de rua e sua expressão política: os primeiros anos do Grupo Galpão de Belo Horizonte (1982-1990) reflexões sobre o teatro de rua no período logo após o processo de abertura política, tendo por referência o trabalho desenvolvido pelo conhecido grupo teatral da capital mineira. O texto contribui para a discussão sobre democracia e cultura no Brasil especialmente por problematizar e questionar a ideia de “vazio cultural” desenvolvida por inúmeros críticos teatrais que tratam da produção nacional pós Estado Autoritário. Nesse sentido, as primeiras peças escritas e encenadas pelo Galpão são o mote para compreender parte da complexidade do processo cultural brasileiro e a amplitude do teatro político nos anos 1980.

Já sobre a relação entre Cinema, Democracia e História, o artigo de Rodrigo Francisco Dias, Autoritarismo e democracia nos filmes “Jânio a 24 Quadros” (1981, de Luís Alberto Pereira) e “Jango” (1984, de Silvio Tendler), permite ao leitor compreender como os temas do autoritarismo e da democracia são reelaborados nos documentários de Luís Alberto Pereira e Silvio Tendler no início da década de 1980. Abordando aspectos formais, o autor mostra como as configurações estéticas carregam posicionamentos históricos e políticos. Com isso, une forma e conteúdo por meio da historicidade e promove considerações importantes capazes de elucidar as dinâmicas do debate democrático dos anos finais da Ditadura Militar.

Por fim, o dossiê se encerra com uma discussão sobre financiamento cultural nos dias atuais. Essa discussão é fundamental para o Brasil de hoje, onde a arte é menosprezada e diversos artistas e intelectuais são hostilizados publicamente. Em um país que investe pouco em educação e cultura, sabemos que as discussões democráticas são frágeis e que os espaços públicos são minados por discursos surdos e preconceituosos. O artigo Democracia e Arte: as percepções da Lei Rouanet e o financiamento da cultura de Jacqueline Siqueira Vigário e Anna Paula Teixeira Daher promove reflexões importantes recolocando essa discussão em bases acadêmicas inicialmente analisando a lei de incentivo à cultura e, por fim, utilizando como exemplo o caso da exposição “Queermuseu: Cartografia da diferença na arte brasileira” (2017).

Como parte do dossiê para este este número de albuquerque: revista de história, há uma entrevista da Professora Doutora Maria Helena Rolim Capelato. Historiadora atuante na esfera pública, árdua defensora do conhecimento histórico cientificamente elaborado e produtora de reflexões importantes sobre História e Imprensa no Brasil do século XX. Na entrevista, a professora fala de sua formação ainda na Ditadura Militar, destaca os principais debates que dizem respeito à sua pesquisa sobre imprensa no Brasil e na América Latina e, por fim, reflete sobre temas políticos brasileiros contemporâneos.

Esperamos que os leitores aproveitem as reflexões que o dossiê traz e que possam cada vez mais entender e divulgar que a democracia não é um bem em si, mas um processo que precisa constantemente ser reelaborado, inclusive quando o objetivo é favorecer o humanismo em tempos sombrios.

Referências

ARENDT, Hannah. Crises na República. Tradução de José Volkmann. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia, 2019.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.

MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. Tradução de Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Todavia, 2018.

SNYDER, Timothy. Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Rosangela Patriota (Universidade Presbiteriana Mackenzie / CNPq)

Rodrigo de Freitas Costa (Universidade Federal do Triângulo Mineiro)

Thaís Leão Vieira (Universidade Federal de Mato Grosso)

Organizadores


PATRIOTA, Rosangela; COSTA, Rodrigo de Freitas; VIEIRA, Thaís Leão. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.12, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

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História da Arte e da Cultura | Unicamp | 2020

Historia da Arte e da Cultura História & outras eróticas

Revista de História da Arte e da Cultura (Campinas, 2020-) é uma publicação vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e uma iniciativa do Centro de História da Arte e Arqueologia (CHAA), desta universidade. Seu principal objetivo é promover um contínuo desenvolvimento da História da Arte e da Cultura no Brasil, relacionando-as com a produção internacional da área.

Revista de História da Arte e da Cultura é a continuação natural da Revista de História da Arte e Arqueologia (RHAA), que em seus 24 números, entre 1994 e 2015, tornou-se referência das revistas científicas brasileiras na área, além de ser a primeira a tratar as duas disciplinas de modo correlato. O objetivo da nova RHAC é continuar com excelência o trabalho, adequando-se às novas necessidades e determinações dos padrões internacionais das revistas acadêmicas.

Primeiro a Revista de História da Arte e Arqueologia e agora a Revista de História da Arte e da Cultura são partícipes do crescente interesse na disciplina, que no departamento de História da Universidade Estadual de Campinas cristaliza-se com a área de concentração em História da Arte e suas linhas de pesquisas. Este periódico afirma o compromisso com a área e sua divulgação em um cenário internacional. Sua publicação online garante uma irrestrita visualização a todos os interessados na disciplina.

A RHAC tem por objetivo a publicação e divulgação da produção acadêmica na área de História da Arte e da Cultura. Abrange textos voltados particularmente à reflexão sobre a visualidade, em suas conexões com o campo cultural. A publicação de trabalhos em português, inglês, francês, italiano e espanhol facilita o acesso a leitores brasileiros e estrangeiros. Publica inéditos de especialistas nacionais e estrangeiros nas seguintes modalidades: artigos, resenhas, entrevistas e transcrições de documentos. Propostas para dossiês podem ser encaminhadas para aprovação no conselho.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2675-9829

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O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história. São Paulo: Intermeios, 2019. Resenha de: MAYER, Milena Santos. Revista Expedições, Morrinhos, v. 11, jan./dez. 2020.

“Os textos aqui reunidos formam uma constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, com pés calçados no presente, com olhos no passado ou como um projeto de história futura” (CEZAR, 2019, p.12). É assim que o historiador Temístocles Cezar apresenta o livro “O Tecelão dos Tempos “publicado no ano de 2019 pela Editora Intermeios. Publicados anteriormente em outros livros ou revistas acadêmicas, os escritos são frutos de análises, pesquisas e apresentações do historiador Durval Muniz Albuquerque Junior em conferências, aulas magnas ou seminários. O autor de “A Invenção do Nordeste e Outras Artes” (1999), “Nordestino: Uma Invenção do Falo – Uma História do Gênero Masculino” (2003) e “História: A Arte de Inventar o Passado” (2007), dentre outros, apresenta a nova publicação rebatendo críticas e comentando a repercussão que o livro de 2007, dedicado também à teoria, que causou entre os colegas da academia.

Segundo Durval, as críticas iniciaram pelo próprio título, uma vez que os termos arte e invenção sugerem um debate polêmico e recorrente no campo da história diante da busca por uma cientificidade. Além das questões teóricas, o autor foi avaliado em relação a forma em que o texto foi construído e apresentado. Por esse motivo, o historiador dedica a apresentação do novo livro para rebater as críticas, justificar e argumentar o uso do ensaio como gênero de escrita. Para ele é possível produzir conhecimento histórico preocupando-se também com a forma e com a estética da narrativa. No decorrer da leitura é possível perceber a intenção em reforçar o entendimento de que o trabalho do historiador é um trabalho de escrita e que, portanto, a forma dessa escrita é essencial e um desafio constante. “Sem a reflexão crítica sobre a arte da narrativa não há ciência possível na historiografia” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2019, p. 16). Leia Mais

Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades | Aguinaldo Rodrigues Gomes

A obra Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades, sob organização de Antonio Ricardo Calori de Lion e Aguinaldo Rodrigues Gomes, nos apresenta, em suas 408 páginas, uma sequência de vinte artigos, divididos em três partes distintas: Existências/Resistências; Subjetividades e as reinvenções de si; e (In)visibilidades e representatividades. Pontuando variados períodos da história humana, o conjunto de textos englobados na obra nos fornece um interessante panorama acerca do corpo e de suas subjetividades desde a antiguidade romana até a contemporaneidade.

Ao considerarmos o atual momento histórico-social brasileiro, no qual a invisibilidade e a marginalização da comunidade LGBT+ [2] aparenta ser uma questão à qual os poderes governamentais gradativamente parecem se afeiçoar, principalmente através de discursos de ódio voltados ao “diferente”, o conteúdo disposto em Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades apresenta-se como uma leitura fundamental para entendermos não apenas as transmutações históricas da mentalidade, corporalidade e sexualidade LGBT+, mas também como uma maneira de compreendermos a vivência desses sujeitos frente às violências quotidianas a que são submetidos.

Embora o foco da maioria dos textos que a compõem seja voltado para experiências de travestis e mulheres transexuais, a obra mostra-se uma prolífica mina de conhecimento ao englobar ideias de importantes pensadores como Judith Butler, Paul Beatriz Preciado, Angela Davis e Michel Foucault, entre outras/os, além de entrevistas com sujeitas/os cujas vivências foram e ainda são marcadas por experiências corporais tidas como desviantes dentro de um contexto patriarcal cis- heteronormativo.

A obra inicia na antiguidade romana, ao examinar a corporeidade masculina em contraste com a idealização quase utópica acerca do conceito de masculinidade e feminilidade da época. Ao explorar a relação do imperador Nero e do escravo Esporo em Um eunuco e um imperador: o discurso literário sobre casamento, corpo e gênero no Império Romano, o autor do texto, Benedito Inácio Ribeiro Júnior, traça uma importante análise sobre o corpo masculino e as funções sociais de homens e mulheres no Império Romano. Ao explorar as relações de poder que permeavam os estratos sociais mais altos da sociedade romana da época, o autor nos convida a questionar como são construídas as identidades de sexo, gênero e corpo, bem como os papéis atribuídos socialmente ao masculino e feminino na sociedade antiga – um questionamento que nos causa também uma reflexão sobre esses mesmos elementos na sociedade contemporânea.

Corpos e comportamentos em desconformidade às regras socialmente estabelecidas também são abordadas no texto Efeminados, travestis, transexuais e hermafroditas luso-afro-brasileiras nas garras da inquisição, de Luiz Mott. Nele, o autor comenta acerca do modo como sujeitos biologicamente identificados como sendo do sexo masculino eram levados aos tribunais inquisitoriais devido a comportamentos desviantes dos padrões patriarcais do período. Para a realização de seu estudo, Mott reúne registros da Torre do Tombo e traça um panorama não apenas do pensamento e valores da época sobre o “ser” masculino, mas também uma visão do feminino enquanto um elemento depreciativo na conduta de homens e rapazes. Nesse contexto, a transexualidade e a travestilidade são empurrados para a margem social como condutas consideradas violações sérias aos olhos da sociedade e da religião, punidas com a prisão, degredo ou mesmo a morte.

Ao pensarmos a realidade brasileira desses indivíduos marginalizados, um ponto bastante complexo e muitas vezes ignorado pelos poderes governamentais é a situação dessas pessoas quando parte da população carcerária. É essa realidade que Aguinaldo Rodrigues Gomes e Josimara Aparecida Magnani exploram em seu texto Travas e Trans – abjetificação e precarização de vidas no cárcere brasileiro. O capítulo traça um retrato da precarização e do desrespeito aos direitos humanos dentro do sistema penal, bem como da violência reservada a esses corpos dentro das instituições carcerárias no Brasil, dando-nos uma visão bastante ampla acerca da virilidade inserida no sistema penal como um instrumento de dominação e uma forma de subjugar corporalidades consideradas abjetas, excluídas do ideário machista.

A questão da corporalidade é também trabalhada lançando-se um olhar para a área da saúde. Nos textos Cada cicatriz conta uma história: corpos doloridos, de Regiane Corrêa de Oliveira Ramos e Frida Pascio Monteiro; Paradoxos discursivos na luta pela inserção social das brésiliennes em Paris, de Marina Duarte e Daniel Wanderson Ferreira; e Despatologização das identidades trans desde os transativismos na Abya Yala: notas sobre uma experiência acadêmica-ativista avaliativa e participativa, de Fran Demétrio, vemos as relações estabelecidas entre o discurso médico e a “criação”, manutenção e (des)patologização dos corpos em transição.

Ramos e Monteiro conectam a vivência de homens e mulheres transexuais no Brasil e na Índia ao discorrer sobre a insubmissão dos corpos frente ao sistema patriarcal, e sobre a violência sofrida por esses corpos em trânsito em suas buscas pela adequação corporal à sua subjetividade. Aqui, nos é exposto também um panorama relativo à lida médica diante de indivíduos transexuais que desejam intervenções cirúrgicas em sua construção corporal.

Duarte e Ferreira comentam sobre a migração de travestis brasileiras para Paris, principalmente com o objetivo de trabalhar no mercado sexual. Também nos é apresentada a figura de Camille Cabral, ativista brasileira trabalhando em território francês em prol da saúde das prostitutas travestis e transexuais. O texto conta com um extenso trabalho de pesquisa relativo à trajetória dos projetos de saúde desenvolvidos por Cabral e associações que trabalham em parceria com esta, em um esforço para a visibilidade e manutenção da saúde dessa população, principalmente em relação ao vírus do HIV/AIDS.

Demétrio, por sua vez, traz a discussão desses corpos em trânsito para o âmbito da América Latina. Em seu texto a autora analisa a situação cultural e sociopolítica de pessoas trans em vários países latino-americanos, além de refletir sobre o papel da justiça, da medicina e da psicologia no tratamento dispensado às comunidades transexuais.

A corporalidade como instrumento da expressão da subjetividade e como fazer artístico é assaz visível nos textos Reflexões transversais sobre o corpo de Hija de Perra (1980-2014), de Thiago Henrique Ribeiro dos Santos; “Com a sobrancelha lá na puta que pariu”: a arte de ser drag em Belém do Pará – a NoiteSuja e as drags Themônias (2014-2018), de Ana Paulo Gomes Barbosa; “Não quero ouvir falar em outro transformista, o que não for Olga del Volga é vigarista”: o nonsense debochado de Patrício Bisso na década de 1980, de Robson Pereira da Silva; DZI Croquettes e os corpos em trânsito, de Natanael de Freitas Silva; e Identidades em trânsito: revisitações acerca da arte da montação, de Juliana Bentes Nascimento.

Em sua análise sobre a trajetória de Hija de Perra, Santos vale-se de conceitos como o de corpo falante, o de máscara e mascaramento, e o de rostilidade, para traçar um esboço sobre a construção corporal de Hija de Perra, em um estudo que mistura fragmentos de dados biográficos e ficcionais do que Santos nos apresenta como uma “poética abjeta e marginal”, um corpo monstruoso e indisciplinado. Colocando-se fora de uma lógica colonial binária, que admite apenas “homem” e “mulher” como construções sociais e sexuais cujas existências são autorizadas, Hija de Perra inventa outros modos de existir, surgindo como uma subversão do sistema, um indivíduo incompreensível pela mentalidade patriarcal hegemônica.

A fuga da normatividade é também explorada por Barbosa ao dissertar acerca das drags Themônias, um grupo que se diferencia das drags “convencionais” a partir, entre outros pontos, da criação de novos conceitos estéticos. É nesse contexto que Barbosa questiona o que é ser drag, além de comentar sobre o pensamento binário ainda existente em meio à comunidade LGBT+ que privilegia as drag queens aos drag kings. A autora também reflete a respeito dos elementos que caracterizam um gênero e quais os limites, se é que existem, entre sexo, gênero e sexualidade dentro de uma lógica heterossexual compulsória. Em sua análise, Barbosa discorre sobre indivíduos que, ao se montarem, são identificados com o gênero masculino, feminino ou nenhum dos dois.

Robson Pereira da Silva, por sua vez, investiga a performance artística de Patricio Bisso como a sexóloga russa Olga del Volga. Em seu texto, o autor explora a performatividade da linguagem da personagem de Bisso de forma a dar vazão a uma subjetividade de gênero que não seria, dado o momento histórico no qual o artista viveu, benquisto frente à sociedade. A mistura de dualidades na figura de Olga del Volga e de Histeria (outra personagem tratada no texto), como o belo, o feio, assim como a fuga aos padrões de beleza e o discurso enviesado por absurdos, unem-se na criação do nonsense utilizado por Bisso em sua arte. Silva defende que ambas as personagens apresentadas no capítulo seriam elas próprias afrontas aos padrões de beleza e comportamento impostos às mulheres.

No âmbito desses questionamentos acerca dos padrões decretados pela lógica cis-heteronormativa, Natanael de Freitas Silva explora a problematização da virilidade e das atribuições de gênero socialmente construídas ao comentar sobre os DZI Croquettes. O autor reflete sobre o período ditatorial brasileiro e como a homossexualidade foi associada a uma doença social, uma degenerescência e um grave pecado aos olhos de setores sociais conservadores. Nesse panorama, a negação de traços tidos como femininos era vista como uma necessidade, uma vez que o feminino era uma mácula na utopia cis-heteronormativa. Em seu texto, Silva comenta também sobre o corpo não mais como uma ferramenta de adequação, mas sim de aperfeiçoamento da performance artística em constante diálogo entre a corporalidade masculina e feminina, uma ambiguidade subversiva e perigosa à “moral e os bons costumes”.

Na discussão relativa à quebra desses parâmetros cis-heteronormativos, Nascimento contribui ao enviesar seus comentários em direção à montação. Ligada ao conceito de mascaramento, a autora trabalha a ideia de montar-se para uma ação em busca não apenas de um efeito estético, mas também de uma nova percepção corporal. Ao comentar sobre formas de montação, como drag queen, drag king, transformismo, cross-dressing e drag queer, incluindo também as drags Themônias, Nascimento monta um panorama sobre esse processo identitário e artístico, em constante diálogo com a performatividade de gênero.

Em alguns capítulos o corpo em trânsito é observado a partir das vivências da infância. Em Vidas dissonantes em memórias de infância: as artes de existência como resistência ao desaparecimento social, de Raquel Gonçalves Salgado e Bruno do Prado Alexandre; e Traíd@s pela verdade: análise cinematográfica sobre a infância trans nas obras francesas Ma vie em rose (1997) e Tomboy (2011), de Márcio Alessandro Neman do Nascimento, Eloize Marianny Bonfim da Silva, Jefferson Adriã Reis e Jéssica Matos Cardoso, nos é exposto um panorama sobre a vivência e construção da identidade sexual e de gênero de crianças em meio a um ambiente adultocêntrico e LGBTfóbico.

Salgado e Alexandre exploram as bagagens memorialísticas de infância de travestis durante suas passagens por instituições escolares. Um fato que torna-se bastante evidente nas narrativas apresentadas é o despreparo da escola para lidar com experiências de gênero dissonantes dentro do sistema de heteronormatividade compulsória. São vivências rechaçadas e desprezadas, mas também rebeldes frente às convenções de gênero e sexualidade.

Já Nascimento, Silva, Reis e Cardoso tecem uma reflexão a respeito das experiências de gênero e sexualidade na infância a partir de obras cinematográficas. Assim como no texto de Salgado e Alexandre, notamos nesse capítulo a violência direcionada à criança que de alguma maneira desvia do comportamento convencionado segundo as normas da sociedade machista. Ambos os textos trabalham em consonância, proporcionando-nos relevantes contribuições ao entendimento da vivência do indivíduo transexual na infância, um importante período de construção da individualidade.

A carga memorialística também é perscrutada por Fábio Henrique Lopes e Paulo Vitor Guedes de Souza no capítulo Suzy Parker e Yeda Brown. Amizade, modos de existência e invenções de si. Nele, por meio de entrevistas, somos apresentados à cena cultural do Rio de Janeiro da década de 1960, na qual travestis inseriam-se no entretenimento noturno da cidade e experimentavam intervenções estéticas corporais a partir de modelos de feminilidade branca e cisgênera. Nesse período notamos a formação de redes de solidariedade para com as artistas travestis que inseriam-se nesse meio.

Lopes e Souza discutem o abandono da ideia do comportamento viril como algo necessário e o autorreconhecimento dessas artistas como mulheres, numa emancipação do padrão cis-heteronormativo – um rompimento com padrões sociais de gênero artificialmente construídos e já então falidos.

A representação das incongruências corporais na mídia também é discutida por Jéfferson Balbino em Representações da transgeneridade na teledramaturgia brasileira, texto no qual o autor preza por explorar, no cenário televisivo do Brasil, a forma como personagens transexuais foram levadas à grande massa consumidora de telenovelas.

Como comenta Balbino, configurando-se enquanto veículo de grande influência cultural e política, a mídia televisiva tem capacidade de provocar reflexões em larga escala e revisões de aspectos culturais. É a partir desse pensamento que o autor analisa a figura de transexuais inseridas em três novelas, a saber: Tieta (1989), As filhas da mãe (2001) e A lua me disse (2005). Balbino pondera sobre questões de subversão de gênero, comicidade voltada ao tratamento dessas personagens e confusões comuns no tratamento dos conceitos de sexualidade e gênero.

Acerca da (in)visibilidade de subjetividades e corporalidades trans, os capítulos Da invisibilidade visível: o caso de Edmundo de Oliveira (Belo Horizonte, 1952-1981), de Luiz Morando; Travestis e transexuais brasileiras: ativismos e estratégias de resistências nos processos históricos de pessoas e coletivos organizados, de Adriana Sales, Herbert de Proença Lopes e Wiliam Siqueira Peres; e A invisibilidade das vivências não binárias das sexualidades e gêneros e a reivindicação do direito de aparecer: itinerários de uma pesquisa/viagem no cistema binário na educação, de José Augusto Gerônimo Ferreira e Leonardo Lemos de Souza, tecem reflexões sobre a forma como as manifestações de gênero e sexualidade, desviantes da norma cis-heterossexual hegemônica, são lançadas na marginalidade em uma tentativa de apagamento dessas vivências. Ao lançar foco sobre a experiência de vida de Edmundo de Oliveira, Morando traça um panorama do modo como a mentalidade patriarcal obriga Oliveira a jogar com a visibilidade e a invisibilidade de sua identidade, de modo a tentar encaixar-se na sociedade de sua época.

Da mesma maneira, Sales, Proença e Peres pintam um retrato das invisibilidades e violências que atingem as comunidades de travestis e transexuais, ao mesmo tempo em que essas coletividades resistem ao apagamento de suas histórias. O texto aponta para o fato de que, ao transitarem seus corpos, esses indivíduos tornam-se um desafio ao poder machista que deseja apagar suas histórias, negando o processo de desumanização desses corpos.

Já Ferreira e Souza lançam sua atenção para a academia ao discutirem a produção de conhecimento sobre transexualidades dentro da universidade, muitas vezes realizada através de um olhar cis-heteronormativo. A visão da academia explorada pelos autores é a de um ambiente no qual o progresso e o retrocesso de ideias comumente coexistem e acabam produzindo saberes construídos sob pontos de vista hegemônicos.

Em Ode à engenharia textual transvestigênere: uma leitura de Liberdade ainda que profana, de Ruddy Pinho, Cláudia Maria Ceneviva Nigro e Luiz Henrique Moreira Soares dissertam sobre a representação de transgeneridades e travestilidades dentro do discurso literário. A partir da escrita em tom memorialístico de Ruddy Pinho, vislumbramos o modo como a autora torna-se ela própria um sujeito de sua escrita ao desconstruir ideais de gênero, sexualidade e identidade única, reafirmando sua existência enquanto um corpo transgressor. A maneira como a escritora é retratada denuncia a instabilidade da identidade masculina e feminina dentro de um contexto sociocultural que caminha, ainda que vagarosamente, para uma configuração plural.

Por fim, em A busca pelo corpo perfeito: uma rápida autoetnografia e análise interseccional da intersexualidade, Carolina Iara de Oliveira discorre acerca das violências sofridas pelo corpo e pela subjetividade de pessoas intersexuais. No texto de Oliveira, os discursos social e médico são ponderados a partir da vivência do indivíduo, na qual misturam-se violências geradas por preconceitos não apenas relacionados à sua materialidade genital, mas também à sua sexualidade, raça e classe social. Oliveira traça assim um quadro bastante claro acerca da maneira como a interseccionalidade atua ativamente na tentativa de adequar os corpos aos padrões cis-heteronormativos.

A recolha de materiais dos mais diversos tipos e nos mais diversos meios, como documentos oficiais, novelas, vídeos de internet, livros e entrevistas, torna a coletânea uma prolífica fonte de informações e fornece uma relevante base para reflexões sobre a subjetividade e a corporalidade dentro da comunidade LGBT+, principalmente no concernente a travestis e transexuais. Os relatos que servem de base para as análises desenvolvidas nos capítulos são em algumas ocasiões apresentados pelas palavras do próprio indivíduo a vivenciar tais situações, permitindo um mergulho na subjetividade das/os entrevistadas/os e o surgimento de um sentimento de empatia por aqueles cujas experiências estão sendo tratadas.

Na obra Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades somos confrontados com corporalidades que não afirmam sua existência a partir de uma forma única de ser. Esses corpos posicionam-se enquanto elementos integrados política, social e culturalmente, ainda que empurrados à margem, em uma sociedade de base patriarcal hegemônica, na qual a valoração dos corpos dá-se através de um olhar cis-heteronormativo. Os modos artísticos de construção do corpo e de expressão do eu interior através das estruturas corporais abrem um horizonte no qual não encontramos apenas a violência comumente dispensada à comunidade LGBT+, mas também uma forma de arte e de enfrentamento do sistema limitante de binaridades homem/mulher.

Transitar, na obra, é mais do que apenas expressar uma individualidade e uma subjetividade latentes, é também transgredir as rígidas normas sociais, políticas e religiosas que vêm regulando o comportamento humano há milênios, em busca de uma expressividade sem restrições. Formada por textos de leitura acessível, diversas vezes utilizando vocabulário próximo ao comumente usado por membros das comunidades LGBT+, Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades configura-se como uma oportunidade de conhecimento e aprendizado, além de uma valiosa contribuição aos estudos corporais, aos estudos sobre gênero e sexualidade, bem como aos estudos LGBT+.

Notas

2. Utilizamos a sigla LGBT+ pelo fato de “LGBT” ser de uso mais corrente do que outras abreviações, como LGBTQI, por exemplo, e por considerar que o sinal de adição (+) indica a abrangência de todas as individualidades representadas por essa comunidade, como queer, intersexuais, assexuais etc. Dessa maneira a nomenclatura fica menos extensa.

Marco Aurelio Barsanelli deAlmeida1 – Possui graduação em Licenciatura em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2010). Desenvolveu estudo acerca do processo de adaptação fílmica de obras do escritor Neil Gaiman. Concluiu em 2015 o programa de graduação em Licenciatura em Letras com habilitação em Português-Italiano da Unesp Câmpus de São José do Rio Preto. Concluiu também em 2015 o curso de Mestrado, cujo foco de estudos foi a adaptação cinematográfica da figura do herói do romance Stardust (1999). E-mail: marcoaurelio_maba@hotmail.com


GOMES, Aguinaldo Rodrigues; LION, Antonio Ricardo Calori de (org.). Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades. Salvador: Editora Devires, 2020. Resenha de: ALMEIDA, Marco Aurelio Barsanelli de. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 23, p. 197-203, jan./jun., 2020.

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O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019. 276 p. Resenha de: SOUZA, Vitória Diniz de. A História como tecido e o historiador como tecelão das temporalidades. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.508-514, jan./jun., 2020.

A historiografia está em constante transformação, por isso, certas tendências foram sendo esquecidas com o tempo e outras surgiram para formular novas maneiras de produzir história. O livro do historiador Durval Albuquerque Júnior, O Tecelão dos Tempos, nos convida a refletir sobre a escrita da história e a inventar novos usos e sentidos para o passado. Essa sua obra pode ser encarada como um manifesto para os historiadores/as repensarem a sua prática e a abandonarem certos convencionalismos que marcam a tradição historiográfica.

O “Prefácio” é escrito por Temístocles Cezar, que define o livro como uma “constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, com os pés descalços no presente, com olhos no passado ou como projeto de uma história futura” (CEZAR, 2019, p. 12). Sendo essa uma boa descrição de como esses textos se entrelaçam e convidam seus leitores a mergulharem em polêmicas discussões sobre a história e o seu estatuto hoje. De fato, a escolha do estilo ensaístico na escrita desse livro é ousada, principalmente, pela liberdade que esse gênero possibilita para quem escreve. Estilo narrativo que foi preterido pela historiografia por muito tempo, em especial, no Brasil. Nesse caso, o ensaio é uma maneira interessante para se iniciar discussões, aprofundá-las, mas sem as amarras conclusivas que certos textos exigem, como os artigos.

Essa obra está dividida em três partes, a escrita da história, usos do passado e o ensino de história, que estão organizadas de maneira sistemática, a partir das temáticas discutidas nos ensaios, articulando-se em uma diversidade de discussões que se interligam em diferentes momentos. Causando uma sensação de fazerem parte de uma mesma narrativa, com início, meio e fim, mesmo que não tenham sido escritas em ordem cronológica, ou que não sejam lidas na ordem apresentada. Por outro lado, pela sua heterogeneidade, cada capítulo inicia uma discussão independente das outras e rica em si mesma. Na primeira parte, “A escrita da história”, inicia a discussão sobre o trabalho do historiador e o estatuto da história enquanto disciplina, problematizando sobre o lugar do arquivo e sobre a prática historiadora – da análise documental ao seu processo de escrita. Enquanto isso, em “Usos do passado”, propõe reflexões sobre passado, memória, patrimônio, comemorações, traumas e esquecimentos. Dessa maneira, possui um olhar criativo sobre esses conceitos tão caros a história, como também, conceitualiza-os, explicitando seus significados e usos, e propondo uma (re)apropriação deles. Na terceira parte do livro, “O ensino de história”, centraliza as discussões acerca da disciplina histórica e o ensino da história na Educação Básica. Demonstrando que além de um erudito e pesquisador, ele também é professor, defendendo a necessidade de um ensino de história que se reinvente dada a situação atual da educação escolar.

Dando início, no capítulo que dá nome ao livro, “O tecelão dos tempos: o historiador como artesão das temporalidades”, defende as razões para que o trabalho do profissional da história seja considerado como de um artesão, pois  […]a história nasce como este trabalho artesanal, paciente, meticuloso, diuturno, solitário, infindável que se faz sobre os restos, sobre os rastros, sobre os monumentos que nos legaram os homens que nos antecederam que, como esfinges, pedem deciframento, solicitam compreensão e sentido (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 30).

As metáforas enriquecem o texto de maneira que o leitor pode compreender a atividade do historiador a partir da comparação com outros ofícios. Mas também, oferece ao profissional uma reflexão sobre a sua prática, principalmente, sobre a sua escrita que, muitas vezes, se vê enrijecida por um texto acadêmico sem vivacidade. Em certo momento, o autor compara o trabalho do historiador com o de um cozinheiro do tempo “aquele que traz para nossos lábios a possibilidade de experimentarmos, mesmo que diferencialmente, os sabores, saberes e odores de outras gentes, de outros lugares, de outras formas de vida social e cultural” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 32).

Em seguida, no capítulo “O passado, como falo?: o corpo sensível como um ausente na escrita da história”, ele faz uma defesa da colocação do corpo, do sensível, das dores, dos sofrimentos, dos afetos, dos sentimentos como lugares para a história. A partir dessa perspectiva, ele aponta para a necessidade de se discutir novas maneiras de expressar as sensibilidades na narrativa histórica, criando novas estratégias que possam expressar na própria pele do texto essa presença, ignorada e mutilada das narrativas acadêmicas. Um corpo que é erótico, que sente afetos, raiva, desejo, rompendo, dessa maneira, com o pudor que cerca a historiografia.

As sensibilidades é um dos temas mais recorrentes ao longo dos capítulos, sendo que em “A poética do arquivo: as múltiplas camadas semiológicas e temporais implicadas na prática da pesquisa histórica”, Durval Albuquerque Júnior critica os historiadores e sua técnica de análise, afirmando que na busca pela informação, o pesquisador pode até se emocionar, pode até ser profundamente afetado pelo contato com a materialidade, mas pouco o leva em conta na hora da sua análise. Essa repressão à dimensão artística da pesquisa histórica leva a dificuldade que os profissionais da história têm de perceber, de lidar, de incorporar, no momento da interpretação, os signos emitidos pela própria escrita do documento. Em suma, a natureza da linguagem é ignorada, seus efeitos e dimensões são apenas transformados em dados. Para o autor o “trabalho do historiador é semiológico, ou seja, constitui-se na decifração, leitura e atribuição de sentido para os signos que são emitidos por sua documentação” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 64). Sendo assim, é preciso enxergar no documento as camadas do tempo, suas marcas, sua historicidade, sua materialidade, significados e sentidos que perpassem não apenas o racional, mas também, o emocional, o artístico.

A questão da poética na escrita da história se destaca no capítulo “Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e documentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico”, no qual Durval Albuquerque Júnior une dois campos diferentes que causam polêmicas entre os historiadores, a ficção e a escrita da história. Inspirado em uma pesquisa do biógrafo Guilherme de Castilho sobre o poeta Antônio Nobre, ele cria um conto fictício no qual personifica os documentos como personagens da história. Instigando o leitor a estar curioso sobre o destino das cartas e dos postais que esse poeta enviou para o também escritor Alberto de Oliveira. O mais interessante é como consegue articular questões teóricas e metodológicas da pesquisa histórica em uma narrativa ficcional, provocando o leitor e sensibilizando-o a imaginar as fontes e sua trajetória. Assim, a subversão do gênero que ele propõe ao construir um texto de história por meio da ficção é uma das inovações mais interessantes desse livro.

A discussão sobre história e ficção é polêmica, tendo sido abordada por uma vasta produção historiográfica. Nesse contexto, diferentes perspectivas acerca do estatuto da história enquanto uma “verdade” entram em conflito. Como é o caso emblemático do historiador Carlo Ginzburg com a historiografia considerada “pós-moderna”. No capítulo “O caçador de bruxas: Carlo Ginzburg e a análise historiográfica como inquisição e suspeição do outro”, Durval Albuquerque Júnior critica o posicionamento de Carlo Ginzburg em relação as suas discordâncias no meio acadêmico. Visto que, Ginzburg é considerado um dos maiores “inimigos” da historiografia “pós-moderna”, entrando em conflito com nomes como os de Michel Foucault e Hayden White. Sendo que, o historiador italiano chegava a transmitir, em certos momentos, xingamentos e ofensas contra aqueles de quem discordava. Durval Albuquerque Júnior critica o seu posicionamento e manifesta as razões pelas quais Carlo Ginzburg utiliza de um procedimento retórico estratégico do discurso inquisitorial e judiciário: a submissão da variedade de formas de pensar a um só conceito, em um só esquema explicativo, que simplifica, caricaturiza e estereotipa aquelas que são consideradas diferentes. Procedimento que o próprio Ginzburg criticou em seus trabalhos, como em Andarilhos do Bem (1988), O Queijo e os Vermes (1987), entre outros. É preciso reconhecer que a dita “historiografia pós-moderna” não se qualifica enquanto uma corrente de pensamento homogênea e coerente, na verdade, ela se apresenta mais como uma diversidade de perspectivas, métodos e teorias divergentes entre si que se aproximam menos pela uniformidade que pelo rompimento com a tradição moderna que marca a história. Para Durval Albuquerque Júnior, Ginzburg utilizava essa estratégia para reduzir em inimigo todos aqueles de quem discordava.

A seguir, as reflexões acerca do passado e da memória e de seus usos no presente ganham forma na segunda parte do livro. Como é o caso do oitavo capítulo, “As sombras brancas: trauma, esquecimento e usos do passado”, no qual o autor faz referência a literatura luso-africana e algumas reflexões proporcionadas pelas obras dos autores José Saramago, Eduardo Agualusa e José Gil em relação a memória, identidade e esquecimento. Com efeito, Durval Albuquerque Júnior discute sobre a questão do trauma na história portuguesa, que apesar de todo o processo de ser uma cidade histórica que constantemente exibe os símbolos e marcas do passado, ao mesmo tempo, ignora ou esquece dos traumas vivenciados, seja a experiência salazariana, como também, o processo de colonização exploratória nos países africanos, asiáticos e americano, como é o caso do Brasil. Para o autor, é função dos historiadores expor o sangue derramado e o “cheiro de carne calcinada” e clamar por justiça. Sendo assim, a história deve ser o trabalho com o trauma para que esse deixe de alimentar a paralisia e o branco psíquico e histórico, em referência a cegueira branca do livro Ensaio sobre a Cegueira (1995), de José Saramago.

Uma discussão semelhante se segue no nono capítulo, “A necessária presença do outro, mas qual outro?: reflexões acerca das relações entre história, memória e comemoração”, no qual Durval Albuquerque Júnior elabora acerca de como as comemorações e datas históricas são encaradas pela historiografia hoje, sobre as quais há um consenso de que precisam ser problematizadas, sendo as versões oficiais alvo de críticas que se transformaram em uma densa produção historiográfica. Ele conclui sobre a importância de “fazer da comemoração profanação e não culto, fazer da comemoração divertimento e não solenidade, fazer da comemoração momento de reinvenção do passado e não de cristalização e de estereotipização do que se passou” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 190). Seguindo essa perspectiva, no décimo capítulo, “Entregar (entregar-se ao) o passado de corpo e língua: reflexões em torno do ofício do historiador”, ele traz também para o debate a questão da “verdade” e do negacionismo histórico que tem sido uma ferramenta recorrente dos grupos de extrema direita no Brasil para desqualificar o conhecimento produzido pela história. Dessa maneira, recomenda maneiras para combatê-lo, como, por exemplo, através do uso da imaginação, da linguagem e da narrativa para emocionar, sensibilizar sobre os sofrimentos, corpos e tragédias ocorridas no passado, como é o caso do Holocausto e da Escravidão. Para o autor, esse é o meio mais eficaz para que as pessoas consigam ser afetadas pelo conhecimento histórico e possam aprender com ele.

Na terceira parte do livro, o foco da discussão foi o ensino de história. Assim, no capítulo “Regimes de historicidade: como se alimentar de narrativas temporais através do ensino de história”, o historiador paraibano estabeleceu um paralelo em termos de comparação entre regimes de historicidade e regimes alimentares. Levantando questionamentos sobre a qualidade do que os alunos estão sendo alimentados nas aulas de história e apontando para a necessidade de aulas mais atrativas, lúdicas, saborosas, sem, no entanto, perder a qualidade, a crítica e a historicidade. Nesse sentido, defende que os professores devem contar histórias que sejam realmente interessantes e que afetem, de fato, os alunos. Sendo responsabilidade dos docentes, ensiná-los a terem uma relação saudável com o tempo, com a diferença e com a alteridade. Nessa proposta de um ensino mais criativo, no décimo segundo capítulo, “Por um ensino que deforme: o futuro da prática docente no campo da história”, o autor provoca o leitor/professor a desconstruir sua visão de escola e da atividade docente, proporcionando uma prática que realmente revolucione. Ele discute sobre o estatuto da escola atualmente e sua “crise” enquanto instituição formadora. Um ensino que deforme é aquele que “investe na desconstrução do próprio ensino escolarizado, rotinizado, massificado, disciplinado, sem criatividade, monótono” (ALBUQUERQUE, 2019, p. 240).

No último capítulo, “De lagarta a borboleta: possíveis contribuições do pensamento de Michel Foucault para a pesquisa no campo do ensino da história”, tece críticas acerca do uso da obra de Michel Foucault na área da educação que se centralizam apenas na escola como instituição disciplinar e que não exploram outros olhares sobre a suas obras. Dessa maneira, ele lista uma série de recomendações para os pesquisadores na área de ensino de história para explorarem a obra de Michel Foucault de outra maneira, uma pesquisa que não repita o que já foi dito, mas que seja inventiva, ousada, evitando assim, certo dogmatismo.

Durval Albuquerque Júnior é um crítico da historiografia e tem uma extensa carreira. Em O Tecelão dos Tempos, ele reúne quatorze ensaios escritos ao longo dos anos, o que explica a variedade de discussões. Esse é um livro instigante que considero a melhor produção desse historiador até o momento. Ele possui uma escrita fluída, clara e objetiva, sendo uma preocupação recorrente a explicitação sobre o significado de conceitos e ideias discutidas, para assim evitar mal-entendidos. Esse livro deveria ser lido acompanhado de outra obra desse autor, História: a arte de inventar o passado, publicada em 2007, no qual ele faz outras duras críticas a produção histórica. Obra polêmica que causou desconforto por parte dos pares acadêmicos, questão tocada por ele na introdução.

Uma das marcas da sua escrita é a presença de inúmeros referenciais teóricos, citados e retomados em diversos momentos do texto. Pela clareza do texto, é uma obra tanto para os mais experientes em teoria da história, como também para os iniciantes. Pelo fato de serem ensaios, as discussões não se encerram nos capítulos, sendo interessante para o leitor procurar as obras citadas ao longo do texto e aprofundar esses assuntos individualmente. Assim, esse exercício contribui para a melhor compreensão dos assuntos abordados e para a visão de outras perspectivas.

De fato, o historiador é como um tecelão, que tece as tramas do tempo, compondo um tecido que, nesse caso, é a narrativa histórica. Sendo também, inclusive, cozinheiro, responsável por produzir sabores, delícias e dissabores no tempo. Portanto, fica a recomendação dessa obra tão rica de discussões pertinentes aos amantes da história e que também se dedicam a produzi-la. Durval Albuquerque Júnior além de historiador, é um poeta, que apesar de não escrever poesias, escreve uma história poética, sensível, afetiva, que emociona e nos faz relembrar dos prazeres de se produzir história.

Referências

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da História. Bauru: Edusc, 2007.

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019.

CEZAR, Temístocles. Prefácio. In: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019, p. 09-12.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

GINZBURG, Carlo. Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Vitória Diniz de Souza – Graduação em História pela UEPB, Guarabira-PB, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação UFRN, Natal-RN. Bolsista de Mestrado do CNPq. E-mail: vitoria4218@gmail.com.

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Da Antropologia e Sociologia do corpo aos Estudos Corporais. Análise e quadro interpretativo / Albuquerque: revista de história / 2020

Estudios sociales, cuerpos y corporeidades

El cuerpo como lo que percibe, lo que toca o lo que ve, es fácil que a su vez sea lo no visto, lo rara vez tocado aunque a menudo trabajado, y como tal lo que se le ha escurrido hace tiempo a la percepción, lo no sentido. Esto llega incluso a lo normativo. La salud y el bienestar pueden definirse como el cumplimiento de la disposición de que el cuerpo no tiene que hacerse notar. Hans Blumenberg (2011)

En los últimos 30 años, y como resultado de un trabajo entrecruzado y permeable entre diferentes disciplinas (entre las cuales podemos mencionar la antropología, la comunicación, la historia, la sociología, el arte, la psicología o la educación), se ha desarrollado un amplio y novedoso campo interdisciplinario que podemos denominar con el término de habla inglesa: Body Studies (Estudios Corporales). Desde los trabajos iniciales de algunos autores que arrancaron con esta forma de investigar y de arropar el cuerpo como objeto de estudio (Marcel Mauss con su texto Techniques du corps; Michel Foucault y una amplia red de textos que han tejido escrituras corpóreas; Pierrre Bourdieu y su trabajo iniciático Remarques provisoires sur la perception sociale du corps) se creó un marco interpretativo sin la pretensión de generar un campo de estudio específico. A través de una segunda generación de investigadores dedicados todavía de forma más amplia y específica al estudio del cuerpo (Bryan Turner o David le Breton, ambos con infinidad de trabajos centrados en el cuerpo como objeto central de sus investigaciones), se han desarrollado diferentes contribuciones que, de forma casi definitiva, han permitido la posibilidad de transitar por caminos alternativos a la hermenéutica del cuerpo como algo biológico, fisiológico o biomecánico.

Es así como podemos aventurarnos a afirmar que los Body Studies nacieron, sin saberlo o sin ser plenamente conscientes de ello, como complemento o alternativa a la perspectiva anatómica y biológica del cuerpo humano. El cuerpo era (y en su esencia sigue funcionando de esta forma) asimilado a los órganos, a lo fisiológico, a lo biológico, pero muy pocas veces a su dimensión cultural o vivencial-experiencial. Desde hace más de 50 años el filósofo alemán Edmund Husserl hizo una distinción que se convirtió en algo fundamental para entender esta cuestión, y que consistió en diferenciar el concepto Leib (cuerpo vivido) de Körper (cuerpo físico).

Desde aquellos autores iniciales se ha tratado de arrojar luz sobre ciertas preguntas centrales sobre las formas de vivir la condición de humanidad. Diferentes escenarios y ubicaciones han desempeñado un papel relevante, pero de manera especial en los últimos 10 años han surgido grupos de investigación, proyectos, tesis, artículos, libros y congresos que ubican a países como México, Brasil, Colombia o Argentina como ejes globales de producción de conocimiento. El dossier que presentamos de la revista Albuquerque busca ofrecer a los lectores trabajos actuales centrados en la perspectiva de los Estudios Corporales con una amplia visión de temas y disciplinas interesados en ofrecer otras miradas sobre el cuerpo. Investigadores y académicos proponen trabajos que nos permiten seguir pensando en el ser humano y sus formas de interacción y circulación por el mundo desde su dimensión simbólica-corporal. Como hemos avanzado, se trata de un campo de intersección, de un espacio en el cual se puede discutir su ejercicio en forma de proyectos de investigación (artículos), resultados de proyectos, ensayos o artículos de revisión en los que se incorporan problemas que abordan la perspectiva de los estudios corporales desde diferentes dimensiones, inclinaciones teóricas o metodologías.

El dossier arranca con un artítulo titulado “O corpo na historia: reflexões sobre a historiografía do corpo, do gênero e das sexualidades”, que propone una profunda revisión de los estudios corporales desde la perspectiva historiográfica. El trabajo recorre distintos momentos, perspectivas, temas y metodologías que en el contexto de una disciplina como la historia han tomado forma en el cuerpo como objeto de estudio. Su propuesta consiste en analizar estos interrogantes con el telón de fondo del género y la sexualidad, verdaderos territorios de impacto social y personal del asunto corporal.

Un segundo trabajo, titulado “A morte no filme ‘Ventos de agosto’: os usos sociais do corpo”, apuesta por mostrar los estudios corporales aplicados al campo de las artes visuales. A partir de la película Ventos de agosto se despliega un conjunto de visiones sobre el cuerpo que lo trasladan hacia la muerte. ¿Qué es un cuerpo en estado final? ¿Cómo se traza una línea que separa la vida de la muerte, el cuerpo del cadáver? El trabajo apuesta por pensar y problematizar de forma dialógica la muerte como uno de los temas centrales de los Estudios Corporales. El tercer trabajo del dossier se presenta alrededor de los cuerpos que no son dóciles. Titulado “Corpos (não tão) dóceis: o rock e a juventude”, el texto transita por elementos no estándares de esta tipología de investigaciones. Se trata de pensar, o mejor dicho de repensar, los cuerpos jóvenes, productores de resistencias somáticas frente a una sociedad ultranormalizada; el rock es el hilo conductor que permite este análisis.

El cuarto trabajo lleva por título “As fronteiras de um corpo imaginário: o gênero e a identidade em ‘O menino que brincava de ser’” y propone estudiar esta obra de Georgina Martins (2000) desde la perspectiva de los estudios corporales. Ello se traduce en un recorrido analítico por las geografias del texto que confrontan las identidades, los géneros, los cuerpos y los imaginarios simbólicos que las envuelven.

Un quinto trabajo propone la recuperación de un término cada vez más en desuso frente a lo que podemos denominar “terminologías queer”. Con el título “A viacrucis do corpo travesti em ‘A Inevítavel Historia de Letícia Diniz’ (2006)”, nos adentramos en la mirada hacia la práctica del travestismo y su vinculación con la vida misma, con el dolor y el sufrimiento de las miradas y de los actos ajenos.

El sexto artículo con el título “‘Com sedas matei e com ferros morri’: o corpo em disputa (classificação, abjeção e violência no Brasil)” propone comprender la disputa de los cuerpos desarrollados a través de su clasificación, basada en la abyección y que tiene en consecuencia, la violencia dirigida a una gran parte de la población LGBT+ en Brasil.

Lo artículo “Concepciones del cuerpo en contextos multi e interculturales” habla de la importancia que reporta la multiculturalidad y la interculturalidad en el análisis de la diversidad cultural, la inclusión social, las identidades colectivas, para visibilizarlos en el cuerpo como auténtico artífice material y simbólico intercultural; el lugar de la intersección de flujos, tensiones y contradicciones del proceso intercultural, siempre precario.

El dossier cierra con un trabajo dedicado a la educación y a los estudios corporales: con el título “Los cuerpos en los procesos de formación inicial en Educación Física ¿Cómo se observan y comprenden?”, el artículo ofrece un análisis de cómo se forman, deforman o performan los cuerpos en uno de los grandes dispositivos sociales: la escuela.

Este conjunto de artículos sirve para abordar desde ángulos distintos y complementarios un marco de trabajo amplio que permite repensar un campo disciplinar todavía en proceso de construcción, y que necesita de aportes transdisciplinares que no se cierren en fronteras académicas y que fluyan por los distintos temas que forman el campo de los estudios corporales para insistir en su vigor.

Referências

BLUMENBERG, Hans. Descripción del ser humano. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011.

Jordi Planella Ribera (Universitat Oberta de Catalunya, España)

Héctor Rolando Chaparro (Universidad de los Llanos, Colombia)

Organizadores


RIBERA, Jordi Planella; CHAPARRO, Héctor Rolando. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.12, n.23, 2020. Acessar publicação original [DR]

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A liberdade é uma luta constante | Angela Davis

Talvez não seja absurda a máxima “me diga o que tu lês e eu te direi o que tu és”. Afinal, nossos gostos não são naturais. São históricos e, portanto, revelam as afinidades teóricas, posições políticas e éticas de nós mesmos e da cultura que nos enlaça. Deste modo, o ato de escolher um livro para leitura reflete as estruturas hierárquicas do poder e do saber.

Logo, escutar a fala de Angela Davis – digo escutar porque o seu texto transpõe as letras e ecoa como uma voz forte que grita a sensibilidade, por meio de seu ativismo político e suas reflexões intelectuais que, aliás, caminham lado a lado, é ganhar fôlego e coragem para falar de coisas que o projeto neoliberal tenta calar para não desestabilizar as relações de desigualdade que ele faz manter rígida.

Davis não fala do racismo contra a mulher negra. Sua frase “quando as mulheres negras se movem, toda a estrutura política e social se movimenta na sociedade” mostra como a violência contra a mulher está diretamente articulada a violência do Estado, ao sistema prisional, ao sexismo e ao capitalismo. Neste sentido, ela desromantiza o feminismo negro e lança a real: para acabar com a percepção de que a mulher negra só serve para ser subalterna ou fazer sexo barato ou forçado, não basta lutar pelo lugar de fala individual. Ter jornalista negra na bancada de um jornal não é suficiente para aplacar o racismo. É preciso refletir, no coletivo, os discursos do presente e ver como eles mantém, sob novos arranjos, o passado escravista, como no complexo industrial-prisional, nos serviços de assistência à saúde, à educação e à assistência social, todas empresas que captam lucros obscenos graças ao encarceramento e a alienação da população. É, pois, na correlação entre as categorias de gênero, raça e classe que somos alertados a pensar e mudar nossa experiência.

Deste modo, as reflexões de Davis nos lançam para a interseccionalidade, um conceito de estrutura intelectual e política que tensiona o dinamismo da violência presente no enodamento entre patriarcado, supremacia branca, Estado, mercado, imperialismo e capitalismo. A luta pela liberdade não é limitada, ela se estende a todas as condições de vida desafortunada do mundo. Para tanto, ela convoca a pensarmos em estratégias e táticas que sejam acessíveis a uma amplitude de pessoas, incluindo aquelas cujo nível de despolitização banaliza injustiças. Para ela, a luta deve ser globalizada, exercida pelo coletivo. Só assim poderemos enfrentar a militarização da sociedade, sempre com beleza e estímulo. Ela realça essas condições para a luta.

Contra o insidioso individualismo capitalista, que é perigoso e inclusive modela e enfraquece as formas de lutas, Davis enfatiza que os movimentos coletivos devem ter maior importância que as falas sobre indivíduos tomados isoladamente. Outrossim, a história não deve ser percebida como gerida por personalidades heroicas, mas por pessoas comuns, que em espírito de comunidade, exercem seu protagonismo. Logo, não se pode reduzir o enfrentamento do racismo a pessoa de Nelson Mandela ou Martin Luther King. Eles foram figuras importantes, claro, mas suas realizações, como eles mesmos reconheciam, aconteceram no âmbito coletivo.

Do mesmo modo, não se pode reduzir a luta contra o racismo a questão da representatividade individual. O ingresso de pessoas negras em quadros de reconhecimento socioeconômico – ter tido um ministro negro como presidente do STF, por exemplo – não aplaca os efeitos do racismo na vida da maioria da população negra. Aliás, é assim que o capitalismo opera seu politicamente correto: individualizando-o, ou seja, concentrando o discurso contra o racismo em exemplos isolados para mantê-lo aceso em suas engrenagens. Assim, os discursos pela representatividade devem se referir a luta pela liberdade negra, o que inclui a acessibilidade aos direitos legais, é verdade, mas, sobretudo, a possibilidade de subsistência concreta, através de moradia, saúde, educação, emprego, segurança, enfim, ao desmonte estrutural do funcionamento social baseado, dentre outros, na violência policial, no aprisionamento racista e na exploração capitalista.

Se tomarmos o complexo industrial-prisional, no Brasil e no mundo, veremos que sua lucratividade é diretamente proporcional a manutenção da engrenagem escravista que ele incita. A tendência a reduzir os problemas de segurança pública à construção de presídios de encobre a tática neoliberal de se desviar dos problemas sociais subjacentes – concentração de renda, qualidade da educação, gratuidade do serviço de saúde, tolerância a diversidade sexual e religiosa, etc., que, em última instância, são transformados em mercadorias extremamente lucrativas quando deveriam ser direitos fundamentais, ofertados gratuitamente a todos, sem exceção.

Dentro desta perspectiva, todo fenômeno que cerceia a vida humana deve ser tomado como uma questão social que os atos de luta por justiça devem incluir em suas pautas. É de extrema relevância uma contextualização ampliada e globalizada para compreender os fenômenos que restringem os direitos civis. Demarcar os elos que articulam as múltiplas formas do aparato segregatício, nos diferentes períodos históricos, é imprescindível. Demarcar a presença do passado no presente, para se tecer um futuro comum, é crucial. Caso contrário, como iremos compreender o fato do negro ser sempre invadido pelo medo quando do encontro com policiais por ser considerado um elemento suspeito? Obviamente, atualmente não vivenciamos os abusos escancarados do tronco de açoite de negros ou da Ku Klus Klan. Não obstante, as atrocidades policial, militar e estatal funcionam sob a mesmo modelo e funcionalidade daqueles. Basta tomarmos o número de adolescentes negros, moradores de comunidades brasileiras, mortos pela polícia.

Portanto, a criminalização do racismo nas leis não significa a abolição do racismo, que persiste de modo ostensivo, transpondo o poder judiciário. As instituições sociais tornam o racismo profundamente arraigado, escamoteado e presente no entrecruzamento dos discursos da economia, da política, da ciência, da religião, da mídia, da estética, da família, das forças armadas, da saúde, da educação e do trabalho.

Por isso, não se pode analisar a questão a partir de casos individuais. Processar alguém que cometeu um ato racista, embora seja importante, não mortifica as raízes do racismo que estão no aparato. Igualmente, ter uma mulher negra no comando de uma penitenciária não oferece garantia nenhuma. As tecnologias e o regime do poder permanecem intactos. Deste modo se o “quem matou Marielle Franco?” reivindica unicamente a criminalização e o encarceramento das pessoas envolvidas, ele estará reproduzindo o trabalho do Estado, porque quando focamos no indivíduo culpado, engajamo-nos involuntariamente na mesma lógica que reproduz a violência que supomos contestar.

Daí os esforços em agregar novas perspectivas nas reflexões dos ativistas, seguindo a linha da interseccionalidade dos movimentos e do desenvolvimento de manobras de lutas que produzam identificações entre os membros que as elaboram e, por isso mesmo, a elas se engajam. Se esse tipo de abordagem não for feita, fica até difícil assimilar a questão do abolicionismo prisional, que envolve questões ideológicas e psíquicas mais profundas que simplesmente o fechamento das instituições. Sobre isso, vale citar a representação do policial e do bandido nos desenhos infantis em que o primeiro é bom porque prende o segundo, que é mau e por isso é levado para a prisão. Ou seja, há um encadeamento implícito entre os significantes mau e prisão, que precocemente é introjetado no imaginário social, impedindo uma análise crítica sobre as condições de possibilidade da maldade, que não são inatas, são sociais. Aliás, as prisões existem para bloquear este tipo de enfoque. A mesma violência que justifica sua construção é aquela da qual ela se alimenta para exercer seu funcionamento.

Destarte, é preciso incentivar pensamentos que desmontem a idéia segundo a qual a prisão é um lugar destinado a punição de quem comete crimes. É necessário ampliar as avaliações. Para tanto, algumas interrogações são bem vindas: por que há mais negros que brancos encarcerados? Por que os escolarizados são minoria nas prisões quando comparados aos analfabetos? Parece que o holofote deveria incidir primeiro sobre os temas racismo, educação, saúde, moradia. Temos de falar do papel político, econômico e ideológico da prisão. É por aí que chegaremos na associação dela ao sistema punitivo, não o oposto. É um esquema lucrativo. Como Foucault anunciou, as prisões existem para não funcionar, para depositar pessoas que representam grandes feridas sociais. É este seu projeto. Segurança, lei e ordem são retóricas que viabilizam o aumento da população carcerária e, por efeito, consolam o eleitorado burguês, promovem a corrupção e a concentração de renda e amalgamam a incompetência e a recusa estatal aos problemas que merecem atenção.

É preciso repetir a todo instante para não esquecer: a abolição da escravatura não aboliu a instituição escravidão, que continua no modus operandi das sociedades democráticas. Lembremos da precarização do trabalho tão bem representada pelotas aplicativos de entrega.

Outro ponto importante salientado por Davis é a necessidade de não inferiorizarmos as pessoas em relação as quais defendemos os direitos. Afinal, a luta por justiça social somente será efetiva se for feita em parceria e igualdade entre aqueles que são injustiçados e aqueles que têm consciência da injustiça. A libertação das mulheres não é uma luta das mulheres, assim como o racismo não é uma luta dos negros. Pensar em termos identitários despontencializa o ato. Não podemos reduzir o feminismo e o racismo aos corpos, ao gênero, a individualidades. A luta não pertence a ninguém em si. Ela é de todos. É global e objetiva a globalidade. Todos os movimentos – população LGBTQ +, feminista, antirracista, dos doentes mentais, prisioneiros, pessoas em situação de rua, etc. devem ser coesos e agir em massa, em solidariedade transacional, pois os objetos de suas causas estão interligados e incorporam em sua estrutura reminiscências históricas de relações de poder.

A mudança deve ser sistêmica. Não podemos medir os níveis de transformação em curso se tomando como critério analítico ações individuais. O indiciamento do policial que matou o adolescente João Pedro em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, em maio deste ano, durante uma operação contra o tráfico de drogas, não dá conta, isoladamente, de romper a barbárie instalada pela violência policial. É preciso repensar o papel da polícia, a forma pela qual ela é encorajada a usar a violência como primeiro recurso de trabalho e de como ela repete a tendência de criminalizar a cor da pele, já reinante na época da escravidão. É curioso escutar nas narrativas de pessoas negras o quanto a cor da pele se coloca como um elemento determinante em suas relações sociais. Uma mulher negra é barrada na piscina de um clube por ser confundida com uma babá. Um homem negro na parada de ônibus é olhado com terror por pessoas brancas por poder ser um assaltante. Enfim, a ideologia entre negritude, sexualização e criminalização é controlada por um aparato que transcende a pessoas e cargos. Eleger um presidente negro não corta a raiz do racismo. Os EUA nos mostra isso. Ter Obama eleito e reeleito, com seu progressismo, não impediu o assassinato do adolescente Michel Brown, em Ferguson, em 2014, tampouco o sufocamento de George Floyd, durante oito minutos, por um policial branco, em maio deste ano. Nenhuma mudança ocorre somente porque um chefe de Estado a quer. Nenhum direito é dado. Todo direito é tomado, através de lutas da massa.

Destarte, devemos inferir que as lutas antirracista, das questões de gênero, contra a homofobia, contra as políticas repressivas anti-imigração, contra os indígenas, os mulçumanos, devem ser tomadas como um emblema da luta pela liberdade. Certamente, a liberdade de muitas pessoas é cerceada. O fato de ter uma modelo negra e trans na passarela da São Paulo Fashion Week não transforma necessariamente a condição de vida da maioria das mulheres negras e trans. Indica, apenas, a ascensão de alguns, bem poucos, indivíduos.As conexões entre os acontecimentos e experiências devem ser continuamente estimuladas para que não esqueçamos de que nada acontece isoladamente. “A injustiça em qualquer lugar do mundo é uma ameaça à justiça de todo o mundo” (DAVIS, 2018, p. 66), diz Davis, citando Martin Luther King.

O neoliberalismo incita o individualismo, fazendo as pessoas pensarem apenas nelas mesmas. Isso aparece até em seu discurso politicamente correto, afinal, o capitalismo é político e sabe usar isso a seu favor, como por exemplo, na tentativa de concentrar na pessoa de Mandela toda a luta antirracista, desconsiderando o processo vivido por um conjunto de companheiros e companheiras. Até nas supostas campanhas publicitárias feitas com pessoas negras, gordas, idosas ou com deficiência o que chama a atenção é o protagonismo para o consumo, para a vida de si mesmo.

Não podemos contaminar as lutas reivindicatórias com tal idéia, pois é no coletivo que elas se dão, apesar de todos os desafios. Afinal, “o otimismo é uma necessidade absoluta, mesmo que seja apenas um otimismo da vontade e um pessimismo da razão” (DAVIS, 2018, p. 56).

Um traço do discurso de Davis é o reconhecimento do sujeito coletivo da história. Para ela, há uma tendência em concentrar os grandes feitos históricos em individualidades masculinas e investidas de poder. Tendência esta perigosa porque enfraquece o movimento. Ora, o número de ruas em nosso país que homenageia os grandes nomes da história é altíssimo. Igualmente o é o número da população carcerária, que passa dos 773.000. Mas, também, vela o papel fundamental, nos movimentos pela liberdade das pessoas comuns, das mulheres, domésticas, trabalhadores rurais, dentre outros. Vale salientar que os regimes de segregação e autoritarismo não são destituídos pela ação de um líder e sim pelo protagonismo de pessoas que, tendo um posicionamento crítico na relação com a realidade, não se calam e vão a luta. Com efeito, o conceito de liberdade só pode ser forjado por quem dela se encontra privado. O lugar de fala deve ser dado a estas pessoas. É preciso desconstruir o mito, reforçado no imaginário social, de que existiu, existe e existirá um salvador, um messias. É claro que há pessoas na história que devem ser aplaudidas por sua perspicácia em perceberem e autorizarem atos que viabilizem a luta mediante a garantia dos direitos civis – Mandela, Lincoln, Obama, Lula, etc. Entretanto, restringir a questão da liberdade a isso é enfraquecê-la em sua amplitude. Não é suficiente o reconhecimento legal da união homossexual quando um filho de um casal homoafetivo é estigmatizado na escola.

Por isso mesmo destacar a elaboração de pautas sistêmicas, tal qual a erigida pelo Partido das Panteras Negras, em 1966, nos EUA, cujo eco ainda se faz potente em nosso século graças à amplitude de suas reivindicações. Como sugere Davis, o partido, ao reconhecer que a escravidão não seria eliminada com sua mera abolição, esforçou-se pela luta da liberdade, entendendo que nesta está incluída o fim da exploração do capitalismo aos oprimidos, a aquisição de moradias adequadas a vida humana, uma educação crítica e não alienante, saúde gratuita, o fim da violência policial, o fim das guerras, controle da tecnologia pelo coletivo, dentre outros. Talvez não seja absurdo apostar que a consciência e a amplitude do movimento tenha sido determinante para que Davis entrasse na lista das dez pessoas criminosas mais procuradas pelo FBI, sem nunca ter feito nada. Aliás, fez. Ela se insurgiu com força e determinação. E, é verdade, as faces do neoliberalismo sabem intimidar – e usa meios legais para isso – aqueles que o enfrentam, desencorajando o restante das pessoas a não se envolverem em protestos sociais. É nesta perspectiva que o assassinato de Marielle Franco precisa ser situado.

Davis nos lembra que, embora Bush tenha declarado o combate ao terror nos EUA, após o 11 de setembro de 2001, o termo terrorista já era amplamente designado aos ativistas da luta antirracista na década de 1960, no país, pelos discursos de ordem e lei do presidente Nixon. Assim, o fenômeno terrorismo parece funcionar como uma estratégia sólida para justificar truculências. Talvez caiba aqui citar que é de terrorista que o presidente Bolsonaro nomeia aqueles que lutam pela liberdade no país. Ora, o que foi a fantasmagoria em torno da operação Lava-jato e seu discurso jurídico de anticorrupção senão uma manobra institucionalizada de poder que abriu espaço para o avanço do fascismo no Brasil, com toda uma engrenagem de fake news, apoio midiático e empresarial e conivência da burguesia?

Reconhecer, pois, as continuidades entre as diferentes formas de violação da vida são imprescindíveis para se construir lutas globais para a ampliação da “linha do nós”, sem exceção de classe, gênero, raça ou etnia. E, ainda, para que o acesso ao conhecimento, ao bem estar biopsicossocial e ao trabalho não sejam determinadas pelas obscenidades do lucro capitalista.

Davis ressalta que os constantes casos de violência devem ser sempre mencionados pelos movimentos. Tal evoca luta, perseverança e coragem na construção de um futuro comum. Para ela, nomes como Michel Brown e Assata Shakur devem ser citados não apenas para prenderem os responsáveis por sua morte, mas para anunciar a verdade sobre a violência no mundo. Ou seja, para mostrar que estamos vacinados contra soluções manifestas e enganosas, que deixam intactas toda uma estrutura latente. Os movimentos contra o racismo suscitados pela morte de George Floyd, nos EUA, que se estenderam a vários lugares do mundo, guardam sua potência aí. A maneira como ele foi morto obedece a lógica da violência de que o acusam. O ato, feito por um policial branco e de todo modo institucionalizado pelo Estado, tem um único objetivo: provocar medo na população oprimida. Fazer as pessoas desistirem de denunciar a macro estrutura de poder, ramificada nos diferentes setores da sociedade, que se mantém erguida graças a opressão das diferenças.

Como entender o investimento maciço de dinheiro na construção de presídios e o corte de verbas destinadas às escolas, que se mantém sob condições miseráveis, quando se sabe que o problema da violência urbana é um problema social que não pode ser reduzido ao nível da individualidade de um suposto criminoso? Mas, o complexo prisional é mais lucrativo que a construção de escolas. Fato.

Assim, Davis insiste que o epicentro das teorias e práticas do século XXI devem ser a interseção e a globalidade. Se tomarmos a questão do feminismo, veremos que seu discurso é de certo modo aceito pela sociedade em geral e até reforçado pelo capitalismo porque, no fim das contas, ele se destina as mulheres brancas de classe média e alta que devem ser livres para ter “o seu estilo” que podem adquirir nas lojas e magazines, que vendem todos os estilos. Em contrapartida, mulheres negras, da classe trabalhadora, que inclusive trabalham com serviços domésticos para que as mulheres abastadas sejam livres, permanecem à margem, excluídas da própria categoria “mulher”. Então, de que mulher falamos? De que humanos falam os direitos humanos? Questionamentos como estes são essenciais para se desconstruir a universalização de categorias como as de “mulher”, “humano”, “negro”, que reforçam o discurso meritocrático. No fim das contas, é preciso ter consciência que o caráter revolucionário e radical das lutas não está simplesmente no esforço em incluir os indivíduos, sejam eles mulheres, negros ou trans, em categorias ideologicamente formatadas. Trata-se, essencialmente, de uma contestação à própria categoria, que precisa ser repensada para deixar de produzir normatividades, ou seja, referenciais cristalizados sobre quem pode ou não pode ser mulher, por exemplo. O trabalho empreendido pelos movimentos precisa ser feito na intersecção entre raça, classe, sexualidade e gênero, deslocando-se de uma abordagem centrada em experiências individuais e detendo-se em questões mais amplas como os sistemas de produção neoliberal, o complexo industrial prisional, o encarceramento psiquiátrico, a indústria farmacêutica, etc. Apesar desses problemas serem abordados de modo marginal e independente, a potência que os mantém ativos está justamente no elo que os liga. Vale salientar que, mesmo tendo sua identidade de gênero legalmente instituída, a mulheres trans negras e em vulnerabilidade social ainda são enclausuradas, em penitenciárias masculinas, vítimas da violência e discriminação dentro e fora das instituições.

Davis aponta a necessidade de reavaliarmos, a nível individual e coletivo, as ideologias produzidas em torno do conceito de normal. Ora, é difícil legitimar a luta pelo abolicionismo prisional se há uma percepção da massa de que as prisões são normais. Destarte, é impossível lutar pela inclusão social da loucura se esta é definida como uma doença mental essencialmente orgânica pela hegemonia psiquiátrica. Igualmente, é impossível lutar pela diversidade sexual quando há uma insistência na naturalização e binarização do conceito de gênero. Aliás, a própria ideia de normalidade é produto de condições sociais, políticas e ideológicas que são criadas para justificar legalmente e cientificamente discursos e práticas abusivas.

Assim, os movimentos pela liberdade envolvem muito mais que reivindicações de inclusão identitária. Eles envolvem a consciência em relação às estruturas de poder capitalista, ao colonialismo, ao racismo, ao fascismo e a multiplicidade de experiências que não devem ser objetos de uma categorização. Tais movimentos não nos mostram apenas a existência de uma série de conexões entre discursos e práticas de instituições diversas que tendemos a analisar isoladamente. Eles nos convocam a esboçar modelos epistemológicos, teóricos, metodológicos, éticos e de organização coletiva que nos levem além de classificações maniqueístas, moralizantes e reducionistas, incitando-nos a adentrar no universo produtivo dos antagonismos. Enfim, os movimentos nos encorajam a uma reflexão que nos permite separar coisas que concepções ideológicas insistem em permanecer unidas e, consequentemente, separar coisas que a ideologia persiste em naturalizar. Não se pode defender o abolicionismo prisional sem considerar o antirracismo. Da mesma forma, a abolição das prisões deve abarcar a crítica a ideologia de gênero.

Pensar o feminismo em um contexto abolicionista, antirracista e vice-versa, quer dizer, interseccionalizá-los, significa aplicar a máxima de que o pessoal é político, ou seja, o individual é social. Afinal, como não vermos uma continuidade entre a violência institucionalizada das prisões e a violência doméstica e sexual contra a mulher? Não podemos reduzir o machismo a questões individuais, a um repertório psicológico anormal. Precisamos compreender que modelamos nossa intimidade, nossos sentimentos e afetos, segundo estruturas políticas de poder. Neste sentido, acabamos por fazer o trabalho do Estado em nossa vida privada, reproduzindo uma estrutura racista e repressora. O aumento do feminicídio no governo antidemocrático de Bolsonaro informa-nos isso. Ora, um governo que se constrói em torno do ódio e tortura incita os mesmos atos na vida doméstica. A violência racista e sexual, contra a mulher são práticas não apenas toleradas ou negligenciadas. Ela é encorajada.

Os movimentos pela liberdade, portanto, não tratam apenas da garantia dos direitos civis. Eles visam a mudança e ao remodelamento da estrutura. Ser livre não significa simplesmente a garantia de direitos formais que permitam o acesso e participação do indivíduo na sociedade, que continuaria a funcionar sob uma engrenagem ultrajante. Ser livre é não ter que se submeter a um sistema de produção capitalista que, utilizando um vocabulário coaching, extorque o tempo de vida da maioria das pessoas, enfraquecendo os vínculos sociais, sindicais e trabalhistas, incutindo-lhes a ideal do consumo como determinante de uma vida feliz. Aliás, a luta implica repensar radicalmente nossa vida íntima, a construção daquilo que somos, pois o capitalismo já faz isso e, por isso, tendemos a reduzir nosso projeto de existência a posse de mercadorias que poderemos adquirir com trabalho e esforço, reproduzindo, assim, uma lógica escravista, em que o abusador e o abusado é o próprio indivíduo.

Por fim, Davis adverte que a luta é global, ampla, articulada, interseccionlizada, solidária, coletiva. É constante.

Kelly Moreira de Albuquerque – Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (2009), mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (2012) e doutorado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (2016). Atualmente é doutora III do Centro Universitário Fanor Wyden. E-mail: kellynha.psico@hotmail.com


DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018. Resenha de: ALBUQUERQUE, Kelly Moreira de. Uma luta constante. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 23, p. 204-211, jan./jun., 2020.

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Objetos trágicos, objetos estéticos – SCHILLER (AF)

Objetos trágicos, objetos estéticos – SCHILLER (AF)

SCHILLER, F. Objetos trágicos, objetos estéticos. Organização e tradução de Vladimir Vieira. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2018. Resenha de: BELLAS, João Pedro. Artefilosofia, Ouro Preto, n. 27, dez., 2019.

A incursão de Friedrich Schiller pela filosofia deu-se em um curto período de tempo, ficando restrita à década de 1790. Os textos de cunho filosófico do autor são relativos, majoritariamente, à estética e foram publicados em dois periódicos organizados pelo próprio Schiller: “Neue Thalia” e “Die Horen”, este editado ao lado de Goethe. O interesse por questões de natureza filosófica surgiu em um momento de crise poética vivenciado pelo dramaturgo após a composição do drama “ Don Carlos”, e o seu interesse pelo campo da estética, especificamente, é decorrente do desejo de alcançar maior clareza acerca dos princípios fundamentais de sua arte.

Embora constituam um corpo bastante denso e de mérito filosófico quase que indiscutível, tais escritos de Schiller foram praticamente ignorados pelos especialistas da área a partir do século XX. Esse desinteresse, de um ponto de vista mais geral, pode ser resultado da ausência de uma abordagem sistemática de temas clássicos da filosofia, como a questão do conhecimento, por exemplo. Surpreende, contudo, que mesmo no campo da estética ainda sejam escassos os estudos de mais fôlego acerca da obra filosófica do autor.

No Brasil, especificamente, até pouco tempo atrás muito da produção teórica do autor não se encontrava disponível em boas edições em língua portuguesa. Nesse sentido, o volume “Objetos trágicos, objetos estéticos”, organizado por Vladimir Vieira e publicado pela editora Autêntica, oferece uma contribuição importante para o debate estético brasileiro ao trazer quatro dos ensaios de Schiller em uma tradução bastante criteriosa e cuidadosa. O volume complementa o livro “Do sublime ao trágico”, organizado por Pedro Süssekind e editado pela mesma editora em 2011, na medida em que os te mas discutidos nos dois ensaios reunidos nessa obra, especialmente o conceito do sublime, são desenvolvidos também nos textos que compõem “Objetos trágicos, objetos estéticos”.

Os quatro ensaios que integram o volume foram publicados entre os anos de 1792 e 1793 nos quatro volumes da “Neue Thalia” e evidenciam, em maior ou menor grau, uma influência da filosofia crítica de Kant, sobretudo da obra “Crítica da faculdade do juízo”, sobre o pensamento de Schiller. Não se trata, contudo, de uma mera assimilação passiva do pensamento do filósofo de Königsberg. Como observa Vladimir Vieira (p. 141) no artigo que serve de posfácio a “Objetos trágicos”, Schiller procura refletir, a partir do sistema transcendental kantiano, sobre a sua vivência enquanto artista e sobre a própria experiência estética proporcionada pela arte. Nesse sentido, os ensaios schillerianos consistem em uma das primeiras e mais relevantes respostas às questões postuladas por Kant, em especial na terceira Crítica, 1 mesmo que a tradição filosófica subsequente não tenha-lhes concedido a devida atenção.

Os dois primeiros ensaios reunidos em “Objetos trágicos”, “Sobre o fundamento do deleite com objetos trágicos” e “Sobre a arte trágica”, como os títulos indicam, abordam questões mais diretamente relacionadas à tragédia. Ambos foram publicados no primeiro volume da “Neue Thalia”, em 1792, e as considerações presentes em cada um dos textos complementam umas às outras.

O primeiro ensaio explora as relações entre a estética e a ética, um tema recorrente em sua produção de cunho filosófico, e busca fundamentar a ideia de que a arte tem como fim menos a instrução moral e uma adequação às regras do decoro do que a produção de deleite. Schiller argumenta que, diferentemente do prazer mediato possibilitado pelo entendimento e pelo assenso da razão, que requerem, respectivamente, esforço e sacrifícios, somente o deleite proporcionado pela arte pode ser realizado de forma imediata. O postulado do autor vai, portanto, de encontro à proposta de determinada corrente moderna da estética, ligada especialmente ao Neoclassicismo, que busca subordinar a arte, e o deleite que ela é capaz de produzir, à instrução moral.

O deleite estético, como é compreendido pelo dramaturgo, mantém uma relação dupla com a moral, promovendo-a e sendo dela dependente. Porém, para que seja capaz de promovê-la, a arte não pode ser privada daquilo que a torna mais poderosa, sua liberdade: “Só cumprindo o seu mais alto efeito estético é que a arte terá uma influência benfazeja sobre a eticidade; mas só exercendo a sua total liberdade é que ela pode cumprir o seu mais alto efeito estético” (p. 20).

Entendendo que a fonte de todo o deleite é a conformidade a fins, Schiller reflete principalmente sobre o deleite livre, que seria decorrente de representações por parte das faculdades do ânimo. Estas poderiam ser divididas em seis classes, conforme as faculdades responsáveis pela representação: o entendimento ocupar-se-ia do verdadeiro e do perfeito, enquanto a razão teria como objeto o bom ; quando atuam em conjunto com a imaginação, essas faculdades ocupar-se-iam, no primeiro caso, do belo, e, no segundo caso, do sublime e do comovente. Essa classificação serviria, ainda, para organizar, mesmo que não perfeitamente, as artes: as que satisfaz em o entendimento e a imaginação seriam as belas artes (artes do gosto ou do entendimento); já aquelas que satisfazem a razão e a imaginação seriam as artes comoventes (artes do sentimento ou do coração).

Por se tratar de um texto voltado a uma investigação acerca dos fundamentos do prazer proporcionado pela arte trágica, Schiller aborda com mais detalhe as artes do sentimento, explorando principalmente os conceitos de sublime e comovente. Ambos não parecem possuir nenhuma diferença essencial, e têm em comum o fato de que são produzidos através de um desprazer, ou seja, eles “nos fazem sentir […] uma conformidade a fins que pressupõe uma contrariedade a fins” (p. 24). Na segunda metade do ensaio, o pensador passa a se ocupar exclusivamente da comoção, e investiga de que maneira seria possível determinar se uma representação comovente produz, no sujeito, mais prazer do que desprazer e quais seriam os meios que o poeta deveria utilizar para criar esse tipo de representação.

“Sobre a arte trágica” apresenta-se como um complemento de “Sobre o fundamento…” na medida em que tem como objetivo determinar a priori as regras e fundamentos da tragédia a partir do princípio da conformidade a fins. Nesse sentido, o ponto de partida do ensaio é uma tentativa de chegar a uma compreensão mais profunda do modo como podemos auferir prazer com o sofrimento. Para tanto, Schiller introduz a distinção entre afeto originário e afeto compartilhado, sendo o primeiro experimentado diretamente pelo sujeito e o segundo o que se observa vivenciado por outrem.

Essa distinção, na verdade, remete à ideia, recorrente no debate clássico sobre o sublime, de que, para que seja possível sentir prazer a partir de um objeto que se apresenta como um perigo, é necessário que a ameaça não seja direta, isto é, que estejamos em uma posição de segurança em relação ao objeto. Schiller, entretanto, apresenta uma visão bastante peculiar em relação à sua época ao conceder que, em determinados casos, também seria possível auferir prazer a partir de um afeto originário, ou seja, a partir de um desprazer que se dá de modo imediato. Não fosse assim, não poderíamos explicar, por exemplo, o apelo de jogos de azar e de outras situações semelhantes nas quais nos colocamos em um risco direto.

Schiller esclarece que as sensações de prazer ou desprazer resultam de uma relação, que pode ser positiva ou negativa, do objeto em questão com nossa sensibilidade ou nossa faculdade ética, a razão. Enquanto os afetos relacionados à razão seriam determinados de maneira necessária e incondicional, aqueles que se relacionam com nossa faculdade sensível poderiam ser controlados e sobrepujados por nossa razão. Assim, por meio de um aprimoramento moral, seríamos capazes de superar os afetos sensíveis, e experimentar prazer a partir do sofrimento, até mesmo quando se trata de um afeto originário.

Na sequência do ensaio, o autor desenvolve a ideia de que o maior deleite que se pode experimentar se dá a partir de uma representação em que a liberdade de nossa faculdade racional seja afirmada frente aos impulsos sensíveis. Essa ideia é fundamentada principalmente pela noção de atividade: o deleite seria decorrente de uma representação por meio da qual as capacidades da razão seriam postas em ação. É precisamente por despertar a atividade de nossa faculdade ética que a representação do conflito entre a razão e nossos impulsos sensíveis pode ser considerada conforme a fins.

Por fim, após as discussões de natureza mais filosófica sobre os fundamentos do prazer a partir do sofrimento, Schiller volta-se para os objetivos iniciais de estabelecer as regras da tragédia a partir do princípio da conformidade a fins. Elas são reunidas na definição proposta pelo dramaturgo: a tragédia seria uma “imitação poética de uma série concatenada de eventos (de uma ação completa) que nos mostra seres humanos em estado de sofrimento e que tem por propósito incitar a nossa compaixão” (p. 61).

O terceiro texto reunido no volume compreende a parte final de um ensaio mais amplo, intitulado “Do sublime (para uma exposição ulterior de algumas ideias kantianas)” e publicado em 1793 nos volumes 3 e 4 da “Neue Thalia”. Somente essa parte foi preservada por Schiller quando da organização de seus “Escritos menores em prosa” – a parte suprimida integra o livro “Do sublime ao trágico”, mencionado anteriormente.

Ao contrário dos dois textos que lhe antecedem, “Sobre o patético” manifesta uma influência mais profunda da filosofia de Kant. Em linhas gerais, Schiller retoma as suas considerações sobre a tragédia e busca repensá-las a partir do arcabouço teórico da terceira Crítica. Nesse sentido, o dramaturgo buscará reformular a sua definição de tragédia, entendo-a como a representação de um conflito entre nossa faculdade suprassensível da razão e a sensibilidade, na qual a primeira supera a segunda. A partir dessa ideia geral, Schiller reduz a dois os seus princípios constitutivos: ela deve (i) apresentar uma natureza que sofre, e (ii) também a resistência moral a esse sofrimento. Essas duas leis funcionariam para alcançar o fim da tragédia, a saber, a produção do pathos.

Esses princípios estabelecem que a mera representação do sofrimento não é suficiente para a produção do pathos. Isso só ocorre na medida em que ela for capaz de evidenciar para nós a nossa natureza suprassensível. Por isso, Schiller exclui do âmbito da tragédia os afetos que se relacionam apenas com a natureza sensível do sujeito. Assim, não dizem respeito à arte trágica os afetos lânguidos, que apenas agradam a sensibilidade, e aqueles que a perturbam por serem demasiadamente intensos. “O patético”, afirma Schiller, “só é estético na medida em que é sublime” (p. 77).

O pensador argumenta que nos tornamos conscientes de nossa natureza suprassensível apenas a partir da representação da resistência ao próprio sofrimento, e não de suas causas. Em outras palavras, a resistência apresentada deve ser moral e não física. Se, por um lado, as ideias da razão não podem, por definição, ser apresentadas de maneira direta na sensibilidade, isso pode se dar indiretamente. Essas são as situações que seriam capazes de produzir pathos.

Reconhecendo dois tipos de fenômenos, um determinado pela natureza e outro controlado pela vontade, Schiller argumenta que a representação do sofrimento coloca esses dois domínios em conflito. Nesse sentido, duas seriam as condições necessárias para a produção do pathos: (i) a dor deve apresentar-se em todas as regiões do corpo que são dependentes da natureza; (ii) a ausência de sofrimento naquelas que são determinadas por nossa própria vontade. O pathos, portanto, decorre da participação de nossas faculdades sensíveis e racionais; sem o sofrimento, não há representação estética, sem a resistência moral, ela não se torna patética, inviabilizando uma experiência do sublime.

As reflexões desenvolvidas ao final de “Sobre o patético” extrapolam o domínio do quadro conceitual estabelecido por Kant. Aqui, Schiller propõe uma classificação do sublime de acordo com a manifestação da autonomia moral perante o sofrimento: se a dor possui uma origem sensível, nossa eticidade é afirmada negativamente, tratando-se do “sublime do controle”; se a sua causa é moral, a moralidade é afirmada positivamente e temos o “sublime da ação” (p. 90). O segundo compreende, ainda, dois casos, a saber, um a situação em que o sofrimento é escolhido em função de um dever, configurando uma ação da vontade, ou uma situação em que o sofrimento purga uma ação imoral, sendo, aqui, um efeito da afirmação do dever moral como um poder.

Essa distinção serve de funda mento para a diferenciação entre duas formas de julgar: uma moral e outra estética. A primeira consiste em atestar que um sujeito agiu conforme deveria, a segunda em avaliar que ele possuía a capacidade para tal. Enquanto o juízo estético proporciona entusiasmo por explicitar uma capacidade superior aos impulsos da sensibilidade, o moral nos humilha, por mostrar que, por sermos seres sensíveis, não somos determinados exclusivamente pelos imperativos da razão. Essa diferenciação, por sua vez, permite justificar o fim último da arte, que seria a produção de deleite, e porque o recurso à moral deve estar subordinado a ele. Assim, a conclusão desse ensaio retoma a ideia, apresentada em “Sobre o fundamento do deleite com objetos trágicos”, de que o pathos trágico não deve ser sacrificado em função da instrução moral.

O último artigo do livro, “Observações dispersas sobre diversos objetos estéticos”, publicado em 1793 no quarto e último volume da “Neue Thalia”, complementa as reflexões contidas no ensaio “Do sublime”, mencionado anteriormente. Em “Do sublime”, Schiller admite a distinção estabelecida por Kant entre os casos matemático e dinâmico do sublime, porém direciona o seu foco apenas ao segundo. Suas considerações sobre o sublime matemático são desenvolvidas em “Observações dispersas…”.

O título do ensaio poderia levar a crer que se trata de uma compilação de ideias distintas que não possuem muita relação entre si. Trata-se, contudo, de um escrito bastante sistemático e pouco preocupado em ilustrar as ideias discutidas por meio de exemplos artísticos. Assim como Kant, Schiller entende que a experiência do sublime tem origem a partir da contemplação de um objeto que ultrapassa a nossa capacidade de apreensão (no caso matemático) ou de resistência (no caso dinâmico), desde que ele não proporcione “uma repressão de cada uma dessas duas faculdades” (p. 113).

Explorando o primeiro caso, o autor sustenta que, para ser qualificado como sublime, o objeto não pode ser uma grandeza mensurável, mas deve ser uma grandeza absoluta. Na primeira circunstância, teríamos uma avaliação matemática, na segunda, uma avaliação estética. Schiller tem como ponto de partida a ideia kantiana de que a apresentação de um objeto na imaginação envolve duas operações distintas: a apreensão dos dados sensíveis e a sua síntese em uma unidade. Enquanto a primeira operação pode avançar indefinidamente, a segunda possui um limite. O objeto absolutamente grande, por sua disposição no espaço-tempo, traz à consciência esse limite.

O fracasso da síntese gera desprazer, mas, logo em seguida, temos um sentimento de prazer que é decorrente do reconhecimento de que possuímos uma capacidade de pensar uma ideia que não pode ser apresentada na sensibilidade: o infinito. Assim, se, por um lado, experimentamos um sentimento de impotência por não conseguirmos sintetizar o objeto contemplado, por outro, experimentamos nossa força, na medida em que somos capazes de pensar o infinito. O sublime caracteriza justamente o movimento do ânimo que traz à tona a percepção de que somos, sobretudo, seres suprassensíveis, capazes de pensar uma ideia que não se apresenta na sensibilidade.

Ao final do ensaio, Schiller considera em que grau a altura e o comprimento colaboram para o sentimento do sublime. Ao sustentar que a altura afeta o sujeito em um grau mais elevado por acrescentar o terror à experiência, o pensador adota uma posição que atesta a possibilidade da confluência dos casos matemático e dinâmico do sublime.

Os quatro ensaios presentes em “Objetos trágicos, objetos estéticos”, reforçam o quão densos são os textos filosóficos de Schiller e dão testemunho de sua relevância para a estética, ainda que a tradição filosófica ocidental nos tenha levado a crer no contrário. O volume, portanto, traz consigo a oportunidade de potencializar pesquisas que possam vir a restaurar a relevância das ideias de Schiller frente à tradição filosófica, e acrescenta muito aos estudos desenvolvidos no Brasil ao introduzir ideias e conceitos que em muito contribuem para a compreensão do fenômeno estético.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001.

Nota

1 A expressão “terceira Crítica” é comumente empregada pelos comentadores para referir à “ Crítica da faculdade do juízo ”, uma vez que a obra é a terceira das críticas publicadas por Kant, precedida pela “ Crítica da razão pura ” e pela “ Crítica da razão prática ”. Ela será utilizada daqui em diante em todas as ocasiões em que nos referimos à “ Crítica da faculdade do juízo ”.

João Pedro Bellas-Doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Possui mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Brasileira e graduação em Filosofia pela mesma universidade. E-mail: joaolbellas@gmail.com

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A arte de contar histórias – BENJAMIN (AF)

BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. Org. Patrícia Lavelle. Trad. George Otte, Marcelo Backes e Patrícia Lavelle. São Paulo: Hedra, 2018. Resenha de: CHIARA, Jessica Di. O filósofo e o contista Walter Benjamin. Artefilosofia, Ouro Preto, n.26, jul., 2019.

Há pelo menos 50 anos o público universitário brasileiro vem entrando em contato com os textos filosóficos, os escritos críticos e ensaísticos de Walter Benjamin e as disputas interpretativas que se geraram em torno do pensamento do autor. Lido e assimilado e m diversas áreas do conhecimento, sobretudo nos cursos de filosofia, comunicação, letras, educação, história e sociologia, transcorridas mais de cinco décadas desde as primeiras abordagens, podemos dizer que já é bem sedimentada e ampla a tradição de comentadores da obra de Benjamin no Brasil.1 Contudo, mesmo em um solo fértil e produtivo, diante de uma obra estamos sempre diante de um mistério: mesmo se a lemos tantas e tantas vezes. É por esse motivo que a nova edição de reunião de escritos de Benjamin organizada por Patrícia Lavelle, “A arte de contar histórias”, contribui para a fertilidade do solo dos estudos benjaminianos por aqui. O livro inaugura a Coleção Walter Benjamin da editora Hedra, cuja intenção é somar-se às iniciativas já existentes e que s e destacam pela efetiva contribuição para o desenvolvimento da recepção da obra de Benjamin em português. Além de propor uma nova tradução anotada do ensaio clássico sobre o contador de histórias “ Der Erzähler ” (que no Brasil é amplamente conhecido pela tradução de Sérgio Paulo Rouanet como “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”), 2 o livro reúne e nos apresenta a pouco conhecida produção ficcional de Benjamin, trazendo para o público leitor brasileiro o conjunto de seus contos, alguns inéditos em português, e algumas peças radiofônicas, além de textos híbridos.

A nova tradução do ensaio, realizada por Patrícia Lavelle e Georg Otte, é atenta às alterações e diferenças entre as versões alemã e francesa. Como a nota dos editores contextualiza e informa, a versão alemã foi escrita entre março e julho de 1936 para a revista “Orient und Ok zident”, na qual foi publicada em outubro do mesmo ano, e é provável que entre 1936 e 1939 Benjamin tenha trabalhado numa versão francesa para o mesmo ensaio, que não chegou a ser publicada, pois a revista a que se destinava o texto em francês (Europe) par ou de circular antes disso. A versão francesa seria então publicada apenas postumamente, em 1952, no “Mercure de France”.3 A escolha em traduzir “ Der Erzähler ” por “O contador de histórias” acompanha aspectos sobretudo da recepção francófona (com conteur), mas também da anglófona (com storyteller).4 Contudo, parece decisivo para a escolha da presente tradução, além da pertinência etimológica,5 o amparo biográfico: a partir do trecho de um bilhete escrito pelo próprio Benjamin em francês, em dezembro de 1939, e destinado ao filósofo alemão exilado como ele em Paris, Paul Ludwig Landsberg, que tinha consigo já a versão alemã. No bilhete, Benjamin diz, ao enviar uma cópia da versão em francês, o seguinte: “Voilà ‘le narrateur’ (mais il faudrait bien plutôt traduire: Le conteur)”. 6 Ou seja: “Eis ‘o narrador’ (mais seria preciso de preferência traduzir: O contador de histórias)”. 7 Se o próprio ensaísta em seu trabalho de tradução do alemão para o francês atesta que a palavra “ conteur ” expressa melhor ou com mais precisão aquilo que o substantivo alemão “ Erzähler ” significa no contexto do ensaio, a tradução para o português, uma língua neolatina assim como a francesa, dá crédito à intuição benjaminiana. De todo modo, não deixa de ser inusitada a relação entre o título traduzido (“ le narrateur ”) e o bilhete com a sugestão de tradução (“le conteur”), ambos assinados por Walter Benjamin, que parece ter duvidado de si mesmo após o trabalho da tradução. Mas o livro “A arte de contar histórias” não se restringe a apresentar uma nova tradução do clássico ensaio sobre o papel da arte tradicional de contar histórias, e Marcelo Backes soma-se a Lavelle e Otte no trabalho de tradução dos textos ficcionais. Este é dividido em quatro partes, que são acompanhadas de uma nota de apresentação da coleção escrita pelos editores Amon Pinho e Francisco Pinheiro Machado e de um posfácio assinado por Lavelle. A primeira parte, intitulada “Ensaio”, abriga a nova tradução do ensaio sobre o contador de histórias. Já a segunda parte, “Contos”, traz ao todo dezesseis contos escritos por Benjamin ao longo das décadas de 1920 e 1930 (com prevalência da produção na última década), em sua maioria inéditos em língua portuguesa. Na terceira parte, intitulada “O contador de histórias no rádio”, temos acesso a quatro peças radiofônicas escritas pelo autor e filósofo alemão que foram transmitidas durante a década de 1930, com exceção da peça “No minuto exato”, que teria sido publicada no Frankfurter Zeitung, em 6 de dezembro de 1934, sob o pseudônimo de Detlef Holz. A quarta e última parte do livro, de nome “Conto e crítica”, abriga quatro textos híbridos publicados em jornais. Uma tal divisão do livro poderia indicar um viés de leitura que parte da teoria sobre a arte de contar histórias para a sua aplicação em contos e peças, sugerindo para quem leia os textos ficcionais encontrar neles traços dos conceitos e reflexões que são apresentadas no ensaio de abertura. Ler assim o livro ora organizado e os escritos de Benjamin seria, melhor dizendo, não lê-lo, pois desconsidera a novidade que a leitura dos textos ficcionais benjaminianos solicita. Ao contrário, é possível ler essa proposta de organização como um caminho que vai da filosofia à literatura, de maneira a, por fim, trazer textos onde essa divisão mesmo já não faz sentido.

De tom marcadamente nostálgico e bastante crítico a ainda jovem modernidade técnica, o ensaio sobre o contador de histórias apresenta a figura arcaica, o que vale dizer aqui pré-moderna, do contador de histórias como a imagem que caracteriza um tipo de arte que carrega em sua própria forma a memória de uma organização social comunitária, em que a transmissão de experiências se organizava mediada pelo trabalho artesanal, era apreendida e transmitida a partir de um mestre e compartilhada por uma comunidade. Ou seja, a arte de contar histórias carregaria consigo, em sua forma oral (e encarnada nas figuras do ancião, do mestre ou do viajante estrangeiro), a lembrança e a potência de uma organização social pouco mediada pela técnica moderna, índice para Benjamin nesse ensaio de uma modernidade bárbara, que fragmentou, sobretudo no século XX, não só o trabalho e o processo produtivo com máquinas e linhas de produção, mas os próprios indivíduos em sua subjetividade e vida social nas grandes cidades e na experiência da Primeira Grande Guerra Mundial. Vale dizer que Benjamin também associa o declínio ou desaparecimento do contador de histórias ao surgimento de uma nova forma de arte, a do romance como gênero narrativo, que tem em “Dom Quixote” se u marco, mas que irá se desenvolver sobretudo a partir do século XVIII. A invenção da imprensa produz ainda, depois do romance, a informação, que desassocia a narrativa e dispensa o contador porque explica tudo. O contador de histórias seria aquele capaz de encontrar na riqueza da experiência transmissível a matéria de sua arte e preservar da experiência sempre algum mistério que não é totalmente dito. Contudo, Lavelle ressalta, apesar do tom nostálgico pelo diagnóstico decaído do teor da experiência media da pela técnica Benjamin, “ao evocar [com a figura do contador de histórias] o arcaísmo da narrativa que se inscreve na tradição oral […] tem o projeto de construir uma nova forma, profundamente moderna”. 8 Para a filósofa e tradutora, Benjamin não tematiza a narração tradicional apenas teoricamente (como o público brasileiro até agora tinha acesso pelos ensaios e textos críticos sobre o tema), mas também através de uma produção ficcional de contos e peças radiofônicas nos quais “as estratégias tradicionais da arte de contar histórias são mobilizadas, discutidas e ironizadas”.9 Tais procedimentos são bastante explícitos, por exemplo, em contos como “A sebe de cactos” e “O segundo eu”, em que certo efeito de choque causado pela evocação nostálgica do contado r de histórias e sua arte acontece concomitantemente à denúncia dessa mesma nostalgia através do recurso à ironia do contista moderno no modo como este se utiliza das formas narrativas tradicionais, às quais claramente está interditada a ele uma adesão substancial.10 Em “A sebe dos cactos”, por exemplo, vemos o desenrolar de uma história contada vinte anos depois de ocorrida: a do primeiro estrangeiro que chegou à ilha de Ibiza, o irlandês O’Brien. O estrangeiro, um homem experiente e viajado, antes de chegara Ibiza vivera alguns anos de sua juventude na África, e é a partir dessa experiência em outro continente e de suas consequências que o conto se desenvolve. Circulava entre os habitantes de Ibiza a história de que O’Brien havia perdido para um amigo sua única e valiosa propriedade: uma coleção de máscaras negras que havia adquirido com nativos em seus anos pelo continente africano. O amigo usurpador teria morrido em um incêndio de navio, levando consigo para sempre a tal coleção. A história era famosa entre todos os moradores da ilha, porém ninguém sabia ao certo suas fontes. Certo dia, O’Brien convidou o narrador para uma refeição e, depois de concluída a refeição, o estrangeiro decidiu-se por mostrar algo ao narrador: sua coleção de máscaras negras, exatamente a mesma que havia naufragado, segundo era sabido por todos, com o amigo desleal. O narrador nos descreve assim a cena de encontro com as máscaras:

Mas eis que ali estavam penduradas, vinte ou trinta peças, no quarto vazio, sobre parede s brancas. Eram máscaras de expressões grotescas, que revelavam sobretudo uma severidade levada ao cômico, uma recusa completamente inexorável de tudo que era desmedido. Os lábios superiores abertos, as estrias abobadadas que haviam se tornado a fenda das pálpebras e sobrancelhas pareciam expressar algo como asco infinito contra aquele que se aproximava, até mesmo contra tudo o que se aproxima, enquanto os cimos empilhados dos adorno na testa e os reforços das mechas de cabelos entrançadas se destacavam como macas que anunciavam os direitos de um poder estranho sobre aquelas feições. Para qualquer dessas máscaras que se olhasse, em lugar nenhum sua boca parecia destinada, como quer que fosse, a emitir sons; os lábios grossos e entreabertos, ou então bem cerrados, eram cancelas instaladas antes ou depois da vida, como os lábios dos embriões ou dos mortos. 11

Após a descrição, O’Brien conta ao narrador como reencontrou cada uma daquelas peças. As janelas de sua casa davam para uma sebe de cactos enorme e bastante velha e, nu m dia de lua cheia, ao tentar dormir, sua cabeça foi tomada por lembranças e pela luz da lua, o que fez com que visse, como uma aparição, penduradas na sebe de cactos, as imagens das máscaras que havia perdido. Como que tomado pelo sono e pela visão, passo u dias inteiros esculpindo as máscaras que via, e assim produziu todas aquelas que estavam na sala e que o narrador podia ver também. Ou seja, o estrangeiro havia rememorado as máscaras e, a partir de seu trabalho, reproduzido artesanalmente cada uma delas em madeira. Depois disso nunca mais o narrador do conto e o estrangeiro se viram, pois logo em seguida O’Brien morreu. Anos mais tarde, diferente da visão que fizera O’Brien esculpir uma a uma as máscaras perdidas, o que faz o narrador do conto rememorar uma tal história é ter se deparado, certo dia, com três máscaras negras numa vitrine de um comerciante de arte em Paris. O conto termina assim: “Posso”, disse eu, voltando-me para o diretor da casa, “parabenizá-lo de coração por essa aquisição incrivelmente bela?” “Vejo com prazer”, foi a resposta, “que o senhor sabe honrar a qualidade! Vejo também que o senhor é um conhecedor! As máscaras que o senhor com razão admira não são mais do que uma pequena amostra da grande coleção cuja exposição estamos preparando no momento!” “E eu poderia pensar, meu senhor, que essas máscaras certamente inspirariam nossos jovens artistas a fazer suas próprias tentativas interessantes.” “É o que eu espero, inclusive!… Aliás, se o senhor se interessar mais de perto pelo assunto, posso fazer com que cheguem até o senhor, do meu escritório, os pareceres de nossos maiores conhecedores de Haia e de Londres. O senhor haverá de ver que se trata de objetos de centenas de anos. De dois deles eu diria até que de milhares de anos.” “Ler esses pareceres de fato me interessaria muito! Eu poderia perguntar a quem pertence essa coleção?” “Ela pertence ao espólio de um irlandês. O’Brien. O senhor com certeza jamais ouviu seu nome. Ele viveu e morreu nas Ilhas Baleares.” 12 Aquele que escreve agora o conto é alguém que anda pelas ruas e galerias de uma grande cidade, a Paris do começo do século XX, e que tem a capacidade de, mesmo em meio à atenção difusa e distraída que a percepção nas grandes cidades produz, consegue transformar o choque de um encontro furtivo na rememoração de uma experiência.

O filósofo italiano Giorgio Agamben pensa, no ensaio “O que é o contemporâneo?”, que uma tal questão pode ser caracterizada por aquilo ou aquele que “mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”, 13 e que vê esse escuro do seu tempo “como algo que lhe concerne e não cessa de interpretá-lo”.14Pensando o contemporâneo como intempestividade – retomando assim a proposta nietzschiana presente nas Considerações Intempestivas –, a exigência de “atualidade” em relação ao presente é pensada não nos termos de uma sincronicidade, mas sim de uma desencontro com este. “Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões”. 15 Essa não-coincidência entre tempo e pertencimento não significa que o homem contemporâneo, nos termos agambenianos, seja um nostálgico. Pelo contrário, um homem pode não concordar com os rumos de seu tempo e saber que lhe pertence irrevogavelmente, sendo o caráter contemporâneo pensado aqui como uma singular relação com o próprio tempo. Esse parece ser o caso dos escritos teóricos e ficcionais de Benjamin presentes no livro “A arte de contar histórias”. Seus contos, como podemos ler na cena que encerra “A sebe de cactos”, abordam ao mesmo tempo em que parecem promover uma relação entre o arcaico e o moderno que talvez seja da ordem de “um compromisso secreto”, como nos diz Agamben, “e não tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto porque a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico”. 16 A reelaboração dos objetos rituais africanos na pintura cubista de Pablo Picasso, marcada então pelo que veio a se chamar primitivismo, encontra afinidades com a fragmentação dos corpos mutilados pelas máquinas de guerra, frutos da civilização técnica. As vanguardas da primeira metade do século XX irão produzir, assim, uma nova forma de arte que circula em galerias mundialmente, e que pode ter sido exposta pela primeira vez em alguma galeria parisiense como aquela que o narrador de “A sebe de cactos” passeia. Aprendemos também com o contista Walter Benjamin a pensar não a partir de dicotomias, mas sim por imagens dialéticas: a modernidade técnica e sua relação tensa com a tradição como aquilo que pode condenar e salvar o destino dos homens e das civilizações.

Notas

1 Sobre a recepção de Benjamin no Brasil Cf., por exemplo, PRESSLER, Günter Karl. Benjamin, Brasil. A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005. Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: AnnaBlume, 2006.

2 BENJAMIN, W. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, vol. 1).

3 Cf. a nota editorial presente em BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. São Paulo: Hedra, 2018, p. 19.

4 Cf. PINHO, A.; Pinho MACHADO, F. P. “Sobre a Coleção Walter Benjamin” In: BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. São Paulo: Hedra, 2018, p. 13.

5 O verbo zählen em alemão significa “contar”, no sentido de “fazer conta”, “enumerar”, e há uma gama de termos ligados ao verbo que engendram um campo semântico próprio ao universo contabilístico. Em relação ao mesmo campo semântico do verbo zählen deriva o verbo erzhälen, que também significa contar, contudo, por meio de palavras, no sentido de relatar um enredo ou uma história. De onde, por fim o sentido de “Erzähler” como contador de histórias.

6 Conforme indicação da nota dos editores “Sobre a Coleção Walter Benjamin”, Cf. BENJAMIN, Walter. Gesammelte Briefe, vol. VI. Edição de Christoph Gödde e Henri Lonitz. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2000, p. 367.

7 Cf. PINHO, A.; MACHADO, F. P. Op. cit., p. 13

8 LAVELLE, Patrícia. “O crítico e o conta dor de histórias” In: BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 267.

9 Id.

10 Ver LUNAY, M a r c. “ P r e f a c e ”. I n: B E NJA M I N, Walter. N’oublie pas le meilleur et autres histoires et récits. Apud LAVELLE, Patrícia. Op. cit., p. 267.

11 BENJAMIN, Walter. “A sebe dos cactos”. In: A arte de contar histórias. Op. cit., pp. 85-86.

12 Ibid, pp. 89-90.

13 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 62.

14 Ibid., p. 64.

15 Ibid., pp. 58-59.

16 Ibid., p. 70.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 57.

BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. Org. Patrícia Lavelle. Trad. George Otte, Marcelo Backes e Patrícia Lavelle. São Paulo: Hedra, 2018.

__________. Gesammelte Briefe, vol. VI. Edição de Christoph Gö dde e Henri Lonitz. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2000.

__________. N’oublie pas le meilleur et autres histoires et récits. Trad. Marc de Launay. Paris: L’Herne, 2012.

PRESSLER, Günter Karl. Benjamin, Brasil. A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005. Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: AnnaBlume, 2006.

Jessica Di Chiara-Possui Graduação (2015) e Mestrado (2018) em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense e atualmente é doutoranda em Filosofia pela PUC-Rio. É autora de artigos publicados em livros e revistas acadêmicas, estudando a relação entre pensamento e forma sobretudo a partir da filosofia de Theodor W. Adorno. Também atua como curadora no coletivo A MESA, que promove exposições em galeria própria no Morro da Conceição, Rio de Janeiro. Integrante do grupo de pesquisa Arte, Autonomia e Política, da PUC-Rio. E-mail: jessica.dichiara@gmail.com

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Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia – FLUSSER (AF)

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia. São Paulo: É Realizações, 2018. Resenha de: PEREIRA, Juliana Santos. Artefilosofia, Ouro Preto, n.26, jul., 2019.

A primeira edição de “Filosofia da caixa preta – Ensaios para uma filosofia da fotografia” do filósofo e escritor tcheco-brasileiro Vilém Flusser foi inicialmente publicada em alemão – “Füreinephilosophie der fotografie” – e recriada e publicada em português pelo próprio autor no mesmo ano de publicação da edição alemã, 1983. O livro é resultado de aulas e conferências que aconteceram na Alemanha e na França, sendo pioneiro na discussão sobre a filosofia da fotografia, a qual se tornou o fio condutor de toda a produção de Flusser até o fim de sua vida. A reedição do livro pela editora É Realizações é fruto da pesquisa de doutorado de Rodrigo Maltez Novaes, durante o seu período de imersão no Arquivo de Berlim. Com o objetivo de enriquecer a edição, foram incluídos um texto de apresentação e posfácios de professores e intelectuais conhecidos por seus trabalhos com a obra do filósofo.

A obra “Filosofia da Caixa Preta” é apresentada para o leitor de capa como um livro de filosofia. Entretanto, localizá-lo em uma única disciplina é tarefa desafiadora, já que a hipótese de Flusser pode ser aplicada em diferentes áreas, como antropologia, sociologia, arqueologia e, por último e mais presente, em futurologia (ciência do futuro). Logo, é necessário começar pelo o que essa obra não é. Além de não ser apenas uma abordagem filosófica, ela também não é uma discussão sobre a arte da fotografia. O tema fotografia é utilizado como pretexto para uma discussão sobre como os aparelhos têm papel fundamental na modelação do pensamento humano. A palavra urgência é vista em vários momentos do livro como alerta à necessidade de uma filosofia dos aparelhos para que possamos manter a liberdade de pensamento. Para Flusser, a filosofia da fotografia é caminho para a liberdade e “liberdade é jogar contra o aparelho” (p. 100). Assim, tratar da intenção deste último é caminho para que possamos decifrá-lo.

Os aparelhos inauguraram o momento pós-industrial onde o homem, antes cercado por máquinas, passa a pensar, viver, conhecer, valorar e agir em função deles. O início desse momento é marcado pelo surgimento da fotografia. O filósofo defende que o aparelho fotográfico é o patriarca dos aparelhos, é o ponto de partida de uma nova existência humana que abandona a escrita linear em troca de um pensar imagético. “No momento em que a fotografia passa a ser modelo de pensamento, muda a própria estrutura da existência, do mundo e da sociedade.” (p. 98) Além do aparelho, os conceitos de imagem, imagem técnica, programa e informação são base para o desenvolvimento da hipótese flusseriana. Com o intuito de “criar atmosfera de abertura para campo virgem” (p. 10), Flusser nos apresenta um glossário com novos significados para as palavras, inserindo o leitor no universo pós-histórico das imagens técnicas, que inauguram “um modo de ser ainda dificilmente definível” (p. 9). O autor faz uso de elementos do universo fotográfico para conceituar a formação do pensamento por meio das imagens técnicas.

Ao abordar o conceito de imagem, o autor afirma que elas “são superfícies sobre as quais circula o olhar” (p. 96), são mediações entre o homem e o mundo. Para que esta mediação não seja percebida como a realidade, é necessário decifrar os elementos que são apresentados em sua superfície, que é dotada de múltiplos significados. O receptor, ao tentar decifrar a imagem, circula pela mesma voltando o olhar para elementos preferenciais de significado. O ato de circular pela imagem é definido por Flusser como “tempo de magia” (p. 16), tempo em que o olhar estabelece relações significantes.

Diferentemente da escrita linear, que possui plano contínuo e que “estabelece relações causais entre eventos” (p. 16). O autor afirma que as imagens não eternizam eventos; “elas substituem eventos por cenas” (p.

17). E é o que define o caráter mágico das mesmas. Se inicialmente as imagens tinham o propósito de “serem mapas do mundo” (p. 17), elas passaram a esconder o mundo para o seu receptor. A humanidade passa a viver em função delas e o mundo torna-se um conjunto de cenas. Sua superfície é a realidade. Assim, caracteriza-se a idolatria, o homem que vive magicamente. Diante desse homem, a humanidade, que não decifra mais imagens, passa a desfiá-las de modo que os elementos planos são postos em linhas. Surge a escrita linear e com ela a consciência histórica, “consciência dirigida contra as imagens” (p. 18). Antes da escrita linear, não havia história, e sim acontecimentos. Contudo, o homem novamente cria o instrumento para se servir dele e acaba servindo a ele. Como nova mediação, entre o homem e a imagem, o texto tapa a imagem para o homem, e o mesmo não é capaz de reconstituir as imagens explicadas pelos textos, ou seja, decifrá-los. A ciência é exemplo de como os textos explicam um universo inimaginável. Surge então a textolatria. Ambas as alienações tratadas pelo autor – idolatria e textolatria – acontecem pois há uma dialética interna inerente às mediações entre o homem e o mundo. Tanto a imagem quanto o texto representam o mundo, mas também o encobrem. Serve m para orientar a humanidade, mas também formam biombos, alienando-a e desalienando-a. O homem esquece da razão pela qual criou o instrumento e passa a agir em função dele.

E, diante de um universo inimaginável e dominado por textos, surgem as imagens técnicas. A fotografia é criada. Para seu deciframento, é importante entender seu posicionamento ontológico: “as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo” (p. 21). E é preciso considerar que essa imagem do mundo passou por intenções que incluem a “cabeça” do agente humano e um aparelho com conceitos definidos. O aparelho é incógnita no processo de codificação dos símbolos, é caixa preta, “dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquanto analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos como decifrá-las” (p. 24). Devido a isso, as imagens técnicas tornam-se barreiras entre o homem e o mundo.

Historicamente, as imagens tradicionais (pinturas) definem a pré-história e o surgimento da escrita linear (texto) define o conceito de história. O surgimento das imagens técnicas define o fim de uma narrativa linear e, portanto, o início da pós-história. As imagens técnicas são, segundo o filósofo, a segunda tentativa da humanidade de resolver os desdobramentos gerados por revoluções fundamentais na estrutura cultural.

“As imagens técnicas são produzidas por aparelhos” (p. 29). Para apresentar o conceito de aparelho, Flusser, por meio de uma perspectiva histórica, aponta três momentos importantes da relação da humanidade com os objetos culturais. No período pré-industrial, o homem era cercado por instrumentos, que “são prolongações de órgãos do corpo” (p. 31). A enxada é o dente; o martelo é o punho. Com a revolução industrial, os instrumentos são aperfeiçoados por teorias científicas e temos então as máquinas. O autor afirma que os instrumentos funcionavam em função do homem até então e, no período industrial, o homem passa a funcionar em função das máquinas. Com a criação da fotografia, ou seja, do aparelho fotográfico, o filósofo aponta para uma dificuldade em definir este novo objeto cultural, uma vez que é pós-industrial. O período industrial é marcado pelo trabalho, e aparelhos não trabalham, são brinquedos. A intenção deles, segundo o autor, não é modificar o mundo, e sim modificar a vida do homem. O homem que os opera não trabalha, ele joga – é “ homo ludens” (p. 35).

O funcionário que o manipula está concentrado em explorar as suas potencialidades, é a “pessoa que brinca com o aparelho e age em função dele” (p. 9). O aparelho emancipa o homem do trabalho e o libera para o jogo.

Por meio do aparelho fotográfico, o conceito de programa é apresentado. As imagens geradas pelo aparelho contêm em sua superfície o resultado do que foi programado e pré-inscrito no mesmo. Inscrição feita com conceitos definidos por outro programa, a indústria fotográfica. Os conceitos definidos, de acordo com os interesses da indústria, permutam no aparelho de maneira automática e aleatória. As intenções do fotógrafo precisam passar por esses conceitos, para que se chegue à fotografia. Por estar amalgamado, imerso, o fotógrafo tem suas intenções limitadas pelas possibilidades dispostas no programa. Não se escolhe dentro de limitações, “o fotógrafo somente pode agir dentro das categorias programadas no a parelho” (p. 49).

Portanto, cabe questionar: há liberdade no ato de fotografar? Para o filósofo, ser livre é conseguir driblar o programa que foi criado por outro programa, a indústria fotográfica, que responde a outro acima dele e assim consecutivamente.

“Todo programa exige metaprograma para ser programado. A hierarquia dos programas está aberta para cima” (p. 38).

E é nesse ponto que o autor levanta o problema da crítica à fotografia e de como os críticos já estão inseridos no aparelho. Para Flusser, no embate entre o homem e o aparelho, a vitória humana só é possível se ele conseguir contornar os limites do programa. Logo, “as fotografias ‘melhores’ seriam aquelas que evidenciam a vitória da intenção do fotógrafo sobre o aparelho” (p. 58).

Flusser também aponta problemas ligados aos canais de distribuição da fotografia que imprimem o significado final da imagem por meio de linhas editoriais. Para uma crítica adequada da fotografia, é necessário considerar os canais de distribuição no momento do seu deciframento. Além das intenções primárias a serem analisadas, a do fotógrafo e a do aparelho, é preciso analisar as intenções do canal de distribuição. Flusser afirma que os canais de distribuição são silenciados pela maior parte da crítica e o resultado dessa crítica funcional é que “o receptor da fotografia vai recebê-la de modo não crítico” (p. 70).

O filósofo também trata dos conceitos de propriedade e informação, que têm seus valores redefinidos no universo da fotografia. O caráter multiplicável do objeto fotográfico tem como resultado a perda de valor da mesma. O valor da fotografia não está no papel no qual foi impressa, mas sim na informação contida em sua superfície. Portanto, a informação passa a ter mais valor que o objeto em si – a “folha” (p. 70). Ser proprietário de uma folha fotográfica não tem mais o peso de propriedade da era industrial. Ser proprietário do programa que distribui a informação é o que de fato tem valor. “Pós-indústria é precisamente isto: desejar informação e não mais objetos” (p. 64). O poder não está mais em quem possui os aparelhos, mas em quem é dono dos programas. E também em quem produz os programas.

Para além da sua desvalorização como objeto, as fotografias contribuem para uma ausência de consciência histórica. Fotografias de fatos históricos pedem análise de suas causas e efeitos para seu deciframento, o que implica ir além dos significados postos n a superfície da imagem. O receptor, programado magicamente, não vai além da imagem, uma vez que essa é a realidade e nada mais precisa ser explicado, lido, contextualizado. Os olhos programados já se encarregaram de entender os fatos. “Esse ‘saber melhor’ deve ser reprimido quando se trata de agir segundo o programa” (p. 78). A repressão da consciência histórica contribui para uma existência robotizada, pois somente ela é capaz de tornar transparente o jogo dos aparelhos.

No fim do livro, Flusser dirige a questão da liberdade aos fotógrafos experimentais, pois sua práxis é realizada contra o aparelho. Ele trata da estupidez do aparelho, enfatizando que os programas podem ser alterados, as informações produzidas podem ser desviadas e, portanto, são passíveis de serem driblados. E essas ações só serão possíveis quando a humanidade encarar o jogo dos aparelhos, quando a intenção dos donos do programa for revelada. Somente assim retomaremos a liberdade de pensamento.

“Filosofia da caixa preta” é uma obra atual e impactante. Tratar do universo fotográfico desta obra é tratar do universo dos aparelhos: administrativo, político, publicitário. A urgência de Flusser é sobre como exercer a liberdade em um contexto em que a humanidade já está integralmente programada – se é que ainda há tempo para se libertar na atualidade, uma vez que “a filosofia da fotografia trata de recolocar o problema da liberdade em parâmetros inteiramente novos” (p. 98). Em “ Filosofia da caixa preta ”, Flusser pede para refletirmos sobre um pensa r imagético, um pensar no “modo pelo qual ‘pensam’ computadores” (p. 97).

Juliana Santos Pereira-Bacharela em Comunicação Social (UAM). Pós-graduanda em Artes Plásticas e Contemporaneidade (UEMG). E-mail: santosp.juliana@gmail.com

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Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão | Adriana Stemy

Da mesma forma que Caetano Veloso, em “Alegria, Alegria” passa a impressão de andar na rua registrando os acontecimentos de sua época como os “crimes de guerra”, as “cardinales bonitas” e as “caras de presidente”, Adrianna Setemy busca analisar os aspectos históricos que possam ter criado o cenário efervescente da década de 1960 no que diz respeito às mudanças de comportamento e a forma como as revistas se defrontaram com o problema da censura, em uma clara necessidade de compreender o tempo presente. Ao andar na rua, ler os jornais e conversar com pessoas, a autora reconhece que o Brasil se vê ameaçado novamente pela censura às artes e à liberdade de expressão. Os ataques ao Museu de Arte Moderna (MAM) por terem permitido a interação de uma criança com a performance de um homem nu e os projetos de lei apoiados no Programa Escola Sem Partido que buscam impor um fim à liberdade de cátedra com motivos de evitar uma “doutrinação ideológica” por parte dos professores sugere uma volta à censura, desta vez não pelas mãos de um regime militar, mas sim um estado que se pressupõe democrático.

A obra Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão parte da análise de como as revistas Manchete (Rio de Janeiro, 1952-2000) e Realidade (São Paulo, 1966-1976), de grande circulação durante os anos iniciais da ditadura militar, construíram uma revolução nos costumes da época, bem como a forma com que discutiram temas sobre comportamento e relacionamento que eram até então tabus morais. Seu recorte é o período entre 1964, início do regime militar brasileiro, e 1968, ano de promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) que representou o fim das liberdades individuais no país.

O livro, publicado em 2019 pela Editora Letra e Voz, contém três capítulos: o primeiro capítulo traz um panorama sobre a indústria editorial no Brasil na década de 1960, enquanto o segundo capítulo busca explicar a trajetória de ambas revistas e o terceiro passa a analisar sua produção.

Com pós-graduação – Pós-doutorado (2015), doutorado (2013) e mestrado (2008) – em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduada pela Universidade de Brasília (2005), a carreira acadêmica de Adrianna Cristina Lopes Setemy se pautou no estudo de temas relativos à censura e propaganda do Estado brasileiro no século XX, passando por temas como Direitos Humanos, memória social e violência política. O livro analisado faz parte de uma pesquisa maior desenvolvida durante o mestrado em que a autora visa compreender a censura nos periódicos entre 1964 e 1985, durante o regime militar.

A principal tese do livro é a de que mesmo o período ditatorial tendo sido um momento crítico da história política do Brasil, os anos 1960 foram responsáveis por uma revolução nos costumes. As revistas são mais do que veículos de comunicação ou reprodutores do pensamento de determinados grupos, mas revelam transformações sociais, bem como se colocam como agentes sociais das transformações. Setemy busca dar fim à ideia de que a sociedade foi vítima do Estado opressor e construir uma interpretação relacional entre Estado e sociedade, em que predomina, em certos momentos, mecanismos de negociação.

As revistas Manchete e Realidade revelaram-se rico material para compreender as representações, discussões e disputas dessa década de efervescência, tanto no que tange ao momento cultural quanto à indústria editorial. Ambas as revistas, salvo características particulares, se dedicaram à abordagem de temas comportamentais e de interesse geral que, muitas vezes, desagradaram o regime militar. A revista semanal Manchete, da Editora Bloch, entrou no mercado e se destacou por seu aspecto visual e pela preocupação com a produção e diagramação de imagens, voltada para um público de classe média urbana. Já a revista mensal Realidade, da Editora Abril, tinha como alvo um público de classe média urbana mais intelectualizado, preocupado com a profundidade com que os assuntos eram tratados. O sucesso de ambas as revistas, principalmente da revista Realidade, foi grande, mas durou pouco tempo, característica que a autora analisa frente a problemas internos referentes aos conselhos editoriais de cada empresa, mas também devido as rápidas mudanças no mercado editorial que buscava atender um público cada vez mais diversificado e que, portanto, escolheu por difundir um número maior de revistas especializadas em detrimento das de interesses gerais.

Ao analisar o conteúdo das revistas, Setemy divide sua análise em três eixos temáticos: a nova realidade feminina, as transformações da juventude e o conflito de gerações e os problemas educacionais. Os eixos temáticos apresentam o questionamento dos papéis sociais tradicionais e um abrandamento do formalismo que envolvia tanto a vida pública quando a vida privada no que diz respeito à sexualidade, ao papel dos gêneros, a relação entre pais e filhos etc. A organização social da década de 1960 se mostrava mais fluida, privilegiando o indivíduo no espaço público e dissolvendo funções tradicionais pautadas em velhas normas e instituições que antes limitavam a atuação na sociedade.

Para Setemy, a análise das revistas Manchete e Realidade permitiu demonstrar que a sociedade, ao longo da segunda metade do século XX, foi adotando formas reguladoras mais brandas e que permitiam uma maior liberdade individual que, entretanto, não significou o fim dos princípios morais. Além disso, é possível perceber que os problemas antes restritos a esfera particular da sociedade se tornou assunto das páginas das revistas e vendidos comercialmente. Ainda que as revistas tratassem de temas que antes eram tabus e relegados ao mundo das relações privadas, contribuíram para a manutenção da estrutura vigente com matérias conservadoras que, algumas vezes, apontavam qualidades do regime militar como a manutenção da ordem e a necessidade de regras rígidas para a manutenção da segurança nacional.

A pesquisa de Setemy consegue demonstrar a dialética presente na relação entre produção e consumo que resultou no desenvolvimento de uma cultura de massa no Brasil. Se por um lado, o regime incentivou o desenvolvimento da indústria editorial, seu aparato repressivo, apresentado pelo Ato Institucional nº 5, interferiu no diálogo entre cultura e sociedade. A dialética também se apresenta no estudo das matérias publicadas pelas revistas Manchete e Realidade no que se refere à mudança de costume e liberdades individuais, pois mesmo que as regras morais não se apresentassem com tanta rigidez e a discussão acerca de assuntos privados estivesse presente nas matérias, as estruturas de longa duração se mantinham presentes na sociedade, prova disso é o fato de que as matérias nem sempre aprovavam as novidades, principalmente na questão da sexualidade e das drogas.

A autora escolhe terminar sua análise com o decreto do Ato Institucional nº 5 porque acredita que o fim das liberdades individuais colocou um fim na liberdade de imprensa, abrindo margem para uma possibilidade de análise pós-AI-5 de como essas revistas, em especial a Manchete que se mantém ativa até os anos 2000, lidaram com a forte censura e se não conseguiram manter sua essência revolucionária de forma sutil, além da possibilidade de análise das revistas de grande circulação em relação com as de menor alcance no que tange a apresentação e discussão de temas tabus.

Setemy, ao olhar para o passado em um momento de ebulição cultural e censura política, permite questionar o presente. Embora não vivamos em um regime ditatorial, as estruturas morais que se apresentavam na década de 1960 continuam se manifestando no século XXI e buscando vias democráticas de censura. A autora cita a contundente crítica ao Museu de Arte Moderna e a posterior censura da exposição “História da Sexualidade” no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), mas podemos listar tantas outras ações governamentais que indicam a censura por parte do Estado, como a decisão judicial de remover do catálogo da plataforma de streaming Netflix o filme A primeira tentação de Cristo, especial de natal do grupo de humor Porta dos Fundos em que Jesus é retratado como homossexual. Tal ação demonstra que, não muito diferente da época ditatorial, a sociedade brasileira em pleno século XXI, apesar de parecer liberal, ainda mantém velhos tabus. Embora a democracia esteja consolidada, a censura permanece como um instrumento do conservadorismo e tem buscado, cada vez mais, atacar a educação e a cultura, como a ação de retirada dos pôsteres de filmes nacionais dos prédios da Ancine, a diminuição de verbas federais para a cultura e os projetos do Escola Sem Partido que têm se disseminado entre as regiões brasileiras. Essas ações sutis demonstram que o Estado está disposto a retaliar qualquer conduta que seja considerada oposta aos ideais conservadores do governo.

Marcela dos Santos Alves – Mestranda em História na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Câmpus de Assis. E-mail: marceladossantosalves@gmail.com


SETEMY, Adriana. Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão. São Paulo: Letra e Voz, 2019. Resenha de: ALVES, Marcela dos Santos. A revolução dos costumes em tempos de censura: a Ditadura Militar e os periódicos Manchete e Realidade. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 22, p. 252-255, jul./dez., 2019.

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História e Teoria Queer | Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Aguinaldo Rodrigues Gomes

O Livro História e teoria queer, organizado pelos historiadores Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Aguinaldo Rodrigues Gomes e publicado pela editora Devires em 2017, de 391 páginas, é uma obra que reúne, adotando critérios bem simplificados e simplificadores, textos de duas naturezas. Na primeira parte, denominada Teoria queer e historiografia: contribuições e debates, é apresentado em termos gerais um panorama da produção historiográfica referente às temáticas dos sujeitos inseridos nas complexas identidades tlbqg+, tais como corpo, gênero, heteronormatividade, normalização, e ainda suas articulações com questões raciais em processos de interpelação. Na segunda parte, de nome As potencialidades dos estudos queer: corpo, performances e representações, são trazidos alguns estudos mais específicos referentes a alguma dessas individualidades ou grupos.

A primeira parte da obra começa com o texto de Miguel Rodrigues de Souza Neto, Rotas desviantes no oco do mundo: desejo e performatividade no Brasil contemporâneo. O autor inicia a reflexão lembrando a vinda ao Brasil, em novembro de 2017, da filósofa estadunidense Judith Butler para participar de um seminário organizado pelo Sesc Pompeia, intitulado “Os fins da democracia”, e toda a comoção social causada, naquela ocasião. Vale lembrar que ela é acusada de ser uma das fundadoras do que se convencionou denominar, no Brasil e em outras partes do mundo, de “Ideologia de gênero”. Aí está uma das marcas que o leitor encontrará em boa parte dos escritos na obra: a relação entre a discussão teórica e algumas questões contemporâneas que eclodem socialmente. Ao longo do texto o autor nos apresenta um histórico do desenvolvimento dos estudos relacionados à sexualidade e ao gênero, a partir de disciplinas e lugares específicos, em áreas como a antropologia e a sociologia, até serem encampados pelos estudos históricos. Também nos é apresentado um certo histórico da produção dos discursos a respeito dos sujeitos desviados daquilo que é denominado de heteronormatividade, que parte de uma aproximação simplificadora entre sexo biológico e performatividade de gênero, e que, portanto, tende a normalizar os sujeitos de maneira binária. Tais discursos seguem certo percurso: começam a ser produzidos sobre os sujeitos, sobretudo por parte do universo religioso e jurista, e com uma percepção pejorativa, e em algum momento passa a ser produzida também por esses sujeitos, na medida em que são inseridos no discurso por meio de estudos que lhes conferem protagonismo.

O segundo texto, Normatizar para normalizar: uma análise queer dos regimes de normalidade na historiografia contemporânea da homossexualidade, Bruno Brulon afirma que “a teoria queer propõe a desconstrução dos regimes de identidade na medida em que estes criam a marginalização dos sujeitos e seu consequente silenciamento”. Nesse sentido sua reflexão faz caminho parecido à anterior, na medida em que apresenta o que denomina regime jurídico-religioso, um regime médico, um regime psicológico e um regime epistemológico como sistemas explicativos que, hegemonicamente, marginalizaram e silenciaram. Daí a necessidade, segundo o próprio Bruno, de historicizar o queer, e de queerizar a história, na medida em que isso permita oferecer espaço e fornecer voz a sujeitos até então totalmente subalternizados.

Na sequência, em Cisgeneridade e historiografia: um debate necessário, Fábio Henrique Lopes segue a mesma linha de reflexão, valendo-se de autores como Michel Foucault e Judith Butler. Ele inicia apresentando um elemento interessante, que é o próprio domínio do gênero masculino da delimitação do que deve ser estudado ao longo da consolidação da disciplina histórica. A partir daí, mostra a relevância dos estudos feministas para a ocupação de espaço por mulheres no campo das ciências humanas, passando pela denominada História das Mulheres. Por último, a incorporação da abordagem de gênero pela própria história. O autor lembra ainda como foi fundamental a diferenciação entre identidade de gênero e orientação sexual na possibilidade de ampliação de atribuição de sentidos e nomeações de histórias, experiências, comportamentos, corporalidades, identidades e subjetividades.

Na sequência, como o texto Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos? Uma reflexão feminista sobre corpos negros e tecnologias da visualidade, Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro reuniu as reflexões sobre teoria feminista e prática política às quais já dava andamento para a escrita a um evento impactante: o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Pedro Gomes. Novamente a obra conecta teoria e realidade social. Mas a estratégia central da autora no trabalho do texto é a utilização de fontes iconográficas, lançando mão de fotografias de amas- de leite com crianças brancas no colo, no Brasil do século XIX, e contrastando com a imagem da vereadora Marielle, com o slogan “Marielle presente”. As relações dos lugares reservados aos corpos ao longo do tempo, a presença ou não do racismo e as suas configurações, tudo isso recebe abordagem a partir de tais documentos e, evidentemente, de aparato teórico.

Em Outras histórias de Clio: escrita da história e homossexualidades no Brasil, Elias Ferreira Veras e Joana Maria Pedro refletem sobre a invisibilidade das figuras homossexuais na historiografia brasileira. Voltam a frisar como até a década de 1970, no Brasil, os registros sobre experiências homossexuais foram produzidos predominantemente pelos campos médico e policial, sendo raras as ocasiões nas quais o próprio sujeito produzia algum discurso sobre si. Lembram, a partir daí, a relevância da História das Mulheres, dos estudos de gênero, da figura de Foucault, como marcos para algumas alterações nesse sentido e, por fim, apresentam algumas produções no Brasil que resultam dessa mudança de perspectiva.

Fechando a primeira parte com Estudos queer na historiografia brasileira (2008-2016), Benedito Inácio Ribeiro Júnior realiza um inventário sobre tais estudos na historiografia recente e aponta a história como a área das ciências humanas que mais tempo demorou para inserir tais reflexões entre suas preocupações. Ele denomina a história, de maneira sarcástica, de “Tia velha”. A partir daí aponta para a relevância da interdisciplinaridade para que avanços ocorressem no sentido de abarcar outros sujeitos na historiografia, e por fim apresenta os ganhos por parte da própria disciplina histórica com a inclusão de certas temáticas.

A segunda parte do livro tem abordagens que visam romper com certa tendência contemporânea de identificação entre sexo e gênero, tendendo, portanto, a normalizar as subjetividades de maneira binária. Em Corpos migrantes: a presença da primeira geração de travestis brasileiras em paris, Marina Duarte procura analisar, como ela própria afirma, corpos que atravessam duas fronteiras fortemente estabelecidas: a do estado-nação e das relações de gênero. Para tanto a autora retorna à cidade de Paris antes da chegada das travestis, e procura compreendê-las também antes da ida a Paris. Quando as estuda lá, analisa inclusive como trafegam pelos espaços e, portanto, como elas o influenciam e são por ele influenciadas.

Na sequência, em Experiências trans: amizades, corpos e outros trânsitos, Rafael França Gonçalves dos Santos analisa, a partir de Michel Foucault, como a categoria da amizade poderia auxiliar na compreensão das sociabilidades homossexuais, sobretudo na formação de suas subjetividades e identidades ao longo da existência, já que a própria intervenção do corpo realizada por alguns deles necessita de identificação, apoio, laços estabelecidos. O autor insere na reflexão o conceito de rede, caro às formas de sociabilidade contemporâneas, assim como a questão da migração.

Em As “genis” representadas nas páginas do Lampião da Esquina, Débora de Souza Bueno Mosqueira realiza um estudo da importância das páginas desse periódico que circulou entre 1978 e 1981 para a construção de espaços de circulação de temas relativos à homossexualidade, integração dos gays em movimentos que defendessem seus direitos e denúncias relativas às violências cometidas contra homossexuais. A autora lembra, inclusive, de como mulheres foram incluídas na equipe do jornal a partir da pressão dos próprios leitores, em um processo dinâmico, e de como a mulher negra, brasileira e da periferia encontrou espaço em algumas de suas páginas.

Em Corpo anacrônico (sucedido por uma alegoria queer para as musas), Antonio de Lion lembra, parafraseando Carlos Alberto Vesentini, a dificuldade de um historiador ou historiadora para falar das lutas de agentes de um tempo que não é o seu. A partir daí, por meio de uma avaliação de como os estudos foram se desenvolvendo a partir, sobretudo, da interdisciplinaridade, desemboca na afirmação de que a contribuição dos estudos queer consiste justamente na capacidade que eles têm de promover uma ampliação dos olhares aos corpos que importam, para que, em algum momento, se possa compreender que todos os corpos importam.

Na sequência Kauan Amora Nunes, em O que Queer tem a ver com as calças: uma análise histórica do conflito entre críticas marxista e queer, nos apresenta uma relação, em geral no mínimo intranquila, entre estudos marxistas de um lado, que em geral entenderam que questões referentes a etnia ou gênero seriam menores se comparadas à questão da luta de classes, e a bibliografia queer do outro, que evidentemente critica a percepção marxista por lhe reduzir o nível de importância. O autor lembra, no caso brasileiro, da controversa relação entre o próprio PT, com orientações iniciais do marxismo, e a questão da homossexualidade.

Em “Vai malandra…seu corpo é instrumento [contra] violento”: Figurações da marginalidade no filme “A Rainha Diaba” (1973), Robson Pereira da Silva busca compreender em que medida a arte da década de 1970 pôde responder, com figurações de corpos marginais, às lesões efetuadas pelo Estado autoritário configurado na ditadura militar no Brasil, que vigorou entre 1964 e 1985. A partir disso o autor trabalha com possibilidade de ler, nas obras de arte, uma possível contraviolência praticada por uma diversidade de figuras da classe artística nacional.

Fechando a obra Aguinaldo Rodrigues Gomes e Peterson José de Oliveira, em Erosão das masculinidades e dos discursos marginais no app Grindr, buscam compreender a configuração das identidades e subjetividades de sujeitos que interagem nas redes sociais. A chamada heteronormatividade dominante se aplica, evidentemente, nos espaços virtuais, e a análise dos autores se realiza na busca de compreender até que ponto, em um aplicativo mais específico para um público homossexual, os sujeitos conseguem romper com tais parâmetros de visão de si e dos outros e até que ponto permanecem enredados na teia de representações hegemônicas.

A obra, a meu ver, pela multiplicidade de referenciais teóricos e de abordagens metodológicas sobre uma diversidade de temas pertinentes, é objeto valioso para aqueles que se dedicam a objetos teóricos que estejam nas fronteiras do que é tratado no livro, assim como para aqueles que, no mínimo, queiram ampliar sua compreensão sobre a complexa formação das subjetividades nas sociedades contemporâneas.

Cássio Rodrigues da Silveira – Possui graduação em Filosofia, mestrado em História e doutorado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente leciona Filosofia no Instituto Irmã Teresa Valsé Pantellini, da Rede Salesiana de Escolas.


SOUSA NETO, Miguel Rodrigues de Sousa; GOMES, Aguinaldo Rodrigues (Org.). História e Teoria Queer. Salvador: Devires, 2018. Resenha de: SILVEIRA, Cássio Rodrigues da. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 22, p. 256-259, jul./dez., 2019.

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Cultura, politecnia e imagem – ALBUQUERQUE et al (TES)

ALBURQUERQUE, Gregorio G. de; VELASQUES, Muza C. C; BATISTELLA, Renata Reis C. Cultura, politecnia e imagem. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017. 318 pp. Resenha de: GOMES, Luiz Augusto de Oliveira. A materialidade da cultura: uma nova forma de ler o mundo. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.17, n.2, Rio de Janeiro,  2019.

O livro Cultura, politecnia e imagem,organizado por Gregorio Galvão de Albuquerque, Muza Clara Chaves Velasques e Renata Reis C. Batistella, publicado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fundação Oswaldo Cruz, apresenta um panorama ampliado do conceito de cultura a partir de três eixos de análise que se complementam: (1) Cultura, educação, trabalho e saúde; (2) Cultura, educação e imagem; e, (3) Cultura e cinema. Os 20 autores que assinam os 15 artigos do livro apresentam importantes contribuições para compreender a materialidade da cultura nos tempos atuais.

No eixo “Cultura, educação, trabalho e saúde”, ao debater cultura, os autores se fundamentam especialmente no materialismo histórico dialético para refletir sobre o conceito ampliado do termo. É interessante observar a defesa de uma concepção de cultura imbricada dialeticamente com todas as instâncias dos processos de produção da vida social, refutando a tradição idealista que busca na cultura algo puro e apartado do “reino dos conflitos e contradições” (p. 25). Além da crítica ao idealismo, é crucial destacar as reflexões acerca das obras de Eduard Palmer Thompson e Raymond Willians, pensadores da chamada nova esquerda britânica, para desconstruir a leitura de um marxismo dogmático e fundado no reducionismo econômico, que hierarquiza base/superestrutura e plasma a cultura no plano da ‘superestrutura’, desvinculada das relações sociais de produção (infraestrutura). Quanto às relações dialéticas entre estrutura e superestrutura, assim como Thompson (1979, p. 315) podemos dizer que “o que há são duas coisas que constituem as duas faces de uma mesma moeda”. Ao ter em conta os nexos entre economia e cultura, podemos perceber que a “dimensão cultural das sociedades são espaços dinâmicos permeados por conflitos de interesses” (p. 88), espaços onde estão presentes tanto o consenso quanto disputas por uma nova hegemonia. Essa constatação vai ao encontro das palavras de Thompson (1981, p. 190) de que “toda luta de classes é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores”, valores esses que constituem a cultura, cuja base material deve ser investigada e considerada na análise do movimento do real.

É um desafio compreender o conceito de cultura não apenas como campo de consenso. Como nos informa o eixo “Cultura, educação, trabalho e saúde”, a cultura pode ser entendida como resultado das ações dos homens e mulheres sobre o mundo. Em última instância, “ela se torna o próprio ambiente do ser humano no qual ele é formado, apropriando-se de valores, crenças, objetos, conhecimentos” (p. 99).

A obra de Clifford Geertz, trabalhada em um dos artigos do livro, também contribui para o debate sobre cultura, principalmente por abordar os modos de vida e discursos dos grupos vulneráveis ou excluídos. A noção de comportamento humano de Geertz é uma ótima ponte para aproximar a antropologia da discussão a respeito da compreensão do processo saúde-doença. A autora do artigo afirma que a contribuição de Geertz e a sua antropologia “é muito favorável para a inclusão do ponto de vista dos pacientes e usuários dos serviços na análise das questões de saúde, principalmente no atual contexto, no qual o discurso médico é dominante” (p. 114).

No segundo eixo, intitulado “Cultura, educação e imagem”, os autores tratam da construção de conhecimento por meio das imagens. Esse eixo, em especial, nos favorece a compreensão das imagens como mediação em espaços formativos, sejam eles institucional (como a escola) ou qualquer outro espaço de educação dos sujeitos coletivos. Para isso, os autores buscam principalmente nas experiências em sala de aula mostrar como, por intermédio da cultura (em especial, da imagem), é possível outra leitura do mundo.

Com isso, concordamos com Kosik (1976) quando entende que compreender a vida para além da sociedade fetichizada − que toma a coisas no seu isolamento, adota a essência pelo fenômeno, a mediação pelo imediatismo−, é um exercício de apreensão da totalidade do cotidiano. Por isso, tendo em conta a pseudoconcreticidade com que o mundo se apresenta, os autores indicam que na sociedade capitalista, onde “o urbano passa a ser uma sucessão de imagens e sensações produzidas e reproduzidas pelos indivíduos que criam uma condição fragmentada da vida moderna” (p. 88), crianças, jovens e adultos buscam nas imagens divulgadas nas mídias (televisão e redes sociais) a construção de si mesmos e do mundo.

Na lógica do capital, a imagem exerce um papel importante na manutenção da hegemonia, impondo valores e transferindo os desejos da burguesia para a classe trabalhadora. Como constata um dos artigos, a “dissolução da forma burguesa mantém-se no contínuo da passividade dos sujeitos sociais, arraigando assim uma violência subjetiva terrorista, como reconhecer e alterar este mundo […] a colonização estética dos sentidos é perversa” (p. 160).

Sabemos que a educação é apropriada pelo capitalismo como formadora de consenso: “forma-mercadoria e forma estatal como princípio de organização da vida social, impregnando a subjetividade humana de práticas autorrepressivas no que diz respeito aos seus impulsos de felicidade e liberdade” (p. 170). A leitura do eixo “Cultura, educação e imagem” reforça que o “viés questionador, transformador e revolucionário da reflexão e da produção cultural podem possibilitar uma nova forma de ler do mundo” (p. 143). Os artigos nos ajudam a compreender que a imagem é uma potente ferramenta, constituindo-se como mediação tanto revolucionária quanto para manter o status quoda classe econômica e culturalmente dominante.

Por fim, no último eixo, “Cultura e cinema”, os autores nos convidam a conhecer a discussão acerca da cultura e da imagem com base em consistentes formulações teóricas que envolvem a produção do cinema e os seus nexos com as práticas escolares. Neste eixo, podemos destacar que é de grande importância a crítica direcionada às produções acadêmicas que corroboram para que a “análise de filmes seja percebida ainda como uma forma acessória de se atingir uma compreensão sobre a realidade social” (p. 231), ou seja, esse tipo de análise trata a produção do cinema como uma mera fonte de registro e que para compor uma análise da sociedade necessitam de outros tipos de fontes.

Em seus quatro artigos, o eixo “Cultura e cinema” procura demonstrar como a produção fílmica é uma fonte histórica de grande relevância para analisar a sociedade a partir de uma “concepção estético-política” (p. 232). Busca na interpretação do filme “Terra em Transe”, do diretor Glauber Rocha, elementos importantes para a leitura dos acontecimentos do golpe empresarial-militar de 1964 e as variadas interpretações do seu sentido nos dias atuais. O filme é “uma síntese devastadora do processo de luta de classes no Brasil e na América Latina dos anos 1960 como núcleo duro permeando todas as relações sociais reais, demole todos os discursos de legitimação dos projetos colonizadores” (p. 254). A produção em questão nos ajuda a compreender a potência do cinema na captação do real e de como a organização formal e estética em imagem e som nos auxilia na percepção das disputas de classe ocorridas no período.

A concepção de romper com um olhar naturalizado sobre a sociedade de classes é um dos intuitos das produções fílmicas alternativas, em especial na conturbada América Latina do século XX. Assim, o Nuevo Cine Latinoamericanomarcou o cinema latino-americano, buscando em produções militantes, conscientizar trabalhadores e trabalhadoras a sair das suas ‘zonas de conforto’. Essa concepção de cinema buscou possibilitar, como nos indica um dos artigos, “uma nova leitura do mundo, e uma nova forma de pensar a nossa realidade, características fundamentais para a transformação social” (p. 287).

Assim como os longas-metragens, os documentários também contribuem para narrar os conflitos de classe. Como sinaliza uma das autoras, o documentário tem o poder de relacionar a antropologia, a arte visual e a produção cinematográfica para contar uma história. Com isso, os documentários sustentam o “mito de origem de falarem a verdade” (p. 258). Todavia, o eixo nos leva a refletir: Qual verdade? Verdade para quem? O livro nos convida a encarar o documentário como um gênero de grande importância para a pesquisa social.

O rico debate teórico com base na materialidade da cultura alicerçada nas pesquisas dos autores, seja em sala de aula ou na análise de imagens e filmes, ajuda-nos a entender a profundidade do conceito de cultura e a sua potência como agente da transformação social. O livro nos elucida quanto à necessidade de que a classe trabalhadora se aproprie e interprete sua própria cultura, descolonizando-se da hegemonia cultural da burguesia, para assim buscar a sua emancipação plena.

O livro Cultura, politecnia e imagemé um prato cheio para quem busca superar a concepção idealista de cultura, compreendendo-a na sua totalidade, em diversos espaços-tempos históricos, tendo em conta as relações dialéticas entre economia, cultura e outras determinações sociais, e em especial as experiências coletivas da classe trabalhadora. Nos três eixos temáticos, o conjunto de autores desenvolve formulações teóricas com evidências empíricas de que a cultura e os processos educativos que a elegem como objeto de estudo e de compreensão da realidade podem fermentar os germes de projetos de transformação social.

Referências

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. [ Links ]

THOMPSON, Edward P. Tradición, revuelta y cons- ciência de classe. Barcelona: Crítica, 1979. [ Links ]

THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. [ Links ]

Luiz Augusto de Oliveira Gomes – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, Niterói, RJ, Brasil. E-mail: luiz.augusto1201@gmail.com

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A particularidade na estética de Lukács (T), Instituto Lukács | Deribaldo Santos

“A particularidade na Estética de Lukács” de Deribaldo Santos, publicado pelo Instituto Lukács (IL), com primeira edição no ano 2017, trazendo os principais conceitos da obra de maturidade de György Lukács, elaborada de forma mais bem-acabada em a Estética 1. O autor se propõe a sistematizar as categorias lukacsiana contida na obra do filósofo, deixando-as mais acessíveis para o entendimento e direcionando-as para o público interessado no pensamento Lukács e para quem se interesse e estude estética. O estudioso da particularidade em Lukács tem publicado pela editora do IL “Estética em Lukács – A criação de um mundo para chamar de seu”, além deste, outros livros de cunho literário e na área de educação.

Em seu livro, Santos se propõe a expor os conceitos estéticos de Lukács de forma didática para seus leitores, preocupação coerente para um intelectual que tem sua formação em pedagogia e educação. Com essa preocupação do autor, temos em tela uma estrutura fluida e bem amarrada, dividida em três capítulos, tendo cada um em média quatro subcapítulos, que demonstram de forma sistemática transições entre categorias. Sendo assim, o primeiro capítulo tem o objetivo de mostrar como as categorias trabalho, cotidiano e arte tem suas materialidades efetivas na vida comum e como são formas de objetivação humana; articular o distanciamento e aproximações ente a arte e a ciência; por fim, qual é a gênese do desligamento dos reflexos estéticos na realidade. No segundo capítulo, o autor articula a centralidade da categoria da particularidade para a estética marxista, passando por uma demonstração teórico-metodológica desta, apontando para a importância de J.W. Goethe para a formulação da categoria em questão e o esclarecimento de sua peculiaridade. No terceiro e derradeiro capítulo, o autor trata da concepção de forma-conteúdo e essência-aparência, pontos cruciais para a compreensão da dialética da particularidade estética. O estudioso da particularidade em pouco mais de cem páginas coloca em tela sua proposta: demonstrar o movimento dialético interno das categorias lukacsiana, atreladas à realidade concreta.

Para Ranieri Carli, o conceito de particularidade para Lukács é elemento “imposto ao estético pela própria realidade objetiva” que “ocorre do fundamento terreno da arte: a criação de uma imagem aproximativa que traduza em destinos humanos concretos as forças sociais de época e lugar determinados” (CARLI, 2012, p. 117). Segundo esse outro estudioso, o filosofo húngaro defende que a partir da centralidade do particular a universalidade ganha caráter concreto, deixando de ser abstrato, tal qual o singular passa a ter um sentido, deixando de ser avulso. Assim, em sua Estética 1 “a situação do particular vem confirmar a não imediaticidade do reflexo estético” (CARLI, 2012, p. 117). O húngaro, para Carli, propõe-se à formulação de uma teoria estética marxista voltada para o caráter organizativo da particularidade na obra de arte, tendo como ponto de partida uma visão histórica e crítica do pensamento filosófico alemão, desde Kant, passando por Schelling, Hegel e Goethe, chegando a Marx e Engels.

Lukács até o fim de sua vida se dedicou a entender a obra de arte em relação à ciência, como essas duas formas de representação do mundo se relacionam entre si e expressam de formas diferentes a mesma realidade efetiva. Esse esforço é elaborado através das lentes teórico-metodológica marxistas. O que Santos nos mostra em seu livro é a importância da categoria de particularidade para a produção e entendimento das obras arte, assim como a importância dessa categoria para o método cientifico. O autor faz uma análise interna das obras de Lukács — Introdução a uma Estética Marxista e Estética 1 — em que se propõe mostrar a relação entre o Particular, o Singular e o Universal, levando em consideração as várias categorias que são essenciais para o movimento do particular ao universal nas obras artísticas e na ciência.

A categoria de particularidade para Santos é o que permite analisarmos a realidade concreta na sua mais complexa determinações, pois essa categoria é o ponto principal para o movimento dialético tanto da obra de arte como da ciência. Lukács, em uma das obras analisadas por esse estudioso, coloca da seguinte forma “para entender a diferença decisiva entre reflexo científico e reflexo estético, tivemos de sublinhar que o particular, que figurava no primeiro como ‘campo’ de mediação, deve se tornar no segundo o ponto central organizador” (LUKÁCS, 1978, p. 173), com isso fica claro a diferença da categoria de particular na metodologia de uma obra artística e essa categoria em relação à analise cientifica.

A categoria de reflexo estético é colocada no livro de Santos como fruto da realidade unitária, assim, a entrada para a representação da realidade a partir desse reflexo é o próprio cotidiano, onde ocorrem as objetivações superiores. Sendo na cotidianidade que ocorrem as contradições do mundo prosaico e nesta instância encontramos as características fundamentais da vinculação entre teoria e prática. O estudioso da particularidade nos mostra que Lukács coloca o cotidiano como preponderante sobre o pensamento científico e que desse solo partem as formulações de questões que serão resolvidas cientificamente. O autor nos mostra que, na visão do filósofo húngaro, a ciência e a arte entram na divisão social capitalista do trabalho, formando os vários campos das artes e da ciência modernas, e que nessa formação histórica da divisão social do trabalho isso é o que determina a divisão entre o pensar e o fazer, ou seja, somente com a consolidação da modernidade como um período histórico que detém maior complexidade de determinações há também a separação plena entre teoria e práxis.

Seguindo Lukács, Santos coloca que a existência do objeto a ser analisado cientificamente é independente da consciência do sujeito. Assim, partindo de um ponto de vista materialista dialético, que atribui cientificidade à historiografia, esta, por sua vez, tomaria a própria história como um processo real e efetivo, independente da consciência do historiador. Desse modo, a função da História como ciência seria o esforço de desantropomorfizar o objeto que está sendo pesquisado, tal como qualquer ciência modernamente estabelecida. A desantropomorfização, em termos gerais, é a retirada de características atribuídas humanamente ao objeto e que partem de um senso comum cristalizado. Com isso, o reflexo científico tem a função de representar a realidade tal como ela é em suas várias determinações inerentes, com realidade independente em relação ao conhecimento.

Em contraponto, o reflexo estético é a antropomorfização da realidade, isto é, tem a função de atribuir a ela maior gama de características humanas, deixando sua representação mais enriquecida, fazendo o movimento de articulação entre a inerência da obra de arte e a externalidade da realidade concreta. Toda a forma de reflexo — no caso, estético e cientifico —, são determinados, como demonstra o estudioso, partindo de Lukács, por um hic et nunc (aqui e agora) que já é histórico em sua gênese. O autor nos mostra que “cada reflexo, artístico ou cientifico, está carregado de ponderações materiais e temáticas impressas pelo espaço temporal de sua consumação” (SANTOS, 2017, p. 25). Com isso, demonstrando que há na interpretação de Lukács uma defesa da imanência do objeto, o qual é uma exigência insolúvel ao conhecimento científico.

Como imanência do objeto, o autor categoriza tudo aquilo que é indissociável do objeto investigado pelo cientista. Assim, à ciência, com o seu método, caberia se aproximar da realidade imanente a esse objeto, isto é, a ciência — em seu movimento interno — só é capaz de se aproximar da realidade e isso é uma forma necessária para que haja um processo de atualização constante dela mesma, determinado pelo objeto, sendo este independente da consciência do sujeito; no processo em questão, também se proporciona rastros a serem seguidos posteriormente, e esses rastros se estendem ad infinitum.

A Estética, relacionada à ciência do belo, enquanto efetividade sensorial [2] , ou seja, relativa aos cinco sentidos humanos, também tem a funcionalidade de analisar a sensação humana dentro dos vários âmbitos particulares da realidade cotidiana, o filósofo alemão G. W. F. Hegel coloca o termo estética em relação ao âmbito da arte dizendo

O nome estética decerto não é propriamente de todo adequado para este objeto, pois “estética” designa mais precisamente a ciência do sentido, da sensação [Empfinden]. Com este significado, enquanto uma nova ciência ou, ainda, enquanto algo que deveria ser uma nova disciplina filosófica, teve seu nascimento na escola de Wolff, na época em que na Alemanha as obras de arte eram consideradas em vistas das sensações que deveriam provocar, como por exemplo as sensações de agrado, de admiração, de temor, de compaixão e assim por diante (HEGEL, 2015, p. 27).

Santos irá diferenciar a arte da religião, para o autor a primeira tem como imanente o humano, assim, os seres humanos em sua atividade seriam o núcleo para a produção artística. No caso da segunda, a religião, o investigador demonstra que na concepção de Lukács ela também depende do homem para existir, porém a sua diferença com a arte e com a ciência está na sua orientação ao transcendental, ou seja, ela está para além do hic et nunc (aqui e agora). Podemos fazer a mesma relação com a ciência, que, assim como a arte tem como núcleo a atividade humana, e diferente da religião, não tem orientação ao transcendental. Desse modo a arte e a ciência tem como núcleo o mesmo objeto, o homem, e por esse mesmo núcleo ambas são desenvolvidas. Nessa concepção essas três formas de representação do mundo, arte, ciência e religião, para o filósofo húngaro dependem do sujeito para existir, ou seja, depende da pratica humana na sua forma mais aberta possível, essas representações estão totalmente atreladas, para Santos e Lukács, com a divisão social capitalista do trabalho.

A divisão social capitalista do trabalho é uma relação social que irá determinar as duas principais formas de reflexo do mundo, a arte e a ciência. Santos afirma que para Lukács essa divisão social historicamente determinada cria na representação do mundo um estreitamento. O autor defende que para Lukács os sentidos humanos, apesar de serem in natura, são desenvolvidos historicamente para atender necessidades socialmente constituídas, mas, com a divisão social do trabalho haveria um estreitamento da visão de mundo, o que direcionaria o foco para pontos isolados; isso se intensifica na sociedade moderna.

A partir da observação do fenômeno de estreitamento dos sentidos humanos, o estudioso constata que Lukács concebe o homem em duas formas: o “homem-inteiro” e o “homem-inteiramente”. O primeiro nada mais é que o homem que está vinculado diretamente ao seu cotidiano e que está inserido nele de forma inteira, pois esse sujeito é parte determinante e determinada pelas relações sociais. O segundo é o homem que tem acesso a um mundo qualitativamente distinto do próprio cotidiano, isto é, o homem que entra em contato com a obra de arte que expressa a universalidade mediante uma particularidade, esta última só pode ser humana e o contato com essa dimensão da experiência é o que proporciona ao homem não ser mais “inteiro”, mas sim estar no mundo “inteiramente”, pois ele teve acesso a uma particularidade que atinge universalidade e o coloca em contato com a natureza humana propriamente dita. Um exemplo desse processo seria a empatia, ou seja, reconhecer o sentimento do outro e se reconhecer neste.

Santos, partindo de Lukács, mostra-nos que há uma relação oposta entre as categorias de singular e universal, essa forma de interação só pode ser sanada pela categoria do particular, que faz o papel de mediação e proporciona a interação entre as duas primeiras categorias. Assim, o particular é colocado também como uma categoria que atinge o universal, dirá Lukács em Introdução a Estética Marxista: “o processo pelo qual as categorias se resolvem e se transformam uma na outra sofre alterações: tanto a singularidades quanto a universalidade aparecem sempre superadas na particularidade” (LUKÁCS, 1978, p. 161).

O estudioso atesta que em Lukács todo o fenômeno originário é igual à particularidade, que é o seu ponto de mediação entre o singular e o universal. Do mesmo modo o autor colocará que para os marxistas a prioridade se encontra na realidade objetiva, em que está o movimento real, o que é fundamental à dialética materialista, e nota ainda que já no âmbito da estética a particularidade é um ponto em movimento, como dirá Lukács

A descoberta de Goethe, sobre o papel da categoria de particularidade na estética, não tem aparentemente muita importância: o movimento no qual o artista reflete a realidade objetiva culmina, fixa-se, recebe forma no particular, e não como no conhecimento cientifico, de acordo com suas finalidades concretas — no universal ou no singular. O conhecimento ligado à pratica cotidiana se fixa em qual quer ponto, a depender de suas tarefas concretas e práticas. O conhecimento cientifico ou a criação artística (bem como a recepção estética da realidade, como na experiência do belo natural) se diferenciam no curso do longo desenvolvimento da humanidade, tanto nos limites extremos como nas fases intermediarias. (LUKÁCS, 1978, p. 161)

Essa concepção de relação entre particular e universal, tem forma unitária no tema da relação entre forma e conteúdo. Para Lukács “no interior da comunidade de conteúdo e forma, são também comuns[…], as categorias de singularidade, particularidade e universalidade” (LUKÁCS, 1978, p. 161). Santos, tomando esse posicionamento de Lukács, divide em sua exposição a forma na ciência, que tem a obrigação de se afastar de um senso comum, da forma na estética, que tem sempre de estar atrelada a um conteúdo. Assim, o autor defende que o “processo técnico é fundado tendo como base o conhecimento imanente das leis naturais que independem da consciência humana” (SANTOS, 2017, p. 71), dessa forma na ciência o desenvolvimento da técnica ganha uma afirmação, sua objetividade procura aproximar-se da realidade concreta, isso é pensado pelo filósofo como reflexo da realidade. O reflexo artístico em seu desenvolvimento tem a funcionalidade de representar os distintos particulares dos seres humanos e tem como proposta capturar a essência dos novos fenômenos que se efetivam nessa realidade objetiva e sua forma tem que, de alguma maneira, evocar a experiência cotidiana, assim, o típico irá representar a verdade da forma. No reflexo cientifico o conteúdo precisa se fixar e se aprofundar na imediaticidade sensível das formas fenomênicas. A ciência em A particularidade na estética de Lukács é o aprofundamento da dialética entre necessidade e contingencia. A categoria do particular, defendida nesse livro, tem a capacidade de abraçar o mundo na sua inteireza, interna e externa.

Uma das maneiras da ciência burguesa refletir a realidade, segundo Lukács e o autor que se propõe a estudá-lo, é excluindo a importância da particularidade no método cientifico e isolando o singular de sua relação com o universal, assim, essa ciência vigente exclui o centro móvel que ordena a relação entre singular e universal. Um exemplo disso é a visão historiográfica predominante na contemporaneidade, que retira a centralidade da luta de classes do processo histórico e obscurece o proletariado como particularidade da sociedade moderna, particularidade esta que é de fundamental importância para o entendimento do processo sob o qual se ergue essa formação social, pois é por sua submissão que se garante a conservação do sistema de divisão social do trabalho já consolidado, que é o sistema capitalista.

Deribaldo dirá que “o reflexo artístico, ao criar suas refigurações da realidade, transforma o ser em si objetivo em um ser para nós de um mundo representado unicamente na individualidade da obra de arte” (SANTOS, 2017, p. 101). Desse modo o autor nos coloca que para Lukács, o par forma e conteúdo, opera no campo estético para uma distinção entre consciência e autoconsciência. O autor colocará que somente na esfera da estética a autoconsciência ganha um valor substantivo e que se expressa em dois sentidos, o primeiro é como um valor pessoal do objeto representado e depois como valor pessoal do modo de representação dessa realidade. Essas qualidades, em seu livro, são colocadas como o que despertam a autoconsciência, ela é aberta com uma retomada dos caminhos da humanidade percorridos, que aparecem por meio da rememoração, ou seja, pela “memoria”. Dirá:

Como memoria, ou seja, como “recordação” do caminho que a humanidade, as pessoas e as situações percorreram ou irão percorrer; das virtudes e vícios do mundo interno e externo dos homens que, por sua vez, dá o ponto de partida para o desdobramento dinâmico, para o seio da contraditoriedade dialética, no qual o gênero humano levantou-se ao que hoje é e ao que poderá vir a ser (SANTOS, 2017, p. 102).

A autoconsciência da humanidade encontra na arte um modo adequado e evoluído dignamente, essa autoconsciência para o autor é “o correto reflexo do real, que existe independentemente da consciência individual, a imersão do sujeito na realidade, é o pressuposto imprescindível e fundamental de toda autoconsciência da humanidade” (SANTOS, 2017, p. 104).

Deribaldo Santos abordar sinteticamente a importância da categoria da particularidade para Lukács, partindo da análise interna do livro Estética 1. Isso é feito com uma exposição bastante didática do debate teórico-metodológico, o que ilustra bem a diferença entre a elaboração artística e a análise científica da realidade. Assim, o autor demonstra que as categorias abordadas no âmbito da filosofia lukacsiana, tais como: o reflexo; cotidiano; divisão social do trabalho; o objeto como independente da consciência do sujeito; antropomorfização e desantropomorfização; hic et nunc (aqui e agora); imanência; diferenciação entre a arte e a religião; homem-inteiro e homem-inteiramente; forma e conteúdo; em suas relações umas com as outras, são de grande importância para a apreciação da especificidade da categoria de particularidade como mediadora na análise científica, promovendo, nessa esfera, a articulação entre singular e universal, e na esfera da arte servindo como força organizadora interna das obras individuais. Por fim, o estudioso traz a possibilidade de entendimento da articulação entre as três categorias de singular, particular e universal para a história da filosofia da estética.

Nota

2. Ver mais em: GREUEL, Marcelo da Veiga. Da “Teoria do Belo” à “Estética dos Sentidos” – Reflexões sobre Platão e Friedrich Schiller. In Anuário de Literatura 2, 1994. pp. 147-155.

Referências

CARLI, Ranieri. 4. O Particular como Categoria central da Estética. In CARLI, Ranieri. A estética de György Lukács e o Triunfo do Realismo na literatura. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012.

GREUEL, Marcelo da Veiga. Da “Teoria do Belo” à “Estética dos Sentidos” – Reflexões sobre Platão e Friedrich Schiller. In Anuário de Literatura 2, 1994. pp. 147-155.

HEGEL, G. W. F. I. Delimitações da Estética e Refutação de Algumas Objeções contra a Filosofia da Arte. In HEGEL, G. W. F. Curso de Estética I. Tradução de Marco Aurélio Werle. 2º ed. rev. 1. Reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.

LUKÁCS, Georg. V – O Particular como categoria central do Estético In. Introdução a Estética Marxista. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder 2º edição. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1978.

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In Critica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. 3º edição. São Paulo: Boitempo, 2013.

SANTOS, Deribaldo. A particularidade na Estética de Lukács. 1º Edição. São Paulo: Instituto Lukács, 2017.

Edson Roberto de Oliveira Silva – Mestrando na Pós-Graduação em História da UNESP de Assis – SP. Atualmente é bolsista CAPES. E-mail: edoliviera89@gmail.com


SANTOS, Deribaldo. A particularidade na estética de Lukács. São Paulo: Instituto Lukács, 2017. Resenha de: SILVA, Edson Roberto de Oliveira. A particularidade como eixo central na estética de Lukács. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 21, p. 184-190, jan./jun., 2019.

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Visões e discursos sobre o “estar doente”: os papéis sociais estabelecidos pelas instituições de saúde, no século XX e início do XXI / Albuquerque: Revista de História / 2019

A alteridade como patologia: os discursos médicos e seus usos políticos

O dossiê Visões e discursos sobre o “estar doente”: os papéis sociais estabelecidos pelas instituições de saúde, no século XX e início do XXI chega aos leitores, num momento em que vivemos uma pandemia que já causou milhares de mortes e que tem agravado, não só uma crise econômica mundial, mas também, a desigualdade social em diversos países, inclusive no Brasil. O isolamento social, medida preventiva adotada, traz consigo uma série de questões sobre a desigualdade social que, há muito, vem sendo silenciadas e negligenciadas. Ações simples, que são verbalizadas e repetidas (quase) como palavras de ordem nos diversos veículos de comunicação e redes sociais, #LaveAsMãos e #FiqueEmCasa, revelam que aspectos básicos, como a moradia e o acesso à rede de saneamento básico, ainda são um privilégio a que muitos não têm acesso. Em que pese a relevância das discussões que podem surgir desse evento e seus desdobramentos, é importante salientar sua importância para compreender melhor a sociedade em que vivemos e os debates aqui propostos.

Ao investigar histórica e historiograficamente as relações de poder que perpassam o adoecer e o curar, não se pode deixar de pensar qual é o papel social da Medicina, seja no início do século passado ou deste, com suas transformações e permanências. De outra parte, cabe também a pergunta: como o Estado lidou (e tem lidado) com as diversas demandas da área da saúde pública? Embora a comunidade médica tenha feito parte de um projeto civilizador para o Brasil – tornando patológicos comportamentos socialmente “indesejáveis” – baseado em mecanismos de normatização e disciplinarização dos indivíduos, nem sempre houve as condições necessárias para combater e debelar as epidemias. Quanto às instituições responsáveis por implementar as medidas profiláticas, o improviso foi, muitas vezes, o único recurso disponível para lidar com o despreparo das equipes auxiliares, a escassez de recursos, mas também com os “alienados”, os doentes e os mais pobres. O que não quer dizer, que a população não protestasse contra as medidas implementadas, muitas vezes, de forma impositiva e violenta, como no caso (emblemático) da Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1904.

Nota-se, então, como o discurso médico e das instituições sanitárias e de saúde foi empregado em diversas ocasiões (e epidemias), pelo Estado, para justificar o controle sobre os indivíduos. Roberto Machado, ao publicar A Danação da Norma, constrói uma trajetória das políticas de saúde no Brasil e pontua que é no século XIX que o saber médico investiu sobre as cidades e as dinâmicas sociais ali presentes. O século XX representa, por sua vez, o momento em que o saber médico institucionalizado, com o aval do Estado, passa a alcançar diversos espaços sociais, dialogando com discursos provenientes de outras áreas do conhecimento, tais como a Educação, a Engenharia, a Arquitetura, o campo do Direito, por exemplo. Com isso, os discursos sobre o estar doente ganharam sentidos políticos que auxiliaram na elaboração e execução desses projetos. Também ajudaram a transformar o saber médico e consolidar sua relevância em diversos grupos sociais.

Nas primeiras décadas do século XX, por exemplo, o Estado autoritário brasileiro, alicerçado em uma política coronelística, utilizou a medicina para estabelecer uma divisão social entre os que, teoricamente, conseguiam compreender as políticas de saúde e os que não teriam condições para isso. Os elementos que sustentaram esse discurso médico-político, que culminou em projetos sanitaristas violentos, foram baseados na Antropologia Criminal de Cesare Lombroso, que auxiliou na consolidação dos discursos racistas durante a primeira metade do século. Com base em suas teorias, foi possível judicializar uma série de grupos que, não por acaso, eram formados por negros e mestiços, justificando assim, um projeto de branqueamento da população (muito mais mestiça e negra do que com traços europeus) que estava em curso desde o final do século XIX. Houve, também, uma brutal medicalização dos indivíduos fora dos padrões de normalidade pretendidos, bem como dos espaços frequentados por eles.

Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, as relações entre as ciências e o discurso político se estreitam, ganhando uma nova dimensão com a Marcha para o Oeste. O projeto político de “civilizar” o sertão teve como intuito a mudança cultural de diversos indivíduos, legitimado por discursos excludentes por parte do Estado. No entanto, havia outras ações previstas dentro dessa agenda política. É neste contexto que se inserem as discussões apresentadas por Diego Moraes, no artigo O discurso eugenista como instrumento político na transição das Repúblicas: a institucionalização do “Perigo Amarelo” no âmbito da Constituinte de 1934. O autor discute como, naquele momento, houve não somente a medicalização da diferença, mas também o uso do discurso médico e científico como argumento jurídico para desqualificar imigrantes asiáticos. Alcir Lenharo, em A Sacralização da Política, reforça a existência dessa mentalidade ao afirmar que medicina, engenharia e educação foram as bases do processo político varguista. Ao longo de quinze anos de um governo autoritário, foi possível trazer à luz projetos de sanitarização que funcionaram muito mais como controle do que benefício para as populações.

Nos anos 50, tendo em vista o segundo governo de Getúlio Vargas e seu projeto de modernidade para o país, houve a continuidade do discurso baseado na necessidade de uma pátria saudável para alcançar o progresso tão desejado. Para tanto, era preciso unir a nação por meio de uma sociedade com saúde, disciplinada ou medicalizada. Parte desse debate está presente no artigo O desenvolvimento das Instituições Psiquiátricas no Rio Grande do Sul até 1950 – O que sabemos pelas pesquisas historiográficas, no qual Lisiane Ribas Cruz situa o estado da arte sobre o tema naquele período. Trata-se de uma contribuição relevante, uma vez que articula esse projeto nacional e seus mecanismos, ao contexto regional.

Na década de 1960, durante o regime militar, surgiram novas discussões sobre o papel dos profissionais de saúde, sinalizando algumas mudanças. No entanto, a invisibilidade social que algumas doenças provocavam, como no caso da tuberculose ou da lepra (cujo nome fora mudado para hanseníase, na década de 1960, por causa do estigma ligado a ela) e, mais recentemente, da AIDS, indicam algumas permanências. Um exemplo disso são as discussões em torno do isolamento de soropositivos, nos anos 80; os inúmeros hospitais psiquiátricos que recolheram milhares de pessoas, mesmo que em graus menos severos, escondendo-os da sociedade. Neste grupo, também se enquadram as relações entre crime, violência e loucura, em uma sociedade violenta e que precisa lidar com sujeitos duplamente marginalizados: são infratores e loucos. Essas reflexões estão presentes no artigo Condenados da Margem: Luta Antimanicomial e o Louco Infrator em Goiás, de Éder Mendes de Paula.

Em Os povos alto-xinguanos e o modelo assistencial em saúde operacionalizado em contextos de intermedicalidade: encontros de saberes, negociações e conflitos, Reginaldo Silva de Araújo apresenta novos elementos, ampliando essa discussão, do ponto de vista temático. Ao mesmo tempo, atualiza sua temporalidade: os anos 2000. Do ponto de vista metodológico, o artigo evidencia as aproximações entre as ciências humanas e o fazer historiográfico, de modo a contribuir para o enriquecimento das reflexões propostas neste dossiê. Além das questões ligadas à posse de terras, que tem resultado em conflitos violentos e genocidas, as comunidades indígenas sofrem com a falta de médicos, recursos físicos e de equipamentos para assistência médica. Principalmente, com a falta de preparo das equipes para lidar com as especificidades culturais dessas comunidades.

Mais recentemente, também tem sido discutida a eficácia do isolamento compulsório para usuários de drogas ilícitas, mas também de pessoas cujos comportamentos são socialmente “indesejáveis” e que, por isso, também são considerados patológicos. Assim, ainda hoje, buscase homogeneizar (por meio de um mecanismo que é perpassado pelo discurso médico, jurídico, geopolítico, entre outros), uma população que é, por princípio, constituída por comunidades tão diversas em suas características, sociabilidades, sistema de crenças e práticas. Em tempos de pandemia, de divulgação em massa de informações falsas e da reiterada desvalorização do conhecimento científico, inclusive das recomendações da Organização Mundial de Saúde, corre-se o risco de pensar que a história se repete, o que, sabemos, é uma armadilha. No entanto, cabe a nós observar como esse mecanismo discursivo se manifesta hoje, e qual seu papel dentro do projeto político neste início de século. Boa leitura!

Referências

LENHARO, Alcir. Sacralização da Política. Campinas: Papirus, 1986.

MACHADO, Roberto. A Danação da Norma. Medicina Social e Constituição da Psiquiatria no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1978.

Carla Lisboa Porto (Centro Universitário Sagrado Coração)

Éder Mendes de Paula (Universidade Federal de Jataí)

Organizadores


PORTO, Carla Lisboa; PAULA, Éder Mendes de. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.11, n.22, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Experiências Estéticas Contemporâneas / Albuquerque: Revista de História / 2019

Experiências Estéticas Contemporâneas / Albuquerque: Revista de História / 2019

A revelação da experiência estética não precisa de uma formulação utópica, porque as obras de arte alcançadas não prometem a satisfação de um requisito absoluto de significado, mas nosso enriquecimento cognitivo em um sentido amplo. Trata-se de experimentar esteticamente o presente precário de nossa liberdade finita, não seu futuro ilusório. Quem quer liberdade também deve querer as decepções da experiência. Portanto, o conhecimento estético não substitui o pensamento conceitual fracassado. As virtualidades da experiência estética são as de uma crítica à experiência curta, omitida, escassa, reprimida.

– Daniel Innerarity

O dossiê Experiências Estéticas Contemporâneas tem como propositura debater acerca das dimensões estéticas entre o século XIX e o século XX, especialmente a partir das expressões produzidas pelas linguagens artísticas (literatura, cinema e música) e suas respectivas performances.

Consideramos a estética como uma modalidade cognitiva legítima capaz de acessar a realidade a partir de verbos criativos como o sentir, querer e pensar, o que caracterizaria o processo compreensivo da realidade proposto por Dilthey em Vida Y Poesia (1945). A estética, como remonta Susan Buck-Morss (2012, p. 157), em sua etimologia carrega consigo a dimensão corpórea, sinestésica – trata-se da percepção pela via sensorial – não restrita somente a arte, beleza e verdade, como os modernos quiseram, mas na captação da realidade em sua natureza material e corpórea, enquanto uma forma de cognição da vida.

Assim, nesse dossiê, nós organizadores, quisemos angariar textos que trouxessem à tona o potencial político de captação compreensiva da experiência social e política da cultura, a partir de aspectos caros a estética como profundidade, aparência, forma, conteúdo e, sobretudo, as mediações elaboradas pelos efeitos teóricos e práticos da relação entre arte, cultura e sociedade. Especialmente em um contexto em que a arte e a cultura tem sido alvo de ataques políticos e a estética é apropriada pela política, o que tem proporcionado, para setores conservadores, um efeito de satisfação artística no campo político e, por conseguinte, fazendo com que a arte busque empreender a politização de suas performances para enfrentar esses efeitos autoritários.

Esse “cogito” foi bem localizado por Walter Benjamin, no século XX, acerca dessas inserções da estética entre as práticas políticas do fascismo e os anseios do comunismo diante da obra de arte e sua reprodutibilidade técnica. Talvez, a esperança de Benjamin, em tal constatação, estivesse na relação ética entre arte e política, o que configura uma tarefa árdua para a estética na contemporaneidade que, segundo Buck-Morss, consiste em

desfazer a alienação do sensório corporal, restaurar a força instintiva dos sentidos corporais humanos em prol da autopreservação da humanidade, e fazê-lo não evitando as novas tecnologias, mas perpassando-as. (BUCK-MORSS, 2012, p. 156).

Dessa feita, o nosso desejo se faz quase apologético acerca da estética, no sentido de que devemos pensar esteticamente e, sobretudo, investigar as produções culturais enquanto calcadas e atravessadas pela realidade, não como “elucubrações supralunares”. No que se refere a dimensão estética da arte, concordamos com os pressupostos de Jauss e a estética da recepção, apontados por Daniel Innerarity, em que a “estética acentua de maneira particular a historicidade e o caráter público da arte, ao situar em sua centralidade o sujeito que percebe e o contexto em que elas são recebidas” (INNERARITY, 2002, p. 09). Interessa-nos aqui os processos históricos de significação, de atribuição de sentido e, como a estética trata do ordenamento cognitivo das possibilidades de estranhamento das formas de perceber a vida, bem como “daquelas que já foram vivas em alguma vez, ordenando-as de novo” (LUCKÁCS apud MACHADO, 2004, p. 12). Trata-se de pensar a forma (a vida dotada de sentido ético e estético), enquanto “absoluto em relação à caótica vida cotidiana” (MACHADO, 2004, p. 19).

As experiências estéticas são um campo aberto de experimentações de liberdade e fracassos capazes de, historicamente, renovarem e produzirem diversos sentidos às nossas formas de perceber a realidade em suas múltiplas interfaces. Nesse sentido, como aponta Daniel Innerarity, na introdução de Pequena apologia de la experiência estética, de Jauss:

A obra de arte alcançada oferece, aqui e agora, possibilidades de um encontro libertador com a própria experiência. Essa experiência reflexiva transgride as convenções da ação cotidiana, mas não para negar, em princípio, seu escopo e suas limitações, mas medir-se de forma modificável com as possibilidades e limites dessa prática. (INNERARITY, 2002, p. 24)

Diante desse propósito de pensar as experiências estéticas enquanto possibilidades abertas de atribuição e transformação de sentido ao longo do tempo, o presente dossiê é formado por seis artigos de pesquisadores que, de alguma maneira, lidam com objetos estéticos em sua dimensão histórica. O primeiro bloco se destina a experimentar análises acerca da relação entre estética e literatura, lidando com proposições estéticas em obras de Paul Celan, Charles Baudelaire, Francisco Candido Xavier e Nelson Rodrigues. O segundo bloco se incumbe de investigar as relações estéticas entre a crítica, história e cinema. O terceiro bloco se encarrega de pensar a estética musical.

Em A Neve das Palavras, texto que abre o dossiê e seu respectivo primeiro bloco, Maria João Cantinho trata da vida do poeta, romeno radicado na França, Paul Celan e, por conseguinte, analisa como os protocolos e referenciais de leitura dele desenvolveram uma “simultaneidade” estética entre política e literatura que, de certa forma, reverberaram em sua poesia. Para Celan, o poema, em sua dimensão estética encarnada na linguagem, é a forma em que as possibilidades “são um caminho: encaminham-se para um destino para um lugar aberto, para um tu intocável” (CELAN, 1996, p. 34). Nessa esteira da poesia, Marcos Antonio de Menezes, em Dandy: Uma criação das Metrópoles novecentistas, se acerca de compreender como se constrói a figura do Dândi, como aquele que desnuda e experimenta a vida parisiense em seus ápices de modernidade, no século XIX, sob as letras da escrita de Charles Baudelaire.

Ainda sobre os aspectos da literatura, mas sob a égide dos processos de recepção e circulação, Ana Lorym Soares, em Circulação E Recepção Da Literatura Psicografada A Partir Da Coleção A Vida No Mundo Espiritual (1944-1968), De Chico Xavier, mapeia e interpreta dentro de uma comunidade específica de leitores qual o percurso de significação que os romances psicografados por Chico Xavier e editados pela Federação Espírita Brasileira (FEB), na coleção A vida no mundo espiritual (1944-1968), percorreram historicamente. Isso, a partir das nuances do romance, história e ficção diante de determinado público leitor.

Em O Verdadeiro Casamento Rodriguiano: Apontamentos Sobre Amor E Desejo No Romance O Casamento (1966) De Nelson Rodrigues, Lays da Cruz Capelozi empreende notas analíticas sobre o único romance escrito por Rodrigues, a fim de abordar temas como amor e desejo, a partir da inferência da moral religiosa cristã quanto ao funcionamento do matrimônio. O livro analisado pela autora foi lançado em 1966, e figurava para Nelson Rodrigues como uma defesa ao casamento, mas para os censores tratou-se de uma crítica à família burguesa. Assim, percebe-se que os processos de significações que extrapolam o desejo do autor ao longo do tempo.

O segundo bloco se restringe ao artigo O Clássico E O Moderno: Eisenstein E Orson Welles Na Pena De Paulo Emílio Sales Gomes, de Rafael Morato Zanatto, que trata como as categorias de clássico e moderno são empreendidas pelo crítico e historiador Paulo Emílio Sales Gomes acerca do fenômeno cinematográfico, especialmente a partir de sua profícua atenção às produções estéticas do cineasta russo Serguei Eisenstein e do estadunidense Orson Welles. Nesse ensejo, Zanatto aponta que Paulo Emílio forjou um método próprio, capaz de condensar no âmbito da crítica e da história um procedimento que concilia o estudo da linguagem, do estilo e da expressão social das produções cinematográficas.

O último bloco conta com o texto que encerra o dossiê, Drogas, Festivais E Rock Na Imprensa Brasileira E Portuguesa – 1970 / 1975, de Paulo Gustavo da Encarnação. O autor articula música, eventos musicais – os festivais – e as drogas para compreender como esses elementos se tornaram um fenômeno de escala mundial e, conseguintemente, atraíram a atenção das imprensas brasileira e portuguesa. Dessa maneira, analisa como os veículos de imprensa abordaram, em suas respectivas páginas, a relação entre drogas, festivais e rock no período compreendido entre 1970 a 1975. Não obstante, apresenta a dimensão social, cultural e política dos festivais roqueiros em tempos de ditaduras, tanto em terras brasileiras quanto portuguesas.

Com a publicação do dossiê Experiências Estéticas Contemporâneas, a albuquerque: revista de história cumpre, mais uma vez, a sua proposta de divulgar os trabalhos de pesquisadores nacionais e estrangeiros, estabelecendo com os mesmos um diálogo de caráter interdisciplinar que configura o propósito do Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais da UFMS / CPAq que, inclusive, propõe em suas linhas de pesquisa reflexões sobre a estética acerca dos marcadores da diferença, identidade, etc.

Aquidauana, dezembro de 2019

Referências

BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter Benjamin. In: BENJAMIN, Walter; SCHÖTTKER, Detlev; BUCK-MORSS, Susan. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

CELAN, Paul. Arte poética: O Meridiano e outros textos. Lisboa: Cotovia, 1996.

DILTHEY, Wilhelm. Vida y poesia. México: Fundo de Cultura Econômica, 1945.

INNERARITY, Daniel. Introdución. In: JAUSS, Hans Robert. Pequeña apología de la experiencia estética. Barcelona: Ediciones Paidós, 2002.

MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. As formas e a vida: Estética e ética no jovem Luckács (1910- 1918). São Paulo: Editora UNESP, 2004.

Marcos Antonio de Menezes (UFJ)

Rafael Morato Zanatto (Doutor pela Unesp-Assis)

Robson Pereira da Silva (Doutorando em História pelo PPGHI / UFU)

Organizadores


MENEZES, Marcos Antonio de; ZANATTO, Rafael Morato; SILVA, Robson Pereira da. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.11, n.21, 2019. Acessar publicação original [DR]

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América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções / Albuquerque: Revista de História / 2018

É com satisfação que apresentamos ao público mais um número de Albuquerque: Revista de História. Em sua vigésima edição a revista trás onze artigos produzidos por professores e pesquisadores brasileiros e argentinos, que compõem o dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções, correspondente ao resultado, ainda que parcial, do projeto “Associados de Pós-Graduações Brasil-Argentina (CAFB-BA)”.

Desenvolvido entre os anos de 2014 e 2017, sob avaliação e financiamento, no Brasil, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e, no caso argentino, pela Secretaria de Políticas Universitárias (SPU), o projeto “Associados de Pós-Graduações Brasil-Argentina (CAFB-BA)”, coordenado na Argentina e no Brasil, respectivamente, pelos professores Sebastián Valverde e Marco Aurélio Machado de Oliveira, buscou interligar, por meio do intercâmbio de pesquisadores desses dois países, o Programa de Pós Graduação em nível de Mestrado em Estudos de Fronteiriços (PPGMEF) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Instituição de Ensino Superior (IES) na Região Centro-Oeste do Brasil, e da Escola de Pós-graduação de Antropologia e Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (FFyL-UBA), Cidade Autônoma de Buenos Aires, República Argentina.

O aprofundamento da análise desse projeto aparece no artigo que abre o dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções, intitulado “Experiencias de intercambio entre Brasil y Argentina: contexto socioeconómico, cientificismo y abordajes críticos”, de autoria de Ivana Petz, pesquisadora ligada ao Consejo Nacional de investigaciones Científicas y Técnicas-CONICET / Universidad de Buenos Aires, à Facultad de Filosofía y Letras, ao Instituto de Ciencias Antropológicas e à Secretaría de Extensión Universitaria y Bienestar Estudiantil; María Cecilia Scaglia, professora do Instituto de Ciencias Antropológicas e integrante da Secretaría de Extensión Universitaria y Bienestar Estudiantil da Universidad de Buenos Aires; e Sebastián Valverde, pesquisador do Consejo Nacional de investigaciones Científicas y Técnicas-CONICET / Universidad de Buenos Aires e profesor do Instituto de Ciencias Antropológicas da Universidad Nacional de Luján, Departamento de Ciencias Sociales.

Frisando as diferenças de perfil da Universidade de Buenos Aires (UBA), historicamente mais acadêmico, e do Mestrado em Estudos Frnteiriços (MEF), de caráter profissionalizante, o artigo faz referências às experiências desenvolvidas a partir de pesquisas articuladas com transferência e / ou extensão, como as ações concretizadas no Centro de Inovação e Desenvolvimento para Ação Comunitária (CIDAC) – na zona sul da Cidade de Buenos Aires – ou por meio dos “Projetos de Desenvolvimento Tecnológico e Social (PDTS)”, em contraponto com a análise dos pontos comuns e as diferenças como o MEF-UFMS atua com as instituições que trabalham com os imigrantes na região de fronteira do estado do Mato Grosso do Sul (MS).

O dossiê prossegue com o artigo “Aportes a los estudios de frontera a partir de la valorizacion inmobiliaria reciente el caso del norte grande argentino”, no qual o geógrafo Sergio Iván Braticevic, vinculado ao Instituto Patagónico en Estudios en Humanidades y Ciencias Sociales da Universidade de Buenos Aires e pesquisador do CONICET-UNCo, apresenta os resultados de uma ampla pesquisa sobre o recente processo de alta dos preços da terra no norte argentino, impulsionado, de acordo com o autor, por fatores econômicos e institucionais, entre os quais destacam-se a expansão da fronteira agropecuária, as atividades turísticas e a especulação imobiliária.

A questão agrária na Argentina também é abordada pelas pesquisadoras do CONICET-UNCo Verónica Trpin e María Daniela Rodríguez, no artigo “Transformaciones territoriales y desigualdades en el norte de la Patagonia: extractivismo y conflictos en áreas agrarias y turísticas”. A partir de trabalho de campo realizado no norte da Patagônia, especificamente nos vales irrigados dos rios Negro e Neuquén e nas zonas de estepe e cordilheira da província de Neuquén, as autoras analisam as transformações territoriais em curso nas áreas agrárias e turísticas dessa região, observando que as dinâmicas dessas transformações se materializam na desapropriação de bens comuns como a terra e a água.

O bloco de três artigos seguintes articula o problema agrário face à questão indígena no Brasil e na Argentina.

No artigo intitulado “Capitalismo dependente empobrecimento indígena no Brasil rural”, o professor e pesquisador da Universidade de Brasília Cristhian Teófilo da Silva parte da premissa de que estudos sobre as formas de desigualdade e pobreza que afetam os povos indígenas contemporâneos devem estar fundamentados em uma perspectiva macro-histórica e micro-sociológica, a fim de que se possa construir uma definição de “pobreza indígena” sensível a sua diversidade e complexidade de manifestações. O autor apóia-se em contribuições etnográficas e denúncias de violação dos direitos humanos dos povos indígenas nas regiões da fronteira Sul do Brasil, bem como na conciliação dos debates sobre o capitalismo dependente e os processos socioeconômicos de integração dos povos indígenas a sistemas coloniais e capitalistas específicos, para demonstrar que tais processos não se desenrolaram de modo idêntico em cada lugar e tampouco de forma inalterada ao longo do tempo.

Em “Despojos de las poblaciones mapuches por parte del Estado Argentino. La frontera bonaerense y el caso de la comunidad mapuche Calfu Lafken de Carhué”, a pesquisadora Sofia Varisco investiga os processos de desapropriação territorial sofridos pelas comunidades indígenas mapuches através das diversas campanhas militares no norte da Patagônia, as quais produziram migrações forçadas e deslocamento de famílias para diferentes regiões do país. Focando sua análise na comunidade Mapuche Calfu Lafken da localidade turística de Carhué, situada no sudoeste da Província de Buenos Aires, a autora destaca de que forma o constante avanço do Estado sobre essa região, definida por alguns analistas argentinos como a “última fronteira bonaerense”, privou a população nativa de seus territórios, o que não só dificultou a comprovação da ocupação ancestral como, em muitos aspectos, tornou invisível a presença de indígenas na referida região.

A problemática da terra articulada à questão indígena na Argentina é retomada no artigo intitulado “Configuraciones espaciales a partir de la intervención estatal en territorios indigenas de Chaco” , no qual Malena Inés Castilla analisa o papel das políticas desenvolvidas pelos organismos governamentais na Província argentina do Chaco, as quais implementam e constroem fronteiras que determinam de forma prejudicial as comunidades étnicas locais. Para tanto, a autora concentra-se em explicar o contexto em que a expansão da fronteira agrária do Chaco foi consolidada durante a década de 1990, e como as ações posteriores das organizações governamentais impactaram as transformações socioeconômicas, territoriais e culturais naquela região.

Sasha Camila Cherñavsky, da Faculdade de Sociologia da Universidade de Buenos Aires, traz sua contribuição ao dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções com uma reflexão sobre a Educação Intercultural Bilíngue (EIB). Partindo do pressuposto de que a Educação Intercultural Bilíngue pode ser localizada no marco do paradigma epistemológico do “Sul” apoiado numa prática descolonizadora, no artigo “La Educación Intercultural Bilingue como aporte a un pensamiento heterárquico” a autora destaca a EIB como uma modalidade educativa, que parte de uma lógica oposta àquela aplicada pela matriz colonial moderna, de caráter cada vez mais discriminador e desigual. Enquanto modalidade educativa marginalizada pela educação tradicional, a Educação Intercultural Bilíngue tem sua gênese, como observa Sasha Cherñavsky a partir de pesquisa realizada com a comunidade Lma Iacia Qom radicada em San Pedro (Província de Missiones), nas demandas e ações levadas a cabo pelos próprios indígenas, com o objetivo de difundir sua cultura ancestral, de buscar o apoio às demandas territoriais, à luta contra a discriminação e à violação de outros direitos, em busca de uma sociedade inter e multicultural.

A questão urbana tem lugar, no presente dossiê, no artigo “Lugares de ciudadanía, experiencias de ciudadanización: investigaciones etnográficas en relación con el derecho a la vivienda en la Ciudad de Buenos Aires”, escrito por Maria Florencia Girola e Maria Belén Garibotti, ambas pesquisadoras vinculadas ao CONICET e à Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Nesse artigo as autoras analisam diferentes experiências de “cidadanização” registradas em duas áreas urbano-habitacionais da cidade de Buenos Aires, que se distinguem, entre outros aspectos, por seus contextos históricos de origem e por suas tipologias de construção e modalidades de povoamento: o Conjunto Urbano Soldati, um mega-conjunto residencial localizado no bairro de Vila Soldati proveniente de um processo de produção estatal de habitação social, e o Assentamento La Carbonilla, situado no bairro portenho de La Paternal, resultante de um processo popular de produção social do habitat. Recorrendo a um trabalho de sistematização de fontes e a uma pesquisa de campo de caráter etnográfico, construida em torno de atividades de observação / participação e entrevistas com moradores dos dois espaços urbanos-habitacionais citados, Maria Florencia Girola e Maria Belén Garibotti se dispõem, através do estudo das práticas e experiências ‘nativas’, de materialidades e significados concretos envolvendo sujeitos localizados, a avançar na análise comparativa de processos de conformação de cidadanias, ligados à aquisição do direito à moradia.

Em “Los caminos de la institucionalización de la economía popular en contextos neoliberales: aportes en clave de procesos hegemônicos”, Guadalupe Hindi e Matias Larsen, ambos da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, discutem a problemática da economia popular na Argentina como um processo de institucionalização, que se insere em um processo hegemônico neoliberal. Para tanto os autores dividem o texto em dois momentos tratando, primeiramente, dos eventos que se referem ao processo de institucionalização da economia popular, em particular o que diz respeito à sanção e regulamentação da Lei de Emergência Social e dos debates gerados em torno dela para, a partir daí, revisar as formas pelas quais se dá a renovação de um determinado debate em termos da “autonomia” das demandas populares em sua conexão com o Estado. Em contraposição a isso, os autores procuram revisar os eventos posteriores à regulamentação da Lei, com o objetivo de propor marcos de entendimento que localizem no centro da análise menos o consenso do que os sentidos que estão implicados, tanto nas ações do Estado como dos sujeitos organizados.

Os dois artigos finais foram produzidos por professores e pesquisadores brasileiros vinculados a três instituições públicas de ensino superior de Mato Grosso do Sul (UFMS. UFGD e UEMS), todos eles direta ou indiretamente ligados ao Programa de Mestrado em Estudos Fronteiriços, sediado no campus de Corumbá da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Neles a questão da migração na América Latina e os impactos ambientais na fronteira brasileira estão no centro das discussões.

Em “América Latina racionalizada na nova Lei de Migração (Lei nº 13.455 / 17: discursos e legitimidade”, Marco Aurélio Machado de Oliveira, Fábio Machado da Silva e Davi Lopes Campos trazem algumas reflexões relacionadas à imigração na América Latina, nos aspectos envolvendo os discursos e a legitimidade. Partindo da premissa de que é possível pensar a questão migratória nesse espaço dentro de um relacionamento legítimo e discursivo, os autores procuram apresentar algumas discussões teóricas sobre como são desenvolvidos os diálogos discursivos entre os atingidos pela nova lei de migração (lei nº 13.445 / 17), conferindo ou não legitimidade aos atores envolvidos. Dessa forma objetivam analisar criticamente o aspecto prático no discurso dos operadores do direito referente à migração, propondo um debate de como o direito pode limitar ou ampliar a questão social, histórica e cultural da migração na atualidade.

O dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções é encerrado com o artigo intitulado “Os impactos ambientais da IIRSA-COSIPLAN no Arco Central da fronteira brasileira”, escrito por Camilo Pereira Carneiro, Felipe Pereira Matoso e Katucy Santos. Destacando que o processo de integração sul-americano, que teve início no final do século XX, possibilitou a emergência de iniciativas de aproximação entre os países do subcontinente, com destaque para o MERCOSUL, a UNASUL e a IIRSA-COSIPLAN, os autores propõem uma análise, a partir das Relações Internacionais, dos impactos socioambientais da IIRSA-COSIPLAN no Arco Central da fronteira brasileira. A análise dessa iniciativa em particular justifica-se, segundo os autores, em razão da mesma ter gerado um importante impacto, materializado de modo especial em zonas de fronteira, ainda que os projetos de infraestrutura implementados se caracterizem pela falta de participação das comunidades locais, e a inobservância dos aspectos socioambientais quando da execução das obras tenha efeitos negativos nas esferas ambiental, social, econômica e cultural.

Com a publicação do dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções Albuquerque: Revista de História cumpre mais uma vez sua proposta de divulgar os trabalhos de pesquisadores nacionais e estrangeiros, estabelecendo com os mesmos um diálogo de caráter inter e transdiscipinar.

Aquidauana, verão de 2019.

Sebastián Valverde

Marco Aurélio Machado de Oliveira

Carlos Martins Junior


VALVERDE, Sebastián; OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de; MARTINS JUNIOR, Carlos. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.10, n.20, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Direitos Humanos dos Pacientes – ALBUQUERQUE (TES)

ALBUQUERQUE, Aline. Direitos Humanos dos Pacientes. Curitiba: Juruá Editora, 2016. 288p. Resenha de MALUF, Fabiano. Dignidade e respeito aos pacientes: o olhar dos Direitos Humanos. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.16, n.2, 2018.

Em tempos de judicialização da saúde, o livro Direitos humanos dos pacientes, de Aline Albuquerque, apresenta extenso arcabouço teórico dos direitos humanos e agrega importantes elementos à promoção e à defesa dos direitos dos pacientes. A obra tem como objetivo principal conjugar os conceitos dos direitos humanos ao âmbito dos cuidados em saúde dos pacientes tendo como base a normativa internacional sobre a temática.

O livro é dividido em três partes. A primeira, Aspectos gerais dos direitos humanos dos pacientes , é composta por dois capítulos. No primeiro capítulo, observa-se o cuidado em delimitar os conceitos de direitos humanos e de paciente. Parte da premissa de que os direitos humanos existem para concretizar a dignidade humana, de modo que todos os seres humanos, sem nenhuma distinção, possam desenvolver suas capacidades pessoais.

Aborda também o Sistema de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, sistemas aos quais se vincula o Estado brasileiro; e inclui o Sistema Europeu de Direitos Humanos por possuir este vasta jurisprudência no campo dos direitos humanos demarcando, dessa forma, as obrigações legais dos Estados contidas nesses três sistemas.

Define a tipologia obrigacional na qual os Estados têm as seguintes obrigações de direitos humanos: obrigações de respeitar, de proteger e de realizar – razão pela qual a falha em cumprir uma dessas obrigações acarreta séria violação dos direitos humanos.

Com relação à conceituação de ‘paciente’, deixa claro que o termo carrega dupla condição – de vulnerabilidade e de centralidade no processo terapêutico – e acolhe seu uso por ser utilizado pelos movimentos reivindicatórios dos direitos humanos; pela condição de vulnerabilidade expressada pelo termo e pela relação humana existente nos cuidados em saúde em detrimento aos termos ‘usuários’ e ‘consumidores’.

O segundo capítulo trata da teoria e dos princípios dos direitos humanos dos pacientes. Faz um resgate do panorama dos movimentos, organizações de pacientes e legislações acerca dos direitos dos pacientes, iniciando-se pelos Estados Unidos, passando pela Europa até chegar ao Brasil.

Destaca, ainda, a distinção entre o referencial dos Direitos Humanos dos Pacientes e as normas de direitos dos pacientes que, a despeito de se entrelaçarem, não são semelhantes. Os Direitos Humanos dos Pacientes derivam da dignidade humana inerente a todo ser humano, previstos em normas jurídicas de caráter vinculante, já as normas de direitos dos pacientes centram-se na perspectiva individualista do paciente sob bases consumeristas, dispostas em declarações, sem qualquer obrigatoriedade jurídica. Ressalta que o reconhecimento dos Direitos Humanos dos Profissionais de Saúde reverbera em benefício dos pacientes e contribui para disseminação de uma cultura de direitos humanos nos ambientes de cuidados em saúde.

Apresenta os pontos de convergência entre a Bioética e os Direitos Humanos dos Pacientes, porém reitera que ambos referenciais se expressam por meio de distintas linguagens e objetivos diferenciados, “a Bioética tem o escopo de refletir e prescrever moralmente, e o dos Direitos Humanos dos Pacientes, o de estabelecer obrigações juridicamente vinculantes aos atores governamentais com vistas à proteção dos pacientes” (p. 68). Evidencia os pontos de distanciamentos dos referenciais da Humanização da Atenção à Saúde notadamente em função da linguagem empregada, de cunho moral e motivacional, e do não reconhecimento do papel intransferível das autoridades estatais em prover condições dignas de cuidados em saúde para pacientes e de trabalho para os profissionais de saúde.

Nesse sentido, a obra traz à tona a discussão sobre a Abordagem Baseada nos Direitos Humanos aplicada à saúde ter como foco políticas e programas de saúde distantes da perspectiva do paciente. Assim, propõe uma inflexão no campo da bioética com o intuito de adotar uma perspectiva inclusiva, que recusa uma acepção atomista do indivíduo, ou seja, defende um conteúdo mínimo basilar do princípio da dignidade humana: “o de que cada ser humano possui um valor intrínseco que deve ser respeitado” (p. 77).

Albuquerque finaliza o capítulo abordando os princípios dos Direitos Humanos dos Pacientes: o Princípio do Cuidado Centrado no Paciente, notadamente o direito ao respeito pela vida privada e o direito à informação; o Princípio da Dignidade Humana que, apesar de polissêmico e complexo, assinala o papel fundamental para sua materialização na esfera dos cuidados em saúde dos pacientes; o Princípio da Autonomia Relacional, que enfatiza a interdependência do paciente com o meio relacional que o circunda, e o Princípio da Responsabilidade dos Pacientes, que corrobora que ao compartilhar informações e concorrer para a construção de seu plano terapêutico, o paciente reparte a responsabilidade pelo tratamento escolhido.

A segunda parte do livro, denominada “O conteúdo dos Direitos Humanos dos Pacientes”, compreende nove capítulos nos quais são tratados em profundidade os conteúdos de sete direitos humanos dos pacientes (do capítulo 3 ao 9): direito à vida; direito a não ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; direito à liberdade e segurança pessoal; direito ao respeito à vida privada; direito à informação; direito de não ser discriminado; e direito à saúde, todos detalhados posteriormente à apresentação da metodologia de levantamento e de desenvolvimento da jurisprudência internacional adotada (capítulos 1 e 2).

A abordagem dos direitos delimita-se a três aspectos: uma apresentação do assunto para melhor situar o leitor; as principais conexões entre o tema e o direito em análise e a exposição de casos ou relatórios sobre o tema. Busca-se extrair de cada direito humano outros, mais específicos, destinados a serem aplicados na esfera dos cuidados em saúde. O que se tem como maior contribuição do capítulo é a demonstração que “determinados direitos comumente atribuídos aos pacientes derivam de normas de direitos humanos e que a jurisprudência internacional em matéria de direitos humanos vem aplicando dispositivos de tal natureza com vistas a proteger o paciente” (p. 180).

A parte 3, intitulada “Aplicação dos direitos humanos dos pacientes”, defende a importância da figura do Agente do Paciente em seus diferentes contextos e condições específicas; ressalta a experiência normativa do Reino Unido, notadamente o sistema mais avançado em termos de direitos humanos dos pacientes e apresenta as normas brasileiras sobre os direitos dos pacientes sob a perspectiva dos direitos humanos, guardando especial atenção às legislações existentes em seis estados brasileiros.

Encerra o capítulo apresentando as justificativas para uma proposta de lei brasileira sobre os direitos dos pacientes sob a perspectiva dos direitos humanos, devido ao fato de não existirem políticas governamentais voltadas para a concretização de tais direitos e do vazio legislativo que concorre para a propagação de ações violadoras dos direitos humanos dos pacientes.

Nesse sentido, é oportuno ressaltar o Projeto de Lei nº 5559/16, em tramitação na Câmara dos Deputados, ao considerar que é dever do Estado zelar pela proteção das pessoas na condição de pacientes, adotar legislação condizente com sua situação específica de vulnerabilidade e que prevê os direitos dos pacientes com base nos documentos internacionais de direitos humanos e de bioética (SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA, 2017).

De modo geral, percebe-se que injustiças e tratamentos desumanos podem ocorrer mais frequentemente em localidades onde não se reconhecem os direitos humanos dos pacientes no discurso político e em legislações. Assim, é de fundamental importância a necessidade de se ter direitos que assegurem a oportunidade e a segurança de persegui-los e reivindicá-los.

De fácil leitura e compreensão, a obra convida os leitores a uma reflexão crítica ao lançar luz sobre a temática, incipiente no país, e contribuir para fortalecer, no Brasil, uma nova perspectiva, a da cultura dos direitos dos pacientes no âmbito dos cuidados em saúde. Desse modo, ser possuidor de direitos numa sociedade que assegura a vigência e a concretização dos direitos humanos dos pacientes é ao mesmo tempo uma fonte de proteção pessoal e uma fonte de respeito à dignidade humana.

Referências

SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA. Carta de Recife. Moção de apoio ao Projeto de Lei nº 5559/16 – Estatuto dos Direitos do Paciente. XII Congresso Brasileiro de Bioética. VI Congresso de Bioética Clínica. Recife, 28 de setembro de 2017. Disponível em: < http://www.sbbioetica.org.br/uploads/repositorio/2017_11_01/CARTA-DE-RECIFE.pdf> . Acesso em: 16 de março de 2018. [ Links ]

Fabiano MalufUniversidade de Brasília , Departamento de Saúde Coletiva , Brasília , Distrito Federal , Brasil. E-mail: maluffabiano@gmail.com >

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[MLPDB]

Teoria da religião – BATAILLE (AF)

BATAILLE, G. Teoria da religião. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015. Resenha de: CAMILO, Anderson Barbosa. Artefilosofia, Ouro Preto, n.23, dez., 2017.

A recente publicação no Brasil de Teoria da religião de Georges Bataille pela editora Autêntica, com a competente tradução de Fernando Scheibe, traz uma edição ímpar deste escrito. Além de disponibilizar de modo integral o texto Teoria da religião, a presente edição dispõe da famosa conferência Esquema de uma história das religiões, proferida em 1948 no Collège Philosophique em Paris, na qual Bataille expôs noções chaves que posteriormente desenvolveu no manuscrito de Teoria da religião, redigido no mesmo ano, logo após esta conferência que “serviu de embrião ao livro” (p. 7), como diz Fernando Scheibe. É interessante ressaltar que a presente edição de Teoria da religião contém a presença das notas extraídas do volume VII das Obras Completas de Bataille, e também a inclusão das “Notas do editor francês”. Percebe-se nitidamente um empenho da editora Autêntica de apresentar ao público uma edição que proporcione uma leitura mais rica e frutífera de Teoria da religião, oferecendo ao leitor, num único volume, não somente o texto integral, mas, também, as notas adicionais e a mencionada conferência que originou o escrito.

Originalmente publicado pela editora francesa Gallimard em 1974, Teoria da religião veio a público após 12 anos da morte de Georges Bataille. Trata-se, portanto, de um escrito póstumo e que podemos considerá-lo abandonado, pois, como consta na “Nota do editor francês”, “[…] este texto estava destinado à coleção ‘Miroir’ [Espelho] das Edições ‘Au masque d’Or’ (Angers) ” (p. 11, grifo original), que não chegou a ser enviado em sua versão final. Bataille enviou para o editor um manuscrito incompleto, prometendo posteriormente enviar um quadro e mais algumas páginas. Assim, a publicação de Teoria da religião pela coleção “Miro ir” não foi concluída, desconhecendo-se o real motivo, mas vale salientar que o mencionado escrito de Bataille é citado diversas vezes nos planos para compor a Suma Ateológica (p. 11).

Por ser composto no diálogo da filosofia com a antropologia e da história da religião com a economia e com a sociologia, trata-se de uma obra plural que afirma o caráter incompleto e insuficiente dos pretensos discursos unilaterais sobre o ser humano. Mesmo assim, multifacetado, o pensamento de Bataille se esforça para permanecer numa constante: ser um pensamento aberto, “ móvel ”, pois um pensamento que se quer atrelado às vicissitudes da existência não pode se querer acabado, fechado. “[…] procurei exprimir um pensamento móvel, sem buscar seu estado definitivo” (p. 19), diz Bataille sobre seu escrito.

Como aponta o título do livro, vemos o desenvolvimento de uma teoria da religião que pode ser entendida como uma teoria sobre o sentimento religioso a partir da experiência da imanência ou da intimidade. Para Bataille, a religião responde a uma “busca da intimidade perdida” (p. 47). No percurso de sua argumentação, o autor se esforça por mostrar como a relação do homem com o domínio da imanência ou da intimidade, que é o fundamento da experiência do sagrado, se origina nas sociedades primitivas e quais lugares essa relação ocupa ao longo da história, do surgimento e do desenvolvimento das religiões, indo até a era industrial.

Para dar conta desta abordagem, Teoria da religião é constituída por duas partes. A primeira, intitulada “Dados fundamentais”, trata da construção de um quadro em que os conceitos de animalidade, intimidade, imanência, sacrifício, profano e sagrado são explicados. No início da primeira parte, Bataille afirma que o domínio da imanência é o da situação animal. “[…] a animalidade é a imediatez ou a imanência” (p. 23). A situação animal se passa num plano de indistinção na medida em que não há relação entre sujeito e objeto, isto é, não há a relação em que o objeto é posto por um sujeito que se sabe diferente do objeto. Assim, fundamentalmente, a noção de distinção é pensada.

Acrescenta-se a isso que a duração temporal do objeto é condição necessária para que ele seja posto enquanto tal: “É na medida em que somos humanos que o objeto existe no tempo em que sua duração é apreensível” (p. 24). Para a animalidade não existe a consideração do tempo por vir, portanto, não existe relação entre sujeito e objeto, não existe “[…] nada que possa estabelecer de um lado a autonomia e do outro a dependência” (p. 24).

A continuidade indistinta é o princípio fundamental da animalidade, de modo que Bataille afirma: “todo animal está no mundo como a água no interior da água ” (p. 24, grifo original). É impossível falar da situação animal com precisão, senão de modo poético, “[..

.] visto que a poesia não descreve nada que não deslize para o incognoscível” (p. 25). A animalidade apresenta-se a nós como “um enigma bem embaraçoso” (p. 25).

A partir dessas noções Bataille distingue o mundo humano em contraposição à situação animal. Se a animalidade está imersa numa continuidade, isto é, indistinção, o mundo humano está dado numa descontinuidade, e enquanto tal se configura a partir da posição do objeto enquanto diferenciado da consciência, como não-eu. Assim também o sujeito se faz conhecedor, pois conhece a si mesmo como um outro: “Isso quer dizer […] que só passamos a nos conhecer distinta e claramente no dia em que nos percebemos de fora como um outro” (p. 31).

Nessa perspectiva, a relação do sujeito com o objeto se dá no domínio da utilidade, pois foi na finalidade de manter-se viva que a humanidade estabeleceu sua relação com o mundo. É no plano da fabricação de ferramentas e da utilidade que a humanidade se tornou possível, e é nesse plano que se originou o sujeito conhecedor. Na medida em que transforma a natureza em algo que serve, o homem se coloca como peça fundamental nessa lógica dos meios para os fins, pois ele também está servindo a uma finalidade. Desta maneira, na relação útil com o objeto, o homem também torna-se uma coisa útil.

A questão principal nesta abordagem batailleana é que, no percurso histórico, mesmo a humanidade se realizando no mundo das obras úteis, no mundo profano, ela em alguma medida responde à imanência indistinta, ela responde à sua intimidade mais profunda, e passa a dar origem a um mundo “espiritualizado”, com a representação de um “Ser supremo”, depois animais e plantas dotadas de espíritos e, finalmente, a representação mítica do mundo através de deidades. É nessa perspectiva que o problema do sa grado é introduzido. O sagrado está relacionado à imanência e à continuidade, de modo que, para Bataille, o sentimento do sagrado, que responde à intimidade do homem, está imbuído de angústia, pois o sagrado é contraposto ao mundo profano que obedece ao imperativo da utilidade dando continuidade às possibilidades da vida gregária.

As práticas relacionadas ao sagrado, ao sacrifício e à festa não acontecem senão ao preço do mal estar e do medo, adquirido pelo homem que é arrancado do plano ordenado das obras úteis e levado ao domínio da intimidade e da imanência que põe em risco a duração da vida pela presença da morte. Nessa perspectiva, o sacrifício é pensado como uma prática que se determina como destruição do caráter de coisa da vítima. “É a coisa – somente a coisa – que o sacrifício quer destruir” (p. 39). Porém, o sacrifício se dá ao custo de retirar a vítima realmente do mundo das coisas, matando-a, fazendo-a voltar à intimidade, ao mundo sagrado dos deuses, e isso só é possível na medida em que o sacrificador pertence a esse mundo, “[…] ao mundo da generosidade violenta e sem cálculo” (p. 39).

O que há de mais importante na análise sobre o sacrifício em Teoria da religião é a destruição do laço entre o homem e o mundo da utilidade, o mundo da possibilidade da vida: “[…] o sacrifício vira as costas para as relações reais” (p. 40). Isto, no entanto, não acontece sem angústia, pois o medo da morte permeia o mundo das coisas de tal forma que uma prática que instaure a presença da morte só pode ser concebida com medo. “O homem tem medo da ordem íntima que não é conciliável com aquela das coisas” (p. 44). A ordem íntima para os primitivos está ligada à ordem mítica, e esta se contrapõe ao mundo real, a ordem mítica (íntima) é a negação da ordem real.

Segundo Bataille, na vida cotidiana a presença da ordem íntima é como uma sombra, traz consigo apenas a potência da morte que destrói o primado da duração, que é o fundamento da posição objetiva do mundo das coisas. O caráter devastador da morte é a todo o momento amortecido na ordem das coisas, a neutralização da vida íntima faz da morte algo irreal, mas quando ela se faz realmente presente, “[…] a morte mostra de repente que a sociedade mentia” (p. 41).

Georges Bataille compreende que a neutralização da intimidade pelo primado da duração na ordem real das coisas, por medo da morte, na realidade é a neutralização da vida, de modo que afirma: “[…] é claro que a necessidade da duração nos furta a vida e que, em princípio, só a impossibilidade da duração nos libera” (p. 42). É difícil para Bataille falar da intimidade, pois é impossível exprimi-la discursivamente. Ela é a ordem do desencadeamento violento das paixões, no sentido mais extremo de violência; é a ordem da intensidade de vida nas fronteiras da morte. A intimidade é paradoxal, “porque não é compatível com a posição do indivíduo separado” (p. 43), ou seja, o estatuto da experiência da intimidade é impossível. O que está jogo para Bataille é que o homem primitivo se via perante um impasse existencial: de um lado, o ímpeto para a imersão na intimidade e continuidade comandado por uma violência interior, e por outro, a satisfação das necessidades materiais guiada por uma vontade sempre crescente da racionalidade calculadora que neutraliza os instantes de intensidade da vida.

A festa é uma prática que tentou solucionar esse impasse, na medida em que nela explode uma aspiração à destruição, “[…] mas é uma sabedoria conservador a que a ordena e a limita” (p. 45). Nela as possibilidades de consumo são proporcionadas pelo desencadeamento das diferentes artes, por exemplo, dança e poesia, mas o limite desse desencadeamento da festa se determina na medida em que o mundo das coisas ainda deva ser assegurado. Só assim a festa é suportada.

Este quadro esboçado sobre a relação entre sagrado e profano traduz a incompatibilidade e atração da consciência clara e distinta frente ao domínio da intimidade. Essa incompatibilidade é a perspectiva a partir da qual Bataille afirma sua teoria da religião nos seguintes termos: A religião, cuja essência é a busca da intimidade perdida, se resumiu ao esforço da consciência clara que quer ser inteiramente consciência de si: mas esse esforço é vão, já que a consciência da intimidade só é possível no nível em que a consciência não é mais uma operação cujo resultado implica a duração, ou seja, no nível em que a clareza, que é o efeito da duração, não é mais nada (p. 47).

O problema ao qual o livro se concentra é o da humanidade querer, através da religião, a intimidade pela consciência clara e distinta, mas tal operação é impossível, pois a humanidade extraviou a intimidade, a negou para permanecer na consciência clara das coisas. No final do livro, Bataille afirma que a fraqueza das religiões, na medida em que não tentaram modificar a ordem das coisas, consiste em reduzir a ordem íntima à ordem real (p. 72), ligando cada vez mais o sagrado a operações produtivas ao longo da história. E o princípio fundamenta l desse problema é o da relação entre sujeito e objeto que está imerso no domínio da utilidade.

Cada vez mais a humanidade aumentou o abismo entre o homem e a sua intimidade indistinta, separou cada vez mais o homem daquilo que ele é (p. 47). As sociedades de combate, mesmo tentando corresponder à exigência de consumo da ordem mítica, não suportaram as práticas cruéis de tal consumo violento, que, nascidas da angústia, geravam uma angústia ainda maior em meio ao desenvolvimento material do mundo das obras úteis graças à empresa da guerra. “O primado do consumo não pôde resistir ao primado da força militar” (p. 50).

Na segunda parte do livro, intitulada “A religião nos limites da razão (Da ordem militar ao crescimento industrial)”, o autor faz uma análise do distanciamento cada vez mais crescente entre o homem e a sua intimidade no curso do desenvolvimento econômico das sociedades. As sociedades de combate que fizeram da conquista e da expansão territorial uma operação metódica, tornam-se impérios. O império era a ordem militar que “pôs fim aos mal-estares que respondiam a uma orgia do consumo” (p. 53). A representação do império é de uma “coisa universal”, a essência do império não está em dar a vez ao desencadeamento do consumo violento, mas está em desviar a violência para fora dele mesmo.

No império, o divino realiza atividades operatórias, isto é, está reduzido ao real. Origina-se, segundo Bataille, uma visão dualista do mundo: o divino é transcendente e o real é imanente (p. 57). O homem do império é dualista, é o homem do direito e da moral, diferente do arcaico, pois o homem do império é o homem da consciência reflexiva, desviado dos ritos de retorno à intimidade indistinta. Para o homem dualista, o sagrado (inteligível) está fora, é inacessível, está além, e nisso o divino é “moralizado”, o transcendente é fasto e o imanente é nefasto. Esta atribuição de valores ao sagrado e ao profano é resultado da redução do sagrado à ordem universal da razão pela moral. No império, os homens “[…] racionaliza m e moralizam a divindade, no próprio movimento em que a moral e a razão são divinizadas” (p. 56). A moral tem em vista regras para salvaguardar a vida dos indivíduos no futuro por vir, e por isso condena o consumo violento da intimidade. “Ela [a moral] condena as formas agudas da destruição ostentatória das riquezas. Condena de modo geral todos os consumos inúteis” (p. 56).

Como Bataille tem em vista falar, em Teoria da religião, da experiência da consciência com a intimidade, e com isso pretende fornecer um quadro geral, ele não se detém em nomear quais são as religiões dos homens dualistas, mas, na conferência Esquema de uma história das religiões, Bataille se refere explicitamente ao islã e ao cristianismo (p. 132-133).

No mundo das mediações, que caracteriza essas religiões, as obras da “salvação”, que é para elas a intimidade (p. 64), pertencem à lógica dos meios para os fins graças à moral, que cada vez mais reduziu o divino a operações eficazes. No mundo da mediação, mundo das obras, “[…] a salvação é buscada como se fia a lã” (p. 65).

Segundo Bataille, o universo material passa a ser rechaçado em sua participação com o sagrado, a lógica da eficácia se atenua a tal ponto que o “valor divino” das obras é negado, tudo o que diz respeito ao sagrado é abandonado no além e tudo o que diz respeito ao mundo das obras é isolado no aquém. Esse mundo das obras, diz o autor, “[…] não tem outro fim senão seu próprio desenvolvimento. A partir de então, só a produção é, aqui embaixo, acessível e digna de interesse” (p. 66).

O que passa a existir então é um “reinado das coisas autônomas”. Por esse caráter se define, segundo Bataille, o mundo do crescimento industrial, o da total cisão da ordem íntima com a ordem real. Claramente é o resultado do movimento do princípio da operação produtiva desde o império que “[…] dominou de maneira feral a consciência” (p. 67).

Bataille vê no crescimento industrial, que caracteriza a era capitalista, uma radical mudança de posição com relação ao consumo improdutivo das riqueza s excedentes, normalmente destinado ao sagrado, pois “[o] excedente da produção pôde ser consagrado ao crescimento do equipamento produtivo, à acumulação capitalista (ou pós-capitalista)” (p. 68).

Dessa forma, neste momento do livro, o autor afirma, de modo lapidar, a total subserviência do homem à lógica da eficácia. Há um abandono da vida “[…] a um movimento que ele [o homem] não comanda mais” (p. 68). Eis o grande “negócio” incontrolável que tem a força de direcionar todas as instâncias da vida à contínua produção, em que se torna latente a “soberania da servidão”, e não há nada que arruíne este negócio. Numa lucidez desoladora, Bataille afirma que não há outro modo de ser, seria muito difícil um outro encaminhamento das coisas, pois, “comparado ao crescimento industrial o resto é insignificante” (p. 69).

Á guisa de conclusão da segunda parte de Teoria da religião, o problema da religião é retomado, apontando para o fato de que a verdade da religião não faz mais sentido. “A busca milenar pela intimidade perdida é abandonada pela humanidade produtiva” (p. 68). O problema da religião alcança seu ápice de problematização no livro quando são tratados aspectos do crescimento industrial, uma vez que nesse momento histórico “[…] o homem se afasta de si mesmo m ais do que nunca” (p. 68). No entanto, o caráter de irrealidade que agora se confere a todo o resto contrário à produção não aniquila a existência desse outro. E então a perspectiva sobre o problema da religião muda, pois, por mais que haja a redução do homem para a operação produtiva, não se pode “evitar que haja nele alguma ligação entre a operação e a intimidade” (p. 72). É fraca a ordem íntima no mundo da consciência clara, não passa de balbucios. Mas a força desses balbucios encontra-se no fato de serem incomuns ao mundo da produção, são estranhos, pois representam a oposição da intimidade à ordem real.

Georges Bataille coloca em evidência o erro que proporcionou o “reinado da soberania produtiva”, a saber: a humanidade, a partir do sentimento do sagrado, representou cada vez mais a intimidade à luz da consciência clara. Mas isso traz um paradoxo, pois a possibilidade contrária é de antemão excluída pela contraposição entre intimidade e ordem real. As religiões fracassaram ao tentarem solucionar seu problema fundamental, de buscar a intimidade perdida, e acabaram por afirmar a ordem das coisas e a ela reduzir a ordem íntima. “No final, o princípio de realidade triunfou sobre a intimidade” (p. 72). O conhecimento distinto, ligado à ordem real, se difere da ordem íntima pelos modos de existência no tempo. “A vida divina é imediata, o conhecimento é uma operação que exige a suspensão e a espera” (p. 71).

Assim, Bataille coloca como possibilidade a restituição da ordem íntima no plano da consciência clara se a consciência deixar de iluminar a intimidade com a luz que pretende fundamentar um saber, e então dê lugar ao “não saber”. A intimidade pode ser restituída se a consciência clara mergulhar na obscuridade da intimidade. Tal possibilidade de restituição da intimidade só se dá pela consciência de si. “A consciência de si escapa assim do dilema da exigência simultânea da imediatez e da operação” (p. 71).

Georges Bataille não define claramente o que entende por consciência de si em Teoria da religião, mas, para o autor, diferentemente da satisfação da consciência no saber absoluto, a consciência é consciência de si quando encontra a sua verdade no não-saber. A consciência de si não soluciona o paradoxo fundamental da teoria da religião, mas desvia dele numa operação impossível. E nesse desvio a ordem das coisas não é destruída, mas reduzida à ordem íntima. O que a consciência submissa à ordem das operações produtivas pode fazer, segundo Bataille, é “[…] proceder à operação contrária, a uma redução da redução ” (p. 72), em suma, é levar a operação ao seu limite, e então a consciência se encontrará “[…] reduzida àquilo que ela é profundamente” (p. 72). É no reencontro com a intimidade em sua noite que ela, a consciência, “[…] completará tão bem a possibilidade do homem ou do ser que reencontrará distintamente a noite do animal íntimo no mundo – onde ela entrará ” (p. 72).

A destruição geral das coisas é condição para a consciência de si, é a operação contrária. Bataille alude à imagem do copo com vinho sobre a mesa para afirmar como essa destruição pode ocorrer. Os objetos que rodeia os homens são frutos do trabalho. Uma cama, uma mesa, uma cadeira. Alguém os fez para um outro comprar e usufruir, e o dinheiro de compra foi fruto de um trabalho. O que está em jogo é um conjunto de atividades que tem seu sentido num tempo por vir, trabalhar para receber dinheiro, fazer mesas para vender, etc. A mesa e a cadeira podem proporcionar dinheiro a um pensador, pois escreverá usando a mesa e a cadeira. E o pensador pagará o açougueiro pela carne, e assim o encadeamento do trabalho se perpetua. Mas, quando se coloca um copo com vinho sobre a mesa, esta já não serve mais para o trabalho, e sim para o consumo do vinho. Segundo Bataille, quando isso acontece, a mesa é destruída, isto é, nela todo o encadeamento do trabalho a que pertencia é destruído. E tudo isso em prol de uma fruição, de um desencadeamento que respondeu à ordem do instante e não mais do tempo por vir: beber um copo de vinho. “[…] todas as tarefas que me permitiram chegar a isso são destruídas de chofre, esvaziam-se infinitamente como um rio no oceano desse instante ínfimo” (p. 73). Pode ser uma destruição em ínfima escala, mas é nessa ínfima escala que, por um instante, a relação entre sujeito e objeto mudou. U m objeto não foi posto como tal, escapou do encadeamento da duração, uma vez que o resultado esperado no futuro pertenceu, por um momento, à fruição do instante. Por um momento o por vir foi aniquilado e somente o instante foi afirmado. Todo o tempo do esforço laboral não foi nada diante desse instante.

Portanto, segundo Bataille, a dissolução dos objetos no instante íntimo é o fundamento da consciência de si, “[…] é a negação da diferença entre o objeto e eu mesmo ou a destruição dos objetos como tais n o campo da consciência” (p. 74). E a destruição dos excedentes da produção pode manter o movimento da economia, segundo uma inversão fundamental, a do consumo improdutivo, na medida em que “[…] a produção excedente fluirá como um rio para fora ” (p. 74, g rifo original). Assim, a permanente destruição dos objetos produzidos dissolverá a diferenciação entre sujeito e objeto, de modo que a destruição do objeto no plano da consciência clara implica na destruição do sujeito. Mas, nessa operação contrária, “[…

] os objetos efetivamente destruídos não destruirão os homens” (p. 74). A realização do homem, consciência que se torna consciência de si, se dá na destruição do objeto, no contrário do que constitui a operação útil.

Teoria da religião parece tratar de uma aposta, e o que Bataille quer afirmar, com essas asserções acerca da destruição dos objetos no plano da consciência clara, é uma vida humana não submissa ao primado da utilidade, em que o homem deixe de ser uma coisa subjugada. É um pensamento “[…

] para quem a vida humana é uma experiência a ser levada o mais longe possível ” (p. 77, grifo original). Somente na consciência de si o homem pode ser soberano, restituindo a totalidade à sua vida. Assim o autor define o que é a soberania: “Soberania designa o movimento de violência livre e interiormente dilacerante que anima a totalidade, dissolve-se em lágrimas, em êxtase e em gargalhadas e revela o impossível no riso, no êxtase e nas lágrimas” (p. 78).

Georges Bataille conclui seu escrito com algumas considerações críticas sobre o método de abordagem feito por ele mesmo, e traz uma lista de referenciais teóricos que o ajudaram a fomentar o seu pensamento acerca do impasse existencial entre ordem íntima e ordem real. Neste referencial teórico destacam-se: Introduction à la lecture de Hegel, de Alexandre Kojéve; Les formes élémentaires de l avie religieuse, de Émile Durkheim; La doctrine du sacrifice dans le brahmanas, de Sylvain Lévi; Essai sur le don, de Marcel Mauss; Di e protestantiche Ethik und der Geist des Kapitalismus, de Max Weber.

Portanto, Teoria da religião é um livro que aborda muitas questões referentes a um objeto de reflexão que não se deixa precisar pela linguagem discursiva. Nessa pretensão, Georges Bataille esforça-se em mostrar um quadro geral coerente, no que se refere ao problema da religião – da situação humana no impasse dos incompatíveis domínios da ordem íntima e da ordem real –, mas que resultou em alguns momentos em imprecisões históricas e imprecisões de referências (p. 84-85). No entanto, o esquema desenvolvido por Bataille em Teoria da religião, “[…] que devia evitar sistematicamente referências precisas” (p. 85), não poderia vir à luz sem uma liberdade de reflexão que o tornou possível.

Torna-se válido retomar que o autor tentou promover uma abertura da reflexão. É um livro que trata de uma experiência de abertura, intenta ser libertador, como diz Bataille acerca de si mesmo e de seu escrito: “Gostaria de ajudar meus semelhantes a se acostumarem à ideia de um movimento aberto da reflexão. Esse movimento nada tem a dissimular, nada a temer” (p. 84).

Anderson Barbosa Camilo-Bacharel em Filosofia (UFRN). Mestre em Estética e Filosofia da Arte (UFOP). Doutorando em Metafísica (UFRN). E-mail: andersoncamilo96@gmail.com

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Linhas de animismo futuro – BENSUSAN (AF)

BENSUSAN, Hilan. Linhas de animismo futuro. Brasília: Editora IEB Mil Folhas, 2017. Resenha de: KANGUSSU, Imaculada. Artefilosofia, Ouro Preto, n.23, dez., 2017.

Animismo refere-se à anima, à alma, à animação. Linhas de animismo futuro, de Hilan Bensusan, apresenta a distinção, presente na história da filosofia, entre os seres considerados animados, aqueles portadores de alma, e os demais, o s inanimados, para discorrer sobre a necessidade de anular tal distinção. De um lado da linha, estamos nós, seres humanos, do outro lado todo o resto. Nós, as animadas, criamos esta distinção e toda engrenagem que precisa ser mantida para que ela funcione.

Diante desta situação, o autor coloca a pergunta sobre a possibilidade de uma política animista capaz de perceber um protagonismo anímico expandido, isto é, capaz de perceber uma animação generalizada e universal: uma cosmopolítica, cuja proposta é a continuação da política por outros meios, na linhagem de Isabelle Stengers e Bruno Latour. Parece-nos importante e necessário observar, como bem o faz Bensusan, que a atual crise com o meio-ambiente e os problemas com o esgotamento da natureza, quase sempre tratados como pano de fundo inanimado, têm encontrado o que há de mais insubmisso e mesmo catastrófico. Em Linhas de animismo futuro, a partir da observação de que o termo “natureza” agrupa nele tanto tudo o que nela não é humano, como a própria fisicalidade do ser humano, vemos como o “naturalismo”, desenvolvido na Europa entre os séculos XVI e XVII, foi o meio de o discurso moderno lidar com a physis, à qual atribuiu uma legalidade constante, exercida pelas “leis da natureza” e deixou de lado a possibilidade de haver nela, na physis, uma genuína animação. Apenas a natureza humana possuiria em sua interioridade, que pode ser diversa, a soberania em relação à natureza exterior. Vale lembrar, ainda que não seja assunto desta obra, a permanência desta mesma posição no pensamento de Kant, no final do século seguinte, onde as leis da natureza são consideradas necessárias ao passo que o sujeito, a partir de sua interioridade, pode adotar as chamadas “leis da liberdade” – sendo capaz inclusive de produzir modificações na natureza, mas não de transformar suas leis. Temos então, na Primeira e na Segunda Crítica, uma separação radical entre Natureza e Liberdade, regidas pela Legalidade e Vontade, respectivamente. Distintamente, no animismo, mesmo possuindo uma fisicalidade diferente do humano, o não-humano também é percebido como portador de uma interioridade e não apenas como fisicalidade “desanimada”, sem interior. Conforme passagem do livro: “Os animismos oferecem outra atitude diante da mesma crise: não é que o ambiente circundante precise ser preservado, ou que nós devamos parar de entrar em conflito com ele, mas que nele há uma demanda de protagonismo” (p.22).

Ao invocarem a possibilidade de a animação ser não apenas humana, os animismos provocam bastante desconforto. Um, dentre os múltiplo s motivos deste fenômeno ressaltado pelo autor, liga-se ao fato de o próprio termo “animismo” talvez evocar as fábulas nas quais elementos naturais – rios, árvores, estrelas, mares, montanhas, ventos – são falantes; ou talvez trazer à tona um tempo mítico quando, segundo Claude Lévi-Strauss, não se fazia distinção entre animais e humanos. Nas palavras de Bensusan, “ele se associa, portanto, à ideia vaga, mas pródiga, de um mundo reencantado” (idem, ibidem). Animismos foram exorcizados e são fantasmagóricos em um mundo desencantado. E o autor considera que eles, de alguma forma, permanecem vivos e se insinuam nos futurismos, nas ficções científicas, nos robôs que se ativam sozinhos, nas possibilidades de dar ânimo às máquinas… O livro vai além desta perspectiva de fábulas e também da certeza vigente – segundo a qual animais podem ser treinados, plantas podem ser cuidadas, pedras são carregadas, mas a conversa só é possível entre seres humano – ao considerar a imagem do conhecimento animista como aquela em que o conhecido, quem conhece e o conhecer é resultado de um encontro, de um trato, de uma conversa. No contexto animista, saber algo parece estar mais próximo de uma negociação do que do contemplar ou estabelecer um ponto de vista sobre algum fenômeno. Neste sentido, o texto remete-nos às conferências de Alfred North Whitehead (publicadas em Modes of Thought. New York: Macmillan, 1938), onde aparece a ideia de a natureza ser portadora de animação. Ao perguntar, na oitava conferência, sobre as evidências de um mundo animado, o filósofo julga encontrá-la na experiência corporal do mundo: a experiência corporal pode revelar o funcionamento animado das associações capazes de dar forma aos processos experimentados. A proposta de Whitehead consiste então em “construir o mundo em termos das sociedades corporais e as sociedades corporais em termos dos funcionamentos gerais do mundo” (em Modes of Thought, op. cit., p.164, citado em Linhas de animismo futuro, p.26). Algo muito distante do procedimento em curso de adapta r os corpos ao mercado. A dinâmica do animismo é a da politização do natural. Assim, ele desafia as determinações constitutivas do olhar sobre o mundo que não trazem à baila o que as determinou como constitutivas. Distinta de outras obras que passam ao largo da (ir)responsabilidade do capitalismo nas determinações do mundo hoje existente, como a de Donna Haraway, por exemplo, nesta a posição política é explícitada. Conforme descreve o autor, “é um livro que se situa à esquerda e pretende explorar uma maneira de integrar bandeiras vermelhas com bandeiras verdes de um modo teoricamente articulado e politicamente fértil” (p.28). Articulação necessária, pois, enquanto as esquerdas parecem estar sempre presas no âmbito do humano, os movimentos ecológicos tendem a considerar o não-humano como instância meramente passiva a ser defendida. “O livro aposta em um avesso do capitalismo que não o entende como uma etapa revolucionária e menos ainda como uma etapa necessária para um futuro almejado”, continuando com as palavras do autor, “quanto às bandeiras verdes, ele [o livro] aposta em uma expansão da agência política contra a persistente tendência da ecologia política de apresentar o não-humano como objeto de tutela” (p.29). Na mesma página, Bensusan declara acreditar que, “até a medula”, o animismo é “anátema do capitalismo”. E na página seguinte, apresenta sua proximidade com a autonomia das sociedades indígenas, presente nas tribos de todo o mundo, ao repetir as insígnias “é melhor pobre virar índio do que índio vir ar pobre”, e “ou a gente vira índio ou vira indigente”.

Quanto à composição, Linhas de animismo futuro traz um breve prefácio, uma introdução, onde fica claro a que veio, e oito capítulos compostos por textos autônomos que dialogam entre si. “Quibungos: a vingança do pó”, texto que compõe o capítulo 4, está publicado na revista ARTEFILOSOFIA 20, cujo tema é “A arte da vingança”. E como este número atual da revista trata das relações entre filosofia e psicanálise, esta resenha termina remetendo-se às considerações feitas por Freud a respeito do pensamento de Empédocles de Agrigento, filósofo da physis, a quem caberia bastante bem o epíteto de “animista”. Empédocles julgava que dois princípios básicos, amor (j i l i a) e discórdia, ódio (n e i k o z), que estão em guerra perpétua um com o outro, dirigem os eventos da vida humana e de todo o universo. Enquanto um deles, amor, se esforça por aglomerar as partículas dos quatro elementos primevos em uma só unidade; o outro, ódio, em contrapartida, procura destruir estas fusões e levar os elementos de volta a seus estados primitivos. Segundo o filósofo grego, há em todas as coisas um elemento que as impele à união, mas há também uma força hostil que as separa, e estes dois impulsos estão envolvidos no embate que produz todo devir e toda destruição. Freud observou que sua própria teoria das pulsões se encontrava tão próxima da teoria de Empédocles que ele sentir-se-ia tentado a sustentar que as duas eram idênticas, “não fosse a diferença de a teoria do filósofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica” (“Die endliche und die unendliche Analyse”, GW 16, p.91; na tradução brasileira, “Análise terminável e interminável” (1937), OC XXIII, p.279). Tendo em vista os animismos, é instigante perceber que Freud considerou o movimento das pulsões humanas semelhante àquele do cosmos, proposto por Empedócles.

 

Imaculada Kangussu-Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, com a tese Leis da Liberdade. As relações entre Estética e Política na Filosofia de Herbert Marcuse (defendida em 2000 e publicada pela Ed. Loyola em 2009) e Mestre em Filosofia pela mesma instituição, com a dissertação Imagens e História: as Passagens de Walter Benjamin (defendida em 1996). Pos-doutorado na School of Arts and Science da New York University sobre o tema Phantasy and Reason. Atualmente é Professora Titular no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto. Desenvolve pequisas na área de Estética e Filosofia da Arte, com ênfase na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e no pensamento contemporâneo dedicado a estas áreas. Coordena o grupo de pesquisa Arte e Conhecimento, é membro do GT Estética e da International Herbert Marcuse Society. E-mail: lecakangussu@hotmail.com

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L’arte Espansa – PERNIOLA (AF)

PERNIOLA, Mario. L’arte Espansa. Turín: Giulio Einaudi Editore, 2015. Resenha de: VEGA, José Fernández. Artefilosofia, Ouro Preto, n.22, jul., 2017.

La completa mercantilización del mundo del arte y la consolidación de un nuevo panorama donde la especificidad de la categoría “obra de arte” parece haber perdido su antiguo prestigio y nitidez, constituyen los temas centrales de L’arte espansa. La expansi ón a la que hace referencia el título volvió difusa la noción de arte y la proyectó sobre cualquier espacio social. Ya no son claras sus diferencias respecto de la publicidad, la decoración o el diseño industrial. Por otra parte, los artistas se han conver tido en “marcas” y se posicionan en el mercado como figuras del espectáculo. Esta situación es el resultado de un largo proceso que, para Perniola, se inicia a partir de la emergencia del Pop Art. Los artistas se volvieron celebridades, la figura del críti co o del teórico se hundió en la insignificancia y un conjunto de mediadores culturales – galeristas, curadores, coleccionistas, subastadores-se convirtieron en los verdaderos jueces de la legitimidad dentro del mundo del arte.

Desde un plano estético, p areciera que la tesis hegeliana de la “muerte del arte” consigue captar bien las condiciones del presente. Al mismo tiempo, la inflación que sufre el perfil del artista individual impresiona como un hiperbólico triunfo de las concepciones del romanticismo de los siglos XVIII y XIX que privilegiaban la subjetividad creadora. Pero, de manera paradójica, en el nuevo panorama se borró también la diferencia entre artista y no artista, puesto que una de las consecuencias del Pop fue que cualquiera puede autodenom inarse artista sin que la legitimidad de esa pretensión pueda ser cuestionada. Para aspirar a esa categoría ya no es preciso exhibir una trayectoria, sostener una poética, poseer una habilidad artesanal, tener una formación y ni siquiera realizar una obra (el arte conceptual llegó al punto de impulsar un arte sin obra). El mundo del arte está siendo devorado por sus propias contradicciones internas, sostiene Perniola. En el primer capítulo de su libro dedica considerable espacio para contrastar dos episod ios que juzga cruciales para ejemplificar la crisis del arte contemporáneo. El primero fue un proyecto de la galería Saatchi de Londres, una de las más relevantes del mundo en su género, que incorporaba a su página web a cualquiera que dijera ser artista. La propuesta se restringió luego, puesto que para aparecer publicado se debía pasar por un proceso previo de selección. El segundo episodio tuvo lugar en la edición 2013 de la Bienal de Venecia convocada bajo el título: “El palacio enciclopédico”. Su cur ador, Massimiliano Gioni, seleccionó 158 “artículos” (ya no los denominaba “obras”), algunos de los cuales Perniola describe a lo largo de varias páginas. Se trataba de proyectos de todo tipo difícilmente asimilables a lo que convencionalmente se denominab a arte y pretendían ampliar el campo y ofrecer una selección a la vez arbitraria y comprensiva. La idea se inspiraba en el ambicioso plan de un poco conocido estadounidense quien diseñó un museo, nunca construido, donde pretendía exhibir todo el conocimien to humano. El catálogo de la muestra no incluía intervenciones críticas, sino textos de cualquier otro género (narraciones, testimonios, etc). Esta Bienal señaló un cambio de paradigma que, según Perniola, puede compararse con la irrupción del Pop habitual mente asociada a una exhibición de 1964 que tuvo lugar en la galería de Leo Castelli en Nueva York. Esta edición de la Bienal cierra entonces un período que abarcó medio siglo y abre un otro que el autor denomina fringe. En él predominan los contornos borr osos, lo periférico puede ubicarse en el centro en cualquier momento y donde no es preciso ser un artista, mostrar obra o cumplir con los requisitos de legitimación tradicionales.

Ese nuevo período, signado por el populismo cultural y en el que la obra no es una credencial suficiente, despliega a la vez estrategias teóricas de justificación y comerciales de promoción. El anti-arte de las vanguardias históricas se volvió completamente institucional e incapaz de preservar su potencial crítico. Ahora todo pued e ser arte, afirma Perniola en su segundo capítulo, basta con que alguien lo afirme así. Viejas nociones como la de originalidad o belleza han caído en desuso. Contra visiones como la de la socióloga francesa Nathalie Heinrich quien lanzó el concepto de “a rtificación” para indicar la sobrevaloración del arte y su expansión ilimitada (arte de los enfermos mentales, de los niños, de los animales, etc.), Perniola propone la categoría de “artistización” (artistizzazione). Nada es arte en sí mismo. Los esfuerzos filosóficos de la estética para definir el arte y captar su esencia ya no conducen a ningún resultado. Se vuelve preciso dirigir la mirada hacia un proceso cultural en rápido cambio, donde los artistas se designan a sí mismos, el mercado se volvió un acto r central y las obras exigen un acompañamiento hermenéutico sin el cual no pueden sostenerse. Este proceso generó una multiplicación inaudita de ferias, bienales, museos de arte contemporáneo, artistas y tendencias mientras abre la posibilidad para que cualquier creador marginal ocupe posiciones en el campo. El t ercer capítulo del libro gira en torno de las teorías del psiquiatra Hans Prinzhorn (1886-1933) sobre el arte de los autistas y los esquizofrénicos. Perniola conecta estas producciones con el Art Brut defendido por Jean Dubuffet (1901-1985) para quien sólo los marginados sociales y psíquicos podían hacer verdadero arte. En los años 1990 estas concepciones derivaron en distintas corrientes afines, como por ejemplo el Outsider Art. Para Perniola, sin embargo, resulta preciso establecer la diferencia entre el arte de un enfermo mental, encerrado en su propio padecimiento, y el que produce un artista. En el capítulo siguiente – casi una conclusión — se argumenta que con la irrupción de un escenario fringe la distinción entre incluidos y excluidos se desmoronó y carece de sentido. Otra de las curiosas secuelas de la nueva condición del arte alude a la conservación de las obras contemporáneas. Muchas de ellas no sobreviven porque están realizadas expresamente para perimir o fueron elaboradas con materiales barat os. La conservación se volvió documentación, más adecuada para mantener registro de las acciones, performances e intervenciones de todo tipo que caracterizan a un arte en el cual también se revitalizó la idea romántica del fragmento vis-à-vis la obra acaba da predominante en la tradición occidental. El siglo XX que llevó a un clímax las ideas de novedad y actualidad del arte puede dejar como herencia solo ruinas, en claro contraste con el arte de los siglos previos. El arte contemporáneo, señala el autor, se burla de sí mismo y a la vez se burla de los valores estéticos del pasado. Pero esta actitud no puede sostenerse en el tiempo. Su impacto se diluye; se trata de una operación quizá ya agotada por Marcel Duchamp hace ya cien años.

Como balance ambivalente, Perniola considera que el arte contemporáneo es para-político (no auténticamente político, y en esto también encuentra una herencia romántica) y está animado por una ampliación populista de sus fronteras a partir de la cual todo puede ser obra y cualquier a puede llamarse artista. La inversa también resulta válida: nada es arte y nadie un artista. El giro fringe se insinuó ya en las vanguardias históricas del siglo XX, pero tomó verdadero impulso en los años sesenta. La culminación de este proceso, para el autor, se hizo manifiesta en la Bienal de Venecia de 2013.

En un epílogo, el autor comenta la siguiente edición de esa Bienal, que tuvo lugar en 2015 bajo la dirección de Okwui Enwezor, estadounidense oriundo de Nigeria, donde se realizaron lecturas de El Capital de Karl Marx. Allí también proliferaron artistas profesionales, pero en un nuevo sentido: egresados de universidades (de carreras de arte o de otras, como la premiada Adrian Piper, filósofa y autora de diversas obras en la disciplina). Emerge, ento nces, un artista-profesor-intelectual, vale decir, un académico diferente del artista académico que conoció la tradición. Otra nota distintiva es que los artistas provienen de todo el mundo, pero terminan su perfeccionamiento y lanzan sus carreras internac ionales desde los centros representados por EE. UU. y el norte de Europa (Perniola lamenta que Italia ya no figure en la geografía del arte).

L’arte espansa es un ensayo que discute la deriva del arte contemporáneo y se muestra implacable a la hora de denu nciar sus imposturas y su caída en la sociedad del espectáculo y de la cultura comercial. Escrito por un especialista en estética, critica la banalización del mundo del arte y el declive en su seno de todo pensamiento crítico. Sus tesis, animadas por una i ndignación poco novedosa, se pueden discutir, pero indudablemente se encuentran bien argumentadas y fundamentadas en un aparato erudito actualizado. Una evidente virtud de esta obra consiste en la combinación de reflexiones teóricas con asociaciones ligad as a la actualidad del arte y a su historia; pero en ocasiones dicha virtud amenaza con volverse un defecto pues Perniola dedica largas páginas a exponer distintas poéticas o puntos de vista, no siempre indispensables para su argumento. Otro problema del l ibro es que pretende abarcar demasiados fenómenos y esto debilita sus objetivos centrales. En ocasiones deja la impresión de que, siempre manteniendo un discurso a la vez coherente, crítico e informado, el autor salta de un tema a otro sin agotar ninguno.

Perniola no se deja influir por el esnobismo ni hace concesiones intelectuales, aunque su enfoque general no es enteramente original puesto que desde hace años se publican trabajos que embisten contra lo que consideran una nueva superficialidad de la cultu ra visual, ya completamente integrada al giro financiero y a la publicidad centrada en sus agentes antes que en sus realizaciones. L’arte espansa se ubicaría en un terreno intermedio dentro del panorama de la reflexión estética: es crítico pero no está esc rito desde una perspectiva cultural radicalmente conservadora. No comparte el optimismo de muchos agentes del mundo del arte. Ofrece una mirada derivada de un íntimo conocimiento del panorama artístico de la actualidad nada hostil a la teoría sino arraigad a en ella.

José Fernández Vega-Professor na CONICET – UBA. E-mail: joselofer@gmail.com

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A ditadura espelhada: conservadorismo e crítica na memória didática dos anos de chumbo

Alípio da Silva Leme Filho – Mestre em Educação pela Universidade Nove de Julho. Professor Titular de Cargo da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e Coordenador na Escola Estadual Reverendo José Borges dos Santos Júnior. E-mail: alipio.filho@educacao.sp.gov.br


MAFRA, Janson Ferreira. A ditadura espelhada: conservadorismo e crítica na memória didática dos anos de chumbo. São Paulo: BT Acadêmica/Brasília: Liber Livro, 2014. Resenha de: LEME FILHO, Alípio da Silva.  Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 9, n. 18, p. 225-228, jul./dez., 2017.

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Hélio Oiticica: folding the frame | Irene Small

Na História da Arte do século XX, Hélio Oiticica ocupa uma posição crucial, sendo indispensável para as versões transnacionais da (neo)vanguarda e para as narrativas pós-coloniais que buscam desafiar dos modelos de transmissão artística baseados na noção de centro-periferia. Uma vez que a carreira de Oiticica encarnou uma transição do modernismo tardio para o contexto contemporâneo globalizado, suas práticas heterogêneas figuraram em exposições recentes e em relatos históricos da arte que buscavam compreender as geografias mais abrangentes da arte moderna e contemporânea. Entre essas iniciativas, vale destacar a Documenta X (1997), de Catherine David, a exposição “Out of actions: between performance and the object, 1949-1979”, no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles (LA MoCA) e Contemporary artworld currents, livro de Terry Smith (Pearson, 2011). Embora sejam esforços admiráveis, existe ainda o risco de que esse tipo de abordagem incorra em um tipo de tokenização. De fato, a arte de Oiticica pode ser imbuída de certo exotismo, em virtude de suas origens não euro-americanas, de um imaginário erótico do Brasil. E, ao mesmo tempo, suas inovações formais são perfeitamente incorporadas a um cânone contemporâneo ampliado como construtivismo do pós-guerra (Zelevansky, 2004), arte conceitual (Alberro e Stimson, 1999), cinema expandido (Michalka, 2004), performance (Jones e Heathfield, 2012) ou participação (Bishop, 2006).

Enquanto primeira monografia em inglês sobre o artista, Hélio Oiticica: dobrar a moldura, de Irene V. Small (University of Chicago Press, 2016), enfrenta, portanto, um desafio triplo: narrar uma mini-história do Brasil e de sua arte em meados do século XX, analisar as inovações formais de Oiticica em relação às vanguardas históricas e a um reconhecido cânone euro-americano da arte do pós-guerra, além de propor uma metodologia para o estabelecimento de uma História da Arte no contexto contemporâneo da globalização. Leia Mais

Fatos da história naval – ALBUQUERQUE; FONSECA e SILVA (MB-P)

ALBUQUERQUE, Antônio Luiz Porto; FONSECA e SILVA, Léo Fonseca. Fatos da história naval. 2.ed. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 2006. 184p. Resenha de: [Autoria não identificada]. A importância do poder naval no curso da história. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

A importância do poder naval no curso da história Em Fatos da História Naval, os autores afirmam que “(…) no passado o uso correto do mar – incluindo o emprego eficaz do poder naval – determinou a prosperidade de nações”; permitindo, assim, um estudo mais profundo das atividades marítimas no curso da história, demonstrando a importância dessas atividades no desenvolvimento e na manutenção da soberania das civilizações.

Nos três primeiros capítulos é traçada uma narrativa da utilização dos mares e rios pelos povos da antiguidade, fosse para o comércio ou para o ataque e logística durante os combates. Passa pela utilização do mar Mediterrâneo pelos povos ocidentais, até a navegação pelo oceano Atlântico, iniciando as grandes navegações; demonstrando o processo de evolução das embarcações, a busca por novas fontes de riquezas, e a alternância no domínio dos mares, pois, o fato de Portugal ter sido o precursor nas grandes navegações, não garantiu a sua hegemonia permanente nas novas rotas comerciais e colônias conquistadas, apontando, assim, a importância do poder naval, que é parte do poder marítimo, na consecução e manutenção dos objetivos e da soberania dos estados.

Nos quatro últimos capítulos, verifica-se que países, com poder militar tradicionalmente terrestre, pode alcançar um excelente poderio naval. A França, por exemplo, combateu, embora sem sucesso, com a Inglaterra, potência tradicionalmente marítima, na “(…) Batalha de Trafalgar, em 1805, a mais célebre batalha naval da marinha de velas, quando a Inglaterra derrotou, no mar, as pretensões de Napoleão I”. Aborda a Revolução Industrial, mencionando a utilização de máquinas a vapor na propulsão dos navios, a criação de encouraçados com canhões cada vez mais potentes, o “(…) advento do submarino. Surgido já na Guerra da Revolução Americana (1776-1783)”, e usado nas duas Grandes Guerras Mundiais; evidenciando, assim, a constante busca por inovações e suas aplicações nos meios navais, como posteriormente, o surgimento do porta aviões, do submarino nuclear, posicionando as nações em patamares diferentes. Cita o Brasil, com seu extenso litoral, apontando o surgimento da sua esquadra, a fim de consolidar a proclamação da independência por D. Pedro I, em 1822, comandada por oficiais ingleses, como “(…) Cochrane, assistido por outros oficiais oriundos da Royal Navy, como Taylor e Grenfell.” Destaca a utilização de navios a vapor e encouraçados na Guerra do Paraguai, a participação nas duas Guerras Mundiais, o teatro de operações navais; demonstrando a necessidade de adequação dos meios para cada momento dos conflitos, a importância do poder naval no desenrolar dos fatos, a renovação dos meios navais no pós-guerra e o incentivo ao desenvolvimento da indústria naval.

A obra busca transmitir ao leitor a importância do poder naval nos conflitos ao longo da história da humanidade; que se faz necessário um desenvolvimento constante do país, e em especial, dos meios navais; que o fato de o Brasil possuir um litoral com cerca de 7.000 km, há de possuir os meios navais necessários para dissuadir qualquer intento contra a sua soberania. Sendo assim, Fatos da História Naval cumpre um papel, não apenas informativo, mas esclarecedor e incentivador do desenvolvimento e manutenção do poder naval, disponibilizando as informações necessárias para forjar uma consciência marítima nos cidadãos desta nação, com grande potencial, que é o Brasil.

Sem autoria identificada.

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Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná | Maurilio Rompatto

Obra originária de pesquisa para obtenção do título de mestre em história-social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, o livro “Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná, tem temática que vira em torno das histórias da violência que ocorreram durante as décadas de 1950 até 1970 e conta as histórias de vidas de pessoas camponesas na luta pela posse das suas terras conquistadas como pioneiros na região do vale do Piquiri e mais especificamente em Nova Aurora/PR. O que Rompatto faz em sua pesquisa é dar voz a trinta trabalhadores do campo, captando as narrativas com grande sensibilidade e rigor metodológico que exige a postura da história oral.

Assim, história e memória vão se entrecruzando na trama dos acontecimentos fazendo emergir um tipo de história vista de baixo como pede a historiografia renovada, à lá Annales. Assim como dialoga diretamente com E.P. Thompson para ali encontrar os conceitos de economia moral, cultura camponesa, valores camponeses e classe camponesa. Este último conceito muito bem apropriado e operacionalizado na obra, na qual o leitor irá se deparar com essa categoria, por vezes, muito bem organizada na luta por seus direitos. Pode-se aferir que Rompatto chega a sugerir certa ideia de classe em si para os camponeses aqui narrado. Fazendo, dessa forma, implodir o sentido de trabalho e os valores dados à terra por esses camponeses pioneiros que vão travar uma epopeia agrária nos confins do oeste paranaense contra os grileiros sendo eles o Estado, a União e também empresas privadas como a Colonizadora Norte do Paraná S.A do paulista Oscar Martines.

Outro grande mérito da pesquisa é fazer da chamada história regional, do Norte do Paraná, Vale do Piquiri, uma história total, em que para explicar o micro cosmo de uma região “esquecida” nos dizeres do autor, este recorte a história estrutural para ali buscar o entendimento da questão agrária no Brasil, voltando á época do Brasil Imperial ao ano de 1850, quando é publicada a primeira lei agrária brasileira, a Lei de terras que passa a dar valor imobiliário a esse bem, que até então a terra era distribuída pela União via sesmarias. Depois a pesquisa ainda explica que com a Proclamação da República a terra passa a ter outros valores, bem como os Estados que agora substituem as províncias imperiais passam a ter a posse e o direito às terras e ao seu comércio. Por fim, Rompatto ainda nos revela outro aspecto da história do Brasil relacionada à questão agrária e seus complicadores em relação à posse dessa durante a fase politica do Estado Novo ditatorial implantado no Brasil pelo Presidente Getúlio Vargas que durou de 1939 até 1945. Este regime faz com que as terras de fronteiras sejam devolvidos para a União em razão da ideia de proteção das fronteiras. Vale dizer que o objeto de estudo aqui narrado é interdisciplinar num diálogo muito profícuo entre a história e geografia, a geo-história. Nesse quesito a obra é rica em mapas detalhados acerca da região do Vale do Piquiri, sua riqueza hidrográfica, com rios e fluentes que margeiam o Rio Piquiri. São num total de treze mapas, todos eles bem inseridos ao longo da narrativa e com caráter e função de melhor explicar o acontecimento dentro de uma regionalidade, assim como levar o leitor a viazualizar o lugar da história. Cabe também, nesse contexto do uso de imagens, ressaltar a sensibilidade do autor ao estampar fotos de algumas famílias pioneiras mostrando parte do seu cotidiano rural, perfazendo um total de quinze fotos de pessoas e residências. Dentre elas, a contra capa estampada a família Ballico cercada pelo arame farpado em delimitação das suas terras por empresa particular grileira.

Entender a história das lutas camponeses no Brasil é um processo muito complexo e angustiante em que o próprio historiador se depara com momentos de injustiça. Complexa porque as próprias fontes são escamoteadas ou se encontram em lugares de difícil acesso, e angustiante uma vez que os depoimentos trazem á toma memorias e relatos de camponeses sendo injustiçados, quer pelo poder público, quer pelas empresas privadas que tem interesse nas terras ditas devolutas que são também conceitos vazios meramente politico, haja vista que nunca houve terra devoluta, pois a princípio estas eram dos índios ou dos quilombolas que nela habitavam e produziam.

Como disse Peter Burke “ a função da história é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”. Rompatto cumpre nessa sensível e competente obra essa função de historiador profissional e comprometido com a história política e social vista de baixo. Dando voz aos camponeses para eles expressarem suas experiências e vivências. Numa trajetória de história local dialogando com a história total para o construto de uma narrativa coerente e explicativa. Temos aqui um livro de história do Brasil do período varguista e seus desdobramentos da politica nacionalista nos confins do oeste paranaense, um livro onde o local e o total se permeiam, dialogando com a escrita da história.

Depois de tudo que foi analisado acima cabe ainda uma última referência a outra imagem; a da capa que foi escolhida com grande sensibilidade e rigor teórico-metodológico ao se optar pela foto do Rio Piquiri, margeando o Vale e passando a impressão de calmaria e tranquilidade o que não se encontrará ao abrir o livro, longe disso, a narrativa que se lerá está muito mais próxima de uma história de faroeste, no sentido mesmo de velho oeste, o velho Oeste paranaense e suas disputas desleais entre homens grileiros fortemente armados contra camponeses com suas famílias ali estabelecidas há tempos.

Por fim o livro é recomendado a todos os amantes de uma boa narrativa e trama histórica, mas sobretudo para dois públicos específicos os historiadores e aos moradores do Vale do Piquiri em especial da cidade de Nova Aurora/PR.

Eduardo Martins –  Doutor em História pela UNESP/ Assis e Docente do Curso de História do Campus de Nova Andradina, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).


ROMPATTO, Maurilio. Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná. Curitiba: CRV, 2016. Resenha de: MARTINS, Eduardo. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 9, n. 17, p. 286-288, jan./jul., 2017.

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História, democracia e diferenças: os direitos humanos na contemporaneidade / Albuquerque: Revista de História / 2017

É com grande satisfação que apresentamos ao público-leitor o dossiê “História, democracia e diferenças: os direitos humanos na contemporaneidade”. A proposta desse compêndio de artigos escritos por pesquisadores de diversas partes do mundo é construir, desde o campo acadêmico, um olhar mais aberto ao inventário social que estabelece a relação entre História e contemporaneidade. A partir de abordagens teóricas plurais, as discussões sobre temas centrais como racismo, política, território, memória, gênero, e episteme, compõem um mosaico cultural definidor do maior desafio do atual cenário político internacional: a defesa de certo sentido de democracia no que se convencionou chamar de “Direitos Humanos”

O debate sobre o lugar das minorias em situações de conflito como as vivenciadas no mundo contemporâneo revela a urgência com que a produção científica atual precisa não apenas se posicionar em relação a contextos de exceção, de resistência e de luta, mas também se debruçar sobre temas espinhosos que, de forma geral, fazem com que a História e as demais ciências humanas tenham algo a dizer sobre a visibilidade social e politica que determinados grupos reivindicam. O silêncio diante da opressão é algo que precisa ser superado e debatido amplamente, e nada melhor do que a reflexão acadêmica para trazer à discussão as questões que fundamentam diversas agendas sociais. A utilização de um espaço consolidado de análise como a Revista Albuquerque mostra que o propósito desse dossiê atinge não somente a sensibilidade dos grupos envolvidos nessas demandas, mas alcança um universo alargado de preocupações teóricas que extrapola as convenções científicas e obriga a universidade pública a se aproximar das tensões que nos definem desde o passado em direção ao presente.

Os artigos que fazem parte desse dossiê foram produzidos a partir dessas inquietações, e almejam fomentar o anseio de se compreender a importância do tema dos Direitos Humanos e reconhecer a necessidade de considerá-lo como uma conquista que não pode ser monopolizada politicamente em tempos difíceis como o que vivemos. Com esse espírito, por meio de um olhar abrangente sobre o tema, Agustín Ávila Romero e José Luis Silvaran mostram como a História deve ser definida a partir de um binômio singular: a diversidade biocultural e as ontologias espaciais na América Latina. Para tanto, os autores superam a tendência geral de se olhar para a História mexicana exclusivamente por meio de fontes escritas espanholas, demonstrando certa resistência epistemológica ao se debruçar sobre formas narrativas próprias dos maias tzeltales de Chiapas para se compreender valores e saberes que se sedimentam no chamado Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN). A defesa do olhar local sobre o citado movimento é reforçada por escolhas teóricas apropriadas e inovadoras, especialmente quando se recorre aos conceitos de colonialidade do saber e colonialidade do poder para se redefinir uma espécie de memória zapatista. No pulsante coração da América Latina, o exemplo epistemológico dos autores serve de modelo para que outros movimentos sociais no mesmo continente sejam lidos por um viés mais autêntico e fiel aos grupos locais do que a velha e mofada epistemologia clássica.

Ainda sobre as questões ligadas ao exercício da dominação cultural na teoria do conhecimento que se reproduz nas universidades ocidentais, José Marín destrincha o vínculo entre eurocentrismo, racismo e interculturalidade no mundo globalizado. Os problemas contemporâneos, em suas múltiplas faces, garantem a sobrevivência de aspectos das relações humanas que já deveriam ter sido extintos no trato entre as diferentes culturas. Um desses elementos nocivos, que reforçam a necessidade de discussão sobre os Direitos Humanos é a herança colonial europeia de se desqualificar o outro para oprimi-lo. Marín nomeia essa estratégia epistemológica de “perversão ideológica” fundadora do racismo e do nacionalismo que nos dias atuais, se transformam em políticas de massas. Não reduzindo sua reflexão à denúncia dos males, e estendendo suas conclusões em direção a caminhos que permitam a solução desses problemas, o autor apresenta a educação como principal ferramenta de conciliação entre valores universais e particularidades culturais. O primeiro passo, portanto, seria a validação da ideia de que a História da humanidade é a história de nossas migrações.

Já Bruno do Prado Alexandre e Raquel Gonçalves Salgado, em artigo sobre as narrativas de travestis, transferem o olhar do leitor para outro universo silenciado: o lugar desses indivíduos e de seus corpos no ambiente escolar brasileiro. A base teórica para essa análise seria o que os autores chamam de “estudos de gênero e pós- feministas”, o que por si só já conferiria a originalidade e a importância desse trabalho. O mapeamento da questão a partir das vozes de cinco jovens travestis de Rondonópolis, Mato Grosso, escancara pela ótica acadêmica o que se tenta ocultar pela opressiva caracterização de certa “normalidade” social O tempo da infância, o espaço escolar e a sociabilidade cotidiana são marcados por categorias emblemáticas da violência sofrida pelo “diferente”, traduzida em acepções como “viadinho”, “estranho” e até mesmo “corpo abjeto”. O resultado dessa dinâmica de opressão singular é a construção de estratégias de sobrevivência e resistência dentro de um espaço que deveria originalmente ser acolhedor e integrado como a escola. A dinâmica de violência do ambiente escolar em relação aos travestis tem um palco de atuação ainda mais central: o banheiro. É aqui que o “processo de negação e privação de direitos empreendidos sobre os corpos considerados grotescos certamente, a dimensão mais cruel das memórias escolares desses sujeitos formados pelos silêncios e pelas invisibilidades.

Outro universo a ser revelado pelas questões ligadas aos Direitos Humanos nesse dossiê é a luta pela terra como agenda global. Em seu artigo, Cassio Rodrigues da Silveira estabelece os parâmetros da reforma agrária como uma reivindicação social que transcende a demanda específica dos integrantes de um movimento organizado como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Em conflito não apenas com o latifúndio, mas também com o viés globalizante do capitalismo neoliberal, o combate pelo direito à terra defendido pelo MST confere uma dimensão social à questão agrária, já que passa a ser movida pela necessidade de sobrevivência, e não pela lógica do mercado fundiário. O problema da concentração da posse da terra, portanto, ultrapassa as fronteiras nacionais, pois o sistema econômico, o Estado e os interesses de classe são distintas dimensões de um debate assumido pelo MST como altermundialista. No entrecruzamento dessa questão estão as relações com os dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as expectativas construídas a partir do Fórum Social Mundial em 2001, e a luta anti-imperialista mundial, tudo expresso nas publicações do MST e na construção de um vocabulário político próprio em seus textos e redes de informação.

Mantendo-se no campo das lutas políticas em contextos de repressão, Aguinaldo Rodrigues Gomes apresenta o tema da resistência de intelectuais e estudantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro) ao regime militar brasileiro. O primeiro desafio enfrentado aqui é justamente contribuir com o recente debate historiográfico acerca do tema, que tem buscado pensar como esse acontecimento político, um dos mais dramáticos de nossa história, repercutiu fora dos centros de poder do país, especificamente o eixo Rio-São Paulo. O autor enfatiza no artigo as estratégias adotadas pelo PCB para a construção de uma luta pelos diretos civis no campo educacional por parte de estudantes e professores que ousaram enfrentar o regime em defesa das liberdades de expressão. No momento em que se discute o que foi a ditatura militar no Brasil, notória por seu completo desprezo aos Direitos Humanos mais fundamentais, estender o debate para outras partes do país é democratizar a luta contra um passado recente, além de ser também uma forma de resistência epistemológica que quebra a centralidade do Rio de Janeiro e de São Paulo no discurso sobre a memória política do Brasil contemporâneo.

Ainda em relação à resistência a ditadura militar em nosso país Ary Cavalcanti Junior nos traz uma narrativa sobre a resistência das mulheres ao regime a partir da trajetória da militante Diva Soares Santana que atuou em defesa dos direitos dos mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar no grupo Tortura Nunca Mais-Bahia. Utilizando a metodologia da história oral, o autor busca representar as memórias, seus confrontos e ressignificações a partir dos relatos de Diva Santana. Nas palavras de Cavalcanti Junior a inserção de Diva na militância ocorreu devido ao desaparecimento de sua irmã Dinaelza, mas uma vítima do regime ditatorial. Sua busca pelo corpo da irmã nos fornece um claro retrato da face perversa da ditadura na Bahia, a exemplo do que ocorreu em diversas regiões do país e que ainda estão por ser descortinadas pelas pesquisas acadêmicas, daí a importância do texto de Cavalcanti Junior.

Com os olhos voltados para um dos grandes ícones da cultura brasileira, Tadeu Pereira dos Santos analisa a condição de subalternidade do negro no Brasil pela biografia de Sebastião Bernardes de Souza Prata, conhecido como Grande Otelo. As representações sobre negros e atores na imprensa brasileira, fonte principal desse trabalho, coloca elementos depreciativos como definidores da carreira de Grande Otelo, como por exemplo, a estratégia constante de reforçar a presença do alcoolismo em sua biografia. Alguém realmente pode conceber que o excesso de consumo de álcool pode ser um elemento central na trajetória de uma figura marcante como Grande Otelo? Parece que para a imprensa e a sociedade civil brasileira, com seus preconceitos e estigmas, o artista negro merece destaque por aquilo que se espera de alguém como ele: instabilidade, vício e práticas religiosas abalizadas pela dubiedade. A malandragem e a astúcia, tomadas em determinados contextos como uma ação social pejorativa, passa a definir, no artigo de Tadeu Pereira dos Santos, uma estratégia de sobrevivência a ser exaltada. Não se trata apenas de discutir os Direitos Humanos como uma questão de ordem jurídica e moral, mas como mais uma expressão da necessidade de se humanizar determinados grupos marginalizados pela hierarquia social vigente.

Na esteira das reflexões sobre a marginalização dos negros a historiadora Priscila Xavier de Oliveira Scudder ancorada no mapa da violência 2016 e na obra “A democracia da Abolição” da filosofa Ângela Davis nos apresenta uma comparação entre as facetas do racismo nos Estados Unidos da América e no Brasil. Perscrutando a história brasileira e suas práticas racistas decorrentes do colonialismo que se apresenta em um viés duplo, a saber, no plano da organização social e da própria construção do saber acadêmico, denuncia assim, o apagamento / silenciamento das minorias no âmbito da esfera social e mesmo no campo das narrativas epistemológicas. Seu texto aponta para a necessidade de uma resistência intelectual e popular contra as práticas legitimadoras da subalternidade que favorecem a discriminação, as novas formas de escravização e, sobretudo o extermínio da população negra em nosso país.

Se falar em democracia e Direitos Humanos é, sobretudo, conferir humanidade aos destituídos dessa condição, o artigo de Eliete Borges Lopes e Luis Augusto Passos segue esse mesmo princípio ao dedicar-se à análise da população em situação de rua da chamada Ilha do Bananal, em Cuiabá. A noção de resistência abarca também estigmas sociais comuns no Brasil como a pobreza e a violência, alicerçados em um competente arcabouço metodológico composto por uma cartografia das ruas, uma pesquisa exploratória e uma interpretação-descrição dos fenômenos. Independente das condições de vida e marginalização desse território e de seus moradores, os autores se valem de uma sensibilidade acadêmica rara para identificar nos sujeitos de sua pesquisa aquilo que chamam de arte-fatos e afetos da vida da cidade, expressos na paisagem local negociada entre o patrimônio arquitetônico e os graffitis, além da visibilidade de certa performance da população em situação de rua. Há que se considerar, portanto o potencial de “educação popular” da Ilha do Bananal, em uma época em que a presença do poder público nesses espaços de marginalização se fortalece por meio de ações autoritárias e de políticas intervencionistas agressivas nomeadas como “higienização”

E por fim, contribuindo para o debate sobre as relações étnico-religiosas e as origens do discurso sobre os Direitos Humanos, Karina Arroyo e Murilo Sebe Bon Meihy trazem à tona a necessidade de se romper o monopólio ocidental sobre o discurso dos Direitos Humanos. O lugar do Islam, e especificamente de um de seus grupos mais perseguidos, os muçulmanos xiitas, é analisado nesse artigo por meio de uma espécie de aproximação dos valores da citada religião com a moralidade laica e universalista atribuída de forma unilateral ao Ocidente após o século XVIII. Neste artigo, da filosofia de Kant às interpretações dos textos religiosos do Islam por seus jurisprudentes, o caminho escolhido pelos autores é o de reforçar o diálogo entre culturas como precondição para o debate sobre a aplicação geral do legado dos Direitos Humanos. Os xiitas no Brasil são os atores centrais desta reflexão, o que obriga o leitor a considerar que se há um processo de identificação do Oriente Médio como o espaço de desrespeito flagrante aos pilares dos Direitos Humanos contemporâneos, não nos esqueçamos de que as principais vítimas desse tipo de violência são os próprios muçulmanos, especialmente grupos minoritários como os xiitas, tanto no Oriente Médio, como no Brasil.

Enfim, a Revista Albuquerque oferece a todos um mapa bastante detalhado do uso político e seletivo que se dá atualmente aos princípios democráticos e ao direito em geral. O contato com esse dossiê deve ser acompanhado desse espírito crítico. Em um mundo tão pouco democrático e desumanizado como o atual, ter acesso a esses textos é mais que uma atividade intelectual. Chega a ser um direito…

Boa leitura!

Murilo Sebe Bom Meihy – Professor de História Contemporânea do Instituo de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: meihy1@yahoo.com.br

Aguinaldo Rodrigues Gomes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em Educação do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: aguinaldorod@gmail.com

MEIHY, Murilo Sebe Bom; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.9, n.17, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História Indígena: o campo interdisciplinar renovado / Albuquerque: Revista de História / 2017

CASTRO, Iára Quelho de; VARGAS, Vera Lúcia Ferreira; MOURA, Noêmia dos Santos Pereira. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.9, n.18, 2017. Acesso apenas pelo link original [DR]

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Patrimônio, Cultura Material e Imaterial: diálogos e perspectivas / Albuquerque: Revista de História / 2018


GIAVARA, Eduardo; FERREIRA FILHO, Aurelino José. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.10, n.19, 2018. Acesso apenas pelo link original [DR]

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Monumentalidade e sombra: o centro cívico de Brasília por Marcel Gautherot | Eloisa Espada

Como já registrei inúmeras outras vezes, a fotografia brasileira ainda se parece com um imenso iceberg, em permanente movimento, que vai emergindo aos poucos trazendo novos dados e novas conexões, geralmente surpreendentes para os pesquisadores. Nas últimas décadas tivemos acesso a inúmeras pesquisas advindas principalmente da academia que se tornaram relevantes informações para a construção de uma história da fotografia brasileira mais consistente.

De modo geral, o saber panorâmico sempre esteve registrado e propagado. O que vem crescendo agora são as pesquisas mais aprofundadas sobre determinados períodos e autores. Especificamente, vemos um crescente interesse pelo período circunscrito entre as décadas de 1940 e 1970, onde a nossa boa fotografia circulou tanto nos salões do movimento fotoclubista, quanto na imprensa, renovada que foi pelas iniciativas de algumas revistas segmentadas (revistas SenhorMódulo, entre outras) e de grupos editoriais – Diários Associados (revista O Cruzeiro) e editora Abril (revistas RealidadeVeja, entre outras). Leia Mais

Palavras cruzadas – GRAMMONT (AF)

GRAMMONT, Guiomar. Palavras cruzadas. [Sn.]. Resenha de: JARDIM, Eduardo. Artefilosofia, Ouro Preto, n.20, 2016.

Palavras cruzadas, de Guiomar de Grammont, é um livro corajoso. Aborda o destino trágico dos guerrilheiros do Araguaia, que se tornaram perseguidos políticos no período da ditadura militar. Muitos foram mortos, outros continuam desaparecidos, como Leonardo, o personagem do romance. O tema já foi tratado anteriormente pelos historiadores, mas não da forma tão livre como faz Guiomar.

Essa liberdade certamente tem a ver com o fato de que a exploração do assunto se faz, no caso, por meio de uma obra literária. O livro escapa da visão simplificadora que opõe heróis e vilões e encara de frente a complexa e dolorosa trajetória do personagem do desaparecido. A narrativa de Sofia, irmã de Leonardo, é o fio condutor do romance. Ela quer a todo custo resgatar do esquecimento a história do irmão. São vários os sentidos da sua busca. Explicitamente trata-se de uma retomada da figura de Antígona, que enfrenta as leis da cidade para poder en terrar o corpo do irmão. Porém, de forma indireta, o romance toca em aspectos centrais do significado da narrativa literária, incluindo a tragédia grega. Dois deles são particularmente pertinentes: a dimensão catártica da literatura e, relacionado com ela, a possiblidade de a literatura promover a reconciliação com a realidade e, como decorrência, tornar possível um recomeço da vida.

Guiomar tem todo motivo para usar como epígrafe uma passagem da Antígona, de Sófocles, que se refere à decisão da heroína d e não deixar insepulto o cadáver do irmão, exposto aos ataques dos cães famintos e das aves carniceiras. O livro também traz à lembrança uma passagem de outra escritora, a dinamarquesa Isak Dinesen, lembrada por Hannah Arendt: “Todas as mágoas são suportáveis quando se pode contar uma história a seu respeito.” Como explicar este poder da narrativa de dar alento àquele que ouve ou lê a história de seus próprios sofrimentos, como aconteceu com Ulisses, na corte dos feácios? Há, primeiramente, o fato de que o contar a história estabelece uma distância do que efetivamente ocorreu. Há uma cessação do sofrimento efetivo. Ao mesmo tempo, a narrativa torna possível a reapresentação dos acontecimentos, o que constitui uma forma de se reaproximar deles. Isto quer dizer que a narrativa promove a reconciliação com a realidade. Ao mesmo tempo que guarda um elemento curativo, o contar a história tem o dom de dar significado àquilo que escapa à compreensão. Em Palavras cruzadas, dois personagens contrastam em sua maneira de lidar com a trajetória de Leonardo – a irmã, Sofia, e a mãe, Luisa. Esta última prefere esquecer. Já envelhecida, ela revela à filha que não se importa de perder a memória, pois lembrar é doloroso demais. Narrar a história do que aconteceu está vedado para ela. Assim, não há chance s de superar a dor, de reconciliar-se com o que aconteceu, de compreender seu significado. Sofia, pelo contrário, encarna a figura da narradora, adota o ponto de vista que é possivelmente da própria autora do livro. Não seria exagerado dizer que, no seu caso, existe salvação. Por este motivo, pode-se dizer que Palavras cruzadas, apesar de todo o percurso trágico descrito, tem um desfecho positivo. A comprovação disto é o encontro de Sofia com a sob rinha, até então desconhecida, que representa no livro a vida que se reinicia. Narrar, reconciliar-se, compreender efetivam o acabamento de um processo, não a sua anulação. O acabamento libera a possibilidade de um novo começo. Assim, novas vidas se iniciam, como a da sobrinha Cíntia, em Paris, com seu gesto de libertar o passarinho para voar. E estas vidas serão possivelmente o assunto de novas histórias para contar. Com sua linguagem ágil e nunca pretensiosa, Guiomar de Grammont reconstitui em seu livro um capítulo difícil da história recente do país. Ao mesmo tempo, com muita inteligência, provoca a reflexão sobre importantes aspectos da natureza da narrativa literária, de um ponto de vista filosófico.

Recortes do livro, trechos escolhidos pela autora:

Seu irmão jazia insepulto; ela não quis que ele fosse espedaçado pelos cães famintos ou pelas aves carniceiras.

Antígona, Sófocles

Sofia voltou para casa perturbada. Despiu as roupas molhadas e tomou um banho quente. Era inverno, mas ela não sabia se os arrepios que sentia eram febre ou efeito da descoberta. Entrou no quarto e, depois de hesitar um momento, decidiu procurar a caixa. Precisou subir em uma cadeira para alcançá-la na parte mais alta do armário, em seu quarto. Deixara ali para evitar a tentação da lembrança. Sempre que estava triste, sempre que se sentia só, nos aniversários, nas datas que marcavam a passagem do tempo e faziam com que ela pensasse mais ainda no irmão, voltava a procurar aquelas fotos e objetos, para buscar algum conforto. Eram os poucos indícios que conservava da presença dele no mundo, e aquelas incursões ao passado acabavam por aumentar sua angústia. As bordas das fotos tinham sido danificadas, aqui e ali, por suas lágrimas. Sofia pegou a caixa e procurou a foto tirada na casa de seus pais, quando ela tinha uns dez anos, em que Leonardo e seu amigo sorriam. Leonardo a pegava no colo, com visível orgulho, como se ela fosse um troféu. Sofia olhou com atenção o rosto do amigo ao lado do irmão. Sim, era ele, sem dúvida. Então, guardou a foto e colocou a caixa no mesmo lugar.

[…] Sofia estava concluindo suas pesquisas e começou a ficar intrigada com um ponto que não tinha conseguido esclarecer: como Leonardo teria ido parar no Araguaia? A resposta a essa pergunta era fundamental, pois, dependendo do resultado, ele podia estar vivo ou morto. E ela acalentava a esperança de que ele estivesse vivo em algum lugar, que pudesse retornar de repente e contar que tudo não passara de um pesadelo. Talvez estivesse há anos conduzindo trens em um metrô sombrio da Suécia, ou entregando jornais, ou limpando latrinas em algum país europeu ou nos Estados Unidos. Papéis falsos, um ou dois casamentos com mulheres que não amava, apenas para obter cidadania e viver do seguro desemprego, esquecido de tudo que tinha vivido antes. A vida é assim, nos leva por caminhos inusitados. E, muitas vezes, é difícil voltar. A volta dá uma preguiça enorme. É melhor lembrar as pessoas que fomos e os entes que um dia amamos a enfrentar o estranhamento. Olhar para eles e perceber que não se sente mais nada, que o elo se partiu, definitivamente, que não há retorno. Quantos exilados não viviam dessa forma? Sem passado e sem futuro, expatriados para sempre? Seria essa a história de Leonardo? Sofia tanto temia quanto desejava essa possibilidade. E, se fosse assim, como ter certeza? Como poderia saber se ele estava vivo? Provavelmente a vida iria transcorre r até o fim e eles jamais se encontrariam. Leonardo iria morrer, em algum lugar desconhecido, sem jazigo de família, sem memória, sem história.

Afinal, a morte é a única certeza da vida. Se Leonardo já não estivesse morto, morreria um dia, e ela também, e tudo que haviam partilhado. Todas as lembranças, as trocas de afeto quando ela era criança, os abraços, as brincadeiras, tudo se desfaria no tempo.

Era esse o destino de todos os seres humanos. Então, porque ela sofria tanto? Por que aquela permanente angústia pela falta de uma conclusão, um desfecho, um ponto final? Por que não deixava o tempo passar e a lembrança se desvanecer até se tornar poeira no infinito, como se nada tivesse acontecido, como se tudo fosse aqui e agora e para sempre? “Tudo é sempre a gora”, o poema ecoava como um mantra em seu pensamento. Esqueça, tudo é sempre agora. Nada foi, nem será. Nada se perde, tudo se transforma, tudo é sempre agora.

Porém, ela não conseguia esquecer. Não havia sono que não fosse visitado pela presença de seu irmão, nem momento de felicidade que não viesse empanado por aquela ausência. Uma culpa fina e constante a trespassava, por ter sobrevivido, por estar no mundo e poder aproveitar os momentos felizes. Cada instante de alegria era um momento a mais sem Leonardo, um momento a menos que ele estaria vivendo ou compartilhando com ela e com a família. Leonardo era um rosto sorrindo no escuro, quando ela assistia a um filme ou espetáculo, era um braço que roçava o seu, cálido, humano. Ela olhava para o lado, de rep ente, esperando dar com o olhar dele, doce e próximo, e se desapontava. Quando Sofia ouvia uma música ou via um filme que a emocionava, imaginava-se contando a ele e as lágrimas vinham a seus olhos. Sempre que ela abraçava um homem mais alto, a reminiscência de um gesto semelhante atravessava por um segundo seu inconsciente, mesmo que ela não estivesse pensando em seu irmão, mesmo que ela não pensasse em nada. Aquela falta pulsava, buraco negro no espaço.

O tempo passava e um dia todas as lembranças seriam esquecidas, as vivências, sentimentos e histórias se dissolveriam no insondável.

[…] O vento insistia em dobrar a folha de papel presa na máquina de escrever, como se quisesse atrair a atenção de Sofia. Ela se aproximou, moveu o carrinho e soltou a folha. O papel parecia ter sido deixado preso ali para que alguém o encontrasse. Como uma explicação ou…

uma carta de despedida?!, pensou. E, de repente, a dúvida.

Sentou-se na poltrona, trêmula, o papel na mão. As letras embaralhavam.

Rememorou os eventos d aquela manhã, quando chegou, depois do telefonema da vizinha. Viu a ambulância na porta da casa e entrou correndo, a porta do carro ficou aberta. No quarto, a mãe nas mãos dos enfermeiros. Lábios arroxeados, a pele pálida. O coração de Sofia saltava a cada choque que eles imprimiam no peito dela. A brutalidade dos procedimentos de reanimação sacudia também as entranhas da filha. Os enfermeiros a instaram a chamar a mãe pelo nome. Luisa! Luisa! Sofia disse e, de repente, entendeu que ela nunca mais a ouviria. Nunca mais. Mãe! Mãe! gritou, sem reconhecer a própria voz.

Luisa foi carregada em uma maca e Sofia entrou na ambulância com ela, sem saber se ela reagira ou não. Mais tarde, a dor de cabeça, sob as luzes fortes do hospital. Só então se permitiu chorar, um choro convulso e forte, de criança. Sedativos, sono, quando talvez tivesse que estar acordada. Depois, a impressão de assistir a si mesma, num pesadelo, no velório e na cerimônia de cremação.

Somente semanas depois conseguiu retornar para arrumar as coisas, ver o que iria guardar e o que iria doar, desmontar tudo, enfim, para que a casa pudesse ser vendida. Os móveis cobertos com lençóis. Nada restaria que pudesse contar o que havia acontecido entre aquelas paredes. A mãe se foi, logo seria a vez dela, Sofia.

Estou sozinha, pensou. E reagiu: Não, tenho meus amigos. Tenho Marcos. De repente, compreendeu a importância que Marcos tinha para ela. A constatação deu-lhe um suave sentimento de liberdade.

E foi esse pensamento reconfortante que a fez voltar a si e ser capaz de ler, enfim, o texto que a tinha surpreendido e intrigado, ao encontrá-lo preso à máquina de escrever de Luisa. A página amarelada indicava que ele tinha sido escrito há muito tempo.

Então, a mãe o tinha colocado na máquina de propósito, para que Sofia o lesse: “A porta bate e me viro, a respiração suspensa. A cortina ondula na janela. Mais uma vez tenho a impressão de que você entrou, certamente no banheiro. Escondeu-se para me dar um susto, como fazia quando criança? Eu fingia que não estava te vendo debaixo da mesa, ou atrás do tapete. Procurava, chamando seu nome. Como faço agora, num murmúrio que cresce e se transforma em pergunta. Pressinto sua presença. Sei que você está aqui. A certeza me perturba, o coração bate, o rubor me sobe às faces. Meu corpo se prepara para esse abraço que irá me tirar do chão.

Ficarei tonta quando você me girar no ar, os braços mais fortes agora, homem feito. A barba irá roçar meu rosto? Não, você iria querer chegar com o rosto escanhoado, medo de que, depois de tantos anos, eu não mais te reconhecesse. Fosse possível não te reconhecer! Você, que saiu do meu ventre. Por que tantos anos sem notícias? A quem deseja punir com sua falta? A seu pai? Você teria medo do retorno? Não imagina quantas vezes ouvi seu pai chorar sozinho, a porta do banheiro fechada, para que eu não percebesse. Não posso chorar, filho. Não choro nunca, só vou chorar quando tiver certeza de que você não voltará mais.

“Ouço um ruído na direção da cozinha. O cachorro sentiu seu cheiro, levanta o focinho, late. Uma, duas, três vezes. Somos dois, agora, em expectativa. Quase vejo seu vulto, oculto no umbral da cozinha. Entro, de repente, quero te surpreender. Você me olha, ao mesmo tempo assustado e excitado. Leva à boca o dedo com o creme roubado da cobertura do bolo. Repreendo, um tapinha na mão, sem força. Seu rosto se ilumina. Sinto uma vontade momentânea de te bater de verdade, mas, no fundo, estou feliz. Daria o bolo inteiro a você, se não soubesse que prefere assim. A travessura te encanta, aumenta seu prazer. Você sempre fez o que quis. Nada te detinha. Ninguém podia te impedir de ser você mesmo. Arrumo a mesa para o café, coloco sua xícara preferida, aquela da asa quebrada. A avó te de u e você nunca me deixou jogar fora. Nunca deixei que ninguém sentasse em seu lugar, meu filho, nem as visitas, ninguém.

“Tenho tantas perguntas a te fazer! Não, primeiro, vou explodir em choro, junto a seu peito. Da mais pura alegria. As lágrimas que jamais derramei. Vejo seus olhos sorrindo. Também marejados. E o abraço? O abraço que me tira o fôlego. Desfaleço em seus braços. Consumi todas as forças nessa espera. Quantas tentativas de encontrar seu paradeiro! Por que você precisou se esconder, meu filho? A quantas fugas te obrigaram! Mas não te farei recriminações. Não precisa explicar nada. Tudo é passado. Podemos começar outra vida. Há tanto a contar um ao outro! Você sabe o que aconteceu nesse tempo? Quem morreu, os presidentes que sucederam, as mudanças de moeda? Esteve tão longe de casa… Leio relatos de exilados. Procuro seu rosto nas fotos de homens de sobretudo, em paisagens cobertas de neve. Imagino te encontrar vagando no escuro dos metrôs, esfomeado e sem emprego. Sem documentos, em algum país onde será sempre estrangeiro. Errante, com medo de voltar e não encontrar o que deixou. Medo de não encontrar mais a si mesmo. Mas agora… Agora tudo acabou, meu filho! “Repito esse ritual todas as manhãs, e sigo seus passos invisíveis pela sala. Entro na cozinha, abro armários, num gesto sem sentido. Como a te convencer de que entrei nesse jogo de esconde-esconde.

“Fecho-os, rápido, quero que acabe logo, já não tenho forças para continuar. Vivo apenas a sua volta, seu retorno se repete em meus sonhos. Acordo com a sensação de que, finalmente, aconteceu: você está dormindo no quarto ao lado. Levanto no meio da noite, pé ante pé, abro a porta, na expectativa de escutar sua respiração. Chego junto à cama vazia e ajeito os lençóis sobre o corpo que não está ali. Como fazia quando você era menino, e dormia sem se lavar, me fazendo despi-lo e vestir seu pijama com dificuldade, você já mergulhado no sono. Tenho vontade de te meter dormindo sob o chuveiro, mas não quero perturbar o sono pesado, depois de tantas brincadeiras. Seu abandono, ressonando, me comove.

Eduardo Jardim-PUC – Rio.

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O circuito dos afetos – SAFATLE (AF)

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016). Resenha de: FILHO, Sílvio Rosa. Do corpo latente do texto. Um pressentimento de manifesto 1. Artefilosofia, Ouro Preto, n.20, 2016.

Eu gostaria de propor minha leitura d’ O circuito dos afetos, assinalando que se trata de uma proposta elaborada em circunstâncias adversas, porque contemporâneas, e supondo que o modo de ler tenha-se dado a partir de um ângulo de abordagem específico, peculiar o bastante para trazer consigo implicações, ao menos, na releitura do livro. Hoje estou menos interessado em situar Vladimir Safatle na divisão social do trabalho intelectual no Brasil, visto ora como polemista ora como colunista, ou publicista ou ensaísta ou compositor ou professor ou historiador d a filosofia. O autor que me interessa está em contraste com aquele que vai aparecendo logo na quarta capa do livro, o proponente da filosofia necessária para uma teoria política da transformação, ambas solidárias de transformações sociais efetivas. Encampa das a ambição filosófica e a ousadia política, tampouco me interessa hoje o jogo técnico de contrapartidas, muito engenhoso ao seu modo, por exemplo, entre Hobbes e Espinosa, Hegel e Adorno, Freud e Lacan, Foucault e Canguilhem, entre tantos outros.

Eu me voltaria então, principalmente, para os lados que flertam com alguns pontos de fuga do livro, aqueles que talvez permitam enxergar O circuito dos afetos não como publicação que constitui algum bloco de teor normativo, mas antes – esta é a minha proposta – como livro que estaria a instituir o próprio corpo latente de um texto. Se esta leitura faz sentido, é porque ali se funda algo assim como um circuito “híbrido”. Digamos que, junto ao circuito impresso do livro, o próprio corpo latente do texto se abre para as contingências de um corpo outro. Mas então, simplesmente, um corpo a corpo? Ou ainda: passagem iminente do corpo latente do texto ao corpo outro enquanto corpo manifesto? Esta é a minha primeira, em certo sentido, a minha única questão, mas ficando b em entendido que “outro”, aqui entre aspas, antes de tudo não é uma propriedade, não é um atributo nem um predicado desses corpos.

Quero crer que a rigor há uma certa compatibilidade entre a questão e o problema central do livro. Este último, expresso à queima roupa, é o seguinte: que afetos criam novos sujeitos? Não haveria incompatibilidade, mas exigência de certos descentramentos, pois, se a natureza da experiência política propriamente dita significa “desbloqueio do novo” (como em Paulo Arantes, por exemplo, desde A ordem do tempo), e, no caso, vale como abertura para alteridades impensadas (como em Michel Foucault) e para alteridades incomensuráveis (como em Jacques Lacan), então não será com os mesmos corpos que haveremos de construir realidades políticas tão transformadoras quanto mais impensadas e incomensuráveis. A certa altura do texto impresso, trecho passível de acender a imaginação do leitor nos começos do século XXI, diz Vladimir: “mais do que novas ideias, precisamos de outro corpo, pois não haverá nova política com os mesmos sentimentos de sempre”.

Deixo de lado quem nessas frases só tiver ouvidos para ouvir algum tipo de anti-intelectualismo, caso de regressão que não vou comentar. Mas há quem tenha ouvidos para captar nessas frases, menos os ecos de Beckett, e mais, as ressonâncias de Artaud. Não digo que não; afinal, neste último caso, o teatro e o seu duplo não precisam ficar reservados ao campo do silêncio; o debate sobre o livro, com efeito, não é de hoje. De todo modo eu diria que a reverberação das formas argumentativas dá a ver uma geopolítica dos afetos e dá a ouvir um diálogo do corpo latente do texto com os corpos – individuais e coletivos – pois são os corpos que leem. E, depois de tudo, os corpos é que haverão de se entende r, mudando o patamar dos consensos ou reconfigurando a plataforma do dissenso com-sentido. Daí um desdobramento neoespinosano que, coetâneo à questão inicial, põe em jogo o problema da intercorporeidade e poderia ser reformulado como segue: o que pode o corpo que lê no limite tenso de um tempo presente que se desnaturaliza, tempo presente do corpo que cria ou inventa ou institui as suas próprias possibilidades de ampliação?

De modo um pouco mais específico, não havendo política sem afetos, o circuito já instituído é literalmente um circuito fechado, apenas constituinte, não ainda instituinte. No entanto é possível imaginar que nem todo ambiente institucional é ambiente institucionalmente consolidado, ainda mais nos tempos que correm, com gestões aceleradas de desinstitucionalização, catástases, catástrofes e assim por diante. Ademais, a mobilização conceitual da contingência, no texto impresso, vem contrariar impossibilidades presumidas na contemporaneidade. Remanescendo um ímpeto para 203 contrariar inclinações estruturais ao famigerado fatalismo brasileiro, mais a recusa do luto pontilhado ao infinito por corpos tantos e melancolizados, depois da leitura d’ O circuito dos afetos, o impossível está posto em suspeita. Nesse passo pode servir de contraexemplo um trio de figuras do “absoluto”, nem tanto em Hegel quanto em Derrida, ou seja, figuras do absolutamente impossível nos dias que correm: a figura da hospitalidade em ato (incomensurável com o cosmopolitismo); a figura do dom em ato (incomensurável com a reciprocidade); a figura do perdão em ato (incomensurável com a justiça).

Mas a ser assim, em ambiências institucionais incipientes, pergunta-se: a intercorporeidade política não haveria de irromper como circuito instituinte ? Quando se explicita a finitude de uma instituição específica, longe de nos lamentarmos pela perda ou pela falta que ela parece fazer ou alardear, vale a constatação: não é toda e qualquer institucionalidade que efetivamente desmorona, problema de formação do discernimento, portanto, no campo aparentemente adverso dos indiscerníveis. Resumindo a minha segunda questão: por aproximação do corpo manifesto, sem perder de vista o propósito da política transformadora, o circuito dos afetos latente estaria proibi do de se apresentar afinal como circuito instituinte dos afetos ?

Ainda por aproximações, acompanhando esses halos expansivos a partir do circuito latente, há toda uma série de negatividades revisitadas no circuito impresso: nem o medo nem sua irmã gêmea, a esperança; nem uma confirmação dos predicados do sujeito, nem as heteronomias que sujeitam; nem assinatura de contrato ficto nem pactuação com a recta ratio. À primeira vista, mas à segunda vista também, o leitor parece estar às voltas com um corpo destituído, esfoliado no estranhamento, totalmente desamparado. Nonada. Nonada, entretanto, com um olho posto n’ O futuro de uma ilusão e com o outro num não sei quê de Félix Guatary. Pois que, nesse novo regime de visibilidades proposto, não dá no mesmo manter Freud de pernas pro ar, confinar-se na dispersão das diferenças apenas abstratas ou perseverar na luta por universalidades não abstratas. E visto que, ao horizonte de expectativas decrescentes, vem contrapor-se um horizonte antipredicativo de reconhecimento, o que parece insinuar-se é a promessa de um corpo coletivo “restituído”. À terceira vista, contudo, um campo outro de visibilidades se deixa entrever. A questão agora passou a ser: o que pode o corpo desamparado na relação com o corpo latente do texto político? O que pode o corpo em desamparo na relação com o corpo manifesto do texto político? À margem do texto, cheguei a notar que muitas vezes Vladimir procede como se estivesse glosando em prosa – e com um grão de sal – alguns versos de Manuel Bandeira e sua “Arte de Amar”, quando o poeta diz mais ou menos assim:

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

À terceira vista, portanto, porque o corpo turbulento requer um tempo próprio a ponto de radicar sua existência fora do tempo do Capital, não o livro, mas a coisa mesma; porque a vida apresenta uma mobilidade tão soberana quanto insubmissa a ponto de encontrar a sua própria maneira de resolver problemas ontológicos; porque, em suma, novas formas de ser e de vivermos juntos estão na força de acontecimentos que começam novamente a se fazer sentir – é a contingência que unifica o que se mostra como possível e o que se manifesta como realmente efetivo. Assim – nessa política que fará jus ao conceito de política da suspensão se efetivamente ela tomar corpo; nessa política da síntese não normativa que já não temera dizer o seu nome como política de esquerda e sempre se quis transformadora – a cena se produz pelo reconhecimento da contingência.

Na medida em que a exposição do desamparado irrompe à contraluz de uma desindividuação irredutivelmente singular, na medida em que supõe um aumento na potência de agir no fundo do mais fundo desamparo, a visada ético-política desse circuito de afetos parece ao menos tão exigente quanto as perversões acadêmicas que outrora insistiam no avesso da dialética. Está claro, porém: colocando perversões acadêmicas à parte. À parte, igualmente, a realização do fantasma sádico que Vladimir já estudou na figura de Justine, tomada então como vítima por excelência, analisada sob o prisma dessa angústia de gozar com aquilo mesmo que lhe causa horror (ver Um limite tenso, ensaio intitulado “O ato para além da lei”).

*

Para terminar, vou me permitir o acréscimo de uma pequena nota sentimental no rodapé de uma conversa que se vai fazendo de vida inteira, tentativa de resumir a leitura proposta e apontar para o que vem por aí, implicado, suponho, na sua própria síntese. A nota sentimental talvez explique, embora não justifique, as camadas e camadas de 205 latência necessariamente cifrada numa fala de vinte minutos. Camadas, por exemplo, como as contidas em aulas anotadas de Merleau-Ponty (Institution, passivité), antes das camadas póstumas de Claude Lefort, sem com isso querer complicar mais do que o necessário a já considerável complexidade safatleana; mas querendo, de algum modo, intervir no andamento de um projeto que nunca se poderá reduzir a um corpo só.

É que as minhas conversas com Vladimir remontam a um tempo em que muitos dos que se acham aqui, hoje, estavam nascendo ou por nascer. É igualmente esse o c aso da moça a quem o livro é dedicado; dedicatória, aliás, onde se diz: “Para Valentina, que saberá viver sem medo”. Em 1997, quando Vladimir apresentou sua dissertação de mestrado, eu era uma das duas pessoas que assistiram à defesa de “O amor pela superfície: Jacques Lacan e o aparecimento do sujeito descentrado”. Nos anos seguintes, entre 1998 e 2000, lemos juntos com Ruy Fausto algumas obras de Freud e de Lacan, num grupo de estudos composto por nós três e às vezes na companhia de Jean-Pierre Marcos, em Paris; apresentamos alternadamente alguns seminários no curso de pós-graduação de Paris-VIII, sobre Adorno e a Dialética negativa ; principalmente, passamos noites em claro discutindo as charneiras entre a Fenomenologia do espírito e a Ciência da lógica, o papel do “prefácio” na primeira, o alcance da “realidade efetiva” e a instabilidade das essências, nesta última. Hoje o que os franceses chamavam de nuit blanche, tornou-se Nuit Debout. A noite em claro, nestes dias intermináveis, tornou-se noite em pé.

Por isso mesmo, a minha fala não poderia ser mais do que a miniatura de uma conversa – sempre recomeçada, às vezes silenciada pela força das coisas – há vinte anos.

O que pode o corpo latente do texto? A inverter-se a passagem dos conteúdos (de manifesto s a latentes), do pesadelo acordado a uma rêverie em que se passeia nas cadências de Sigmund Freud, resume-se: corpo manifesto ? Numa palavra: corpo instituinte ? Resumindo à mínima, por fim, a pequena variação sobre o tema: a intercorporeidade – esses corpo s aquém do medo da morte violenta, abandonados de toda esperança, desamparados, desindividualizados, e, contudo, vivos, essa intersubjetividade com indivíduos findos parece implicar um circuito outro do sujeito político que, ingressando num campo em disputa, eu tenderia a designar com um ou dois neologismos: como interobjetividade instituinte, como transobjetividade manifesta. E para além dos nomes (parce que je ne voudrais ici disputer ni sur les mots ni sur les choses: intersubjetividade com indivíduos findos, interobjetividade instituinte, transobjetividade manifesta), o que importa perguntar-se é o seguinte: esses corpos políticos não implicam uma entidade literária inteiramente outra, nova, um corpo de um texto político manifesto?

Se assim for, eu m e atrevo a dizer que o próximo livro de Vladimir Safatle não será algo voltado para ilusões históricas e socialmente necessárias da intercorporeidade dos afetos. Será, afinal, um manifesto.

Nota

1 Este texto foi apresentado originalmente no dia 20/06/2016, em Debate com o autor, evento organizado pelo Departamento de Filosofia da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP, sobre o livro de Vladimir Safatle, O Circuito dos afetos (Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016).

Sílvio Rosa Filho-Professor de filosofia na Universidade Federal de São Paulo, autor de Eclipse da moral: Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporâneo (Barcarolla/Discurso Editorial-USP, 2009) e de Hegel na sala de aula (Fundação Joaquim Nabuco/Unesco, 2009).

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História e Política / Albuquerque: Revista de História / 2016

“definir uma posição singular pela exterioridade de suas vizinhanças; mais do que querer reduzir os outros ao silêncio, (…)”[1]
A opção por História Política como tema central do presente dossiê não tem qualquer relação com uma tentativa de “reduzir” os outros campos da história ao “silêncio”. É preciso ressaltar que a História Política não é uma área fechada, com fronteiras rígidas e inflexíveis. Ao contrário, pautado numa postura interdisciplinar, seu pesquisador vale-se de métodos, técnicas, conceitos, vocabulários e problemas gerados (e germinados) do contato com outras disciplinas e / ou áreas do conhecimento. Desse modo, entendemos que o cultural, o econômico e o político se “influenciam mutua e desigualmente segundo as conjunturas, guardando ao mesmo tempo cada um sua vida autônoma e seus dinamismos próprios.”[2] E de acordo com René Rémond: “se o político tem características próprias que tornam inoperante toda análise reducionista, ele também tem relações com outros domínios.” Conferindo centralidade à postura interdisciplinar, Rémond salientou que o político “liga-se por mil vínculos, por toda espécie de laços, a todos os outros aspectos da vida coletiva.”[3] Portanto, o político “não constitui um setor separado: é uma modalidade da prática social.”[4]

É certo que a postura interdisciplinar contribuiu para o alargamento do campo da história e, particularmente, da chamada “história política renovada.”[5] Nas últimas décadas, objetos até então pouco pesquisados no Brasil passaram a despertar maior interesse dos estudiosos brasileiros. Mídia, intelectuais, opinião pública, discursos e cultura política são apenas alguns exemplos.[6]

Convém observar, igualmente, que a própria noção de política se ampliou. Como, então, definir a política? Sem a pretensão de oferecer uma resposta definitiva e inquestionável, podemos recorrer às formulações de René Remond: “Já que não se pode definir o político por uma coleção de objetos ou um espaço, somos levados a definições mais abstratas. A mais constante é pela referência ao poder.”[7] Por sua vez, Rosanvallon [8] sublinhou com relação ao político: “Pode ser definido como o processo que permite a constituição de uma ordem a que todos se associam, mediante deliberação das normas de participação e distribuição.” Ressaltou, ainda, que devemos considerar a “atividade política” como “subordinada à pluralidade da atividade humana.” [9]

Referências ao poder [10] e postura interdisciplinar são algumas das características dos onze textos reunidos no presente dossiê, além, é claro, de instigantes discussões e reflexões historiográficas sobre a própria constituição da história política como campo de estudos.

No primeiro artigo, o leitor encontrará uma discussão de cunho historiográfica. Em seu texto, Moisés Stahl abordou o chamado “retorno do político” discutindo as formulações de autores como Roger Chartier, Pierre Rosanvallon, Christian Edward Cyril Lynch e René Rémond.

Na publicação seguinte, Juliana Cristina da Rosa analisou a contribuição de Jürgen Habermas para a Nova História Política, enfocando, sobretudo, a relação entre Dignidade Humana e Direitos Humanos. De modo contundente, demonstrou como o teórico alemão criticou o “mau uso” dos direitos humanos como discurso legitimador para ações intervencionistas – e imperialistas – empreendidas por governantes dos Estados Unidos da América.

Já Raphael Silva Fagundes procurou analisar os discursos proferidos pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), descortinando peças de retórica que buscavam legitimar, a partir da noção de progresso, a presença da associação oitocentista no cenário político. Para tanto, enfocou pronunciamentos nas sessões de aniversário do IHGB.

No quarto texto, Pedro Henrique de Mello Rabelo e Cláudia Maria das Graças Chaves trataram da Abertura dos Portos (1808) e do comércio britânico no Brasil tendo como fonte a correspondência do cônsul estadunidense Joseph Rademaker com o governo luso. Refletiram, igualmente, sobre os conceitos de metrópole, colônia, império e sistema colonial.

As biografias acerca de D. Pedro II constituem o escopo do artigo veiculado na sequência. Nele, Mauro Henrique Miranda de Alcântara discutiu o trabalho da antropóloga Lilia M. Schwarcz (As Barbas do Imperador, 1998), bem como os livros dos historiadores José Murilo de Carvalho (D. Pedro II, 2007) e Roderick J. Barman (O Monarca-Cidadão, 2013).

Já os primeiros momentos da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial foram abordados por Paulo Sérgio da Silva e Honorato C. Chagas. Dentre outros temas, trataram da implantação e execução das medidas tomadas pelo governo de Getúlio Vargas em busca dos recursos financeiros, abastecimento de materiais, reorganização produtiva e treinamento da defesa passiva civil.

Os resultados obtidos em dois diferentes estudos ensejaram as reflexões de Douglas Souza Angeli e Marcos Jovino Asturian. No trabalho, os autores abordaram o papel exercido por jornais nas campanhas eleitorais no Rio Grande do Sul. A partir de periódicos de circulação local e / ou regional, analisaram as estratégias discursivas adotadas nas campanhas eleitorais de cidades gaúchas na década de 1950.

No oitavo artigo, Samuel da Silva Alves e Cleusa Maria Gomes Graebin examinaram um discurso de Leonel de Moura Brizola, proferido num evento organizado por acadêmicos da Faculdade de Ciência Política e Econômica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em meados de 1961, momento em que o político ocupava o cargo de governador do Estado.

Já no nono texto, os pesquisadores estabeleceram relações entre literatura, política e ditadura militar no Brasil. Marcio Luiz Carreri e Francislaine A. Carvalho discutiram a peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, escrita em 1933 e encenada, três décadas depois, no Teatro Oficina.

Rock e política compõem o mote para o texto publicado na sequência. Em seu artigo, Paulo Gustavo da Encarnação procurou abordar a relação entre rock e política interpretando versos e acordes de canções como O adventista (banda Camisa de Vênus) Fé nenhuma (banda Engenheiros do Hawaii) e Ideologia (Cazuza).

O último texto da presente edição foi redigido pela pesquisadora argentina Magdalena López. No artigo, López refletiu acerca da história política do Paraguai contemporâneo, buscando compreender, principalmente, os fatores que influenciam a formação e o modelo atual de democracia paraguaia.

Além dos onze artigos, publicamos uma entrevista realizada com a professora Alisolete Antônia dos Santos Weingartner. Na conversa, a pesquisador tratou dos estudos sobre o Movimento Divisionista, a Divisão do Estado de Mato Grosso e a criação de Mato Grosso do Sul. Dentre outros temas, também abordou o seu novo livro, intitulado “Mato Grosso do Sul: a construção de um Estado”.

Por fim, desejamos uma excelente leitura para todos / as que tenham interesse numa publicação de história sem, obviamente, abrir mão do contato com outras disciplinas e / ou áreas do conhecimento, como bem enseja à referência aos escritos de Michel Foucault na epígrafe aqui reproduzida.

Aquidauana-MS, 2016.

Notas

1. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 6.ed. Rio de Janeiro: Florense Universitária, 2000, p. 20.

2. RÉMOND, René. (org.) Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / FGV, 1996, p. 10.

3. Idem, ibidem, p. 35.

4. Idem, ibidem, p. 35-6.

5. BORGES, Vavy Pacheco. História e política: laços permanentes. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, n.º 23 / 24, set 91 / ago 92, p. 16.

6. Não se pretende afirmar que os pesquisadores brasileiros começaram a trabalhar com os objetos citados nos últimos anos. Tomemos, por exemplo, o caso da mídia. Há muito tempo a imprensa escrita é objeto de estudo para os historiadores, como podemos observar a partir dos estudos de SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 1966, CAPELATO, Maria Helena Rolim; PRADO, Maria Lígia. O Bravo matutino: imprensa e ideologia: o jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980 ou CAPELATO, Maria Helena Rolim. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista (1920- 1945). São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. Procuramos salientamos somente que os historiadores tem se ocupado com maior frequência de tais objetos.

7. RÉMOND, René. Do Político. _____. (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / FGV, 1996, p. 443-444.

8. Considerar a proposição do autor para uma história conceitual do político. Cf. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político. Revista Brasileira de História. v.15, n.º 30, p. 9-22, 1995.

9. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010, p. 42.

10. E aqui pensamos em poder também tendo em mente as formulações de Bourdieu. Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

Edvaldo Correa Sotana – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: sotana.ufms@gmail.com

Carlos Martins Junior – Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: martinscjr@gmail.com

Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: miguelrodrigues.snetto@gmail.com


SOTANA, Edvaldo Correa; MARTINS JUNIOR, Carlos; SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.8, n.15, 2016. Acessar publicação original [DR]

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História e Linguagens / Albuquerque: Revista de História / 2016

É com imensa satisfação que apresentamos a@s leitor@s de albuquerque: revista de história o dossiê História & Linguagens, conjunto temático de textos proposto com vistas à socialização e debate de pesquisas referentes ao amplo campo de contato interdisciplinar dos estudos da História e das mais distintas Linguagens, em suas diferentes facetas e suportes.

A História, tomada como forma específica de se conhecer e compreender o mundo, passa por transformações, na medida em que a sociedade se transforma e ela não é outra coisa que não um produto humano. É possível que essa seja uma afirmação óbvia, entretanto, em um período como esse no qual estamos inseridos, tão afeito a naturalizações, talvez não seja algo ruim retomar algumas premissas.

A História tem sido elaborada muito próxima a outras formas de compreender o mundo, por vezes sendo confundida com elas. Não somos @s primeir@s, claro. Na construção das hegemonias no vasto campo do ato de conhecer o mundo as tensões entre pensador@s, suas escolhas, suas incursões até outros campos, são percebidas.

Assim, a História já esteve muito próxima das artes, da filosofia, de outras narrativas e ciências. Num rasgo de necessidade, entretanto, inseridos no processo de cientificização da sociedade ocidental característico de fins do século XVIII e do século XIX, seus artífices buscaram o afastamento. Retirados, se impunham a tarefa de elaborar as fronteiras do campo, acompanhado de seus modos específicos de analisar, compreender e narrar as sociedades humanas no tempo. E isso foi feito.

Entretanto, o interesse em dialogar com outros campos, de nos aproximarmos de outras leituras de mundo e suas ferramentas, tem sido uma constante. As fronteiras, que em um primeiro momento foram tomadas como muros servindo para nos separar, foram sendo modificadas e tornadas zonas de contato. ´

Em diálogo com as Ciências Sociais os conceitos foram ampliados, o conjunto de fontes foi tornado quase ilimitado. Tomar de empréstimo à Antropologia o seu largo conceito de Cultura possibilitou um século de avanços robustos na compreensão das ações humanas no seu embate cotidiano com a natureza e entre sujeitos. Os estudos da psiquê, aqueles da economia, da política e tantos mais foram sendo observados e, em alguma medida, apropriados no fazer histórico e historiográfico.

Quando observamos dessa maneira a elaboração do conhecimento histórico, não causa estranheza que, à medida em que novos objetos foram introduzidos no corpo social, eles foram também tomados como forma de acessar os sujeitos e suas ações, agregados a tantos outros que estavam ali há mais tempo. Historiador@s que utilizam a arte para elaboração de suas interpretações podem ser observados desde o século XIX, a exemplo de Jacob Burckhardt e sua Cultura do Renascimento na Itália.

Na produção histórica brasileira, entretanto, é possível perceber a partir de meados dos anos 1990 o aparecimento cada vez mais frequente de trabalhos elaborados a partir do diálogo com as Linguagens e / ou que tomaram / tomam objetos estéticos como corpus documental, exclusivo ou não.

A difusão de autores como Edward P. Thompson, Raymond Williams, Roger Chartier, entre outros, nos cursos de História, foi um movimento importante, responsável por parte dessa ampliação do paradigma histórico nestas plagas. Mas, a partir de fins dos anos 1990, esse tipo de produção historiográfica se torna mais comum no Brasil, possibilitando um continuado incremento desta zona de contato, alargada.

Assim ansiamos, nesse dossiê, verticalizar reflexões e debater teórica e metodologicamente a relação entre história e as linguagens artísticas, a produção virtual, os movimentos de cultura, em suas diversas temporalidades e feições e representações, e os embates intelectuais que de tais expressões surgem.

O dossiê História & Linguagens foi composto como segue: o texto de abertura é de Janaina Cardoso de Mello, intitulado Os crimes contra mulheres nas fontes do Arquivo Geral do Poder Judiciário em Sergipe (1878-1935): cotidiano de poder, denúncias e impunidade; fruto de pesquisa da autora baseada na análise e cotejamento de cinco documentos encontrados naquele arquivo e que possibilitam a compreensão de um cotidiano de violência contra mulheres e impunidade de seus algozes em Sergipe, na passagem do século XIX para o século XX.

O artigo seguinte, Turismo literário: uma análise sobre autenticidade, imagem e imaginário, de autoria de Fernanda Naves Coutinho, Diomira Maria Cicci Pinto Faria e Sergio Donizete Faria, foi escrito com vistas a ampliar o conhecimento sobre esse segmento turístico, inserindo-o em uma teia ampliada de relações advinda da produção, circulação, ressignificação, apropriação de bens culturais, materiais e imateriais.

Já Alessandro Henrique Cavichia Dias busca compreender o processo de travessia de Sérgio Reis de uma carreira de cantor romântico ligado à Jovem Guarda para o mundo do cancioneiro rural, alterando toda a sua performance, inclusa sua indumentária, mas, sobretudo, no que tange ao próprio ritmo, instrumentação, etc. No artigo “O caminho do sertão”: a construção e a concretização da imagem de Sérgio Reis como intérprete da moderna música rural, Dias analisa como uma nova estética caipira seria elaborada pelo cantor, aproximando campo e cidade.

Ceildes da Silva Pereira & Fernanda Correa Silveira Galli tomam como objeto de análise um dos mais relevantes acontecimentos da história recente do país, a aprovação da PEC 241 / 2016, por meio da qual foram limitados os gastos governamentais pelo prazo de vinte anos. Discursos da / na mídia digital: efeitos de sentido sobre a PEC 241 é a análise das autoras, baseada na Análise do Discurso de linha francesa, sobre a construção discursiva daquele fato.

O texto de Wallace Lucas Magalhães, O imaginário social como um campo de disputas: um diálogo entre Baczko e Bourdieu, volta-se para a compreensão teórica das ciências humanas e sociais a partir dos conceitos de imaginário social (de Baczko) e campo (de Bourdieu), inserindo tal processo nas transformações sociais e intelectuais a partir dos anos 1960 na Europa, considerando o permanente imbricamento entre o real e o simbólico.

O artigo de Elite Borges Lopes, intitulado Comunidade da Ilha do Bananal: auto-organização da população em situação de rua na cidade de Cuiabá-MT, encerra esse dossiê. A autora transita pelas ruas da Ilha do Bananal, no centro da capital mato-grossense, e percebe ali a organização da população em situação de rua por meio de seus arte-fatos. Uma bela análise de vivências expressas também na arte pouco observadas pela academia brasileira, ou, ainda, pouco observada por quem quer que seja.

Esperamos que @s leitor@s apreciem as presentes reflexões que reafirmam os diálogos entre as áreas do conhecimento que elaboram análises sobre as sociedades contemporâneas por meio dos mais distintos suportes e com várias nuances, considerando a produção intelectual e artística como expressão relevante da sociedade global.

Na Seção de Artigos Livres, estão quatro outros trabalhos.

Partindo da interpretação de que, desde o período imperial, notadamente a partir da guerra contra o Paraguai (1864-1870), a fronteira oeste se tornaria objeto de interesse e de políticas do Estado nacional, Carlos Alexandre Barros Trubiliano escreve seus Apontamentos sobre as frentes pioneiras na Zona da Mata Rondoniense (1970-2000).

Eduardo Giavara compreende a fronteira como espaço de tensionamento; considerando essa premissa, no artigo As fronteiras do desconhecido: civilização e barbárie no oeste paulista, analisa os processos migratórios do século XIX e as transformações sociais havidas no oeste paulista em decorrência delas, no período que vai da publicação da Lei de Terras (1850) até a aquele da reorganização política daquela região por meio da chegada dos trilhos na cidade de Salto Grande.

Cesar Magolin, no artigo Política operária no pré-64: história e crítica, busca compreender a construção de uma política operária a partir das formulações do Partido Comunista Brasileiro (PCB), inserindo tal fenômeno no amplo e complexo processo político nacional e internacional que precederia o golpe de 1964.

Finalmente, Isabel Camilo de Camargo analisa o processo de formação de Sant’Ana de Paranaíba baseada no âmbito da história ambiental, considerando os embates e apropriações do corpo social com a natureza no tempo, no artigo intitulado Fontes históricas e a ocupação de Sant’Ana de Paranaíba no século XIX: possibilidades para se pensar a História Ambiental.

Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: miguelrodrigues.snetto@gmail.com

Edvaldo Correa Sotana – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: sotana.ufms@gmail.com

Carlos Martins Junior – Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: martinscjr@gmail.com


SOTANA, Edvaldo Correa; MARTINS JUNIOR, Carlos; SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.8, n.16, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX / Samuel Albuquerque

ALBUQUERQUE Samuel História & outras eróticas
Samuel Albuquerque / Foto: Conectando Com Jota /

ALBUQUERQUE S Nas memorias de Aurelia História & outras eróticasAo dar visibilidade no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX, Samuel Barros de Medeiros Albuquerque, professor da Universidade Federal de Sergipe, narrou neste livro as vivências e experiências da sergipana Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952), futura Dona Sinhá, durante sua estada no Rio de Janeiro com sua família, e sua preceptora alemã, Marie Lassius.

Tais memórias, arquivadas em textos, são fonte de informações preciosas sobre o cotidiano feminino, incluindo o trabalho de governantas, bem como as experiências e práticas culturais de meninas, moças e senhoras na sociedade carioca.

Assim, fazendo uma breve descrição dos familiares de Aurélia, da chegada de Marie Lassius no Brasil e na casa da jovem, ainda em Sergipe, Albuquerque buscou investigar

o universo de preceptoras europeias que viveram entre os grandes centros e a periferia do Império do Brasil e, para tanto, enveredo pelo cotidiano de uma típica família da nossa antiga elite política e econômica, buscando interpretar sobretudo, as práticas culturais femininas (2015, p. 17).

Para isso, Albuquerque abordou no primeiro capítulo, intitulado “Nas memórias de Aurélia”, as experiências e vivências dessa jovem sergipana, bem como das demais mulheres da família, inclusive de sua preceptora alemã.

Ao narrar a conjuntura que levou a família do deputado geral Antonio Dias Coelho e Mello (1822-1904), Barão da Estância, a se mudar para o Rio de Janeiro, e o cotidiano das mulheres da família, Albuquerque conseguiu estabelecer pontos de convergência entre a política e cultura do século XIX.

A ligação política do Barão da Estância rendeu às mulheres da família e à preceptora alemã, o acesso a espaços de sociabilidade típicos da corte carioca, como bailes, jantares, cerimônias políticas e religiosas, inclusive contato direto com a família imperial, por meio das visitas residenciais ou cerimônias específicas.

Além disso, tal ligação política também possibilitou identificar o cotidiano dessas mulheres e suas práticas culturais. Dentre essas práticas, Albuquerque destacou as experiências vivenciadas e narradas por Aurélia nos diversos espaços de sociabilidade em que frequentou com sua família e com sua preceptora.

A frequência nesses espaços possibilitava às mulheres da corte e da elite se conhecerem, trocarem informações e experiências sociais e culturais. Assim, Aurélia, as mulheres de sua família, e sua preceptora, conseguiram se inserir no cotidiano feminino carioca e se adaptarem nessa nova realidade sociocultural, uma vez que todas elas provinham de outras realidades culturais.

Quanto à ligação cultural existente no cotidiano da família sergipana, podemos observar a atenção que o autor deu aos indícios textuais de Aurélia sobre a educação recebida pela preceptora alemã.

Da gramática ao estudo de idiomas e de música, a jovem sergipana foi educada para tornar-se uma mulher culta e preparada para um bom casamento e, consequentemente, saber cuidar da casa, do marido, dos filhos e dos criados.

Sua vivência e experiências pela cidade do Rio de Janeiro, acompanhada por sua família e por Marie Lassius, fizeram de Aurélia uma moça atenta ao cotidiano feminino e aos espaços de sociabilidade por ela frequentados.

Guiado pelos indícios das práticas culturais e dos espaços de sociabilidade acessados por Aurélia, Albuquerque continuou explanando no segundo capítulo, intitulado “No Reino Encantado de Pedro II”, o cotidiano feminino pelo Rio de Janeiro durante o reinado de D. Pedro II.

A frequência nos ritos religiosos, no estabelecimento de modistas franceses, na confeitaria Paschoal, nas residências de políticos e damas da elite carioca, em teatros, museus, passeios públicos, jardins botânicos, zoológico, praias e demais endereços ilustram a diversidade de espaços de sociabilidade existentes na cidade do Rio de Janeiro, bem como os locais permitidos ao acesso feminino.

Toda vivência e experiência obtida durante a estadia no Rio de Janeiro, provavelmente proporcionou a Aurélia noções do cotidiano e das práticas femininas, além de prepará-la para a vida de esposa, mãe e dona de casa.

Assim, com o encerramento das atividades políticas do Barão da Estância no Rio de Janeiro em 1879, ele e sua família retornam a Sergipe, deixando para trás o amigo da família Gonçalo de Faro Rollemberg, futuro esposo de Aurélia, e a preceptora alemã, Marie Lassius que faleceu no mesmo ano.

Aurélia, já amadurecida, continuou escrevendo suas vivências e experiências, porém, não da mesma forma como antes. Diante de seus retornos ao Rio de Janeiro, de seu casamento, filhos que teve, permanecia em sua memória os ensinamentos, as práticas, as vivências e as experiências deixadas por sua preceptora.

Assim, se Samuel de Albuquerque buscou destacar em seu livro a importância da prática da preceptoria no Brasil para a formação feminina, em especialde Aurélia, ele também conseguiu dar visibilidade às experiências, vivências e práticas culturais no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX.

Everton Vieira Barbosa Correio – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Campus de Assis). Bolsista pelo processo 15555-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).E-mail: semusico@hotmail.com.


ALBUQUERQUE, Samuel. Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX. São Cristóvão: Editora UFS, 2015, 152p. Resenha de: CORREIO, Everton Vieira Barbosa. História histórias. Brasília, v.4, n.7, p.231-233, 2016. Acessar publicação original. [IF]

A alma e as formas – LUKÁCS (AF)

LUKÁCS, Georg. A alma e as formas. Introdução de Judith Butler; tradução, notas e posfácio de Rainer Patriota. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. Resenha de: PIMENTA, Olímpio. Artefilosofia, Ouro Preto, n.19, 2015.

Há quase três décadas, então estudante de graduação em Filosofia, recebi as lições que viriam a constituir o escasso acervo de meus conhecimentos sobre a obra do pensador húngaro G. Lukács. Na ocasião, na esteira da avaliação do próprio autor, sublinhava-se que seu desenvolvimento filosófico tinha um caráter inequivocamente evolutivo, com o que a formulação sistemática da “ontologia do ser social”, núcleo de sua produção tardia, seria também o resultado mais importante de todo o percurso. Era uma abordagem que favorecia pouco os trabalhos de crítica literária dos primeiros tempos, e os ensaios reunidos no livro de 1911 ficaram, assim, envoltos em sombra.

Se, em algum a medida, este caso representa uma situação mais ampla, pode-se perceber a relevância do aparecimento entre nós do livro de estréia de Lukács, em edição amparada por estudos críticos muito elucidativos de Judith Butler e do próprio responsável pela tradução e pelas notas ao texto, Rainer Patriota. Pois, em que pese a apreciação desfavorável aludida acima, parece-nos que os escritos em foco, embora desiguais quanto a alcance e mérito intrínseco, formam um conjunto bastante coeso, versando sobre um extenso repertório de temas literários e filosóficos, organicamente articulados à meditação sobre nossa condição existencial.

O princípio organizador da reflexão é idealista, estabelecido logo no âmbito dos dois exercícios iniciais “Sobre a forma e a essência do ensaio” e “Platonismo, poesia e as formas”. Concebida como busca por elevação acima d o tumulto sem sentido da vida comum, a jornada da alma só se realiza ria de modo pleno mediante a configuração integrada do que ali aparece disperso e fragmentário. As estruturas complexas que emergem em sua atividade, propostas como articulação necessária entre fins e meios, intenção e execução, conteúdo e aparência, interioridade e exterioridade, são as formas a que se almeja. Seria um programa de trabalho razoavelmente convencional, capaz até de produzir resultados triviais, não fosse a disposição experimental de quem o conduz. Pois uma das razões do interesse destas primícias lukácsianas é a ausência de dogmas entre seus elementos constitutivos, sinal de uma atitude investigativa honesta, dominada pela curiosidade.

Segundo tal inspiração, um grande atrativo dos ensaios em foco é o estabelecimento, em seu desenrolar, de conexões múltiplas entre os móveis de sua atenção, capazes de evidenciar o copertencimento entre estratos distintos da realidade, mas também entre fenômenos que à primeira vista nada teriam a ver uns com os outros. As formas, ou se se quiser, as ideias, quase sempre entretêm boas relações com a vida — a exceção mais ostensiva estando na angustiada visão das coisas presente nos dois últimos textos, “Metafísica da tragédia” e “Da pobreza de espírito” –, porque são pensadas não apenas como essência incondicional da totalidade, mas também como algo cuja realização no mundo só ocorre a partir do vivente que experimenta. Empresta-se, assim, um caráter muito dinâmico à já referida demanda por sentido. Em função disso, os nexos entre o material de que se parte e a composição a que se chega não são rígidos nem unívocos, como se fossem resultado da sujeição do múltiplo da vivência a regras universais, mas mostram-se compatíveis com a variedade efetiva, tanto dos problemas humanos e das questões artísticas ventilados, quanto das possibilidades de um equacionamento formal que os unifique. Uma tal abertura de espírito é o que torna viável a aproximação entre, por exemplo, Platão e Montaigne, reivindicados como expoentes máximos do ensaísmo a que se pretende filiar o próprio livro.

Todavia, como se sabe, boas intenções costumam não ser o suficiente. Aos olhos deste leitor noviço, o que assegura força aos ensaios é o sucesso n a aplicação de sua estratégia global. Firmada a tarefa de acompanhar o trânsito da alma entre e vida e as formas, optou o autor pelo exame de uma série de obras em que os diversos aspectos da relação entre esses dois pólos puderam ser acompanhados segundo um extenso leque de especificidades. Portanto, por mais heterogêneos que sejam os casos estudados, cabe tomar o que temos em mãos como um conjunto de variações sobre um mesmo tema de fundo. Porque multifacetado, tal tema admite associações muito diversas, conforme os propósitos e o colorido próprios de cada objeto visado. Porém, não obstante a peculiaridade das partes, a feição final do todo é bem proporcionada, justamente porque o plano que a ordena cumpre à risca o que promete. Correndo algum risco de impertinência, imaginamos acertar ao entender o notável resultado dos esforços aqui empreendidos por Lukács como efeito da compreensão da s forma s como perspectiva s, de preferência a estruturas essencialmente invariáveis. Os momentos em que isto fica mais nítido estão nos ensaios sobre Kierkegaard, Sterne, Storm e Novalis, respectivamente “Quando a forma se estilhaça ao colidir com a vida”, “Riqueza, caos e forma”, “Burguesia e l’art pour l’art ” e “Sobre a filosofia romântica da vida”.

O tratamento d ado ao filósofo escandinavo prima pela percepção nuançada do alcance de um gesto de separação que decidiu em definitivo o rumo posterior de sua vida e de sua produção intelectual. Apesar de realçar a tensão entre est as duas esferas, o ensaio termina provando a consistência paradoxal vigente na relação entre elas: somente a renúncia a uma vida afetivamente significativa tornou Kierkegaard apto a cumprir seu destino, assegurando-lhe de uma vez por todas aquilo que teria sido perdido pouco a pouco a cada dia. Junto a o escritor irlandês, em contrapartida, admite-se, ao termo de um diálogo muito movimentado, o triunfo da riqueza vital da forma aberta sobre a exigência do sacrifício da vida à forma acabada. Aliás, em nenhum outro ponto do livro a combinação entre vida e forma mostra resultados tão animadores, frutos de uma reciprocidade que marca um dos extremos no espectro de possíveis encaminhamentos para seu tema central.

Também em relação a Novalis, encontramo-nos em presença de uma coerência insuspeitada, mas cujo balanço em termos da forma presta-se à demonstração de uma ruína. Um distanciamento cordial d o romantismo garante a Lukács um ponto de vista independente a respeito d a questão alemã. Até onde pude ver, ele trata aqui de ambos os assuntos livre de qualquer partidarismo, com o que suas análises ganham em pertinência e agudeza, ensinando sobre o que expõem sem querer doutrinar. Assim, embora a palma seja atribuída ao classicismo goetheano, entende-se em que medida a alma romântica viveu sua peripécia com dignidade, tendo na figura em foco sua mais alta expressão.

Por que o que em uns é contínuo, enquanto em outros resta contraditório, apenas os caminhos sutis do ensaio sobre a lírica de Theodor Storm nos permitem constatar a integridade que reúne nele poesia e existência burguesa. A solução do aparente dilema deriva de observações a propósito do sentimento de comunidade que marca a autêntica atitude ética diante da vida. É pela prevalência de injunções desta natureza que o poeta teria alcança do seu melhor. Não importando se este se restringe à modéstia da maestria artesanal, interessa sublinhar mais uma vez a ocorrência de uma coexistência bem lograda entre os dois pólos da equação lukácsiana, que figura, neste passo, exatamente no meio do espectro de possibilidades mencionado há pouco.

Sob esse mesmo horizonte geral, ao deslocarmos nosso olhar para su as regiões mais conflagradas, localizamos os ensaios sobre Stefan George, Richard Beer-Hoffmann, Charles-Louis Philippe e Paul Ernst, cujos títulos respectivos são “A nova solidão e sua lírica”, “Nostalgia e forma”, “O instante a as formas” e o já citado “Metafísica da tragédia”. Para o leitor que, como eu, se fia em traduções, talvez esteja aí a parte menos acessível do livro, dada a carência de documentos que permitiriam uma confrontação dos achados lukácsianos com suas fontes originais. Tomadas em bloco, são leituras que enfatizam a miséria da modernidade no que concerne à chance de realização de for mas artísticas substanciais, considerando-se a degradação dos laços que dariam à existência coletiva um sentido comum. Em especial, o último escrito traz uma conclusão bastante pessimista quanto às chances de reunião entre a vida vivida e as formas. Segundo tal conclusão, apenas o mundo fechado e perfeito das formas definitivas pode ria fornecer aos homens um referencial perene para a justificação de sua efêmera passagem pelo mundo da vida.

Assinalando o limite em que os dois pólos da problemática em estudo estão mais dissociados um do outro, essa metafísica da tragédia é seguida por sua consequência mais rigorosa, a defesa de uma atitude existencial próxima à singularidade dos santos dostoievskianos, chamada pelo russo de idiotia. Sem discutir se esta atitude revela uma adesão amorosa incondicional ao mundo ou sua exata antípoda, uma recusa odiosa incondicional ao mundo, notamos que somente um a perspectiva mística autoriza esta versão extrema do assunto, em que as formas são radicalmente separadas da realidade imanente. Quem sabe se esconde, nesta vasta oscilação entre as páginas calorosas sobre Sterne e as declarações niilistas do protagonista masculino do diálogo sobre a pobreza de espírito, uma cifra para o entendimento do percurso ulterior do pensador, em que a generosa inclinação a favor da realização histórica do socialismo contrasta com a aceitação irrestrita de formas absolutas de opressão?

Mas não vale concluir a exposição dessas impressões sem antes mencionar duas razões pelas quais est a edição de “A alma e as formas” parece-nos exemplar. Por um lado, o senso de oportunidade que preside a distribuição das notas ao texto lhes assegura o devido caráter informativo. Porém, a par do uso consciencioso deste expediente, o que mais se destaca na tarefa levada a excelente termo pelo tradutor é a qualidade literária da prosa, provando com folga que o prazer do texto não é, entre nós, uma graça perdida.

Rainer Patriota – Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (DEFIL/IFAC/UFOP.

Olímpio Pimenta – Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (DEFIL/IFAC/UFOP).

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Ícone | UFRGS | 2015

Icone Historia da Arte História & outras eróticas

Ícone (Porto Alegre, 2015-) é a primeira revista acadêmica brasileira criada com o objetivo específico de constituir um espaço para a divulgação da produção em História da Arte.

A Revista é uma publicação digital, vinculada ao Departamento de Artes Visuais e ao Bacharelado em História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A Revista Ícone tem periodicidade semestral, sendo a primeira edição de cada ano temática (a ser sempre divulgado na chamada) e a segunda livre.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2359-3792

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Outras eróticas e desejos possíveis (I) / Albuquerque: Revista de História / 2015

É com imensa satisfação que apresentamos a@s leitor@s de albuquerque: revista de história o dossiê Outras eróticas e desejos possíveis, conjunto temático de textos proposto com vistas à socialização e debate de pesquisas referentes ao amplo campo interdisciplinar dos estudos sobre a sexualidade e as performances de gênero em suas diferentes facetas e suportes.

Na história ocidental a sexualidade e sua relação como o poder, a política e a cultura, remontam à narrativa seminal do Gênesis. No Éden, o criador advertiu ao homem que deveria ter cuidado com a arvore da ciência do bem e do mal, pois se dela comesse haveria consequências negativas. Ali encontramos o cenário e o herói (Adão) originário da saga cristão-ocidental; faltava a vilã dessa história, e senhor resolveu criá-la, fazendo-lhe adjutora de Adão, Eva.

Quando o homem provou o fruto proibido no jardim do Éden, iniciou-se sua conturbada relação com seu corpo e sexualidade. Incitada pela serpente, Eva ousou tocar e provar da árvore que lhe parecia agradável e cujos frutos pareciam bons para serem comidos e os compartilha com Adão. Segunda a narrativa sagrada, o ato de Eva ocorreu em função da curiosidade e da ganancia humanas; os homens ansiavam se comparar a Deus e esperavam que isso ocorresse ao comer do fruto e conhecer o bem e mal; encontraram, entretanto, o castigo da decadência – oriunda do afastamento daquelas plagas e o impedimento de comer da árvore da vida, o que levaria à mortalidade.

Ao provar do fruto perceberam que estavam nus e se cobriram com a folha da figueira. O que antes, segundo a narrativa bíblica, era um mundo natural marcado pela relação harmoniosa entre o criador e a criatura, tornou-se uma experiência de dor, de negação do corpo, da sexualidade e do prazer sexual. O ato de desobediência foi punido severamente pelo criador que amaldiçoou a serpente, e condenou o homem a comer o pão com o suor do teu rosto até que retornasse ao pó e a mulher parir com dor os seus filhos e a desejar seu marido que a dominaria.

(Cumpre, aqui, abrir esse parêntesis, para retomar outra figura feminina, presente nas tradições babilônica e hebraica, associada a Adão: Lilith. Ela teria sido a primeira mulher, feita do mesmo barro que seu companheiro, não de sua costela. Em determinado momento, querendo ficar por cima de Adão durante o coito sexual, teria por isso sido expulsa do paraíso, perseguida por anjos. Enquanto fugia, copulava com animais e demônios, dando à luz outros seres. Teria se refugiado no mar, tornando-se sua senhora. É também associada à noite. Outra vez, a mulher é a transgressora, mas aqui, tendo “ofendido” seu companheiro com sua audácia erótica, sofre sozinha as consequências de seus atos.)

Retomando a passagem da expulsão de Adão e Eva, sobre qual se assenta a longa tradição ocidental de negação do corpo e do desejo, do exercício do poder patriarcal que subordina, explora e mata as mulheres e todos os demais sujeitos considerados inferiores ao homem branco, cristão e europeu. Foi, portanto, a partir da subordinação sexista, misógina e machista que se construiu o projeto de civilização no ocidente, bem como o projeto de colonização que se espalhou por diversas regiões do mundo, as quais, como apontou Michael Foucault, o cristianismo modificou o cenário, fazendo a ligação entre sexo e pecado da carne, distanciando-o da noção de desejo.

Foucault também afirma que a partir do século XVI, com reforço no XIX, o sexo foi incitado a se manifestar. O autor pensa a história do homem e do desejo e realiza uma genealogia de como o homem ocidental foi levado a se reconhecer como sujeito de desejo. A sociedade capitalista não obrigou o sexo a esconder-se. Contudo, ainda hoje, em pese o crescimento do consumo da pornografia, da prostituição (principalmente feminina), da divulgação de discursos de especialistas sobre o sexo e das experiências proporcionadas pelo ciberespaço, ainda lidamos mal com nosso corpo e nossa sexualidade. Ainda existem diversos tabus, sobretudo hoje, com a retomada conservadora em escala global que interdita a discussão sobre a sexualidade na família, na escola e no espaço público de maneira geral.

Assim ansiamos, nesse dossiê, verticalizar reflexões e debater teórica e metodologicamente, além da relação entre história e imprensa escrita, linguagens artísticas, produção virtual, os movimentos feministas, em suas diversas temporalidades e feições, a violência de gênero e os movimentos de afirmação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, bem como suas representações, a sexualidade e suas diversas expressões e representações (artísticas, corporais, sociais), notadamente aquelas divergentes da heteronormatividade e os embates sociais que de tais expressões surgem.

Além disso, debateremos ainda as novas possibilidades de expressão das performances de gênero, seja nas práticas sexuais efetivas ou ainda no ciberespaço. Há na contemporaneidade uma ênfase significativa nos valores e virtudes de instantaneidade e de descartabilidade, sendo importante a capacidade de abandonar rapidamente um sistema de valores e estilos de vida e construir imagens e personas que se moldem a diferentes situações, sobretudo nos ambientes virtuais, espaços nos quais ocorre uma reconfiguração das relações de sociabilidade, da sexualidade, dos corpos e das performances de gênero. Todas as dimensões da sexualidade são reelaboradas nesse ambiente. Corpos, prazeres, sensações eróticas são experimentadas numa nova relação corpo-máquina.

Organizamos esse dossiê em dois volumes, sendo o primeiro “Outras eróticas e desejos possíveis, volume I”, referente ao volume 7, número13 de albuquerque: revista de história, nos meses de janeiro a junho de 2015, o que segue.

Assim, no primeiro conjunto de textos @s autor@s voltam-se ao jornal O Lampião da Esquina, importante publicação sobre a cultura homoerótica no Brasil recente. Edvaldo Correa Sotana e Mellany de Oliveira Guimarães, no texto Ativismo político em traços de humor: as charges veiculadas no jornal O Lampião da Esquina (1978-1981), estabelecem relações entre imprensa escrita, ditadura militar brasileira, política e produção de charges, apresentando dados referentes ao levantamento de charges veiculadas no jornal entre os anos de 1978 e 1981 e indicando as charges como instrumento de ação política na resistência ao regime militar brasileiro. Débora de Sousa Bueno Mosqueira, no artigo “Então chegamos”: representações do feminino nas páginas d’O Lampião da Esquina (1978-1981), analisa as representações produzidas sobre a mulher por meio da categoria gênero no jornal que circulou no Brasil nos anos de 1978 até 1981. Já Victor Hugo da Silva Gomes Mariusso, no texto “Prendam, matam e comam os travestis”: a imprensa brasileira e seu papel na exclusão da população lgbt (1978-1981), busca compreender, a partir de algumas reportagens, como a imprensa brasileira constrói práticas de exclusão e destaca a importância d’O Lampião da Esquina não só como jornal alternativo, mas como ferramenta política que contribuiu para a visibilidade de tais questões em um período marcado pelo regime militar e por mudanças nas formas de atuações dos grupos tidos ali como “minoritários”.

Na segunda parte deste primeiro volume do dossiê “Outras eróticas e desejos possíveis”, os textos focalizam as reflexões acerca da sexualidade e das performances de gênero em suas múltiplas dimensões e representações estéticas, e ainda o gênero como categoria de análise e definidor de grupos sociais e seus movimentos.

Andrew Feitosa do Nascimento, no artigo Os primeiros grupos de afirmação homossexual no brasil contemporâneo, mapeia os grupos representativos do movimento lgbt no Brasil, bem como suas estratégias de visibilidade, a partir de levantamento realizado por meio da bibliografia especializada e dos sítios voltados à temática na rede mundial de computadores. Leonardo Nascimento, no texto Qual ideologia de gênero? A emergência de uma teoria religiosa fundamentalista e seus impactos na democracia, analisa e desconstrói os discursos religiosos fundamentalistas cristão e político-jurídico que circularam na mídia nas vésperas da aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), em 2014, por deputados conservadores, mobilizados por fundamentalistas cristãos dentro e fora do campo da representação política, contra o que foi definido por eles como “ideologia de gênero”. Em A mecanização do prazer: sexualidade e corpo no ciberespaço, Aguinaldo Rodrigues Gomes procura discutir o processo de mecanização do prazer propiciado pelo advento da Internet, identificando uma nova sociabilidade e uma reconfiguração dos corpos no ambiente virtual. Para tanto, recorro a depoimentos colhidos nos sites de “bate-papo”, buscando situá-los no debate teórico acerca da pós-modernidade. Finalmente, Miguel Rodrigues de Sousa Netto, no texto Miditiatização, representações, violência: paradoxos das experiências lgbt no Brasil contemporâneo, nos apresenta uma reflexão sobre as experiências da população formada por transgêneros, lésbicas, bissexuais e gays na história recente e presente do Brasil, indicando o paradoxo da visibilidade / midiatização e a permanência da violência. O autor manifesta sua perplexidade diante manutenção da violência em suas diversas formas, e ainda a manutenção de redes de sociabilidade e encontros eróticos e a midiatização / representação dos / sobre a população lgbt, apontando, finalmente, para a necessidade de ruptura com a cultura hegemônica heteronormativa e mantenedora do binarismo de gênero e da violência que disso advém.

Espera-se, por fim, que @s leitor@s apreciem as presentes reflexões que reafirmam a transversalidade das eróticas e das performances de gênero na sociedade contemporânea, bem como uma cultura que nega a violência de gênero em suas diversas formas e repõe as experiências libertárias dos usos dos corpos, de suas expressões e sociabilidades.

Para além, na Seção de Artigos Livres, Bruno Roberto Nantes Araujo, no artigo intitulado A historicidade do TILS – Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais: do anonimato ao reconhecimento, desenvolve sua análise histórica do aparecimento e transformações do sujeito tradutor e intérprete de Língua de Sinais, abordando também a legislação referente ao mesmo no Brasil. Mais uma vez, diferença e inclusão entram na pauta do dia.

Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: miguelrodrigues.snetto@gmail.com

Aguinaldo Rodrigues Gomes – Doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do Curso de História do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: aguinaldorod@gmail.com


SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.7, n.13, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Outras eróticas e desejos possíveis – volume II / Albuquerque: Revista de História / 2015

É com imensa satisfação que apresentamos a@s leitor@s de albuquerque: revista de história o dossiê Outras eróticas e desejos possíveis, conjunto temático de textos proposto com vistas à socialização e debate de pesquisas referentes ao amplo campo interdisciplinar dos estudos sobre a sexualidade e as performances de gênero em suas diferentes facetas e suportes.

Na história ocidental a sexualidade e sua relação como o poder, a política e a cultura, remontam à narrativa seminal do Gênesis. No Éden, o criador advertiu ao homem que deveria ter cuidado com a arvore da ciência do bem e do mal, pois se dela comesse haveria consequências negativas. Ali encontramos o cenário e o herói (Adão) originário da saga cristão-ocidental; faltava a vilã dessa história, e senhor resolveu criá-la, fazendo-lhe adjutora de Adão, Eva.

Quando o homem provou o fruto proibido no jardim do Éden, iniciou-se sua conturbada relação com seu corpo e sexualidade. Incitada pela serpente, Eva ousou tocar e provar da árvore que lhe parecia agradável e cujos frutos pareciam bons para serem comidos e os compartilha com Adão. Segunda a narrativa sagrada, o ato de Eva ocorreu em função da curiosidade e da ganancia humanas; os homens ansiavam se comparar a Deus e esperavam que isso ocorresse ao comer do fruto e conhecer o bem e mal; encontraram, entretanto, o castigo da decadência – oriunda do afastamento daquelas plagas e o impedimento de comer da árvore da vida, o que levaria à mortalidade.

Ao provar do fruto perceberam que estavam nus e se cobriram com a folha da figueira. O que antes, segundo a narrativa bíblica, era um mundo natural marcado pela relação harmoniosa entre o criador e a criatura, tornou-se uma experiência de dor, de negação do corpo, da sexualidade e do prazer sexual. O ato de desobediência foi punido severamente pelo criador que amaldiçoou a serpente, e condenou o homem a comer o pão com o suor do teu rosto até que retornasse ao pó e a mulher parir com dor os seus filhos e a desejar seu marido que a dominaria.

(Cumpre, aqui, abrir esse parêntesis, para retomar outra figura feminina, presente nas tradições babilônica e hebraica, associada a Adão: Lilith. Ela teria sido a primeira mulher, feita do mesmo barro que seu companheiro, não de sua costela. Em determinado momento, querendo ficar por cima de Adão durante o coito sexual, teria por isso sido expulsa do paraíso, perseguida por anjos. Enquanto fugia, copulava com animais e demônios, dando à luz outros seres. Teria se refugiado no mar, tornando-se sua senhora. É também associada à noite. Outra vez, a mulher é a transgressora, mas aqui, tendo “ofendido” seu companheiro com sua audácia erótica, sofre sozinha as consequências de seus atos.)

Retomando a passagem da expulsão de Adão e Eva, sobre qual se assenta a longa tradição ocidental de negação do corpo e do desejo, do exercício do poder patriarcal que subordina, explora e mata as mulheres e todos os demais sujeitos considerados inferiores ao homem branco, cristão e europeu. Foi, portanto, a partir da subordinação sexista, misógina e machista que se construiu o projeto de civilização no ocidente, bem como o projeto de colonização que se espalhou por diversas regiões do mundo, as quais, como apontou Michael Foucault, o cristianismo modificou o cenário, fazendo a ligação entre sexo e pecado da carne, distanciando-o da noção de desejo.

Foucault também afirma que a partir do século XVI, com reforço no XIX, o sexo foi incitado a se manifestar. O autor pensa a história do homem e do desejo e realiza uma genealogia de como o homem ocidental foi levado a se reconhecer como sujeito de desejo. A sociedade capitalista não obrigou o sexo a esconder-se. Contudo, ainda hoje, em pese o crescimento do consumo da pornografia, da prostituição (principalmente feminina), da divulgação de discursos de especialistas sobre o sexo e das experiências proporcionadas pelo ciberespaço, ainda lidamos mal com nosso corpo e nossa sexualidade. Ainda existem diversos tabus, sobretudo hoje, com a retomada conservadora em escala global que interdita a discussão sobre a sexualidade na família, na escola e no espaço público de maneira geral.

Assim ansiamos, nesse dossiê, verticalizar reflexões e debater teórica e metodologicamente, além da relação entre história e imprensa escrita, linguagens artísticas, produção virtual, os movimentos feministas, em suas diversas temporalidades e feições, a violência de gênero e os movimentos de afirmação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, bem como suas representações, a sexualidade e suas diversas expressões e representações (artísticas, corporais, sociais), notadamente aquelas divergentes da heteronormatividade e os embates sociais que de tais expressões surgem.

Além disso, debateremos ainda as novas possibilidades de expressão das performances de gênero, seja nas práticas sexuais efetivas ou ainda no ciberespaço. Há na contemporaneidade uma ênfase significativa nos valores e virtudes de instantaneidade e de descartabilidade, sendo importante a capacidade de abandonar rapidamente um sistema de valores e estilos de vida e construir imagens e personas que se moldem a diferentes situações, sobretudo nos ambientes virtuais, espaços nos quais ocorre uma reconfiguração das relações de sociabilidade, da sexualidade, dos corpos e das performances de gênero. Todas as dimensões da sexualidade são reelaboradas nesse ambiente. Corpos, prazeres, sensações eróticas são experimentadas numa nova relação corpo-máquina.

Organizamos esse dossiê em dois volumes, sendo o primeiro “Outras eróticas e desejos possíveis, volume I”, referente ao volume 7, número 13 de albuquerque: revista de história, nos meses de janeiro a junho de 2015, e o segundo volume (referente ao volume 7, número 14, nos meses de julho a dezembro de 20015) o que segue.

Assim, no primeiro conjunto de textos @s autor@s tomam como objeto de suas análises a produção literária. No primeiro artigo deste segundo volume do dossiê, Dilemas sentimentais e identidade homoerótica: uma leitura de Frederico Paciência de Mário de Andrade, Peterson José de Oliveira se debruça sobre o conto de Mário de Andrade escrito e reescrito por dezoito anos, no qual a amizade e o homoerotismo se desenrolam entre dois adolescentes. Um libelo ao desejo. Flávia Benfatti, em Identidade de gênero: a masculinidade hegemônica em Tropic of Capricorn, toma a obra de Henry Miller, publicada em 1961 (traduzida no Brasil em 1975) para acionar as categorias de sexo, gênero, sexualidade como construções sociais, analisando, em especial, o primado da masculinidade. George de Santana Mori, no artigo Queer, identidade e masculinidade em Giovanni, de James Baldwin, busca interpretar as principais personagens do romance publicado em 2008 a partir das questões de gênero e da teoria queer, notadamente a partir da construção identitária das masculinidades homossexual e heterossexual. O embate hegemonia versus diferença permeia sua narrativa. Encerrando esse primeiro conjunto de textos dedicados à literatura está o artigo de João Carlos Nunes Ibanhez, Cartografias homoeróticas: uma leitura de Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu. O autor, interdisciplinarmente, busca compreender a produção de espaços na obra literária de Caio Fernando Abreu, bem como as formas de apropriação de parte destes espaços, especialmente os marginais, por determinados grupos sociais, entre eles os homossexuais, transformando a margem em seu locus de atuação. Literatura, espacialidade e tensões sociais são o foco de Ibanhez.

No segundo conjunto de artigos que compõe o segundo volume do dossiê Outras eróticas e desejos possíveis, encontra-se o texto de Robson Pereira da Silva, “Nenhuma malícia será castigada”: eróticas no corpo e no palco de Ney Matogrosso, no qual o autor analisa aspectos do espetáculo Mato Grosso, de 1982, de Ney Matogrosso, compreendendo-o na conjuntura de sua produção, ou seja, no Brasil da abertura, da decadência da ditadura militar estabelecida por meio do Golpe de 1964, trazendo à baila os sujeitos marginais tornados arquétipos pelo artista, tais como índios, caipiras e malandros, carnavalizados, erotizados. Antonio Ricardo Calori de Lion, no artigo Ivaná: a grande dúvida no Teatro de Revista dos anos 1950, apresenta um belo estudo sobre as ambiguidades da representação de gêneros da transformista Ivaná, nos anos 1950, no Teatro de Revista da Companhia de Walter Pinto. A repercussão da dúvida sobre a performatividade de gênero do / a artista foi objeto de matérias na imprensa escrita, de capas de revista. Compreender esse impacto no Brasil dos anos 1950 é uma tarefa importante para o conjunto dos estudos Gays, Lésbicos e Transgênicos da atualidade. Encerrando o dossiê, Diego Aparecido Cafola, no texto Madame para uns, Satã para outros: uma leitura do corpo marginal em Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz, busca, a partir da interseccionalidade, compreender a personagem criada por Aïnouz e vivida nas telas pelo ator Lázaro Ramos, João Francisco dos Santos, e sua transformação em Madame Satã, uma das lendas da boemia e da malandragem cariocas. Aqui, a violência tornada linguagem, a navalha transformada em resposta.

Espera-se, por fim, que @s leitor@s apreciem as presentes reflexões que reafirmam a transversalidade das eróticas e das performances de gênero na sociedade contemporânea, bem como uma cultura que nega a violência de gênero em suas diversas formas e repõe as experiências libertárias dos usos dos corpos, de suas expressões e sociabilidades.

Para além, na Seção de Artigos Livres, Cássio Rodrigues da Silveira, no artigo intitulado Crise do regime de historicidade moderno, individualização e confiança: entre os movimentos e as mobilizações, analisa o tipo de indivíduo e de individualidade que têm sido produzidos na contemporaneidade, a partir de proposições de R. Koselleck e F. Hartog, avaliando suas implicações para a efetivação dos movimentos sociais. Mais uma vez, indivíduo, coletividades, diferença e tensionamentos sociais entram na pauta do dia.

Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: miguelrodrigues.snetto@gmail.com

Aguinaldo Rodrigues Gomes – Doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do Curso de História do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: aguinaldorod@gmail.com


SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.7, n.14, 2015. Acessar publicação original [DR]

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De segunda a um ano – CAGE (AF)

CAGE, John. De segunda a um ano. Tradução Rogério Duprat; revista por Augusto de Campos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013. Resenha de: VEIGA, Milton Castelli. Artefilosofia, Ouro Preto, n.16, jul., 2014.

O livro De segunda a um ano é uma coleção de ensaios do compositor norte-americano John Cage (1912-1992). O primeiro e único livro do compositor traduzido para o português, graças ao pioneirismo de Rogério Duprat, ganhou em 2013 sua segunda edição; sendo que a primeira fora publicada pela Hucitec em 1985 por ocasião da visita do compositor à 18ª Bienal de São Paulo.

John Cage (John Milton Cage Jr.) foi um dos compositores mais controversos do século XX e o que mais exerceu influência na música do pós-guerra. Foi um dos criadores da música concreta e o primeiro artista a fazer um happening. O principal ícone da chamada música experimental traz ainda o título de ter sido o inventor do piano preparado 1. Viveu de maneira muito própria as antinomias estéticas do século; sua educação musical se deu num momento delicado da história da música ocidental, quando a linguagem da tradição, ou seja a linguagem tonal, estava sendo sistematicamente abandonada. Alguns sistemas referenciais foram projetados para sua substituição, e apesar de proféticos e promissores muitos deles estavam longe de se estabelecer como consensuais ou caminho seguro a ser trilhado; ademais, nenhum desses sistemas de composição sequer ultrapassou duas gerações de compositores. Cage iniciou sua carreira de compositor utilizando o sistema dodecafônico, seguindo, assim, os passos de seu professor Arnold Schoenberg, mas foi a partir de 1938 na Cornish School of Arts, quando veio a desenvolver trabalho com o coreografo Merce Cunningham, que seu ímpeto pelo novo alçou voos pelo experimentalismo. Sua teoria acerca do silêncio no processo de criação deu-lhe projeção internacional – chegando, inclusive, a dar nome a seu primeiro livro, publicado em 1961. O uso do acaso no processo da criação também foi fundamental na sua carreira. Cage não se limitou ao ofício de compositor; era também crítico, filósofo, poeta, artista gráfico, pintor e designer. Em 1946, através do músico indiano Gita Sarabhai, John Cage entrou em contato com a filosofia oriental e a partir daí sua concepção de mundo se transformou, transformando também seu entendimento sobre a estrutura e a compreensão musical. São emblemáticas desse momento suas Sonatas e Interlúdios de (1946-8) onde se fazem presente as oito emoções permanentes da estética indiana. Em fins da década de 40, o compositor se aproxima das teorias hindus e do Zen Budismo donde passa a cultivar a estética do silêncio. De Segunda a um ano faz parte desse momento, onde o compositor se põe a refletir sobre outras possibilidades de compreender o mundo. O próprio título do livro é fruto de suas concepções acerca do acaso, como o autor demonstra já na introdução. Diferente de seu primeiro livro, Silence, este se dedica menos a assuntos propriamente musicais do que temas sociais ligados ao pensamento de N. O. Brow n, Marshall McLuhan, Buckminster Fuller, Marcel Duchamp e Jasper Johns. Durante a redação dos textos que enfeixam o livro, o compositor depositou tanto interesse nas teorias sociais que chegou a refutar o próprio fazer musical, o qual, aliás, interessava-lhe cada vez menos, pois via no compositor uma figura autoritária. De fato, essa postura não harmonizava com os princípios anárquicos de Cage. Felizmente logo após a conclusão do livro, Cage volta a dedicar-se à composição. A editora Cobogó, Rio de Janeiro, nos presenteou com um trabalho primoroso, tanto pela beleza da edição, como pela dedicada prudência na preservação da concepção gráfica, nada convencional, utilizada pelo autor. A presente edição se coloca à altura do projeto de Cage, provocando e estimulando os nossos sentidos de percepção. Traz dois prefácios assinados pelo poeta Augusto de Campos. O primeiro com o título CAGE: CHANCE: CHANGE fez parte da primeira publicação brasileira de 1985. Esse texto é de uma beleza tão rara quanto o próprio restante do livro. O poeta dispôs-se da licença poética para apresentar, através de sua incrustada técnica concretista, o percurso criativo de John Cage até a década de 80. Para essa nova edição, Campos assinou uma segunda introdução, onde complementa o percurso do compositor até seu falecimento em 1992.

De segunda a um ano é um livro-mosaico formado por artigos, manifestos, conferências, proposições, pensamentos e aforismos. Uma miscelânea de textos construídos de modo maravilhosamente não linear. Um livro audiovisual, diria Campos. Os textos foram concebidos entre 1961 e 1967 – com exceção de Conferência na Juilliard, Conferência sobre o compromisso, e algumas histórias englobadas sob o título Como passar, chutar, cair e correr, que remontam à década de 1950. No Antepapo e Fim de Papo o autor descortina o enigma do título do livro e mostra-nos a partir daí sua capacidade de lidar com o acaso e o indeterminado como uma estética anárquica da vida. Alguns textos obedeceram às operações do acaso, obtendo dessas elaboradas operações a ordenação das ideias, a quantidade de palavras, a formatação e o tipo gráfico. Nessa linhagem está o texto Diário: como melhorar o mundo (você só tornará as coisas piores) em que o autor estreita os laços com os projetos de Fuller, principalmente com a teoria do “comprehensive design”; ainda nessa linha temos a Conferência sobre o compromisso e o Diário: audiência. O texto Duas proposições sobre Ives também chama a atenção pelo projeto gráfico, pois o autor incorpora à linguagem escrita alguns códigos de expressão musical. O Papo nº 1 também se destaca pela sua estrutura gráfica. Esse modo de conceber o texto, onde os meios de comunicação exercem influência na percepção dos sentidos, é resultado do contato que Cage teve com a obra de McLuhan. Os leitores que têm interesse no pensamento musical do compositor poderão se deleitar com os textos Diário: seminário de música de Emma Lake, Seriamente Vírgula!, Happy New Ears, Daqui, para onde vamos?, Conferência na Juilliard, Ritmo etc., e no Como passar, chutar, cair e correr. Já o texto Mosaico é um interessante comentário crítico sobre as cartas de Arnold Schoenberg selecionadas por Erwin Stein.

De cativante interesse são os textos 26 proposições sobre Duchamp, Jasper Johns: histórias e ideias, Miró na terceira pessoa: 8 proposições, Nam June Paik: um diário onde o autor expõem sua relação com o projeto artístico desses seus coetâneos. Todos os textos são precedidos por uma pequena introdução, onde o autor explica a finalidade do texto e quando necessário, explica a técnica para a sua leitura. Enfim, o livro surge como um projeto de “renuncia à competição” e um apelo à “iluminação do mundo” bem aos moldes de Buckminster Fuller; e apresenta-nos um artista curioso e observador, que buscou interpreta r o mundo pelo viés social e anárquico. Cabe-nos, ainda, ressaltar o notório empreendimento do maestro Rogério Duprat em traduzir esse livro poucos anos depois de sua publicação original. Certo é que esse feito é uma das inegáveis contribuições que Duprat concedeu à música brasileira e à reflexão musical da vanguarda brasileira. Sem adentrarmos em detalhes sobre a formação musical e intelectual de Rogério Duprat, quero sublinhar o seu pioneirismo em empreender tal tradução que, diga-se de passagem, acusam não só o seu domínio das poéticas e estéticas musicais do século XX, mas sua intimidade com a linguagem prosaica e poética ao “recriar” as aventuras de Cage. Enfim, De segunda a um ano é um livro provocativo, divertido e de rara beleza onde podemos encontrar as principais inquietações do compositor, o que já se manifesta a partir de sua dedicatória: “Para nós e todos aqueles que nos odeiam, para que os EUA possam se tornar simplesmente uma outra parte do mundo, nem mais nem menos.” -John Cage.

Nota

1 O papel do compositor no trato do piano preparado foi fundamental para a compreensão desse instrumento como forma de expressão, porém não podemos desconsiderar a iniciativa do compositor austro-boêmio Heinrich Ignaz Franz von Biber (1644-1704), que utilizou de técnica semelhante na obra Battalia à 10 D-dur, C.61 (1673).

Milton Castelli Veiga-Graduado em música pela Universidade Cruzeiro do Sul/SP e mestrando em música pela UFRJ.

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William Shakespeare: as canções originais de cena – ZWILLING (AF)

ZWILLING, Carin. Colaboração de Leonel Maciel Filho e Andrea Kaiser. William Shakespeare: as canções originais de cena. São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: PATRIOTA, Rainer; BESSA, Robson. Artefilosofia, Ouro Preto, n.16, jul., 2014.

O livro William Shakespeare: as canções originais de cena, de Carin Zwilling (com a colaboração de Leonel Maciel Filho e Andrea Kaiser), é resultado da pesquisa de doutorado concluída pela autora no Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo sob orientação do prof. Dr. John Milton. Desde já, registre-se a importância crucial do livro, que resgata para o público brasileiro uma faceta raríssima conhecida e comentada do teatro shakespeariano, mas que nem por isso deixa de ser imprescindível a todos aqueles que buscam uma compreensão mais ampla d a arte deste que é o mais admirado artista inglês de todos os tempos. Imprescindível, uma vez que n o teatro de Shakespeare, como deixa bem claro o livro de Carin Z willing, a música não se restringia a uma função meramente decorativa, mas antes operava por dentro da trama e com um impacto estético-catártico decisivo. William Shakespeare: as canções originais de cena, desdobra-se ao longo de s eis capítulos. No primeiro, intitulado “ Sobre William Shakespeare: uma visão panorâmica ”, a autora traça um breve painel da vida e da obra do dramaturgo, oferecendo um quadro cronológico de suas peças em que informa o gênero, as possíveis fontes literárias de que Shakespeare teria se servido, e os principais personagens de cada uma ; o capítulo, cuja brevidade condiz com seu caráter preambular, termina com um interessante comentário de John Dryden – extraído de seu Essay of Dramatic Poesy (1668) – e uma linha do tempo situando os principais eventos da vida de Shakespeare no contexto político e literário da época. O segundo capítulo, “ O teatro inglês ”, da autoria de Leonel Maciel Filho, versa sobre a construção dos teatros londrinos durante os períodos elisabetano e jacobino. Nele, ficamos sabendo que o primeiro teatro moderno fora construído em 1576 por James Burbage, um “ simples ” marceneiro e ator, que custe ara sozinho todo o empreendimento e, com um a ousadia que é tão própria ao homem do Renascimento, veio a fundar aquele que provavelmente foi o primeiro teatro popular da Europa. Por problemas contratuais, o teatro de Burbage teve de se r demolido, mas a madeira empregada em sua construção servi ria para a edificação do famoso Globe – o teatro para o qual Skakespeare veio a escreve r grande parte de suas peças. Leonel Maciel Filho finaliza seu capítulo com uma discussão s obre a retomada do teatro clássico durante o Renascimento. Seguindo as orientações de Vitrúvio em seu De Architectura sobre acústica e teoria da música, os arquitetos do Renascimento tiveram grande preocupação com a questão sonora. Segundo Leonel, essa mesma preocupação norteou a construção d o teatro shakespeariano, pensado mais em função do ator (e do músico) que do cenógrafo. Em “ A música na época de William Shakespeare ”, Carin Zwilling volta à cena e, nesse terceiro ato de sua obra, atua com excelente desenvoltura. De início, descreve a situação social dos músicos e seus divers os papéis, sobretudo o de músico de corte, abordando em seguida – com o auxílio de interessantes ilustrações de época – os

instrumentos mais utilizados, como o alaúde, o virginal, a s viola s da gamba, as flautas, sacabuxas etc. Sua exposição culmina n uma importante exposição conceitual sobre a canção moderna. Nascida da busca pelo resgate da música grega e em oposição ao “artificialismo” da polifonia renascentista, a canção se pauta na expressão de afetos embutidos no texto e elaborados pela melodia. Depois de incursionar pelas terras italianas e esclarecer o conceito de seconda prattica, formulado por Claudio Monteverdi, Zwilling destaca a figura de Thomas Morley – importante madrig alista do período elisabetano, autor de duas canções para o teatro de Shakespeare e de um manual de composição (que é brevemente comentado pela autora). Com o quarto capítulo, “ A música na obra de William Shakespeare ”, chegamos a um momento crucial do livro de Carin Zwilling.

Nele, a autora fornece uma série de dados sobre as canções n as peças de Shakespeare e nos instrui sobre as inúmeras referências musicais feitas pelo dramaturgo, não apenas as poéticas, mas também as técnica s – as indicações para a execução de música de fundo ou para a entrada em cena dos músicos. Discute – a partir das categorias apresentadas pelo renomado pesquisador em Shakespeare Frederick W. Sternfeld – as diversas funções que cabia à música desempenhar dentro da trama e no palco, a exemplo da “música mágica”, que ambientava situações idílicas ou oníricas como aquela em que as fadas ninam Titânia em Sonho de uma Noite de Verão. Às quatro categorias de Sternfeld, Zwilling acrescenta a categoria de “música das esferas”, observando que não só em Shakespeare, mas no teatro da época em geral, o conceito pitagórico de “harmonia das esferas” circulava como um signo cósmico a traduzir a vida e a arte. Segue-se uma descrição das formas de música vocal presentes na dramaturgia shakespeariana, como o carol e o catch, o madrigal, a balada – o gênero predileto de Shakespeare – e a lute air, esta última intimamente associada à obra do ilustre compositor e alaudista John Dowland. O capítulo termina com um quadro das canções utilizadas por Shakespeare, indicando não só a peça da canção, mas também o nome do compositor, o gênero musical a que pertence e sua localização específica na peça (ato e cena). O quinto capítulo, “As canções originais de cena de William Shakespeare”, é o coração do livro de Carin Zwilling. Fruto de cinco anos de pesquisa, ele traz comentários esclarecedores sobre 3 2 canções d e Shakespeare (apenas 33 foram encontradas de um total de 72), contendo ainda a transcrição das partituras e a tradução dessas canções – feita pela autora em colaboração com Leonel Maciel Filho e Andrea Kaiser. Trata-se de um material precioso e do maior interesse para músicos – especialmente aqueles que se dedicam ao repertório antigo –, gente d e teatro e apreciadores de Shakespeare e da literatura em geral. O livro termina com um capítulo que é, na verdade, um apêndice – “Biografia dos compositores das canções de Shakespeare”. Tem-se aqui dez verbetes extraídos do The New Grove Dictionary of Music and Musicians traduzidos por Leonel Maciel Filho. A despeito de seu caráter genérico, o material cumpre sua função como uma fonte de informação para estudantes de música, pesquisadores e curiosos em geral. Não há dúvida de que o livro de Carin Zwilling é digno da maior consideração, sobretudo pelo esforço musicológico de transcrição e análise das canções. Na verdade, ao chamar a atenção para o fato de que o teatro de Shakespeare possuía canções e muita música de fundo, a autora nos convida a reformular nosso ponto de vista acerca d e uma obra que tem sido apreciada sobretudo como literatura, mas que, em sua origem, é mais que isso – é teatro, ou seja, palco, com atores, cantores e instrumentistas. Pela importância da temática e do livro em si mesmo, faz falta, no entanto, uma boa apresentação ou mesmo um prefácio que, em chave estética e musicológica, fizesse as devidas honras ao livro.

Observe-se, por fim, que a autora, que também é alaudista, nos dá um excelente exemplo de que o trabalho do músico não precisa se confinar à lida da performance, podendo – ou mesmo devendo – se prolongar e potencializar pela atividade intelectual e investigativa.

Rainer Patriota-Graduado em música pela UFPB e doutor em filosofia pela UFMG; professor e pesquisador pelo PRODOC junto ao IFAC/UFOP.

Robson Bessa-Graduado em música pela UFMG e doutorando em literatura pela UFMG.

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A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950) / Durval M. Albuquerque Jr.

Podemos considerar Luiz Gonzaga como um dos muitos inventores do Nordeste, demonstrado em suas canções como lugar de tradições, do homem sertanejo sofredor em sua peleja cotidiana, enfrentando a seca, labutando na roça, lutando contra as agouras da vida. Esse mesmo sertanejo que se diverte e se encontra nos espaços das feiras nordestinas, um dos principais lugares de sociabilidade do homem nordestino, do comércio, da compra e venda “de tudo que há no mundo” e que “nela tem pra vender”.

Essa imagem caricata do Nordeste e do homem nordestino é refletida no último livro do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920 – 1930)3, vencedor do concurso Silvio Romero 2012 IPHAN/Conselho Nacional do Folclore e Cultura Popular.4 Atualmente, o autor é colaborador da Universidade Federal de Pernambuco e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Ao contrário do que se vê, se diz e se mostra, o autor propõe novas chaves de leituras e pesquisa sobre o Nordeste, espaço construído e delimitado já discutidos em outras obras.5 Como um lugar inventado a partir de um discurso que se repete hoje nos diversos meios de comunicação ao retratar, por exemplo, o Festival de Quadrilhas Juninas do Nordeste, ou Festival de Quadrilhas Juninas da Rede Globo Nordeste, ou ainda o Nordestão de Quadrilha, só para citar alguns casos, em que se representa a cultura legitimada por um discurso fabricador da imagem nordestina.

Em imagens, signos, são mitos de um lugar fabricado a partir do discurso de agentes que assumiram um posicionamento referente ao seu espaço regional. Conforme o estudo de Durval Muniz, que também teve motivos iniciais a partir de sua própria trajetória biográfica, ao trabalhar durante a adolescência em uma feira na cidade de Campina Grande no estado da Paraíba, e como homenagem a sua terra natal, por intermédio das reminiscências do espaço da feira como lócus privilegiado das muitas formas e significados elaborados sobre a cultura nordestina. A feira “da balburdia, do falario […] do aglomerado de pessoas, pela multiplicidade de vozes […] do mercado dos mais disparatados artefatos para serem consumidos” (p. 24) como cantado pelo rei do baião, Luiz Gonzaga.

Munido de um vasto referencial teórico,6 as questões sobre a fabricação do folclore e da cultura no nordeste, em um recorte temporal que não se restringe apenas as décadas de 1920 a 1950, mas que margeiam por temporalidades anteriores, num processo que se construiu desde o final do século XIX, época da crise dos setores agrários e a quebra do sistema escravista para o regime de trabalho livre no Brasil. Essa será umas das teses propostas por Albuquerque que pensa as manifestações folclóricas, os conceitos de cultura não como algo dado, mas como algo construído, desta forma, critica amplamente a historiografia que aborda o folclore e a cultura popular que “tende-se a confundir o conceito e a coisa, o conceito e a materialidade, o conceito e a empiricidade, o conceito e a forma” (p. 27).

Para Durval é necessário perceber a diferença entre conceitos e formas para se proceder a análise da operação discursiva que articula um e outro. Deste modo recorre aos estudos de Derrida (Pensar a desconstrução) e Foucault (Arqueologia do saber) para questionar a ingenuidade dos historiadores que faz com que normalmente confundam as empiricidades com os conceitos que as significam.

O livro é dividido em seis capítulos. No primeiro, “condições históricas de emergência”, o autor faz um inventário do processo de constituição cultural nordestina, como um novo objeto que será construído a partir de práticas e discursos, sejam eles da elite ou dos segmentos das camadas tidas como populares.

Ao delimitar o final do século XIX e início do XX como marco de profundas mudanças sociais no Brasil, surge nesse momento os primeiros usos da noção de cultura nordestina. Com o surgimento da sociedade burguesa e todas as distinções dos modos de vida que esta proporcionou, apresentando novos padrões de comportamento, nasce então uma “nostalgia pelo retorno a essa ordem social, vista como menos violenta, como mais harmônica e mais justa, e será partilhada por setores das camadas populares e das elites letradas, o que contribui para o encontro entre eles e com esse encontro a emergência da ideia de folclore ou de cultura popular” (p. 44).

As relações entre o regional e o nacional a partir da cultura legitimam-se quando o Estado Nacional assume com políticas econômicas as manifestações identitárias de cada região, sobretudo, se tomarmos como exemplo a partir do Estado Novo na década de 1930 e a criação de órgãos de proteção do patrimônio nacional.

No segundo capítulo aborda os mitos de origem da cultura nordestina interligada à construção da ideia de cultura brasileira quando se pensou um projeto de constituição da nação. Para o mito de origem do folclore ou da cultura nordestinos, e ao que parece o autor não faz distinção dos conceitos, toma como base a produção de folcloristas regionais. Uma bibliografia que aponta as primeiras obras que trataram da cultura nordestina ainda no século XIX, como as de Juvenal Galeno, Couto de Magalhães e Celso de Magalhães.

Os mitos de origem para os estudos de folclore e cultura popular estiveram atrelados a duas tradições influenciadoras nos estudos de folclore nordestino. Uma de inspiração romântica que, segundo o autor, estabeleceu a relação entre a cultura nacional e cultura popular, dando origem ao conceito de povo. No Brasil, Durval Muniz aponta o folclorista Juvenal Galeno como um dos precursores ao fazer uma genealogia dos estudos em torno da cultura nordestina. A segunda tem como representante Silvio Romero, de características positivista e evolucionista. Tais paradigmas tiveram grande recepção ao longo da produção folclórica no Brasil, tendo sido esses intelectuais os primeiros a fazerem uma releitura da bibliografia internacional, adaptando-as às pesquisas locais sobre a cultura do povo.

Tais tradições foram marcantes ao produzirem constante material para a elaboração da noção de cultura nordestina. A temática será retomada e explorada nos capítulos 04 e 05 quando o autor faz um levantamento dos dados biográficos dos produtores dessas obras e as fontes utilizadas como legítimas para a fabricação do folclore.

Os Acontecimentos no capítulo três referem-se aos casos e acasos dos primeiros autores que empregaram a denominação “Nordeste”, “Nordestino”. É importante destacar que o livro de Durval Muniz insere-se no contexto de análise da cultura escrita, por isso, não foge de suas interpretações do processo de fabricação da cultura nordestina, os procedimentos que, através da literatura regional, definiriam temáticas desta cultura.

É no processo de construção das obras e seus usos que o autor se debruça ao analisar os contextos de produção do livro do folclorista Leonardo Mota, publicado em 1921, com o subtítulo “poesia e linguagem do sertão cearense” e que em edição posterior a obra é apresentada como “poesia e linguagem do sertão nordestino”. Enquanto análise histórica, é preciso reconstruir as variações que diferenciam os espaços legíveis, ou seja, as formas discursivas e materiais, as leituras compreendidas como práticas concretas e como procedimento de interpretação7.

Ao tomar como análise a produção da obra de Leonardo Mota, Durval demonstra as variações que implicaram na ideia de nordeste incorporada nas obras dos folcloristas. A mudança do subtítulo deu-se, segundo Albuquerque, após encontros e debates que se firmaram em torno do Centro Regionalista do Nordeste criado no Recife durante a década de 1920 e que passou a disseminar essas questões. Outro autor é Gustavo Barroso e também o sergipano João Ribeiro que adota em livro publicado a denominação “Norte” para se referir ao que seria o espaço da região como um todo e, explicitamente, refira-se a “Nordeste” para designar a área de ocorrência das secas (p. 106).

Deste modo, percebemos o folclore em seu momento de fabricação, como algo inventado pelo próprio folclorista, num processo de (re) invenção, de criação (p.115). Ao citar diversos acontecimentos que dão conta da fabricação do folclore enquanto elemento constituinte de uma cultura nordestina, demonstrada a partir de autores regionalistas, onde definem seu lócus de atuação no espaço nordestino, para Durval Muniz, é “entre os anos 20 e 30 do século passado, que a emergência da ideia da existência de um folclore nordestino, de uma cultura nordestina, se afirma paulatinamente, até se tornar uma verdade inquestionável, um fato do qual ninguém mais escapa” (p. 117). O autor, assim, demonstra “genealogias de atitudes, práticas, ditos e escritos que vão paulatinamente dando forma a este novo objeto para o saber que é: o folclore nordestino, a cultura do Nordeste, mais tarde nomeados de cultura popular nordestina” (p. 117).

No capítulo 4, Os inventores, é lançado um ensaio de prosopografia dos letrados que adotaram os conceitos de folclore e de Nordeste. A prosopografia, segundo Giovanni Levi, ocorre nos casos em que as biografias individuais “ilustram os comportamentos ou as aparências ligadas às condições sociais estatisticamente mais frequentes”.8 Nesse capítulo, podemos perceber os laços de cooperação entre os folcloristas que adotaram a noção de folclore nordestino, ao passo em que fora analisado de modo geral “as atitudes e trajetórias individuais que terminam por configurar uma ação coletiva” (p.120).

O autor contextualiza com base nos estudos foucaultianos dos “pontos de cruzamento […] das redes de relações pessoais, sociais, culturais, políticas e intelectuais” (p. 121), ao buscar nos traços ou dados biográficos uma imagem de conjunto dos folcloristas responsáveis pela fabricação do folclore e cultura nordestinos.

A discussão inicialmente toma como base os quatro autores considerados pioneiros quanto ao tema do folclore do Nordeste: Gustavo Barroso, Leonardo Mota, José Rodrigues de Carvalho e Luís da Câmara Cascudo, buscando traçar um “perfil de conjunto”. Em seguida, confronta com os traços biográficos dos intelectuais que viveram anteriormente a estes citados, interessados pelo popular, que foram posteriormente por eles utilizados e citados como os precursores dos estudos do folclore nordestino, sendo eles Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa. Por último, traça os dados daqueles que deram continuidade ao trabalho, reafirmando e reatualizando o conceito de cultura nordestina, como Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maio, contemporâneos no século XX.

Os inventores da cultura nordestina, os chamados pioneiros têm em comum suas trajetórias o pertencimento às elites sociais e políticas de seus Estados, articulados por vínculos de parentesco e/ou compadrio com as oligarquias dominantes nestes espaços, demonstrando logo em seguida o perfil dos intelectuais inspiradores desse grupo, elementos de contato e de continuidade, seja pela formação seja pelo pertencimento do mesmo grupo social, político e cultural.

Já aqueles que se interessaram pelas formas e matérias de expressão das camadas populares e serviram de inspiração para os pioneiros, Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa, têm como ponto comum o pertencimento à elite agrária decadente, onde em seus perfis elitistas demonstram um interesse inicialmente pelo estudo do popular. O autor coloca que os discípulos ou seguidores dos pioneiros foram os responsáveis por ampliarem, reafirmarem e darem legitimidade ao folclore nordestino, são eles: Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maior. Estes acabaram por assumir a tarefa de elaborar o que seria o folclore e a cultura popular de seus Estados, “ao mesmo tempo em que vão inseri-los no interior da identidade regional nordestina […] estes folcloristas assumirão a tarefa de incorporar o folclore de sua terra natal no interior do que seria a cultura regional ou nacional”. Esse era o contexto de produção do folclore, ao passo que instituições foram criadas com parâmetros de nacionalização de uma cultura integradora9.

Durval Muniz a partir dessa prosopografia busca visualizar o lugar social de produção do discurso acerca da cultura nordestina. O autor ao selecionar os folcloristas limita a fabricação do folclore e da cultura popular nordestina aos espaços de sociabilidades desses intelectuais, particularizando em seus estados, como Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Alagoas. Talvez isso se justifique pelo acesso às fontes produzidas por eles, em grande parte produtores de uma vasta obra sobre a cultura popular. Apesar disso, o estudo abre possibilidades de se ampliar as discussões com base em novas pesquisas sobre os estados não contemplados ao longo do livro.

No sexto e último capítulo, o autor discorre sobre as trajetórias de alguns agentes populares que contribuíram também para a emergência do que seria a cultura nordestina. Ao visitar essas trajetórias, como a de Leandro Gomes de Barros, considerado o primeiro cordelista nordestino e o primeiro produtor de folhetos a viver do seu ofício, e a de João Martins de Athayde, outro ícone da poesia popular, ao montar uma tipografia e imprimir seus próprios versos, o autor considera-os parte de uma importante “indústria de folhetos”, resultante do processo de mudança capitalista emergente na sociedade do final do século XIX e início do XX, onde aproveitaram as oportunidades mercantis da cultura, para sua subsistência. A prática desses homens, que não faziam parte da elite decadente, demonstra, segundo o autor, como sendo “atividades que criam o novo, utilizando-se de e remanejando um arquivo de matérias e formas de expressão que conhecem e que está à disposição desses agentes culturais, a partir do aproveitamento das condições novas oferecidas pela sociedade urbana de mercado” (p. 201).

Deste modo, são ressignificados a própria noção de “popular” e “povo” que, para Albuquerque, acaba se tornando complexa quando se leva em conta somente o público para o qual eram dirigidos os folhetos ou cordéis, seus preços, temas, mas ao adotar, por exemplo, a condição ou origem social de seus produtores e/ou editores, “a noção de popular já não será tão adequado” (p. 217). Para o autor, isso é um reflexo da emergência de uma classe média baixa “fruto do declínio de setores das antigas elites rurais ou da ascensão de dados indivíduos das camadas populares […] nomeadas de tradicionais, folclóricas […] que gozarão de maior espaço de ação […] onde suas habilidades estarão voltadas para o sustento (p. 218), como é o caso de Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde e tantos outros de que não se tem um estudo específico.

Por fim, ao concluir um trabalho que deixa em aberto várias chaves de leitura e pesquisa, o autor lança uma crítica ferrenha aos estudiosos da cultura popular, sejam eles acadêmicos ou os próprios folcloristas. Durval Muniz critica o que ele chama de “síndrome de resgate” existente nos estudos de cultura popular ou organizações de grupos e manifestações classificadas como folclóricas, onde imperam a noção de resgatar das tradições, sem ao menos se fazer a crítica à volta ao passado através de manifestações populares no presente, tidas e entendidas por aquele como seriam praticadas anteriormente. A prática dessas manifestações no presente, tomada como a possibilidade de retorno do tempo, para Durval Muniz, é o principal mito com que opera essa síndrome.

Embora a crítica deste estudo esteja voltada às interpretações que se fazem do folclore e da cultura popular nordestina, o autor as reconhece como importante, pois permite a reflexão de todo o processo de fabricação da cultura, das práticas e operações as quais dão origem e significados e, consequentemente, implicam diversas formas de seu uso. Como último exemplo, podemos retornar ao rei do baião, como um de muitos que ao longo do século XX tornou-se um propagandeador da cultura nordestina fabricada pelos pioneiros e seguidores apontados ao longo da Feira dos mitos. Um livro indicado para os estudos sobre cultura escrita, sobretudo, do ponto de vista teórico-metodológica, onde o autor refaz os caminhos da pesquisa e seus métodos de análise, é fundamental para repensarmos os conceitos em torno do Nordeste. De maneira impactante, põem em questão estereótipos, “verdades” construídas.

Notas

  1. ALMEIDA, Onildo. A Feira de Caruaru In: Luiz Gonzaga. LP, 1957.
  2. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p.
  3. O Concurso instituído no ano de 1959 foi idealizado com o propósito de estimular a produção de conhecimento científico sobre os diversos temas do folclore e da cultura popular. Lançado anualmente por edital confere ao primeiro e segundo colocados prêmios pagos em dinheiro, prevendo-se, ainda, até três menções honrosas, selecionadas por comissão de especialistas indicados pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Disponível em: < http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=52> Acesso em: 29 junh. 2014.
  4. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino – de problema à solução (1877 – 1920). Campinas: Unicamp, 1988 (Dissertação de Mestrado em História); A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 2011.
  5. Jaques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Michel de Certeau, Reinhart Koselleck e outros.
  6. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UNB, 1994.
  7. LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da História oral. 8 ed. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006, p. 168-169.
  8. Para mais detalhes sobre o processo de institucionalização dos folcloristas, cf. ORTIZ, Renato. Cultura Popular: Românticos e Folcloristas. Editora Olho d’água, S.D; VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947–1964). Rio de Janeiro: FUNARTE: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

Valério Rosa de Negreiros – Mestrando em História Social. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Rio de Janeiro. Brasil. valerionegreiros@yahoo.com.br.


ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p. Resenha de: NEGREIROS, Valério Rosa de. Outros Tempos, São Luís, v.11, n.18, p.318-324, 2014. Acessar publicação original. [IF].

 

O Golpe de 1964: Reflexos, Desdobramentos e Olhares Cinquenta Anos Depois / Albuquerque: Revista de História / 2014

O ano de 1964 mal havia se iniciado e, no seu horizonte, já se avistavam nuvens pouco alvissareiras. No ocaso de um mês de Março especialmente conturbado, um Golpe de Estado abalou a jovem república brasileira. Seus autores e mentores, militares e civis, representavam um vasto espectro das forças da direita no Brasil, desde os setores mais conservadores das forças armadas, da igreja e do latifúndio, até os grupos empresariais mais modernos e dinâmicos, da indústria, comércio ou mídia, frequentemente vinculados a interesses e capitais estrangeiros.

O Golpe, produto final de uma longa gestação conspiratória, mesmo que desordenada, e, cuja justificação era dada em termos de “defesa” da democracia contra o comunismo, foi desferido, paradoxalmente, contra um governo democraticamente eleito, mas cujo projeto econômico, político e social de cunho nacionalista, moderado e reformista não mais correspondiam aos anseios e interesses das elites dominantes.

Mais do que isso, o Golpe no Brasil também sinalizava aos países vizinhos que os modelos de desenvolvimento pautados na participação do Estado na economia, na substituição de importações e baseados no pacto social se encontravam à beira do colapso. No particular contexto histórico da Guerra Fria, tais governos se encontraram assimetricamente imprensados: pelo alto, sob a agressiva investida dos imperialismos, especialmente o estadunidense, no marco de ascensão de um novo regime de acumulação integral de capital; e, pela base, com a radicalização dos movimentos sociais contestatários inspirados nas recentes experiências revolucionárias, anti-imperialistas e de libertação nacional do mundo periférico. E conviria destacar, em especial, o caso de Cuba que, destarte o seu reduzido espaço geográfico e limitado poder ofensivo real, foi superdimensionada como uma ameaça ao poderio econômico-militar de Washington em todo o continente por tornar-se um exemplo de ousadia e resistência frente aos Estados Unidos e, cuja experiência revolucionária poderia ser, em tese, emulada em qualquer país latino-americano, desde a fronteira do Rio Grande, ao norte, até os confins patagônicos.

Neste ano de 2014, completa-se exatamente cinquenta anos do Golpe de Estado de 31 de Março / 01 de Abril de 1964. Os remanescentes e herdeiros ideológicos da ditadura ainda continuam a bradara desgastada cantilena de que o Golpe de 1964 foi uma “ação democrática” para “salvar o país” de uma pretensa ameaça do comunismo. Porém, tais acepções sobre o ocorrido em 1964 não recebem, nos dias de hoje, um eco similar ao que eles outrora receberam da sociedade em geral. Durante o seu longo período de duração, a ditadura brasileira (em especial) conseguiu forjar uma representação bastante positiva no imaginário social e político, apesar do emprego sistemático da violência institucional e das repetidas violações aos direitos humanos cometidos ao longo desses vinte e um anos (com intensidade variada, conforme necessidades conjunturais). Evidentemente que tal percepção “benévola” encontrava arraigo nos setores favorecidos com o regime, especialmente nas classes alta e média, mas não somente.

Apesar de suas particularidades nacionais, as Ditaduras de Segurança Nacional do Cone Sul utilizaram (em graus distintos) a lógica binária da “mão que bate é a mão que afaga” e empregaram o terror Estatal buscando combinar medo generalizado e terror pontual com recompensa material para ampliar uma base de apoio em determinados grupos sociais. Assim, os governos equacionaram o Terrorismo de Estado (simultaneamente seletivo e indiscriminado, o que lhe garante um efeito de irradiação social) com mecanismos de criação de consenso social. Consenso este que seria obtido, em parte, mediante concessões de benefícios materiais a setores da população. Mas, além disso, não podemos esquecer o peso exercido pela propaganda maciça exercida desde e para o Estado, por seus agentes, mas também por seus colaboradores (mídia, personalidades artísticas, lideranças civis, etc.), em combinação com instrumentos tais como a censura, a repressão, a desqualificação, a criminalização, a demonização e, em alguns casos, até o extermínio físico daqueles tidos como opositores mais perigosos.

A combinação e interação desses fatores não somente possibilitou a hegemonia do poder, como também delineou o nível de sucesso ou aceitação dos regimes ditatoriais do Cone Sul que aplicaram o terror de Estado, moldando o teor positivo ou negativo da sua imagem e garantindo a permanência desta construção tanto no plano subjetivo quanto na memória coletiva. Especificamente no caso brasileiro, não era incomum ouvirmos (e até ouvimos ainda!) em expressões orais e escritas do senso comum (ecoa até mesmo em meios acadêmicos), a percepção de que, apesar da violência, dos abusos e da corrupção da ditadura, o saldo do regime militar foi positivo, seja porque possuía um projeto de desenvolvimento que deixou um “legado” ao país, ou porque teve um relativo sucesso em matéria econômica, ou porque havia mais “ordem e segurança”…

Em outras palavras, pode se dizer que, em determinados grupos sociais se exerceu (e se exerce ainda) uma clara relativização do emprego sistemático do terror, das arbitrariedades e dos crimes cometidos pela ditadura, e nessa relativização (que ora beira a banalização, de tão grosseira), que se traduz em um mero “balanço” entre os crimes e as benesses do regime, os segundos terminam geralmente ofuscando os primeiros, de modo a gerar uma hierarquização um tanto inversa. Aqui no Brasil, o terror e o “milagre econômico” foram instrumentos de dominação e cooptação, em tese opostos, mas utilizados de modo complementar. Todavia, ao contrário de outros países vizinhos, o terror foi administrado de forma mais especifica e aplicado com precisão quase cirúrgica, principalmente se comparado com a extensão e a profundidade do terror estatal aplicado na Argentina.

Ao contrário da ditadura argentina, a ditadura brasileira soube focalizar precisamente na sua mira os sujeitos considerados alvos da repressão e, assim, direcionar verticalmente a aplicação dos mecanismos do terror. Entretanto, esse caráter pontual da violência repressiva no Brasil não significa que o regime tenha sido “brando”, se comparado aos outros regimes ditatoriais e, por extensão, “melhor” que eles. Se a ditadura brasileira torturou, assassinou e ocultou os cadáveres de seus oponentes em menor proporção do que a ditadura vizinha foi porque considerou que não havia necessidade concreta de fazê-lo em grande escala.

Assim sendo, independente das comparações “estatísticas” de contagem de mortos e / ou desaparecidos que possam ser efetuadas entre as ditaduras de Segurança Nacional para medir um suposto grau de brutalidade de tal ou qual regime, o que deve ser observado, em tais regimes, são características estruturais, tais como a sistematização e aplicação da tortura em grande escala, a racionalidade da repressão, a metodologia “científica” do terror, suas justificativas políticas e o arcabouço ideológico empregado foram muito similares em todas as ditaduras do Cone Sul.

Passados cinquenta anos, não se pode negar que o nosso país (em similar sintonia com o nosso subcontinente) passou por consideráveis mudanças históricas e que estas contribuíram para modificar a percepção da atual sociedade brasileira sobre aqueles tempos passados. No plano político-institucional, e especialmente nos últimos anos, com a assunção de governos mais identificados com as questões sociais e historicamente vinculados àqueles setores progressistas ou de esquerda e que participaram ativamente do polarizado cenário político dos anos 1960 e 1970 se reacendeu o debate sobre o incômodo passado recente, um debate postergado e ofuscado no imediato pós-ditadura. Em novembro de 2011, foi criada a Comissão Nacional da Verdade (CNV)1 , após anos de embates políticos entre militares e civis para definir alcances e limites de atuação que essa Comissão teria. Tal iniciativa, mesmo que tardia, exemplifica esse olhar atual do Poder Executivo com relação a medidas vinculadas à questão da memória e a busca da verdade histórica, em nome de uma reconciliação nacional efetiva.

No entanto, em função da condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no final de 2010, as ações do Estado brasileiro nesse sentido deveriam ser mais aprofundadas. No entendimento da CIDH, não basta apenas à criação da CNV ou facilitar o acesso à documentação repressiva pelas vítimas, seus familiares e também a pesquisadores em busca de informação antes proibida. O que é fundamental é que o Estado brasileiro remova todos os obstáculos jurídicos para poder “conduzir eficazmente a investigação penal dos fatos do presente caso, a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei disponha”2. E isto significa, segundo especialistas da área jurídica, começar pela anulação da Lei de Anistia de 1979 3.

Cabe recordar que, ao longo da década de 1980, o Estado brasileiro advindo “democrático” procurou colocar uma “pedra” sobre os crimes da ditadura. Certamente que a assimétrica Lei de Anistia, duramente negociada entre a ditadura (ainda na posse das rédeas do poder) e alguns setores da “elite” da oposição, no marco de um progressivo descontentamento geral da população com o regime (especialmente após evidenciar os limites do “milagre”) não deixava margem de manobra para tais discussões, o que redundou em “perdão incondicional” aos agentes da repressão e uma incontestável vitória dos setores da “linha dura” militar, que permaneceram impunes.

Por outro lado, deve se apontar que, sob a justificativa de não atravancar o processo de transição para um Estado democrático de direito, os governos civis evitaram enfrentar o poderio militar, bem como tocar no problema da sujeição das Forças Armadas às regras do jogo democrático. Por fim, não se pode obliterar que parte considerável da elite (em especial os políticos e empresários) e da classe média brasileira era também comprometida, direta ou indiretamente, e em maior ou menor grau, com o regime ditatorial pregresso, o que explicaria seu interesse em “esquecer” determinadas ações e alianças do passado que não lhe seriam adequadas nem favoráveis naquele ambiente de devir “democrático”. Nesse sentido, a “amnésia histórica” converteu-se em prática oportuna e corrente de distintos setores sociais.

Nos dias atuais, é possível evidenciar que o Estado brasileiro, pelo menos na figura do poder executivo, efetuou “um passo a frente” no sentido de responder às históricas demandas pelo direito à memória e à verdade. Mas, haverá por parte das outras instâncias do Estado um “segundo passo”? Isto é, como enfrentar a demanda por justiça? Esta questão primordial ainda carece de resposta efetiva. O poder judiciário, até o momento, tem recuado diante desta problemática, especialmente no que tange a revisão da Lei de Anistia, pois o Superior Tribunal Federal continua a ratificá-la, à revelia de instância jurídica internacional e em claro desrespeito aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário.

Neste sentido, porém, a demanda por justiça tem lugar na pauta da atual agenda das novas gerações que participam dos movimentos sociais. Se durante décadas as reclamações pelos crimes da ditadura se restringiram a círculos de vítimas e seus familiares, ex-presos políticos, militantes ou a organizações de direitos humanos, esta questão agora transcende este núcleo inicial, impregnando e polarizando o debate nos distintos âmbitos do tecido social. E neste contexto favorável à memória, não estranhamente, surgem as outrora silenciadas “memórias subterrâneas” dos sobreviventes desse passado traumático e que hoje encontram eco, tanto com a juventude, interessada em conhecer um passado que lhes foi “negado”, quanto com os historiadores (e outros pesquisadores das áreas humanas) interessados em produzir conhecimento sobre esses temas em meio a esse processo de emergência de antigas questões e revalorização das experiências daquele tempo passado. Ou seja, preocupados em compreender por que esse passado não elaborado “teima em passar”, aflorando em determinados contextos e nos relembrando permanentemente da sua vigência.

Ao encontro deste momento histórico tão significativo, a Revista Albuquerque dedica este Número 11 a temática das Ditaduras de Segurança Nacional no Brasil e Cone Sul, com o Dossiê intitulado: O Golpe de 1964: Reflexos, Desdobramentos e Olhares Cinquenta Anos Depois. Embora inicialmente focado na experiência ditatorial brasileira, em virtude da data a ser rememorada, este Dossiê pretende abordar a temática desde uma perspectiva mais abrangente. Não somente em termos de expressar a diversidade de olhares e enfoques possíveis sobre as ditaduras partindo de prismas teóricos e metodológicos distintos. Mas especialmente em termos de ampliar o recorte geográfico ao incluir pesquisas históricas sobre / ou os “nossos vizinhos” da região, por entender que existem interconexões, elementos em comum que, independente de particularidades, vinculam as distintas experiências ditatoriais do Cone Sul entre as décadas de 1960 e 1980.

O presente Dossiê inicia com o texto de Carlos Artur Gallo “Comissões da Verdade em Perspectiva: notas sobre a experiência uruguaia, chilena e argentina”, em que o autor, após historicizar sobre o período autoritário na Argentina (1976-1983), no Chile (1973-1990) e no Uruguai (1973-1985) nos estabelece, em escala comparativa, uma análise concisa sobre as distintas formas que os países do Cone Sul enfrentaram a problemática que encerra a trinômia memória, verdade e justiça, nos seus respectivos processos de democratização, na tentativa de fazer face aos problemas do “legado” do passado ditatorial.

O artigo de Jefferson Gomes Nogueira, “História, imprensa e a construção da realidade durante o regime militar no Brasil (1964 / 1985)”, aproxima-nos mediante o estudo da produção histórica sobre a imprensa e o regime militar no Brasil, dos mecanismos e agentes utilizados (censura, propaganda, censores, jornalistas, etc.) tanto pelo aparato estatal repressor, quanto pelos seus colaboradores privados para construir uma “realidade” parcial e conveniente que lhe possibilitasse atingir a hegemonia e o controle social pretendido. Desde uma perspectiva estadual, Cristina Medianeira Ávila Dias, discorre sobre “O terrorismo de Estado (TDE) no Rio Grande do Sul: perseguição, prisãoe tortura de militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)”, utilizando como ponto de partida, o surgimento de um grupo armado de esquerda, no extremo sul do Brasil, e estabelecendo a relação deste com o desenvolvimento e a consolidação da estrutura repressiva montada pelos órgãos de segurança para combater as atividades das forças que resistiam ao regime, bem como aborda a metodologia empregada pelo aparato repressivo.

Já Enrique Serra Padrós nos apresenta, em seu artigo, uma reflexão sobre um tema delicado e pouco abordado, aqui no Brasil em particular: “A guerra contra as crianças: práticas de sequestro, desaparecimento e apropriação de identidade no século XX”. Nesse artigo, focaliza as experiências do sequestro de crianças durante as ditaduras de Segurança Nacional da Argentina e do Uruguai, ocorridas entre as décadas de 1970 e 1980, uma das mais brutais práticas do Terrorismo de Estado platino inserido na lógica da captura do “butim de guerra” e vinculado aos projetos de “refundação” social trazidas no bojo ideológico de tais ditaduras. Além disso, Padrós contextualiza e estabelece uma relação desta prática criminosa com outras experiências correlatas (na Europa ocupada pelo nazismo, na Espanha de Franco e nos recentes conflitos armados da África), no transcorrer do século XX e início do XXI, apontando a persistência destes mecanismos de opressão social, os profundos traumas por eles gerados e como tais crimes se projetam ao longo do tempo, incidindo sobre diversas gerações.

O artigo de Ananda Simões Fernandes e Silvia Simões, “Apontamentos acerca da conexão repressiva entre as ditaduras brasileira e chilena”, perscruta a multifacetada e complexa rede de conexão repressiva entre as ditaduras brasileira e chilena, chancelada após a vitória do golpe de Estado chileno, em 11 de setembro de 1973. A pesquisa das autoras, baseada em fontes primárias, centra sua análise na atuação combinada de organismos brasileiros e chilenos nos mais diversos âmbitos (policiais, diplomáticos, etc.) em sua colaboração na luta contra a “subversão”, e como essa conexão se consolidou em direção à formalização de uma rede orgânica e transnacional de repressão extraterritorial, que envolveria o conjunto das ditaduras do Cone Sul, e que passaria para a história da região como a “Operação Condor”.

A autora Caroline Silveira Bauer, no texto “Um passado que não passa: a persistência do crime de tortura na democracia brasileira”, disseca uma das ferramentas mais amplas e intensamente utilizadas pelo Estado terrorista brasileiro, a tortura. No entanto, o trabalho não se restringe sua análise ao período ditatorial somente, pois a autora excede os limites temporais da ditadura e incursiona sobre a permanência de tal prática abjeta até os dias de hoje. Um tema que nos leva a refletir duplamente. Por um lado, sobre as continuidades das práticas dos regimes ditatoriais sob o manto democrático e, por outro, sobre o próprio caráter e o alcance da nossa democracia.

Seguindo na dinâmica dos processos de transição das ditaduras para os regimes democráticos, Claudia Wasserman nos apresenta “Democracia e ditadura no Brasil e na Argentina: o papel dos Intelectuais”. A autora, cuja densa narrativa nos transporta até a década de 1980, foca seu olhar nos intelectuais brasileiros e argentinos, comparando e analisando o papel representado por estes, enquanto sujeitos políticos, sociais e históricos, no contexto da chamada redemocratização. Um período promissor em termos de efervescência social e cultural permeado pela retomada da discussão política e pela possibilidade de retorno daqueles que haviam padecido o exílio; mas que também foi uma era impregnada pela “cultura do medo”, pela desconfiança mútua entre os que haviam permanecido e aqueles que haviam partido ou obrigados a partir, bem como profundamente marcada pelas então recentes cicatrizes provocadas pelas experiências autoritárias.

Mario Hugo Ayala, em “Los exiliados argentinos en Venezuela ante el inicio de latransición a la democracia en la Argentina”, também efetua seu recorte temporal no período da transição, porém, desde outra interrelação geográfica e transnacional: Argentina e Venezuela. Ele aborda especificamente o fenômeno do exílio dos argentinos (um dos mais numerosos exílios da região) perante às questões surgidas com a volta da democracia e os dilemas que esta apresentava, por exemplo, a possibilidade do regresso ao país, mas também o leque de problemas políticos, grupais e subjetivos que o “retorno” (ou desexilio) paradoxalmente gerava. O artigo de Ayala está embasado em ampla documentação, utilizando-se de testemunhos publicados e, principalmente, de materiais inéditos oriundos de fontes orais.

Encerra o nosso Dossiê a obra de Monica Piccolo Almeida, “Agentes e Agências no Ocaso da Ditadura Empresarial Militar e a Reedição do ‘Milagre’”. Nesse texto, a autora propôs-se a analisar as diretrizes que guiaram a política econômica da ditadura brasileira em sua derradeira etapa, o governo de João B. Figueiredo, utilizando como hipótese central que os intentos aplicados em matéria de política econômica pretendiam recuperar os níveis de crescimento da década anterior, buscando o ressurgimento do “milagre econômico”. No entanto, tais tentativas estiveram perpassadas por contradições inerentes ao próprio sistema capitalista e pelas formas que este adquiriu nas regiões periféricas e dependentes, bem como por disputas, em virtude de interesses diversos, dentre os grupos da classe dominante mediante a ação de agentes específicos, públicos e privados, inseridos diretamente ou não no seio do aparato estatal.

Desse modo, e seguindo uma perspectiva acadêmica plural e democrática, bem representada por esta diversidade e riqueza temática, assim como pelas distintas aproximações e análises do passado apresentadas pelos autores neste Dossiê (cada um partindo de abordagens teóricas e metodológicas diferenciadas), procuramos contribuir com a reflexão crítica e o debate histórico sobre o nosso passado recente e compartilhado aqui na região sul da América do Sul, promovendo o avanço do saber (dentro e fora da academia), bem como da produção historiográfica. Esperamos que o resultado final, este Dossiê Número 11 da Revista Albuquerque, agrade aos nossos leitores exigentes.

Notas

1. lei 12.528 / 2011. a cnv iniciou os seus trabalhos em maio de 2012.

2. cidh, caso gomes lund e outros (“guerrilha do araguaia”) vs. brasil, exceções preliminares, mérito, reparações e custas, sentença de 24 de novembro de 2010, série c, nº 219, parágrafo 256. citado por gomes, luis f. disponível em: http: / / www.conjur.com. br / 2011-mar-10 / coluna-lfg-lei-anistia-viola-convencoes-direitos-humanos

3. lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.

Jorge Christian Fernández – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Professor de História da América do Curso de História (Campus Campo Grande / MS) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: intbrig@yahoo.com.br


FERNÁNDEZ, Jorge Christian. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.6, n.11, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Teoria (literária) americana: uma introdução crítica – DURÃO (AF)

DURÃO, Fabio Akcelrud. Teoria (literária) americana: uma introdução crítica. Campinas/SP: Autores Associados, 2011.Resenha de: PASINI, Leandro. Para onde vai a teoria? Artefilosofia, Ouro Preto, n.15, dez., 2013.

O livro Teoria (literária) americana: uma introdução crítica, de Fabio Durão, se apresenta como obra didática não apenas pela palavra “introdução” do subtítulo como por sua dedicatória aos “alunos da Unicamp”. Contudo, não há no livro sequer vestígio da organização didática tradicional que se esperaria de uma introdução. As corrente s teóricas em voga nos Estados Unidos nos últimos trinta anos, agrupadas sob o nome de Teoria (Theory), não são explicadas uma a uma, segundo critério e hierarquia que revelasse as preferências e a posição do Autor. Seguindo a mais autorizada das antologia s de língua inglesa, a Norton Anthology of Criticism and Theory, em sua edição de 2001, Fabio Durão lista as correntes surgidas depois da Segunda Guerra e que ainda são referência no debate teórico estadunidense: Estudos Culturais, Desconstrução e Pós-estruturalismo, Teoria e Crítica Feminista, Formalismo, Crítica Gay e Lésbica e Teoria Queer, Marxismo, Novo Historicismo, Fenomenologia e Hermenêutica, Teoria e Crítica Pós-Colonial, Psicanálise, Estudos de Raça e Etnicidade, Teoria de Reação do Leitor, Estruturalismo e Semiótica. Mesmo sob uma denominação genérica, é mais de uma dezena de perspectivas teóricas, em que cada um dos nomes pode se desdobrar em outros tantos, a exemplo das vertentes que o item “Desconstrução e Pós-estruturalismo” abriu no ambiente brasileiro. Nesse sentido, Fabio Durão rejeita conscientemente a compartimentação teórica, por um lado, e a postura de divulgador de ideias internacionais, por outro. Com isso, e causando grande espanto no contexto brasileiro, ele recusa a posição de mediador, de alfandegário cultural entre o que se faz nos centros e nas periferias do mundo universitário. Como consequência, não se pode esperar do livro uma simplificação de saberes complexos, como se, depois de sua leitura, fosse mais fácil compreender, por exemplo, Derrida, Spivak, Barthes ou Jameson, ou que uma receita fosse dada para que esses teóricos pudessem caber em um conhecimento panorâmico e pacificado. O livro se propõe, antes, a pensar a teoria teoricamente, ou seja, “tornar a Teoria ela mesma um objeto de reflexão teórica e crítica” (p. 4), encarando-a como uma nova formação discursiva, que será abordada por meio de sua ascensão e do debate que formou em torno de si. Para tanto, não se deve concluir que o Autor se desvincula da Teoria para abordá-la imparcialmente a distância. Seu ponto de partida é a “primazia do objeto”, pensado em consonância com a Teoria Crítica, de Adorno e Benjamin, que nesse caso não trata de questões artísticas e/ou filosóficas, mas da própria Teoria, que passa então por uma autorreflexividade radical. Esse procedimento, de pensar o fenômeno teórico pela perspectiva da Teoria Crítica, se realiza por meio de uma escrita ágil e desabusada, na qual a erudição, que existe, cede passo à argumentação civil e democrática, unindo curiosidade e vontade de conhecer à ausência de jargão e apelos a figuras de autoridade. Fabio Durão não é a priori contra nem a favor da teoria americana, ele não está entre os seus “defensores” nem entre os seus “detratores”. A Teoria é vista como u m fato consumado, pois, como diz o Autor: “seria inútil reivindicar um retorno aos velhos tempos anteriores à febre teórica” (p. 112), mas essa constatação não é um sinônimo de legitimação positiva da Teoria, ao contrário, ela é vista como “um campo marcado por contradições, constituindo-se, por fim, como uma aporia, pois se mostra ao mesmo tempo como imprescindível e insustentável” (p. 3). Entre as várias críticas que o livro dirige a ela, que não são poucas, duas são mais drásticas quando se pensa na relação entre Teoria e literatura: 1. a Teoria, em seus piores momentos, parece ansiar por uma autossuficiência que acaba por destruir os objetos, tornando-se assim intransitiva e autorreferente; 2. a consequência natural dessa autorreferrência é um solipsismo a um tempo ultracomplexo e sem finalidade, dando margem a constantes corridas em busca de uma autoridade abstrata. Contudo, a mistura de disciplinas e saberes, que podem ser vários, além dos imprescindíveis (Linguística, Psicanálise, Sociologia e Antropologia), faz com que o método criado pela Teoria adquira uma flexibilidade capaz de apreender qualquer objeto e se redimensionar em função dele, além de ter produzido a expansão e a multiplicação dos objetos de leitura. Assim, tamanha liberdade faz com que os eles possam ser tanto anulados quanto recriados, como Fabio Durão defende: “O papel da Teoria é contraditório, pois se por um lado ele relativiza a importância do literário, que agora passa a existir lado a lado com os cartoons ou o YouTube, por outro fornece um novo fôlego para a leitura de textos que de outra forma poderiam perder em interesse” (p. 49-50). A matriz prática dessa contradição é descrita no livro como uma crise interna dos estudos literários, devida, entre outros motivos, à redução do es paço socialmente ocupado pela literatura, que foi gradualmente substituído pelos meios de comunicação de massa, bem como às críticas internas da própria arte, presentes nas vanguardas do começo do século XX, e cuja corrente mais radical em sentido antiartístico, foi o Dadaísmo.

Como consequência dessa armadura argumentativa, é preciso notar a estranheza ou a novidade, ao menos no Brasil, de a Teoria ser objeto da Teoria Crítica, tendo em mente que esta se constituiu enquanto tal justamente pela plataforma de dar primazia a uma alteridade, colocando os conceitos em movimento ao contato com as obras artísticas. O perigo de uma Teoria Crítica cujo objeto é a Teoria reside principalmente na possibilidade de perda dessa alteridade, daquela “consciência da não id entidade entre o modo de exposição e a coisa” (ADORNO, Theodor W. Notas de literatura. São Paulo: Ed. 34/Duas Cidades, 2011, p. 37). Resumindo, entre Teoria Crítica e Teoria insinua-se, como que por contágio, uma perda de diferenciação cujo custo seria o evolar-se do adjetivo “Crítica” e a subsunção de Teoria como apoteose, mesmo que a intenção seja (auto)crítica. Parte central desse problema está presente no modo como Fabio Durão se comporta em relação aos objetos artísticos em comparação com o ethos anteriormente consolidado pela Teoria Crítica. Em dado momento, ele alerta para o perigo de se ler “Bakhtin sem Dostoievski ou Rabelais, Walter Benjamin sem Goethe, Deleuze sem Proust ou Kafka, Lacan sem Freud, Freud sem Sófocles ou Shakespeare” (p. 111). Dentro ou fora da Teoria Crítica – mas posta como pressuposto sobretudo por esta –, o contato com os objetos como configuradores do teórico é fundamental. Daí a pergunta: quais são os objetos literários ou artísticos que, presentes a cada entrelinha de Teoria (literária) americana, constituiriam a força dessa alteridade como resistência ao universal da Teoria? Salvo engano, as leituras constitutivas do Autor, subjacentes à sua perspectiva, não são literárias, mas teóricas, mais especificamente Adorno e Fredric Jameson. Essa questão se repõe na própria escrita do livro, que percorre com vivacidade e rapidez muitos campos teóricos diversos. A presença configuradora de uma obra ou de um conjunto orgânico de obras afetaria, em primeiro lugar, o estilo. Cada obra literária possui um travejamento próprio e oferece resistência ao campo da Teoria (tomada como um todo abstrato), pois aceita, virtualmente, algumas ideias teóricas mas não outras. Implicitamente, Teoria (literária) americana, mesmo defendendo os objetos, pare ce recusar, por sua própria natureza, o contato com uma ou conjunto orgânico de obras, que, por especificar o horizonte especulativo, colocaria diante do crítico um sem número de determinações e atritos a serem configurados pela escrita que seria, de certa forma, contaminada por alguns elementos desse(s) objeto(s). Contudo, essa imersão completa no campo da Teoria permite ao Autor captar a sua especificidade, a contradição viva e o nervo crítico que ela contém. Ao ser capaz de fundir diversos saberes e de refletir sobre os próprios pressupostos dessa fusão, a Teoria erige, como diz o Autor, “a transdisciplinaridade como seu princípio mais interno de funcionamento” (p. 13-14). A “visão de mundo” subjacente a essa prática é a radical separação entre o pens amento e a coisa. Como todo saber é construído, a própria construção do conhecimento passa ser o objeto da Teoria. É esse tipo de “relativismo construtivista” que permite o “trânsito entre todos os saberes da humanidade”, e, posso acrescentar, os conhecimentos passam a ser concebidos sobretudo como linguagem, fazendo migrar para o centro da reflexão da Teoria a atenção à linguagem anteriormente restrita aos estudos literários. A Teoria monta um campo de forças próprio em cujo centro ela mesma habita. Fabio Durão fala de uma exacerbação dos metadicursos da teoria literária” que passa a “constitui um campo (semi)autônomo. Ocorre a emancipação da Teoria em relação aos objetos, aos quais os estudos literários anteriores se modelavam; e essa emancipação possui um a liberdade virtualmente ilimitada de construir objetos de leitura e conhecimento, pois não apenas tudo pode ser objeto da Teoria como as mais imprevisíveis relações entre as coisas do mundo podem ser erigidas em objeto. Entretanto, se as potencialidades são enormes, as realizações são geralmente solipsistas, hipersofisticadas e herméticas, desabrochando o obscurantismo e a intransitividade do seio da liberdade, da práxis e da pluralização almejadas.

A explicação desse paradoxo pode ser encontrada em um argumento constante ao longo do livro: a semelhança entre a natureza da Teoria e a lógica do capitalismo tardio estadunidense. O Autor julga possível “identificar na liberdade enunciativa do teórico algo da flexibidade que se exige do trabalhador no novo mercado e da produção pós-fordista” (p. 31). Essa relação não se dá de modo genérico, mas tem em seu “espaço enunciativo”, a universidade, o seu instrumento específico de realização, em que ocorre a transposição para a teoria americana do um modo de produção social, adequando seu funcionamento à universidade produtivista atual. A abundância, o múltiplo, a pluralidade e todo o discurso do “excesso” vinculado pela aliança entre a Teoria e a noção de “pós-modernidade” não se colocam no mundo sob a égide exclusiva da liberdade mas também da produção capitalista, da lógica da moda e da frenética produção e consumo de mercadorias. Eis a face de conformidade plena da Teoria com o mundo em relação ao qual ela se pretende radicalmente crítica. Desenvolvendo um pouco essa questão, pode-se explorar mais a relação entre a fusão de disciplinas e a lógica produtiva pós-fordista. Não me parece que essa relação aconteça somente no plano da produção. Há no próprio movimento abstrato de nivelamento de todos os conhecimentos, todas as linguagens e todos os objetos algo daquela lógica de mediação universal e abstrata que Marx viu na forma-mercadoria. Para dizer brevemente, a possibilidade de equalizar todos os produtos do homem foi conseguida pela abstração do valor de uso no valo r de troca. O teórico e seu texto, em seu grau máximo de flexibilidade, não se assemelham a essa forma de mediação universal e abstrata entre conteúdos e formas por vezes muito diferentes? Em outras palavras, não assume o seu trabalho e o resultado dele como uma mimese da forma-mercadoria ? Se essa dedução estiver certa, ela se coloca em outro nível em Teoria (literária) americana, pois se transforma em uma pergunta que deve ser feita em relação ao próprio Autor: ao analisar essa “formação discursiva”, ele mesmo se desidentificaria do processo de mediação universal e abstrata da natureza da mercadoria presente na prática contemporânea da Teoria? Porventura não faria Fabio Durão a mimese de seu próprio objeto, incorporando em sua capacidade de transitar entre tantas correntes críticas com tanta desenvoltura algo da abstração sem finalidade da forma-mercadoria? O livro corre esse risco, e ele nunca é de todo dissipado. Porém, mais importante do que constatar o perigo é ver como nele a exigência de recuperação dos objetos ganha novo sentido. Seguindo a linha mestra de raciocínio do livro, o aspecto positivo da contradição da Teoria, a sua demanda de liberdade, ao mesmo tempo que se adapta ao mercado neoliberal, possui uma dimensão utópica: “uma utopia do conhecimento, livre das amarras da tradição e da nacionalidade” (p. 29). Porém, como separar essa extrema liberdade autoproclamada da arbitrariedade advinda muitas vezes de instâncias de poder contrárias à mesma liberdade proposta pela Teoria? A resposta compõe o eixo mais importante da discussão proposta pelo livro: “a teoria americana é legítima quando permite o surgimento de um objeto que sem ela seria inconcebível” (p. 116). Nesse sentido, os objetos que precisam ser recuperados não são os antigos objetos da teoria literária, pois aqui não se trata de uma nostalgia ou de simples vinculação à Teoria Crítica. Não é o caso de voltar a ler os textos como Benjamin lia Kafka, Goethe ou Baudelaire, ou Adorno lia Eichendorff ou Beckett, embora esses ensaios de maneira alguma saiam do horizonte. Os objetos a serem recuperados, se entendo bem o sentido profundo do livro, ainda não existem ; eles não são “coisas” que foram abandonadas e podem ser simplesmente reencontradas. A demanda de Fabio Durão é por novos objetos que surgiriam somente quando a Teoria refletisse radicalmente sobre ela mesma, exasperando as suas insuficiências e fazendo surgir de uma severa autocrítica a possibilidade de emancipação real, uma emancipação que gerasse um “outro”. Assim, os objetos são uma espécie de alteridade utópica nascida da autorreflexão da Teoria sobre seus paradoxos, uma tentativa de sair de si mesma por uma dialética implacável, da qual decorreria no campo dos estudos literários, uma exigência de transformação social, uma práxis libertária. Alcançar a alteridade é também alcançar aquela limitação e particularização que definem uma personalidade – um nome –, e buscam retomar algo de humano, de realmente diferenciado, na lógica produtiva e mercantil atual. Recuperar os objetos, então, não é somente um conselho ou uma exigência, é igualmente uma promessa de felicidade e de superação da mercadoria no âmbito dos estudos literários.

Leandro Pasini.

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Breve Tratado – ESPINOZA (AF)

ESPINOSA, B. Breve Tratado. Resenha de: ROCHA, André Menezes. Sobre a primeira tradução do Breve Tratado de Espinosa. Artefilosofia, Ouro Preto, n.14, julho, 2013.

As translucidas mãos do judeu

Lavoram na penumbra os cristais

E a tarde que morre é medo e frio.

(…)

Trabalha em um árduo cristal: o infinito.

Mapa de todas as estrelas.

Espinosa.

Poema de Jorge Luís Borges.

Borges gostava de nos lançar no universo dos livros mágicos. Como um bom bibliotecário, nos conduzia por estantes infindas como quem tem em mãos os fios que atravessam entradas e saídas de um imenso labirinto. Lembro-me deum destes livros, o infinito.

O livro infinito é aquele cuja leitura jamais se esgota, que sempre exprime um novo sentido desde que o leitor abra suas páginas. Este Breve Tratado de Espinosa, inédito em língua portuguesa, consiste no mais novo exemplar destes livros com que os leitores de Borges tanto se encantam. Um livro infinito sobre o amor infinito, em síntese, eis do que se trata. Este Breve Tratado de Espinosa é uma obra juvenil, escrita bem antes da Ética e, para alguns intérpretes, antes mesmo do Tratado da Emenda do Intelecto. Talvez por isso seja a melhor maneira de introduzir-se no pensar com os conceitos de Espinosa. Inicia-se com a intuição da essência absolutamente infinita de Deus e, após passar pelo conhecimento da essência das paixões e ações do s homens, trata dos bons desejos que nascem do uso da razão, do amor intelectual que é imanente à intuição e culmina com a demonstração do que é eterno na essência humana. Mas todas estas demonstrações só fazem sentido, no texto de Espinosa, se não se distingue a inteligência do afeto. Uma leitura tecnocrata dos textos filosóficos e, em especial, do texto de Espinosa, não passaria de um mísero avatar daquela velha vã filosofia de que falava Shakespeare. Como o olho da medusa, o entendimento do tecnocrata petrifica o sentido dos textos. Borges é quem nos diz o que perdeu o aprendiz impaciente do conto A Rosa de Paracelso.

A curiosidade, o prazer da leitura e o amor da inteligência são os guias mais seguros para os leitores e leitor a s que desejam iniciar-se na leitura dos clássicos e na reflexão filosófica. E no caminho da leitura surgirão muitas questões que em vez de barreiras constituir-se-ão como trampolins a elevação da reflexão.

Gostaria aqui de apresentar algumas questões que me ajudaram a prosseguir na leitura do Breve Tratado. Literatura e arte na composição do Breve Tratado. Os dois diálogos da primeira parte do Breve Tratado tratam de temas candentes da ontologia de Espinosa, mas também caros à tradição neoplatônica do Renascimento, seja na vertente de Marsilio Ficino que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela criação de mágicas obras de arte, seja na vertente de Leão Hebreu que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela sabedoria ética na conduta cotidiana e nas ações da vida. A questão da diferença entre amor concupiscente e amor intelectual, que é o mote da erotiké no primeiro diálogo, tinha sido intensamente tratada pelos artistas e pensadores do Renascimento. A partir de Panofsky, podemos acompanhar como a questão da diferença entre amor divinus e amor profanus foi tratada sob a forma artística, por exemplo, nas telas de Botticelli e nos diálogos do próprio Marsilio Ficino. Como sabemos, o jovem Espinosa viveu em Amsterdã na casa-escola do tutor Francisco van den Ende, um franciscano que, como Petrarca, abraçou o humanismo. Ele ensinava literatura latina e filosofia através de leituras coletivas encenadas que muitas vezes se transformavam em peças teatrais. Espinosa, que obteve uma bolsa de estudos como ajudante do mestre-escola, interpretou no Teatro Municipal de Amsterdã peças de Terêncio, o dramaturgo comediante que participou do círculo estoico de Cipião com o historiador Políbio no século II a.C em Roma. Na Escola de Van den Ende, Espinosa conheceu seus melhores amigos, entre os quais o próprio Jarig Jelles, a quem dedicou a versão holandesa do Breve Tratado. Seria demais imaginar que Espinosa tenha elaborado os diálogos a partir da experiência artística com o círculo de amigos na trupe de teatro de Amsterdã? No segundo diálogo, por exemplo, Erasmo e Teófilo encetam animada conversa sobre a diferença entre a causalidade eficiente imanente através das relações internas entre todo-partes e causa-efeitos. Conversações agradáveis podem se tornar profundas tanto na vida cotidiana como nas ações dramáticas. Os dois diálogos da primeira parte são redigidos com engenho retórico e arte dialética para significar que os conceitos filosóficos do Breve Tratado não precisam ser pensados no solipsismo, à maneira cartesiana, mas podem ser pensados em agradáveis conversas em que todos nutrem amizade pela inteligência e gosto pelas arte s ? Razão e Intuição. Espinosa escreve, na segunda parte do Breve Tratado [II, 4], que a razão é a crença verdadeira, pois é o modo de conhecimento que nos leva a ver claramente o que convém que a s coisa s seja m fora de nós, porém não o que são verdadeiramente. E, no entanto, o conhecimento racional desperta os bons desejos que nos conduzem à intuição e ao verdadeiro amor. Podemos dizer que o Breve Tratado foi escrito antes da descoberta das noções comuns como conhecimento racional das propriedades comuns necessárias dos modos in finitos e finitos? Ora, após distinguir a Natureza Naturante da Natureza Naturada [I,8], Espinosa deduz os modos infinitos, quais sejam, o movimento-repouso na matéria e o intelecto infinito na coisa pensante [II,9]. Se os modos infinitos são os fundamentos das propriedades comuns na Ética, isto é, se são o todo de que os modos finitos são as partes, não é preciso convir que são demonstrados por sua gênese no Breve Tratado ? Em que sentido se pode dizer que não há teoria das noções comuns do Breve Tratado ? Sabemos, pela nota complementar 5 redigida por Marilena Chauí em A Nervura do Real, que há diferenças entre a concepção de intuição no Breve Tratado e a concepção de ciência intuitiva na Ética. Afinal, que significa a afirmação, no Breve Tratado, de que o conhecimento intuitivo e o amor intelectual de Deus são paixões do intelecto humano? Nesta obra juvenil, Espinosa pensava o amor intelectual como uma revelação religiosa, ou seja, como a palavra silenciosa que a inteligência de Deus pronuncia sob a forma de intuições no intelecto humano? Quais as diferenças entre a concepção do amor intelectual no Breve Tratado e a concepção do amor intelectual na Ética ? A demonstração de que o diabo não existe. Em várias cartas, Espinosa conversa com amigos sobre o tema da superstição, da crença em fantasmas, espectros e, pior que tudo, da crença no capiroto, coisa ruim ou tranqueira que, como diz Guimarães Rosa, para o prascóvio encontra-se no olho esgueirado de bezerro doente, gato preto, sombração ou redemoinho n o meio da rua.

Nas cartas trocadas com o amigo Boxel, podemos perceber como Espinosa achava graça nestes assuntos. E talvez o espírito de graça destas cartas encontre-se neste Breve Tratado com a demonstração matemática da impossibilidade da existência do diabo. A demonstração segue como consequência da prova ontológica da existência de Deus, desde que esta existência seja pensada a partir da essência como realização da onipotência. Vale lembrar que esta demonstração para nós é engraçada, mas para o contexto das guerras de religião era grave.

Espinosa demonstra, por A + B, como quem demonstra que 2+2=4, que o diabo é uma impossibilidade ontológica: dado que a essência de Deus é absolutamente infinita e que é idêntica à sua potência, um diabo, um gênio maligno ou outro ser malfadado qualquer que tivesse poder para contrariar a essência de Deus só pode ser uma ficção literária ou lógica. O que contraria a onipotência de Deus pode até existir, como existem peixes que nadam contra a corrente do rio, mas não pode influenciar em nada a potência absolutamente infinita de Deus, assim como um peixe não pode mudar o curso do rio ainda que nade contra a corrente. O diabo não pode existir na realidade, não pode ser um ente real, só pode existir como ficção, só pode ser um ente de razão ou ente de imaginação. E como Ferreira Gullar que diz saber como 2 e 2 são 4 que a vida vale a pena, Espinosa demonstra, como 2 e 2 são 4, que o amor intelectual de Deus é o sumo da vida humana e que por ele se encontra tanto a virtude para agir nesta vida como a eternidade de que podemos participar desde que experimentemos um verdadeiro amor.

Ode à leitura. Esta novíssima edição do Breve Tratado de Espinosa tem muitos méritos e o menor deles talvez seja o fato de ser a primeira tradução em português. Os méritos encontram-se mais no uso da língua portuguesa que os tradutores e a revisora fizeram para apresentar este inédito de Espinosa.

A tradução de Luís César Oliva e Emanuel Rocha Fragoso é clara e elegante, o que torna o texto muito agradável para os leitores da língua portuguesa. A revisão técnica de Ericka Itokazu, como sabemos todos os que acompanhamos o processo, lapidou o texto com muito carinho, cuidado e generosidade, para assegurar a precisão dos conceitos e dos argumentos que constituem a arquitetônica do Breve Tratado ; deu polimento, como no ofício de fazer lentes, para que permitissem ver a luz com a máxima nitidez. Certa vez uma amiga me disse, diante do Memorial da América Latina, que as curvas do desenho concreto de Niemeyer impressionavam sua imaginação de tal maneira que ela se punha a pensar, com Einstein e Espinosa, se aquela arte arquitetônica não exprimiria à sua maneira as curvas concretas de um universo infinito e densamente invisível que se reflete na luz das estrelas.

Este Breve Tratado, brilhante qual um crista l e denso como um diamante, ergue-se no tempo como o memorial de Niemeyer ergue-se no espaço. Um livro mágico como aqueles que encantavam Borges, mágico como um mapa não de espaços, mas de tempos que se escandem de uma fonte eterna. Que as frases deste exemplar de livro infinito, semelhantes a curvas geométricas, façam o seu glorioso mister e conduzam leitores e leitoras às veredas concretas do infinito.

André Menezes Rocha-Doutor em filosofia pela FFLCH/USP. Leciona da Facamp/Campinas. Atualmente, realiza seu pós-doutorado sobre Espinosa na FFLCH/USP.

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O inconsciente estético – RANCIÈRE (AF)

RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Ed.34, 2009. Resenha de: SOARES, Ednei. Artefilosofia, Ouro Preto, n.14, julho, 2013.

É sabido que Freud recorreu à arte para encontrar nela algo que lhe fornecesse material analítico a fim de expor e discutir suas descobertas.

Ora, a obra de Freud é repleta de referências às obras de arte advindas ora da literatura, ora da pintura e da escultura. Os textos das primeiras décadas do século XX o com provam: “ Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen ” (1907), “ Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância ” (19 10), “ O Moisés de Michelangelo ” (1913), “O Estranho” (1919) e “ Dostoievski e o parricídio ” (1928).

Sabe-se também que existem outras maneiras de reconhecer o recurso psicanalítico às artes.

Desde Lacan, vimos a produção de uma inversão em relação àquela primeira perspectiva freudiana. Ao invés de aplicar a psicanálise à leitura das obras de arte, veremos psicanalistas e estudiosos d o campo aplicar a arte à psicanálise, isto é, a arte enquanto aquela que permite avançar a teoria psicanalítica.

É por meio deste debate que o filósofo Jacques Rancière, em “ O Inconsciente Estético” (2009), trata das relações entre a teoria freudiana e o domínio da estética.

Filósofo, Jacques Rancière é Professor Emérito de Estética e Política na Universidade de Paris VIII, onde lecionou de 1969 a 2000. Apesar de seu lançamento em 2009, o texto de “O Inconsciente Estético” foi extraído das conferências que Jacques Rancière realizou nove anos antes na École de Psychanalyse em Bruxelas durante janeiro de 2000. Entre os campos da E sté tica e da Política, Jacques Rancière ainda não tem toda sua obra publicada em língua portuguesa. Desde a década de 1970 temos “Sobre a Teoria da Ideologia” (1971) e mais adiante, por editoras brasileiras, “A Noite dos Proletários” (1988), “Os Nomes da História” (1994), “Políticas da escrita” (1995), “O desentendimento” (1996), “O Mestre Ignorante” (2004) e “A Partilha do Sensível” (2005), “O espectador emancipado”, “O destino das imagens”, “As distâncias do cinema” (2012).

Debatendo o tema do Inconsciente Estético para além da visada psicanálise da arte e fora do continente analítico, o filósofo vivifica ainda mais a discussão em jogo, pois fala a partir do domínio da estética, sua especialidade: “Não tenho nenhuma competência para falar do ponto de vista da teoria psicanalítica”. (RANCIÈRE, 2009, p.9).

Vemos que o autor parece colocar em tensão esses dois regimes de uso da arte pela psicanálise. Se por um lado, a interpretação das obras “ocupam um lugar estratégico na demonstração da pertinência dos conceito s e das formas de interpretação analíticas” (RANCIÈRE, 2009, p.9), por outro lado, Rancière resguarda a tradição, a autonomia e a potencialidade do pensamento estético nas obras de arte:

“Elas são os testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante”. (RANCIÈRE, 2009, p.10-11).

Isto é, este domínio do pensamento que não pensa não é um território e m que Freud busca apenas companheiros e aliados. Para o esteta, “É um território já ocupado” (RANCIÈRE, 2009, p. 45).

É então, a partir da “ revolução silenciosa denominada estética” (RANCIÈRE, 2009, p.33-34) que o questionamento principal do filósofo se constrói.

Segundo ele mesmo foi no terreno da estética que a teoria freudiana se ancorou, quer dizer, “ nessa configuração já existente do ‘pensamento inconsciente’, nessa idéia da relação do pensamento e do não-pensamento ”. (RANCIÈRE, 2009, p.11) “O Inconsciente Estético” (2009) propõe, portanto, pensar o campo estético como um dos fundamentos de inscrição do pensamento analítico (RANCIÈRE, 2009). Assim, a hipótese de Rancière é de que “o pensamento freudiano do inconsciente só é possível com base nesse regime do pensamento da arte e da idéia do pensamento que lhe é imanente”. (RANCIÈRE, 2009, p.13-14.) Para sustentar tal empreitada, são diversas as referências artísticas utilizadas por Rancière. De “Os Miseráveis” de Victor Hugo, a Balzac com suas “La Maison d u chat qui pelote” e “A pele de onagro”, passando pelo belga Maurice Maeterlinck, até chegar às referências propriamente freudianas: Leonardo, Michelangelo, Jensen, Hoffmann, Ibsen, entre outros.

Para Rancière, a revolução estética não se dá, por exemplo, via a rebeldia britânica de Lord Byron contra a moral civilizada ou denunciando a s desordens da alma.

Trata-se antes de uma nova idéia de artista. Daquele que sabe freqüentar os subsolos, como o geólogo e naturalista francês, Georges Cuvier. De um artista que saiba encontrar a palavra muda através dos diversos usos do detalhe.

Diante disso, Rancière irá aliar a revolução estética ao advento da psicanálise: “O novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num certo sentido, faz o que fará o cientista de A interpretação dos sonhos ”.

(RANCIÈRE, 2009, p. 37). Isto é, “A grande regra freudiana de que não existem ‘ detalhes ’ desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética”. (RANCIÈRE, 2009, p.36).

Se nosso autor põe em relação pensamento estético e psicanálise, ele o faz preservando um cuidado histórico e epistemológico. A o estabelecer tal relação, Rancière não se esquece d o contexto médico-cientifico no qual a psicanálise foi criada e nem corre o risco de dissolve r o conceito de inconsciente freudiano. O filósofo não está inclinado em afirmar que o inconsciente freudiano depende da literatura e da arte, cujos segredos ele pretende desvendar (RANCIÈRE, 2009).

Segundo el e, “ Trata-se, antes de mais nada, de assinalar as relações de cumplicidade e de conflito que se estabelecem entre o inconsciente estético e o inconsciente freudiano ” (RANCIÈRE, 2009, p. 43-44).

Mais do que contrapor à autoridade da ciência a dos grandes no mes da cultura – os quais lhe servem de guias na viagem pelo Aqueronte explorada por seu método de tratamento-, Freud o faz porque essa lacuna entre ciência positiva e acervo cultural não está vazia (RANCIÈRE, 2009).

É justamente nesta brecha que o filósofo situa o Inconsciente Estético: Tal espaço é o domínio desse inconsciente estético que redefiniu as coisas da arte como modos específicos de união entre o pensamento que pensa e o pensamento que não pensa. Ele é ocupado pela literatura da viagem pelas profundezas, da explicitação dos signos mudos e da transcrição das palavras surdas (RANCIÈRE, 2009, p. 44).

Conforme nos lembra o autor, em Freud não há o insignificante, e os detalhes prosaicos que o positivismo desprezou e lançou à racionalidade fisiológica são signos que cifram uma história (RANCIÈRE, 2009).

Dito de outro modo: “Não existe episódio, descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra”. (RANCIÈRE, 2009, p.37). A literatura de geólogos e arqueólogos como Balzac e Freud mostram que entre pensamento e não pensamento, cifragem e decifragem, tal escrita se conecta à pura dor de existir e à pura reprodução do sem-sentido da vida, “(…) aquela que não fala a ninguém e não diz nada, a não ser as condições impessoais, inconscientes, da própria palavra”. (RANCIÈRE, 2009, p.39).

Freud, o psicanalista, é um hermeneuta, mas é também um médico, um sintomatologista, diz Rancière:

A sintomatologia literária mudará então de estatuto nessa literatura das patologias do pensamento, centrada na histeria, no “nervosismo” ou no peso do passado, nessas novas dramaturgias do segredo velado, em que se revela, através de histórias individuais, o segredo mais profundo da hereditariedade e da raça e, em última instância, do fato bruto e insensato da vida”. (RANCIÈRE, 2009, p.39).

Não somente através da doutrina freudiana, mas também através de Kant, S c helling e Hegel, o filósofo nos apresenta um pensamento daquilo que não pensa. Em “O Inconsciente Estético ”, a arte circunscreve um território de reunião dos contraditórios, de um pensamento presente e fora de si mesmo, idêntico ao não pensamento. Ou seja, há pensamento operando no elemento estranho do não-pensamento, e este não-pensamento que o habita lhe dá uma potência específica (RANCIÈRE, 2009).

As sim, as duas faces da palavra muda manifestam o inconsciente estético: a palavra muda escrita nos corpos que é decifrada e reescrita, e uma “ palavra surda de uma potência sem nome que permanece por trás de toda consciência e de todo significado, e à qual é preciso dar uma voz e um corpo,” (RANCIÈRE, 2009, p.41). Enfim, e m “O Inconsciente Estético”, vemos que a descoberta de Freud abriu uma lacuna entre ciência e arte produzindo uma racionalidade capaz de formalizar este campo de fronteira entre estética e teoria psicanalíticas:

“(…) a abordagem freudiana da arte em nada é motivada pela vontade de desmistificar as sublimidades da poesia e da arte, direcionando-as à economia sexual das pulsões. Não responde ao desejo de exibir o segredinho — bobo ou sujo — por trás do grande mito da criação. Antes, Freud solicita à arte e à poesia que testemunhem positivamente em favor da racionalidade profunda da “fantasia”, que apoiem uma ciência que pretende, de certa forma, repor a poesia e a mitologia no âmago da racionalidade científica” (RANCIÈRE, 2009, p.45).

Ednei Soares-Psicanalista, mestre em Psicologia. Professor do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras de Ipatinga-MG

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Mídia e Política / Albuquerque: Revista de História / 2013

Toda história é presente e aos vivos ela pertence. Diversos historiadores disseram a mesma coisa com outras palavras, em tempos diversos e de diferenciadas maneiras. O importante, contudo, é consolidar a idéia de que o objeto de estudo da história é o homem, o seu tempo e as suas construções.

A revista Albuquerque, em sua nona edição, está viva e presente. A cada número que vem à luz, amadurece e solidifica a sua proposta original de divulgar estudos inovadores que revigoram a área de conhecimento da história, enfatizando temáticas regionais. Mas, como representação da produção histórica viva e presente no ambiente acadêmico contemporâneo, a revista assume também a forma apropriada de um caleidoscópio de temas e de abordagens balizadas sempre pelo critério de qualidade científica.

Dessa forma, em sua primeira parte estão publicados artigos completos e de diversas e interessantes abordagens: Impactos sobre o desenvolvimento regional decorrentes do Assentamento Itamarati, Ponta Porã (MS): 2001 -2010, de Maria de Fátima Lessa Bellé, Gilberto Luiz Alves e Celso Correia de Souza; Nacionalismo, antifascismo e internacionalismo nas Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola (1936 -1939) de Jorge C. Fernández; Do Tejo ao Rio das Mortes: sobre fazer-se “homem bom” na longínqua Vila de São João Del Rei. Séculos XVIII e XIX de Tarcisio Greggio e Relações de trabalho e industrialização recente na periferia de Vitor Wagner Neto de Oliveira.

Na segunda parte, a revista Albuquerque, com o Dossiê Mídia e Política, apresenta um painel significativo e oportuno, tendo como eixo a imprensa brasileira que ainda reflete os seus dilemas históricos na sua difícil convivência e articulação com outras esferas de poder, com as incertezas da crise de paradigmas do nosso século e mudanças sociais, econômicas e tecnológicas vertiginosas. De fato, debruçar sobre o passado para buscar a compreensão e a explicação do nosso mundo, do nosso tempo e dos processos históricos que os produziram, é a especial e principal responsabilidade dos historiadores, iniciantes e veteranos aqui representados vivos e presentes.

O Caderno Especial dedicado a divulgar documentos interessantes para a história regional, nesta edição, acompanha a temática dos trabalhos do Dossiê Mídia e Política, reproduzindo um artigo do jornal A Tribuna de Corumbá, de 1943. O autor, Lobivar de Matos, falecido prematuramente aos trinta e três anos de idade, foi um expoente da poesia moderna da língua portuguesa, apenas reconhecido recentemente por pesquisadores da literatura regional. Naquela oportunidade, Lobivar de Matos homenageou a figura do cidadão Pedro de Medeiros, também poeta, líder popular e corumbaense proeminente.


Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.5, n.9, 2013. Acessar publicação original [DR]

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A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios entre o Brasil e o Paraguai – ALBUQUERQUE (RTF)

ALBUQUERQUE, José Lindomar Coelho. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010, 268p. Resenha de: BALLER, Leandro. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 2, jul.-dez., 2012.

De forma clara o autor no início do livro observa as suas relações com os su-jeitos, ou atores sociais da pesquisa, mostrando ao leitor a sua análise metodológica e teórica, sem perder de vista o seu metiê, que é a Sociologia, ou melhor, às Ciências So-ciais, sem, todavia, esquecer dos perigos que uma pesquisa no ambiente fronteiriço re-presenta ao pesquisador.

Isso posto, auxilia na compreensão do objetivo central do trabalho que está ligado a pensar as representações nacionais e as relações de poder entre o Brasil e o Paraguai, a partir dos discursos dos imigrantes, líderes camponeses paraguaios, jornalistas, empresários, religiosos, entre outros. Acredito que as tipologias de fontes utilizadas supriram os objetivos no tratamento da problemática, as entrevistas, as reportagens nos jornais e revistas, e os documentos analisados foram suportes para pensar tais representações, no recorte da análise.

Referente à bibliografia ela se mostrou variada tanto no tocante às explicações teóricas e do tema específico, percebi uma preocupação em aplicar a interdisciplinaridade especialmente na construção textual, mesmo compreendendo que tal preo-cupação é resultado imediato do trabalho de campo, ou seja, não basta utilizar a inter-disciplinaridade referindo-se apenas a autores e obras de outras áreas, mas sim, esta-belecer da melhor forma possível um diálogo interdisciplinar.

As fronteiras são conceituadas na pesquisa como um limite territorial nas migrações fronteiriças, quanto à presença de brasileiros no Paraguai, sem deixar de lado, as questões políticas, jurídicas e culturais. As representações abordadas pelo au-tor muitas vezes são negativas por meio de conflitos violentos e disputas de território, a imigração clandestina, o tráfico de drogas e o roubo de carros é uma das realidades reforçadas pela imprensa, não que isso seja mentira, mas auxilia na estigmatização acentuada dessas ocorrências. O fenômeno da imigração produz pluralidades de fronteiras, entre o material e o simbólico, a abordagem historiográfica como paradigma a ser seguido nos leva a aplicar grande parte de seus significados na Marcha para o Oeste, algumas vezes confundida até mesmo com a abordagem de Turner, como um mito fundacional da identidade que é elaborada pelos historiadores, a percepção da alteridade pelos antropólogos, sociólogos e geógrafos, que tentam explicar o movi-mento migratório no Brasil pelas frentes de expansão e frente pioneira. No caso dos Brasiguaios isso não se aplica nas migrações fronteiriças. O autor reconhece as diferentes perspectivas e inovações no cenário dos atuais estudos fronteiriços especial-mente etnográficos e históricos, e não apenas aqueles que se dão em relação aos estudos que refletem sobre locais privilegiados de análise, dessa forma encontramos nesses atores sociais o cruzador de fronteiras e o reforçador de fronteiras, tais processos po-dem ser vistos nas teorias pós-coloniais.

A articulação do autor entre as vertentes de pensamento se dá de maneira bastante clara, como por exemplo, com o que denominamos na historiografia de pós-moderno. “Os espaços de intercâmbio cultural não significam espaços de integração social. Hibridismo não é sinônimo de integração” (p. 51). O que parece ser uma característica do pesquisador em relação ao tema; quero dizer que a clareza entre correntes de pensa-mento é para mim um “trânsito” intelectual que coloca o autor em evidência na perspectiva dos estudos fronteiriços.

Seguindo como referência as teorias dos movimentos migratórios tradicionais – migrar do mais pobre para o mais rico – a tônica migracional do Brasil para o Para-guai está invertida, e a grande quantidade de brasileiros indo para o país vizinho a par-tir de 1960 e se acentuando na década de 1970 se explica por alguns fatores; como a proximidade geopolítica, a migração espontânea, as políticas de incentivo, a construção da Itaipu, e o boom do comércio fronteiriço.

O autor retoma os principais eventos históricos do século XIX para dar um ponto de partida à sua explicação e mostrar a ocorrência histórica do movimento migratório, bem como denota a situação política entre 1870 e 1932, um período entre guerras que o Paraguai sobreviveu entre golpes políticos. A abordagem que o pesquisador dá na retomada da articulação política entre os dois países após a Guerra da Tríplice Aliança, mostra um período de ditaduras, concessões e apoio, inclusive na construção de grandes projetos. O que se denominou de estratégias geopolíticas que mostrava o crescimento do Paraguai, era na verdade a legitimação do governo de Stroessner (1954-1989), com o Brasil atuando como expansionista e subimperialista naquele país, Stroessner facilitou a entrada e a compra de grandes extensões de terras nas zonas de fronteiras por estrangeiros, entre eles a maioria brasileiros.

No tocante ao comércio e o seu crescimento o autor denota a importância que é a baixa carga de impostos naquele país e o crescimento das cidades mais próximas ao Brasil, o que se percebe é a forma de fazer este comércio “ilegal” de exportação e importação entre os dois países (sacoleiros, muambeiros, camelôs, atravessadores, […]). O que se percebe é que a economia paraguaia se volta para fora do país e não ao seu interior, especialmente uma dependência para com o Brasil, frutos das políticas de expansão dos dois países que ultrapassa os territórios nacionais.

O quantitativo demográfico brasileiro no Paraguai não é exato, até pela diferente metodologia de controle que é exercida pelos dois países, mas por outro lado, é também fruto de interesses políticos e econômicos, seja do governo, da igreja, da imprensa em geral, etc. essa inexatidão não é neutra de valores, e quanto à ilegalidade e legalidade demográfica há um receio político nessas áreas de fronteiras, como, por exemplo, brasileiros “legais” ocupando cargos políticos, ou mesmo em questões mais diretas como a questão de votos e bases eleitorais em cidades nos dois países.

Os fluxos migratórios ao Paraguai são frutos de duas frentes, uma vinda do sul do Brasil – a maior – e outra do norte e nordeste – a menor. O que ocorre segundo o autor, são várias migrações internas no interior do Brasil e depois ultrapassa-se a barreira internacional, como percebemos nas fontes orais (p. 73/74/75), dessa forma há uma mescla migracional e de naturalidade no interior das famílias. O Paraná é uma das últimas fronteiras nacionais em direção ao Paraguai, desses dois fluxos migratórios.

O autor com o auxílio da bibliografia de Sprandel denota classificações ou estratificações sociais dos brasileiros no Paraguai em seis grupos diferentes (p. 76/77). Há outros autores como Oliveira que pensa essas classificações como categorias na-tivas, tendo assim um sentido histórico e analítico mais rico, do que um sistema de conceitos sociológicos. O autor “utiliza também as classificações dos próprios agentes sociais, que a todo instante estabelecem suas hierarquias sociais e as nomeiam de várias formas” (p. 78). Essa realidade é diversa e complexa para o autor, justamente porque a problemática estudada, em relação às identidades dos imigrantes que viera já de regiões distintas do Brasil.

No Paraguai a frente de expansão capitalista atua em antagonismo, pois en-riquece os de “fora”, ao mesmo tempo em que empobrece e expulsa os pequenos agricultores, o que provoca uma mudança nos sistemas políticos e econômicos, justamente por causa dos organismos de fomento – Bancos – com o fim das ditaduras, os agricultores pobres vislumbram novas possibilidades de propriedade no Brasil com o Pl-no Nacional de Reforma Agrária (PNRA), para muitos pesquisadores esse é o movimento que deu origem aos denominados Brasiguaios. Nesse mesmo contexto, os empresários e grandes agricultores se mantiveram no país e se fortaleceram, com outros incentivos, acordos e demandas, como por exemplo, com o Mercosul em 1995 (Tratado de Assunção), especialmente com o plantio de soja e a aplicação de novas tecnologias, sendo desse montante entre 70 e 80% responsáveis os imigrantes e desses em sua maioria brasileiros.

O autor denota alguns exemplos de como essa expansão é desigual no Paraguai. Por exemplo, ele cita a renda per capita no departamento de Alto Paraná no Paraguai que gira em torno de 14 mil dólares, enquanto no restante do país ela cai para aproximadamente 950 dólares. Os principais indicadores dessa expansão é a pre sença brasileira que se dá pelo plantio em larga escala de soja, pela Usina de Itaipu, e pelo comércio da Ciudad del Este, o que de certa forma legitima nesse contexto espacial um crescimento na zona fronteiriça, não descartando em momento algum a expansão em seus moldes para o interior daquele país. No interior do país ocorrem outras formas de vislumbrar essa expansão ocorrendo até mesmo atritos interclasses, haja vista que adentram as áreas dos Menonitas.

Esses atritos e conflitos fazem com que muitos empresários agrícolas, e grandes agricultores brasileiros voltem seus olhares para a aquisição de propriedades no Brasil comprando terras especialmente em MT, RN, PA, e GO. Por outro lado, quem permanece no Paraguai acaba aumentando seu poder econômico e político com a nacionalização dos filhos e descendentes, como ocorre em Santa Rita. “Nessa perspectiva, os estrangeiros seriam os porta vozes dos ideais da modernidade, enquanto os paraguaios seriam tradicionais e atrasados […]” (p. 90).

A influência cultural brasileira no Paraguai se dá muito em relação ao idioma português nas zonas fronteiriças, essa questão mexe com “todos” os aspectos culturais nacionais paraguaios desde as escolas, televisão, rádios, fachadas de lojas, letreiros públicos, entre outras formas. Tais aspectos acabam mesclando as culturas em um com-plexo, ambíguo e ambivalente movimento migratório, com seus conflitos, sejam “bons ou ruins”, em permanente desequilíbrio econômico de um país que se adapta no interior do outro.

O autor explora de maneira hábil as fontes a que se propõe sobre os conflitos na zona de fronteiras, mostrando a perspectiva bilateral das questões que envolvem brasileiros e paraguaios, e ainda que há outros imigrantes que não são brasileiros nestes locais. Existe até mesmo de maneira bastante visível uma tendência conflituosa entre paraguaios e indígenas naquele país, o que mostra que as relações de poder não são uníssonas. Aparecem nesse contexto de disputas de terras as várias narrativas coletadas pelo autor como a visão de paraguaios, brasileiros, jornalistas, autoridades, professores, motoristas, diretores de escolas, entre outros profissionais e segmentos. Muitos deles pela perspectiva do autor buscam mostrar a origem do movimento migratório para o Paraguai na “oferta” que se dava no período ditatorial em ambos os países.

Atualmente e na visão do autor ele percebe as formas de resistência nestas relações de poder, bem como se ordenam os discursos políticos de políticos brasileiros no Paraguai, e de discursos políticos paraguaios, ou seja, as decisões se dão na maioria das vezes obedecendo a conjunturas políticas da atualidade, e propósitos políticos lo-cais, sempre atuando sobre forte pressão, um exemplo, é a aprovação da Lei de Segurança Nacional Fronteiriça, que antes era defendida sob o jugo da questão territorial e não era aprovada, no momento de sua aprovação ela foi defendida enquanto propósito da identidade e do nacionalismo. E mais atualmente a criação do Mercosul deu espaços de infiltração multinacional nessas mesmas áreas. Considero as percepções do autor excelentes ao remeter muitas dessas questões atuais a um passado memoria-lístico dramático nas relações dos dois países, ou seja, mesmo em momentos de “apa rente” tranqüilidade, a disputa é um ponto efervescente em qualquer discussão entre pessoas desses dois países, seja nos meios políticos, intelectuais especialmente de es-querda, e muito mais ainda entre proprietários e campesinos, isto é, se estabelece na percepção do autor uma disputa cotidiana no senso comum. E este aspecto mostra co-mo o autor se relaciona com seus interlocutores, bem como, a maneira como explora a literatura em relação ao método da História Oral.

A narração histórica da nação na fronteira ocorre por recortes sincrônicos, sem uma perspectiva linear, dilemas que remontam aos impérios metropolitanos, sem-do primeiro por questões religiosas – Jesuítas – depois por questões de enfrentamento – Guerra da Tríplice Aliança – e por último a influência geopolítica – proximidade territorial – entre Brasil e Paraguai.

O autor percebe um discurso atual no Paraguai que os leva a uma imagem negativa da presença dos brasileiros, como os coloniais Bandeirantes, esses discurso se fortalece com a monumentalização dos locais de memória, que para as “pessoas comuns” possui um valor simbólico importante. A visualização é propagada por bispos que exercem forte influência política, além de religiosa em alguns Departamentos, por outro lado, estes discursos sofrem resistências internas por parte da imprensa que muitas vezes defende os brasileiros que ali residem. Nota-se que as fronteiras imprecisas do século XVII, fazem com que religiosos até hoje se vejam como guardiões das fronteiras, como ocorria, por exemplo, com as reduções indígenas, o Paraguai atual-mente herda excessivamente esse discurso, de proteção espanhola, seja na Argentina guaranítica, e nas margens dos grandes rios dessas regiões. O Brasil traz consigo o es-tigma de imperialista e/ ou expansionista, como se apresentavam os Bandeirantes do Século VXII, contra os indígenas convocados pelos espanhóis para defender esse território.

Outros defendem o progresso que os brasileiros levam ao Paraguai, podemos perceber isso como uma luta simbólica, em que o brasileiro está em permanente avanço silencioso no outro país, na visão de segmentos de esquerda. Não se negou em mo-mento algum a ressignificação da memória que se herdou das duas batalhas – Tríplice Aliança, e Guerra do Chaco. Bem como, os marcos simbólicos de ambas que se juntam num mesmo sentimento nas experiências bélicas do passado, reforçando com isso o nacionalismo paraguaio. Pelo lado brasileiro essas experiências segundo o autor podem ser denotadas pelos escravos, ou seja, as questões bélicas funcionam como um espécie de calvário para o Paraguai. Terminam-se os combates, mas continuam as lu-tas simbólicas de heróis e traidores. O autor retoma e conduz muito bem o revisionismo historiográfico do pós-guerra no Paraguai, especialmente com Leon Pomer, Ju-lio José Chiavenatto, e Francisco Doratioto, sem deixar de lado outras abordagens so-bre a questão, como uma que se apresenta nos livros didáticos do Paraguai em que a figura de Solano Lopes não é aceita como herói pelos próprios paraguaios.

Nesse ínterim a figura de Stroessner não demora à aparecer como o “pa-triarca do progresso”, sendo ele o principal personagem da imigração brasileira para o Paraguai, essa questão durante anos personificou sua imagem com o auxílio das forças armadas, às vezes se compara à outros heróis do passado surgindo lado-a-lado com outros famosos personagens. Em 35 anos de ditadura ele apoiou a entrada de capital estrangeiro e de imigrantes com o “intuito” de desenvolver o país, uma ditadura personalista que viu desde a ascensão com a construção da Usina de Itaipu Binacional, até a decadência com o final das ditaduras na América do Sul. Mas para o povo para-guaio apenas em 2008 se rompeu com o Partido Político Colorado e os ideais de Stroessner com a eleição do bispo Fernando Lugo, nota-se uma espécie de nostalgia a Stroessner no Paraguai, que o autor denota como a necessidade de uma construção identitária forte e coletiva espelhada no General, especialmente para pessoas que viveram naquele período, bem como pelos imigrantes brasileiros que foram favorecidos pelo seu sistema de governo.

As lembranças dos momentos significativos servem para demarcar fronteiras políticas e culturais, e reafirmar identidades nacionais no confronto contemporâneo na zona fronteiriça […], as recordações do passado servem para reativar e alimentar os sentidos das lutas do presente” (p. 159). Percebe-se que de uma coletividade pode haver a reativação e intensificação dos ressentimentos, reafirmando inferioridades e superioridades nacionais.

O autor denota o “jogo” de representações que se configuram, nestas “fronteiras entre ‘nós’ e ‘eles’”, a partir de discursos classificatórios entre imigrantes brasileiros e os paraguaios, faz inclusive uma rememoração no tempo histórico na in-tenção de mostrar os caracteres do jogo identitário e de alteridade, desde o movimento migratório europeu para a América e em consequência para o Brasil e seus principais descendentes – italianos, alemães, portugueses, holandeses (…). Nesse sentido, muito do que é representado no Paraguai é o que se herdou desses discursos provindos da Europa, com ideologias prontas e que são reproduzidas no Paraguai, como por exemplo, a ideologia do trabalho, da limpeza, da organização, e a valorização dessa cultura considerada superior tanto por parcelas paraguaias, quanto por parcelas brasileiras. Esse ethos classificatório mostra na relação entre as pessoas dos dois países a gestação de preconceitos que também ganham força em outro tempo histórico – a Guerra da Tríplice Aliança no século XIX.

Tais analises valorativas mostradas por meio de suas fontes cria estigmas que provocam outras conseqüências, como as ondas nacionalistas nesses países e a construção de discursos de ambos os lados que fazem com que se generalizam aspectos culturais, sociais, agrícolas, econômicos, religiosos, entre outros, nos dois países. Esses aspectos estigmatizantes encontram teses que advém do período colonial, como já foi posto anteriormente. A relação de poder nessa construção de discursos encontra variá-veis que servem para denotar a realidade, ou para atender um objetivo atual ligado a questões políticas e de propriedade, o que o autor chama de figuração de poder, que está diretamente permeada nas relações de poder, momentos em que as construções das imagens são feitas, aparecendo geralmente o valorativo superior e inferior, isto é, é a produção das identidades que estão em disputa, em um meio bastante dinâmico que são os movimentos migratórios nas zonas fronteiriças e nesse contexto “todos” os fa-tores culturais estão atuantes.

Talvez a grande expectativa que o autor lançou e que é difícil de conferir em sua escrita clara e objetiva, é de como legitimar estes discursos, por se tratar, como ele mesmo afirma, de realidades heterogêneas, e de representações homogêneas, para isso o esforço do autor é interessante, pois a percepção desses discursos classificatórios neste contexto fronteiriço é um jogo de expressões que de certa forma explicam tais expectativas como disputas simbólicas, em que se percebe as resistências, as imposições, as micro relações sociais, as tensões culturais e especialmente como isso “tudo” é res-significado pelas pessoas, isso quer dizer “os termos estão em permanente mudança de sentido e são ativados conforme as relações conflituosas que se estabelecem no cenário das relações interculturais” (p. 191). As relações discursivas muitas vezes são produzidas pela imagem do espelho do ‘outro’, e este ‘outro’ não pode ser generalizado, seja em seu espaço, tempo, ou história. Enfim o que denota-se aqui é um Brasil com aspectos supe-riores, e um Paraguai inferiorizado.

Acredito que as identidades fronteiriças é o cerne da pesquisa do autor, o entrelaçamento das propostas que discute no decorrer do livro, é resultado de uma extensa pesquisa. Consolidar identidades a meu ver é impossível, em um ambiente fronteiriço e que envolvem práticas culturais discrepantes, e a latente sociabilidade co-mo percebe-se na coexistência entre brasileiros, paraguaios, e Brasiguaios, isso se torna ainda mais complexo, pois não existem construções/produções/processos humanos eternos, e a identidade faz parte desse jugo em meio as expressões e dos discursos pro-duzidos e que alimentam essas práticas e o seu cotidiano; como ocorre com a im-prensa, intelectuais, políticos, empresários, religiosos, camponeses, campesinos, entre outros grupos, sejam eles grupos étnicos, nacionais, de proprietários, comunidades, etc.

Percebe-se que são os vários conflitos de ordem objetiva e subjetiva que demonstram a complexidade da pesquisa, ao observar a tentativa de construção indentitária como algo que não age sem a resistência de grupos, comunidades, nações, etnias, ou seja, as relações de poder que o autor inúmeras vezes aborda é uma complexa rede de simbologias e concretudes que não se auto explicam, muito pelo comtrário servem para legitimar perspectivas despreparadas que não percebem a ambiva-lência que está alocada nos dois lados desses países, isto é, o olhar bilateral do autor nos leva a ver que a noção de cidadania se conquista e se perde ao longo do processo histórico que existe enquanto ocorrência histórica entre Brasil e Paraguai, e posterior-mente com os Brasiguaios. Uma história que tem genealogia próxima de meio século de ocorrência e que sofre interferências desde o século XVII, até a atualidade.

As práticas culturais que fazem parte da convivência de brasileiros e paraguaios considerados “puros” são claras, como por exemplo, a música, o tererê, o idio-ma, a moeda, as escolas, as famílias […]. Tais práticas corroboram na hibridação desse novo grupo e dos considerados “puros” como um processo inacabado. Por último concordo com a abrangência maior que o autor dá ao termo Brasiguaio, algo que já de-fendi em outros estudos, isso quer dizer que a compreensão em torno do que é ser brasiguaio é independente do entendimento desse grupo, como sentido de etnicidade; quero pensar que muitos estudos auxiliam a pensar esta perspectiva enquanto escolha teórica e metodológica em relação ao tema, mas que não dá conta da totalidade que representa a formação do grupo, bem como a sua manutenção no tempo presente, sem, todavia deixar de reconhecer a importância de outras abordagens, no ambiente fronteiriço, especialmente entre os conflitos harmoniosos ou de tensões que o Brasil mantem com os países vizinhos na América do Sul.

As hipóteses de futuras e prováveis pesquisas que o autor levanta no final do livro são riquíssimas, justamente por que não se pode cair em perspectivas generalizantes em relação às fronteiras e aos países e suas gentes que circundam o Brasil. Ou seja, cada caso possui suas especificidades. Acredito que a mobilidade do autor em re-lação às diferentes “correntes” de pensamento, seja na Sociologia, na Antropologia, na Geografia e na História, é importante para a que a obra não sofra classificações teóricas e metodológicas, quero dizer que a preocupação em abordar diferentes perspectivas como a pós-modernidade, o marxismo, a história do tempo presente, a história oral, a imprensa, entre outras sintetiza para o leitor não especialista no assunto uma realidade complexa da fronteira e que pode ser compreendida por meio das fontes trabalhadas, independente das questões simétricas ou assimétricas sobre a identidade. Esta resenha não substitui a leitura integral do livro, tem como objetivo, estabelecer pontos de reflexões e de abordagens que a pesquisa do autor denota.

Leandro Baller – Universidade Federal Mato Grosso do Sul. Centro de Ciências Humanas e Sociais Campus de Nova Andradina, Cidade Universitária Rodovia MS 134 Km 3. CEP 79750-000. Nova Andradina – MS – Brasil. E-mail: leandro.baller@ufms.br.

Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos | Cyril Lionel Robert James

I. Sobre o Sr. Cyril Lionel Robert James [2]

O historiador, romancista e jornalista Cyril Lionel Robert James nasceu em janeiro de 1901 na ilha de Trinidad. Teve uma infância e juventude privilegiada, marcada por uma excelente formação escolar e pela prática esportiva do cricket. Com apenas 19 anos deu início a sua carreira docente, lecionando literatura, na Royal Queen’s College.

Em 1932, aos 31 anos, muda-se para a Grã-Bretanha, devido a sua paixão e conhecimento sobre cricket tornasse repórter esportivo do Manchester Guardian. Na terra da rainha, filia-se ao Partido Trabalhista Independente, (Independent Labour Party) e, em 1938, aderiu a IV Internacional Comunista, entrando em contato, mais intensamente, com as ideias de Leon Trotsky.

É notória a influência que as teses marxistas, em especial as interpretações trotskista, exercerão em suas obras “A Revolução Mundial 1917-1937”, publicada em 1937, e os “Jacobinos negros” de 1938. Vale destacar, que nesse período, a Europa passava por grande instabilidade política, devido à ascensão do nazi- -fascismo e pelo totalitarismo stalinista na URSS.

Por conta da Segunda Guerra Mundial, James refugia-se nos Estados Unidos, onde deu prosseguimento a suas atividades acadêmicas e políticas. Membro fundador do Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party ou SWP) publicou em 1948 o manifesto “Uma resposta revolucionária ao problema do negro nos Estados Unidos”.

Devido a sua militância, em 1953, James foi expulso dos Estados Unidos. Ele decidiu voltar à Inglaterra, onde permaneceu até 1958, quando, então, retorna a Trinidad. Em sua terra natal, envolve-se na luta pela libertação anti-colonialista britânica. Ainda na década de 1950 publica a obra “Navegantes, Renegados e Náufragos: Herman Melville e o mundo em que vivemos” em 1953.

A década de 1960 foi bem movimentada para o nosso autor, no campo político James se envolve nos movimentos de independência na África e em Trinidad, é entusiasta dos ideais do Pan-Africanismo e da integração das ilhas caribenhas em uma – Federação das Índias Ocidentais.

No tocante a carreira acadêmica e produção intelectual publica em 1960, “Política Moderna”, em 1962, “Partidos Políticos Livres nas Índias Ocidentais” e, em 1963, “Além da Fronteira”. Em 1968, vem o convite para lecionar na prestigiada Universidade de Columbia nos Estados Unidos.

Durante a década de 1970, James retorna para a Inglaterra e ainda encontra fôlego para publicar “Nkruma e a Revolução de Gana” em 1977. Na década de 1980 retorna para Trinidad aonde veio a falecer em 1989, deixando como legado, uma produção acadêmica respeitada e de referência para estudos nas ciências humanas, bem com, um exemplo de vida marcado pela entrega a militância e a seus ideais.

II. Sobre a obra: Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos

Em 1938 James, residindo em Londres, publica “Os jacobinos negros” (The black jacobins), a obra trás questões referentes à revolução negra de São Domingos e a sua relação com a sua principal liderança: Toussaint L’Ouverture. No Brasil o texto terá sua primeira tradução apenas em 2000, feita por Afonso Teixeira Filho, com uma edição revisada em 2007 pela Editora Boitempo. Em suas 400 páginas a estrutura física do livro está dividida em 13 capítulos acompanhados de um apêndice intitulado “De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro”.

Para maior compreensão do livro, temos que levar em conta o contexto em que foi escrito: descrédito do liberalismo, auge do nazi-fascismo e predominância das teorias eugênicas. Tal cenário acabou motivando o autor a escrever um texto, que denunciava o estado de opressão em que vivam os africanos e seus descendentes, seja na África ou em outras partes do globo, tornando a posteriori leitura obrigatória para estudos sobre a diáspora Africana.

Embora o ano de publicação date de 1938 James já havia escrito sobre o assunto antes, em 1932. O trabalho de levantamento bibliográfico e de fontes foi grandioso, sendo necessário até “importar da França livros que trataram seriamente desses eventos tão célebres na história daquele país.” [3]. A pesquisa também contou com correspondências e relatórios oficiais, compêndios de história do comercio colonial, narrativas de viajantes, dados estatísticos e biografias.

Ainda no tocante a função social da obra e sua importância para a interpretação histórica, James nos aponta, que a grande virtude contida no “Os jacobinos negros” é a ênfase dada ao protagonismo dos escravos no processo revolucionário, nas palavras do autor: “foram os próprios escravos que fizeram a revolução.” [4] , tendo especial destaque a figura do líder do movimento – “foi quase totalmente trabalho de um único homem: Toussaint L’Ouverture” [5] .

III. A tese central

A viabilização da revolução no Haiti deve-se, em parte, ao fato dos escravos já se encontrarem, em certa mediada, organizados e disciplinados, devido o sistema fabril, já implantada, no século XVIII, nas lavouras da ilha. Para o autor:

Trabalhando e vivendo juntos em grupos de centenas nos enormes engenhos de açúcar que cobriam a Planície do Norte, eles estavam mais próximos de um proletariado moderno do que qualquer outro grupo de trabalhadores daquela época, e o levante foi, por essa razão, um movimento de massas inteiramente preparado e organizado [6]. (Grifo nosso)

Observa-se que para o autor, já no século XVIII, havia entre os escravos do Haiti uma consciência de classe, que os permitiu se organizarem para combater a exploração colonial. Deve-se destacar também, que os revoltosos tinham o desejo de libertar-se da tirania a que eram submetidos, deste modo, se insurgiam contra os maus tratos, ainda nos navios negreiros – “Morriam não apenas por causa do tratamento, mas também de mágoa, de raiva e de desespero. Faziam longas greves de fome; desatavam as suas cadeias e se atiravam sobre a tripulação numa tentativa inútil de revolta.” [7]

III. Leitura Marxista Revolta escrava ou uma luta de classes?

Mesmo para os leitores que não tem contato com a biografia de James, a terminologia empregada por ele, deixa claro que se trata de uma leitura fundada no marxismo. Não são poucos os conceitos empregos em seu texto: proletariado, imperialismo, luta de classes, revolta das massas trabalhadoras, exploração dos escravos, dos trabalhadores – constituem a interpretação dado pelo nosso autor para o problema em que se dispões a analisar além das citações a Lênin e a Trotsky.

É possível afirmarmos, diante do seu livro, bem como de sua biografia, que James, como filiado ao Partido Trabalhista Independente, militante da IV Internacional, fundador do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) e integrante ativo de diversos movimentos sociais, de que demarcou sua interpretação sobre a História a partir de sua leitura da “teoria da revolução permanente” proposta por Leon Trotsky.

Respondendo a questão feita acima, se partirmos da leitura de nosso autor sobre o fato histórico que ocorreu no Haiti, foi à demonstração de uma luta de classes. Tal leitura recebeu diversa criticas, uma das mais conhecidas no Brasil foi feita pelo professor Dr. Jacob Gorender

As rebeliões, no começo do século XIX, no continente americano, só podiam ter caráter antiescravista e anticolonialista. No mundo atual, o cenário internacional é sacudido pelas lutas anticapitalistas e antiimperialistas. Trata-se de etapas históricas profundamente diversas. Não obstante, o anacronismo não prejudica o texto que se segue ao Preâmbulo.[]8

Não podemos deixar de mencionar a crítica feita pelo professor Jacob Gorender ao preâmbulo datado de 1980, em que James liga as rebeliões escravas no Haiti com as lutas operárias do século XX cometendo aquele que é considerado o maior dos pecados para o historiador: o Anacronismo. Todavia dentro de uma abordagem histórica e social, entendemos que devemos contextualizar o autor e sua obra com sua leitura de vida, nos parece que a escrita de “Os jacobinos negros” e o prefácio de 1980, antes de um texto acadêmico é um esforço militante, que tem como pretensão denunciar, conforme o próprio autor, a “perseguição e opressão” que vivem os africanos e os afro- descendentes.

VI. O caso Haiti

Em 1789, a colônia francesa das Índias Ocidentais de São Domingos representava dois terços do comércio exterior da França e era o maior mercado individual para o tráfico negreiro europeu. Era parte integral da vida econômica da época, a maior colônia do mundo, o orgulho da França e a inveja de todas as outras nações imperialistas. A sua estrutura era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos.[9]

Basta ligar a televisão, sintonizar o radio ou acessar a internet e entrar em contato com as notícias que vem do Haiti. Logo nos depararmos com as palavras: tragédia, caos, crise, fome, morte, doenças. Estas informações quando soam aos nossos ouvidos nos faz refletir – como uma colônia produtora de açúcar, café, anil, cacau, algodão, entre outros produtos, responsável por dois terços do comércio exterior da França, que em 1789, exportou 11 milhões de libras [10], fracassou no projeto de Estado-nação livre da miséria e das desigualdades? James propôs uma resposta.

Para o nosso autor, o fracasso do projeto Haiti não se deve apenas a falta de diversidade econômica, uma vez que, a produção primária dominava a paisagem, não havendo maiores perspectivas de geração de riqueza, em especial ao desenvolvimento industrial.

Na análise de James o isolamento ou quarentena imposta pelas potências imperialistas e até mesmo as nações latino-americanas, foram responsáveis pelo atrofiamento econômico da ilha caribenha, não permitindo o desenvolvimento de uma economia mais sólida, tendo por consequência o agravamento das desigualdades históricas já bem conhecidas pela massa trabalhadora do Haiti.

V. Considerações finais

Compreendemos o texto de Cyril Lionel Robert James, como sendo um esforço para responder questões que não se restringem somente ao caso da independência do Haiti, mas como uma leitura sobre a exploração do trabalho escravo e as formas de relação do sistema escravista e colonial na América.

Para finalizarmos, podemos dizer que ainda hoje, o texto serve como instrumento de análise para entendermos as relações de trabalho em muitos países latino-americanos, onde encontramos cada vez mais latente essa realidade apregoada pelo método capitalista de exploração, proposta pela manutenção dos grandes latifúndios, das monoculturas de exportação e da exploração da mão de obra dos trabalhadores do campo.

Notas

2. Informações extraídas da comunicação feita pelo doutorando, Unesp/Franca, Rubens Arantes no curso “A escravidão na cultura ocidental”; e pela comunicação de: SILVA, Tiago Hilarino Christophe da. Um marxista caribenho: o pensamento e a práxis de Cyril Lionel Robert James. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

3. JAMES, C. L. R. Op. cit., p. 11.

4. Idem, p. 14.

5. Idem, p. 15.

6. Idem, p. 99.

7. Idem, p. 23.

8. GORENDER, Jacob. O épico e o trágico na história Haiti. Estudos Avançados. V. 18, n. 50, 2004, p. 296.

9. JAMES, C. L. R. Op. cit., p. 15.

10. Idem.

Carlos Alexandre Barros Trubiliano1 – Doutorando em História Política da Universidade Julho de Mesquita (Unesp – Campus Franca)/ Bolsista FAPESP. E-mail: trubiliano@hotmail.com


JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2010. Resenha de: TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 4, n. 7, p. 225-230, jan./jun., 2012.

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História e Literatura / Albuquerque: Revista de História / 2012

A revista Albuquerque cumpre mais uma vez o seu compromisso de divulgar a produção acadêmica de qualidade, representando a área de História e suas articulações com as demais Ciências Humanas. Nesta edição de número oito, em seu quarto ano de teimosa existência sob o seu formato em papel e a despeito das dificudades inerentes à publicação tradicional de artigos, a Albuquerque apresenta o dossiê História e Literatura.

Os trabalhos aqui publicados atenderam à chamada pública através de edital espefícico, submetidos à avaliação e aprovação de conformidde com os seus critérios e normas. Entretanto, neste caso, os responsáveis pela resvista se surpreenderam com o resultado desta chamada, prontamente atendida com a afluência de bons trabalhos e em quantidade que extapolou as expectativas desta edição.

Entende-se, dessa forma, que a Albuquerque se fortalece e se consolida, buscando sempre atrair os pesquisadores que elegeram a área da História para focar seus estudos e que escolheram também a forma convencional de revista acadêmica, editada como brochura. Isso não sinifica uma reação conservadora diante das ferramentas eletrônicas, das redes sociais e demais instrumentos de divulgação via internet que, sem dúvida nenhuma, socializam a produção científica de forma muito mais rápida e democrática. Muito ao contrário, acredita-se que em breve a Albuquerque será editada também em versão eletrônica, sem excluir a sua forma tradicional.

Como bem demonstram os artigos do dossiê que seguem publicados, a escrita, o texto e a literatura, expressada sob as suas mais diversas modalidades e através dos diálogos possíveis com a ciência da História, remetem à tradição da pena, do papel e da prensa que produziram epístolas, documentos, códices e livros. Essa tradição é ainda muito importante e o prazer que proporcionam aos leitores e pesquisadores jamais será superado pelas inovações tecnológicas por mais fantásticas que se apresentem.


Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.4, n.8, 2012. Acessar publicação original [DR]

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A invenção do Nordeste e outras artes – ALBUQUERQUE JÚNIOR (RTF)

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4 ed. Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009. 340 p. Resenha de: MARTINELLO, André Souza. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.

O Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais, políticos ou econômicos apenas, mas, principalmente, construções imagético-discursivas, constelações de sentido.” Durval Muniz de Albuquerque Jr. (1999, p.307).

No ano de 2009 tivemos uma década da publicação da tese de doutoramento em História, defendida por Durval Muniz de Albuquerque Junior na Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP. Torna-se oportuno trazer novamente ao debate algumas abordagens e temáticas lançadas pelo autor, na obra intitulada: “A Invenção do Nordeste e outras artes”. Como registra a primeira edição do livro, o historiador recebeu com essa pesquisa, no concurso promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, a classificação de melhor trabalho de História no Concurso Nelson Chaves de Teses sobre o Norte e Nordeste brasileiro, no ano de 1996. Nesses últimos dez anos, desde a publicação da premiada pesquisa, Durval tem se tornado autor cada vez mais conhecido e se destacado no campo da historiografia brasileira e das ciências humanas de maneira geral; entre suas obras mais recentes, uma aborda a pesquisa, a escrita e as teorias da História, “História: arte de inventar o passado”, publicado pela Edusc (em 2007)1 e um livro da série “Preconceitos” da Cortez editora: “O preconceito contra a origem geográfica e de lugar.” (2007)2 De maneira geral, pode-se dizer que Durval tem-se preocupado com temas que envolvam o pensamento e a utilização das reflexões de Michel Foucault, por vezes relacionada à escrita da História, e também outra temática de seus textos está no que poderia ser denominado de História dos Espaços. Além de fazer parte do corpo docente do Departamento de um Programa de Pós-Graduação concentrado na abordagem “História e Espaço” na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Durval vem realizando pesquisas e publicando trabalhos articulando literatura, (crítica à) identidade regional, discursos constitutivos de espaços, regionalismos e vínculos territoriais, como fez, por exemplo, no Encontro Nacional de História-ANPUH realizado em 2007, na conferência intitulada: “O Tempo, o Vento e o Evento: história, espaços e deslocamentos nas narrativas de formação do território brasileiro”.3 Leitor assíduo (e conhecedor) da literatura brasileira, em “A invenção do Nordeste”, Durval se lança a compreensão de como ao longo do tempo, obras e diferentes autores, de épocas e escolas diversas, descreveram o Nordeste brasileiro e inscreveram essa região no país. Mas a literatura que Durval se utiliza como fonte, não é apenas aquela entendida como “ficcional”, como romances ou novelas, mas inclui textos (sociológicos) de Gilberto Freyre, por exemplo. Quais formas, nomeações e descrições constituíram o Nordeste brasileiro? Passando por João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Rachel de Quiroz; e “outras artes”, subtítulo do livro, também são utilizadas por Durval, com intenção de apontar em um conjunto diverso de massa documental como se identificaram determinadas representações no e do nordeste, seja literatura ou não. Luiz Gonzaga, Candido Portinari, Glauber Rocha, Di Cavalcanti, Dorival Caymmi, José Lins do Rego, Josué de Castro, Luis da Camara Cascudo e Euclides da Cunha.

O que há em comum nesse conjunto tão variado de personagens descritos nesse livro está justamente, na forma peculiar com que cada um realizou suas obras, de maneira a constituir (e inventar) a nordestinização de uma parte do Brasil, como um espaço Outro em relação ao centro-sul, centro-oeste ou norte do país: p.311) “[…] o Nordeste quase sempre não é o Nordeste tal como ele é, mas é o Nordeste tal como foi nordestinizado.” A idéia principal presente no livro, parece apontar a constituição do nordeste enquanto espaço da negação, o Outro do sul maravilha que se construía em alteridade e paralelo, cada vez colocado mais distante do sul. É como se ao longo do tempo tivesse ocorrido um constante e profundo afastamento das regiões nordeste e sul, afastamento que foi se constituindo por diversos olhares, interpretações e sentidos.

Vários apelos e constatações de artistas, escritores, nordestinos e intelectuais do país, formaram uma geografia do nordeste; justifica Durval da sua opção em abordar algumas fontes por ele eleita como vozes privilegiadas e edificadoras de determinados espaços e características como sendo nordestinas. A busca por uma distinção por parte do sul, em relação ao nordeste, também contribuiu na invenção desse último. p.307) “O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste.” Linguagens constituíram uma forma espacial de sentidos e de uma comunidade imaginada, (p.23) as diversas formas de comunicação, cinema, literatura, teatro, pintura, música, produção acadêmica, poesia são exemplos de linguagens que não apenas representam o real, como instituem o mesmo. Enquanto alguns propuseram fórmulas de alterações das realidades sócio-ambientais nordestinas, para resgatá-las de certa condição de atraso ou subdesenvolvimento, outros cantavam a tristeza da seca e suas conseqüências, como a partida dessa região sofrida. Para quem emigrou, o nordeste torna-se um espaço da saudade, com embalo de muitas melodias, poesias, danças e tradições inventadas para o constantemente lembrar o que é ser nordestino.

Poesias tratavam de registrar a sensação de ter de migrar forçosamente em direção a outros espaços, o exterior, o longínquo, o fora dali; já no cinema e na pintura, pensava-se estar documentando a realidade das condições de retirantes, da natureza agreste, tórrida e cada vez mais inabitável ou desumana. Todos, diz o autor, construíram argumentação que levou a nordestinização de um espaço que está pretensamente localizado ao nordeste de um Outro. Se há uma referência como sendo a central, torna-se assim viável a visualização de um nordeste. Ou seja, a constituição, ao longo de mais de duzentos anos, do nordeste e dos nordestinos (o espaço como gente), foram vistos e caracterizados como um problema: (p.20) “O que podemos encontrar de comum entre todos os discursos, vozes e imagens […] é a estratégia da estereotipização.” As artes que mapearam ou apresentavam o nordeste como temática, tornaramse monumentos que atuaram na constante alimentação de imagens que nos chegam até aos nossos dias, como tradutoras e representantes do nordeste e de uma identidade de nordestino, seja ela física (corporal), lingüística (sotaque, expressões), econômica, moral e social. Há um conjunto variado de categorias e formas, nas quais se tornam possíveis encontrar e apontar características de nordestinos e do espaço desse povo, e isso pode ser observado nos diferentes produtores de sentidos que Durval traz em cena para falar dessa região ou criá-la como uma região, no sentido de ser homogênea, ter uma mesma identidade, uma mesma história e expressar uma única cultura, por isso, é que o autor afirma que se trata de uma invenção, entre outras, pela criação de uma imagem homogênea de uma parte do Brasil.

Não devemos esquecer também que anteriormente a essa obra de Durval, a doutora em Ciência Política, Iná Elias de Castro, havia apontado, analisando, entre outras documentações, discursos de políticos eleitos e representantes de Estados do nordeste no Congresso Nacional, entre 1946 e 1985, o processo de construção e cristalização do Nordeste como em posição de constante necessidade, frente às demais regiões do país. Inclusive, muitas das críticas e questões levantadas por Durval, já haviam sido lançadas por Iná de Castro em 1992 na obra “O Mito da Necessidade.

Discursos e práticas do regionalismo nordestino”,4 o que sugere possíveis (e quem sabe, interessantes) possibilidades de comparação entre a tese defendida na História por Durval e na Ciência Política por Iná. É claro que utilizando fontes e documentação diferentes, por si própria, já nos sugerem resultados não propriamente semelhantes, somado a isso à perspectiva disciplinares e o referencial teórico diferente mobilizado por ambos. Iná também buscou dialogar com aspectos e obras sobre regionalismos, e Durval deixa claro que sua intenção está mais por se afastar dessa temática e aproximar sua análise a instituições e construções de identidades. É claro que ainda há outras possibilidades de comparação, utilização e iniciação do debate das críticas presentes sobre interpretações do nordeste brasileiro. Principalmente quando se publica recentemente, novas re-edições do livro “A Invenção do Nordeste”.

1 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru (SP): Edusc, 2007.

2 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007.

3 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. “O Tempo, o Vento e o Evento: história, espaços e deslocamentos nas narrativas de formação do território brasileiro”. Conferência realizada XXIV Simpósio Nacional de História – ANPUH, História e Multidisciplinariedade: territórios e deslocamentos, julho 2007. Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/otempo ovento o evento.pdf.

André Souza Martinello – Universidade Federal de Santa Catarina.

Indústria Cultural: uma introdução – DUARTE (AF)

DUARTE, Rodrigo. Indústria Cultural: uma introdução. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. (Coleção FGV de Bolso, Série Filosofia). Resenha de: MARINHO, Lucas Alves. Artefilosofia, Ouro Preto, n.10, abr., 2011.

Conformado, em seis curtos capítulos, aos propósitos da coleção que integra, destinada a “interessados em filosofia de uma forma geral [que] a partir de textos claros poderão ter acesso às grandes questões do pensamento filosófico”, o livro Indústria Cultural: uma introdução é exemplo de didatismo que segue bem de perto, sobretudo em seus quatro capítulos centrais, a exitosa sequência expositiva de Teoria Crítica da Indústria Cultural 1. O surgimento da Teoria Crítica da indústria cultural, segundo capítulo do livro, relata as mais importantes ocorrências relacionadas ao Instituto para a Pesquisa Social: desde seu surgimento em 1924 na Alemanha, às expensas de Felix Weil, como alternativa entre as diretrizes ideológicas da social democracia e do comunismo ortodoxo: a invasão do instituto em 1933, então sob a direção de Horkheimer, o exílio de seus integrantes e o prosseguimento das atividades junto à Columbia University, até a chegada de Adorno aos Estados Unidos em 1938. Naquele país, Adorno, juntamente com Horkheimer, reuniu as condições teóricas e vivenciais – o conhecimento dos mecanismos de produção e difusão cultural já industrialmente instalados, as reflexões sobre a ciência e personalidade burguesas, o acirramento do antissemitismo e o início da Segunda Guerra, bem como os aforismos Sobre o conceito da história, legados por Walter Benjamin – para elaboração da Dialética do Esclarecimento. Após essa aproximação histórica, segue-se uma breve explanação temática dos seguintes capítulos da obra sobre a dialética: “Conceito de Esclarecimento”, “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”, “Juliette ou Esclarecimento e Moral”. Explanação que conduzirá o leitor ao, digamos, vestíbulo do cerne do livro: a terceira seção do segundo capítulo, A crítica à indústria cultural no contexto da Dialética do Esclareci- mento, onde estão inseridos destacadamente os excursos constituintes da Dialética do Esclarecimento mais afeitos ao propósito de Indústria Cultural: uma introdução, aqueles sobre a “Indústria Cultural”, modelo liberal, e sobre o “Antissemitismo”, modelo autoritário das sociedades tardocapitalistas ; ambos vinculados, por uma articulação magistral, à semicultura, condição subjetiva da perpetuação de tais modelos. Vamos ao cerne do livro: Trata-se do capítulo terceiro, Os operadores da indústria cultural segundo a crítica de Horkheimer e Adorno, onde são desvelados os “procedimentos típicos da indústria cultural […] os quais se constituem também como critérios de identificação não apenas de suas práticas, mas, eventualmente, até mesmo dos seus produtos mais típicos” –; eis exatamente o que se quer dizer com operadores. Estes perfazem cinco referências básicas que explicitam, com bastante clareza e objetividade, as estratégias repressoras da indústria cultural: a manipulação retroativa – corresponder minimamente às expectativas dos consumidores (expectativas previamente enxovalhadas pela própria indústria cultural) enquanto impõe padrões de consumo, de comportamento moral e político comprometidos com a perpetuação do status quo ; a usurpação do esquematismo – antecipação estandardizada e reles, até a quase absoluta previsibilidade, das possibilidades interpretativas (individuadoras) de seus produtos; a domesticação do estilo – correlato produtivo daquela usurpação do esquematismo receptivo, que reproduz a desproporção real existente entre todo (mundo administrado) e parte (indivíduo) no interior dos produtos da indústria cultural pela sobreposição artificial, estereotipada, por isso violentamente coercitiva, de clichês in- vestidos de universalidade; a despotencialização do trágico – correlato antropológico da relação coercitiva entre todo e parte nos produtos da indústria cultural que interdita ao sujeito (parte) qualquer possibilidade de individuação, de resistência afirmativa, experiência e expressão do sofrimento (encarnação da negatividade) para além do mundo ad- ministrado (todo); tudo isso posto sob um disfarce – o fetichismo das mercadorias culturais – que sobrevaloriza seus produtos, oferecendo-os como “nobres” mercadorias pretensamente distanciadas do mercado dos gêneros utilizáveis, para escamotear exatamente suas danosas implicações sociais.

Depois da sucinta e segura apresentação do caráter regressivo dos produtos da indústria cultural a partir desses cinco tópicos básicos, o autor tematiza, no capítulo quarto, as Retomadas do tema da indústria cultural na obra de Adorno. Ele destaca duas obras do último período do pensamento do filósofo, Teoria Estética e Sem modelo: pequena estética, em busca de adições críticas relevantes ao tema da indústria cultural posteriores à publicação de Dialética do Esclarecimento, quais sejam: a reflexão adorniana sobre a histórica apropriação mercantilizada e desvigorada de conceitos da arte autônoma pela indústria cultural, que o autor ilustrará referindo-se aos conceitos de estilo e catarse ; e aquelas reflexões que atualizam, no livro Sem modelo: pequena estética, “as tendências predominantes na indústria cultural” pós- Dialética do Esclarecimento. Ele aponta, por um lado, no surgimento e consolidação da televisão como medium maximamente invasivo, a hipertrofia da estratégia cinematográfica de reduplicação e naturalização do mundo para reprodução simples do espírito; por outro lado, no desenvolvi- mento histórico de formas alternativas de cinema, a possibilidade de um cinema libertário que tematizasse diretamente, ou seja, que recuperasse objetivamente o modo imagético (assim como a pintura para o modo visível e a música para o modo auditivo) da experiência.

O quinto capítulo propõe aprofundar a atualização da interpretação crítica dos fenômenos da indústria cultural a partir das “ferramentas conceituais legadas por Horkheimer e Adorno”. Ocasião para uma frutuosa apresentação das posições de Ulrich Beck e Scott Lash, às quais o autor recorre para bem delimitar (histórica e geopoliticamente) seu objeto, a globalização – período de virulento triunfo de empreendedores transnacionais (sobremaneira intensificado nas duas últimas décadas do século XX, quando os rendimentos de capital cresceram 59%, contra apenas 2% dos rendimentos oriundos do trabalho, e a produção mundial saltara de 4 para 23 trilhões de dólares) em detrimento do operariado organizado nos moldes da modernidade clássica, os “perdedores” (nesse mesmo período o número de pobres aumentara em 20%) inexoravelmente suplantados por uma classe média qualificada, informatizada, “vencedora da reflexividade” ao lado das quatro centenas de bilionários detentores de mais da metade de toda a riqueza produzida pela humanidade. O autor não se furta a lhes impingir (às posições de Beck e Lash) sólidas emendas críticas quanto às supostas implicações culturais da globalização – no fundo mais uma versão daquele ingênuo, gracioso (porque apressado) borboletear pós-moderno onde tudo são dinâmicos fragmentos dispostos a vigorosas alternativas simbióticas que confirmariam a “liberdade das pessoas no tocante à ‘escolha’ de opções que a indústria cultural apresenta”. Ridículo como dizer: “Nem mesmo sob tortura me farão preferir Bob Dylan a Noel Rosa. Portanto, sou livre.” Rodrigo Duarte insiste, contra esse otimismo fácil, a-dialético, na vocação marcadamente totalitária da indústria cultural globalizada, cuja matriz tecnológica, a digitalização, mais que democratizar fluxos imagéticos, teria permitido intensificar, “capilarizando” na mesma medida da internacionalização e concentração histórica do capital, a coercitividade e analgesia das mercadorias culturais.

No que apresentamos até aqui, ou seja, do segundo ao quinto capítulo, tem-se o esforço fundamental do autor: a apresentação do “modo mais simples e direto […] do quadro conceitual apropriado para se compreender os fenômenos audiovisuais reunidos sob a rubrica de ‘cultura de massas’”.

Mencionemos, por fim, os dois capítulos de cunho prevalentemente histórico do livro. As origens históricas da cultura de massas, capítulo primeiro, relato utilíssimo da constituição e consolidação histórica da “cultura de massas” segundo dois movimentos complementares: a disponibilização (e massificação) do público acompanhando a progressiva distinção entre tempo de trabalho e tempo de lazer; e a progressiva concentração do capital privado no ramo do entretenimento, assenhorando-se desse tempo livre – dos Music Hall a Hollywood. E o capítulo sexto que narra o desenrolar – usual- mente servil a projetos políticos autoritários – da Indústria Cultural no Brasil, desde as primeiras transmissões radiofônicas e confecções cinematográficas “artesanais” da segunda década do século XX; passando pelo estabelecimento industrial desses media durante o Estado Novo; até sua conformação definitiva, com o advento da televisão e sagração sistemática da TV Globo, não por acaso, a partir de 1964. O autor ensaia, em seguida, nas mais bem-sucedidas fórmulas desse mais bem-sucedido conglomerado da indústria cultural brasileira (a telenovela e o telejornal) um arguto reconhecimento daqueles referi- dos “operadores” (a manipulação retroativa, a usurpação do esquematismo, a domesticação do estilo, a despotencialização do trágico, o fetichismo das mercadorias culturais) acrescidos de um mecanismo original: certa “vocação filantrópica” – tutela dúbia atinente à parcela mais desassistida da população pela promoção regular de campanhas para arrecadação de fundos e prestação de serviços básicos em lugar do Estado – típico do modelo da indústria cultural brasileira. Indústria Cultural: uma introdução assim cumpre (e ultrapassa) seus desígnios didáticos.

Nota

1 DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003(coleção Humanitas).

Lucas Alves Marinho

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Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional – ALBUQUERQUE JR (HH)

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional. Recife: Bagaço, 2008, 514 p. Resenha de: VIDAL e SOUZA, Candice. O Nordeste: algumas narrativas de lugares, gentes e modos de vida. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.228-233, março 2011.

Para os analistas dos discursos sobre a nação (historiadores, antropólogos ou sociólogos), a primeira tarefa é compreender sobre que lugares e formas sociais o autor do texto ou imagem sobre o Brasil ou alguma de suas partes está se referindo. As fronteiras internas da nação, sua caracterização geográfica e sociológica, sua explicação histórica, são marcadas exemplarmente nos textos do pensamento social brasileiro ou na vasta literatura referida a locais de fato existentes Brasil afora (LIMA 1999; VIDAL E SOUZA 1997; IBGE 2009; SENA 2003; COSTA 2003).

O historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., há muito tempo, explora a invenção discursiva da região Nordeste, procurando capturar os cenários históricos e os modos de apresentação das vozes dos políticos, dos literatos, dos historiadores e dos estudiosos da cultura popular (cf. ALBUQUERQUE JR.

1988 e 2001). A coletânea em questão reúne ensaios que incidem sobre a mesma temática das formas e processos de construção das “dizibilidades e visibilidades” do Nordeste. O ponto de partida interpretativo mantém-se em torno de Michel Foucault, o qual formula os objetos e o léxico empregado na análise de falas e de imagens presentes em romances, biografias, ensaios e fotografias. Certamente, a demarcação coerente do campo de análise e das referências de apoio bibliográfico é uma qualidade constante nos ensaios. Além disso, como se pretende enfatizar posteriormente, essa fixidez impede que outras perspectivas contemporâneas sobre as narrativas das identidades nacionais ou regionais sejam incorporadas e submetidas ao debate acerca dos “poderes e saberes”. Do mesmo modo, a insistência sobre a especificidade da construção da região Nordeste afasta o autor da comparação com as formas de narrar outras regiões brasileiras, exercício fundamental para a compreensão dos mecanismos de invenção das fronteiras intranacionais e dos significados em torno da produção de alteridades/outridades.

Os vinte e dois ensaios que compõem a coletânea são distribuídos em três partes: “História e Espaços”, “História e Identidade Regional”, “História, Espaço e Gênero”. As abordagens apresentadas, em cada um deles, são diversas quanto à temática específica (o espaço como objeto da história, a visão tropicalista do Nordeste, a história regional, o Nordeste de Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, os romances de José Lins do Rêgo e a representação da mudança, as imagens de gênero formuladas nos textos etc.), mas são reiterativas quanto ao ponto de vista interpretativo. Como os ensaios apresentam graus variados de elaboração das discussões, faltam as indicações sobre a data da primeira publicação, sobre o formato da primeira versão, como parâmetro para compreensão da “temporalidade” do pensamento do autor.

Sustenta-se que a articulação dos ensaios está ligada às seguintes ideias, apresentadas por Durval Muniz de Albuquerque Jr.: Existe uma realidade múltipla de vidas, histórias, práticas e costumes no que hoje chamamos Nordeste. É o apagamento desta multiplicidade, no entanto, que permitiu se pensar esta unidade imagético-discursiva. Por isso, o que me interessa aqui não é este Nordeste “real”, ou questionar a correspondência entre representação e realidade, mas sim, a produção desta constelação de regularidades práticas e discursivas que institui, faz ver e possibilita dizer esta região até hoje. Na produção discursiva sobre o Nordeste, este é menos um lugar que um topos, um conjunto de referências, uma coleção de características, um arquivo de imagens e textos (ALBUQUERQUE JR. 2008, p. 129, grifos do autor).

A gênese da nomeação da região, genericamente chamada de Norte, até as primeiras décadas do século XX, é acompanhada pelo autor em diversos eventos, falas e textos. Nessa demarcação do Nordeste, intelectuais como Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Ascenso Ferreira, Ariano Suassuna, José Lins do Rêgo e outros tantos são considerados como caracterizadores do Nordeste em seus aspectos históricos, sociais, culturais e geográficos. É notável que apenas seis estados sejam tomados como o núcleo da identidade nordestina (Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e Sergipe), tal como nomeia a convocação de Joaquim Inojosa no Congresso Regionalista do Recife, realizado em 1926 (ALBUQUERQUE JR. 2008, p. 140). Percebe-se que em Pernambuco a centralidade simbólica de sua capital (no sentido de SHILS 1992) e da sua civilização, em torno do engenho, serão o cenário modelar dessa configuração geo-simbólica, em torno do qual gravitam as representações sobre o sertão da seca, do banditismo, do messianismo e da religiosidade popular.

O material analisado pelo autor narra sobre os aspectos históricos, os costumes e as paisagens desses estados. Mesmo que ele mencione visões alternativas de outros intelectuais sobre a região, como, por exemplo, Djacir Menezes em seu livro “O Outro Nordeste” (1937), a produção ensaística ou literária dedicada a falar do Nordeste através das sub-regiões excluídas nas narrativas mestras ou situada nos estados excluídos na definição do centro da identidade nordestina não é pesquisada ou explorada pelo autor. Se a intenção é elaborar uma crítica das formas de representação do Nordeste, as fontes empíricas da análise deveriam incluir o discurso das margens da região, representativo de outras visões dos intelectuais sobre o seu lugar. Desse modo, o historiador crítico não escapa das fronteiras impostas pelo campo intelectual que ele pretende pôr em revista.

Quando analisa os textos de Câmara Cascudo sobre o Rio Grande do Norte e seu sertão, Durval Muniz oferece pistas sobre essas possibilidades de investigação da he