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Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (AF)
Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (AF)
Grada Kilomba. Foto: Divulgação.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira.1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. Resenha de: ARAUJO, Débora Oyayomi. Artefilosofia, Ouro Preto, v.15, n.28, abr., 2020.
Ao ler Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, de Grada Kilomba, a primeira sensação é de um lago calmo, de águas paradas que, quando tocado, provoca ondulações que reverberam em camadas. Quando as fraturas e os traumas produzidos ao longo de séculos são ratificados no contexto político atual por meio de uma política genocida de corpos e identidades diaspóricas, ler Grada Kilomba é uma convocação a revisarmos nossa existência. Por isso, ainda que muito depois de sua publicação original, esse livro chega ao Brasil no tempo certo.
A versão em português de sua tese de doutorado, tese esta laureada, em 2008, com a “mais alta (e rara) distinção acadêmica” (p. 12), nos diz muito mais do que havia sido registrado em sua versão original, escrita em inglês, pois reitera o quanto nosso idioma oficial é colonial e colonizado. Na “Carta da autora à edição brasileira”, coube à Grada Kilomba criar um glossário de termos coloniais, racistas e patriarcais para ressaltar terminologias produtora s do trauma racial, nos lembrando de que “cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (p. 14). Assim, enquanto algumas palavras são registradas em itálico devido à problemática “das relações de poder e de violência” (p. 15), outras são simplesmente abreviadas e grafadas em letra minúscula para que, no processo almejado por seu estudo, que envolve a “desmontagem da língua colonial” (p. 18), não rememoremos termos que expressam traumas. Essa primeira característica é imprescindível para o exercício proposto pela autora de produzir oposição absoluta ao “que o projeto colonial predeterminou” (p. 28). Por isso, neste texto, eu também utilizarei os mesmos formatos e, tal qual ela, produzirei o texto em primeira pessoa. Escrever em primeira pessoa e demarcar sua subjetividade é, sem dúvida, uma convocação de Grada Kilomba a todas as pessoas negras que lêem seu livro. Mas vai além, pois propõe o despojamento das armaduras coloniais e acadêmicas que nos aprisionam em modelos rijos de produção científica. Isso se evidencia não somente pela introdução (denominada “Tornando-se sujeito”), mas por todo o sumário, cuja proposta é de identificar, tratar e curar o trauma vivenciado pelo contato da pessoa negra com a branca, no processo de colonização de corpos e mentes da segunda sobre a primeira. Por isso, nada mais propício do que Memórias da plantação como título da obra, dada a capacidade de captura e dissecação do trauma colonial produzido por meio da Plantation. O seu subtítulo compromete-se com a contemporaneidade e a atemporalidade do trauma: o racismo cotidiano que “de repente coloca o sujeito negro em uma cena colonial na qual, como centro do cenário de uma plantação, ele é aprisionado como a/o ‘ Outra/o ’ subordinado e exótico” (p. 30).
Seu estudo tem como objetivo exprimir a realidade psicológica do racismo cotidiano manifestado, na forma de episódios, por relatos subjetivos, autopercepções e narrativas biográficas, de duas mulheres negras, sendo uma afro-alemã e outra afro-estadunidense que vive na Ale manha. Nesse processo, uma segunda marcante característica é o comprometimento da obra com uma abordagem interpretativa fenomenológica, envolvendo duas importantes dimensões: a escrita em primeira pessoa, entendendo que “[e]u sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como ato político. […] enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade da minha própria história.” (p. 28); o investimento na mais descrição do fenômeno em si e menos na abstração dos relatos subjetivos de mulheres negras, sob pena de esse processo “facilmente silenciar suas vozes no intuito de objetivá-las sob terminologias universais” (p. 89). Assim, seu estudo responde a um “desejo duplo: o de se opor àquele lugar de ‘Outridade’ e o de inventar a nós mesmos de (modo) novo” (p. 28).
Dividido em quatorze capítulos, Grada Kilomba perfaz as estratégias raciais operadas pela Plantation e atualizadas nas ações cotidianas contemporâneas. O silêncio é metaforizado, no primeiro capítulo, pela máscara, representante do colonialismo. De outro lado, as metáforas do mito da objetividade e da neutralidade acadêmica são exploradas no segundo capítulo (intitulado “Quem pode falar? Falando do Centro, Descolonizando o Conhecimento”), atuando, ao lado do primeiro, como um exercício de dissecação do racismo como discurso, e explorando e denunciando os processos de descrédito intelectual e acadêmico produzido sobre os corpos e identidades postas à margem. Com isso, a primeira cura ao trauma proposta pela autora envolve a necessidade de descolonização do conhecimento, reconhecendo a potência da posição à margem: “Falar sobre margem como um lugar de criatividade pode, sem dúvida, dar vazão ao perigo de romantizar a opressão. […] No entanto, bell hooks argumenta que este não é um exercício romântico, mas o simples reconhecimento da margem como uma posição complexa que incorpora mais de um local. A margem é tanto um local de repressão quanto um local de resistência […]” (p. 69). Isso envolve, pelo próprio exercício realizado pela autora, o reconhecimento de outras metodologias investigativas e de outros olhares interpretativos. O modo de produzir a pesquisa é impactado diretamente, pois realça as maneiras com o nos apresentamos ao mundo e como somos afetados pelo mundo à nossa volta. Assim, no texto de Grada Kilomba, somos, com nossa subjetividade e experiência individual com o racismo, convocadas/os a nos apresentar ao estudo, como interlocutoras/es ativas/os, críticas/os e conscientes do nosso papel social. É nessa perspectiva que sou impelida a assumir minha posição neste texto resenhístico a partir da minha trajetória pessoal como mulher negra e vivenciadora de experiências cotidianas com o racismo. Não seria possível de outro modo produzir qualquer síntese crítica da obra em questão.
O capítulo 3, “Dizendo o indizível – Definindo o racismo”, produz uma revisão teórica condizente com a proposta de descolonização do conhecimento: ao invés de recuperar a etimologia do termo e sua trajetória ao longo dos séculos, o racismo é apresentado por meio de autoras/es que o interpretam no plano cotidiano das relações sociais. Philomena Essed e Paul Mecheril são os nomes de destaque responsáveis por expor as próprias teor ias raciais e o protagonismo branco em suas definições: “Nós somos, por assim dizer, fixadas/os e medidas/os a partir do exterior, por interesses específicos que satisfaçam os critérios políticos do sujeito branco […]” (p. 73). Assim, a autora acena uma problemática pouco explorada quando se discute o mito da neutralidade: a de que as formulações, teorizações e epistemologias sobre o racismo podem estar sendo confortavelmente produzidas por intelectuais brancas/os que não necessariamente revisam sua própria condição de branquitude. Por isso o capítulo ressalta a necessidade de a pessoa negra tornar-se sujeito falante, ou, nas palavras de Mecheril (p. 74), a “perspectiva do sujeito”, em nível político, social e individual. Ao fazer isso, a autora encaminha-se para a definição do racismo por meio de três características simultâneas por ele assumidas: a construção de/da diferença; a ligação com valores hierárquicos intrínsecos; e o poder de base histórica, política, social e econômica. E, ao expor tais características, a autora ressalta uma afirmação amplamente difundida por nós, estudiosas/os negras/as das relações raciais, em especial no contexto brasileiro: “É a combinação do preconceito e do poder que forma o racismo. E, nesse sentido, o racismo é a suprema cia branca. Outros grupos raciais não podem ser racistas nem performar o racismo, pois não possuem o poder” (p. 76). É imprescindível, para nós, que intelectuais negras/os e intelectuais brancas/os engajadas/os assumam tal perspectiva pois, ainda que seja um aspecto simples e óbvio na interpretação das relações raciais, a compreensão de que poder e racismo são intrinsecamente ligados é uma operação complexa para muitos que resistem em manter sua perspectiva colonial e colonizadora de enxergar o mundo.
Contudo, um aspecto pouco explorado pela autora são as facetas desse racismo: ao passo que ela se dedica a explorar com relativo detalhamento alguns aspectos do cotidiano dos discursos racistas, ao procurar definir racismo estrutural e institucional, Grada Kilomba restringe-se a apresentá-los de modo sintético e sinonímicos, em certa medida. Já a descrição e conceituação do “racismo cotidiano”, uma categoria proposta pela autora – e que, como já destacado desde o início deste texto, representa sua base analítica –, há um maior detalhamento, com destaque para as formas em que o sujeito negro é percebido e que o relegam à condição de “outro”: infantilização, primitivização, incivilização, animalização e erotização. Nesse sentido, a autora conclui que é nos contextos cotidianos que a pessoa negra se depara com tais formas e, por isso, não se trata de experiências pontuais e sim corriqueiras que se repetem “incessantemente ao longo da biografia de alguém” (p. 80).
Nesse capítulo são apresentados os pressupostos metodológicos da pesquisa a partir da perspectiva da “pesquisa centrada em sujeitos ”, tomando como referencial analítico a teoria psicanalítica e pós-colonial a partir de Frantz Fanon. Nessa dimensão, a pesquisa emerge no exame das “experiências, autopercepções e negociações de identidade descritas pelo sujeito e pela perspectiva do sujeito ” (p. 81) e do study up, proposta metodológica em que pesquisadoras/es investigam membros do seu próprio grupo social. Tal proposta é mediada por uma “subjetividade consciente”: a compreensão de que ainda que a/o pesquisadora/a – e membro do grupo – não aceite sem críticas todas as declarações da pessoa entrevistada, ela respeita seus relatos acerca do racismo e demonstra “interesse genuíno em eventos ordinários da vida cotidiana” (p. 83). Assim, as relações hierárquicas frequentemente produzidas entre pesquisadoras/es e informantes é diminuída, considerando o compartilhamento de experiências semelhantes com o racismo. Co m o desenho da pesquisa delimitado, o capítulo adentra na descrição dos procedimentos das entrevistas “ não diretivas baseadas em narrativas biográficas ” (p. 85), que envolveram eixos como: percepções de identidade racial e racismo na infância; experiências pessoais e vicárias de racismo na vida cotidiana; percepções de branquitude no imaginário negro ; percepções de beleza feminina negra e questões relacionadas ao cabelo; percepções de feminilidade negra, entre outras. Foram, ao todo, seis mulheres negras participantes: “três afro-alemãs e três mulheres de ascendência africana que vivem na Alemanha: uma ganense, uma afro-brasileira e uma afro-estadunidense” (p. 84), mas ao final apenas duas – Alicia (afro-alemã) e Kathleen (afro-estadunidense) – tiveram suas entrevistas analisadas, devido ao fato, segundo a autora, de que as demais narrativas “não eram tão ricas e diversas quanto as de Alicia e Kathleen” (p. 84). As entrevistas, respondidas em inglês, alemão e português, captaram as mais diversas percepções acerca das memórias e contato com o racismo cotidiano, tema dos capítulos seguintes do livro.
Mas antes das análises, a autora mais uma vez assume a subjetividade como marca da descolonização acadêmica e mental para conectar raça e gênero a partir de uma experiência pessoal vivida: no capítulo 4 “Racismo genderizado – ‘(…) Você gostaria de limpar nossa casa?’ – Conectando ‘raça’ e gênero”, Grada Kilomba explora a necessidade de interpretações entrecruzadas sobre o racismo cotidiano que marca as experiências de mulheres negras, que são racializadas e generificadas. Para tanto, recupera perspectivas de Essed, Fanon, bell hooks, Heidi Safia Mirza e outras para interpretar, analisar e argumentar como operam as correlações entre mulheres negras e homens negros, mulheres brancas e homens brancos na interface de temas como patriarcado, feminismo, sexismo e violência. São expostas contradições do discurso feminista branco, da ideia de sororidade universal, e são evidenciados os limites do homem negro que não é “beneficiado” com o patriarcado. Por outro lado, sua perspectiva também ressalta a condição em que o termo “homem” é utilizado por Fanon tanto para designar “homem negro ” quanto “ser humano”, que acaba por realçar o masculino como condição única de representação da humanidade. Por isso, ressalta a autora, que a “reivindicação de feministas negras não é classificar as estruturas de opressão de tal forma que mulheres negras tenham que escolher entre solidariedade com homens negros ou com mulheres brancas, entre ‘raça’ ou gênero, mas ao contrário, é tornar nossa realidade e experiência visíveis tanto na teoria quanto na história” (p. 108).
Por meio de categorias, trechos das narrativas das entrevistadas foram divididos em capítulos, por temas. No capítulo 5, “Políticas espaciais”, os relatos dimensionam as experiências relacionadas à “Outridade”, ao estrangeirismo e ao estranhamento daquelas mulheres na Alemanha, país onde vivem. Perguntas como “De onde você vem?”, “Como ela fala alemão tão bem?” ou afirmações do tipo “Mas você não pode ser alemã!” são marcadores latentes nos relatos das entrevistadas, refletindo uma espécie de fantasia que domina a realidade acerca da história alemã, ignorando que existem várias histórias sobre uma mesma localidade. Assim, analisa a autora: “racismo não é a falta de informação sobre a/o ‘Outra/o’ – como acredita o senso comum –, mas sim a projeção branca de informações indesejável na/o ‘Outra/o’. Alicia pode explicar eternamente que ela é afro-alemã, contudo, não é sua explicação que importa, mas a adição deliberada de fantasias brancas acerca do que ela deveria ser […]” (p. 117).
O capítulo seguinte, “Políticas do cabelo”, analisa as experiências de violência e opressão que incidem sobre a imagem, autoestima e identidade das mulheres entrevistadas, ressaltando que existe “uma relação entre a consciência racial e a descolonização do corpo negro, bem como entre as ofensas racistas e o controle do corpo negro ” (p. 128). Na tentativa de aliviar as violências sofridas, a adoção de procedimentos de desracialização do “sinal mais significativo de racialização” (entendido, pela autora, como sendo o cabelo) é uma ação latente nas narrativas das entrevistadas. Mas oscilam, em seus discursos, a percepção da invasão de seus corpos por meio do toque, dos olhares de nojo e desprezo e experiências de resistência e consciência política.
“As políticas sexuais” são abordadas no sétimo capítulo da obra e apresentam o cerne da discussão em torno da objetificação e expropriação da humanidade do corpo negro. As histórias, cantigas, mitos e narrativas difundidas desde a infância constroem, para negras/os e brancas/os, uma barreira racial repleta de violência, sadismo e ódio. A autora explora, por meio da noção de “constelação triangular” (forjada a partir do complexo de Édipo em Freud e das ampliações analíticas de Fanon), as situações cotidianas em que o racismo é produzido sem nenhum cerceamento e, pelo contrário, muitas vezes apoiado por outrem: “Por conta de sua função repressiva, a constelação triangular, na qual pessoas negras estão sozinhas e pessoas brancas como um coletivo, permite que o racismo cotidiano seja cometido” (p. 137). Esse processo de triangulação também opera em contextos em que o homem negro é alvo do ódio do homem branco: “Dentro do triângulo do racismo, o sujeito branco ataca ou mata o sujeito negro para abrir espaço para si, pois não pode atacar ou matar o progenitor” (p. 140).
No capítulo 8, intitulado “Políticas da pele”, os relatos das entrevistadas são analisados sob a perspectiva d a deturpação versus identificação racial, que envolvem processos de negação da negritude feita pela pessoa negra ou branca, a depender das relações afetivas estabelecidas entre ambas. É o caso relatado por Alicia, ao ouvir de sua amiga branca que ela não era negra, ou de sua família adotiva, que se referia a ela como mestiça (Mischling), ao passo que as demais pessoas negras eram referidas pejorativamente como N. (Neger). Grada Kilomba interpreta tal processo como um misto entre fobia racial e recompensa: “Isso permite que sentimentos positivos direcionados a Alicia permaneçam intactos, enquanto sentimentos repugnantes e agressivos contra sua negritude são projetados para fora” (p. 147).
Numa categoria maior, intitulada anteriormente em seu texto como “cicatrizes psicológicas impostas pelo racismo cotidiano” (p. 92), a autora engloba os capítulos de 9 a 12. O primeiro deles, “A palavra N. e o trauma”, a dor, aspecto central de sua tese, é retomada a partir de narrativas que envolvem o contato com a violência exotizadora por meio da utilização discursiva de termos racistas. Para tanto, o capítulo inicia com a narrativa de Kathleen que ouviu de uma criança branca: “Que Negerin [Feminino de Neger ] linda! A Negerin parece tão legal. E os olhos lindos que a Negerin tem! E a pele linda que a Negerin tem! Eu também quero ser uma Negerin !”. Ao afirmar que quer ser uma Negerin também, a menina produz um efeito duplo: de reafirmação de sua posição d e sujeito branco – pois Negerin “nunca significa ser chamada/o apenas de negra/o; é ser relacionada/o a todas as outras analogias que definem a função da palavra N. ” (p. 157) – e recolocação da vítima na cena colonial original: “Essa cena revive, assim, um trauma colonial. A mulher negra continua a ser o sujeito vulnerável e exposto, e a menina branca, embora muito jovem, permanece a autoridade satisfeita” (pp. 157-158). O trauma causa dor, demonstrando os efeitos psicossomáticos do racismo por meio da necessidade de transferir a experiência psicológica para o corpo, buscando “uma forma de proteção do eu ao empurrar a dor para fora (somatização)” (p. 161).
“Segregação e contágio racial” é o título do capítulo 10, no qual o medo branco é acionado pela metáfora da luva branca utilizada por pessoas negras forçadamente quando tinham que tocar o mundo branco. Como descreve a autora, as luvas atuavam como uma “membrana, uma fronteira separando fisicamente a mão negra do mundo branco, protegendo pessoas brancas de serem, eventualmente, infectadas pela pele negra ” (p. 168). O efeito nefasto vai, contudo, além, pois as luvas que aliviavam o medo branco da contaminação “ao mesmo tempo, evitavam que negras e negros tocassem os privilégios brancos ” (p. 168). Outra metáfora acionada no capítulo é: “uma pessoa negra tudo bem, é até interessante, duas é uma multidão” (p. 170), expondo a faceta da solidão de pessoas negras em espaços segregados e o quanto suas ações são constantemente vigiadas e avaliadas. Esse tema liga-se diretamente ao capítulo seguinte, “Performando negritude”, em que o sujeito que representa a exceção é exposto e cobrado pois, ao mesmo tempo em que é alvo do medo e do ódio, deve “representar aquelas/es que não estão lá” (p. 173). Por isso, o questionamento e a comprovação da capacidade intelectual é uma marcante nas narrativas das entrevistadas. Ser “três vezes melhor do que qualquer pessoa branca para se tornar igual” (p. 174), faz dela uma pessoa “tríplice” e, assim, a compensação é acionada: “Você é negra, mas…” inteligente. A inteligência existe “desde que seja comparada à branquitude” (p. 177). Outros aspectos explorados no capítulo relacionam-se à recolocação geográfica do estrangeira/o ou da pessoa negra para fora, para a margem, e o racismo explícito, endossado por um processo discurso alienante, pois a pessoa é insultada sem ser alvo direto do insulto, retomando, novamente, as constelações triangulares. Tais contextos são ressaltados mais uma vez pela autora como mostras do racismo cotidiano.
O último capítulo da categoria “cicatrizes psicológicas…” é intitulado “Suicídio”. Sem dúvida é o máximo e último estágio do trauma e o mais eficaz do racismo. É quando o “ sujeito negro representa a perda de si mesmo, matando o lugar da Outridade” (p. 188). Tal capítulo é fruto da recorrência de narrativas das mulheres entrevistadas sobre experiências diretas com o suicídio (seja da mãe, da amiga…) e da necessidade de tratar o trauma. Assim, nos lembra Grada Kilomba que, no contexto da escravização, toda a comunidade negra era punida quando um de seus membros tentava ou cometia suicídio. Isso não explicita apenas o óbvio (o interesse das/os escravizadoras/es em não perder sua propriedade), mas, principalmente, “revela um interesse em impedir que as/os escravizadas/os africanas/os se tornem sujeitos ”. Por isso o suicídio “é, última instância, uma performance de autonomia” (p. 189). Mas não somente esse aspecto é explorado: a autora também analisa como a figura da mulher negra forte e, portanto, sem necessidade de apoio psicológico, é recorrente na trajetória de vítimas de suicídio. Essa imagem é uma resposta à outra figura estereotipada da mulher negra como preguiçosa e negligente em relação às suas filhas e filhos. Portanto, num duplo processo de estereotipia, as “mulheres negras só se encontram na terceira pessoa, quando falam de si mesmas através de descrições de mulheres brancas ” (p. 195).
Por fim, os últimos capítulos são dedicados ao tratamento: correspondem à categoria “estratégias de resistência” (p. 92). “Cura e transformação” intitula o 13º capítulo, e analisa situações vivenciadas por Kathleen (ao enfrentar um contexto de racismo) e Alicia (ao se reconectar consigo mesma). Dois marcadores desse capítulo são, portanto, a desalienação e o reencontro com seu coletivo. O contato com leituras, com suas histórias e com seus iguais emergiram nos discursos das duas mulheres entrevistadas atuando de modo a reparar uma conexão interrompida. É latente, nesse sentido, a narrativa de Alicia sobre o fato de inicialmente não entender e aceitar que pessoas negras desconhecidas a cumprimentassem e depois reconhecer o laço histórico que as une. Ao ser chamada de irmã (sistah) por um jovem negro, sua percepção foi de que “‘Sim, sistah, eu sei o que você passou. Eu também. Mas eu estou aqui… Você não está sozinha.’” (p. 210).
A “reparação traumática” é acionada por Alicia, assim como foi por Kathleen, quando enfrentou sua vizinha que insistia em manter um boneco negro como “enfeite” na varanda de sua casa. Esse processo liga-se diretamente à conclusão do livro, no capítulo “Descolonizando o eu”. Entre outros elementos explorados e retomados pela autora, está a proposição mais significativa para a cura do trauma: ao invés de perguntar à vítima o que ela fez diante do racismo cotidiano (e sempre inesperado), sua proposição é que a pergunta seja: “O que o racismo fez com você?”. “A pergunta é direcionada para o interior […] e não para o exterior”, produzindo um efeito de empoderamento “no qual alguém se torna o sujeito falante, falando de sua própria realidade” (p. 227). Mas, principalmente, a proposição de novas fronteiras é o elemento central da cura: é quando, para a autora, o triângulo é modificado e não mais são respondidas as perguntas produzidas pela branquitude que, verdadeiramente, não está interessada em respostas, mas sim na experiência de ocupar a posição de falantes sobre o sujeito negro. A cura também ocorre com a superação do perfeccionismo e a assunção da desalienação. A autora demonstra como todo esse processo opera por meio de cinco mecanismos diferentes de defesa do ego: negação (do racismo e reprodução da linguagem da/o opressora/opressor); frustração (percepção de sua condição de exclusão no mundo conceitual branco); ambivalência (coexistência de amor e ódio, nojo e esperança, confiança e desconfiança para com pessoas brancas); identificação (a busca por sua história e a produção da identificação positiva com sua própria negritude); descolonização: “não se existe m ais como a/o ‘Outra/o’, mas como o eu” (p. 238).
Ao pensar no contexto contemporâneo em que o racismo à brasileira vem assumindo novas configurações, a obra de Grada Kilomba não somente oferece respostas à cura do trauma, mas reafirma a necessidade de assumirmos a nossa história. Retomando a metáfora inicial do lago antes calmo e agora agitado pela reverberação das ondas, um convite inicial e retomado ao final do livro também é feito neste texto: “Somos eu, somos sujeito, somos quem descreve, somos quem narra, somos autoras/es e autoridade da nossa própria realidade […] tornamo-nos sujeito ” (p. 238).
Débora Oyayomi Araujo-Doutora Educação (UFPR) e Licenciada em Letras (Unespar). Professora de Educação das Relações Étnico-Raciais na Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenadora do LitERÊtura-Grupo de estudos e pesquisas em diversidade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para as infâncias. E-mail: debora.c.araujo@ufes.br
Entre servidão e liberdade – SANTIAGO (CE)
Homero Silveira Santiago. 16 set. 2020. https://www.youtube.com/.
SANTIAGO, H. Entre servidão e liberdade. São Paulo: Politeia, 2019. Resenha de: OLIVA, Luis César. Entre servidão e liberdade de Homero Santiago. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.42, jan./jun., 2020.
O caminho de um jovem professor e pesquisador depois de seu período de formação (supondo abstratamente que a formação termine com a conclusão das teses de mestrado e doutorado, o que é sabida – mente falso) é sempre sinuoso. Depois de anos regido por um projeto de pesquisa e “vigiado” por agências de fomento, ele se vê dividido em múltiplas tarefas didáticas, administrativas e intelectuais (algumas feitas de bom grado, outras nem tanto) que produzem, na sua obra publicada, uma inevitável impressão de dispersão. De certo modo, é esse percurso fragmentado que Homero Santiago nos traz em Entre Servidão e Liberdade (2019).
Depois de seu mestrado e doutorado sobre Espinosa, ambos revelando um historiador da filosofia de boa cepa, capaz de abordar temas circunscritos e pouco explorados pela tradição interpretativa, mesclando coerentemente rigorosas análises de texto com eruditas considerações históricas, eis que o autor agora deve dividir-se em escritos dos mais diferentes formatos: artigos especializados e para o público geral, traduções, prefácios, resenhas, entrevistas, etc. Ao reunir boa parte deles neste livro, Santiago não esconde a multiplicidade de formas nem a variedade de ocasiões que os motivaram. Porém, se a forma talvez denuncie a dispersão do percurso, o conteúdo a nega, atestando a admirável unidade de pensamento de um filósofo que usou as mais variadas vias de expressão para discutir uma única e fundamental questão: a transição (infelizmente nem sempre de mão única) da servidão à liberdade.
Dividido em cinco partes (e uma introdução que mencionaremos mais tarde), o livro se abre com um notável capítulo sobre a superstição em Espinosa, no qual o autor apresenta uma das mais completas e detalhadas análises já feitas sobre o famoso apêndice da parte I da Ética . Mais do que mostrar a renitência do historiador da filosofia meticuloso, este longo capítulo tem a função de revelar o ponto de vista com o qual Santiago pretende abordar os diversos assuntos presentes no livro. É com lentes espinosanas que o fará, e com atenção específica para o aspecto que talvez afaste Espinosa do outro filósofo que mais marcou o percurso de Santiago e é quase onipresente na etapa final do livro: Antonio Negri. Enquanto Negri, também inspirado em Espinosa, deixa-se levar pelo otimismo dos movimentos multitudinários e dá todo o destaque para a liberdade, Santiago ancora-se na análise espinosana da superstição para dar conta da inegável servidão que nos assola. Ao final do livro, quando Santiago explicitar suas críticas (que não impedem a enorme admiração) a Negri, o leitor perceberá plenamente o quanto era significativo ter no apêndice seu ponto de partida.
O mergulho na servidão, porém, não ocorre sem uma visão da praia. Embora as decepções com o sistema de crenças da superstição não apontem, na letra do apêndice, para uma saída, elas abrem ao menos uma possibilidade, que não será explorada neste texto, mas que remete Santiago a outro de Espinosa, o Tratado da Emenda do Intelecto, onde as decepções com os valores da vida comum nos levam à necessidade de começar a filosofar, ou pelo menos, como dirá o segundo capítulo,
já que os valores são necessários, tratemos nós de forjá-los em vista da alegria e do benefício à vida. Poder fazê-lo talvez seja o mais difícil, mas precisamos fazê-lo. Se não o fizermos, se nos restringirmos ao mais fácil, o preconceito, a tristeza, a superstição e os seus lugares-tenentes o farão por nós (SANTIAGO, 2019, pág. 118).
De um lado, esta surpreendente conclusão nos remete à introdução do livro, onde Santiago usa, também surpreendentemente, Pascal para pensar a transição entre servidão e liberdade. É no interior do determinismo da teologia jansenista da graça que Pascal inventa um sentido para a apologia: é preciso crer que estamos entre os eleitos, assim como os homens que nos cercam, por mais ímpios que sejam, enquanto lhes restar um momento de vida. Para Santiago, ao fazê-lo, Pascal está criando um possível no seio do necessário, e aí se encontra a surpreendente afinidade entre os dois pensadores.
De outro lado, o trecho citado nos remete a outro capítulo funda – mental, em que o que é apenas intuído na teologia de Pascal ganhará clareza conceitual para aplicar-se a Espinosa. A partir de uma engenhosa interpretação do papel da ignorância nas definições de contingente e possível, Santiago encontra para este último um lugar fundamental na ética e na política espinosanas:
o ponto de vista do possível ignora a causa, mas a ignora sobre – tudo porque a considera, ou seja, toma a coisa como tendo causa (…). Com efeito, se possível é aquilo cuja causa é indeterminada, possível é igualmente aquilo cuja causa pode ser determinada; sobre a qual, em suma, pode-se agir, pois o indivíduo se enxerga (correta ou incorretamente) como agente possível de um acontecimento (SANTIAGO, 2019, p. 153).
Sem desconsiderar o fato de que, ontologicamente, só há o necessário, Santiago dá ao possível a realidade de uma tarefa cujo cumprimento é imperioso para o uso da vida. Este capítulo, assim, fecha o bloco mais estritamente espinosano do livro, apresentando tanto a realidade da servidão, quanto a possível porta aberta para a liberdade. Como passar por ela? Eis a pergunta que o restante do livro tentará responder das mais variadas maneiras; nenhuma delas, porém, definitiva. Já chegando à terceira parte do livro, é curioso que o primeiro texto explicitamente dedicado ao pensamento de Negri seja antecedido por um capítulo dedicado a outra notória espinosana, Marilena Chaui. A despeito das diferenças interpretativas dos dois filósofos sobre a obra de Espinosa, a contiguidade dos dois capítulos acaba destacando algo de comum entre eles, e que remete à influência marxista que ambos compartilham: a importância dada à luta de classes. Olhar para os conflitos no interior da sociedade, e não só para a história do Estado, como se este fosse um ente transcendente e causa de si próprio, é uma tônica de vários textos de Chaui. Em Negri, é a partir da análise das lutas operárias que se desenvolverá a apropriação particular que o italiano faz do conceito espinosano de multidão, central em sua filosofia (e também na de Santiago, que com ele pensará, dentre outros temas, junho de 2013). Mas a atenção aos conflitos sociais e a recusa Espinosana da transcendência, comuns a ambos, levarão Chaui e Negri a caminhos diversos. Para Chaui, nas palavras de Santiago, “se a tirania persiste é porque se enraíza na vida social, dela emergindo como efeito que decorre de uma causa e envolve, de alguma maneira, todo o corpo social” (SANTIAGO, 2019, pág. 192). Daí surgirão as reflexões de Chaui sobre Brasil como sociedade autoritária. Seria o lado amargo da multidão? Para Negri, a multidão é o sujeito da práxis coletiva que brota do desejo primordial de libertação, subjacente a todas as carências particulares que aparecem nas lutas sociais. Como explica Santiago:
a noção restritiva de classe sai de cena em benefício de uma noção bem mais ampla, que permite pensar a unidade de todos os explorados em sua própria diferença, sem recurso à tradicional subsunção dessas diferenças à identidade do operário industrial, isto é, o operário-massa. Em segundo lugar, a luta de classes passa a ser considerada como possuindo seu motor no desejo. É a articulação dessas duas inovações que, nitidamente, vai nos direcionando para o conceito de multidão, que ao fim e ao cabo se revelará o único capaz de nomear essa nova classe (SANTIAGO, 2019, p. 212).
Aqui decerto não há lado amargo, mas a lente crítica de Santiago não se furtará ao questionamento óbvio (aliás retomando, por outro viés, o problema da passagem da servidão à liberdade): como pode este conceito fazer-se acontecimento?
A filosofia de Negri será retomada mais à frente, em detalhe. Antes disso, porém, a quarta parte do livro dará lugar a três preciosos ensaios sobre temas recorrentes em nossa realidade social: a polícia e seu pendor à violenta obediência abstrata; o Estado e seu escopo; e final – mente o dinheiro e a liberdade. Todos têm por ponto de partida objetos empíricos particulares, como o colaboracionismo da polícia francesa durante a segunda guerra ou as transformações sociais decorrentes do Bolsa-Família, mas a questão teórica de fundo é a mesma: os conceitos de servidão e liberdade. Ademais, depois da passagem por Chaui e Negri, não poderiam ser mais claras as razões de Santiago para voltar-se para os acontecimentos sociais. As conclusões, porém, são sempre teóricas, e tão surpreendentes quanto (para um leitor atento) coerentes com as bases conceituais estabelecidas nos capítulos anteriores.
Sem entrar em mais detalhes, inclusive para não entregar todas as voltas e reviravoltas ao leitor, cabe destacar mais uma vez a importância deste trabalho nos dias que correm. Útil tanto para especialistas (em Espinosa, Negri, Chaui e até mesmo Pascal e Nietzsche) quanto para o público geral, o livro traz reflexões particularmente vivas quando espasmos autoritários nos ameaçam de longe ou de perto. Embora seja o retrato do percurso intelectual singular de Homero Santiago, Entre Servidão e Liberdade alcança, se não a universalidade, pelo menos a comunidade dos bens que podem ser partilhados.
Referências
SANTIAGO, H. Entre servidão e liberdade. São Paulo: Politeia, 2019.
Luis César Oliva – Professor Universidade de São Paulo. E-mail: lcoliva@uol.com.br
Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica – FRASER; JAEGGI (C-FA)
FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020. Resenha de: FILHO, José Ivan Rodrigues de Sousa. “A turbulência que se aprofunda ao nosso redor”. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 25 n.1 Jan./Jun, 2020.
“A turbulência que se aprofunda ao nosso redor” *.
Capitalismo em debate é, acima de tudo, uma obra filosófica sintomática do tempo presente. E o é porque o capitalismo se encontra em discussão na esfera pública, em especial nos Estados Unidos, onde o livro, há dois anos, viera a lume e onde Bernie Sanders, neste ano, conduziu uma pré-candidatura presidencial declaradamente socialista que angariou intenso apoio e provocou acalorado debate. Essa recente problematização política do capitalismo tem lugar sob uma constelação de graves desenvolvimentos econômicos, políticos e culturais que remontam ao ocaso dos anos 2000: a crise financeira mundial de 2007-2009, o imediato resgate estatal de graúdos bancos privados à beira da falência, o consequente agravamento da crise das finanças públicas, a política de austeridade fiscal então renovadamente receitada e imposta, o duradouro refreamento do crescimento econômico, os protestos massivos que proliferaram por todo o mundo em indignada reação a esse plexo de crises econômicas, os movimentos políticos regressivos que também emergiram mundo afora, as políticas públicas econômicas e culturais promovidas por novos governos de extrema-direita hiper-reacionária que se instalaram com o apoio de tais movimentos e que tanto mantêm como aprofundam a mesma diretriz neoliberal de distribuição regressiva da riqueza social pela qual se nortearam prévios governos de centrodireita e centro-esquerda, além de intensificarem o escangalhamento do Estado de bem-estar social, denegarem as profundas mudanças socioeconômicas necessárias para evitarmos ou enfrentarmos a iminente crise ecológica global, insuflarem o etnonacionalismo e o racismo, reforçarem o machismo e a homofobia e minarem o Estado de direito e a democracia liberal. É sob a opaca radiação dessa constelação capitalista que se gesta o livro de Nancy Fraser e Rahel Jaeggi, e é a tal constelação que ele responde diretamente, sintomatizando o nosso tempo em três sentidos: ele reflete (sobre) um complexo temático discutido publicamente, um complexo de crises distintas e interligadas de alcance global e um complexo heterogêneo de movimentos e lutas sociais.
Vertida para o nosso português por Nathalie Bressiani, filósofa notoriamente versada nas teorias críticas das duas autoras, a obra se torna muito mais acessível no Brasil, onde tanto Fraser como Jaeggi, embora sejam filósofas preeminentes com diversas obras de imenso peso teórico, ainda são pouco traduzidas: justamente as mais importantes obras de ambas (por exemplo: de Fraser, Fortunes of feminism: from state-managed capitalismo neoliberal crisis ; de Jaeggi, Kritik von Lebensformen ) ainda não o foram. Também nesse sentido, Capitalismo em debate é uma novidade muitíssimo bem-vinda: pela precisão e pela consistência teórica do trabalho de tradução e por difundir entre nós o que mais recentemente teorizaram a filósofa estadunidense e a suíça.
É na tentativa de fazer jus à obra (bem como à sua tradução brasileira) que, a seguir, se elabora um panorama interpretativo dela, e se esboçam algumas observações críticas gerais.
À guisa de conversa
O que mais dá nas vistas quando se abre, pela primeira vez, o livro de Fraser e Jaeggi e até provoca um leve estranhamento durante os primeiros progressos da leitura é a peculiar forma discursiva em que o livro se apresenta. Trata-se mesmo de uma “conversa”, conforme advertido pelas autoras já no subtítulo do livro. Mas se trata de uma conversa apenas entre aspas, pois o debate entre elas não se configura, de fato, como uma conversa propriamente dita: falada e espontânea, informal e cotidiana.
Trata-se, antes, de uma conversa escrita (não só transcrita): e escrita com a intenção de constituir um livro, não um livro qualquer, mas um livro plenamente teórico, um livro de teorização crítica da sociedade capitalista. Uma conversa, portanto, minuciosamente organizada em quatro aspectos básicos. Em primeiro lugar, ela põe em foco uma temática ampla e complexa, mas bem demarcada e sistematicamente abordada, abarcando o capitalismo, a própria teorização crítica do capitalismo e, ademais, a práxis política anticapitalista. Em segundo lugar, o livro se desenrola num nível de profundidade teórica deliberadamente restringido, ainda que elevado, pois, mesmo que pretenda ser plenamente teórico, não pretende esgotar a teorização que empreende, nem aprofundá-la tanto que se torne acessível exclusivamente a acadêmicos familiarizados com esse tipo de teorização, inacessível, porém, para grande parte do público potencial. Em terceiro lugar, a “conversa” se caracteriza por uma intencional e constante moderação do seu nível de polemização, considerando que as duas autoras ostentam e mantêm entre si muitas divergências fortes, inclusive divergências de saída (dentre as quais se destaca a divergência quanto a conceber o capitalismo como ordem social institucionalizada, como defende Fraser, ou como forma de vida, como defende Jaeggi 1 ), mas não querem travar a “conversa”, nem a espichar exageradamente, nem a tornar árida com a multiplicação de ressalvas, objeções e encruzilhadas teóricas. E, em quarto lugar, o livro apresenta uma exposição cujo desenvolvimento é articulado em quatro grandes blocos, ou capítulos, bem delimitados e estreitamente justapostos na seguinte sequência: conceituação – historicização – crítica teórica – contestação política (sempre do capitalismo).
Intentando constituir um livro teórico e organizadíssima nos seus aspectos básicos, a “conversa” se faz, então, altamente formal e inteiramente acadêmica.
Por isso, o seu público potencial é formado, sobretudo, por acadêmicos, intelectuais e outros leitores excepcionais, mas não só pelos que já têm alguma intimidade com a teorização crítica do capitalismo. Não se trata, em todo caso, de obra dirigida prioritariamente a “leigos”: inclusive nesse aspecto, a ligação da teoria com a práxis não é, aqui, concebida como imediata; há certo hiato entre o terceiro e o quarto capítulo, entre a crítica teórica e a contestação política, hiato que não é intransponível, mas não pode ser suprimido nem ignorado, de modo que os destinatários preferenciais de Capitalismo em debate são os que transitam em palcos e plateias de debates teóricos.
Retomada de produções acadêmicas individuais anteriores
A maior parte da obra reapresenta, de maneira resumida, mas consideravelmente detalhada, os principais conceitos, explicações, teses e pressuposições de ambas as produções acadêmicas. Assim, quem ainda não travou contato com o que Fraser e Jaeggi, cada uma individualmente, já haviam publicado relativamente à crítica do capitalismo encontra, em Capitalismo em debate, um acesso adequado, amplo e instigante à particular crítica do capitalismo de cada uma das autoras.
No entanto, a obra não se circunscreve a uma reapresentação do já apresentado por cada uma delas alhures. Capitalismo em debate mescla a essa reapresentação, aqui e acolá e até em abundância, novos aprofundamentos, desdobramentos e esclarecimentos teóricos. Justamente a forma de “conversa” que tem a obra possibilita e convida a isso: cada uma das duas interlocutoras, recorrentemente, pressiona a outra a mais bem elaborar alguns aspectos da sua própria crítica do capitalismo, o que conduz, então, a alguns ganhos teóricos de reflexividade, abrangência e clareza.2 Há, ainda, inovações teóricas na obra em relação ao que as autoras haviam teorizado até então 3 Assim, proporciona-se, a quem já havia travado contato com a crítica do capitalismo de Fraser e/ou com a de Jaeggi, a possibilidade de retomar as suas leituras anteriores, levantar novamente questões que essas leituras lhe suscitaram e colocá-las perante a nova obra, tentando encontrar na última respostas para as primeiras, ainda que, nesse movimento, possa, com muita probabilidade, confrontarse com uma segunda onda de questões.
Outra vantagem da forma de “conversa” da obra é que se produz permanentemente a possibilidade de diversas comparações entre as duas críticas. Podem-se comparar os conceitos-chave empregados por cada uma das autoras. Podem-se comparar as explicações fundamentais que cada uma delas dá sobre: ontologia social do capitalismo; desenvolvimento temporal e diversificação espacial do capitalismo; distinção e articulação das dimensões específicas de uma crítica abrangente do capitalismo; análise das lutas sociais anticapitalistas hodiernas. Podem-se comparar, ainda, as teses centrais que cada uma delas articula quando se põem a explorar os terrenos da teoria social, da economia política, da metacrítica social e da análise empírica. E se podem comparar as mais importantes pressuposições subjacentes a cada uma das duas críticas do capitalismo, pressuposições metodicamente trazidas à tona e bastante discutidas em Capitalismo em debate. Além da diversidade do que pode ser submetido à comparação, também são diversos os critérios que podem ser utilizados para comparar: pode-se comparar à luz, por exemplo, dos critérios de fecundidade teórica, capacidade elucidativa, agudeza crítica e conectividade com a práxis política atual. Aliás, as próprias autoras usam, com frequência, os mencionados critérios para exigirem, uma da outra, respostas satisfatórias a várias questões abordadas no livro.
Retomando as suas próprias produções acadêmicas, Fraser e Jaeggi procedem, além do mais, a uma relativa sistematização das suas críticas do capitalismo, as quais se encontravam, até então, dispersas numa vasta lista de artigos e livros. E isso diz respeito principalmente a Fraser, que tem uma carreira acadêmica mais extensa e mais numerosas publicações que Jaeggi e, além disso, está mergulhada, já há uns bons dez anos, num processo de elaboração de uma nova crítica do capitalismo, publicando os seus resultados parciais de modo intermitente e numa prolífica sequência cumulativa, o que lhes impõe o aspecto de partes formadoras de um complexo mosaico ainda inconcluso. Trata-se de uma crítica do capitalismo nova, inclusive, em relação àquela que a mesma Fraser, até então, elaborara 4 e que não era, como a de agora, centrada: (a) nas divisões institucionais axiais que estruturam a sociedade capitalista em diversas esferas funcional, ontológica e normativamente específicas, mas interdependentes; (b) nas várias tendências de crise do capitalismo produzidas pelas incompatibilidades fundamentais e irredutíveis da lógica própria da economia capitalista, de um lado, com as lógicas próprias do poder público, da reprodução social e da natureza não humana, de outro; (c) nas lutas sociais travadas nas fronteiras entre a economia capitalista e os seus imprescindíveis planos de fundo político, sociorreprodutivo e natural. Esse ambicioso projeto teórico de Fraser, no entanto, não havia sido, até agora, realizado de modo concentrado (num grande livro) e rigorosamente sistemático, mas numa comprida fieira de artigos distribuídos entre diferentes revistas e livros, 5 de maneira que, em razão da própria forma artigo, ela não havia conseguido, até agora, conferir à sua nova crítica do capitalismo uma exposição completa e unificada. Apesar do seu currículo acadêmico menos volumoso, também Jaeggi se caracteriza pela mesma dispersão da sua interlocutora – uma dispersão, vale notar, nem errática, nem inconsciente, nem insuscetível à síntese. De fato, também Jaeggi elaborou a sua crítica do capitalismo de modo fragmentário. Num primeiro livro, ela elaborou o seu critério ético para a crítica do capitalismo, a saber, a alienação. Depois, num artigo, elaborou o arcabouço conceitual e explicativo da sua crítica da ideologia. Noutro artigo, veio a elaborar a sua metacrítica, que propõe uma teorização do capitalismo que indissoluvelmente entremeie análise e crítica e seja, ao mesmo tempo, funcional e ética. Elaborou, num terceiro artigo, um conceito funcional e ético de trabalho. Em seguida, noutro livro, elaborou a sua teoria social, centrada nas formas de vida. Elaborou, ainda, num quarto artigo, um conceito amplo de economia, economia como conjunto de práticas sociais específicas, mas inseparavelmente atreladas a outros tipos de práticas sociais e, enquanto conjunto, completamente partes, fundamentalmente características e parcialmente constitutivas de uma forma de vida específica; e assim por diante.6 Portanto, também à crítica do capitalismo de Jaeggi, faltava uma exposição completa e unificada.
Isso ocasionava, para o público leitor, uma expressiva dificuldade para compreender, de modo sistemático, ambas as críticas do capitalismo, já que elas mesmas foram elaboradas pelas suas autoras de maneira paulatina e fragmentária (mas não incoerente).Capitalismo em debate, não obstante, concede a ambas uma significativa chance de se fazerem sistemáticas enquanto teóricas críticas do capitalismo. Essa chance, contudo, é limitada, pois a sistematização não pode, nesse tipo de livro, escrito à guisa de conversa, ser exaustiva, nem definitiva, no que tange a aprofundamento, desdobramento e clarificação do previamente publicado.
A sistematização alcançada é, nesse sentido, relativa: trata-se de alinhavar o já publicado, recuperando explicitamente a sua coerência interna, indo, de vez em quando, um pouco além do já escrito anteriormente, sempre na medida do permitido pela forma “conversa”.
O pronunciado protagonismo de Fraser
A chance de sistematizar as suas dispersas contribuições anteriores para a crítica do capitalismo foi, de fato, aproveitada pelas duas autoras, mas Fraser, visivelmente, a aproveitou muitíssimo mais que Jaeggi. Talvez haja uma razão genética, editorial, para isso: o livro fora encomendado pelo editor estadunidense, ao que tudo indica, como uma homenagem à longeva, profícua e influente carreira acadêmica de Fraser, por ocasião do seu septuagésimo aniversário, em 2017. Ainda que as autoras tenham decidido alterar o propósito do livro proposto pelo editor, dedicando-o, então, ao estágio atual das suas pesquisas, cujo foco é justamente o capitalismo, é nítido que Jaeggi desempenha, predominantemente, o papel de uma entrevistadora, embora saia uma entrevistadora bastante erudita, perspicaz e crítica. Mesmo quando seria esperado que fosse dela a fala principal, o impulso do protagonismo de Fraser, rapidamente, desponta, se imiscui e se instala.
Nos capítulos I e II, que versam, respectivamente, sobre a conceituação e a historicização do capitalismo, o palco é quase unicamente de Fraser. Jaeggi se restringe, quase completamente, a estimular a sua interlocutora a reapresentar (e, aqui e ali, aprofundar, desenvolver e clarificar) duas grandes propostas suas (da própria Fraser): (a) a proposta de conceituação do capitalismo como uma ordem social cuja especificidade histórica reside na institucionalização de uma esfera econômica que é separada das esferas da reprodução social, do poder público e da natureza não humana, mas que é, ao mesmo tempo, dependente dessas três esferas “não econômicas”, ainda que denegue a imprescindível importância econômica que elas possuem e ainda que denegue a parasitação, o esgotamento e a devastação que impõe a elas; (b) a proposta de historicização do capitalismo como uma sequência (retrospectivamente reconstruível como sendo direcional) de regimes de acumulação privada de capital que não se circunscrevem à esfera econômica, mas são, ao mesmo tempo, regimes socio-rreprodutivos, políticos, socioecológicos e racializadores, quer dizer, os regimes de acumulação mercantil, liberal, administrado pelo Estado e financeirizado/neoliberal também abrangem, como componentes “não econômicos” essenciais, mas mantidos no plano de fundo, formas específicas de feminilização do “cuidado” e de seguridade social, formas específicas de configuração das relações entre os poderes privados econômicos e os poderes públicos políticos (nacionais e transnacionais), formas específicas de “natureza histórica” e formas específicas de subjetivação/sujeição política e de expropriação econômica.
Já o capítulo III seria, supostamente, o capítulo em que Jaeggi tomaria o protagonismo na “conversa”, já que se trata de um capítulo dedicado à metacrítica do capitalismo, ou seja, à reflexão sobre os critérios fundamentais com base nos quais se critica o capitalismo e sobre os tipos gerais de crítica do capitalismo. Enquanto Fraser, até então, na sua produção acadêmica anterior, havia se abstido largamente de escrever sobre a crítica do capitalismo, tendo se concentrado em escrever diretamente sobre o próprio objeto da crítica do capitalismo, é de Jaeggi, possivelmente, a principal elaboração da Teoria Crítica recente em termos de metacrítica do capitalismo. Seria, pois, esperado que, nesse capítulo, a voz preponderante fosse a de Jaeggi. Jaeggi chega a retomar a sua metacrítica do capitalismo já no início do capítulo, definindo, assim, os termos da discussão, de modo que a discussão passa, então, a girar em torno de três tipos gerais de crítica do capitalismo, distinguidos uns dos outros pela adoção de um de três critérios fundamentais: a crítica funcional põe em foco as tendências de crise do capitalismo; a crítica moral, a exploração e/ou a injustiça impostas pelo capitalismo; e a crítica ética, a alienação que o capitalismo produz.Definidos desse modo os termos da discussão, Fraser passa, no entanto, a fazer preponderar a sua voz. Primeiro, Fraser concorda com Jaeggi em que não é possível uma crítica puramente funcional do capitalismo, em que toda crítica funcional está ligada, explícita ou implicitamente, a algum ponto de vista normativo e, portanto, a algum tipo de crítica moral e/ou ética, ainda que o desenvolvimento teórico da crítica propriamente normativa se apresente como tímido e fugaz. A partir daí, no entanto, começam a mostrar-se divergências e diferenças entre as duas autoras. Por exemplo, Jaeggi defende que Marx não procedeu a uma crítica diretamente moral do capitalismo, mas Fraser sustenta que há, em Marx, uma dimensão moral explícita, relacionada à justiça política, ou a uma injusta (pois classista) destinação institucionalizada do excedente social. A obstinada oposição que Jaeggi faz a uma crítica moral é, então, contrastada com a insistência de Fraser numa crítica moral centrada nas dominações estruturais não só de classe, mas também de gênero e raça. Além disso (e muito mais importante), Fraser passa a apresentar a sua própria concepção de crítica ética do capitalismo, contrapondo-a abertamente à particular concepção de Jaeggi. E isso leva Fraser a retomar tanto a sua própria conceituação como a sua própria historicização do capitalismo, já desenvolvidas nos dois capítulos anteriores, para salientar-lhes as nuanças propriamente éticas.
Não obstante, é no capítulo III, sem dúvida, que Jaeggi é mais bem-sucedida em expor a sua própria crítica do capitalismo, ao menos nos seus traços gerais: uma crítica baseada em dois critérios entrelaçados, o critério funcional das contradições imanentes e tendências objetivas de crise e o critério ético não essencialista e não substantivo, mas antes processual e formal, da alienação – alienação como obstáculo à liberdade social. Trata-se de uma crítica que, em última análise, põe em relevo a irracionalidade inerente ao capitalismo como uma ordem social que sistematicamente bloqueia experiências sociais e processos de aprendizagem e, assim, distorce profundamente as reações sociais às suas próprias crises, o que acaba por causar e proliferar relações sociais alienadas e fenômenos de estranhamento. Nessa medida, o capítulo III é o capítulo de Jaeggi, ainda que, nele, o desempenho discursivo de Fraser não fique atrás do da sua interlocutora. No capítulo IV, Fraser reassume mais enfaticamente o seu protagonismo no livro. Isso ocorre porque a crítica do capitalismo de Fraser dispõe de uma elaboração acerca das lutas sociais que é muito mais rica e clarificadora do que a de Jaeggi. Essa elaboração se desenvolve em três vertentes diferentes e, não obstante, interligadas. A primeira vertente é a da ressignificação e ampliação do conceito clássico de “lutas de classe” através do conceito novo de “lutas de fronteira” – o que representa uma contribuição original de Fraser para a renovação do marxismo e da Teoria Crítica. Na “A turbulência que se aprofunda ao nosso redor” Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo | Jan./Jun..2020 129 segunda vertente, Fraser realiza uma apropriação crítica do conceito de “movimento duplo” de Karl Polanyi que o transforma num “movimento triplo”, constituído de três amplas tendências de desenvolvimento que atravessam toda a história do capitalismo e se relacionam umas com as outras de maneiras diferentes ao longo dessa história, a saber, as tendências de mercadorização, proteção social e emancipação. Já na terceira vertente, Fraser elabora o diagnóstico acerca do “neoliberalismo progressista” como a corrente política neoliberal hegemônica até há pouco, bem como acerca do recente arruinamento da hegemonia neoliberal sob a pressão geral de movimentos regressivos e emancipatórios, os primeiros alimentando o “populismo reacionário” de extrema-direita, os últimos nutrindo o “populismo progressista” de uma esquerda da qual se espera que possa unir toda a classe trabalhadora em sentido amplo, abarcando todos os expropriados e explorados num bloco contra-hegemônico que vise a uma transformação estrutural da ordem social capitalista. Jaeggi levanta importantes discordâncias e ressalvas a essa tripla elaboração de Fraser. Por exemplo, ela parece adotar uma compreensão mais aguda e mais dramática do racismo, do sexismo e da homofobia que caracterizam os atuais movimentos regressivos e os seus porta-vozes partidários de extrema-direita, em contraposição à proposta de Fraser de compreender essas gravíssimas atitudes sociopolíticas como reações reacionárias à crise da hegemonia neoliberal, suscetíveis, em princípio, ao esclarecimento e à mudança. Além disso, Jaeggi ressalta a necessidade de uma crítica da ideologia hoje, em contraposição à proposta de Fraser de recuperar o conceito de “hegemonia” de Antonio Gramsci. Em todo caso, nesse capítulo final, Jaeggi acaba por restringir-se a comentar as vastas propostas de Fraser.
Uma explicação do predomínio discursivo de Fraser
É possível explicar, com uma combinação de razões filosóficas e razões relativas à peculiar forma discursiva de Capitalismo em debate, a precedência que a crítica do capitalismo de Fraser exerce continuadamente sobre a de Jaeggi ao longo do livro. Ao conceituar o capitalismo como uma ordem social institucionalizada, Fraser monta um quadro conceitual que lhe rende algumas expressivas vantagens em relação a Jaeggi. Em primeiro lugar, o quadro conceitual de Fraser é consideravelmente menos abstrato que o de Jaeggi, o qual tem como cerne os conceitos de forma de vida, prática social, problema e processo de aprendizagem. Em segundo lugar, o quadro conceitual de Fraser é não só aberto à historicização – o de Jaeggi também o é –, mas também inerentemente dependente dela, ou seja, somente pode ser desdobrado teoricamente (e, assim, elucidar o seu próprio objeto) mediante uma narrativa abrangente do desenvolvimento histórico do capitalismo – o que não ocorre com o quadro conceitual de Jaeggi, cujo desdobramento teórico é significativamente independente de narrativas históricas, precisamente porque é de uma abstração elevadíssima. Em terceiro lugar, o quadro conceitual de Fraser tem como critérios da crítica a estabilidade estrutural (ou a sustentabilidade funcional), a não dominação de classe, gênero e raça e a autodeterminação coletiva socioeconômica, critérios com os quais Fraser consegue criticar o capitalismo de modo, ao mesmo tempo, mais simples, mais fértil e mais convincente do que Jaeggi com os seus critérios de êxito na compreensão e resolução de problemas e não alienação (ou apropriação). E, em quarto lugar, o quadro conceitual de Fraser é capaz de esclarecer imanentemente as lutas sociais de outrora e de hoje de modo abrangente e nuançado, quer dizer, oferece um panorama sistemático delas ao longo de toda a história capitalista, tanto no centro como na periferia do capitalismo mundial e em cada um dos períodos específicos dessa história; e oferece, ainda, um discernimento criterioso daquelas lutas conforme se posicionem em relação à mercantilização da sociedade, à proteção da sociedade contra a mercantilização e à emancipação de grupos sociais que permanecem estruturalmente dominados na sociedade capitalista.
Justamente em virtude dessas características do seu quadro conceitual, a crítica do capitalismo de Fraser se sobressai à de Jaeggi na “conversa”. Efetivamente, numa conversa (ainda que seja uma conversa só entre aspas), tende a perder espaço quem discursa muito abstratamente: discursos muito abstratos são mais adequadamente desdobrados em formas de escrever não dialógicas nem inclinadas à altercação oral, quer dizer, em formas de escrever mais monográficas, ensaísticas ou tratadísticas. Nesse sentido, é razoável supor que o quadro conceitual menos abstrato de Fraser tenda a ser propício ao desdobramento do seu particular discurso em Capitalismo em debate, enquanto o quadro conceitual muito mais abstrato de Jaeggi tenda ao contrário. Mesmo no capítulo I e no III, os mais abstratos do livro, a menor abstração do quadro conceitual de Fraser lhe proporciona bastante espaço discursivo. Além disso, as temáticas às quais se dedicam os dois outros capítulos do livro são francamente favoráveis a Fraser: no capítulo II e no IV, dedicados, respectivamente, à história do capitalismo e às lutas anticapitalistas atuais, é quase óbvio que Fraser se destaque muito mais que Jaeggi, dado que, entre as duas, é apenas Fraser que oferece uma crítica do capitalismo eminentemente histórica e explícita e sistematicamente ligada à práxis política anticapitalista.
Estamos conversados?
A forma de “conversa” que as autoras deram ao seu livro lhes permite sempre abrir e abordar uma gama formidável de temas e problemas, ao mesmo tempo que nem sempre lhes permite dar vazão à sua veia teórica na medida necessária. Essa constrição formal da reflexão teórica impõe a Capitalismo em debate três importantes limitações: a primeira diz respeito à relação da teorização que as autoras oferecem com a economia política e, em particular, com a teorização de Karl Marx; a segunda, à clarificação da religião nas suas (perigosas) relações com o capitalismo; e a terceira, à elucidação dos supostos populismos hodiernos. Tais limitações podem ser formuladas através das seguintes questões, que, no livro, ficam intocadas: Que traços fundamentais teria uma nova economia política que levasse a sério seja a concepção expandida de capitalismo de Fraser, seja a concepção alargada de economia de Jaeggi? Permaneceriam sustentáveis as bases do edifício teórico da crítica marxiana da economia política ante as novas, mais profundas e mais complexas concepções de trabalho, natureza, acumulação, contradição, crise, classe, luta de classes, democracia, sociedade e socialismo de Fraser? Como precisamente essas concepções de Fraser impactam as centrais conceituações marxianas de valor e mais-valor? Que lugar a religião ocupa na sociedade capitalista? Ela chegaria a constituir, para Fraser, uma esfera social própria com a qual a economia, assim como com a reprodução social, a política e a ecologia, manteria uma relação de separação, dependência e denegação; ou, para Jaeggi, uma forma de vida de escopo limitado, mas de forte resistência, sob a modernidade como uma abrangente forma de vida secularizada? Ou se circunscreveria ela a um resíduo de eticidade pré-moderna que, embora essencialmente incompatível com a secularidade moderna, pode ser e, de fato, é reaproveitado na sociedade capitalista para fins hegemônicos (diria Fraser, quiçá) ou ideológicos (talvez dissesse Jaeggi)? E que é populismo? Os atuais presidentes estadunidense e brasileiro (Donald Trump e Jair Bolsonaro), por exemplo, são mesmo populistas? Não seria mais adequado caracterizá-los como autoritários ou até fascistas? O que diferiria, hoje, o populismo do autoritarismo e do fascismo? Sem embargo dessas limitações gerais, Capitalismo em debate tem como virtude principal a de ser um livro tempestivo, um livro que liga estreita e profundamente a reflexão teórica ao seu contexto social, um livro que cabe ler justamente em meio à “turbulência que se aprofunda ao nosso redor” (p. 9). Ao final da leitura, permanecem ressoando as palavras de Fraser: “a crise não será resolvida com o ajuste desta nem daquela política. O caminho para a sua resolução só pode ser o da transformação estrutural profunda dessa ordem social”; palavras, aliás, reverberadas por Jaeggi: “sem um projeto emancipatório para além das alternativas às quais as pessoas parecem presas agora, as coisas podem ficar feias” (pp. 241-242).
Referências
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* Trata-se de uma citação da obra resenhada, situada na página 9.
Notas
1 Há outras três divergências centrais entre as autoras, a saber: primeiro, ao passo que Jaeggi parece manter uma considerável abertura para uma teoria da modernidade, ainda que não desenvolva uma, Fraser parece ater-se completamente à teorização do capitalismo, sem preocupar-se em caracterizálo como formação social moderna e em distingui-lo de formações sociais pré-modernas. Segundo, enquanto Jaeggi abraça uma crítica ética do capitalismo que, malgrado formal, é enfática, já que focada na alienação, Fraser assume uma crítica ética do capitalismo que é bastante tímida e parece ser mais política que ética, já que enfoca a autodeterminação coletiva quanto às mais importantes questões econômicas. Terceiro, se Fraser não hesita em conceber os movimentos sociais hodiernos, inclusive os regressivos, como reações diferentes ao neoliberalismo hegemônico, Jaeggi reluta em aceitar tal concepção e não descarta hipóteses que explicam os movimentos sociais regressivos por prismas predominantemente simbólicos, real ç ando, por exemplo, o racismo inveterado, a misoginia visceral, a homofobia entranhada e o ressentimento social que os impulsionaria
2 Por exemplo, quanto à conceituação do capitalismo, Fraser aprofunda reflexivamente a sua própria concepção ao explicitar que ela emprega duas metodologias distintas e que, no entanto, não correspondem a duas, mas a uma única ontologia social, ainda que diversificada para dar conta das diversas esferas sociais em que se divide estruturalmente a sociedade capitalista. Trata-se de uma metodologia estrutural-institucional e de uma metodologia de teoria da ação. Já quanto à historicização do capitalismo, Fraser desdobra a sua concepção, tornando-a mais abrangente, ao apontar um novo regime de acumulação capitalista, vigente do século XVI ao XVIII, anterior ao capitalismo liberal e concorrencial do século XIX, a saber, o capitalismo mercantil. Ademais, Fraser clarifica, quanto à conceituação do capitalismo, que a sua concepção não é meramente funcionalista, mas é também normativa; além do mais, clarifica, quanto à historicização do capitalismo, que o ideal seria elaborá-la de modo conjunto e sistemático, mostrando como as relações profundamente instáveis que a economia capitalista, de um lado, mantém com o poder público, a reprodução social e a natureza não humana, de outro, desenvolvem-se, ao mesmo tempo, distinta e combinadamente.
3 Por exemplo, em relação à crítica teórica do capitalismo, Fraser inova ao afirmar que a sua crítica do capitalismo tem não só uma dimensão funcionalista (focada em contradições estruturais e tendências de crise) e uma dimensão moral (focada em dominações institucionalizadas de classe, gênero e raça), mas também uma dimensão ético-estrutural que diz respeito à falta de autodeterminação coletiva no que se refere a questões econômicas centrais que moldam profundamente a forma de vida abrangente, sobretudo a questão do controle e do emprego do excedente social. E, em relação à contestação política do capitalismo, Fraser também inova ao afirmar que há uma crise de legitimação em curso, uma crise da hegemonia (do senso comum político) neoliberal, sendo que, em artigo publicado três anos antes, afirmara que faltava precisamente tal crise de legitimação.
4 As obras mais emblemáticas da fase anterior da crítica do capitalismo de Fraser são: Fraser & Honneth (2003) e Fraser (2013).
5 Ver, por exemplo, os seguintes artigos: Fraser (2014), Fraser (2018a), Fraser (2016), Fraser (2018b), Fraser (2018c), Fraser (2020).
6 Ver Jaeggi (2014), Jaeggi (2008), Jaeggi (2015), Jaeggi (2018a), Jaeggi (2018b), Jaeggi (2017).
José Ivan Rodrigues de Sousa Filho – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: ivanrsfilho@hotmail.com
Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático – STREECK (C-FA)
STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018. Crise e neoliberalismo no capitalismo setentrional. Resenha de: MARINO, Rafael; COSTANZO, Daniela. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 25 n.1 Jan-Jun, 2020.
A partir de uma longa visada, o livro de Wolfgang Streeck, Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático, pretende explorar as determinações essenciais da passagem, em meio a crises fiscais e financeiras, de um capitalismo democrático, baseado em um Welfare State e instituições políticas keynesianas, para um capitalismo neoliberal, no qual um regime econômico neo-hayekiano – caracterizado essencialmente por uma máxima desregulamentação econômica e pela proteção frente a qualquer normatização ou correções políticas de massa – impõe um mercado que se pretende imune a qualquer tipo de intervenção democrática. Nesse sentido, uma das teses mais fortes do economista alemão é a de que a crise de 2008 marcaria o possível fim dos adiamentos de conflitos decorrentes da crise do capitalismo democrático, ocorrida na década de 1970. Falamos em longa visada, pois o seu estudo abarca, pelo menos, as transformações do capitalismo e a marcha do capital desde os fins da década de 1960 até a década de 2010. O que acaba por tornar-se um respiro benfazejo em meio às análises políticas e econômicas presentes no mercado das ideias, fortemente pautadas por certo imediatismo e por estudos de curto fôlego.
A base material com que Streeck lida é a do capitalismo de países ricos notadamente nações europeias, como Alemanha e França, além de nações de outros continentes, como Estados Unidos da América e Japão “como unidade multifacetada, constituída pela interdependência, em meio à dependência coletiva dos Estados Unidos, quanto pelas peculiaridades dos conflitos internos e dos problemas de integração sistêmica” (Streeck, 2018, p. 12).1 A fundamentação teórica que lança mão para cuidar deste material é um amálgama entre marxismo, renovado pela assim chamada novas leituras de Marx (Elbe, 2013), teoria crítica frankfurtiana das crises e as formulações de Michal Kalecki e Karl Polanyi. O que não deixa de também chamar a atenção, dada a preponderância de pesquisas e trabalhos fortemente especializados e centrados em particularismos formais e subjetivos, seja de atores ou mesmo de instituições políticas, nas ciências sociais, principalmente na economia e na ciência política. Não obstante a sua aproximação destas teorizações amalgamadas, Streeck não deixa de ver nelas algumas limitações frente ao material por ele enfrentando, o que serve, sobretudo, para o aperfeiçoamento daquele instrumental e não seu abandono.
Quanto às suas divisões internas, o livro é composto por seis partes, sendo quatro capítulos, um prefácio à segunda edição, de 2015, e uma introdução, os quais procuraremos explorar, mesmo que sumariamente e sem necessariamente seguir a sua ordenação.
No prefácio, Streeck volta-se para a discussão de seus pressupostos teóricos, suas escolhas de caminhos durante a apresentação de seu argumento e a exposição sucinta de alguns de seus achados de maior relevância. Quanto ao primeiro elemento, o referido amálgama crítico e neomarxista permite que o economista alemão veja o capitalismo como uma sequência de crises imanentes ao processo de valorização do valor; o mercado como algo reposto empiricamente a partir do entrecruzamento entre ação estratégica e as lutas distributivas coletivas “nos mercados expandidos, impulsionado por uma dinâmica relação de troca entre espaços de classes e de interesses, de um lado, e de grupo organizados e instituições políticas, de outro, com particular consideração do problema da reprodução financeira do Estado” (Streeck , 2018, p. 9) e o capital como uma espécie de sujeito capaz de assumir estratégias complexas para levar a bom termo sua valorização e expansão. Estratégias as quais operam, por exemplo, via greve de investimentos, como as antevistas por Kalecki (1943), para quem os capitalistas, vendo o pleno emprego e o poderio da classe trabalhadora aumentado, utilizariam-se daquele expediente para o enfraquecimento dos trabalhadores e para a extenuação do poder do Estado. Nesse bojo, o mercado e suas estratégias políticas, deixados por eles mesmos, sem a resistência da classe trabalhadora e de políticas voltadas para desmercadorização, poderiam, tendencialmente, tornar-se um moinho satânico com potencial para destruir a civilidade e a sociedade (cf. Polanyi, 2000).
Já em relação às trilhas percorridas por Streeck, três parecem ser os elementos essenciais. Em primeiro lugar, o capitalismo democrático dos países ricos a que se refere é visto pelo economista como um período de excepcional e específica estabilidade, construída politicamente a partir de uma elite tecnocrática, frustrada com os anos 1930 e “fundada em uma economia de guerra (…) centrada no Estado, que tinha uma coisa em comum com todas as linhas partidárias: profunda e experimentada dúvida sobre a viabilidade e sustentabilidade do livre mercado capitalista” (Streeck, 2018, p. 16). Havia, portanto, uma crise de legitimidade capitalista que exigiu que os capitalistas aceitassem um regime social democrata. Em segundo lugar, esse casamento entre capitalismo e democracia não é natural, pois, dentre outras coisas, ambos operam com formas contrárias de justiça. O capitalismo pratica uma justiça de mercado baseada no desempenho individual, enquanto a democracia se baseia na universalidade de direitos a partir da justiça social. Há, além disso, uma assimetria entre as duas justiças, já que o capital tem mais condições de reagir, podendo impor crises ao conjunto da população e justificar suas reivindicações como condições para o funcionamento do sistema como um todo. Já as reivindicações dos trabalhadores são vistas como perturbações e não como necessidades ao funcionamento do sistema.
Como último elemento distintivo da pista sob a qual o argumento de Streeck se desenvolve, vê-se a ideia de que, a partir do final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, esse casamento forçado entre capitalismo e democracia começou a mostrar suas contradições através de crises que foram seguidamente adiadas de formas distintas até o momento atual. Com, principalmente, três fatores: a) a diminuição do crescimento econômico, antes constante e crescente; b) o clima político desenvolvido a partir das revoltas de 1968, a partir do qual alguns atores políticos, organizações de classe e intelectuais passaram a falar até mesmo na superação do mercado e do capitalismo; e c) a uma revalorização grande do mercado como instância de satisfação e gestão das mais diversas esferas da sociedade. Nesse período, a burguesia, acossada principalmente pelos dois primeiros fatores elencados acima e legitimada pelo terceiro fator, inicia a quebra do que fora duramente acordado por décadas e deixa de financiar essa forma de organização estatal voltada ao bem estar social. Desta feita, criticando a visão de autores como James Buchanan, Gordon Tullock e outros teóricos da chamada public choice, o Estado de Bem-estar social não teria chegado ao fim pela irresponsabilidade fiscal de trabalhadores que votariam pela maximização de seus bens e serviços de seu interesse, mas sim por uma escolha política deliberada dos capitalistas em geral.
Na sua introdução, intitulada “Teoria da crise no passado e no presente”, Streeck enuncia mais fortemente a sua filiação às teorizações da crise vindas da assim chamada Escola de Frankfurt, passando, de forma inespecífica, por Theodor Adorno, Max Horkheimer, Friedrich Pollock, Jürgen Habermas e Claus Offe. O essencial desta formulação sobre a crise, para o autor alemão, gira em torno de dois aspectos: i) o seu fundamento heurístico, desde o qual é possível ver uma tensão essencial entre a vida social civilizada e suas esferas e uma economia dirigida pelo imperativo de valorização do capital, que tende ao infinito e não possui freios normativos contra a barbarização; ii) o pressuposto de que o mais importante a ser estudado são os processos, em sua historicidade e em suas determinações basilares, e não os estados e momentos; de modo que aí as instituições sociais seriam vistas como engendradas pelo processo social, isto é, seriam provisórias, em permanente debate entre orientações políticas contraditórias e instáveis. Isso, a nosso ver, possibilitou um ponto de arrimo crítico interessante para Streeck, dado que, a partir dessa visão complexificada sobre a totalidade social em movimento, não caiu nas armadilhas da economia e da ciência política mainstream, confinadas ao individualismo metodológico e a uma operacionalização que isola o econômico e o político de outras esferas da vida (cf. Sartori, 2004; cf. Paulani, 2005). Não obstante, Streeck também faz críticas às teorizações frankfurtianas, pois, a seu ver, teriam acreditado demais na capacidade política de legitimação e planejamento do Estado e subestimado o poder do capital enquanto agente político e força social apta a desmobilizar e destroçar formas estatais específicas. Algo que, apesar de nosso acordo quanto a Habermas e Offe, é injusto com os frankfurtianos da chamada primeira geração, como mostraremos ao fim de nosso exercício de leitura crítica.
Já no primeiro capítulo do livro, Streeck repisa a sua crítica apesar de reafirmar sua filiação à teoria crítica frankfurtiana das crises, argumentando que esta teria se transformado em teorias da cultura, do Estado e da democracia, deixando de lado a crítica da economia política, achado essencial de Karl Marx e boa parte de suas teorizações sobre, por exemplo, crescimento, subconsumo e superprodução. Contra isto, o autor alemão propõe que voltemos a olhar o capital como um agente econômico e político voltado à sua autovalorização constante e dotado de forte capacidade estratégica contra o que acha ser uma barreira contra seu desígnio maior: a acumulação. Deste modo, a construção de um capitalismo democrático, durante as chamadas três décadas de ouro após a Segunda Guerra Mundial, deveria ser vista como um momento muito específico no qual o capitalismo e os capitalistas estavam em baixa e aceitaram a fusão, tensa, com a democracia e com a melhoria constante do nível civilizacional da classe trabalhadora. Tudo isso fora aceito pelos agentes do capital como uma forma de reestruturação de sua legitimidade, bem como uma espécie de imposição pela luta entre as classes e não como mudança do ímpeto acumulativo do capital.
Esta crítica de Streeck às ideias de crise de legitimação frankfurtiana deságua num diagnóstico bastante instigante a respeito da crise desta forma de capitalismo democrático em meados da década de 1970, a saber: “não foram as massas que se recusaram a seguir o capitalismo do pós-guerra, acabando com ele, mas, sim, o capital sob a forma de organizações, organizadores e proprietários” (Streeck , 2018, p. 65). Porém, por que essa recusa se deu? Sobre este ponto, as explicações dadas pelo autor aparecem em momentos distintos do texto, o que pode causar certa confusão no(a) leitor(a); além disso, duas delas, ao menos aparentemente, são contraditórias – conforme exploraremos mais adiante. Todavia, Streeck aponta que três seriam as causas. Em primeiro lugar, teria ocorrido o início de certo achatamento da lucratividade do capital, devido, principalmente, aos custos com mão de obra, cada vez mais valorizada, e com os chamados encargos do Welfare State. Em segundo lugar, com as revoltas da década de 1960, mais especificamente, as de 1968, instaura-se um clima político entre segmentos específicos de forças sociais, políticas e intelectuais supostamente voltados à negação e superação do mercado e da mercadoria, deixando os capitalistas extremamente assustados. Em terceiro lugar, nessa mesma década de 1960, assiste-se a uma elevação inédita da legitimidade, em várias camadas da sociedade, das forças do mercado vistas, neste período, como as melhores gestoras de diversas esferas da vida e da política e ao aumento exponencial do consumismo e sua ideologia, conquistando novos domínios da vida social. Essa nova onda de legitimidade do mercado deu-se, num primeiro momento, a despeito das revoltas de 1968. Todavia, posteriormente, ela se deu utilizando-se, também, das pretensões emancipatórias dos manifestantes quanto à maior autonomia, à criatividade e à possibilidade de novas formas de vida distintas da família de classe média europeia e estadunidense. Deste modo, o desejo de autorrealização e flexibilidade comportamental e libidinal dos revoltosos de 1968 fora capturado por formas de trabalho e ocupação que embaralhavam termos opostos como independência e precariedade, conforme os diagnósticos de Boltanski e Chiapello (2009).
Outro lance argumentativo interessante de Streeck é quando liga a crise adiada do capitalismo democrático de 1970 aos dias de hoje. De acordo com o nosso economista, tendo em vista os três elementos anteriores, pode-se notar o abandono dos capitalistas (ou dos dependentes do capital) do capitalismo democrático. Não obstante, esse abandono foi algo processual e não peremptório, dado que, ao mesmo tempo em que deveriam lograr a liberalização total da economia e de outras esferas da sociedade, não poderiam perder a sua legitimidade frente aos dependentes de salário em geral. Até porque, sem nenhum tipo de distribuição aos de baixo, o caminho para revoltas de todos os tipos estaria pavimentado. Streeck nota que, andando próximo àquela tendência de desacoplamento frente à regulação democrática, vê-se, entre as décadas de 1970 e 2010, uma contínua diminuição do crescimento econômico das economias centrais cada vez mais estagnadas. Tal diminuição do crescimento econômico fica sem maiores explicações e explicitações causais e de gênese por parte de Streeck – o que também criticamos ao final da resenha.
De toda forma, três seriam as formas de adiamento dos conflitos decorrentes da crise dos anos de 1970: i) inflação; ii) endividamento do Estado e iii) endividamento privado por meio da expansão dos mercados de créditos privados. Todos esses adiamentos, de um modo ou de outro, marcaram derrotas importantes para os assalariados e serão explorados por nós rapidamente juntamente com as suas consequências para o povo dependente de salários e para a tentativa autoritária do mercado em se livrar de qualquer constrição da democracia.
A primeira forma de adiamento da crise se deu entre as décadas de 1970 e 1980 e foi materializada por meio da inflação. Isso se deu porque já nos anos de 1970 o pleno emprego, pedra angular da democracia no pós-guerra, passa a ser de difícil manutenção, dado que o crescimento econômico resultante do trabalho e do capital deixou de ser sistemático e ascensional. Assim, para evitar uma insatisfação popular generalizada com a não redistribuição dos lucros vindos da produção, o aumento salarial acima do aumento da produtividade fora sustentando por meio de uma política monetária de introdução “de recursos adicionais, que, no entanto, não estavam disponíveis senão sob a forma de dinheiro, não ou ainda não como algo real” (Streeck, 2018, p. 80). Gerando-se, desta feita, inflação. Mas não só. Essa ilusão monetária fora uma miragem de curto prazo, cujo fim fez com que investimentos diminuíssem ou fossem canalizados para outras moedas fora da zona econômica do atlântico norte. Já na metade da década de 1970, os agentes do capital, vendo tal situação de estagnação e inflação, colocaram na ordem do dia, sob a liderança de Reagan, nos Estados Unidos da América, e Thatcher, na Inglaterra, medidas de estabilização neoliberal drásticas. As quais foram um duro golpe nos dependentes de salários, visto que a deflação da economia foi decisiva para recessão e desemprego constantes. Condições importantes para a perda de poder dos sindicatos e da classe trabalhadora. Por conseguinte, a arena da disputa de classes, a partir deste momento, passa a se deslocar do mercado de trabalho e das fábricas, para lugares cada vez mais “abstratos” e inacessíveis ao cidadão comuns.
Essa política econômica “estabilizadora”, localizada no final dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, mostrou-se uma porta de entrada importante, a um só tempo, para uma nova configuração estatal. Com a deflação anterior e o decréscimo no nível de vida, viu-se novamente o perigo da não legitimação do capitalismo tardio frente às camadas médias e populares, fazendo com que Estados e agentes econômicos fossem atrás de outra fonte de adiamento e legitimação, qual seja: o endividamento público. Ao modo da inflação, o endividamento público permite ao governo utilizar recursos financeiros provenientes do sistema monetário, mais especificamente do pré-financiamento de futuras receitas fiscais do Estado via instituições privada de crédito. Recursos que serão de suma importância para pacificação de conflitos sociais provenientes do crescente fosso entre as promessas do capitalismo e sua realização efetiva para a maioria da população. Outro movimento a que se assistiu, juntamente com esse endividamento do Estado, foi o de aumento dos créditos sobre os sistemas de seguridade social, em função, principalmente, da elevada taxa de desemprego e pelo fato de a moderação salarial da classe trabalhadora ter tido como termo de negociação o aumento de parcelas. Ou seja, politicamente, os governos não podiam nem cortar mais direitos do Estado Social nem aumentar impostos, dado que uma ou outra alternativa poderia cutucar onças com varas curtas; fazendo com que recorresse ao endividamento público.
Essa forma de adiamento fora tão sensível que se constitui como um pilar essencial da passagem do que Max Weber, Adolph Wagner, Richard Musgrave e Rudolf Goldscheide concebiam como Estado Fiscal, que expropriou sistematicamente e soberanamente os cidadãos em geral da sociedade civil, a fim de financiar o cumprimento de suas tarefas como interferir no crescimento econômico, redistribuir riqueza e cobrir externalidades negativas do mercado -, para o Estado endividado.Este, para cumprir as suas tarefas e obrigações, passa a contrair empréstimos e deixa de cobrar uma taxa mais elevada de impostos daqueles que se apropriam da maior parte da riqueza socialmente produzida, os chamados dependentes do capital. Assim, Streeck pode afirmar, com dados e fatos, que a crise financeira não foi gerada pelas massas e suas demandas de civilidade, mas sim pelo andar de cima, que, década após década, viu seus rendimentos e propriedades, cada vez mais aumentados, serem cada vez menos taxados. Ou seja, numa movimentação unilateral de classe, deixaram de financiar o Estado social e o capitalismo democrático em prol da valorização do capital. Nesse bojo, a luta entre as classes também ganha outro contorno, passando a ser disputada dentro dos Estados de bem-estar social e não mais na produção, como anteriormente, girando em torno de disputas intraburocráticas e ainda mais distantes dos cidadãos dependentes do trabalho.
Nessa forma de Estado endividado, Streeck identifica propriamente uma nova fase de relação entre capitalismo e democracia. Isso se dá pelo fato de que, como o Estado passa a dever para instituições privadas de crédito, há sempre a desconfiança por parte destas de que o aparato estatal não honre as suas dívidas apesar de ser um devedor deveras lucrativo e seguro -, o que faz com que os agentes do mercado passem cada vez mais a influenciar a política estatal com o intuito de assegurar seus lucros. Por conseguinte, os credores passam a ser uma espécie de segunda raiz constitutiva do Estado, de sorte que as políticas devem responder a dois setores ou povos distintos, a saber: a) o povo do Estado, composto por cidadãos nacionais, portadores de direitos civis, dependentes de serviços públicos, formadores da opinião pública e que expressam sua vontade eleitoral periodicamente tudo isso em troca de lealdade ao Estado e ao pagamento de impostos; b) o povo do Mercado, formado por investidores – e não cidadãos – internacionalmente integrados, que visam exclusivamente a maximização de seus lucros e que se ligam ao primeiro povo apenas por contratos.
À vista deste quadro, o nosso autor tira algumas consequências importantes da relação entre capitalismo e democracia. Primeiro, o capital ou o povo do mercado deixou de influenciar a política apenas indiretamente, via investimento na economia, e passou para uma ação direta na política nacional ao escolher ou não financiar todo o Estado. Segundo, o povo do Estado, principalmente as camadas mais pobres, por resignação, comparecem cada vez menos às eleições, pois já não veem o que esperar de mudança do partido no governo, visto que a agenda política e econômica da esquerda e da direita pouco se diferenciam e passam a sofrer constrições decisivas do povo do mercado. Com isto, cada vez mais o capitalismo vai se blindando em relação à democracia e suas decisões e a transição neoliberal vai se estabilizando e se alastrando.
Na passagem da segunda para a terceira forma de adiamento da crise vê-se, além de uma nova forma de preterir a crise (o endividamento privado), a constituição de outra configuração estatal, ainda mais voltada aos interesses do capital e para consolidação do neoliberalismo. Já ao final dos anos 1980 e começo da década de 1990, iniciou-se um movimento dúplice: os governos passaram a se preocupar cada dia mais com o aumento do peso do serviço da dívida no orçamento e os credores, a cada dia que passava, desconfiavam da capacidade estatal para o pagamento das dívidas. Nesse período, sendo os EUA de Clinton a vanguarda do atraso, começaram cortes nos gastos sociais e tentativas de “equilibrar” o orçamento, prática seguida por várias outras nações e incentivada diretamente por organizações como Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Apesar desse processo de liberalização radical dos mercados já vir de duas décadas anteriores, o capitalismo ainda precisava de uma forma de legitimação que, de uma só vez, mobilizasse recursos adicionais para evitar revoltas populares e não permitisse que a procura de capitais pelos países diminuísse, isto é, que a varinha de condão da confiança burguesa não deixasse de tocar as nações centrais. Para cumprir essas duas demandas, a saída da vez fora o endividamento privado, ou o que Colin Crouch chamou de “keynesianismo privado” (Crouch, 2009), injetando uma solvência antecipada no mercado numa segunda onda de liberalização dos mercados de capitais. Deste modo, substitui-se o endividamento público pelo endividamento privado como uma forma de aumentar as reservas disponíveis de recursos para distribuição. Nesse contexto, o papel do Estado mudou novamente, via liberalização do mercado de capitais no sentido de permitir o endividamento irrestrito dos agregados familiares, os quais tentam compensar tanto as perdas salariais de décadas, quanto a destruição das políticas estatais de desmercadorização.
Essa nova forma de adiamento forjou as bases para duas mudanças políticas e ideológicas importantes. Politicamente, vê-se a harmonização total entre a saída política encontrada e os desejos dos agentes do capitalismo neoliberal, harmonizando as necessidades e expectativas de ambos; até porque a desregulamentação das esferas da vida e dos mercados de capitais atingiu ali um nível nunca antes visto. Ideologicamente, operou-se um movimento dúplice: ao mesmo tempo em que surgiram novas teorizações a respeito da eficiência dos mercados desregulados, os quais contariam com agentes racionais que deteriam todas as informações necessárias para agir desde que o Estado não interferisse e desestabilizasse essa dinâmica, foram reabilitadas ideias de autores como o austríaco Friedrich Hayek, cuja proposição da transfiguração de todas as esferas da sociedade em empresas fora importante para imantar a prática de agentes capitalistas.
Nesse mesmo período, a formação estatal ganha outra conformação: passasse do Estado endividado nacional para o Estado de consolidação internacional. Por consolidação, Streeck entende o crescente processo de consolidação do orçamento e das finanças públicas no sentido de restringir direitos e parcelas do Welfare State à população e permitir um ambiente seguro para as movimentações políticas e econômicas do povo do mercado. Desta feita, essa consolidação está intrinsecamente ligada a três outros movimentos importantes: i) redução do Estado ao mínimo funcional à expansão dos mercados, impedindo a intervenção estatal ativa no sentido de regular e mitigar a justiça de mercado; ii) institucionalização de uma economia política internacionalizada e a transformação dos Estados nacionais em entidades não soberanas ajustadas a uma política fiscal decidida por uma diplomacia internacional do capital, cujo ponto de fuga não é a civilidade e sim o da valorização do capital e iii) restrição da capacidade de ação e regulação democrática do povo do Estado, de forma a colocar na ordem do dia uma democracia desdemocratizada e domesticada pelas forças do mercado e não o contrário. Como o Estado de consolidação é um regime internacional, a própria luta distributiva atinge o seu maior nível de abstração e inacessibilidade aos estratos médios e popular, já que o poder passa a se concentrar numa diplomacia financeira internacional e em mercados de capitais blindados à intervenção democrática e política.
Não obstante, em 2008, o keynesianismo privado veio abaixo. Essa forma de endividamento sustentou uma prosperidade enorme do setor financeiro e uma economia afluente, tudo isso sustentado pelo endividamento inaudito e colossal dos agregados familiares. Porém, a estrutura de crédito que permitia esse novo adiamento foi para os ares e o motivo era que todo aquele crédito liberado de modo algum poderia ser efetivamente saldado e boa parte do dinheiro em circulação, na forma de crédito, era fictício e lastreado em nada. Desta feita, os recursos para o adiamento da crise do capitalismo foram, um a um, testados e fracassaram, tornando qualquer saída cara demais para a diplomacia financeira internacional. À vista disto, o economista alemão vê duas alternativas possíveis: ou instaura-se realmente uma ordenação estatal neoliberal internacionalizada e pós-democrática, na qual o totalitarismo do mercado único sobrepujaria totalmente o povo do Estado, ou, a partir das mais variadas resistências populares – como o movimento global Occupy dos 99% –, volta-se a pensar na reconsolidação de democracias nacionais capazes de reinstaurar instituições promotoras de uma justiça social não redutível à justiça do mercado, a exemplo do praticado durante o chamado consenso socialdemocrata, além da repactuação de um Bretton Woods necessário à manutenção da soberania e democracia nacionais. Desta feita, a alternativa pensada por Streeck passaria, necessariamente, pelas seguintes medidas: a) reaproveitamento e revitalização de instituições nacionais, ao modo de parlamentos, bancos centrais, canais de representações popular e instituições de seguridade social socialdemocratas, as quais representariam as diferenças entre os povos e as nações; b) o aumento do espaço de autonomia dos Estados nacionais frente às instituições globais de governança do povo do mercado e c) a reformulação de um acordo econômico europeu, feito Bretton Woods, desde o qual se repactuassem regras para relações econômicas, as quais resistissem ao avanço desenfreado da desregulamentação mercantil. Tendo isso em vista, poder-se-ia argumentar que isto é muito pouco perto do diagnóstico feito pelo próprio economista alemão. Todavia, o próprio Streeck nos adverte que todas essas medidas são formas de ganhar tempo contra a expansão capitalista desmedida e que soluções melhores e mais radicais de ação contra a desdemocratização neoliberal devem ser pensadas com urgência.
Apesar de ser um estudo com elementos e argumentos indispensáveis para compreensão do capitalismo contemporâneo, articulando de modo exemplar a relação entre economia, política e sociedade, algumas críticas podem ser tecidas ao estudo de Streeck, as quais div idimos em teóricas, geopolíticas e de encadeamento interno da exposição.
No primeiro grupo, nota-se uma leitura generalizante a respeito da chamada Escola de Frankfurt ou da teoria crítica, 2 por dois motivos. Em primeiro lugar, a ideia de confiabilidade no caráter controlável do capitalismo, a partir da intervenção estatal e da democracia, é bem mais aplicável ao pensamento de Habermas e, em menor medida, ao de Offe -, para quem o Estado democrático de direito teria plenas condições de domesticar o crescimento capitalista, de modo que os cidadãos teriam aí direitos políticos para tomar parte e direitos sociais de ter parte nos processos decisórios e redistributivos da sociedade (Habermas, 2015). Deste modo, o problema essencial a ser enfrentado é o da continuidade da legitimidade do compromisso em torno deste Estado e os possíveis problemas da intervenção estatal na vida das pessoas; assim, a saída seria apenas a repactuação em torno de arenas políticas e discursivas, para que o princípio da solidariedade e o mundo da vida tivessem condições de sobrepujar os imperativos sistêmicos. Em Adorno e Horkheimer, como podemos ver em vários momentos de suas obras, o poder de mudança regressiva do capital e da forma mercadoria não são deixados de lado em prol de “análises culturais”. Mas sim que, partindo do diagnóstico pollockiano, poderíamos ver outros tipos de dominação menos imediatas determinadas não em sentido fatalista pela lógica da mercadoria (Fleck, 2016; Cook, 1998). Desta feita, a análise que fazem dos rackets não deixa dúvidas sobre a atenção que davam ao econômico e ao político (Adorno, 2003; Horkheimer, 2016). Ademais, se for permitido um reparo adorniano ao trabalho de Streeck, muito mais interessante que o uso da vaga ideia de ideologia do consumismo, seria lançar mão da noção de indústria cultural, dado que ela deveria ser entendida como uma continuação específica e crítica das teorizações sobre fetichismo e reificação de Marx e Lukács, de acordo com Adorno e Horkheimer (2006).Isso se dá porque o caráter de sistema da indústria cultural – composta pelo cinema, rádio, jazz, revistas, esporte, moda e livros de alta vendagem –, seria explicável justamente pela imposição do processo de reificação ao lazer e à cultura, impondo-lhes sua forma mercantil e tornando-as prolongamento do trabalho reificado. Forma reificada que condicionaria fortemente a apreensão da realidade, que passa a ser entendida agora como sistema imutável de leis especializadas e apreendida apenas pela contemplação, conformando uma individuação integrada à totalidade do capital e aos seus desígnios de consumo e manutenção do sistema.
Em segundo lugar, a teorização de Pollock surgiu em contraposição a outras duas. Uma, de origem social-democrata, propugnava a ideia de que as transformações do capitalismo no início do século XX apontavam para a sua estabilização; outra, aventada por figuras do comunismo ocidental, acreditava que estas transformações aprofundavam as contradições internas do capitalismo, apontando para seu colapso ou crise definitiva (Rugitsky, 2015). Contra ambas, Pollock (1973;1982) propõe que inexiste qualquer tendência inelutável de mudança ou colapso automático do capitalismo e que ele não estava passando por uma estabilização, mas sim por uma reestruturação na qual a primazia deixa de ser dos mecanismos do mercado e passa a ser do Estado, cuja política garante a reprodução da vida econômica.
À vista disto, pode-se entender a crítica de Streeck a certa “confiança” no planejamento mediante as reviravoltas do capital, porém é interessante que o economista alemão fale em greve de investimentos, em ação política das classes e na ideia de que as relações econômicas possuem uma fundamentação política, visto que isto não destoa de uma parte importante do diagnóstico de Pollock a respeito da politização do quadro institucional do capitalismo. E mais: o economista alemão havia pensado em duas possibilidades organizacionais para o capitalismo de Estado, o democrático e o autoritário; desta feita não poderíamos estar assistindo, na verdade, a passagem não para um Estado de consolidação, mas sim para um capitalismo de Estado autoritário? É preciso lembrar que o fato de a economia sofrer menos intervenções da democracia não quer dizer que a política saiu de cena, mas sim um tipo de política: a democracia de massas. Podendo restar aquilo que já era antevisto por Pollock, a saber: a força abismal dos dirigentes de grandes conglomerados e empresas, que, na esteira da monopolização acentuada decisivamente nos primórdios do século XX, passam a ser essenciais na vida social, política e econômica da população, pois, de um lado, o seu poder passa a se confundir com o poder estatal e, de outro, os seus prejuízos passam a ser socializados, dado que a sua falência causaria enorme impacto em toda a economia (Rugitsky, 2015, p. 63). Algo que, salvo engano, foi visto sistematicamente após a crise de 2008 em relação a variadas empresas e bancos, como Goldman Sachs e General Motors. Aspecto que poderia andar muito bem de mãos dadas com o processo de “ desdemocratização do capitalismo por meio da deseconomização da democracia ” (Streeck, 2018, p. 55).
Em relação à geopolítica, há duas ausências importantes na argumentação de Streeck: a primeira é a força da União Soviética e o contexto de Guerra Fria, a segunda são os processos de descolonização que assolaram o capitalismo central. Em relação ao primeiro fator, é possível dizer que a URSS, nas primeiras décadas do século XX, mostrou-se independentemente de se gostar disto ou não como uma alternativa de organização produtiva e social para a forte e organizada classe trabalhadora do centro e da periferia capitalista. Destarte, esses dois fatores um proletariado empoderado e dotado de uma alternativa de poder produziram condições muito importantes para a consolidação de uma série de direitos sociais voltados para o bem-estar e para desmercadorização da população (Esping-Anderser, 1991), ou, como dizia Francisco de Oliveira, os direitos do antivalor (1998). Tanto é que Buci-Glucksmann e Therborn (1981) chegaram mesmo a entender o Welfare State como uma espécie de revolução passiva, na qual as classes dominantes passam a acolher uma série de demandas dos trabalhadores, dado que estão pressionadas política e socialmente pela possibilidade real de uma Revolução.
Já quanto ao segundo elemento elencado, desde o final da Segunda Guerra Mundial e se arrastando pelas décadas de 1950 e 1970, é possível notar um importante processo de descolonização pelo mundo, o que necessariamente implicou na perda relativa de poder político e econômico sobre a periferia do capitalismo mundial, deixando os dependentes do capital nos países centrais preocupados com uma diminuição da lucratividade de atividades organizadas em torno de matérias primas das ex-colônias (Jameson, 1999; Visentini, 2012). Nesse bojo, é notável o caso da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), que passou a nacionalizar as reservas petrolíferas e regular seus preços, e que produziu em represália ao apoio dos EUA a Israel na guerra do Yom Kippur a chamada primeira crise do petróleo (Hobsbawn, 1995, p. 421-447). Com a qual, a partir do aumento proposital dos preços dos barris da referida commodity, a OPEP produziu consequências profundas nas economias centrais, cujos índices inflacionários bateram recordes, e que pode ter ajudado a acender o sinal amarelo das elites nacionais sobre os caminhos que o capitalismo democrático poderia traçar contra seus interesses de acumulação.
Ainda nessa seara, outro fato geopolítico importante, e que não aparece na explicação de Streeck, é a concorrência do que Araujo e Bresser-Pereira (2018) chamam de porções não-ocidentais do mundo no pós-Segunda Guerra Mundial. De acordo com estes autores, na esteira dos processos de globalização e descolonização, o que ocorreu não foi a destruição da forma política Estado-nação soberano, mas sim a sua dispersão e depuração mundial. Com isto, tais países alcançaram condições políticas e técnicas suficientes para controlar os recursos minerais de seus territórios e para dispor de um contingente enorme de mão de obra. Fatores que, combinados, passaram a exercer uma profunda pressão sobre os países desenvolvidos do centro ocidental do capitalismo, a qual “acabou afetando, a partir da década de 1970, o modo de legitimação dos Estados sob o chamado ‘consenso socialdemocrata’ dos anos dourados do capitalismo, os quais, após a Segunda Guerra Mundial, puderam oferecer cada vez melhores condições de vida às suas classes médias e populares” (Araujo; Bresser-Pereira, 2018, p. 556).
Desde o começo, salientou-se que a base sobre a qual o estudo de Streeck se concentra são os países desenvolvidos do centro do capitalismo, não obstante o fato de que considerações de economia geopolítica, como as que expomos, não fazerem parte de sua exposição acaba enfraquecendo seu argumento, dado que não se consegue explicar satisfatoriamente as determinações essenciais da estagnação do crescimento dos países centrais, por exemplo. À vista disso, partiremos para a exposição do que consideramos ser problemático no encadeamento expositivo interno do trabalho do economista alemão.
Conforme dissemos anteriormente, os anos de 1970 são chave para a passagem ao início de um adiamento tríplice da crise do capitalismo democrático e para o baixo crescimento econômico do que era antes o centro dinâmico do capitalismo no atlântico norte. No entanto, apesar da centralidade destes dois processos para o livro de Streeck, há três elementos que tornam essas passagens expositivas insatisfatórias.
Em primeiro lugar, como já dissemos no início deste exercício de leitura, as três causas do início da crise adiada a saber, o achatamento do lucro do capital no centro do capitalismo, a radicalização de alguns setores importantes contra a lógica mercantil e o prestígio da ideologia consumista são expostas de forma disparatada no texto, sem maior imbricamento e coesão entre elas, obrigando o(a) leitor(a) a caçar estas explicações ao longo do livro. Prova disto é que, ao longo dos capítulos um e dois, nos quais ele se debruça sobre os momentos de passagem de um capitalismo democrática mais consolidado para os adiamentos de sua crise, poucas são as vezes em que, ao menos, duas das causas expostas acima sejam apresentadas conjuntamente, de modo que durante quase cinquenta páginas é necessário pinça-las no texto. Ademais, a sua apresentação conjunta e imbricada não se dá durante a argumentação do economista alemão.
Em segundo lugar, apesar de Streeck concentrar-se propositalmente nos países desenvolvidos do capitalismo, algumas determinações de seus insucessos econômicos e políticos devem ser buscadas fora deles. Isso não se coaduna com a ideia de que Streeck seria etnocêntrico ou coisa do gênero (cf. Cariello, 2019), mas, tão somente, pretende-se chamar atenção para uma das lições da crítica da economia política de Marx (1983) reivindicada por Streeck contra as teorizações que esquecem das reviravoltas do capital: o fato de que o capitalismo é um sistema totalizante e que impõe a forma mercadoria e sua lógica em todos os cantos do globo e em todas as esferas da vida. Consequentemente, a exposição, mesmo concentrando-se nos países do centro do capitalismo, deveria prestar atenção em determinações que estão fora dele, pois, de acordo com outro ensinamento dos dialéticos, a primazia do método deve estar no objeto e suas implicações, as quais, no caso do capitalismo, são mundiais, queira-se ou não.
Em terceiro lugar, o economista alemão argumenta que haveria, em meados das décadas de 1960 e 1970, uma tendência contrária ao capitalismo e uma tendência que alargaria a sua legitimidade. À princípio, isto não seria em si problemático, porém a exposição do autor não deixa claro como esses dois termos se apresentam na realidade. A partir do que Streeck escreve, mas não desenvolve satisfatoriamente, poderíamos desdobrar a seguinte linha de raciocínio: ao mesmo tempo que segmentos específicos da sociedade, como parte dos trabalhadores, intelectuais e frações jovem e estudantis, tentavam colocar em xeque o sistema, gestou-se uma hegemonia ainda mais forte de legitimação mercantil, a qual enraizou-se de forma mais eficaz na sociedade. Ademais, essa tendência pró-capitalista pôde, ainda, apropriar-se de boa parte das bandeiras levantadas nos movimentos radicais de 1960 e 1970, convertendo-as aos dogmas do capital, apesar de sua aparência libertária. Desta feita, a luta por formas de vida autônomas e contrárias ao poder da mercadoria, fora funcionalizada como engrenagem de um capitalismo mais, aparentemente, flexível e hype.
Notas
1 À vista disto, não há base para Cariello (2019) chamá-lo de eurocêntrico, como se Streeck, espertamente, não tivesse revelado a base a partir da qual estuda mudanças importantes do capitalismo. Na verdade, Cariello é que nitidamente procura uma forma de atacar as posições de Streeck para elogiar as pretensas qualidades distributivas e civilizatórias do capitalismo. Que as pessoas tenham mais alguns dólares hoje do que o que ganhavam três décadas atrás, qualquer estudo empírico revela, mas Cariello esquece de dizer que as jornadas de trabalho no mundo voltaram a ter um nível de destrutividade poucas vezes visto e que, apesar de ganhos miseravelmente maiores, as desigualdades continuam aumentando de maneira gritante (Cf. Streeck, 2018, p.100; Piketty, 2014).
2 À primeira vista, esta crítica a Streeck pode parecer não essencial. Contudo, de acordo com argumento explorado posteriormente, caso o economista alemão tivesse dado maior consequência aos textos de Adorno e Horkheimer, poderia ter chegado a um diagnóstico e a uma crítica mais contundentes ao capitalismo contemporâneo e ao imbricamento ainda mais acentuado da tendência à reificação das subjetividades e ao poder destrutivo do capital, cujo cerne depõe contra o caráter facilmente controlável do capitalismo.
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DanielaCostanzo – Universidade de São Paulo. E-mail: danicosper@gmail.com
Rafael Marino – Universidade de São Paulo. E-mail: rafael.marino50@gmail.com
Objetos trágicos, objetos estéticos – SCHILLER (AF)
Objetos trágicos, objetos estéticos – SCHILLER (AF)
SCHILLER, F. Objetos trágicos, objetos estéticos. Organização e tradução de Vladimir Vieira. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2018. Resenha de: BELLAS, João Pedro. Artefilosofia, Ouro Preto, n. 27, dez., 2019.
A incursão de Friedrich Schiller pela filosofia deu-se em um curto período de tempo, ficando restrita à década de 1790. Os textos de cunho filosófico do autor são relativos, majoritariamente, à estética e foram publicados em dois periódicos organizados pelo próprio Schiller: “Neue Thalia” e “Die Horen”, este editado ao lado de Goethe. O interesse por questões de natureza filosófica surgiu em um momento de crise poética vivenciado pelo dramaturgo após a composição do drama “ Don Carlos”, e o seu interesse pelo campo da estética, especificamente, é decorrente do desejo de alcançar maior clareza acerca dos princípios fundamentais de sua arte.
Embora constituam um corpo bastante denso e de mérito filosófico quase que indiscutível, tais escritos de Schiller foram praticamente ignorados pelos especialistas da área a partir do século XX. Esse desinteresse, de um ponto de vista mais geral, pode ser resultado da ausência de uma abordagem sistemática de temas clássicos da filosofia, como a questão do conhecimento, por exemplo. Surpreende, contudo, que mesmo no campo da estética ainda sejam escassos os estudos de mais fôlego acerca da obra filosófica do autor.
No Brasil, especificamente, até pouco tempo atrás muito da produção teórica do autor não se encontrava disponível em boas edições em língua portuguesa. Nesse sentido, o volume “Objetos trágicos, objetos estéticos”, organizado por Vladimir Vieira e publicado pela editora Autêntica, oferece uma contribuição importante para o debate estético brasileiro ao trazer quatro dos ensaios de Schiller em uma tradução bastante criteriosa e cuidadosa. O volume complementa o livro “Do sublime ao trágico”, organizado por Pedro Süssekind e editado pela mesma editora em 2011, na medida em que os te mas discutidos nos dois ensaios reunidos nessa obra, especialmente o conceito do sublime, são desenvolvidos também nos textos que compõem “Objetos trágicos, objetos estéticos”.
Os quatro ensaios que integram o volume foram publicados entre os anos de 1792 e 1793 nos quatro volumes da “Neue Thalia” e evidenciam, em maior ou menor grau, uma influência da filosofia crítica de Kant, sobretudo da obra “Crítica da faculdade do juízo”, sobre o pensamento de Schiller. Não se trata, contudo, de uma mera assimilação passiva do pensamento do filósofo de Königsberg. Como observa Vladimir Vieira (p. 141) no artigo que serve de posfácio a “Objetos trágicos”, Schiller procura refletir, a partir do sistema transcendental kantiano, sobre a sua vivência enquanto artista e sobre a própria experiência estética proporcionada pela arte. Nesse sentido, os ensaios schillerianos consistem em uma das primeiras e mais relevantes respostas às questões postuladas por Kant, em especial na terceira Crítica, 1 mesmo que a tradição filosófica subsequente não tenha-lhes concedido a devida atenção.
Os dois primeiros ensaios reunidos em “Objetos trágicos”, “Sobre o fundamento do deleite com objetos trágicos” e “Sobre a arte trágica”, como os títulos indicam, abordam questões mais diretamente relacionadas à tragédia. Ambos foram publicados no primeiro volume da “Neue Thalia”, em 1792, e as considerações presentes em cada um dos textos complementam umas às outras.
O primeiro ensaio explora as relações entre a estética e a ética, um tema recorrente em sua produção de cunho filosófico, e busca fundamentar a ideia de que a arte tem como fim menos a instrução moral e uma adequação às regras do decoro do que a produção de deleite. Schiller argumenta que, diferentemente do prazer mediato possibilitado pelo entendimento e pelo assenso da razão, que requerem, respectivamente, esforço e sacrifícios, somente o deleite proporcionado pela arte pode ser realizado de forma imediata. O postulado do autor vai, portanto, de encontro à proposta de determinada corrente moderna da estética, ligada especialmente ao Neoclassicismo, que busca subordinar a arte, e o deleite que ela é capaz de produzir, à instrução moral.
O deleite estético, como é compreendido pelo dramaturgo, mantém uma relação dupla com a moral, promovendo-a e sendo dela dependente. Porém, para que seja capaz de promovê-la, a arte não pode ser privada daquilo que a torna mais poderosa, sua liberdade: “Só cumprindo o seu mais alto efeito estético é que a arte terá uma influência benfazeja sobre a eticidade; mas só exercendo a sua total liberdade é que ela pode cumprir o seu mais alto efeito estético” (p. 20).
Entendendo que a fonte de todo o deleite é a conformidade a fins, Schiller reflete principalmente sobre o deleite livre, que seria decorrente de representações por parte das faculdades do ânimo. Estas poderiam ser divididas em seis classes, conforme as faculdades responsáveis pela representação: o entendimento ocupar-se-ia do verdadeiro e do perfeito, enquanto a razão teria como objeto o bom ; quando atuam em conjunto com a imaginação, essas faculdades ocupar-se-iam, no primeiro caso, do belo, e, no segundo caso, do sublime e do comovente. Essa classificação serviria, ainda, para organizar, mesmo que não perfeitamente, as artes: as que satisfaz em o entendimento e a imaginação seriam as belas artes (artes do gosto ou do entendimento); já aquelas que satisfazem a razão e a imaginação seriam as artes comoventes (artes do sentimento ou do coração).
Por se tratar de um texto voltado a uma investigação acerca dos fundamentos do prazer proporcionado pela arte trágica, Schiller aborda com mais detalhe as artes do sentimento, explorando principalmente os conceitos de sublime e comovente. Ambos não parecem possuir nenhuma diferença essencial, e têm em comum o fato de que são produzidos através de um desprazer, ou seja, eles “nos fazem sentir […] uma conformidade a fins que pressupõe uma contrariedade a fins” (p. 24). Na segunda metade do ensaio, o pensador passa a se ocupar exclusivamente da comoção, e investiga de que maneira seria possível determinar se uma representação comovente produz, no sujeito, mais prazer do que desprazer e quais seriam os meios que o poeta deveria utilizar para criar esse tipo de representação.
“Sobre a arte trágica” apresenta-se como um complemento de “Sobre o fundamento…” na medida em que tem como objetivo determinar a priori as regras e fundamentos da tragédia a partir do princípio da conformidade a fins. Nesse sentido, o ponto de partida do ensaio é uma tentativa de chegar a uma compreensão mais profunda do modo como podemos auferir prazer com o sofrimento. Para tanto, Schiller introduz a distinção entre afeto originário e afeto compartilhado, sendo o primeiro experimentado diretamente pelo sujeito e o segundo o que se observa vivenciado por outrem.
Essa distinção, na verdade, remete à ideia, recorrente no debate clássico sobre o sublime, de que, para que seja possível sentir prazer a partir de um objeto que se apresenta como um perigo, é necessário que a ameaça não seja direta, isto é, que estejamos em uma posição de segurança em relação ao objeto. Schiller, entretanto, apresenta uma visão bastante peculiar em relação à sua época ao conceder que, em determinados casos, também seria possível auferir prazer a partir de um afeto originário, ou seja, a partir de um desprazer que se dá de modo imediato. Não fosse assim, não poderíamos explicar, por exemplo, o apelo de jogos de azar e de outras situações semelhantes nas quais nos colocamos em um risco direto.
Schiller esclarece que as sensações de prazer ou desprazer resultam de uma relação, que pode ser positiva ou negativa, do objeto em questão com nossa sensibilidade ou nossa faculdade ética, a razão. Enquanto os afetos relacionados à razão seriam determinados de maneira necessária e incondicional, aqueles que se relacionam com nossa faculdade sensível poderiam ser controlados e sobrepujados por nossa razão. Assim, por meio de um aprimoramento moral, seríamos capazes de superar os afetos sensíveis, e experimentar prazer a partir do sofrimento, até mesmo quando se trata de um afeto originário.
Na sequência do ensaio, o autor desenvolve a ideia de que o maior deleite que se pode experimentar se dá a partir de uma representação em que a liberdade de nossa faculdade racional seja afirmada frente aos impulsos sensíveis. Essa ideia é fundamentada principalmente pela noção de atividade: o deleite seria decorrente de uma representação por meio da qual as capacidades da razão seriam postas em ação. É precisamente por despertar a atividade de nossa faculdade ética que a representação do conflito entre a razão e nossos impulsos sensíveis pode ser considerada conforme a fins.
Por fim, após as discussões de natureza mais filosófica sobre os fundamentos do prazer a partir do sofrimento, Schiller volta-se para os objetivos iniciais de estabelecer as regras da tragédia a partir do princípio da conformidade a fins. Elas são reunidas na definição proposta pelo dramaturgo: a tragédia seria uma “imitação poética de uma série concatenada de eventos (de uma ação completa) que nos mostra seres humanos em estado de sofrimento e que tem por propósito incitar a nossa compaixão” (p. 61).
O terceiro texto reunido no volume compreende a parte final de um ensaio mais amplo, intitulado “Do sublime (para uma exposição ulterior de algumas ideias kantianas)” e publicado em 1793 nos volumes 3 e 4 da “Neue Thalia”. Somente essa parte foi preservada por Schiller quando da organização de seus “Escritos menores em prosa” – a parte suprimida integra o livro “Do sublime ao trágico”, mencionado anteriormente.
Ao contrário dos dois textos que lhe antecedem, “Sobre o patético” manifesta uma influência mais profunda da filosofia de Kant. Em linhas gerais, Schiller retoma as suas considerações sobre a tragédia e busca repensá-las a partir do arcabouço teórico da terceira Crítica. Nesse sentido, o dramaturgo buscará reformular a sua definição de tragédia, entendo-a como a representação de um conflito entre nossa faculdade suprassensível da razão e a sensibilidade, na qual a primeira supera a segunda. A partir dessa ideia geral, Schiller reduz a dois os seus princípios constitutivos: ela deve (i) apresentar uma natureza que sofre, e (ii) também a resistência moral a esse sofrimento. Essas duas leis funcionariam para alcançar o fim da tragédia, a saber, a produção do pathos.
Esses princípios estabelecem que a mera representação do sofrimento não é suficiente para a produção do pathos. Isso só ocorre na medida em que ela for capaz de evidenciar para nós a nossa natureza suprassensível. Por isso, Schiller exclui do âmbito da tragédia os afetos que se relacionam apenas com a natureza sensível do sujeito. Assim, não dizem respeito à arte trágica os afetos lânguidos, que apenas agradam a sensibilidade, e aqueles que a perturbam por serem demasiadamente intensos. “O patético”, afirma Schiller, “só é estético na medida em que é sublime” (p. 77).
O pensador argumenta que nos tornamos conscientes de nossa natureza suprassensível apenas a partir da representação da resistência ao próprio sofrimento, e não de suas causas. Em outras palavras, a resistência apresentada deve ser moral e não física. Se, por um lado, as ideias da razão não podem, por definição, ser apresentadas de maneira direta na sensibilidade, isso pode se dar indiretamente. Essas são as situações que seriam capazes de produzir pathos.
Reconhecendo dois tipos de fenômenos, um determinado pela natureza e outro controlado pela vontade, Schiller argumenta que a representação do sofrimento coloca esses dois domínios em conflito. Nesse sentido, duas seriam as condições necessárias para a produção do pathos: (i) a dor deve apresentar-se em todas as regiões do corpo que são dependentes da natureza; (ii) a ausência de sofrimento naquelas que são determinadas por nossa própria vontade. O pathos, portanto, decorre da participação de nossas faculdades sensíveis e racionais; sem o sofrimento, não há representação estética, sem a resistência moral, ela não se torna patética, inviabilizando uma experiência do sublime.
As reflexões desenvolvidas ao final de “Sobre o patético” extrapolam o domínio do quadro conceitual estabelecido por Kant. Aqui, Schiller propõe uma classificação do sublime de acordo com a manifestação da autonomia moral perante o sofrimento: se a dor possui uma origem sensível, nossa eticidade é afirmada negativamente, tratando-se do “sublime do controle”; se a sua causa é moral, a moralidade é afirmada positivamente e temos o “sublime da ação” (p. 90). O segundo compreende, ainda, dois casos, a saber, um a situação em que o sofrimento é escolhido em função de um dever, configurando uma ação da vontade, ou uma situação em que o sofrimento purga uma ação imoral, sendo, aqui, um efeito da afirmação do dever moral como um poder.
Essa distinção serve de funda mento para a diferenciação entre duas formas de julgar: uma moral e outra estética. A primeira consiste em atestar que um sujeito agiu conforme deveria, a segunda em avaliar que ele possuía a capacidade para tal. Enquanto o juízo estético proporciona entusiasmo por explicitar uma capacidade superior aos impulsos da sensibilidade, o moral nos humilha, por mostrar que, por sermos seres sensíveis, não somos determinados exclusivamente pelos imperativos da razão. Essa diferenciação, por sua vez, permite justificar o fim último da arte, que seria a produção de deleite, e porque o recurso à moral deve estar subordinado a ele. Assim, a conclusão desse ensaio retoma a ideia, apresentada em “Sobre o fundamento do deleite com objetos trágicos”, de que o pathos trágico não deve ser sacrificado em função da instrução moral.
O último artigo do livro, “Observações dispersas sobre diversos objetos estéticos”, publicado em 1793 no quarto e último volume da “Neue Thalia”, complementa as reflexões contidas no ensaio “Do sublime”, mencionado anteriormente. Em “Do sublime”, Schiller admite a distinção estabelecida por Kant entre os casos matemático e dinâmico do sublime, porém direciona o seu foco apenas ao segundo. Suas considerações sobre o sublime matemático são desenvolvidas em “Observações dispersas…”.
O título do ensaio poderia levar a crer que se trata de uma compilação de ideias distintas que não possuem muita relação entre si. Trata-se, contudo, de um escrito bastante sistemático e pouco preocupado em ilustrar as ideias discutidas por meio de exemplos artísticos. Assim como Kant, Schiller entende que a experiência do sublime tem origem a partir da contemplação de um objeto que ultrapassa a nossa capacidade de apreensão (no caso matemático) ou de resistência (no caso dinâmico), desde que ele não proporcione “uma repressão de cada uma dessas duas faculdades” (p. 113).
Explorando o primeiro caso, o autor sustenta que, para ser qualificado como sublime, o objeto não pode ser uma grandeza mensurável, mas deve ser uma grandeza absoluta. Na primeira circunstância, teríamos uma avaliação matemática, na segunda, uma avaliação estética. Schiller tem como ponto de partida a ideia kantiana de que a apresentação de um objeto na imaginação envolve duas operações distintas: a apreensão dos dados sensíveis e a sua síntese em uma unidade. Enquanto a primeira operação pode avançar indefinidamente, a segunda possui um limite. O objeto absolutamente grande, por sua disposição no espaço-tempo, traz à consciência esse limite.
O fracasso da síntese gera desprazer, mas, logo em seguida, temos um sentimento de prazer que é decorrente do reconhecimento de que possuímos uma capacidade de pensar uma ideia que não pode ser apresentada na sensibilidade: o infinito. Assim, se, por um lado, experimentamos um sentimento de impotência por não conseguirmos sintetizar o objeto contemplado, por outro, experimentamos nossa força, na medida em que somos capazes de pensar o infinito. O sublime caracteriza justamente o movimento do ânimo que traz à tona a percepção de que somos, sobretudo, seres suprassensíveis, capazes de pensar uma ideia que não se apresenta na sensibilidade.
Ao final do ensaio, Schiller considera em que grau a altura e o comprimento colaboram para o sentimento do sublime. Ao sustentar que a altura afeta o sujeito em um grau mais elevado por acrescentar o terror à experiência, o pensador adota uma posição que atesta a possibilidade da confluência dos casos matemático e dinâmico do sublime.
Os quatro ensaios presentes em “Objetos trágicos, objetos estéticos”, reforçam o quão densos são os textos filosóficos de Schiller e dão testemunho de sua relevância para a estética, ainda que a tradição filosófica ocidental nos tenha levado a crer no contrário. O volume, portanto, traz consigo a oportunidade de potencializar pesquisas que possam vir a restaurar a relevância das ideias de Schiller frente à tradição filosófica, e acrescenta muito aos estudos desenvolvidos no Brasil ao introduzir ideias e conceitos que em muito contribuem para a compreensão do fenômeno estético.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001.
Nota
1 A expressão “terceira Crítica” é comumente empregada pelos comentadores para referir à “ Crítica da faculdade do juízo ”, uma vez que a obra é a terceira das críticas publicadas por Kant, precedida pela “ Crítica da razão pura ” e pela “ Crítica da razão prática ”. Ela será utilizada daqui em diante em todas as ocasiões em que nos referimos à “ Crítica da faculdade do juízo ”.
João Pedro Bellas-Doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Possui mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Brasileira e graduação em Filosofia pela mesma universidade. E-mail: joaolbellas@gmail.com
A arte de contar histórias – BENJAMIN (AF)
BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. Org. Patrícia Lavelle. Trad. George Otte, Marcelo Backes e Patrícia Lavelle. São Paulo: Hedra, 2018. Resenha de: CHIARA, Jessica Di. O filósofo e o contista Walter Benjamin. Artefilosofia, Ouro Preto, n.26, jul., 2019.
Há pelo menos 50 anos o público universitário brasileiro vem entrando em contato com os textos filosóficos, os escritos críticos e ensaísticos de Walter Benjamin e as disputas interpretativas que se geraram em torno do pensamento do autor. Lido e assimilado e m diversas áreas do conhecimento, sobretudo nos cursos de filosofia, comunicação, letras, educação, história e sociologia, transcorridas mais de cinco décadas desde as primeiras abordagens, podemos dizer que já é bem sedimentada e ampla a tradição de comentadores da obra de Benjamin no Brasil.1 Contudo, mesmo em um solo fértil e produtivo, diante de uma obra estamos sempre diante de um mistério: mesmo se a lemos tantas e tantas vezes. É por esse motivo que a nova edição de reunião de escritos de Benjamin organizada por Patrícia Lavelle, “A arte de contar histórias”, contribui para a fertilidade do solo dos estudos benjaminianos por aqui. O livro inaugura a Coleção Walter Benjamin da editora Hedra, cuja intenção é somar-se às iniciativas já existentes e que s e destacam pela efetiva contribuição para o desenvolvimento da recepção da obra de Benjamin em português. Além de propor uma nova tradução anotada do ensaio clássico sobre o contador de histórias “ Der Erzähler ” (que no Brasil é amplamente conhecido pela tradução de Sérgio Paulo Rouanet como “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”), 2 o livro reúne e nos apresenta a pouco conhecida produção ficcional de Benjamin, trazendo para o público leitor brasileiro o conjunto de seus contos, alguns inéditos em português, e algumas peças radiofônicas, além de textos híbridos.
A nova tradução do ensaio, realizada por Patrícia Lavelle e Georg Otte, é atenta às alterações e diferenças entre as versões alemã e francesa. Como a nota dos editores contextualiza e informa, a versão alemã foi escrita entre março e julho de 1936 para a revista “Orient und Ok zident”, na qual foi publicada em outubro do mesmo ano, e é provável que entre 1936 e 1939 Benjamin tenha trabalhado numa versão francesa para o mesmo ensaio, que não chegou a ser publicada, pois a revista a que se destinava o texto em francês (Europe) par ou de circular antes disso. A versão francesa seria então publicada apenas postumamente, em 1952, no “Mercure de France”.3 A escolha em traduzir “ Der Erzähler ” por “O contador de histórias” acompanha aspectos sobretudo da recepção francófona (com conteur), mas também da anglófona (com storyteller).4 Contudo, parece decisivo para a escolha da presente tradução, além da pertinência etimológica,5 o amparo biográfico: a partir do trecho de um bilhete escrito pelo próprio Benjamin em francês, em dezembro de 1939, e destinado ao filósofo alemão exilado como ele em Paris, Paul Ludwig Landsberg, que tinha consigo já a versão alemã. No bilhete, Benjamin diz, ao enviar uma cópia da versão em francês, o seguinte: “Voilà ‘le narrateur’ (mais il faudrait bien plutôt traduire: Le conteur)”. 6 Ou seja: “Eis ‘o narrador’ (mais seria preciso de preferência traduzir: O contador de histórias)”. 7 Se o próprio ensaísta em seu trabalho de tradução do alemão para o francês atesta que a palavra “ conteur ” expressa melhor ou com mais precisão aquilo que o substantivo alemão “ Erzähler ” significa no contexto do ensaio, a tradução para o português, uma língua neolatina assim como a francesa, dá crédito à intuição benjaminiana. De todo modo, não deixa de ser inusitada a relação entre o título traduzido (“ le narrateur ”) e o bilhete com a sugestão de tradução (“le conteur”), ambos assinados por Walter Benjamin, que parece ter duvidado de si mesmo após o trabalho da tradução. Mas o livro “A arte de contar histórias” não se restringe a apresentar uma nova tradução do clássico ensaio sobre o papel da arte tradicional de contar histórias, e Marcelo Backes soma-se a Lavelle e Otte no trabalho de tradução dos textos ficcionais. Este é dividido em quatro partes, que são acompanhadas de uma nota de apresentação da coleção escrita pelos editores Amon Pinho e Francisco Pinheiro Machado e de um posfácio assinado por Lavelle. A primeira parte, intitulada “Ensaio”, abriga a nova tradução do ensaio sobre o contador de histórias. Já a segunda parte, “Contos”, traz ao todo dezesseis contos escritos por Benjamin ao longo das décadas de 1920 e 1930 (com prevalência da produção na última década), em sua maioria inéditos em língua portuguesa. Na terceira parte, intitulada “O contador de histórias no rádio”, temos acesso a quatro peças radiofônicas escritas pelo autor e filósofo alemão que foram transmitidas durante a década de 1930, com exceção da peça “No minuto exato”, que teria sido publicada no Frankfurter Zeitung, em 6 de dezembro de 1934, sob o pseudônimo de Detlef Holz. A quarta e última parte do livro, de nome “Conto e crítica”, abriga quatro textos híbridos publicados em jornais. Uma tal divisão do livro poderia indicar um viés de leitura que parte da teoria sobre a arte de contar histórias para a sua aplicação em contos e peças, sugerindo para quem leia os textos ficcionais encontrar neles traços dos conceitos e reflexões que são apresentadas no ensaio de abertura. Ler assim o livro ora organizado e os escritos de Benjamin seria, melhor dizendo, não lê-lo, pois desconsidera a novidade que a leitura dos textos ficcionais benjaminianos solicita. Ao contrário, é possível ler essa proposta de organização como um caminho que vai da filosofia à literatura, de maneira a, por fim, trazer textos onde essa divisão mesmo já não faz sentido.
De tom marcadamente nostálgico e bastante crítico a ainda jovem modernidade técnica, o ensaio sobre o contador de histórias apresenta a figura arcaica, o que vale dizer aqui pré-moderna, do contador de histórias como a imagem que caracteriza um tipo de arte que carrega em sua própria forma a memória de uma organização social comunitária, em que a transmissão de experiências se organizava mediada pelo trabalho artesanal, era apreendida e transmitida a partir de um mestre e compartilhada por uma comunidade. Ou seja, a arte de contar histórias carregaria consigo, em sua forma oral (e encarnada nas figuras do ancião, do mestre ou do viajante estrangeiro), a lembrança e a potência de uma organização social pouco mediada pela técnica moderna, índice para Benjamin nesse ensaio de uma modernidade bárbara, que fragmentou, sobretudo no século XX, não só o trabalho e o processo produtivo com máquinas e linhas de produção, mas os próprios indivíduos em sua subjetividade e vida social nas grandes cidades e na experiência da Primeira Grande Guerra Mundial. Vale dizer que Benjamin também associa o declínio ou desaparecimento do contador de histórias ao surgimento de uma nova forma de arte, a do romance como gênero narrativo, que tem em “Dom Quixote” se u marco, mas que irá se desenvolver sobretudo a partir do século XVIII. A invenção da imprensa produz ainda, depois do romance, a informação, que desassocia a narrativa e dispensa o contador porque explica tudo. O contador de histórias seria aquele capaz de encontrar na riqueza da experiência transmissível a matéria de sua arte e preservar da experiência sempre algum mistério que não é totalmente dito. Contudo, Lavelle ressalta, apesar do tom nostálgico pelo diagnóstico decaído do teor da experiência media da pela técnica Benjamin, “ao evocar [com a figura do contador de histórias] o arcaísmo da narrativa que se inscreve na tradição oral […] tem o projeto de construir uma nova forma, profundamente moderna”. 8 Para a filósofa e tradutora, Benjamin não tematiza a narração tradicional apenas teoricamente (como o público brasileiro até agora tinha acesso pelos ensaios e textos críticos sobre o tema), mas também através de uma produção ficcional de contos e peças radiofônicas nos quais “as estratégias tradicionais da arte de contar histórias são mobilizadas, discutidas e ironizadas”.9 Tais procedimentos são bastante explícitos, por exemplo, em contos como “A sebe de cactos” e “O segundo eu”, em que certo efeito de choque causado pela evocação nostálgica do contado r de histórias e sua arte acontece concomitantemente à denúncia dessa mesma nostalgia através do recurso à ironia do contista moderno no modo como este se utiliza das formas narrativas tradicionais, às quais claramente está interditada a ele uma adesão substancial.10 Em “A sebe dos cactos”, por exemplo, vemos o desenrolar de uma história contada vinte anos depois de ocorrida: a do primeiro estrangeiro que chegou à ilha de Ibiza, o irlandês O’Brien. O estrangeiro, um homem experiente e viajado, antes de chegara Ibiza vivera alguns anos de sua juventude na África, e é a partir dessa experiência em outro continente e de suas consequências que o conto se desenvolve. Circulava entre os habitantes de Ibiza a história de que O’Brien havia perdido para um amigo sua única e valiosa propriedade: uma coleção de máscaras negras que havia adquirido com nativos em seus anos pelo continente africano. O amigo usurpador teria morrido em um incêndio de navio, levando consigo para sempre a tal coleção. A história era famosa entre todos os moradores da ilha, porém ninguém sabia ao certo suas fontes. Certo dia, O’Brien convidou o narrador para uma refeição e, depois de concluída a refeição, o estrangeiro decidiu-se por mostrar algo ao narrador: sua coleção de máscaras negras, exatamente a mesma que havia naufragado, segundo era sabido por todos, com o amigo desleal. O narrador nos descreve assim a cena de encontro com as máscaras:
Mas eis que ali estavam penduradas, vinte ou trinta peças, no quarto vazio, sobre parede s brancas. Eram máscaras de expressões grotescas, que revelavam sobretudo uma severidade levada ao cômico, uma recusa completamente inexorável de tudo que era desmedido. Os lábios superiores abertos, as estrias abobadadas que haviam se tornado a fenda das pálpebras e sobrancelhas pareciam expressar algo como asco infinito contra aquele que se aproximava, até mesmo contra tudo o que se aproxima, enquanto os cimos empilhados dos adorno na testa e os reforços das mechas de cabelos entrançadas se destacavam como macas que anunciavam os direitos de um poder estranho sobre aquelas feições. Para qualquer dessas máscaras que se olhasse, em lugar nenhum sua boca parecia destinada, como quer que fosse, a emitir sons; os lábios grossos e entreabertos, ou então bem cerrados, eram cancelas instaladas antes ou depois da vida, como os lábios dos embriões ou dos mortos. 11
Após a descrição, O’Brien conta ao narrador como reencontrou cada uma daquelas peças. As janelas de sua casa davam para uma sebe de cactos enorme e bastante velha e, nu m dia de lua cheia, ao tentar dormir, sua cabeça foi tomada por lembranças e pela luz da lua, o que fez com que visse, como uma aparição, penduradas na sebe de cactos, as imagens das máscaras que havia perdido. Como que tomado pelo sono e pela visão, passo u dias inteiros esculpindo as máscaras que via, e assim produziu todas aquelas que estavam na sala e que o narrador podia ver também. Ou seja, o estrangeiro havia rememorado as máscaras e, a partir de seu trabalho, reproduzido artesanalmente cada uma delas em madeira. Depois disso nunca mais o narrador do conto e o estrangeiro se viram, pois logo em seguida O’Brien morreu. Anos mais tarde, diferente da visão que fizera O’Brien esculpir uma a uma as máscaras perdidas, o que faz o narrador do conto rememorar uma tal história é ter se deparado, certo dia, com três máscaras negras numa vitrine de um comerciante de arte em Paris. O conto termina assim: “Posso”, disse eu, voltando-me para o diretor da casa, “parabenizá-lo de coração por essa aquisição incrivelmente bela?” “Vejo com prazer”, foi a resposta, “que o senhor sabe honrar a qualidade! Vejo também que o senhor é um conhecedor! As máscaras que o senhor com razão admira não são mais do que uma pequena amostra da grande coleção cuja exposição estamos preparando no momento!” “E eu poderia pensar, meu senhor, que essas máscaras certamente inspirariam nossos jovens artistas a fazer suas próprias tentativas interessantes.” “É o que eu espero, inclusive!… Aliás, se o senhor se interessar mais de perto pelo assunto, posso fazer com que cheguem até o senhor, do meu escritório, os pareceres de nossos maiores conhecedores de Haia e de Londres. O senhor haverá de ver que se trata de objetos de centenas de anos. De dois deles eu diria até que de milhares de anos.” “Ler esses pareceres de fato me interessaria muito! Eu poderia perguntar a quem pertence essa coleção?” “Ela pertence ao espólio de um irlandês. O’Brien. O senhor com certeza jamais ouviu seu nome. Ele viveu e morreu nas Ilhas Baleares.” 12 Aquele que escreve agora o conto é alguém que anda pelas ruas e galerias de uma grande cidade, a Paris do começo do século XX, e que tem a capacidade de, mesmo em meio à atenção difusa e distraída que a percepção nas grandes cidades produz, consegue transformar o choque de um encontro furtivo na rememoração de uma experiência.
O filósofo italiano Giorgio Agamben pensa, no ensaio “O que é o contemporâneo?”, que uma tal questão pode ser caracterizada por aquilo ou aquele que “mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”, 13 e que vê esse escuro do seu tempo “como algo que lhe concerne e não cessa de interpretá-lo”.14Pensando o contemporâneo como intempestividade – retomando assim a proposta nietzschiana presente nas Considerações Intempestivas –, a exigência de “atualidade” em relação ao presente é pensada não nos termos de uma sincronicidade, mas sim de uma desencontro com este. “Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões”. 15 Essa não-coincidência entre tempo e pertencimento não significa que o homem contemporâneo, nos termos agambenianos, seja um nostálgico. Pelo contrário, um homem pode não concordar com os rumos de seu tempo e saber que lhe pertence irrevogavelmente, sendo o caráter contemporâneo pensado aqui como uma singular relação com o próprio tempo. Esse parece ser o caso dos escritos teóricos e ficcionais de Benjamin presentes no livro “A arte de contar histórias”. Seus contos, como podemos ler na cena que encerra “A sebe de cactos”, abordam ao mesmo tempo em que parecem promover uma relação entre o arcaico e o moderno que talvez seja da ordem de “um compromisso secreto”, como nos diz Agamben, “e não tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto porque a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico”. 16 A reelaboração dos objetos rituais africanos na pintura cubista de Pablo Picasso, marcada então pelo que veio a se chamar primitivismo, encontra afinidades com a fragmentação dos corpos mutilados pelas máquinas de guerra, frutos da civilização técnica. As vanguardas da primeira metade do século XX irão produzir, assim, uma nova forma de arte que circula em galerias mundialmente, e que pode ter sido exposta pela primeira vez em alguma galeria parisiense como aquela que o narrador de “A sebe de cactos” passeia. Aprendemos também com o contista Walter Benjamin a pensar não a partir de dicotomias, mas sim por imagens dialéticas: a modernidade técnica e sua relação tensa com a tradição como aquilo que pode condenar e salvar o destino dos homens e das civilizações.
Notas
1 Sobre a recepção de Benjamin no Brasil Cf., por exemplo, PRESSLER, Günter Karl. Benjamin, Brasil. A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005. Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: AnnaBlume, 2006.
2 BENJAMIN, W. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, vol. 1).
3 Cf. a nota editorial presente em BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. São Paulo: Hedra, 2018, p. 19.
4 Cf. PINHO, A.; Pinho MACHADO, F. P. “Sobre a Coleção Walter Benjamin” In: BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. São Paulo: Hedra, 2018, p. 13.
5 O verbo zählen em alemão significa “contar”, no sentido de “fazer conta”, “enumerar”, e há uma gama de termos ligados ao verbo que engendram um campo semântico próprio ao universo contabilístico. Em relação ao mesmo campo semântico do verbo zählen deriva o verbo erzhälen, que também significa contar, contudo, por meio de palavras, no sentido de relatar um enredo ou uma história. De onde, por fim o sentido de “Erzähler” como contador de histórias.
6 Conforme indicação da nota dos editores “Sobre a Coleção Walter Benjamin”, Cf. BENJAMIN, Walter. Gesammelte Briefe, vol. VI. Edição de Christoph Gödde e Henri Lonitz. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2000, p. 367.
7 Cf. PINHO, A.; MACHADO, F. P. Op. cit., p. 13
8 LAVELLE, Patrícia. “O crítico e o conta dor de histórias” In: BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 267.
9 Id.
10 Ver LUNAY, M a r c. “ P r e f a c e ”. I n: B E NJA M I N, Walter. N’oublie pas le meilleur et autres histoires et récits. Apud LAVELLE, Patrícia. Op. cit., p. 267.
11 BENJAMIN, Walter. “A sebe dos cactos”. In: A arte de contar histórias. Op. cit., pp. 85-86.
12 Ibid, pp. 89-90.
13 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 62.
14 Ibid., p. 64.
15 Ibid., pp. 58-59.
16 Ibid., p. 70.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 57.
BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. Org. Patrícia Lavelle. Trad. George Otte, Marcelo Backes e Patrícia Lavelle. São Paulo: Hedra, 2018.
__________. Gesammelte Briefe, vol. VI. Edição de Christoph Gö dde e Henri Lonitz. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2000.
__________. N’oublie pas le meilleur et autres histoires et récits. Trad. Marc de Launay. Paris: L’Herne, 2012.
PRESSLER, Günter Karl. Benjamin, Brasil. A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005. Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: AnnaBlume, 2006.
Jessica Di Chiara-Possui Graduação (2015) e Mestrado (2018) em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense e atualmente é doutoranda em Filosofia pela PUC-Rio. É autora de artigos publicados em livros e revistas acadêmicas, estudando a relação entre pensamento e forma sobretudo a partir da filosofia de Theodor W. Adorno. Também atua como curadora no coletivo A MESA, que promove exposições em galeria própria no Morro da Conceição, Rio de Janeiro. Integrante do grupo de pesquisa Arte, Autonomia e Política, da PUC-Rio. E-mail: jessica.dichiara@gmail.com
Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia – FLUSSER (AF)
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia. São Paulo: É Realizações, 2018. Resenha de: PEREIRA, Juliana Santos. Artefilosofia, Ouro Preto, n.26, jul., 2019.
A primeira edição de “Filosofia da caixa preta – Ensaios para uma filosofia da fotografia” do filósofo e escritor tcheco-brasileiro Vilém Flusser foi inicialmente publicada em alemão – “Füreinephilosophie der fotografie” – e recriada e publicada em português pelo próprio autor no mesmo ano de publicação da edição alemã, 1983. O livro é resultado de aulas e conferências que aconteceram na Alemanha e na França, sendo pioneiro na discussão sobre a filosofia da fotografia, a qual se tornou o fio condutor de toda a produção de Flusser até o fim de sua vida. A reedição do livro pela editora É Realizações é fruto da pesquisa de doutorado de Rodrigo Maltez Novaes, durante o seu período de imersão no Arquivo de Berlim. Com o objetivo de enriquecer a edição, foram incluídos um texto de apresentação e posfácios de professores e intelectuais conhecidos por seus trabalhos com a obra do filósofo.
A obra “Filosofia da Caixa Preta” é apresentada para o leitor de capa como um livro de filosofia. Entretanto, localizá-lo em uma única disciplina é tarefa desafiadora, já que a hipótese de Flusser pode ser aplicada em diferentes áreas, como antropologia, sociologia, arqueologia e, por último e mais presente, em futurologia (ciência do futuro). Logo, é necessário começar pelo o que essa obra não é. Além de não ser apenas uma abordagem filosófica, ela também não é uma discussão sobre a arte da fotografia. O tema fotografia é utilizado como pretexto para uma discussão sobre como os aparelhos têm papel fundamental na modelação do pensamento humano. A palavra urgência é vista em vários momentos do livro como alerta à necessidade de uma filosofia dos aparelhos para que possamos manter a liberdade de pensamento. Para Flusser, a filosofia da fotografia é caminho para a liberdade e “liberdade é jogar contra o aparelho” (p. 100). Assim, tratar da intenção deste último é caminho para que possamos decifrá-lo.
Os aparelhos inauguraram o momento pós-industrial onde o homem, antes cercado por máquinas, passa a pensar, viver, conhecer, valorar e agir em função deles. O início desse momento é marcado pelo surgimento da fotografia. O filósofo defende que o aparelho fotográfico é o patriarca dos aparelhos, é o ponto de partida de uma nova existência humana que abandona a escrita linear em troca de um pensar imagético. “No momento em que a fotografia passa a ser modelo de pensamento, muda a própria estrutura da existência, do mundo e da sociedade.” (p. 98) Além do aparelho, os conceitos de imagem, imagem técnica, programa e informação são base para o desenvolvimento da hipótese flusseriana. Com o intuito de “criar atmosfera de abertura para campo virgem” (p. 10), Flusser nos apresenta um glossário com novos significados para as palavras, inserindo o leitor no universo pós-histórico das imagens técnicas, que inauguram “um modo de ser ainda dificilmente definível” (p. 9). O autor faz uso de elementos do universo fotográfico para conceituar a formação do pensamento por meio das imagens técnicas.
Ao abordar o conceito de imagem, o autor afirma que elas “são superfícies sobre as quais circula o olhar” (p. 96), são mediações entre o homem e o mundo. Para que esta mediação não seja percebida como a realidade, é necessário decifrar os elementos que são apresentados em sua superfície, que é dotada de múltiplos significados. O receptor, ao tentar decifrar a imagem, circula pela mesma voltando o olhar para elementos preferenciais de significado. O ato de circular pela imagem é definido por Flusser como “tempo de magia” (p. 16), tempo em que o olhar estabelece relações significantes.
Diferentemente da escrita linear, que possui plano contínuo e que “estabelece relações causais entre eventos” (p. 16). O autor afirma que as imagens não eternizam eventos; “elas substituem eventos por cenas” (p.
17). E é o que define o caráter mágico das mesmas. Se inicialmente as imagens tinham o propósito de “serem mapas do mundo” (p. 17), elas passaram a esconder o mundo para o seu receptor. A humanidade passa a viver em função delas e o mundo torna-se um conjunto de cenas. Sua superfície é a realidade. Assim, caracteriza-se a idolatria, o homem que vive magicamente. Diante desse homem, a humanidade, que não decifra mais imagens, passa a desfiá-las de modo que os elementos planos são postos em linhas. Surge a escrita linear e com ela a consciência histórica, “consciência dirigida contra as imagens” (p. 18). Antes da escrita linear, não havia história, e sim acontecimentos. Contudo, o homem novamente cria o instrumento para se servir dele e acaba servindo a ele. Como nova mediação, entre o homem e a imagem, o texto tapa a imagem para o homem, e o mesmo não é capaz de reconstituir as imagens explicadas pelos textos, ou seja, decifrá-los. A ciência é exemplo de como os textos explicam um universo inimaginável. Surge então a textolatria. Ambas as alienações tratadas pelo autor – idolatria e textolatria – acontecem pois há uma dialética interna inerente às mediações entre o homem e o mundo. Tanto a imagem quanto o texto representam o mundo, mas também o encobrem. Serve m para orientar a humanidade, mas também formam biombos, alienando-a e desalienando-a. O homem esquece da razão pela qual criou o instrumento e passa a agir em função dele.
E, diante de um universo inimaginável e dominado por textos, surgem as imagens técnicas. A fotografia é criada. Para seu deciframento, é importante entender seu posicionamento ontológico: “as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo” (p. 21). E é preciso considerar que essa imagem do mundo passou por intenções que incluem a “cabeça” do agente humano e um aparelho com conceitos definidos. O aparelho é incógnita no processo de codificação dos símbolos, é caixa preta, “dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquanto analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos como decifrá-las” (p. 24). Devido a isso, as imagens técnicas tornam-se barreiras entre o homem e o mundo.
Historicamente, as imagens tradicionais (pinturas) definem a pré-história e o surgimento da escrita linear (texto) define o conceito de história. O surgimento das imagens técnicas define o fim de uma narrativa linear e, portanto, o início da pós-história. As imagens técnicas são, segundo o filósofo, a segunda tentativa da humanidade de resolver os desdobramentos gerados por revoluções fundamentais na estrutura cultural.
“As imagens técnicas são produzidas por aparelhos” (p. 29). Para apresentar o conceito de aparelho, Flusser, por meio de uma perspectiva histórica, aponta três momentos importantes da relação da humanidade com os objetos culturais. No período pré-industrial, o homem era cercado por instrumentos, que “são prolongações de órgãos do corpo” (p. 31). A enxada é o dente; o martelo é o punho. Com a revolução industrial, os instrumentos são aperfeiçoados por teorias científicas e temos então as máquinas. O autor afirma que os instrumentos funcionavam em função do homem até então e, no período industrial, o homem passa a funcionar em função das máquinas. Com a criação da fotografia, ou seja, do aparelho fotográfico, o filósofo aponta para uma dificuldade em definir este novo objeto cultural, uma vez que é pós-industrial. O período industrial é marcado pelo trabalho, e aparelhos não trabalham, são brinquedos. A intenção deles, segundo o autor, não é modificar o mundo, e sim modificar a vida do homem. O homem que os opera não trabalha, ele joga – é “ homo ludens” (p. 35).
O funcionário que o manipula está concentrado em explorar as suas potencialidades, é a “pessoa que brinca com o aparelho e age em função dele” (p. 9). O aparelho emancipa o homem do trabalho e o libera para o jogo.
Por meio do aparelho fotográfico, o conceito de programa é apresentado. As imagens geradas pelo aparelho contêm em sua superfície o resultado do que foi programado e pré-inscrito no mesmo. Inscrição feita com conceitos definidos por outro programa, a indústria fotográfica. Os conceitos definidos, de acordo com os interesses da indústria, permutam no aparelho de maneira automática e aleatória. As intenções do fotógrafo precisam passar por esses conceitos, para que se chegue à fotografia. Por estar amalgamado, imerso, o fotógrafo tem suas intenções limitadas pelas possibilidades dispostas no programa. Não se escolhe dentro de limitações, “o fotógrafo somente pode agir dentro das categorias programadas no a parelho” (p. 49).
Portanto, cabe questionar: há liberdade no ato de fotografar? Para o filósofo, ser livre é conseguir driblar o programa que foi criado por outro programa, a indústria fotográfica, que responde a outro acima dele e assim consecutivamente.
“Todo programa exige metaprograma para ser programado. A hierarquia dos programas está aberta para cima” (p. 38).
E é nesse ponto que o autor levanta o problema da crítica à fotografia e de como os críticos já estão inseridos no aparelho. Para Flusser, no embate entre o homem e o aparelho, a vitória humana só é possível se ele conseguir contornar os limites do programa. Logo, “as fotografias ‘melhores’ seriam aquelas que evidenciam a vitória da intenção do fotógrafo sobre o aparelho” (p. 58).
Flusser também aponta problemas ligados aos canais de distribuição da fotografia que imprimem o significado final da imagem por meio de linhas editoriais. Para uma crítica adequada da fotografia, é necessário considerar os canais de distribuição no momento do seu deciframento. Além das intenções primárias a serem analisadas, a do fotógrafo e a do aparelho, é preciso analisar as intenções do canal de distribuição. Flusser afirma que os canais de distribuição são silenciados pela maior parte da crítica e o resultado dessa crítica funcional é que “o receptor da fotografia vai recebê-la de modo não crítico” (p. 70).
O filósofo também trata dos conceitos de propriedade e informação, que têm seus valores redefinidos no universo da fotografia. O caráter multiplicável do objeto fotográfico tem como resultado a perda de valor da mesma. O valor da fotografia não está no papel no qual foi impressa, mas sim na informação contida em sua superfície. Portanto, a informação passa a ter mais valor que o objeto em si – a “folha” (p. 70). Ser proprietário de uma folha fotográfica não tem mais o peso de propriedade da era industrial. Ser proprietário do programa que distribui a informação é o que de fato tem valor. “Pós-indústria é precisamente isto: desejar informação e não mais objetos” (p. 64). O poder não está mais em quem possui os aparelhos, mas em quem é dono dos programas. E também em quem produz os programas.
Para além da sua desvalorização como objeto, as fotografias contribuem para uma ausência de consciência histórica. Fotografias de fatos históricos pedem análise de suas causas e efeitos para seu deciframento, o que implica ir além dos significados postos n a superfície da imagem. O receptor, programado magicamente, não vai além da imagem, uma vez que essa é a realidade e nada mais precisa ser explicado, lido, contextualizado. Os olhos programados já se encarregaram de entender os fatos. “Esse ‘saber melhor’ deve ser reprimido quando se trata de agir segundo o programa” (p. 78). A repressão da consciência histórica contribui para uma existência robotizada, pois somente ela é capaz de tornar transparente o jogo dos aparelhos.
No fim do livro, Flusser dirige a questão da liberdade aos fotógrafos experimentais, pois sua práxis é realizada contra o aparelho. Ele trata da estupidez do aparelho, enfatizando que os programas podem ser alterados, as informações produzidas podem ser desviadas e, portanto, são passíveis de serem driblados. E essas ações só serão possíveis quando a humanidade encarar o jogo dos aparelhos, quando a intenção dos donos do programa for revelada. Somente assim retomaremos a liberdade de pensamento.
“Filosofia da caixa preta” é uma obra atual e impactante. Tratar do universo fotográfico desta obra é tratar do universo dos aparelhos: administrativo, político, publicitário. A urgência de Flusser é sobre como exercer a liberdade em um contexto em que a humanidade já está integralmente programada – se é que ainda há tempo para se libertar na atualidade, uma vez que “a filosofia da fotografia trata de recolocar o problema da liberdade em parâmetros inteiramente novos” (p. 98). Em “ Filosofia da caixa preta ”, Flusser pede para refletirmos sobre um pensa r imagético, um pensar no “modo pelo qual ‘pensam’ computadores” (p. 97).
Juliana Santos Pereira-Bacharela em Comunicação Social (UAM). Pós-graduanda em Artes Plásticas e Contemporaneidade (UEMG). E-mail: santosp.juliana@gmail.com
O mais natural dos regimes Espinosa e a Democracia – AURÉLIO (CE)
Aurélio, D. P. (2014). O mais natural dos regimes. Espinosa e a Democracia. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores. Resenha de: BRAGA, Luiz Carlos Montans. Uma tese radical: Espinosa e a Democracia. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.40, jan./jun., 2019
O termo radical, tal como ética, democracia, política, e tantos outros, pelo excesso de uso e vulgarização demasiada, ao ser trazido à discussão, merece ser precisado, para que, em meio ao caos semântico, inimigo maior da filosofia, signifique algo claro e distinto. De fato, certo senso comum associa a palavra radical àquele que é fundamentalista em algo; em geral, o indivíduo contrário à boa ordem social, aos bons costumes. Porém, o que a expressão deve significar nesta resenha tem a ver com seu sentido etimológico. Ou seja, radical é o que vai à raiz, ao fundamento.
E por que a tese espinosana acerca da democracia, tema protagonista do livro ora resenhado, é radical? Porque ousa ir à raiz ontológica da política, como o belo ensaio de Diogo Pires Aurélio mostra com cuidado demandado por uma filosofia que, durante aproximadamente três séculos, esteve sob a sombra de uma imagem equivocada que dela se produziu. De panteísta que nega a liberdade do homem a pensador maior da política e do direito – em tempos recentes –, o caminho das teses e textos espinosanos é um labirinto cujas primeiras saídas foram encontradas pelos estudos fundamentais de Antonio Negri (1998) 1 e Alexandre Ma – theron (1988) 2, os quais foram aprofundados por outros comentadores de peso, posteriormente, entre os quais, em terras brasileiras, Marilena Chaui (1999, 2003, 2016). Aurélio, é preciso salientar, compõe esta linhagem.
Uma, entre outras muitas, imagem equivocada que sombreou a compreensão das teses espinosanas está condensada no influente verbete Spinoza, de autoria de Pierre Bayle (1696). No verbete, as teses espinosanas são descritas como as de um panteísta e ateu de sistema, filosofia diabólica precisamente por ser de difícil refutação, dada sua costura com as linhas de aço da geometria. A tradição posterior, raciocinando a partir de premissas exteriores às da filosofia espinosana, só poderia, em uma filosofia em que tudo é necessário, encontrar absurdos e contradições insolúveis. De fato, se há apenas uma substância – Deus ou a natureza –, na qual os homens são modos finitos, isto é, intensidades de potência expressas pela substância em sua causalidade imanente e necessária, onde encontrar a liberdade do homem? Em que fissura da causalidade da substância haveria espaço para a ação livre, para o campo da ética e da política? Pois um dos paradoxos quase insolúveis que a tradição de leituras exponenciaria aos comentadores até muito recentemente 3 seria exatamente este: de que fio puxar a ética e a política em uma filosofia da necessidade? Em uma palavra: se tudo é determinado, resta saber qual a liberdade possível. Ou, de outro ponto de vista, como passar do infinito positivo da substância eterna aos modos finitos das existências dos homens sem compreender estes últimos como meros epifenômenos de Deus? Estas imagens acerca do autor influenciaram, por exemplo, Voltaire, passando por Hegel e, em paragens brasileiras, chegaram a Machado de Assis (2009, p. 242) em seu poema dedicado a Espinosa – e tiveram ainda fôlego largo durante o século 20. Quanto a Machado de Assis, o Espinosa que tinha em mente seria, eis uma hipótese, o do verbete de Bayle, a saber, o panteísta.
O que o belo ensaio de um dos mais eruditos e eminentes estudiosos contemporâneos de Espinosa mostra é precisamente a ligação radical entre ontologia e política. Daí, talvez, a importância maior de Espinosa em tempos opacos como os que se desenham. Se a ciência política de corte formal não diz muito sobre a política atual, talvez seja porque não tenha lentes para tanto. E Espinosa bem pode ser, tantos séculos depois, se bem desvendado e comentado, uma dessas lentes. Permite, por exemplo, para ir ao título do ensaio que ora se resenha, que se possa dizer, acerca da democracia, que não é o “menos mau dos regimes”, mas “o mais natural” (Aurélio, 2014, p. 9). Mudança aparentemente banal, mas que traz à cena algo esquecido das discussões políticas que mais têm mídia, a saber, a natureza humana. Espinosa, pela pena de Aurélio, é trazido à cena para que mostre exatamente sua inovação fundamental no campo da filosofia política, isto é, declarar, a partir de um ponto de visto ontológico, o encaixe preciso entre a natureza humana e este regime político, tão celebrado nos belos discursos de retórica vazia quanto aviltado em seu exercício. A democracia que se proclama como tal em discursos pomposos, com seus formalismos vazios e malandros – pois fintam o conceito para lhe retirar o que tem de substantivo –, não ousa ser radical como a proposta por Espinosa. Não ousa ser ontologicamente fundada.
O livro é uma reunião de ensaios – uns já publicados outros agora republicados com acréscimos e, ainda, alguns inéditos, apresentados, até o momento, apenas sob a forma de conferências –, os quais formam, segundo o autor, não um conjunto esparso de textos, mas um todo coerente, alinhavado (Aurélio, 2014, p. 11). São três as partes do livro, somadas a uma “Introdução”, cujo título aguça a curiosidade: Espinosa, Marx e a democracia . O que haveria de comum entre Marx e Espinosa? Muita coisa, como o leitor poderá ver, e das quais esta resenha adianta uma apenas: a tese de Marx, que ecoa ideias espinosanas, e projeta a democracia “para além da tradicional questão dos regimes políticos” (Aurélio, 2014, p. 34), para afirmá-la como “horizonte de refundação permanente do demos, quer fazendo alastrar o princípio da soberania popular a todas as esferas da sociedade, quer resistindo à tendência do poder para se impor como fecho absoluto e se tomar pela totalidade social” (Aurélio, 2014, p. 34). Eis a iguaria fina que o autor serve ao leitor como entrada ao livro. A primeira das três partes que seguem, por sua vez, é baseada na “Introdução” de Aurélio ao Tratado teológico-político (TTP), por ele traduzido e publicado no Brasil pela editora Martins Fontes (2003). Intitula-se TTP : Genealogia do Poder . Nesta parte, os temas próprios ao TTP são trabalhados com a minúcia de quem estuda Espinosa há muitos anos. Ou seja, a questão da profecia, das leis, do fundamento do Estado, do direito natural e sua permanência no estado civil, da liberdade de expressão como um dos pilares de uma república bem constituída, etc. A segunda parte tem como título “O império das paixões”, composta por Capítulos que tratam de temas especificamente políticos em Espinosa. Uma das teses de Aurélio nesta parte, muito recente e atual, analisada em filigrana, é a da relação imbricada entre afetos e política. A terceira e última parte, nomeada “ TP : Da multidão ao poder”, sistematiza esses temas políticos e lhes dá acabamento. Tal parte foi originalmente publicada como “Introdução”, escrita por Aurélio, à sua tradução do Tratado político (TP) 4, no Brasil publicada também pela editora Martins Fontes (Espinosa, 2009).
O livro traz como questão mais aguda a democracia em Espinosa, isto é, a inovadora visão do filósofo acerca do tema. Curiosamente, ainda que já explícito no TTP como o mais natural dos regimes, por ser aquele que mais satisfaz a natureza humana de potência para perseverar no ser, não pôde ser desdobrado no TP, Capítulo XI, dedicado precisamente à democracia e não concluído pelo autor em razão de sua morte. A questão a democracia em Espinosa, na verdade, ainda é um problema a ser investigado pelos comentadores. Tal problema é levantado por Aurélio no momento em que indaga como seria este regime quanto às instituições. É possível dizer que o essencial da democracia já estaria nos demais textos de Espinosa? Uma passagem do “Prefácio” do livro dá pistas do projeto espinosano quanto ao tema:
Entre governantes e governados há sempre uma brecha, uma feri – da permanente […]. O que distingue a democracia dos outros regimes é o facto de, por definição, ela contrariar a cicatrização dessa ferida, evitar que a desigualdade se instale como natural, mantendo acesa, […] a ideia de um querer da totalidade, que está na origem e é fundamento de todo o poder. Reside aí o projeto de Espinosa. Reside aí, porventura, a sua atualidade (AURÉLIO, 2014, p. 10)
O livro de Aurélio cuidará de desdobrar este projeto, não obstante o não findo Capítulo XI do TP – aliás, quanto a este tema, o autor expõe sua posição, bem como a de outros comentadores, como Antonio Negri (1985) 5 e Étienne Balibar (1985), os quais igualmente transitaram pela questão. Mas onde está, mais precisa e analiticamente, a radicalidade de Espinosa, apontada no início desta resenha? Aurélio a desdobra, e ela consiste no seguinte: a rigor, não há seres isolados, indivíduos – humanos ou não–, isolados. Quanto aos homens, são indivíduos constituídos por outros indivíduos, formando uma totalidade complexa. Nas palavras do autor: “O indivíduo é sempre um ser coletivo e complexo, um aglomerado de partes cujas naturezas se conjugam momentaneamente num todo em que as forças de sinal positivo, que tendem a preservá-lo na existência, são superiores às de sinal negativo, que tendem a desagregá-lo.” (AURÉLIO, 2014, p. 36). Tais indivíduos, humanos ou não, são modificações finitas da substância absolutamente infinita, a qual é o ponto fundante da ontologia espinosana. O que vem a seguir é que amarra a política, que lida com o poder, à ontologia espinosana. Escreve Aurélio, para concluir o desenho da tese que será protagonista de muitas páginas do ensaio: “É esta a ontologia, desenvolvida nas duas primeiras partes da Ética [cujos temas são, respectivamente, De Deus e Da natureza e origem da mente ], que serve de fundamento à antropologia e à política de Espinosa.” (AURÉLIO, 2014, p. 34). Ontologia uma vez que os homens, como modificações da substância única (Deus, ou seja, a natureza), modos finitos do pensamento e da extensão, intensidades parciais de potência advindas da potência absoluta, apenas se constituem como tal em razão e como partes desta potência fundante do real, eterna e infinita, causa sui (causa de si). Tese magistral, com desdobramentos em campos vários, ao amarrar uma teoria do ser à política, à ética e ao direito, sem olvidar as variações de potência próprias aos humanos, a saber, os afetos, derivando daí o fundamento dos corpos políticos e a tese relevante e inovadora do direito natural como prevalecente no estado civil, o qual é criado para preservá-lo. Vários conceitos se apresentarão como importantes à compreensão do mecanismo da política, desvelando e desenvolvendo a tese inicial da democracia como o mais natural dos regimes uma vez que, potência que são, os homens desejam governar e não ser governados.
Em vez de analisar cada passo da longa cadeia argumentativa do autor em cada parte do livro, o que tornaria esta resenha muito longa e talvez enfadonha, opta-se por analisar, a seguir, dois ou três fios que se ligam à tese geral do livro, explicitada nas linhas acima. No interior do tema geral Aurélio introduz uma série de autores cujos conceitos são postos a dialogar com os espinosanos, a se afastar ou se aproximar deles. Eis alguns desses movimentos, a seguir.
Maquiavel é um autor com o qual Espinosa dialoga explicitamente. Chama-o agudíssimo no TP (ESPINOSA, 2009, TP, v, 7, p. 46) 6 e o pressupõe em várias passagens. Este é um tema que Aurélio desdobra com maestria, a saber, o Maquiavel latente, bem como o explícito, que há nas análises da filosofia política espinosana. Há várias e elucidativas páginas acerca das semelhanças e diferenças entre os autores. Dentre as semelhanças, Aurélio chama a atenção para o fato de que ambos dão à multidão uma importância política significativa. Maquiavel teria sido o primeiro autor da filosofia política, e durante séculos o único, a pôr “em causa a imagem negativa vulgarmente associada à multidão” (AURÉLIO, 2014, p. 370). E, ademais, ela é capaz de ser politicamente mais sábia e estável que o príncipe, tese de Maquiavel presente nos Discorsi (MAQUIAVEL, 2007 D, I 58, pp. 66-172) 7 e n’ O Príncipe (MAQUIAVEL, 2017, p. IX, pp. 147-151) 8 . Para Espinosa, por seu turno, a liberdade política dos súditos-cidadãos, no estado civil, para dizer de modo sumário, tem como fiadora a multidão, tese presente em vários momentos do TP.
O Maquiavel dos Discorsi – bem como o de O Príncipe –, afirma Aurélio, explicita a tese da positividade da multidão e Espinosa a recupera e endossa, ao seu modo (AURÉLIO, 2014, p. 370 e seguintes). Não casualmente a multidão terá papel fundamental na argumentação exposta no TP, e o termo aparecerá várias vezes no correr do texto. Ela é o fundamento de uma república bem instituída e, nesse sentido, é a protagonista maior da política.
Há outro ponto de encontro entre os autores, a seguir apenas indicado, o qual é analisado por Aurélio:
Considerar, pois, a natureza como horizonte inultrapassável do político significa integrar o político num horizonte de conflitualidade e contingência, onde não obstante os homens se unem de forma mais ou menos duradoira, consoante os afetos comuns que estabilizam e predominam em dado momento. É aí, nesse preciso horizonte, que Espinosa se encontra com Maquiavel (AURÉLIO, 2014, p. 381).
Não aparece no livro ora resenhado, mas em outro estudo de Aurélio, uma diferença entre ambos que é digna de nota. Trata-se do fato de que em Maquiavel predominam os exemplos históricos que levam às teses políticas, ao passo que em Espinosa existe uma ontologia de fundo que informa e dá sustentação aos conceitos políticos. Tal tema se apresenta quando o autor analisa o conceito de virtude em ambos.Afirma Aurélio:
[…] as ocorrências do termo ‘virtude’ no TP adquirem um alcance completamente diferente do que possuiriam quando encaradas apenas como um reflexo da leitura de Maquiavel. À superfície, haverá, com certeza, alguma coincidência: […]. Tanto Maquiavel como Espinosa rejeitam a tese ciceroniana, geralmente aceite, segundo a qual a conveniência ou utilidade e a rectidão moral seriam inseparáveis [Cícero, De Officiis, II, III, 9, ed. The Loeb Clasical Library, 1970, p. 176 ]. Mas o primeiro chega a essa conclusão com base apenas num cotejo da experiência e da história, chamando a atenção para aqueles a quem a glória bafejou no passado, apesar de se lhe imputarem actos criminosos. […] Espinosa, raciocinando embora a partir de idêntica integração do indivíduo na trama de relações em que os seus actos ganham significado e podem ser valorizados, transfere, no entanto, o problema para a sistematicidade de uma ordem ontológica onde o confronto entre razão moral e razão política é subsumido (AURÉLIO, 2000, pp. 84 – 85).Outro autor que surge no ensaio, em muitos momentos como contraponto às teses espinosanas, é Hobbes. Espinosa possuía um exemplar do De Cive em sua biblioteca pessoal, e Hobbes é um autor cujas ideias foram amplamente debatidas no período maduro de Espinosa. Espinosa o leu, é certo, e na famosa Carta 50 afirma o que o diferenciaria do autor Inglês. Esse é um mote fortíssimo, muito bem analisado por Aurélio precisamente para desdobrar as diferenças entre ambos. Uma hipótese que aqui se levanta é: os conceitos contidos e pressupostos na filosofia política hobbesiana podem ser considerados vencedores na história das ideias, ao passo que os espinosanos ficaram nas sombras por muito tempo. Por exemplo, Aurélio desenvolve muito bem o tema da representação em Hobbes, bem como o do contrato, para mostrar como Espinosa propõe algo muito diverso. Em muitas passagens do ensaio, ambos são comparados para que se possa ver com maior clareza e distinção o que os une – temas comuns – e, especialmente, o muito que os separa.
O Capítulo VIII, constituinte da Segunda Parte do livro, pode dar margem a sadias polêmicas. Nele, Aurélio propõe uma aproximação entre Kelsen e Espinosa, especialmente quanto aos temas da norma jurídica e do Estado. Entre outras passagens ricas e ousadas, o autor escreve: “Se o analisarmos a partir desse seu caráter de absoluta imanência, não é difícil ver no Estado kelseniano um eco do imperium espinosano.” (AURÉLIO, 2014, p. 283). Tese tão ousada quanto, ao ver deste resenhista, de difícil sustentação. Pois se Espinosa propõe uma explicação da política fundada em redes de afetos e de potência – procurando, no limite, a sustentação real do direito natural de cada súdito-cidadão no estado civil –, Kelsen está muito mais preocupado com a fundação de uma ciência do direito que seja autônoma – ao menos é este o projeto de sua Teoria Pura do Direito (1998), obra na qual estão condensadas muitas de suas principais teses acerca do direito. E se é certo, como afirma Aurélio, que Kelsen é um crítico das doutrinas clássicas do jusnaturalismo – o mesmo se poderia dizer de Espinosa –, em nenhum momento, salvo melhor juízo, argumenta a favor de um direito que se identifique a potência. Ao invés, está sempre na chave do direito como dever-ser e na proposta de um direito que possa ser objeto de ciência autônoma, com objeto próprio, a saber, as normas validamente postas e constituintes do ordenamento jurídico. Espinosa parece estar em trilhos muito diversos. Veja-se sua tese da identificação do direito à potência, bem como a de que o direito do Estado tem seu fundamento na potência da multidão – conceito este, o de multidão, em que o tema dos afetos se apresenta como um dos pilares explicativos de sua constituição. Ora, esses temas não são objeto dos textos de Kelsen. Porém, o brilho do ensaísta está precisamente em desenvolver uma argumentação tão cerrada e tão convincente que faz o leitor pensar à revelia de suas convicções, a contrapelo de si mesmo – tarefa da filosofia. Eis um ponto a ser ressaltado, neste e em outros Capítulos: Aurélio ousa levar sua pena e seu talento ensaístico a territórios pouco frequentados.
A discordância acima indicada é bastante pontual e lateral. Com efeito, o fio principal do texto – e as análises de Aurélio – pode ser resumido como um brilhante e erudito ensaio acerca do mais natural dos regimes, a democracia, a tese radical de Espinosa. Neste ensaio de Aurélio, Espinosa é apresentado como filósofo num dos sentidos originais da ex – pressão, ou seja, o que leva à verdade como alétheia [ αλήθεια ], isto é, desvelamento ou desocultamento. Na filosofia política que propõe o autor holandês, e que Aurélio apresenta tão bem, há reviravoltas conceituais que levam à constituição de lentes polidas com extrema precisão. Espinosa faz o leitor que se apropria de seus conceitos enxergar o que antes era opa – cidade. E Aurélio é excelente mapa para o território da filosofia política espinosana – antes que escureça! Uma resenha deve insinuar coisas interessantes sem mostrar o essencial. Espera-se que o intento tenha sido alcançado, ou seja, que este texto seja convite ao leitor para palmilhar com a velocidade lenta da filosofia a bela geografia conceitual criada por Aurélio.
Notas
1 A primeira edição de L’anomalia selvaggia : potere e potenza in Baruch Spinoza é de 1981 .
2 Que é uma reimpressão do texto de 1969 (Matheron, 1988, p. I).
3 Como indicado acima, uma das primeiras leituras que rompe com este estado de coisas é a de Matheron, de 1969 (Matheron,1988), e depois a de Negri, publicada pela primeira vez em 1981 (Negri, 1998) .
4 Agraciada, em 2009, com o prêmio de Tradução Científica e Técnica em Língua Portuguesa, atribuído pela União Latina em parceria com a Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal.
5 Traduzido no Brasil em: Negri, A. (2016). Espinosa subversivo e outros escritos. Tradução de Herivelto Pereira de Souza. São Paulo: Autêntica, pp. 46 – 85.
6 Em romano o capítulo, em arábico o parágrafo -Espinosa, 2009.
7 Em romano o Livro, em arábico o Capítulo – Maquiavel, 2007.
8 Em romano o Capítulo – Maquiavel, 2017
Referências
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_______. (2014) O mais natural dos regimes. Espinosa e a Democracia. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores.
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BALIBAR, E . (1985) Spinoza et la politique . Paris: puf .
BAYLE, P . (1696) Dictionnaire historique et critique. Article Spinoza . Disponível em: < http://www.spinozaetnous.org/telechargements/Commentaires/ Bayle/Bayle_Spinoza.pdf >. Acesso: 15 dez. 2017.
CHAUI, M . (1999) A nervura do real: Imanência e liberdade em Espinosa. Vol. I : Imanência. São Paulo: Companhia das Letras.
_______. (2003) Política em Espinosa . São Paulo: Companhia das Letras.
_______. (2016) A nervura do real : Imanência e liberdade em Espinosa. Vol. II : Liberdade São Paulo: Companhia das Letras.
ESPINOSA, (2003) Tratado teológico-político .Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes.
_______. (2009) Tratado político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes.
KELSEN, H. (1998) Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes.
MAQUIAVEL, (2007) Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio . Tradução MF . São Paulo: Martins Fontes.
_______. (2017) O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Editora 34.
MATHERON, A. (1988) Individu et communauté chez Spinoza . Paris: Les Édi – tions de Minuit.
NEGRI, A . (1998) L’anomalia selvaggia : potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternità in Spinoza). Roma: DeriveApprodi.
_______. (1985) Reliquia desiderantur: congettura per una de fi nizione del concetto di democrazia nell’ultimo Spinoza. In: Studia Spinozana I, n. 8, pp. 143-181.
Luiz Carlos Montans Braga – Professor Universidade Estadual de Feira de Santana. E-mail: lcmbraga@usfs.br
Justificação e crítica: Perspectivas de uma teoria crítica da política – FORST (C-FA)
FORST, Rainer. Justificação e crítica: Perspectivas de uma teoria crítica da política. São Paulo: Unesp, 2018. Resenha de: MORALLES e MORAES, Felipe. O que é mais importante vem primeiro. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 24 n 1 Jan-Jun, 2019.
Rainer Forst é um dos mais proeminentes representantes contemporâneos da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Em seu dizer – oportunamente reproduzido na contracapa da edição brasileira publicada recentemente pela Unesp e cuidadosamente traduzida por Denilson Luis Werle –, a filosofia crítica começa com uma tentativa de evitar os “becos sem saída” nos quais a própria filosofia política vem se metendo.
A tarefa que se coloca esse discípulo de Habermas é, como explicado no prefácio, desfazer os dualismos enganadores. À primeira vista, o livro Justificação e crítica consiste em uma reunião de artigos publicados anteriormente, em diferentes locais e sem sistematicidade, como os três capítulos finais que discutem a obra de Henrik Ibsen, Hannah Arendt e a literatura utópica. Há um fio condutor dos artigos reunidos, porém, que é enfrentar falsas oposições, como entre imanência e transcendência; dominação e liberdade; igualitarismo e suficientarianismo; paz e justiça; iluminismo e pós-colonialismo; redistribuição e reconhecimento; a fim de defender que, por trás delas, há algo mais importante, que é o direito fundamental à justificação.
A linhagem kantiana da crítica de Forst é notável. À sua época, Kant tinha por alvo a oposição entre, por um lado, o ceticismo, com sua tese da impossibilidade do conhecimento universal e necessário sobre o mundo; e, por outro lado, o dogmatismo metafísico, com sua pretensão de decifrar o mundo a partir da razão pura. É conhecida a solução kantiana de rejeitar o tribunal tanto da natureza sensível (empirismo), quanto de um ser, bem ou valor superior ao sujeito (racionalismo dogmático), para alçar a razão como o tribunal do uso legítimo e ilegítimo de suas faculdades (racionalismo crítico). A filosofia crítica continua merecendo seu nome na medida em que denuncia as ilusões para as quais é arrastada a razão no interesse emancipatório de conhecer o mundo e agir corretamente.
A tarefa kantiana de Forst não se limita, contudo, a desmascarar essas ciladas da razão, como também faziam, cada um a seu modo, Marx e as primeiras gerações da Escola de Frankfurt. Há um objetivo maior em comparação com esses críticos da modernidade: colocar a razão ao abrigo dos ataques céticos e dogmáticos. Por isso, uma segunda tarefa filosófica que permeia Justificação e crítica é a de fundamentação dos direitos humanos e da justiça. A obra complementa análises precedentes de Forst, nas quais o autor reconstrói e busca superar as aporias do debate entre liberalismo e comunitarismo, em Contextos da justiça, com edição brasileira pela editora Boitempo (2010 [1994]), ou apresenta uma concepção construtivista moral e política da justiça e dos direitos humanos, em Direito à justificação, ainda sem tradução (2012[2007]). Nesta resenha, contento-me em apresentar (1) a resolução forstiana de dois impasses internos à teoria crítica e (2) a fundamentação trazida em Justificação e crítica (daqui em diante JC), para depois tecer (3) alguns comentários sobre a tradução e (4) levantar quatro possíveis objeções ao modelo de teoria crítica em questão.
- O primeiro impasse enfrentado por Forst diz respeito à ideia de crítica imanente da sociedade, que os teóricos críticos tradicionalmente contrastaram com o que seriam críticas transcendentes, platônicas ou idealizadas. O argumento do autor é que essa contraposição mostra-se ilusória, porque ninguém está totalmente inserido em um contexto ou prática social, havendo sempre possibilidade de questionar e criticar reflexivamente essa prática. Os conflitos sociais surgem, com efeito, com um “não” às formas de justificação da dominação existente. Eles estão sempre questionando e transcendendo costumes, relações econômicas e instituições.
Assim, se consideramos os seres humanos como seres que participam ativamente na definição das relações e ordens sociais válidas, estamos diante de um padrão a um só tempo imanente e transcendente. A recusa às justificações vigentes pode ser traduzida como uma pretensão de que as relações sociais não sejam arbitrárias, isto é, que sejam justificadas recíproca e universalmente. Segundo Forst, a razão é, ao mesmo tempo, a mais imanente e a mais transcendente das capacidades humanas: a capacidade de se orientar por justificações. A crítica da sociedade precisa se orientar pelo critério da reciprocidade e da universalidade das justificações, em lugar da divisão artificial entre imanência e transcendência (JC, p. 17-8).1
Outro impasse na teoria crítica que merece destaque está na discussão entre duas gramáticas internas às lutas sociais: redistribuição ou reconhecimento. Trata-se de uma disputa em vários níveis, encabeçada por Nancy Fraser e Axel Honneth.
Ambas gramáticas são indeterminadas do ponto de vista de quais lutas sociais são justificáveis – argumenta Forst. Antes da pretensão por paridade de participação, no modelo de Fraser (duplipartido em redistribuição e reconhecimento), ou da pretensão por reconhecimento, no modelo de Honneth (tripartido nas esferas do amor, da igualdade jurídica e da estima social), é preciso uma gramática normativa que diferencie as pretensões justificáveis das injustificáveis, isto é, aquelas que podem, ou não, ser justificadas de modo recíproco e universal aos que participam nos respectivos contextos de justiça (JC, p. 185 e 192). É certo que, conforme o contexto, surgirão pretensões legítimas de igualdade econômica e política ou de valorização social; primeiro, porém, vem a instância da possibilidade de produzir e questionar essas pretensões. A gramática normativa é a das condições para que os sujeitos se justifiquem e demandem justificações: o direito básico à justificação. A abordagem de Forst é denominada, por isso, “o que é mais importante vem primeiro” – na feliz tradução de das Wichtigste zuerst ou first-things-first da edição inglesa (2014). Ele afirma dar uma “guinada política” diante das abordagens antecedentes, ao colocar em primeiro plano exercício e distribuição social do poder de justificação (JC, p. 196).
Daí repetir Forst nos artigos que a tarefa primeira de uma teoria crítica da justiça é visar ao estabelecimento de uma estrutura básica de justificação na qual as pessoas possuam procedimentos e condições materiais de exigir, produzir e questionar justificações – o que não se confunde, nem exclui, a perspectiva mais utópica de uma estrutura básica justificada, na qual todos os procedimentos e condições materiais foram justificados universal e reciprocamente. Isso lhe permite dar um passo atrás nas disputas entre modelos de justiça distributiva (pois o poder de justificação sobre as estruturas de produção e distribuição antecede a discussão sobre o que será distribuído – recursos, bem-estar ou capabilities ); na tensão entre paz e direitos humanos (porque ambos estão subordinados a um princípio de justiça, que reivindica a entrada no domínio das justificações recíprocas e se contrapõe às injustiças que acompanham conflitos violentos); nas críticas feministas, negras e pós-coloniais contra machismo, etnocentrismo e iluminismo (que se apoiam na exigência de uma justificação aceitável para todos, de modo que é a própria justiça a tornar visível sua realização imperfeita).2
- A fundamentação forstiana do direito fundamental à justificação diferencia-se da fundamentação kantiana, porque se baseia, em lugar de uma razão prática pura, em uma razão que se efetiva contextualmente na forma de justificações. Ela pode ser resumida do seguinte modo. Toda crítica pressupõe a recusa à arbitrariedade. E entende-se como arbitrária qualquer relação que não possa ser razoavelmente aceita por todos os concernidos. Acontece que interesses básicos humanos podem sempre abrigar arbitrariedades. Vínculos afetivos, sentimentos de pertença ou concepções de vida boa (como as emergentes em uma cultura machista, racista, eurocêntrica, por exemplo) podem ser razoavelmente recusados por outras pessoas. Logo, uma perspectiva crítica da sociedade não consegue fundamento racional em interesses humanos básicos. Para Forst, a razão deveria ser compreendida não como um interesse humano básico, mas pura e simplesmente como justificação discursiva. Uma relação deixa de ser arbitrária, então, se ela pode ser justificada discursivamente para todos os concernidos. Logo, a crítica da sociedade pressupõe um poder de todos de exigir, produzir e questionar justificações na sociedade: um direito universal à justificação. A justiça (entendida como negação da arbitrariedade) e os direitos humanos (entendidos como direitos de não se sujeitar ao arbítrio de outrem) têm fundamento nesse direito básico à justificação.
Com essa fundamentação, Forst sublinha que os seres humanos não são seres passivos, necessitados e sofredores, mas sim reivindicam reconhecimento como sujeitos reflexivos e autônomos. Eles não somente participam de relações sociais, normas e instituições que constantemente reivindicam validade, mas também examinam suas justificações, as rejeitam e redefinem. Daí falar de relações sociais como ordens de justificação. A justificação efetiva que legitima e constitui as relações de poder é comparada, em meio aos conflitos sociais, com a justificação devida – que tem a qualidade de ser recíproca e universal. Essa vinculação entre justificações dadas e devidas; entre ordens produzidas por justificações e obstáculos ao direito fundamental à justificação; em suma, entre descrição e normatividade dá-se por meio (i) da descoberta das relações sociais que não podem ser justificadas recíproca e universalmente, (ii) da crítica às justificações falsas ou ideológicas, no sentido de um bloqueio ao direito à justificação, e (iii) da explicação do fracasso ou ausência de estruturas efetivas de justificação (JC, p. 195-6). Nesse sentido, permanece ele no interior da “velha questão de por que a sociedade moderna não está em condições de produzir formas racionais de ordem social”, ou seja, da investigação de por que as ordens de justificação se tornam dominações arbitrárias (JC, p. 20-1).
- Antes de adentrar nas possíveis críticas, três breves questões sobre a tradução.
Werle conserva a tradição da sociologia weberiana de traduzir Herrschaft como “dominação”, a qual aproxima as noções de dominação e legitimidade. Toda forma de dominação é legítima, na medida em que se entenda o conceito de legitimidade em um sentido estritamente descritivo, sem sobrepor um sentido normativo e crítico, como prioriza Forst: a qualidade de uma ordem normativa de explicar e justificar seu poder vinculativo geral aos seus subordinados (2015a, p. 189). Diferentemente da tradição weberiana, porém, Forst distingue a forma neutra (e possivelmente justa) Herrschaft da forma injusta Beherrschung (JC, p. 27). Para reproduzir no português, seria necessário algo como a distinção entre “domínio” e “dominação”, não tão intuitiva ao leitor e que pouco contribuiria para a clareza da argumentação.
Andou bem o tradutor, pois, em se manter fiel à tradição e traduzir Herrschaft e Beherrschung respectivamente como “dominação” e “dominação arbitrária”.
Uma opção que também merece comentário é a tradução da necessidade de um consentimento baseado em procedimentos de justificação institucionalizados e, ao mesmo tempo, em um sentido contrafactual, de modo recíproco e universal, com a expressão “no modo subjuntivo” (JC, p. 51 e 141). Diferente dos equiparáveis im Konjunktiv e konjunktivisch utilizados por Forst, que remetem mais diretamente, na língua alemã, à situação irreal, o subjuntivo da língua portuguesa é um modo verbal que tem vários tempos, dos quais só o pretérito representa um modo contrafactual.
Acredito que, novamente se distanciando do original, mais clara seria a expressão “no modo contrafactual”, como na tradução inglesa (2014, p. 34 e 83). O consentimento é contrafactual porque a pretensão normativa mostra-se válida moralmente na medida em que não lhe podem ser opostas justificações gerais e recíprocas. A pretensão normativa não é rejeitável, o que independe de um consenso ou aceitação efetiva (2012[2007], p. 21).
Uma opção mais polêmica é a tradução da concepção de pessoa de Forst als begründendes, rechtfertigendes Wesen, isto é, como um ser fundamentador e justificador, em termos menos carregados: “como sujeito que fundamenta e justifica” (JC, p. 159). Essa opção oferece mais consistência à argumentação, ao custo de minimizar a pretensão antropológica de Forst, como se verá a seguir.
- O aspecto desconcertante da obra – ou “irritante” para usar a tradução preferida nessa edição (JC, p. 135) – é sua vinculação ao individualismo metodológico: a argumentação parte de conceitos a priori, do “a priori da justificação” (JC, p. 192), em detrimento da análise social e histórica das relações de justificação. Essa análise até aparece no texto, mas só a título de ilustração. Tal ponto foi levantado por Rúrion Melo em sua crítica ao construtivismo moral de Forst: a praxis da justificação funda-se em pressupostos morais que independem da gênese histórica e política e que não oferecem um diagnóstico de época de como as reivindicações por justiça tornam-se reivindicações por respeito aos sujeitos de justificação (2013, p. 26-8). O aspecto metodológico não desmerece, no entanto, os objetivos traçados por Forst de afastar dualismos enganadores e de fundamentar o projeto de uma teoria crítica da justiça.
Na dimensão da ontologia social reside um problema mais grave para a teoria crítica defendida pelo autor. A teoria do direito à justificação não contém só uma tese sobre o domínio da teoria crítica da política (devemos investigar a distribuição do poder de justificação na sociedade), mas também uma tese ontológica (as esferas sociais são ordens de justificação). A questão que se coloca é se não bastaria, em lugar da tese ontológica, uma tese, por assim dizer, sociológica (há uma relação necessária entre esferas sociais e relações de justificação). Soa bastante implausível, com efeito, que todos os fenômenos de dominação operem no interior de ordens de justificação. Ainda que tais ordens existam, estão envolvidas por poderes anônimos – como autovalorização do capital, incremento da técnica, massificação social –, que conservariam sua intensidade mesmo diante de uma estrutura básica de justificação. O que sempre causou perplexidade na modernidade foi por que tantas pessoas se identificam com a desigualdade e a dominação arbitrária e deixam de questioná-las. Seus grilhões não são de ferro, mas imaginários. Que todos tivessem garantias de exigir justificativas dos demais não significa que os poderes sistêmicos seriam amplamente questionados. Se a justificação permanecesse potencialmente aberta, esses poderes ainda não desmoronariam como tais, não ficariam vulneráveis, nem seriam desmascarados como injustificáveis, porque continuariam produzindo, de modo massivo e duradouro, bloqueios à atividade crítica. Daí a dificuldade de pensar em uma primazia ontológica da justificação.
A questão acerca da ontologia social surge sempre e novamente diante das tentativas de compreender a sociedade com base em um eixo único – como acontece comumente em relação ao sistema capitalista (cf. Dardot & Laval, 2016, p. 31 e 3845; Jaeggi, 2015, p. 15) ou à ideia de liberdade (cf.
Honneth, 2011, p. 9 e 35-40). Não é preciso supor metafisicamente, como ainda é comum entre os teóricos críticos, que todas esferas sociais e todos valores da sociedade moderna estejam fundidos em uma lógica, valor ou razão. No caso da teoria crítica de Forst, não é possível ignorar que há ordens que não se estabelecem por justificações, senão por seu bloqueio sistemático. Mais plausível parece supor uma relação necessária entre as esferas sociais e as justificações, mas sem excluir a relação concomitante com estruturas que impedem que as esferas sociais sejam planejadas, controladas ou direcionadas por razões. É o que sinaliza Forst ao mencionar os complexos de justificação ideológica, que naturalizam a dominação e se esquivam de questionamento crítico (JC, p.170). Poderes sistêmicos parecem ser ordens que dependem necessariamente de justificações, mas que dependem delas de uma forma necessariamente preconfigurada e entravada, o que impede a abolição, ou mesmo reforma dessas ordens. Por isso, a dominação sistêmica antes determina justificações do que é por elas determinada.3
Ao responder a críticas contra seu conceito de poder, Forst vai admitir a necessidade de distinguir a dominação relacional da estrutural, insistindo, então, na conexão que existe entre essas estruturas e a produção de justificações e ações dos que se beneficiam delas ou dos que poderiam modificá-las: “nós devíamos nos livrar da oposição não-dialética entre considerações de poder estruturais ou entre agentes [inter-agential], porque claramente precisamos de ambas” (2018, p. 303).4 A sociedade moderna parece estruturada tanto em ordens de justificação, quanto em ordens sistêmicas, mesmo que entre elas subsista uma relação necessária, que se poderia chamar, mais convincentemente, liames de justificação, muito mais frágeis. Isso significa recusar a ontologia social monista de Forst e retornar a uma relação dualista, entre mundo da vida e sistema, como desenvolvido por Habermas (1995[1981]).
Essa crítica à pretensão ontológica da teoria de Forst não afeta, contudo, a abordagem defendida. A preocupação do filósofo alemão é que o direito à justificação precisa considerar o que há de racional na história e manter a distinção entre lutas sociais emancipatórias e não-emancipatórias, entre justificações boas e ideológicas, que é a pressão pela reciprocidade e universalidade adentrando todas esferas sociais, aí compreendidas as esferas de dominação sistêmica (2015c, p. 52-3). O direito à justificação não requer a tese extravagante de que todas as esferas sociais são realmente ordens de justificação. Em suas palavras:
Isso é uma razão importante para separar a análise, primeiro, sobre o exercício de poder entre agentes da análise, segundo, sobre formas estruturais de poder que expressam, constrangem e permitem tais formas de poder e, terceiro, do caráter e formação de recursos inteligíveis [ noumenal ] ou condições de fundo que levam e suportam essas estruturas, especialmente as narrativas de justificação em que se apoiam (2018, p. 306).
Além da crítica ao sentido ontológico da teoria do direito à justificação, é preciso acrescentar uma crítica à sua pretensão antropológica (os seres humanos são seres justificadores), a qual está no centro do argumento da obra Direito à Justificação (cf. 2007, p. 13 e 38-9) e é reproduzida nos trabalhos mais recentes (cf. 2018, p.317-8). Não que a imagem de uma sociedade plenamente transparente e baseada em conteúdos e razões não rejeitáveis razoavelmente entre indivíduos dotados de um direito igual à justificação seja vaga e idealista, que ela abstraia das relações sociais ou que tome os sujeitos como unidades atomizadas. Nada disso. Afinal, as justificações dadas são sempre aqui e agora, conforme a situação e os conflitos reais, envoltas e obscurecidas por emoções, ideologias, ameaças; e as justificações devidas são aquelas voltadas pragmaticamente ao estabelecimento de uma estrutura básica de justificação (JC, p. 143).5 A questão que se coloca é se a ideia normativa de um direito individual à justificação volta a ser escorada em um interesse básico humano.
Em vez de o direito fundamental à justificação ser apresentado somente como condição de possibilidade para qualquer discurso crítico, cai-se na tentação de justificar a justificação. Forst invoca a natureza humana para justificar o dever de reconhecer os outros como seres justificadores, em outras palavras, como seres que usam e necessitam de justificações (JC, p. 159). A carência por justificações e a capacidade de as produzir, exigir e questionar são convertidas em um direito moral, embora possam ser tão arbitrárias quanto qualquer outra carência ou capacidade. A questão é saber se a argumentação forstiana prescinde desse fundamento. De fato, não é necessário vincular o direito à justificação a uma antropologia. Em Justificação e crítica, Forst parte de que não uma capacidade ou carência humana, mas um princípio moral representa o critério último para julgar sobre a legitimidade das relações sociais. A tradução brasileira tem razões, pois, para minimizar o apelo ao ser justificador. Evita-se confundir o fundamento moral do direito à justificação seja com o fundamento em capacidades e carências humanas, seja com o fundamento em uma concepção de vida boa (a vida autônoma e reflexiva), do qual Forst busca se distanciar (JC, p. 90 e 105).
A maneira de conectar a dimensão moral da justificação aos demais contextos da justiça vem a reboque, ainda assim, das pretensões ontológica e antropológica, das quais se tentou resguardar até aqui a teoria crítica de Forst. O direito de recusar razões não-recíprocas e não-universais tem como objeto “toda ação ou norma que pretende ser legítima”, em uma “teoria abrangente dos direitos humanos” (JC, p.111). Acontece que, salvo a dimensão moral, as razões para agir não são recíprocas e universais. A justificação das ações individuais é incapaz, na maioria dos casos, de generalização, pois depende de premissas éticas, econômicas, jurídicas ou políticas compartilhadas, sem as quais não há ação justificada. Nesse aspecto, Seyla Benhabib tem razão em apontar que reciprocidade e universalidade funcionam para justificar deveres perfeitos, em uma estrutura básica de justificação, não deveres imperfeitos.
É incompreensível como tais critérios poderiam guiar agentes individuais na justificação discursiva de suas ações éticas, políticas, jurídicas e econômicas (2015, p. 5-7). Respondendo, Forst exemplifica que a reciprocidade exclui o apelo a verdades religiosas ou à vontade da maioria para proibir a construção de minaretes ou o uso de vestes religiosas pelas mulheres (2015b, p. 50), o que está correto; todavia, a reciprocidade nada esclarece se o patrimônio urbanístico deve ter preferência à construção de templos, se certas vestes devem ter primazia à igualdade de gênero, quer dizer, acerca de conflitos entre valores e razões diferentes e irreconciliáveis. As dificuldades emergem na medida em que o direito à justificação seja alçado a uma teoria moral abrangente, capaz de regular todas as ações que tocam outras pessoas, em vez de uma teoria política, no sentido rawlsiano do termo (2005[1993], I, §2).
Nenhuma dessas críticas obscurece o que se pode reconhecer como avanços importantes na teoria crítica contemporânea, em razão do esforço de Forst de “limpar o terreno” dos “entulhos conceituais” acumulados nas controvérsias sobre esse modo de fazer filosofia. Trata-se de uma obra incontornável para todos que se engajam na tarefa de fazer um diagnóstico das sociedades contemporâneas do ponto de vista emancipatório, isso quer dizer, da justiça.
Notas
1 Essa questão vai ser retomada na obra mais recente de Forst (2015a, p. 13-5).
2 Sobre esse último ponto, ver especialmente os argumentos de Forst contra as críticas feministas à ideia de pessoa de direito e às linguagens políticas universalistas (1994, p. 117-123 e 199-209).
3 Devo essa ideia de poder sistêmico a conversa com José Ivan Rodrigues de Sousa Filho.
4 Sobre isso, ver respostas a Steven Lukes, Clarissa Hayward e Albena Azmanova (2018).
5 Forst insiste nesses pontos ao responder às críticas de que sua teoria seria ingênua e racionalista quanto às motivações humanas, ou excessivamente vaga e abstrata quanto à determinação dos direitos humanos, como acusam Seyla Benhabib (2015b), Simone Chambers (2015c), Simon Susen, Steven Lukes, Mark Haugaard e Matthias Kettner (2018).
Referências
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Felipe Moralles e Moraes – Universidade Federal de Santa Catarina E-mail: felipe.moralles@gmail.com,
Como nasce o novo: Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel – NOBRE (C-FA)
NOBRE, Marcos. Como nasce o novo: Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel. São Paulo: Todavia, 2018. Resenha de: CAUX, Luiz Philipe de. Sobre jovens e velhos: Marcos Nobre entre Fenomenologia e Sistema. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 23 n.2 Jul-Dez, 2018.
Tornou-se comum no último meio século – pense-se paradigmaticamente em Honneth – narrar filosoficamente a história da teoria crítica da sociedade como uma trama de sucessivas oportunidades vislumbradas, porém perdidas, para uma adequada crítica da dominação.2 Numa das variantes desse verdadeiro paradigma narrativo estabelecido, caberia a cada vez recuperar as intuições de juventude não desenvolvidas por filósofos sociais que, em vez de amadurecê-las, delas se extraviaram, se tornando velhos incapazes de ver a emergência da novidade. Em sendo prima facie “apenas” uma (excepcional, diga-se de passagem) leitura estrutural da Introdução da Fenomenologia do espírito, o recente livro de Marcos Nobre, Como nasce o novo, esboça praticamente uma teoria geral desse suposto enrijecimento da crítica e vai buscar de modo metacrítico no jovem Hegel um antídoto contra esse envelhecimento. Seu empreendimento levanta hipóteses fecundas e mostra, sem dúvida, um caminho para escapar do estado há anos estacionado e estéril da teoria crítica neofrankfurtiana. Sugiro aqui, no entanto, uma avaliação de até que ponto o próprio Nobre responde satisfatoriamente a suas pretensões e propósitos. Trata-se de objetivos que o resenhista acredita compartilhar com o autor, de modo que o sentido dessas considerações é o de um debate franco sobre o melhor modo de alcançar certos objetivos comuns.
A ligação entre os dois planos tão díspares do livro, a leitura estrutural de um texto clássico e a metacrítica da (pré-)história da teoria crítica, é feita pela mediação de uma chave de interpretação do texto hegeliano como aquilo que Nobre chama de “modelo filosófico”, isto é, uma interpretação que postula a sua autonomia e subsistência como obra fechada e apartável de uma consideração sistematizante da obra de Hegel como um todo, levando em conta ainda a sua relação não com as intenções subjetivas do filósofo, mas com a experiência objetiva do tempo à qual o livro responde, ou, na expressão reiterada por Nobre, com as suas condições de produção intelectual. Numa palavra, a tese central de Nobre é que a Introdução da Fenomenologia absorveria e registraria na forma de um programa de método filosófico a eufórica experiência da emergência do novo vivida nos tempos de sua redação (a entrada da modernização a cavalo na Prússia), servindo como que de arquétipo de um modo “jovem” de se fazer teoria crítica que deveria ser recuperado. Nobre divide sua exposição em duas partes principais, o “trabalho de análise e comentário do texto da Introdução” e a sua própria “tomada de posição” em relação a ele.
3 Na ordem da apresentação, esta vem antes daquele, com o próprio texto de Hegel intercalado, vertido novamente para o português pelo próprio Nobre. Inverterei aqui esta ordem, passando, entretanto, apenas brevemente pelo comentário ao texto hegeliano e dirigindo o interesse sobretudo à posição de Nobre sobre “a importância desse modelo de pensamento para o momento presente” (p. 9).
A sempre mais estreita especialização imposta pelo modo de operação das universidades e sua distribuição de recursos inibe entre nós a produção de trabalhos como o de Nobre. Reconhecido como um “especialista” nas tradições frankfurtianas, o autor realiza uma exegese de Hegel que não fica aquém da primeira linha de obras de hegelianos brasileiros – o que não surpreende em vista da notória competência transdisciplinar de um filósofo que se destacou nos últimos anos como um dos mais importantes analistas da conjuntura política. O texto é informado em particular pela literatura secundária clássica e mais recente alemã, francesa, estadunidense e brasileira e oferece amparos sólidos para suas teses interpretativas centrais em substanciosas notas de rodapé, entregando ao leitor ainda um panorama das interpretações divergentes encontráveis. Estas teses, para ir logo ao ponto, dizem respeito aos momentos de início e de conclusão da Fenomenologia. Trata-se para Nobre de descerrar o texto desses limites iniciais e finais e mostrar que o livro não começa nem termina onde se costuma fazê-lo começar e terminar. Essa reabertura do texto é justificada ainda extratextualmente pela remissão a dois fatos contextuais: o de que Hegel escreveu a Fenomenologia e, em particular, a sua Introdução, como introdução a um sistema ainda inconcluso (isto é, como a entrada em um sistema fechado ainda aberto ); e isso no exato momento em que os exércitos franceses e, junto com eles, a ordem político-econômica burguesa, conquistavam a Prússia e aceleravam a dissolução da ordem feudal ali vigente (entenda-se: no momento histórico em que um potencial revolucionário se atualiza sem que se saiba ainda aonde vai dar). É como se, na Fenomenologia, Hegel tivesse cristalizado o próprio processo aberto, produzido algo que ainda não sabe o que é, trazendo a abertura de seu próprio tempo ao conceito.4
Intratextualmente, isso significa sustentar, por um lado, que no livro de 1807 o movimento da experiência não tem início, como em geral se sustenta e como a própria obra induz a ser lida, com o momento da certeza sensível, mas já antes na Introdução. Em outras palavras, na Introdução, já estaríamos no interior da experiência fenomenológica, que pega o bonde em movimento no seu exato tempo presente e o toma como pressuposto para poder negá-lo de modo determinado.
Esse pressuposto atual inescapável, no qual a experiência começa apenas a fim de negá-lo, é uma concepção representativa de conhecimento que Nobre, na esteira da primeira frase da Introdução, chama de “representação natural” (correspondente em certa medida, mas não de modo tão determinado, à concepção kantiana de conhecimento). Essa “representação natural” é levada às suas últimas consequências e o resultado é uma concepção “apresentativa” de conhecimento (concepção que se revela, num nível “meta”, como a que acabara de estar em ação nessa apresentação da passagem da representação à apresentação). Tendo entendido a si mesma, vindo a saber que não tem nenhuma “fixidez ontológica” e retirado o entrave da concepção representativa de conhecimento do caminho fenomenológico, a experiência precisa então retornar à certeza sensível como modo de recuperar a história de como se prendeu às positividades prévias e de como delas se desprendeu, e assim reabrir no presente o caminho para o novo. A outra tese interpretativa central é a de que a passagem da razão ao espírito no meio do livro não representa uma ultrapassagem do ponto de vista da experiência, que na verdade caminha até o saber absoluto na conclusão do livro. Também o saber absoluto é, para Nobre (apoiado parcialmente em Hans Friedrich Fulda), experiência da consciência, e não recai, portanto, num ponto de vista de Deus que seria aquele típico do sistema enciclopédico. A tese de Fulda é que o saber absoluto ainda é um saber experimentado, finito, de modo que também ele precisa ainda se pôr em movimento (p. 45). Mesmo que em formulações distintas, essa é por excelência a compreensão “jovem-hegeliana de esquerda” (à qual Nobre se filia (p. 220)), para a qual o sistema pronto e acabado de Hegel, justamente ao ser levado a sério em seu teor de verdade, entrava novamente em contradição na experiência com a realidade irreconciliada, exigindo a emergência de uma nova suprassunção, dessa vez prática.
As duas teses interpretativas de Nobre sobre o início e o fim da Fenomenologia – a) a de que o movimento dialético da experiência tem início já na Introdução e, nesse sentido, inicia sua dança lá onde se encontra a rosa, em sua experiência histórico-filosófica presente, e b) a de que esse movimento não termina onde parece terminar, mas projeta-se para além de si mesmo, uma vez que permanece finito –, essas duas teses convergem para a definição de “modelo filosófico” como obra que responde a seu tempo e que se sustenta sem recurso aos demais momentos da obra do autor. A ideia é que a Fenomenologia, ao contrário do estabelecido hegemonicamente na literatura secundária, não pressuporia o sistema pronto e acabado. Ela é “simplesmente” um engajamento filosófico crítico com o estado de coisas presente, sem ancoramento numa verdade definitiva atemporal (o sistema, do qual Hegel ainda não dispunha), e que começa sua ação partindo não de uma abstrata experiência imediata em geral (certeza sensível), mas sim da sua própria experiência imediata concreta (a concepção representativa de conhecimento), a fim de eliminar os entraves para a emergência de um novo que, de resto, já marchava ao seu encontro. A Introdução da Fenomenologia se destacaria então como texto paradigmático para a determinação da tarefa da crítica em geral porque, no corpus da obra de Hegel, é o local inaugural onde o filósofo se dirige precisamente aos “entraves autoimpostos” de seu tempo, a fim de eliminá-los e de liberar o automovimento do conceito.
Mas a caracterização da Fenomenologia como “modelo” possui ainda um aspecto decisivo para o horizonte do trabalho de Nobre. Não se trata apenas de dizer que o texto de 1807 para em pé sem o escoro da Lógica ou da Enciclopédia, isto é, do sistema em geral. Se a Fenomenologia é um “modelo” que responde a um diagnóstico de tempo específico, o programa filosófico da Enciclopédia, no qual se encaixam, por exemplo, a Lógica e a Filosofia do Direito, é, por sua vez, um “modelo” distinto que só emerge pela necessidade de reagir a um outro diagnóstico. “Mudanças na posição de Hegel estão necessariamente vinculadas a mudanças de diagnóstico de tempo”, diz Nobre (p. 23).5 O autor não é obviamente o primeiro a constatar essa relação, mas sua originalidade está nas consequências teórico-programáticas que deseja dela derivar. Para Nobre, trata-se buscar as “afinidades desse modelo filosófico [da Fenomenologia ] com o momento atual e suas condições de produção intelectual” e “projetar Hegel para além de 1807” (p. 10). A fim de verificar a plausibilidade desse programa hoje, é preciso entender melhor que passagem foi aquela que teria levado Hegel à necessidade de formular um novo “modelo”.
A Fenomenologia se distinguiria enquanto “modelo” por dar conta de uma transformação epocal em curso, a invasão napoleônica na Prússia e a consequente modernização das suas relações políticas, econômicas e sociais, da qual Hegel era, todavia, partidário. O “nascimento do novo” ao qual Hegel quis fazer jus em seu texto corria em paralelo com as transformações radicais que vinham do outro lado do Reno. Em registro filosófico, Hegel deveria dar conta do fato de que “o nascimento do novo se dá em uma situação de descompasso entre uma consciência que ainda não está à altura da real novidade do seu tempo (que corresponderia ao que Hegel chama de consciência ‘natural’) e aquela forma de consciência (chamada de ‘filosófica’ pela bibliografia hegeliana) que alcançou uma compreensão de seu tempo em todos os seus potenciais” (p. 18). A “real novidade” é, obviamente, a deposição do Antigo Regime e a instauração de uma ordem burguesa.
É como se se tratasse então de elevar a filosofia ao nível de racionalidade já atingido pelas relações sociais reais.
Mas há algo de incomodamente delicado nessa tese: o nascimento do novo de Hegel é então não mais do que a atualização do (aqui) atrasado à altura de um novo (alhures) já surgido? Se não quisermos enfraquecer o argumento a tal ponto, é preciso antes compreender que espécie de “novo” Hegel pretende de fato estar vendo emergir, um novo que não apenas acertasse os ponteiros com o fuso francês, mas lhe fizesse avançar mais um grau do relógio histórico. Mas este é o momento em que Nobre diverge e prefere não acompanhar o envelhecimento do filósofo.
Ora, o “novo” que emerge após a Fenomenologia e a ocupação francesa é justamente a Restauração e aquilo que, para Nobre, é seu correlato filosófico: o sistema. Trata-se, aos olhos da obra de maturidade de Hegel, ou, se se quiser, de seu novo “modelo”, efetivamente de uma nova figura do espírito do mundo na qual a própria negatividade que girava em falso e jacobinamente é institucionalizada e pode operar de modo “seguro”, preenchido por “relações éticas”. Em outras palavras, trata-se daquele momento “alemão” do desenvolvimento do espírito, no qual a liberdade sabe a si mesma como fundamento das ordens sociais e assim finalmente se reconcilia consigo mesma e forma sistema. “A modernidade” – e cabe acrescentar, em particular a “modernidade normalizada” após o Congresso de Viena – “é a primeira época a comportar e suportar o negativo dentro de si, a primeira época capaz de ir além de si mesma sem sair de si mesma” (p. 61).
Mas, se assim é, então não tanto a interpretação de Nobre da Fenomenologia, mas sua ideia de recuperá-la como “modelo” para o presente, se encontra diante de um dilema. Pois se a noção de “modelo” associa conteúdos filosóficos às experiências históricas objetivas com as quais tiveram de lidar, é em face de cada diagnóstico que os “modelos” podem ser julgados como “bons” ou “ruins”, se não se quiser recair em um historicismo no qual todos os “modelos” são igualmente bons porque são sempre adequados a seus respectivos presentes.
O próprio Hegel parece ter entendido que o sistema filosófico enciclopédico fechado e a nova organização social alemã “normativamente autocertificada” (para usar uma expressão de Habermas cara a Nobre) correspondem de fato àquele “novo” que deveria ser desbloqueado para perseguir e levar adiante a trilha de transformação reaberta com a Revolução Francesa (como Nobre mostra em pp. 52-61). Cada “modelo” hegeliano seria então igualmente bom, pois encontraria seu critério de avaliação na respectiva experiência histórica. Mesmo que se admita, portanto, que a Fenomenologia é um “modelo” no sentido de não carregar o sistema dentro de si como seu pressuposto, o que faz dela um modelo a ser “atualizado” hoje (p. 61)? Também essa pretensão não é contraditória? Se se trata sempre de modelos e se modelos são dependentes de diagnósticos, que sentido há em projetar um modelo para além de seu diagnóstico? A não ser que se sustente uma analogia de diagnósticos entre o Brasil de 2018 e a Prússia de duzentos anos antes, como essa “atualização” é possível? Qual é a experiência de emergência do novo hoje à qual a filosofia teria de fazer jus? O caminho de atualização de Nobre, no entanto, não passa por um diagnóstico, embora poucos filósofos entre nós estejam tão atentos ao presente e bem preparados para oferecer um quanto ele ( vide sua inteira atividade como intelectual público).6 Em vez disso, Nobre percorre outra vez algumas estações da história do hegelianismo de esquerda a fim de mostrar como alguns dos filósofos dessa tradição (em particular Marx, Lukács e Honneth) apresentariam um modo semelhante de “envelhecer”, passando, como Hegel, de uma fase “fenomenológica” a uma fase “sistêmica” ou “enciclopédica”. A analogia soa apressada e demandaria de Nobre mais material de convencimento.7 Em todo caso, ela se dá pela tradução daquele modo jovem, fenomenológico e aberto ao novo de se fazer teoria social pela chave da “visada da subjetivação da dominação”. Cada um destes autores teria privilegiado em sua obra de juventude a análise de como a dominação social tem vez junto ao próprio processo de formação da subjetividade, mas teria sentido a necessidade de formular outros modelos em razão de seus respectivos diagnósticos ulteriores (Marx, com sua revolução que nunca chega; Lukács, com a redução dos potenciais emancipatórios liberados na Revolução Russa com a burocratização e o socialismo de um só país da União Soviética; Honneth, com a colocação em risco e a necessidade de salvaguardar os “progressos” morais da geração de 68). Obras tão díspares como O Capital, Ontologia do ser social e O direito da liberdade teriam em comum serem obras “enciclopédicas”, cuja compreensão sistemática pronta e acabada do mundo recalcaria o momento fenomenológico, que, na definição do autor, “concede um lugar de destaque aos processos de subjetivação da dominação em toda a sua complexidade e sem a unilateralidade da primazia de uma determinação da subjetividade pelas estruturas de dominação” (p. 63).
Pois bem, se o propósito de “atualizar” o “modelo” da Fenomenologia não é justificado, como parecia necessário, por uma analogia dos diagnósticos de tempo de outrora e de hoje, 8 ele parece sê-lo, então, por essa tomada de partido de Nobre pela prioridade da tarefa de investigação da subjetivação da dominação e das formas de resistência à integração total. Ao cabo, Nobre advoga que a Introdução da Fenomenologia é hoje o modelo que, devidamente “atualizado”, poderia abrir caminho para a teoria crítica escapar do “reconstrutivismo” (velhohegeliano) em que se encontra. Em vez de “reconstruir” critérios da crítica lá onde estão institucionalmente estabelecidos, a teoria deveria se voltar, se leio bem as entrelinhas do texto de Nobre, a uma normatividade reprimida ou que vigora às margens, abafada e refugiada, enquanto mera ideia, na subjetividade de grupos oprimidos. Verificar como a dominação é introjetada seria ao mesmo tempo verificar como ela poderia não o ser. Em conclusão, caberia apenas perguntar se o que Nobre quer recuperar então não seria antes o jovem Honneth que o jovem Hegel.
A formulação sintética dada por Nobre para a caracterização dos modelos “de extração fenomenológica” (a “visada da subjetivação da dominação”) parece, ao fim da leitura da Introdução da Fenomenologia, na verdade mais próxima dos primeiros trabalhos de Honneth do que do dialético Hegel9 Não é claro no texto de Hegel lido por Nobre de que modo o complexo programa de (não-)método desenvolvido pelo filósofo pode ser reduzido a uma consideração teórica das lacunas e falhas da integração social tendencialmente total representadas por aquilo que, nos sujeitos, recalcitra à subsunção no universal. Se a Fenomenologia representa de fato, como sustenta Nobre, um modelo para a crítica radical que visa desbloquear o movimento do seu objeto através da recepção ativa de sua própria negatividade, então a ideia de que a transformação do objeto ocorre pela oposição a ele dos restos e falhas nas quais ele não se efetivou plenamente já é uma projeção subjetiva da teoria sobre o objeto e representa exatamente aquilo que Hegel deseja superar, aquela concepção que Nobre chama de “representação natural”. Isso porque opera implicitamente com a ideia restrita de que a negatividade a ser acolhida pela teoria está localizada nos excessos de subjetividade não integrada. Essa concepção parece confundir, no conceito hegeliano de “experiência”, a subjetividade da consciência que experimenta o movimento do objeto (i.e., a subjetividade do teórico) com a subjetividade do indivíduo não completamente integrado, que só pode aparecer, de fato, como objeto da experiência do teórico. Significa, ademais, tomar as lacunas de integração (as “práticas de resistência e contestação à dominação em suas múltiplas dimensões” (p. 71)) como ponto de ancoragem da crítica e esperar que a superação de um estado atual venha justamente do seu “lado de fora”, daquilo que não está subsumido à sua lógica.10 O objeto é cindido num universal a ser negado e num particular afirmado e a crítica perde a imanência ao objeto, a sociedade, – pois não há crítica imanente onde o seu objeto não pode ser sintetizado especulativamente como um objeto único em movimento (e este sim me parece ser o sentido da Introdução e sua lição para a teoria crítica). O próprio Honneth, que iniciou sua proposta de reformulação da teoria crítica nos termos ora repropostos por Nobre, não a abandonou porque se tornou um velho saudosista de 68, mas porque percebeu as aporias a que aquela posição conduzia: a aparente recalcitrância à integração na ordem de dominação não faz por si só da subjetividade marginal um ponto de ancoramento para a crítica, o que deveria ser claro em tempo de eleitores de Trump, da Alternative für Deutschland ou de Bolsonaro. Na teoria, a subjetividade antagônica apenas posterga o momento em que é preciso diferenciar entre a “boa” oposição e a “ruim”, e nesse caso o critério é extrassubjetivo. Assim, o Lukács de História e Consciência de Classe (que comparece em Nobre como exemplo de autor “jovem”) teve de se apoiar numa análise de crítica da economia política para indicar o proletariado como aquele que poderia se subjetivar em acordo com sua própria essência; e, mais tarde, Honneth teve de buscar nas expressões conceituais das regularidades da integração social funcional o critério das reivindicações de reconhecimento boas e ruins. Se ser “jovem” em filosofia é dedicar-se à análise da subjetivação da dominação, os jovens deixaram de ser jovens justamente quando levaram esse problema a sério e enxergaram que ele não se resolve na subjetividade; ou que a subjetividade é porta de acesso e obviamente não pode ser desprezada, mas precisa passar a uma análise mais aprofundada da pré-constituição objetiva da subjetividade. Em outras palavras, os “velhos” tiveram muitas vezes seus bons motivos para envelhecerem, e fizeram sim, em parte, justiça ao mundo em se tornando sistemáticos, porque a estruturação social possui sim um caráter tendencialmente sistemático. Justamente por o possuir, ela determina a subjetivação até mesmo lá onde parece não determinar, e a subjetividade antagônica é ela mesma também marcada por ser subjetividade antagônica à ordem de dominação e estar, portanto, determinada por essa ordem de dominação, não ser a ela externa e não poder ser tomada por critério de sua crítica.
Por isso compra-se sempre o risco, ao privilegiar a subjetividade já encontrada dada na realidade, de se estar sendo afirmativo do mundo, mas com a aparência de se o estar negando. Adorno disse uma vez que “apenas quem reconhece o mais novo como o mesmo serve àquilo que seria distinto” (Adorno, 2003, p. 376). A proposta de Nobre arrisca-se a, em vez de instigar e participar do “nascimento do novo”, afirmar nostalgicamente o “bom e velho” que ainda não cedeu ao universal e representa assim antes um resquício de uma figura anterior do q ue um anúncio de uma que surge.
Notas
1 O autor agradece o acolhimento gentil do prof. Marcos Nobre na leitura da resenha.
2 Esta espécie de romance de “deformação” dos filósofos-lidos (espelhado numa implícita história da formação do filósofo-leitor) é a estrutura da narrativa conceitual, por exemplo, de Crítica do Poder (Honneth, 1989 [1985]) em geral e de Luta por Reconhecimento (Honneth, 2003 [1992]), no que diz respeito à leitura de Hegel.
3 “E, no entanto, realizar essa necessária tomada de posição juntamente com um trabalho de análise e comentário do texto da Introdução prejudicaria consideravelmente a exposição. A solução foi expor essa tomada de posição separadamente” (p. 9). A opção de exposição/método de Nobre contrasta notavelmente com aquela, todavia de elevadas pretensões, da própria Fenomenologia : “O mais fácil é julgar o que possui um teor e uma solidez, mais difícil do que isso é apreendê-lo, e o mais difícil é produzir a sua exposição, o que unifica a ambos” (Hegel, 1986 [1807], p. 13).
4 “O modelo teórico legado pela Fenomenologia tem, portanto, pelo menos dois aspectos característicos: o de um work in progress em sentido mais restrito, que resultou no próprio livro publicado, e o de um work in progress em que um Sistema da ciência a ser produzido permanece como horizonte, configurado em um diagnóstico de tempo de intenção sistemática” (p. 47).
5 Cf. a distinção útil feita por Nobre entre “diagnóstico de época” e “diagnóstico do tempo presente” (p. 280-1, n. 28).
6 E embora sugira ainda que “a Teoria Crítica poderia deixar para trás o fardo da ‘melhor teoria’ em que se embrenhou nas últimas décadas, voltando a conceder ao diagnóstico de tempo presente a primazia que sempre teve na melhor tradição marxista” (p. 80).
7 Cf. afirmações como a seguinte: “Se História e consciência de classe pode ser entendido como a Fenomenologia de O Capital, a Ontologia do ser social pode ser lida, analogamente, em termos de uma versão materialista da Enciclopédia de Hegel” (p. 64).
8 “Atualização” significa aqui antes um update ao “estado da arte” da filosofia do que uma verificação da sua relação com a situação história presente: “assim como uma atualização do projeto da Fenomenologia teria hoje de proceder a uma reconstrução em termos comunicativos da noção de ‘espírito’ (a ser realizada segundo a noção de ‘experiência’), a ideia de ‘formação’ teria de ser ela mesma reconstruída nesses termos, de maneira a libertá-la do macrossujeito que pressupõe” (p323, n. 95).
9 Trata-se de uma filiação expressa: “É desse ponto de vista que se pretende jogar nova luz sobre um modelo de renoção da Teoria Crítica considerado aqui de extração fenomenológica como o oferecido por Luta por reconhecimento – ou, talvez, mais precisamente, aquele veio de atualização aberto por Crítica do Poder ” (p. 81). Cf. ainda, ilustrativamente, a semelhança quase parafrástica do penúltimo parágrafo de Nobre (“E a crítica dessa invisibilidade é o que faz desse livro [a Fenomenologia ] um modelo filosófico ainda hoje um ponto de partida talvez incontornável para uma Teoria Crítica da sociedade que tenha por objetivo não apenas investigar a cunhagem da subjetividade pelas estruturas de dominação, mas igualmente os processos de subjetivação em que surgem os potenciais não só de resistência, mas também de superação da própria dominação” (p. 238)) e o modo como Honneth define a tarefa da teoria crítica no posfácio de Crítica do poder (“hoje um problema-chave da teoria crítica da sociedade é representado pela questão de como pode ser obtido o quadro categorial de uma análise que seja ao mesmo tempo capaz de abarcar, com as estruturas de dominação social, também os recursos sociais para sua superação prática” (Honneth, 1989 [1985], p. 382).
10 Em termos semelhantes, Nobre se refere a uma passagem de Adorno, na qual este estaria a dizer, na sua intepretação, que “integração” e “resistência” se relacionariam “como água e óleo” (p.75). Tanto a interpretação da passagem parece estar equivocada (o que infelizmente não pode ser discutido aqui), quanto, como dito, essa parece ser antes uma implicação do programa de Nobre
Referências
ADORNO, T. W. (2003 [1942]). „Reflexionen zur Klassentheorie“. In: ________.Soziologische Schriften I (= Gesammelte Schriften, 8 ) (pp.373-391). Frankfurt a.M.: Suhrkamp.
HONNETH, A. (1989 [1985]).Kritik der Macht: Reflexionsstufen einer kritischen Gesellschaftstheorie. Mit einem Nachwort zur Taschenbuchausgabe. Frankfurt a.M.: Suhrkamp
____________.(2003 [1992]).Luta por reconhecimento : A gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34.
Hegel, G.W.F. (1986 [1807]).Phänomenologie des Geistes (= Werke 3). Frankfurt a.M.: Suhrkamp.
Luiz Philipe de Caux – Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: luizphilipedecaux@gmail.com
Staying Alive: Personal Identity, Practical Concerns, and the Unity of a Life – SCHECHTMAN (D)
SCHECHTMAN, M. Staying Alive: Personal Identity, Practical Concerns, and the Unity of a Life. Oxford: Oxford University Press, 2014. Resenha de: BORBA, Alexandre Ziani de. Dissertatio, Pelotas, v.47, 2018.
Marya Schechtman volta a publicar uma obra, também sobre identidade pessoal e pessoalidade, após 18 anos. Staying Alive demonstra ser fruto de um longo período de maturação teórica. O livro é um exemplo de boa escrita sobre um tópico filosófico. Mesmo em passagens onde as ideias expostas pela filósofa não são tão claras, ela as reconhece como ideias que merecem explicações e que eventualmente serão melhor explicadas ao longo do livro. E quando nos deparamos com a filósofa declarando uma frase duvidosa, ela presta um serviço à inteligência de seus leitores, reconhecendo a dubitabilidade da ideia por ela declarada e apresentando razões para que aceitemo-la ‒ ou antecipando que assim será feito no decorrer da leitura.
Além de tratar sobre o tema da pessoalidade e da identidade pessoal, o livro acaba por nos forçar a refletir sobre a metodologia filosófica comumente empregada neste assunto. Como Schechtman destaca, o método comumente empregado em filosofia para tratar o problema da identidade pessoal envolve reflexões acerca de cenários hipotéticos que buscam o tipo preciso de relação, ou relações, que são individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para se obter as condições de persistência de pessoas. Porém, a filósofa quer apresentar razões para que duvidemos desta metodologia, uma vez que entes tão complexos como nós, pessoas, não parecem poder ser compreendidos a partir de um único tipo de relação ou de um conjunto de relações necessárias e suficientes.
Schechtman pretende endossar uma perspectiva bastante original, de acordo com a qual as relações que constituem nossa identidade pessoal estão relacionadas a considerações práticas não por acidente, mas de maneira inerente. Conforme a obra se desdobra, o significado da palavra “inerente” é elucidado. A obra ela mesma pode ser dividida em três grandes partes, como a própria Schechtman destaca. A primeira delas cobre os quatro primeiros capítulos, os quais buscam insights de diferentes visões existentes sobre a identidade pessoal, usando-os para oferecer um quadro geral de nossas identidades a partir de uma conexão com nossas considerações práticas. Schechtman, ao longo de toda a obra, se apresenta como uma filósofa que busca evitar as deficiências e salvaguardar as vantagens relativas de cada teoria por ela abordada. Espera-se, assim, que o resultado final seja bastante satisfatório ‒ tanto quanto se possa ser neste assunto. A segunda parte da obra cobre os capítulos 5 e 6, nos quais a filósofa elabora em detalhes sua própria abordagem, que ela chama de “visão da vida da pessoa” [person life view] (daqui em diante, PLV) que, basicamente, mas de maneira não muito informativa, define a identidade de uma pessoa em termos da unidade de um tipo característico de vida. Em outras palavras, a identidade de uma pessoa é definida por se viver uma vida característica de uma pessoa. Posto desta maneira, a tese é claramente circular, não sendo, portanto, informativa. Porém, é preciso ter em mente que esta é apenas a ideia básica e geral da visão de Schechtman e as minúcias de sua visão revelam uma visão bastante amadurecida sobre o assunto.
A terceira e última parte da obra cobre apenas o capítulo 7. Aqui, a filósofa debate questões ontológicas a respeito da pessoalidade e da identidade pessoal. De acordo com ela, a PLV deve ser encarada como um tratamento a respeito da identidade literal de pessoas, não apenas metafórica ou figurativa. Schechtman acaba por sugerir modificações na própria questão a respeito da identidade pessoal, ou melhor, na maneira como a questão é tradicionalmente colocada.
Os primeiros quatro capítulos buscam dar uma maior precisão na ideia de que fatos acerca da identidade literal de seres como nós estão “inerentemente conectados” a considerações práticas. Para isto, o capítulo 1 inicia discutindo as ideias do filósofo John Locke. Schechtman oferece uma interpretação acerca do tratamento de Locke sobre identidade pessoal que escapa das interpretações padrão, segundo as quais a identidade pessoal pode ser definida em termos de relações puramente psicológicas ou, de maneira ainda mais restrita, relações mnemônicas. Como Schechtman nota, para Locke, “pessoa” é um “termo forense”. Muitos tomam a asserção de Locke como sendo a de que juízos de identidade devem diretamente coincidir com juízos forenses. A esta visão, a filósofa chama de “modelo da coincidência”. No entanto, Schechtman propõe que, embora as evidências textuais não sejam conclusivas, Locke pode ser interpretado como promovendo uma conexão mais substantiva entre identidade pessoal e capacidades forenses—como as de responsabilidade moral e racionalidade prudencial. Segundo ela, o tratamento de Locke para a identidade pessoal em termos de continuidade, ou mesmidade [sameness], de consciência é um tratamento das condições de identidade para aquilo que ela chama de unidade forense [forensic unit]. Deste modo, Schechtman sugere que, para Locke, uma pessoa é um alvo de considerações práticas relativas às suas capacidades forenses. A este modelo, Schechtman dá o nome de “modelo da dependência”, e é basicamente este o modelo que a filósofa quer endossar ao longo da obra, com a diferença de que, para a filósofa, as considerações práticas relevantes para a identidade pessoal vão além das capacidades forenses de uma pessoa.
O capítulo 2 apresenta os chamados “modelos fortes da independência”, para os quais questões sobre identidade pessoal devem ser rigidamente distinguidas de questões práticas, sugerindo, assim, uma divisão do trabalho para cada uma destas questões. Do lado da axiologia, Schechtman apresenta Christine Korsgaard e sua teoria agencial da identidade como a principal representante deste modelo. Do lado da metafísica, a filósofa apresenta Eric Olson e seu tratamento biológico da identidade pessoal como o principal represente deste modelo.
Partindo dos trabalhos de Hilde Lindemann, o capítulo 3 propõe uma ampliação do modelo da dependência que Schechtman favorece para elucidar a conexão inerente entre identidade pessoal e considerações práticas. Para ela, nós devemos ampliar nossa concepção da importância prática da identidade pessoal para além das considerações forenses que herdamos de Locke. Uma consequência desta visão é a de que muitos indivíduos que não seriam considerados pessoas na visão de Locke ‒ tais como lactentes e pessoas com demência ou deficiências cognitivas graves ‒, serão consideradas como pessoas genuínas em seu modelo da dependência ampliada. Pessoas, neste modelo, são loci individuais de interação prática para os quais todo o conjunto de interesses e considerações práticas associadas à pessoalidade são apropriadamente direcionadas. Porém, como a própria filósofa nota, dado o amplo escopo de interesses práticos que nós temos com pessoas, não é imediatamente claro como definir um único locus que é um alvo inerentemente apropriado de todos estes interesses. Este é, de maneira sumarizada, o que Schechtman chama de o “problema da multiplicidade”.
Ao terminar o terceiro capítulo de sua obra, Schechtman deixa por ser respondido três grandes desafios à sua proposta, a saber, o desafio sincrônico da unidade individual, o desafio diacrônico da unidade individual e o desafio da unidade definicional. Enquanto este último é tratado no quinto capítulo da obra, o capítulo 4 se dedica a apresentar duas abordagens que, cada uma à sua vez, podem lançar luz aos dois primeiros desafios. Em particular, Schechtman argumenta que o tratamento da mente corporificada de Jeff McMahan, ou mais especificamente, sua teoria dos interesses temporalmente relativos [theory of time-relative interests], pode lançar luz ao desafio sincrônico da unidade individual. Por outro lado, a abordagem da autoconstituição narrativa, que a própria Schechtman havia desenvolvido em sua obra anterior ‒ The Constitution of Selves (1996) ‒, de acordo com ela, lança luz ao desafio diacrônico da unidade individual.
O capítulo 5 faz uso dos insights ganhos nos primeiros quatro capítulos para avançar o tratamento positivo da identidade pessoal de que Schechtman quer nos convencer, a saber, a PLV [person life view]. Numa formulação circular, não-informativa, desta ideia, pessoas são entidades que vivem tipos característicos de vidas, a saber, “vidas de pessoas”. Na sua melhor expressão, a PLV é formulada como a visão segundo a qual pessoas são entes que vivem uma vida constituída por interações dinâmicas entre funções e atributos biológicos, psicológicos e sociais. Nesta visão, a ideia de que as vidas de pessoas são inerentemente sociais é crucial. Considero que este aspecto da proposta de Schechtman aponta para uma guinada social no debate sobre pessoalidade. Para a filósofa, viver uma vida característica de pessoas envolve ocupar um espaço ‒ o “person-space” ‒ no interior de uma infraestrutura social e cultural do tipo que seres como nós naturalmente desenvolvem. Schechtman toma o cuidado de tornar claro o significado de palavras como “cultura” e “infraestrutura social” aos seus leitores.
No capítulo 6, Schechtman propõe que nós entendamos as condições de perisistência de uma pessoa não em termos de condições necessárias e suficientes, mas como um conjunto de propriedades que se reforçam mutuamente. Para a filósofa, há uma variedade de combinações diferentes de relações às quais colaboram entre si para a manutenção de uma unidade singular, integrada de interação ‒ que é a pessoa. Deste modo, Schechtman propõe que a PLV seja baseada em um modelo de propriedades aglomeradas, de acordo com a qual não há condições necessárias e suficientes para a continuidade de uma pessoa, mas tão somente um aglomerado de propriedades que se reforçam de maneira mútua. No caso de pessoas, como já antecipado pela PLV, estas propriedades envolvem seus componentes biológicos, psicológicos e sociais.
Finalmente, o capítulo 7 se dedica à ontologia das pessoas. De acordo com Schechtman, a PLV é corretamente considerada como um tratamento da identidade literal de pessoas. Para argumentar em favor de seu ponto, a filósofa precisa responder aos desafios que surgem a partir dos defensores do tratamento biológico da pessoalidade ‒ o chamado “animalismo” ‒, tal como defendido por Eric Olson. Algumas possíveis respostas ao animalismo são apresentadas.
Nesta resenha, quero tratar particularmente da proposta positiva de Schechtman para a pessoalidade e identidade pessoal. A meu ver, Schechtman tem razão em destacar que pessoas são entes envolvendo a interação de um aglomerado de propriedades que vão desde seus componentes biológicos até seus componentes psicológicos e sociais. Mais ainda, ela tem razão em destacar que estes componentes não são facilmente isoláveis uns dos outros. Em boa medida, muitos cenários hipotéticos na literatura sobre identidade pessoal desconsideram tanto os componentes biológicos e sociais com os quais pessoas se realizam, quanto a íntima interação entre eles e os componentes psicológicos ‒ o que nos leva ao questionamento da metodologia padrão. Ao fim e ao cabo, Schechtman parece indicar uma abordagem mais antropológica para o problema da identidade pessoal, uma para a qual uma guinada social se faz necessária.
Uma das ideias que Schechtman desenvolve em sua obra é a de que pessoas se tornam pessoas no interior do que ela chama de “person-space”, o qual possui a dinâmica peculiar de autoperpetuar pessoas enquanto pessoas. Apesar de considerar este conceito bastante atrativo, devo dizer que senti falta de um tratamento mais minucioso acerca da dinâmica que o caracteriza e de como um tratamento minucioso desta dinâmica se conecta à guinada social que Schechtman parece favorecer. Explico. Schechtman, ela mesma, reconhece o “person-space” como um espaço autoperpetuador na medida mesma em que serve para o desenvolvimento dos seres que o sustentam (Cf. p. 118) ‒ no caso, pessoas. Ora, se é assim, então a existência de pessoas atípicas enquanto pessoas ‒lactentes, pessoas com severas debilidades cognitivas e pessoas em estado vegetativo persistente ‒ depende ontologicamente da existência de pessoas típicas ‒ pessoas com capacidades forenses ‒, pois, do contrário, a infraestrutura cultural e social que permite a perpetuação das vidas características de pessoas não pode ser satisfeita.
Embora entenda que o ponto de Schechtman seja o de justificar a ampliação da pessoalidade a casos atípicos de pessoas, parece improvável, como já argumentado, que a dinâmica autoperpetuadora do “person-space” seja satisfeita caso muitas ou quase todas as pessoas sejam exemplares atípicos do tipo de entes que somos. Deste modo, para que esta dinâmica seja satisfeita, é preciso que quase todas as pessoas sejam pessoas típicas, i.e., pessoas com capacidades forenses. Se eu estiver certo, então as capacidades forenses de pessoas são base para a dinâmica autoperpetuadora do “person-space”.
Alexandre Ziani de Borba – PPGFil – Universidade Federal de Santa Maria
Ritratti hegeliani. Um capitolo della filosofia americana contemporânea- CORTI- D
CORTI, L. Ritratti hegeliani. Um capitolo della filosofia americana contemporânea. Roma: Carocci Editore, 2014. Resenha de: BAVARESCO, Agemir. Dissertatio, Pelotas, v.47, 2018.
O autor, Luca Corti, tem a seguinte trajetória intelectual: Obteve sua graduação (2008) e o mestrado (2011) em filosofia na Universidade de Florença. O doutorado (2015) realizou-se na Universidade de Pádua, tendo como tema de tese Mind and Method in Hegel’s Philosophy of Subjective Spirit, sendo o orientador o Prof. Luca Illetterati. Corti tem em seu currículo vários pós-doutorados em universidades europeias, além de desenvolver uma ampla pesquisa expressa em artigos, livros e traduções (ver currículo em http://rub.academia.edu/LucaCorti/CurriculumVitae).
O livro Ritratti hegeliani pode ser considerado uma história da filosofia americana sobre Hegel. O autor mantém a boa tradição italiana de escrever histórias da filosofia. O livro é composto de cinco capítulos em cada um trata de um autor. O primeiro é sobre Wilfrid Selars e seu kantismo normativo (p.29 a 58); o segundo descreve a filosofia de McDowell e o seu espaço de razões na experiência (p.59 a 110); o terceiro é a leitura de Robert Brandom sobre Hegel (p.111 a 180); o quarto é a intepretação de Robert Pipin e sua interpretação normativa institucional de Hegel (p.181 a 234); e o último é a leitura de Terry Pinkard entre história e natureza em Hegel (p.235 a 270).
Luca Corti divide a sua pesquisa a respeito da recepção americana de Hegel em três fases que correspondem a três perguntas: 1ª fase: How Hegel Came to America? Esta fase corresponde a primeira metade do século XIX em que alguns filósofos americanos adotam em seu trabalho algumas ideias alemãs, entre os quais William T. Harris e Henry C. Brokmeyer. Eles foram os primeiros a engajar-se num projeto de tradução de Hegel e sua abordagem é mais eclética do que propriamente filosófica.
A 2ª fase: How Hegel Left America? A resposta foca-se a partir de dois grandes filões da tradição americana: o pragmatismo e a filosofia analítica. Do lado do pragmatismo menciona-se William James que tem uma fase mais crítica e depois de reconciliação em relação a Hegel. Porém, outros pragmatistas como J. Dewey e Charles Peirce têm uma relação mais articulada com o pensamento hegeliano. Do lado da filosofia analítica, mais anti-hegliana temos Moore (Refutation of Idealism) e Russell. Segundo Corti estas duas fases são um tanto ignoradas nos departamentos de filosofia americanos ao longo do século XX. Enfim na 3ª fase: How Hegel Came Back to America? Para Corti, esta fase trata da recepção de Hegel feito pelo mainstream filosófico americano nos últimos 40 anos, cujo livro será dedicado a descrever os cinco autores principais deste período: Sellars, McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard.
No começo dos anos 50, há um renascimento dos estudos hegelianos inspirados pela pesquisa de Sellars que admira Hegel, embora o cite raramente. Porém, as raízes históricas e teóricas deste renascimento encontram-se em Sellars, cujos autores McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard de uma forma ou de outra inspiram-se. Corti afirma que tentará elaborar uma síntese reconstrutiva das suas interpretações e dos debates que gravitam ao seu redor, respondendo a duas questões: “Como Hegel retornou aos Estados Unidos”, mas sobretudo: “Qual Hegel retornou ao centro das atenções nesse contexto filosófico?” (Idem, p.19).
Cabe ponderar que segundo Corti, embora a relação daqueles autores com Sellars seja fundamental, ele não é o único, mas também há a influência do segundo Wittgenstein e da tradição analítica, e de Charles Taylor e de Klaus Hartmann e John N. Findlay que já nos anos 50 e 60 traziam da Europa uma nova leitura de Hegel.
Há um debate sobre a etiqueta da Escola de Pittsburgh e o círculo sellarsiano. Alguns começaram a chama-la de “Escola neohegeliana de Pittsburgh” ou “neohegelianos de Pittsburgh”. Porém, nem todos os membros sentiram-se identificados com tal etiqueta, como por exemplo McDowell. Por isso, eliminou-se o adjetivo hegeliano e manteve-se apenas “Escola de Pittsburgh”.
Para Corti trata-se de constatar qual é o modo peculiar de relação desses autores com a história da filosofia, ou seja, de ler os textos da tradição, ao mesmo tempo, de um modo original e controverso. Sellars tinha um grande interesse pela história da filosofia afirmando que “sem história da filosofia, a filosofia, se ela não é cega ou vazia, pelo menos é muda” (Idem, p.21). Face às variadas leituras propiciadas pela abordagem histórica surge a questão: “Mas isso é realmente Hegel?”. Temos abordagens opostas: ou a crítica frontal que coloca os limites histórico-filológicos de tais leituras e uma aparente estranheza ao texto hegeliano (“este não é o verdadeiro Hegel”); ou então, a adesão ao novo modo de ler os textos, as vezes até fazendo Hegel um predecessor da filosofia analítica (ver p.23). Conti entende que a alternativa não se dá entre esses dois tipos ideais de abordagens, mas explicitando, dialeticamente, suas teorias e leituras históricas.
Tendo presente estes pressupostos, Luca Corti apresentará Sellars e sua interpretação de Kant, pois esta é fundamental para compreender os desdobramentos posteriores e os “retratos” elaborados por McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard. Para elaborar os referidos retratos, Corti apresenta de cada autor, em primeiro lugar, o quadro teórico e os temas de fundo, os aspectos mais discutidos e a herança histórica mais relevante. Depois, ele irá verificar como estes elementos se traduzem na leitura de Hegel. O objetivo de tais retratos é aproximar o leitor dos autores e também fazer emergir algumas semelhanças e problemas comuns entre eles. O esforço é fundir os vocabulários pertencentes a duas tradições distantes: o léxico hegeliano e a tradição do campo analítico.
A chave de leitura e o fundo teórico, segundo Corti, que une estes autores é a normatividade. O tema da ‘norma’ é central neste livro: “Todos os nossos autores partilham a ideia de que o pensamento e a ação sejam fenômenos do tipo normativo, relacionadas ao nosso seguimento de regras” (p.26). Cabendo distinguir que a ordem normativa não se reduz à ordem natural, ou seja, como Sellars diferenciava entre o “espaço das razões”, de natureza normativa, e o “espaço das causas”, próprio das explicações naturais.
O conceito de ‘regra ou norma’ é o que faz a ponte para a interpretação dos textos do idealismo alemão. Sellars aplicará a teoria normativa dos conceitos na leitura de Kant, abrindo a estrada para a passagem a Hegel realizado pelos seus sucessores: “A tese comum a todos estes autores é que Geist é, precisamente, o termo hegeliano para indicar uma dimensão normativa não naturalizável, figura fundamental da racionalidade prática e conceitual” (p.26).
Os termos regra e norma assumem significados múltiplos e controversos: O que são as normas? Qual é o seu estatuto? Como compreender fenômenos enquanto intencionalidade, o conhecimento perceptivo e o significado em termos normativos? As respostas a estas perguntas colocam em diálogo Hegel e Wittgenstein. Para isso é necessário retornar a Sellars e ver como ele aproxima Wittgenstein de Kant que ensina como seguir uma regra e, também, como Kant dialoga com Wittgenstein encontrando o pragmatismo. “Um encontro que produziu visões tão originais, fazendo do filósofo vienense o meio para um diálogo entre o pragmatismo e a filosofia clássica alemã” (p.27).
O livro de Luca Corti é uma obra que nos permite conhecer, de modo sistemático, uma das atualizações hegelianas contemporâneas muito importante: a recepção norte americana. O autor tem o mérito de apresentar os autores de modo didático, introduzindo a teoria de cada autor e a sua relação com Hegel. O leitor pode seguir os passos de apresentação do autor, pois ele usa um estilo simples e direto, evitando diletantismos ou informações desnecessárias, não perdendo o foco de sua pesquisa. Recomendo a leitura dessa obra incontornável para quem necessita conhecer a recepção hegeliana norte-americana.
Agemir Bavaresco – Pontifícia Universidade Católica – RS.
Spinoza como educador – RABENORT (CE)
RABENORT, William. Spinoza como educador. Pref. Juliana Merçon; introd. Trad. Bras. Fernando Bonadia de Oliveira; tradução para o português GT Benedictus de Spinoza; coordenação Emanuel Angelo da Rocha Fragoso/Francisca Juliana Barros Sousa Lima. – 1.Ed. – Fortaleza: EdUECE, 2016. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.38, jan./jun., 2018.
O mesmo interesse pedagógico despertado pela filosofia de Espinosa na primeira década do século passado, período em que William Louis Rabenort publica “ Espinosa como educador ”(Spinoza as educator), reaparece aqui no Brasil no presente momento. A tradução realizada pelo Coletivo GT Benedictus de Spinoza, sob a coordenação do Prof. Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e da Profa. Francisca Juliana Barros Sousa Lima, tem como objetivo reconstituir esse primeiro encontro das ideias de Espinosa com o campo da educação. É bem verdade que o filósofo do “infinito atual” ou do Deus sive Natura desperta um interesse mais pela profundidade e rigor de sua ontologia e a agudeza de sua análise política, do que propriamente de sua relação com a pedagogia ou escritos sobre a educação. Entretanto, é a própria filosofia de Espinosa que nos faz perceber que essas divisões de ciências ou saberes, na verdade, não se põem. Tudo o que existe, existe necessariamente e todas as relações existentes se conectam e se interconectam umas às outras, num turbilhão de causalidade que tem como único fundamento a substância absolutamente infinita. Sendo assim, se a educação não pode ser pensada sem relacioná-la à política, por que não pensar estes campos do conhecimento imersos numa ontologia do necessário? A maestria com que Rabenort conduz o leitor, interconectando a ontologia, a política e a educação em Espinosa, faz do seu livro uma obra necessária para os professores de filosofia e pedagogos repensarem os caminhos da educação. A tradução de Rabenort que vem a lume, e que tem como objetivo essencial contribuir para a elaboração de uma teoria da educação em Espinosa, talvez seja o início da percepção da importância da sua filosofia também para os educadores.
Em seu primeiro capítulo, intitulado “A possibilidade da Educação”, Rabenort confessa que em suas obras Espinosa não se preocupou explicitamente nem com a educação nem com as crianças. Entretanto, Rabenort chama a atenção para o fato de que a educação precisa ser pensada num âmbito maior que aquele circunscrito pela infância: “A educação é mais ampla do que a infância e o interesse de Espinosa deve ter sido pelos adultos.” (Rabenort, 2016, p.65 66). Não seria mais coerente educar os adultos para que posteriormente houvesse a possibilidade de os adultos educarem as crianças e jovens? Apesar de afirmar a incapacidade do vulgo para questões filosóficas, Rabenort nos convence de que Espinosa atesta a possibilidade de educação pela relação que manteve com seus amigos e correspondentes. É através da atitude pessoal do filósofo que podemos perceber a importância da educação implicada em seu sistema filosófico, já que Espinosa não deu um tratamento sistemático ou explícito para a educação.
Na filosofia de Espinosa os conceitos de necessidade e impossibilidade têm um significado universal, pois eles se aplicam a Deus e ao todo da natureza na qual o homem é apenas uma partícula. Sendo assim, é através dos conceitos de possibilidade e contingência, que possuem significado apenas para a existência humana, que devemos pensar a possibilidade de educação do homem numa doutrina construída a partir da ideia de necessidade: “A educação, até agora, está posta além da interferência humana. O professor deve ir com a maré, cujo fluxo é determinado pela configuração do universo” (Rabenort, 2016, p. 79). Visto que a capacidade de conhecimento do homem é limitada, o conhecimento absoluto e eterno é contrário à natureza humana.
No segundo capítulo, intitulado “Os elementos da Natureza Hu mana”, Rabenort introduz o leitor aos principais conceitos de Espinosa em relação ao lugar dos seres humanos como parte da Natureza sujeitos às leis de causa e efeito. Ele esclarece como são definidos os conceitos de essência, existência, causalidade, substância, atributos, a relação entre a mente e o corpo, além de enfatizar a importância que o corpo possui na filosofia espinosana destacando sua concepção de imaginação, memória e modos de conhecimento. Diferentemente de toda a tradição filosófica, para Espinosa não há abismo entre a mente e o corpo: ambos são a expressão de atributos que são diferentes mas que constituem a essência de uma mesma substância, isto é, Deus.
No terceiro capítulo, intitulado “A supremacia do intelecto”, Rabenort realiza o estudo da atividade natural do pensamento, a maneira como ele opera e a relação do pensamento com o seu objeto e conteúdo. A complexa teoria do conhecimento em Espinosa é analisada em sua distinção entre ideias adequadas (razão/intuição) e as ideias inadequadas (imaginação). O pedagogo enfatiza a importância da formação das noções comuns em Espinosa como base do raciocínio de todos os homens, visto que tais noções integram dentro de seu sistema o limiar entre imaginação e razão. Sem dúvida, na filosofia de Espinosa há uma semelhança entre raciocínio e causalidade, pois “nomear uma causa é oferecer uma razão” (RABENORT, 2016, p. 136) . A experiência nos fornece o conhecimento das coisas finitas existentes enquanto a razão faz perceber as coisas sub quadam species eternitatis .
O quarto capítulo é dedicado a pensar “As complicações de personalidade” que, segundo Rabenort, constituem a base da teoria política de Espinosa. Como bem analisa em seu livro, as diferenças de personalidade entre os homens são causadas por causas externas, as quais modificam seus respectivos desejos, já que estes são a essência do homem. Assim, a composição das forças externas que moldam a afetividade e que causam as diferenças de personalidade e disputas entre os homens prejudicam a possibilidade de sua união. Entretanto, Espinosa concorda com a definição de que o homem é um ser social, visto que a teoria educacional implícita na obra de Espinosa nos conduz à percepção de que nada é mais útil ao homem do que outro homem. Tanto a política quando a educação devem nos conduzir a essa compreensão: “o homem é um Deus para o homem”.
É apenas no último capítulo, “Os critérios da educação”, que Rabenort analisa de fato o problema da educação na filosofia de Espinosa. Pelo fato do homem ser um membro da sociedade, ele não existe isoladamente, mas em cooperação e harmonia com outros como ele. Rabenort propõe a tese de que Espinosa foi verdadeiramente tanto um professor quanto filósofo. É através da distinção entre experiência e razão, como duas formas de consciência, que podemos classificar o processo educacional em Espinosa. A base do currículo seria composta pela prioridade que Espinosa outorga aos dois itens da experiência: as relações sociais e a preservação da vida e da saúde. A habilidade política é entendida como o primeiro desejo que a educação deveria estimular. Porém, o curriculum, propriamente dito, é o próprio professor, pois ele tem a aptidão em auxiliar os homens para o exercício de seu poder racional: “O professor é a pessoa a quem é delegada, em razão da aptidão especial para a tarefa, a função da sociedade, que consiste em ajudar os homens a exercerem o seu poder de forma racional” (Rabenort, 2016, p. 186 – 187) . Apenas o conhecimento da experiência não é suficiente para tornar o homem consciente de si, será necessário conduzir os homens ao entendimento da união que existe entre a mente e a natureza inteira. Como vimos, o homem possui naturalmente a predisposição para a sociabilidade e desenvolvimento da razão; sendo assim, o professor deve apenas desenvolver o fortalecimento que a certeza racional pode proporcionar. Rabenort alerta que tanto a razão quanto a intuição (insight), embora também envolvam cooperação, devem ser o exercício da energia humana autoiniciada e autocontrolada: “A educação, para merecer esse nome, deve ser autoeducação (self-education).” (Rabenort, 2016, p. 201) . Portanto, o obra de Espinosa contempla a atividade essencial da educação que nada mais é do que o ensinar e o aprender entre homens que se dedicam ao conhecimento da Natureza. Numa sociedade em que os homens cada vez mais desenvolvem aversão à política e a desvalorização dos professores, esta obra torna-se fundamental.
Referências
RABENORT, William (2016). Spinoza como educador. Pref. Juliana Merçon; introd. Trad. Bras. Fernando Bonadia de Oliveira; tradução para o português Coletivo GT Benedictus de Spinoza; coordenação Emanuel Angelo da Rocha Fragoso/Francisca Juliana Barros Sousa Lima. – 1. Ed. – Fortaleza: Eduece, 2016.
Juarez Lopes Rodrigues – Doutorando Universidade de São Paulo. E-mail: juarez.rodrigues@usp.br
Teoria da religião – BATAILLE (AF)
BATAILLE, G. Teoria da religião. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015. Resenha de: CAMILO, Anderson Barbosa. Artefilosofia, Ouro Preto, n.23, dez., 2017.
A recente publicação no Brasil de Teoria da religião de Georges Bataille pela editora Autêntica, com a competente tradução de Fernando Scheibe, traz uma edição ímpar deste escrito. Além de disponibilizar de modo integral o texto Teoria da religião, a presente edição dispõe da famosa conferência Esquema de uma história das religiões, proferida em 1948 no Collège Philosophique em Paris, na qual Bataille expôs noções chaves que posteriormente desenvolveu no manuscrito de Teoria da religião, redigido no mesmo ano, logo após esta conferência que “serviu de embrião ao livro” (p. 7), como diz Fernando Scheibe. É interessante ressaltar que a presente edição de Teoria da religião contém a presença das notas extraídas do volume VII das Obras Completas de Bataille, e também a inclusão das “Notas do editor francês”. Percebe-se nitidamente um empenho da editora Autêntica de apresentar ao público uma edição que proporcione uma leitura mais rica e frutífera de Teoria da religião, oferecendo ao leitor, num único volume, não somente o texto integral, mas, também, as notas adicionais e a mencionada conferência que originou o escrito.
Originalmente publicado pela editora francesa Gallimard em 1974, Teoria da religião veio a público após 12 anos da morte de Georges Bataille. Trata-se, portanto, de um escrito póstumo e que podemos considerá-lo abandonado, pois, como consta na “Nota do editor francês”, “[…] este texto estava destinado à coleção ‘Miroir’ [Espelho] das Edições ‘Au masque d’Or’ (Angers) ” (p. 11, grifo original), que não chegou a ser enviado em sua versão final. Bataille enviou para o editor um manuscrito incompleto, prometendo posteriormente enviar um quadro e mais algumas páginas. Assim, a publicação de Teoria da religião pela coleção “Miro ir” não foi concluída, desconhecendo-se o real motivo, mas vale salientar que o mencionado escrito de Bataille é citado diversas vezes nos planos para compor a Suma Ateológica (p. 11).
Por ser composto no diálogo da filosofia com a antropologia e da história da religião com a economia e com a sociologia, trata-se de uma obra plural que afirma o caráter incompleto e insuficiente dos pretensos discursos unilaterais sobre o ser humano. Mesmo assim, multifacetado, o pensamento de Bataille se esforça para permanecer numa constante: ser um pensamento aberto, “ móvel ”, pois um pensamento que se quer atrelado às vicissitudes da existência não pode se querer acabado, fechado. “[…] procurei exprimir um pensamento móvel, sem buscar seu estado definitivo” (p. 19), diz Bataille sobre seu escrito.
Como aponta o título do livro, vemos o desenvolvimento de uma teoria da religião que pode ser entendida como uma teoria sobre o sentimento religioso a partir da experiência da imanência ou da intimidade. Para Bataille, a religião responde a uma “busca da intimidade perdida” (p. 47). No percurso de sua argumentação, o autor se esforça por mostrar como a relação do homem com o domínio da imanência ou da intimidade, que é o fundamento da experiência do sagrado, se origina nas sociedades primitivas e quais lugares essa relação ocupa ao longo da história, do surgimento e do desenvolvimento das religiões, indo até a era industrial.
Para dar conta desta abordagem, Teoria da religião é constituída por duas partes. A primeira, intitulada “Dados fundamentais”, trata da construção de um quadro em que os conceitos de animalidade, intimidade, imanência, sacrifício, profano e sagrado são explicados. No início da primeira parte, Bataille afirma que o domínio da imanência é o da situação animal. “[…] a animalidade é a imediatez ou a imanência” (p. 23). A situação animal se passa num plano de indistinção na medida em que não há relação entre sujeito e objeto, isto é, não há a relação em que o objeto é posto por um sujeito que se sabe diferente do objeto. Assim, fundamentalmente, a noção de distinção é pensada.
Acrescenta-se a isso que a duração temporal do objeto é condição necessária para que ele seja posto enquanto tal: “É na medida em que somos humanos que o objeto existe no tempo em que sua duração é apreensível” (p. 24). Para a animalidade não existe a consideração do tempo por vir, portanto, não existe relação entre sujeito e objeto, não existe “[…] nada que possa estabelecer de um lado a autonomia e do outro a dependência” (p. 24).
A continuidade indistinta é o princípio fundamental da animalidade, de modo que Bataille afirma: “todo animal está no mundo como a água no interior da água ” (p. 24, grifo original). É impossível falar da situação animal com precisão, senão de modo poético, “[..
.] visto que a poesia não descreve nada que não deslize para o incognoscível” (p. 25). A animalidade apresenta-se a nós como “um enigma bem embaraçoso” (p. 25).
A partir dessas noções Bataille distingue o mundo humano em contraposição à situação animal. Se a animalidade está imersa numa continuidade, isto é, indistinção, o mundo humano está dado numa descontinuidade, e enquanto tal se configura a partir da posição do objeto enquanto diferenciado da consciência, como não-eu. Assim também o sujeito se faz conhecedor, pois conhece a si mesmo como um outro: “Isso quer dizer […] que só passamos a nos conhecer distinta e claramente no dia em que nos percebemos de fora como um outro” (p. 31).
Nessa perspectiva, a relação do sujeito com o objeto se dá no domínio da utilidade, pois foi na finalidade de manter-se viva que a humanidade estabeleceu sua relação com o mundo. É no plano da fabricação de ferramentas e da utilidade que a humanidade se tornou possível, e é nesse plano que se originou o sujeito conhecedor. Na medida em que transforma a natureza em algo que serve, o homem se coloca como peça fundamental nessa lógica dos meios para os fins, pois ele também está servindo a uma finalidade. Desta maneira, na relação útil com o objeto, o homem também torna-se uma coisa útil.
A questão principal nesta abordagem batailleana é que, no percurso histórico, mesmo a humanidade se realizando no mundo das obras úteis, no mundo profano, ela em alguma medida responde à imanência indistinta, ela responde à sua intimidade mais profunda, e passa a dar origem a um mundo “espiritualizado”, com a representação de um “Ser supremo”, depois animais e plantas dotadas de espíritos e, finalmente, a representação mítica do mundo através de deidades. É nessa perspectiva que o problema do sa grado é introduzido. O sagrado está relacionado à imanência e à continuidade, de modo que, para Bataille, o sentimento do sagrado, que responde à intimidade do homem, está imbuído de angústia, pois o sagrado é contraposto ao mundo profano que obedece ao imperativo da utilidade dando continuidade às possibilidades da vida gregária.
As práticas relacionadas ao sagrado, ao sacrifício e à festa não acontecem senão ao preço do mal estar e do medo, adquirido pelo homem que é arrancado do plano ordenado das obras úteis e levado ao domínio da intimidade e da imanência que põe em risco a duração da vida pela presença da morte. Nessa perspectiva, o sacrifício é pensado como uma prática que se determina como destruição do caráter de coisa da vítima. “É a coisa – somente a coisa – que o sacrifício quer destruir” (p. 39). Porém, o sacrifício se dá ao custo de retirar a vítima realmente do mundo das coisas, matando-a, fazendo-a voltar à intimidade, ao mundo sagrado dos deuses, e isso só é possível na medida em que o sacrificador pertence a esse mundo, “[…] ao mundo da generosidade violenta e sem cálculo” (p. 39).
O que há de mais importante na análise sobre o sacrifício em Teoria da religião é a destruição do laço entre o homem e o mundo da utilidade, o mundo da possibilidade da vida: “[…] o sacrifício vira as costas para as relações reais” (p. 40). Isto, no entanto, não acontece sem angústia, pois o medo da morte permeia o mundo das coisas de tal forma que uma prática que instaure a presença da morte só pode ser concebida com medo. “O homem tem medo da ordem íntima que não é conciliável com aquela das coisas” (p. 44). A ordem íntima para os primitivos está ligada à ordem mítica, e esta se contrapõe ao mundo real, a ordem mítica (íntima) é a negação da ordem real.
Segundo Bataille, na vida cotidiana a presença da ordem íntima é como uma sombra, traz consigo apenas a potência da morte que destrói o primado da duração, que é o fundamento da posição objetiva do mundo das coisas. O caráter devastador da morte é a todo o momento amortecido na ordem das coisas, a neutralização da vida íntima faz da morte algo irreal, mas quando ela se faz realmente presente, “[…] a morte mostra de repente que a sociedade mentia” (p. 41).
Georges Bataille compreende que a neutralização da intimidade pelo primado da duração na ordem real das coisas, por medo da morte, na realidade é a neutralização da vida, de modo que afirma: “[…] é claro que a necessidade da duração nos furta a vida e que, em princípio, só a impossibilidade da duração nos libera” (p. 42). É difícil para Bataille falar da intimidade, pois é impossível exprimi-la discursivamente. Ela é a ordem do desencadeamento violento das paixões, no sentido mais extremo de violência; é a ordem da intensidade de vida nas fronteiras da morte. A intimidade é paradoxal, “porque não é compatível com a posição do indivíduo separado” (p. 43), ou seja, o estatuto da experiência da intimidade é impossível. O que está jogo para Bataille é que o homem primitivo se via perante um impasse existencial: de um lado, o ímpeto para a imersão na intimidade e continuidade comandado por uma violência interior, e por outro, a satisfação das necessidades materiais guiada por uma vontade sempre crescente da racionalidade calculadora que neutraliza os instantes de intensidade da vida.
A festa é uma prática que tentou solucionar esse impasse, na medida em que nela explode uma aspiração à destruição, “[…] mas é uma sabedoria conservador a que a ordena e a limita” (p. 45). Nela as possibilidades de consumo são proporcionadas pelo desencadeamento das diferentes artes, por exemplo, dança e poesia, mas o limite desse desencadeamento da festa se determina na medida em que o mundo das coisas ainda deva ser assegurado. Só assim a festa é suportada.
Este quadro esboçado sobre a relação entre sagrado e profano traduz a incompatibilidade e atração da consciência clara e distinta frente ao domínio da intimidade. Essa incompatibilidade é a perspectiva a partir da qual Bataille afirma sua teoria da religião nos seguintes termos: A religião, cuja essência é a busca da intimidade perdida, se resumiu ao esforço da consciência clara que quer ser inteiramente consciência de si: mas esse esforço é vão, já que a consciência da intimidade só é possível no nível em que a consciência não é mais uma operação cujo resultado implica a duração, ou seja, no nível em que a clareza, que é o efeito da duração, não é mais nada (p. 47).
O problema ao qual o livro se concentra é o da humanidade querer, através da religião, a intimidade pela consciência clara e distinta, mas tal operação é impossível, pois a humanidade extraviou a intimidade, a negou para permanecer na consciência clara das coisas. No final do livro, Bataille afirma que a fraqueza das religiões, na medida em que não tentaram modificar a ordem das coisas, consiste em reduzir a ordem íntima à ordem real (p. 72), ligando cada vez mais o sagrado a operações produtivas ao longo da história. E o princípio fundamenta l desse problema é o da relação entre sujeito e objeto que está imerso no domínio da utilidade.
Cada vez mais a humanidade aumentou o abismo entre o homem e a sua intimidade indistinta, separou cada vez mais o homem daquilo que ele é (p. 47). As sociedades de combate, mesmo tentando corresponder à exigência de consumo da ordem mítica, não suportaram as práticas cruéis de tal consumo violento, que, nascidas da angústia, geravam uma angústia ainda maior em meio ao desenvolvimento material do mundo das obras úteis graças à empresa da guerra. “O primado do consumo não pôde resistir ao primado da força militar” (p. 50).
Na segunda parte do livro, intitulada “A religião nos limites da razão (Da ordem militar ao crescimento industrial)”, o autor faz uma análise do distanciamento cada vez mais crescente entre o homem e a sua intimidade no curso do desenvolvimento econômico das sociedades. As sociedades de combate que fizeram da conquista e da expansão territorial uma operação metódica, tornam-se impérios. O império era a ordem militar que “pôs fim aos mal-estares que respondiam a uma orgia do consumo” (p. 53). A representação do império é de uma “coisa universal”, a essência do império não está em dar a vez ao desencadeamento do consumo violento, mas está em desviar a violência para fora dele mesmo.
No império, o divino realiza atividades operatórias, isto é, está reduzido ao real. Origina-se, segundo Bataille, uma visão dualista do mundo: o divino é transcendente e o real é imanente (p. 57). O homem do império é dualista, é o homem do direito e da moral, diferente do arcaico, pois o homem do império é o homem da consciência reflexiva, desviado dos ritos de retorno à intimidade indistinta. Para o homem dualista, o sagrado (inteligível) está fora, é inacessível, está além, e nisso o divino é “moralizado”, o transcendente é fasto e o imanente é nefasto. Esta atribuição de valores ao sagrado e ao profano é resultado da redução do sagrado à ordem universal da razão pela moral. No império, os homens “[…] racionaliza m e moralizam a divindade, no próprio movimento em que a moral e a razão são divinizadas” (p. 56). A moral tem em vista regras para salvaguardar a vida dos indivíduos no futuro por vir, e por isso condena o consumo violento da intimidade. “Ela [a moral] condena as formas agudas da destruição ostentatória das riquezas. Condena de modo geral todos os consumos inúteis” (p. 56).
Como Bataille tem em vista falar, em Teoria da religião, da experiência da consciência com a intimidade, e com isso pretende fornecer um quadro geral, ele não se detém em nomear quais são as religiões dos homens dualistas, mas, na conferência Esquema de uma história das religiões, Bataille se refere explicitamente ao islã e ao cristianismo (p. 132-133).
No mundo das mediações, que caracteriza essas religiões, as obras da “salvação”, que é para elas a intimidade (p. 64), pertencem à lógica dos meios para os fins graças à moral, que cada vez mais reduziu o divino a operações eficazes. No mundo da mediação, mundo das obras, “[…] a salvação é buscada como se fia a lã” (p. 65).
Segundo Bataille, o universo material passa a ser rechaçado em sua participação com o sagrado, a lógica da eficácia se atenua a tal ponto que o “valor divino” das obras é negado, tudo o que diz respeito ao sagrado é abandonado no além e tudo o que diz respeito ao mundo das obras é isolado no aquém. Esse mundo das obras, diz o autor, “[…] não tem outro fim senão seu próprio desenvolvimento. A partir de então, só a produção é, aqui embaixo, acessível e digna de interesse” (p. 66).
O que passa a existir então é um “reinado das coisas autônomas”. Por esse caráter se define, segundo Bataille, o mundo do crescimento industrial, o da total cisão da ordem íntima com a ordem real. Claramente é o resultado do movimento do princípio da operação produtiva desde o império que “[…] dominou de maneira feral a consciência” (p. 67).
Bataille vê no crescimento industrial, que caracteriza a era capitalista, uma radical mudança de posição com relação ao consumo improdutivo das riqueza s excedentes, normalmente destinado ao sagrado, pois “[o] excedente da produção pôde ser consagrado ao crescimento do equipamento produtivo, à acumulação capitalista (ou pós-capitalista)” (p. 68).
Dessa forma, neste momento do livro, o autor afirma, de modo lapidar, a total subserviência do homem à lógica da eficácia. Há um abandono da vida “[…] a um movimento que ele [o homem] não comanda mais” (p. 68). Eis o grande “negócio” incontrolável que tem a força de direcionar todas as instâncias da vida à contínua produção, em que se torna latente a “soberania da servidão”, e não há nada que arruíne este negócio. Numa lucidez desoladora, Bataille afirma que não há outro modo de ser, seria muito difícil um outro encaminhamento das coisas, pois, “comparado ao crescimento industrial o resto é insignificante” (p. 69).
Á guisa de conclusão da segunda parte de Teoria da religião, o problema da religião é retomado, apontando para o fato de que a verdade da religião não faz mais sentido. “A busca milenar pela intimidade perdida é abandonada pela humanidade produtiva” (p. 68). O problema da religião alcança seu ápice de problematização no livro quando são tratados aspectos do crescimento industrial, uma vez que nesse momento histórico “[…] o homem se afasta de si mesmo m ais do que nunca” (p. 68). No entanto, o caráter de irrealidade que agora se confere a todo o resto contrário à produção não aniquila a existência desse outro. E então a perspectiva sobre o problema da religião muda, pois, por mais que haja a redução do homem para a operação produtiva, não se pode “evitar que haja nele alguma ligação entre a operação e a intimidade” (p. 72). É fraca a ordem íntima no mundo da consciência clara, não passa de balbucios. Mas a força desses balbucios encontra-se no fato de serem incomuns ao mundo da produção, são estranhos, pois representam a oposição da intimidade à ordem real.
Georges Bataille coloca em evidência o erro que proporcionou o “reinado da soberania produtiva”, a saber: a humanidade, a partir do sentimento do sagrado, representou cada vez mais a intimidade à luz da consciência clara. Mas isso traz um paradoxo, pois a possibilidade contrária é de antemão excluída pela contraposição entre intimidade e ordem real. As religiões fracassaram ao tentarem solucionar seu problema fundamental, de buscar a intimidade perdida, e acabaram por afirmar a ordem das coisas e a ela reduzir a ordem íntima. “No final, o princípio de realidade triunfou sobre a intimidade” (p. 72). O conhecimento distinto, ligado à ordem real, se difere da ordem íntima pelos modos de existência no tempo. “A vida divina é imediata, o conhecimento é uma operação que exige a suspensão e a espera” (p. 71).
Assim, Bataille coloca como possibilidade a restituição da ordem íntima no plano da consciência clara se a consciência deixar de iluminar a intimidade com a luz que pretende fundamentar um saber, e então dê lugar ao “não saber”. A intimidade pode ser restituída se a consciência clara mergulhar na obscuridade da intimidade. Tal possibilidade de restituição da intimidade só se dá pela consciência de si. “A consciência de si escapa assim do dilema da exigência simultânea da imediatez e da operação” (p. 71).
Georges Bataille não define claramente o que entende por consciência de si em Teoria da religião, mas, para o autor, diferentemente da satisfação da consciência no saber absoluto, a consciência é consciência de si quando encontra a sua verdade no não-saber. A consciência de si não soluciona o paradoxo fundamental da teoria da religião, mas desvia dele numa operação impossível. E nesse desvio a ordem das coisas não é destruída, mas reduzida à ordem íntima. O que a consciência submissa à ordem das operações produtivas pode fazer, segundo Bataille, é “[…] proceder à operação contrária, a uma redução da redução ” (p. 72), em suma, é levar a operação ao seu limite, e então a consciência se encontrará “[…] reduzida àquilo que ela é profundamente” (p. 72). É no reencontro com a intimidade em sua noite que ela, a consciência, “[…] completará tão bem a possibilidade do homem ou do ser que reencontrará distintamente a noite do animal íntimo no mundo – onde ela entrará ” (p. 72).
A destruição geral das coisas é condição para a consciência de si, é a operação contrária. Bataille alude à imagem do copo com vinho sobre a mesa para afirmar como essa destruição pode ocorrer. Os objetos que rodeia os homens são frutos do trabalho. Uma cama, uma mesa, uma cadeira. Alguém os fez para um outro comprar e usufruir, e o dinheiro de compra foi fruto de um trabalho. O que está em jogo é um conjunto de atividades que tem seu sentido num tempo por vir, trabalhar para receber dinheiro, fazer mesas para vender, etc. A mesa e a cadeira podem proporcionar dinheiro a um pensador, pois escreverá usando a mesa e a cadeira. E o pensador pagará o açougueiro pela carne, e assim o encadeamento do trabalho se perpetua. Mas, quando se coloca um copo com vinho sobre a mesa, esta já não serve mais para o trabalho, e sim para o consumo do vinho. Segundo Bataille, quando isso acontece, a mesa é destruída, isto é, nela todo o encadeamento do trabalho a que pertencia é destruído. E tudo isso em prol de uma fruição, de um desencadeamento que respondeu à ordem do instante e não mais do tempo por vir: beber um copo de vinho. “[…] todas as tarefas que me permitiram chegar a isso são destruídas de chofre, esvaziam-se infinitamente como um rio no oceano desse instante ínfimo” (p. 73). Pode ser uma destruição em ínfima escala, mas é nessa ínfima escala que, por um instante, a relação entre sujeito e objeto mudou. U m objeto não foi posto como tal, escapou do encadeamento da duração, uma vez que o resultado esperado no futuro pertenceu, por um momento, à fruição do instante. Por um momento o por vir foi aniquilado e somente o instante foi afirmado. Todo o tempo do esforço laboral não foi nada diante desse instante.
Portanto, segundo Bataille, a dissolução dos objetos no instante íntimo é o fundamento da consciência de si, “[…] é a negação da diferença entre o objeto e eu mesmo ou a destruição dos objetos como tais n o campo da consciência” (p. 74). E a destruição dos excedentes da produção pode manter o movimento da economia, segundo uma inversão fundamental, a do consumo improdutivo, na medida em que “[…] a produção excedente fluirá como um rio para fora ” (p. 74, g rifo original). Assim, a permanente destruição dos objetos produzidos dissolverá a diferenciação entre sujeito e objeto, de modo que a destruição do objeto no plano da consciência clara implica na destruição do sujeito. Mas, nessa operação contrária, “[…
] os objetos efetivamente destruídos não destruirão os homens” (p. 74). A realização do homem, consciência que se torna consciência de si, se dá na destruição do objeto, no contrário do que constitui a operação útil.
Teoria da religião parece tratar de uma aposta, e o que Bataille quer afirmar, com essas asserções acerca da destruição dos objetos no plano da consciência clara, é uma vida humana não submissa ao primado da utilidade, em que o homem deixe de ser uma coisa subjugada. É um pensamento “[…
] para quem a vida humana é uma experiência a ser levada o mais longe possível ” (p. 77, grifo original). Somente na consciência de si o homem pode ser soberano, restituindo a totalidade à sua vida. Assim o autor define o que é a soberania: “Soberania designa o movimento de violência livre e interiormente dilacerante que anima a totalidade, dissolve-se em lágrimas, em êxtase e em gargalhadas e revela o impossível no riso, no êxtase e nas lágrimas” (p. 78).
Georges Bataille conclui seu escrito com algumas considerações críticas sobre o método de abordagem feito por ele mesmo, e traz uma lista de referenciais teóricos que o ajudaram a fomentar o seu pensamento acerca do impasse existencial entre ordem íntima e ordem real. Neste referencial teórico destacam-se: Introduction à la lecture de Hegel, de Alexandre Kojéve; Les formes élémentaires de l avie religieuse, de Émile Durkheim; La doctrine du sacrifice dans le brahmanas, de Sylvain Lévi; Essai sur le don, de Marcel Mauss; Di e protestantiche Ethik und der Geist des Kapitalismus, de Max Weber.
Portanto, Teoria da religião é um livro que aborda muitas questões referentes a um objeto de reflexão que não se deixa precisar pela linguagem discursiva. Nessa pretensão, Georges Bataille esforça-se em mostrar um quadro geral coerente, no que se refere ao problema da religião – da situação humana no impasse dos incompatíveis domínios da ordem íntima e da ordem real –, mas que resultou em alguns momentos em imprecisões históricas e imprecisões de referências (p. 84-85). No entanto, o esquema desenvolvido por Bataille em Teoria da religião, “[…] que devia evitar sistematicamente referências precisas” (p. 85), não poderia vir à luz sem uma liberdade de reflexão que o tornou possível.
Torna-se válido retomar que o autor tentou promover uma abertura da reflexão. É um livro que trata de uma experiência de abertura, intenta ser libertador, como diz Bataille acerca de si mesmo e de seu escrito: “Gostaria de ajudar meus semelhantes a se acostumarem à ideia de um movimento aberto da reflexão. Esse movimento nada tem a dissimular, nada a temer” (p. 84).
Anderson Barbosa Camilo-Bacharel em Filosofia (UFRN). Mestre em Estética e Filosofia da Arte (UFOP). Doutorando em Metafísica (UFRN). E-mail: andersoncamilo96@gmail.com
Linhas de animismo futuro – BENSUSAN (AF)
BENSUSAN, Hilan. Linhas de animismo futuro. Brasília: Editora IEB Mil Folhas, 2017. Resenha de: KANGUSSU, Imaculada. Artefilosofia, Ouro Preto, n.23, dez., 2017.
Animismo refere-se à anima, à alma, à animação. Linhas de animismo futuro, de Hilan Bensusan, apresenta a distinção, presente na história da filosofia, entre os seres considerados animados, aqueles portadores de alma, e os demais, o s inanimados, para discorrer sobre a necessidade de anular tal distinção. De um lado da linha, estamos nós, seres humanos, do outro lado todo o resto. Nós, as animadas, criamos esta distinção e toda engrenagem que precisa ser mantida para que ela funcione.
Diante desta situação, o autor coloca a pergunta sobre a possibilidade de uma política animista capaz de perceber um protagonismo anímico expandido, isto é, capaz de perceber uma animação generalizada e universal: uma cosmopolítica, cuja proposta é a continuação da política por outros meios, na linhagem de Isabelle Stengers e Bruno Latour. Parece-nos importante e necessário observar, como bem o faz Bensusan, que a atual crise com o meio-ambiente e os problemas com o esgotamento da natureza, quase sempre tratados como pano de fundo inanimado, têm encontrado o que há de mais insubmisso e mesmo catastrófico. Em Linhas de animismo futuro, a partir da observação de que o termo “natureza” agrupa nele tanto tudo o que nela não é humano, como a própria fisicalidade do ser humano, vemos como o “naturalismo”, desenvolvido na Europa entre os séculos XVI e XVII, foi o meio de o discurso moderno lidar com a physis, à qual atribuiu uma legalidade constante, exercida pelas “leis da natureza” e deixou de lado a possibilidade de haver nela, na physis, uma genuína animação. Apenas a natureza humana possuiria em sua interioridade, que pode ser diversa, a soberania em relação à natureza exterior. Vale lembrar, ainda que não seja assunto desta obra, a permanência desta mesma posição no pensamento de Kant, no final do século seguinte, onde as leis da natureza são consideradas necessárias ao passo que o sujeito, a partir de sua interioridade, pode adotar as chamadas “leis da liberdade” – sendo capaz inclusive de produzir modificações na natureza, mas não de transformar suas leis. Temos então, na Primeira e na Segunda Crítica, uma separação radical entre Natureza e Liberdade, regidas pela Legalidade e Vontade, respectivamente. Distintamente, no animismo, mesmo possuindo uma fisicalidade diferente do humano, o não-humano também é percebido como portador de uma interioridade e não apenas como fisicalidade “desanimada”, sem interior. Conforme passagem do livro: “Os animismos oferecem outra atitude diante da mesma crise: não é que o ambiente circundante precise ser preservado, ou que nós devamos parar de entrar em conflito com ele, mas que nele há uma demanda de protagonismo” (p.22).
Ao invocarem a possibilidade de a animação ser não apenas humana, os animismos provocam bastante desconforto. Um, dentre os múltiplo s motivos deste fenômeno ressaltado pelo autor, liga-se ao fato de o próprio termo “animismo” talvez evocar as fábulas nas quais elementos naturais – rios, árvores, estrelas, mares, montanhas, ventos – são falantes; ou talvez trazer à tona um tempo mítico quando, segundo Claude Lévi-Strauss, não se fazia distinção entre animais e humanos. Nas palavras de Bensusan, “ele se associa, portanto, à ideia vaga, mas pródiga, de um mundo reencantado” (idem, ibidem). Animismos foram exorcizados e são fantasmagóricos em um mundo desencantado. E o autor considera que eles, de alguma forma, permanecem vivos e se insinuam nos futurismos, nas ficções científicas, nos robôs que se ativam sozinhos, nas possibilidades de dar ânimo às máquinas… O livro vai além desta perspectiva de fábulas e também da certeza vigente – segundo a qual animais podem ser treinados, plantas podem ser cuidadas, pedras são carregadas, mas a conversa só é possível entre seres humano – ao considerar a imagem do conhecimento animista como aquela em que o conhecido, quem conhece e o conhecer é resultado de um encontro, de um trato, de uma conversa. No contexto animista, saber algo parece estar mais próximo de uma negociação do que do contemplar ou estabelecer um ponto de vista sobre algum fenômeno. Neste sentido, o texto remete-nos às conferências de Alfred North Whitehead (publicadas em Modes of Thought. New York: Macmillan, 1938), onde aparece a ideia de a natureza ser portadora de animação. Ao perguntar, na oitava conferência, sobre as evidências de um mundo animado, o filósofo julga encontrá-la na experiência corporal do mundo: a experiência corporal pode revelar o funcionamento animado das associações capazes de dar forma aos processos experimentados. A proposta de Whitehead consiste então em “construir o mundo em termos das sociedades corporais e as sociedades corporais em termos dos funcionamentos gerais do mundo” (em Modes of Thought, op. cit., p.164, citado em Linhas de animismo futuro, p.26). Algo muito distante do procedimento em curso de adapta r os corpos ao mercado. A dinâmica do animismo é a da politização do natural. Assim, ele desafia as determinações constitutivas do olhar sobre o mundo que não trazem à baila o que as determinou como constitutivas. Distinta de outras obras que passam ao largo da (ir)responsabilidade do capitalismo nas determinações do mundo hoje existente, como a de Donna Haraway, por exemplo, nesta a posição política é explícitada. Conforme descreve o autor, “é um livro que se situa à esquerda e pretende explorar uma maneira de integrar bandeiras vermelhas com bandeiras verdes de um modo teoricamente articulado e politicamente fértil” (p.28). Articulação necessária, pois, enquanto as esquerdas parecem estar sempre presas no âmbito do humano, os movimentos ecológicos tendem a considerar o não-humano como instância meramente passiva a ser defendida. “O livro aposta em um avesso do capitalismo que não o entende como uma etapa revolucionária e menos ainda como uma etapa necessária para um futuro almejado”, continuando com as palavras do autor, “quanto às bandeiras verdes, ele [o livro] aposta em uma expansão da agência política contra a persistente tendência da ecologia política de apresentar o não-humano como objeto de tutela” (p.29). Na mesma página, Bensusan declara acreditar que, “até a medula”, o animismo é “anátema do capitalismo”. E na página seguinte, apresenta sua proximidade com a autonomia das sociedades indígenas, presente nas tribos de todo o mundo, ao repetir as insígnias “é melhor pobre virar índio do que índio vir ar pobre”, e “ou a gente vira índio ou vira indigente”.
Quanto à composição, Linhas de animismo futuro traz um breve prefácio, uma introdução, onde fica claro a que veio, e oito capítulos compostos por textos autônomos que dialogam entre si. “Quibungos: a vingança do pó”, texto que compõe o capítulo 4, está publicado na revista ARTEFILOSOFIA 20, cujo tema é “A arte da vingança”. E como este número atual da revista trata das relações entre filosofia e psicanálise, esta resenha termina remetendo-se às considerações feitas por Freud a respeito do pensamento de Empédocles de Agrigento, filósofo da physis, a quem caberia bastante bem o epíteto de “animista”. Empédocles julgava que dois princípios básicos, amor (j i l i a) e discórdia, ódio (n e i k o z), que estão em guerra perpétua um com o outro, dirigem os eventos da vida humana e de todo o universo. Enquanto um deles, amor, se esforça por aglomerar as partículas dos quatro elementos primevos em uma só unidade; o outro, ódio, em contrapartida, procura destruir estas fusões e levar os elementos de volta a seus estados primitivos. Segundo o filósofo grego, há em todas as coisas um elemento que as impele à união, mas há também uma força hostil que as separa, e estes dois impulsos estão envolvidos no embate que produz todo devir e toda destruição. Freud observou que sua própria teoria das pulsões se encontrava tão próxima da teoria de Empédocles que ele sentir-se-ia tentado a sustentar que as duas eram idênticas, “não fosse a diferença de a teoria do filósofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica” (“Die endliche und die unendliche Analyse”, GW 16, p.91; na tradução brasileira, “Análise terminável e interminável” (1937), OC XXIII, p.279). Tendo em vista os animismos, é instigante perceber que Freud considerou o movimento das pulsões humanas semelhante àquele do cosmos, proposto por Empedócles.
Imaculada Kangussu-Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, com a tese Leis da Liberdade. As relações entre Estética e Política na Filosofia de Herbert Marcuse (defendida em 2000 e publicada pela Ed. Loyola em 2009) e Mestre em Filosofia pela mesma instituição, com a dissertação Imagens e História: as Passagens de Walter Benjamin (defendida em 1996). Pos-doutorado na School of Arts and Science da New York University sobre o tema Phantasy and Reason. Atualmente é Professora Titular no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto. Desenvolve pequisas na área de Estética e Filosofia da Arte, com ênfase na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e no pensamento contemporâneo dedicado a estas áreas. Coordena o grupo de pesquisa Arte e Conhecimento, é membro do GT Estética e da International Herbert Marcuse Society. E-mail: lecakangussu@hotmail.com
L’arte Espansa – PERNIOLA (AF)
PERNIOLA, Mario. L’arte Espansa. Turín: Giulio Einaudi Editore, 2015. Resenha de: VEGA, José Fernández. Artefilosofia, Ouro Preto, n.22, jul., 2017.
La completa mercantilización del mundo del arte y la consolidación de un nuevo panorama donde la especificidad de la categoría “obra de arte” parece haber perdido su antiguo prestigio y nitidez, constituyen los temas centrales de L’arte espansa. La expansi ón a la que hace referencia el título volvió difusa la noción de arte y la proyectó sobre cualquier espacio social. Ya no son claras sus diferencias respecto de la publicidad, la decoración o el diseño industrial. Por otra parte, los artistas se han conver tido en “marcas” y se posicionan en el mercado como figuras del espectáculo. Esta situación es el resultado de un largo proceso que, para Perniola, se inicia a partir de la emergencia del Pop Art. Los artistas se volvieron celebridades, la figura del críti co o del teórico se hundió en la insignificancia y un conjunto de mediadores culturales – galeristas, curadores, coleccionistas, subastadores-se convirtieron en los verdaderos jueces de la legitimidad dentro del mundo del arte.
Desde un plano estético, p areciera que la tesis hegeliana de la “muerte del arte” consigue captar bien las condiciones del presente. Al mismo tiempo, la inflación que sufre el perfil del artista individual impresiona como un hiperbólico triunfo de las concepciones del romanticismo de los siglos XVIII y XIX que privilegiaban la subjetividad creadora. Pero, de manera paradójica, en el nuevo panorama se borró también la diferencia entre artista y no artista, puesto que una de las consecuencias del Pop fue que cualquiera puede autodenom inarse artista sin que la legitimidad de esa pretensión pueda ser cuestionada. Para aspirar a esa categoría ya no es preciso exhibir una trayectoria, sostener una poética, poseer una habilidad artesanal, tener una formación y ni siquiera realizar una obra (el arte conceptual llegó al punto de impulsar un arte sin obra). El mundo del arte está siendo devorado por sus propias contradicciones internas, sostiene Perniola. En el primer capítulo de su libro dedica considerable espacio para contrastar dos episod ios que juzga cruciales para ejemplificar la crisis del arte contemporáneo. El primero fue un proyecto de la galería Saatchi de Londres, una de las más relevantes del mundo en su género, que incorporaba a su página web a cualquiera que dijera ser artista. La propuesta se restringió luego, puesto que para aparecer publicado se debía pasar por un proceso previo de selección. El segundo episodio tuvo lugar en la edición 2013 de la Bienal de Venecia convocada bajo el título: “El palacio enciclopédico”. Su cur ador, Massimiliano Gioni, seleccionó 158 “artículos” (ya no los denominaba “obras”), algunos de los cuales Perniola describe a lo largo de varias páginas. Se trataba de proyectos de todo tipo difícilmente asimilables a lo que convencionalmente se denominab a arte y pretendían ampliar el campo y ofrecer una selección a la vez arbitraria y comprensiva. La idea se inspiraba en el ambicioso plan de un poco conocido estadounidense quien diseñó un museo, nunca construido, donde pretendía exhibir todo el conocimien to humano. El catálogo de la muestra no incluía intervenciones críticas, sino textos de cualquier otro género (narraciones, testimonios, etc). Esta Bienal señaló un cambio de paradigma que, según Perniola, puede compararse con la irrupción del Pop habitual mente asociada a una exhibición de 1964 que tuvo lugar en la galería de Leo Castelli en Nueva York. Esta edición de la Bienal cierra entonces un período que abarcó medio siglo y abre un otro que el autor denomina fringe. En él predominan los contornos borr osos, lo periférico puede ubicarse en el centro en cualquier momento y donde no es preciso ser un artista, mostrar obra o cumplir con los requisitos de legitimación tradicionales.
Ese nuevo período, signado por el populismo cultural y en el que la obra no es una credencial suficiente, despliega a la vez estrategias teóricas de justificación y comerciales de promoción. El anti-arte de las vanguardias históricas se volvió completamente institucional e incapaz de preservar su potencial crítico. Ahora todo pued e ser arte, afirma Perniola en su segundo capítulo, basta con que alguien lo afirme así. Viejas nociones como la de originalidad o belleza han caído en desuso. Contra visiones como la de la socióloga francesa Nathalie Heinrich quien lanzó el concepto de “a rtificación” para indicar la sobrevaloración del arte y su expansión ilimitada (arte de los enfermos mentales, de los niños, de los animales, etc.), Perniola propone la categoría de “artistización” (artistizzazione). Nada es arte en sí mismo. Los esfuerzos filosóficos de la estética para definir el arte y captar su esencia ya no conducen a ningún resultado. Se vuelve preciso dirigir la mirada hacia un proceso cultural en rápido cambio, donde los artistas se designan a sí mismos, el mercado se volvió un acto r central y las obras exigen un acompañamiento hermenéutico sin el cual no pueden sostenerse. Este proceso generó una multiplicación inaudita de ferias, bienales, museos de arte contemporáneo, artistas y tendencias mientras abre la posibilidad para que cualquier creador marginal ocupe posiciones en el campo. El t ercer capítulo del libro gira en torno de las teorías del psiquiatra Hans Prinzhorn (1886-1933) sobre el arte de los autistas y los esquizofrénicos. Perniola conecta estas producciones con el Art Brut defendido por Jean Dubuffet (1901-1985) para quien sólo los marginados sociales y psíquicos podían hacer verdadero arte. En los años 1990 estas concepciones derivaron en distintas corrientes afines, como por ejemplo el Outsider Art. Para Perniola, sin embargo, resulta preciso establecer la diferencia entre el arte de un enfermo mental, encerrado en su propio padecimiento, y el que produce un artista. En el capítulo siguiente – casi una conclusión — se argumenta que con la irrupción de un escenario fringe la distinción entre incluidos y excluidos se desmoronó y carece de sentido. Otra de las curiosas secuelas de la nueva condición del arte alude a la conservación de las obras contemporáneas. Muchas de ellas no sobreviven porque están realizadas expresamente para perimir o fueron elaboradas con materiales barat os. La conservación se volvió documentación, más adecuada para mantener registro de las acciones, performances e intervenciones de todo tipo que caracterizan a un arte en el cual también se revitalizó la idea romántica del fragmento vis-à-vis la obra acaba da predominante en la tradición occidental. El siglo XX que llevó a un clímax las ideas de novedad y actualidad del arte puede dejar como herencia solo ruinas, en claro contraste con el arte de los siglos previos. El arte contemporáneo, señala el autor, se burla de sí mismo y a la vez se burla de los valores estéticos del pasado. Pero esta actitud no puede sostenerse en el tiempo. Su impacto se diluye; se trata de una operación quizá ya agotada por Marcel Duchamp hace ya cien años.
Como balance ambivalente, Perniola considera que el arte contemporáneo es para-político (no auténticamente político, y en esto también encuentra una herencia romántica) y está animado por una ampliación populista de sus fronteras a partir de la cual todo puede ser obra y cualquier a puede llamarse artista. La inversa también resulta válida: nada es arte y nadie un artista. El giro fringe se insinuó ya en las vanguardias históricas del siglo XX, pero tomó verdadero impulso en los años sesenta. La culminación de este proceso, para el autor, se hizo manifiesta en la Bienal de Venecia de 2013.
En un epílogo, el autor comenta la siguiente edición de esa Bienal, que tuvo lugar en 2015 bajo la dirección de Okwui Enwezor, estadounidense oriundo de Nigeria, donde se realizaron lecturas de El Capital de Karl Marx. Allí también proliferaron artistas profesionales, pero en un nuevo sentido: egresados de universidades (de carreras de arte o de otras, como la premiada Adrian Piper, filósofa y autora de diversas obras en la disciplina). Emerge, ento nces, un artista-profesor-intelectual, vale decir, un académico diferente del artista académico que conoció la tradición. Otra nota distintiva es que los artistas provienen de todo el mundo, pero terminan su perfeccionamiento y lanzan sus carreras internac ionales desde los centros representados por EE. UU. y el norte de Europa (Perniola lamenta que Italia ya no figure en la geografía del arte).
L’arte espansa es un ensayo que discute la deriva del arte contemporáneo y se muestra implacable a la hora de denu nciar sus imposturas y su caída en la sociedad del espectáculo y de la cultura comercial. Escrito por un especialista en estética, critica la banalización del mundo del arte y el declive en su seno de todo pensamiento crítico. Sus tesis, animadas por una i ndignación poco novedosa, se pueden discutir, pero indudablemente se encuentran bien argumentadas y fundamentadas en un aparato erudito actualizado. Una evidente virtud de esta obra consiste en la combinación de reflexiones teóricas con asociaciones ligad as a la actualidad del arte y a su historia; pero en ocasiones dicha virtud amenaza con volverse un defecto pues Perniola dedica largas páginas a exponer distintas poéticas o puntos de vista, no siempre indispensables para su argumento. Otro problema del l ibro es que pretende abarcar demasiados fenómenos y esto debilita sus objetivos centrales. En ocasiones deja la impresión de que, siempre manteniendo un discurso a la vez coherente, crítico e informado, el autor salta de un tema a otro sin agotar ninguno.
Perniola no se deja influir por el esnobismo ni hace concesiones intelectuales, aunque su enfoque general no es enteramente original puesto que desde hace años se publican trabajos que embisten contra lo que consideran una nueva superficialidad de la cultu ra visual, ya completamente integrada al giro financiero y a la publicidad centrada en sus agentes antes que en sus realizaciones. L’arte espansa se ubicaría en un terreno intermedio dentro del panorama de la reflexión estética: es crítico pero no está esc rito desde una perspectiva cultural radicalmente conservadora. No comparte el optimismo de muchos agentes del mundo del arte. Ofrece una mirada derivada de un íntimo conocimiento del panorama artístico de la actualidad nada hostil a la teoría sino arraigad a en ella.
José Fernández Vega-Professor na CONICET – UBA. E-mail: joselofer@gmail.com
A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa, volume 2 – CHAUI (CE)
CHAUI, Marilena. A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa, volume 2. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: OLIVA, Luís César; LACERDA, Tessa Moura. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.36, Jan./Jun. 2017.
O lançamento do segundo volume de A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa, de Marilena Chaui, conclui um processo de análise e exposição sistemática da filosofia de Baruch de Espinosa, em especial de sua obra maior, a Ética, processo que se confunde com a própria trajetória da Marilena Chaui como docente do Departamento de Filosofia da USP e uma das mais importantes intelectuais brasileiras das últimas décadas. Dedicando-se à pesquisa sobre Espinosa desde os anos 60, Chaui defendeu sua livre-docência, em 1977, já com o título de A nervura do real, um calhamaço em dois volumes que representava, naquele momento, o principal trabalho sobre Espinosa feito em língua portuguesa. Chaui, no entanto, não a publicou de imediato, apesar dos insistentes apelos dos colegas e alunos. Para a autora, faltava ao “tijolo” uma reflexão mais detalhada sobre o quadro amplo da história da filosofia diante do qual a revolução espinosana ficaria mais evidente e compreensível, além de uma análise mais detida da parte i da Ética, que contém os fundamentos ontológicos do sistema.
O que para outros intérpretes poderia ser uma curta introdução histórica transformou-se em um novo livro, de quase mil páginas, reconstruindo não só as referências históricas de Espinosa, mas todo o percurso do espinosismo depois da morte de seu autor. Ao final, coroava o livro uma análise linha a linha da parte I da Ética, cuja solidez e densidade não tem paralelo na literatura internacional. Foi o primeiro volume da Nervura do real, dedicado à imanência, e publicado em 1999. O longo intervalo de 22 anos entre a tese de livre-docência e esta publicação foi marcado por inúmeros outros livros, especialmente sobre o Brasil, mas a reflexão espinosana em curso sempre norteou os escritos de Marilena Chaui, em temas tão variados quanto ideologia ou repressão sexual, o combate à ditadura civil-militar ou o ensino de filosofia. Em todas estas obras, o leitor atento pode encontrar A nervura do real em gestação, ou melhor, em operação.
Feito esse imenso trabalho, a própria autora acreditava que o segundo volume previsto sairia mais rapidamente, até por ser uma retomada da tese de livre-docência, dedicada sobretudo à liberdade. Todavia, aos 22 anos de espera pelo primeiro volume, somaram-se outros 17 para o segundo. A conclusão da obra não aproveitou praticamente nada da antiga livre-docência, integralmente reescrita. Nem poderia ser diferente, considerando que 39 anos de reflexão espinosana, vivência em sala de aula e muitas lutas políticas separam a antiga tese deste novo volume que recentemente chegou a nossas mãos. Os leitores não perceberão apenas o avanço interpretativo em relação à tese original, mas também uma expressiva mudança de tom em comparação com o próprio primeiro volume. Enquanto naquele Marilena Chaui antepunha à apresentação de cada noção espinosana uma larga reconstituição histórico-conceitual, em uma empreitada de imensa erudição, no segundo volume a autora permite-se uma análise mais circunscrita ao texto de Espinosa. Parafraseando a própria autora, enquanto o primeiro volume foi uma discussão com toda a história da filosofia, o segundo volume é uma conversa entre ela e Espinosa. Isto dá ao livro uma fluência que o torna acessível a uma ampla gama de leitores, incluindo aqueles que tenham pouco contato prévio com a filosofia espinosana. No fluxo desta conversa, densa mas extremamente agradável, Chaui conduz o leitor pela integralidade das partes II, III, IV e v da Ética, considerando-se que a parte I já fora sufi – cientemente destrinchada no primeiro volume. Os atuais e antigos alunos reencontrarão nesta escrita muito do ritmo cativante – e ao mesmo tempo conceitualmente rigoroso – das aulas de Marilena Chaui dadas na USP e em outras universidades do Brasil e do mundo.
A fluência do texto, porém, não nos deve enganar. Os desafios propostos pelo livro são de monta e implicam discussões conceituais de extrema sofisticação, frequentemente em oposição à quase totalidade da crítica especializada. Talvez o principal destes desafios já se apresente na primeira parte do livro: a imensa tarefa de demonstrar, contra uma longa tradição de interpretação, a existência de seres singulares na filosofia da substância imanente espinosana. Contra essa tradição interpretativa que remonta ao século XVII, e que a autora denominara, no primeiro volume, “a imagem do espinosismo”, cabe a Marilena Chaui desmontar a falsa aporia que diz ser impossível o singular em uma filosofia na qual só há uma substância.
Esse trabalho é um trabalho espinosano: como Espinosa, Marilena desconstrói o discurso cristalizado e, ressignificando as palavras, mostra como a existência de seres singulares é efeito de uma dupla causalidade, a causalidade da substância e a causalidade da Natureza naturada. Como efeitos determinados em uma complexa rede causal, os seres singulares não existem necessariamente por sua própria essência, mas sua existência é necessária pela causa.
Ora, uma vez afirmada essa necessidade da existência do suingular, coloca-se a segunda questão do Nervura II: é preciso demonstrar como necessidade não se opõe a liberdade. Ser livre, para Espinosa, é ser uma causa não passivamente determinada pelo exterior, mas internamente disposta. É tomar parte na atividade do todo. A concepção que relaciona liberdade e livre-arbítrio é uma concepção imaginária da liberdade. Para demonstrar a existência de coisas singulares que podem ser causas livres, Marilena Chaui inicialmente percorre as obras de Espinosa para mostrar a presença do singular em todas elas. No Tratado da emenda do intelecto, Espinosa afirma que, diferente da razão, a imaginação lida com coisas singulares corporais, e o intelecto lida com as essências das coisas singulares. A imaginação organiza essas coisas singulares como ideias obscuras ou universais abstratos. Mas o intelecto é capaz de conhecer a essência particular afirmativa e, por meio dela, a coisa particular .
Essas afirmações do Tratado da emenda operam em outras obras. No Tratado político, Espinosa afirma que os regimes políticos distinguem- se não da maneira clássica pelo número de governantes, mas porque são essências particulares determinadas: sua causa é o direito natural particularizado pelas relações de força e potência da multitudo (agente político). No Tratado teológico-político, Espinosa trata da essência particular do Estado hebraico, um regime político existente na duração, unindo geometria e um método histórico. O Estado hebraico é uma coisa singular . Sua essência é uma singularidade historicamente determinada. E a Bíblia, por sua vez, é uma singularidade que existe como efeito de uma causa singular, a sociedade hebraica. Essa análise do Tratado político e do Tratado teológico-político permite, a Marilena Chaui, distinguir no interior da obra de Espinosa essência particular e essência de coisa singular : a essentia particularis é “o momento em que uma ideia apreende a conexão lógica entre uma essência e suas determinações ou propriedades” (Chaui, 2016, p.32) e a essentia rei singularis é “empregada para assinalar a relação interna entre uma essência e sua existência” (Chaui, 2016, p.32). Essa distinção existe também na Ética: na parte i, os modos da substância são coisas particulares ; na parte II a mente, modo do atributo pensamento, é uma coisa singular, o corpo, modo do atributo extensão, é uma coisa singular . A coisa singular é um modo singular .
As partes I e II da Ética, nas palavras de Marilena Chaui, são um díptico. Assim, a parte I demonstra a existência do que é necessário por sua própria essência, a Natureza naturante e a Natureza naturada. A parte I I, como segundo pano do díptico, concentra-se na Natureza naturada para deduzir a existência dos modos finitos, necessário não por sua própria essência, mas pela sua causa. Por isso, na parte I, por meio da causa de si, Espinosa demonstra a identidade entre essência e existência em Deus; na parte I I, por sua vez, é afirmada a inseparabilidade entre essência e existência nos modos finitos. A essência do modo finito humano não envolve existência necessária, mas são necessários pela sua causa, jamais contingentes ou possíveis (cf. Chaui, 2016, cap.2).
O modo finito é definido, na parte I a Ética, como modo que está em outro e é concebido por outro; a parte II da Ética sublinha a singularidade de um modo que exprime a essência do ser absoluto.
O modo finito humano é deduzido na parte II como corpo e mente que se relacionam. Essa relação pode se dar de forma inadequada (por meio da imaginação) ou de forma adequada (por meio da razão e da intuição). A perspectiva determinante na parte II da Ética é, portanto, a perspectiva epistemológica, mas também a dimensão causal da coisa singular é enfatizada e, ganha ainda mais espaço na parte III, quando Espinosa demonstra que a coisa singular pode ser causa adequada ou inadequada, porque finita; dessa finitude trata a parte IV, e a parte v mostra como a mente pode ser causa adequada e chegar à felicidade.
O singular é uma existência determinada e uma atividade causal, é um indivíduo complexo. Marilena Chaui mostra essa construção da singularidade na Ética de Espinosa. O singular é singular porque é uma determinação finita no interior da complexa rede causal da Natureza. E é finito porque não existe como causa de si, mas é também causa.
Ser parte, em Espinosa, é saber-se parte de um todo e, então, tomar parte na atividade do todo. Cabe ao final da Ética, bem como ao final da Nervura II, mostrar como este tomar parte no todo é um tomar parte na eternidade. Este conceito, na primeira parte da Ética, parecia restrito à existência própria da substância, que segue necessariamente de sua essência. Às coisas singulares, como modos finitos, não caberia mais que a duração, numa contraposição insuperável. Uma das principais novidades de Chaui é explicitar como a Ética, no seu desenvolvimento, vai ampliando o sentido de eternidade, de modo que alcance as próprias coisas singulares enquanto são em Deus. Trata-se de uma eternidade dada desde sempre, pela imanência das coisas a Deus e de Deus às coisas, mas simultaneamente de uma eternidade conquistada pela adequação do conhecimento. Não há contradição nisso porque tal conquista não implica passagem nem transformação radical. O tomar parte no todo significa tornar-se aquilo que já se é. Nas palavras de Chaui, “a eternidade da mente não implica uma transformação de seu ser ou de sua essência; o que muda é o objeto do qual ela é ideia: passa das afecções do corpo na duração à ideia da essência do corpo, essência contida e compreendida como singularidade no atributo extensão e cuja ideia, simultaneamente, está contida e compreendida no atributo pensamento” (Chaui, 2016, p. 571). Em suma, a mente não se torna eterna, ela passa a conhecer que é eterna, e não apenas como se conhece a um objeto externo. Mais que isso, como diz a célebre expressão de Espinosa, nós sentimos e experimentamos que somos eternos.
Ao terminar a leitura do livro de Chaui, podemos olhar para trás e ver com toda a clareza o processo de concretização do que havia sido demonstrado nas primeiras páginas. Não só a singularidade não é incompatível com a imanência, mas só se realiza plenamente como liberdade quando percebe esta imanência por meio da participação ativa nela. Esse processo de concretização de si como ser autônomo, livre e feliz não é um processo meramente cognitivo, mas simultaneamente afetivo. Por isso, também com afeto olhamos para a tese de livre-docência, de 77, ou para os primeiros estudos espinosanos de Chaui, nos anos 60. Tudo já estava lá. Como já estava no mestrado Merleau-Pontyano, no debate sobre a democracia nos anos 70, na criação do PT em 80, etc. Mas agora, com a publicação do segundo volume da Nervura do Real, tudo isto ganha um sentido que não podia ser completamente transparente naqueles momentos. Trata-se de uma única Obra, que se confunde com a maneira de viver e de filosofar de Marilena, inseparáveis entre si e in – separáveis do pensamento de Espinosa.
Referências
CHAUI, Marilena (2016). A nervura do real II. Imanência e liberdade em Espinosa . São Paulo: Companhia das Letras.
Luís César Oliva – Professor Universidade de São Paulo. E-mail: lcoliva@uol.com.br
Tessa Moura Lacerda – Professora Universidade de São Paulo. E-mail: tessalacerda@gmail.com
Filogênese na metapsicologia freudiana – CORRÊA (C-FA)
CORRÊA, Fernanda Silveira. Filogênese na metapsicologia freudiana. Campinas: Editora Unicamp, 2015. Resenha: SILVEIRA, Léa. Freud e o peso do gelo. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.22, n.1, jan./jun., 2017.
Su, straniero, ti sbianca la paura!
E ti senti perduto!
Su, straniero, il gelo che dà foco,
che cos’è?
(Turandot, ópera de G. Puccini, libreto de G. Adami e R. Simoni)
Conhecemos bem a advertência com que V. Goldschmidt encerra seu ensaio sobre o tempo na interpretação de sistemas filosóficos, aquela que se refere ao recurso a textos póstumos no estudo da história da filosofia. Para se situar no tempo lógico e assim pretender alcançar o movimento e a estrutura do pensamento, o intérprete deve privilegiar a “obra assumida” e se precaver contra o perigo de camuflar a obra publicada a partir de argumentos apenas manuscritos. “Notas preparatórias, onde o pensamento se experimenta e se lança sem ainda determinarse”, ele escreve, “são léxeis sem crença e, filosoficamente, irresponsáveis; elas não podem prevalecer contra a obra, para corrigi-la, prolongá-la, ou coroá-la, e desse modo, falseá-la” (Goldschmidt, 1970, p.147). Ora, nenhum preceito poderia talvez ser mais equivocado, em termos de método de leitura, quando se trata de ler Freud. Se bem que seja controversa a possibilidade de aplicação de uma metodologia estrutural stricto sensu à obra freudiana, certo é que, concordando-se ou não com tal possibilidade, ninguém negaria hoje a importância de se considerar o famoso Projeto de uma psicologia, seja qual for o viés de leitura que se imprima ao lugar dessa consideração, para a compreensão do pensamento de Freud. Quer se trate de traçar a gênese dos conceitos da metapsicologia, de recuperar o movimento pelo qual Freud direcionou seus esforços iniciais para conferir inteligibilidade à neurose, ou mesmo de compreender algumas das diretrizes implicadas em sua ontologia do psíquico, nenhuma dessas discussões filosóficas maiores relativas à psicanálise poderia hoje, é seguro dizer, passar ao largo desse rascunho de 1895, descoberto na correspondência endereçada a W. Fliess e publicado pela primeira vez apenas em 1950, mais de dez anos após a morte de Freud. Muito provavelmente essa afirmação seja tomada como algo bastante trivial. O que talvez não seja trivial ou muito veiculado é que temos desde 1985 acesso a um segundo rascunho póstumo de Freud (1987). Ou, à guisa de afirmação menos inflada, talvez não seja muito conhecido o alcance do conteúdo desse segundo rascunho em sua obra, o que coloca, por si só, uma questão curiosa e bem legítima: será que há algo nele que incomoda os leitores de Freud? Conteria ele elementos de um pensamento que não se quer reconhecer como freudiano? Não pretendo responder a essa pergunta aqui, mas fato é que não é comum ver as pesquisas sobre a teoria freudiana, mesmo aquelas empreendidas no âmbito da filosofia, enfrentarem a tão espinhosa hipótese filogenética exposta sistematicamente neste que seria o décimo segundo artigo metapsicológico, mas presente de um modo mais ou menos fragmentado ao longo de toda a obra.
Insisto no ponto. Freud é um pensador célebre, entre tantas coisas, por ter escrito obras ousadas. Apesar disso, por vezes nos esquecemos do que deve ter sido, para um neurologista formado no século XIX no modelo anátomo-patológico da Universidade de Viena, publicar um livro voltado para a defesa da existência de um sentido nos sonhos e para a apresentação de um método que permitiria alcançá-lo. Ou, para alguém que tentava instaurar e consolidar um novo campo de saber e de prática, apresentar em 1905 não apenas uma defesa da existência da sexualidade infantil (o que já não era original), mas a defesa de que as características dessa sexualidade seriam distintas da sexualidade adulta, sustentando que os comportamentos sexuais desviantes – chamados à época “perversos”, listados e classificados na Psychopathia sexualis, de Krafft-Ebing 1 – seriam, não uma degenerescência, mas nossa condição de partida. O que dizer então da defesa de que a origem da cultura residiria no assassinato do pai de agrupamentos humanos arcaicos e, por essa via, de que o sentimento de culpa estaria instalado no cerne daquilo que somos hoje e desde sempre como civilização? Reconhecido o caráter prima facie insólito destas e de tantas outras formulações freudianas, esse reconhecimento não nos impede de dizer que aquela dentre as teses de Freud que tem todos os pré-requisitos para ser qualificada com o virtuosismo desse apanágio, o da ousadia, e que está profundamente vinculada a esta última pergunta (sobre a origem da cultura), permanece pouco debatida.
A hipótese filogenética é todavia onipresente em sua obra, como uma espécie de novelo cujo fio poderia nos ajudar a sair do labirinto ou fazer com que nos percamos ainda mais nele.
Isso não significa, obviamente, que não haja uma bibliografia relevante sobre o tema. Ela apenas não deixa de soar marginal quando temos em vista o vigor e a amplitude da pesquisa que se faz sobre a psicanálise freudiana. No próprio momento em que o rascunho veio à luz, I. Grubrich-Simitis, que o descobriu 2, transcreveu e editou, o fez ser acompanhado de um importante ensaio (1985), mais de apresentação e contextualização do que de interpretação. Em datas anteriores à descoberta do manuscrito, J. Laplanche e J.-B. Pontalis (1988) dedicaram à questão das fantasias originárias, que é uma questão vinculada à hipótese filogenética, um comentário que está no centro de toda uma compreensão da reflexão freudiana e F. Sulloway (1992) trouxe um encaminhamento que se distancia bastante da leitura dos psicanalistas franceses numa tentativa de fortalecer a defesa de que Freud seria, antes de tudo, um biólogo. Entre nós, o texto de L. R. Monzani (1991) é um elemento incontornável do debate e o monumental Freud, pensador da cultura, de Renato Mezan (1985), apresenta elementos e análises que convergem para a tese de que a hipótese filogenética deve ser compreendida, antes de mais nada, como uma fantasia de Freud, fantasia que seria, de seu ponto de vista, prescindível para a teoria psicanalítica.
Mas a nenhum desses textos pode ser atribuído o objetivo de explorá-la até o fim e de uma maneira interna – isto é, considerando-se as premissas e as elaborações que encontramos na própria pena de Freud. Esse é, a meu ver, o principal mérito do livro A filogênese na metapsicologia freudiana : a autora, Fernanda Silveira Corrêa, enfrenta essa questão e o faz até extrair as últimas consequências das teses assumidas por Freud a esse respeito, sem deixar de vinculá-las a um contexto teórico mais vasto.
O que é a hipótese filogenética? Grosso modo, trata-se do lugar para onde converge a ideia de que as neuroses testemunham o desenvolvimento psíquico da espécie humana, ou, da raiz e fundamento, para emprestar uma expressão do breve ensaio sobre Totem e tabu de G. Lebrun, da seguinte ideia: “o primitivo é o arquivista do original, o neuropata é o seu hermeneuta ” (Lebrun, 1983, p.98). No manuscrito encontrado em 1983, ela é chamada a responder pela origem da fixação da libido, a qual constitui uma disposição que contribui decisivamente para a determinação da neurose. Ocorre que Freud sustenta que essa fixação tanto pode ser contingente, resultante de uma história específica e individual, quanto inata. A necessidade de considerar a possibilidade de a fixação ser inata pode ser compreendida lendo-se outro texto de Freud, que é o relato do caso clínico do Homem dos Lobos. Tratase ali, entre outras coisas, da tentativa de sustentar que o coito entre os pais fora observado pela criança, tentativa que Freud arremata com um non liquet ao qual se sucede a afirmação de que ela, a observação, caso não tenha tido lugar na vida do indivíduo, foi, certamente, herdada3 Mas, então, indaga-se Freud, se a fixação pode ser inata, seria porventura possível perguntar-se pelo modo como ela se constitui exatamente como herança? Por motivos que precisariam ser considerados em outro lugar, Freud quer mostrar que o próprio inato é adquirido – se não pelo indivíduo, então pela espécie. Eis como ele apresenta esse ponto:
Onde se leva em consideração o elemento constitucional de fixação não se afasta o adquirido: ele retroage para um passado ainda mais remoto, já que se pode justamente afirmar que disposições herdadas são restos de aquisições dos antepassados. Com isso, chega-se ao problema da disposição filogenética atrás da individual, ou ontogenética, e não há contradição quando o indivíduo adiciona às suas disposições herdadas, baseadas em vivência anterior, as disposições recentes derivadas de vivências próprias (Freud, 1987, p.71).
Partindo dessa ideia, ele tenta estabelecer um paralelo entre duas séries, que são a sequência cronológica conforme a qual as neuroses surgem na vida individual (algumas eclodem caracteristicamente na primeira infância, outras na puberdade, por exemplo) e uma sequência filogenética que instalaria aquelas fixações constitutivas das disposições e que, por sua vez, seria dividida em duas gerações de indivíduos: uma que teria vivido o advento da 4 era glacial e outra posterior que teria se organizado psiquicamente por referência ao pai opressor da horda primitiva. Seriam tais os momentos desta sequência filogenética: 1a era glacial que interrompe a convivência amistosa com o meio ambiente, produzindo-se a angústia; 2a limitação da procriação decorrente da escassez de alimentos; 3o desenvolvimento da inteligência e da linguagem e a convergência dessas novas capacidades para o pai opressor; 4a efetiva castração dos filhos pelo pai; 5o estabelecimento de um laço erótico homossexual entre os filhos que teriam conseguido escapar ao domínio paterno; 6o assassinato do pai. Esses acontecimentos, vividos por nossos antepassados mais distantes, teriam sido transmitidos, como traços de memória (Freud, 2008, p.96), ao longo das gerações (sem que se encontrem, aliás, nem em Darwin nem tampouco em Lamarck, argumentos em favor da possibilidade dessa herança). Nossa neurose de cada dia seria o signo mais palpável dessa improvável transmissão.
- S. Corrêa mostra em seu livro que Freud associa aspectos centrais de sua teoria às heranças filogenéticas, tais como a vinculação entre prazer sexual e angústia, o caráter perverso-polimorfo da sexualidade humana, a erotização da dor e a disposição libidinal passivo-masoquista, o amor homossexual e o narcisismo masculino, a disposição para a mania e a melancolia. A serviço dessa investigação, a análise de cada fase filogenética exige que a autora confronte o rascunho com diversos outros textos de Freud dedicados às problemáticas que são centralizadas a cada vez, o que resulta na argumentação geral de que ele é coerente com o restante da obra, ou, dito de outro modo, de que o manuscrito não está nela como um corpo estranho. No desenvolvimento dessa conexão, a autora constrói diversas soluções próprias, que transcendem a letra de Freud sem transcenderem o espírito de seu pensamento. Vale-se em muitos momentos para isso de uma aproximação entre Freud e Nietzsche. É interessante acompanhar o modo pelo qual ela recorre à perspectiva genealógica para pensar a tensão entre a psicologia do pai primitivo e a da segunda geração, situando a psicologia dos filhos, estruturante da vida coletiva, como uma psicologia de ressentidos.
Destaco outro feito importante alcançado pelo livro de F. Corrêa. Além de indicar consistentemente a relevância do manuscrito sobre a filogênese para a compreensão de teses freudianas centrais, ele traça um vínculo teórico entre este rascunho e aquele outro de 1895, o rascunho do Projeto…
O caminho que permite à autora fazer isso passa pelo seguinte. Para sustentar que no ser humano a libido se transforma em angústia conforme um processo que, em larga medida, barra a satisfação sexual, será necessário, do ponto de vista da teoria do aparelho psíquico, supor um caminho de esforço de retomada da própria possibilidade dessa satisfação.
Quando Freud monta no Projeto…
um aparelho determinado empiricamente pelas próprias representações, isso corresponderia a uma forma de pensar o que poderia ser esse caminho, considerando-se que ele não pode ser determinado a partir de uma dimensão biológica da qual a sexualidade humana exatamente se afastou. O livro de F. S. Corrêa encontra uma articulação engenhosa – tanto mais que em 1895 a sexualidade infantil não está presente no horizonte teórico de Freud – entre, de um lado, esse processo de passagem de uma sexualidade passiva (pré-humana) que seria dada biologicamente e uma sexualidade objeto de uma construção representacional, e, de outro lado, o processo de construção ontogenética do aparelho psíquico que está no centro das preocupações do Projeto…
e que é um processo de acordo com o qual a alucinação (passiva) envolvida nas vivências originárias de satisfação e de dor deve ceder espaço para a ação. Escreve a autora, nesse sentido:
Freud então supõe duas coisas: um aparelho, por um lado, determinado por suas experiências de satisfação, passivo, no sentido de que se satisfaz com suas marcas das experiências; por outro, que tem de resgatar sua atividade, agora, não mais determinada pela ação biológica, mas pelas próprias representações. (Corrêa, 2015, p.148)
A percepção dessas relações permite à autora enveredar seu comentário para a exploração das semelhanças entre as duas fases da “história” 5 filogenética e as teorias da vivência de satisfação e da vivência de dor, bem como as consequências de se projetar retroativamente a sexualidade infantil perversa – e então o próprio conceito de fantasia – sobre as teses do Projeto…
Tudo isso lhe permite problematizar uma leitura mais convencional da teoria freudiana da cultura (muito pautada em O mal-estar na cultura ) na medida em que temos aí elementos para compreender que, para Freud, não é a cultura que conduz à inibição da sexualidade infantil, mas o contrário: “é a inibição da sexualidade infantil que propicia a energia para a civilização” (Corrêa, 2015, p.150). Essa inibição é pensada como algo determinado filogeneticamente. Isso significa que, na perspectiva freudiana, o ato sexual genital só é possível do ponto de vista psíquico como resultado da incidência dos poderes reativos (herdados) da vergonha e da repugnância. Sem eles, a sexualidade humana – na medida em que se encontrasse um caminho, para nós hoje insondável, para a reprodução da espécie – teria permanecido perversa polimorfa, tal como exigido pela era glacial.
Não apenas a inibição da sexualidade infantil teria origem filogenética, mas a própria sexualidade infantil em sua peculiaridade. Na primeira fase da sequência filogenética, explica a autora, a era glacial dá origem à angústia de anseio.6 “O eu, ameaçado em sua existência (…) absteve-se do investimento dos objetos sexuais e transformou a libido sexual em angústia, temendo ainda mais o real. Não se trata de uma perda do objeto, mas sim da abstenção do investimento deste” (Corrêa, 2015, p.110). Freud se referiria aqui, desse modo, a uma perda que seria anterior à própria vivência de satisfação e diria respeito a uma ruptura inaugural do ser humano com a função sexual biológica, estabelecendo-se um laço intrínseco entre pulsão 7 sexual e angústia. Essa ruptura inicial, filogenética, teria condicionado as fases subsequentes na história da espécie e possibilitado o próprio desenvolvimento psíquico, aí incluída a inscrição psíquica de objetos aos quais a libido viria se vincular. O que está em jogo aqui é, evidentemente, uma ruptura radical com a ideia de instinto. Mas a autora afirma que, por ter dado lugar a novas formações, a disposição produzida nos tempos glaciais teria se tornado permanente e, de uma disposição temporária, então contextualizada na era glacial, teria se tornado uma disposição herdada: o afastamento da ordem biológica “possibilitou novas formações (…) que serão descritas nas próximas fases da história filogenética, e que, por isso, de temporário se tornou permanente, se tornou disposição herdada, inata, presente em todos os seres humanos.” (Corrêa, 2015, p.125). A meu ver, isso parece trazer três dificuldades: 1Ora, o fato de x dar lugar a y não constitui, por si só, argumento para a defesa da permanência de x. Certamente, a construção é feita de modo retroativo: se as neuroses são tais e tais, as disposições que se tornaram permanentes foram estas.
Mas o raciocínio de Freud não parece fornecer uma justificativa para a transformação de algo temporário em algo permanente. 2Em se assumindo os pressupostos que Freud assumiu, por que a herança não teria, por sua vez, se alterado ao longo da própria história da espécie? Por que as disposições teriam permanecido as mesmas ao longo de dezenas de milhares de anos? Especialmente, por que teriam permanecido as mesmas após o término da glaciação? 3-A tese da herança não retorna à biologia? Como a herança poderia, ela mesma, não ser um fato biológico? Aquilo que se tratava aqui de alijar não retorna na posição mesma de fundamento? Se toda a questão é o afastamento da sexualidade humana da biologia, a hipótese filogenética não acaba exigindo um retorno a ela? Tudo indica que nos deparamos, ademais, com um jogo de recuos na argumentação de Freud. Se as disposições são herdadas, se todas elas estão presentes em todos os indivíduos divergindo entre eles apenas por uma questão de intensidade, se é a intensidade que, por sua vez, determina a escolha da neurose, obviamente torna-se necessário perguntar o que determinaria a intensidade da disposição.
Lebrun sugere em sua leitura, aliás também inspirada em Nietzsche, que a repetição da filogênese pela ontogênese – “herdada” por Freud de E. Haeckel e então traduzida pelo primeiro para disposições libidinais e traços psíquicos – nunca passa, na reflexão do psicanalista, de um pressuposto, por maior que seja sua potência heurística. Um pressuposto que precisa ser explicitado enquanto tal. Porque reconhecê-lo assim nos permite bem situar uma questão como a seguinte: em que medida a hipótese filogenética freudiana (assim como a argumentação de Totem e tabu ) constitui uma estratégia pretensa e explicitamente natural e tacitamente metafísica para a reprodução desse paralelo constitutivo da história do Ocidente entre, de um lado, masculino, pensamento e cultura, e de outro lado, feminino, afeto e natureza? Freud não opera aqui de fato, como sustenta Lebrun, uma sobreposição entre valores sócioculturais e normas vitais? Todos os pontos aqui ligeiramente levantados convocam a uma reflexão filosófica sobre a obra de Freud (e com ela). Sua discussão exige uma leitura adequada do rascunho do décimo segundo artigo metapsicológico. Para tal tarefa, encontramos, de uma maneira muito viva, elementos cruciais no livro de F. S. Corrêa, livro que contribui com brilho para a continuidade de uma tradição brasileira de estudos localizados na interseção entre filosofia e psicanálise. Ele é ferramenta sofisticada da qual o leitor brasileiro pode se valer, de modo privilegiado, para medir por si mesmo o peso que Freud atribui ao gelo na determinação e na compreensão dos fenômenos psíquicos.
Notas
1 Obra publicada em 1886.
2 Em 1983, na correspondência de Freud com S. Ferenczi, que foi quem sugeriu inicialmente os pressupostos da hipótese filogenética
3 Lemos: “As cenas de observação do ato sexual entre os pais, de sedução na infância e de ameaça de castração são indubitavelmente patrimônio herdado, herança filogenética, mas podem também ser aquisição da vivência individual. (…) O que vemos na história primitiva da neurose é que a criança recorre a essa vivência filogenética quando sua própria vivência não basta. Ela preenche as lacunas da verdade individual com verdade pré-histórica, põe a experiência dos ancestrais no lugar da própria experiência” (Freud, 2010, pp.129-30).
4 Freud parece supor apenas uma.
5 O início do livro traz uma discussão voltada para justificar a escolha de caracterizar a hipótese filogenética como história, em vez de mito.
6 É a tradução da autora para Sehnsuchtangst.
7 F. S. Corrêa prefere “impulso” para verter Trieb, embora empregue por vezes o adjetivo “pulsional
Referências
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____________. (2010). “História de uma neurose infantil (‘O homem dos lobos’, 1918 [1914])”. In: Obras completas, volume 14. São Paulo: Companhia das Letras.
GOLDSCHMIDT, V. (1970). “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos”. In: A religião de Platão (1949). São Paulo: Difusão Europeia do Livro.
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Monzani, L. R. (1991). “A fantasia freudiana”. In: B. Prado Jr. (ed.). Filosofia da psicanálise. São Paulo: Brasiliense.
SULLOWAY, F. (1992).Freud biologist of the mind – Beyond the psychoanalytic legend. Cambridge, Massachusetts/London: Harvard University Press.
Léa Silveira – Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais. E-mail: lea@dch.ufla.br
Impasses da democracia no Brasil – AVRITZER (NE-C)
AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Resenha de: SZWAKO, José; SANTOS, Fabiano. Dos impasses aos desafios de reconstrução da democracia no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, v. 35, n.3, Nov., 2016.
O contexto sociopolítico brasileiro pós-2013 colocou dilemas práticos e teóricos incontornáveis para nossas ciências sociais. Como chegamos até aqui? Quais atores, instituições e processos levaram ao impeachment da presidente Dilma Rousseff? Dispomos ainda de categorias e dimensões de análise adequadas à complexidade desse evento? A sucessão presidencial foi legítima? Foi, ao menos, legal? Olhando para trás, o encanto de parte dos analistas com os protestos de junho de 2013 virou perplexidade, quando não o triste pesadelo, de muitos: haveria, porém, continuidade entre 2013 e 2016? E, mirando-se adiante: quais são os reflexos do Regresso (para lembrar o opúsculo de Wanderley Guilherme dos Santos)1 encarnado no golpe parlamentar de agosto de 2016 em nossa prática política?
Como se vê,não são poucas as questões a serem urgentemente por nós encaradas e respondidas. É no rol desses dilemas que se inscreve Impasses da democracia no Brasil, de Leonardo Avritzer. Escrito no final de 2015, o livro traz a marca das tensões sociais e partidárias, expressas de modo mais evidente no ranço antipetista e antigovernista dos protestos massivos de março, abril e agosto daquele ano; “o governo da presidenta Dilma Rousseff passa por uma forte crise da qual não é possível saber se sobreviverá” (p.109) – como de fato não sobreviveu. Na pequena resenha que se segue,tentaremos tirar proveito do conhecimento prévio do evento.
O ar de análise de conjuntura do livro não faz dele menor porquanto conjuga em estilo acessível política e teoria política. Isto é, visa dar respostas teoricamente adequadas a questões da ordem do dia vis-à-vis alguns dos diagnósticos disponíveis sobre a qualidade da democracia brasileira, especialmente os elaborados por Paulo Arantes e Marcos Nobre,que tendem a enfatizar supostos déficits democráticos.
Impasses é crítico de feição frankfurtiana. Sua postura não se rende às páginas das sempre evocadas insuficiências, sejam elas institucionais ou culturais, brasileiras. Se nosso sistema político tem falhas, e Avritzer tem hipóteses robustas para mostrá-las, cabe ao analista completar sua crítica,quer dizer,fazer o diagnóstico das limitações do sistema vigente impreterivelmente seguido das fissuras e alternativas também por ele trazidas à baila. Destrinchado ao longo do livro, o diagnóstico se distribui em cinco elementos, quais sejam:
i) os limites do presidencialismo de coalizão, isto é, a deslegitimação da forma de fazer alianças, característica da democracia brasileira desde 1994; ii) os limites da participação popular na política, que tem crescido desde 1990 e é bem-vista pela população, mas não logra modificar sua relação com a representação; iii) os paradoxos do combate à corrupção, que avança e revela elementos dramáticos da privatização do setor público no país, os quais terminaram por deslegitimar ainda mais o sistema político; iv) as consequências da perda de status das camadas médias que passaram a estar mais próximas das camadas populares a partir do reordenamento social provocado pela queda de desigualdade; v) por fim, o novo papel do Poder Judiciário na política[p. 9].
Avritzer articula em pente-fino essas dimensões de seu diagnóstico somando,no terceiro capítulo,as causas e efeitos do ciclo de protestos de 2013.Sob risco de simplificar seu argumento,poderíamos dizer que a imbricação de uma dinâmica institucional de alianças (fundamentalmente ambivalente dado que virtuosa e custosa) com a percepção de corrupção (generalizada porém enviesada em desfavor do Partido dos Trabalhadores) opera no sentido de deslegitimar, aos olhos de uma classe média reconfigurada devido às políticas distributivas pós-2003, o sistema político como um todo, mas, mais danosamente, o próprio PT.Ao par presidencialismo de coalizão e corrupção,é somada uma análise da limitação das formas institucionais de participação, que,embora tenham deixado sua marca em parte das políticas sociais, não chegaram a permear áreas estratégicas do Estado brasileiro,levando a uma dupla “ruptura” (p. 66) no campo das mobilizações do país – à esquerda e,como se nota desde 2013,também à direita.Complexo, esse diagnóstico é complementado por uma saída de tom republicano: ampliar, aprofundar e tornar mais eficaz a participação popular – um pacote institucional que, como hipótese e potência, melhoraria tanto um suposto déficit de representação quanto o combate à corrupção. “Assim, a primeira agenda importante de um processo de reorganização do sistema político poderia ser uma extensão da participação social para a área de infraestrutura com o objetivo de democratizar essas obras e torná-las mais transparentes” (p. 121).
Três tópicos nos parecem centrais na argumentação contida no livro, a saber, o presidencialismo de coalizão, a herança de 2013 e os paradoxos resultantes da política de combate à corrupção dos três últimos mandatos democraticamente eleitos.
Sobre o presidencialismo de coalizão, parece-nos que Avritzer adota e reproduz uma definição mais ampla do conceito, definição que acaba por imputar a esse modelo institucional um grande conjunto de vícios do qual a política brasileira seria vítima. Falamos de definição mais ampla porque,em verdade,o termo presidencialismo de coalizão, numa visão mais restrita e, a nosso ver, mais precisa, tal como utilizado na literatura institucionalista stricto sensu, denota tão somente a conjugação da separação de poderes,característica do sistema presidencial, com o multipartidarismo, comumente derivado da adoção do sistema proporcional para o preenchimento das cadeiras no Legislativo.
Aqueles que criticam nosso modelo institucional, chamado de presidencialismo de coalizão, estabelecem uma espécie indevida de relação de causalidade entre a dinâmica de tal modelo e uma prática política que não só corrói os princípios, digamos, programáticos dos partidos que lideram a coalizão governamental como, no limite, compromete a legitimidade do sistema institucional em seu conjunto (ver p. 38 e seguintes). Ora, segundo nosso ponto de vista, e nisso seguindo análises mais recentes sobre o presidencialismo de coalizão,2 nada autorizaria, de uma perspectiva conceitual ou empírica, colocar na conta do modelo fenômenos políticos complexos e reconhecidamente ruins, tais como corrupção, descrença popular e profusão de escândalos aproveitados, e não raro produzidos, pela mídia.
Aqui é fundamental discernir dois elementos que são frequentemente sobrepostos na análise política:atores e instituições.Embora empiricamente e em todos os casos seja difícil identificar onde um ou outro esteja preponderando no desdobramento da conjuntura política, não se pode inferir a legitimidade ou eficiência das instituições a partir do uso que delas fazem os principais atores em cena. Em nossa avaliação, o exemplo brasileiro recente mostra exatamente isto: desde fins de 2014, a cada passo da conjuntura, e à medida que as crises econômica e social se aprofundavam, as cúpulas do PMDB e do PSDB se articulavam e se utilizavam das regras do jogo tendo em vista construir as condições ótimas para a consecução do golpe parlamentar que redundou no impeachment. Nada inerente ao desenho institucional brasileiro permitiria prever um comportamento desestabilizador assim assumido, desde o resultado das eleições daquele ano, por uma oposição até aquele momento leal à democracia e por lideranças de um partido até aquele momento parceiro na coalizão.
Rótulo alternativo para o que vem ocorrendo na política brasileira é amalgamado na ideia de uma suposta crise de representação. É inegável a existência de insatisfação de parte significativa das elites judiciárias, midiáticas, empresariais e de setores importantes das classes médias com os marcos centrais da democracia tal como consagrados na Constituição de 1988. Todavia, concomitantes à expressão de tais sentimentos, a ampliação e a pluralização da capacidade de representação externa ao Congresso,mas no interior do Estado brasileiro,têm sido ressaltadas em diversos trabalhos atinentes às interações Estado-sociedade.3 Se a inclusão de temas e atores da sociedade civil nos processos decisórios é alvo de crítica, como bem mostra Avritzer no livro, isso não infirma o diagnóstico – pouco conhecido, diga-se de passagem – de que as políticas públicas têm sido, desde a redemocratização,cada vez mais interpeladas e modificadas por organizações e movimentos sociais. Em suma, a agenda de pesquisa mais atual sobre os efeitos da institucionalização da participação denota não a limitação, mas antes a indagação sobre a efetividade das instituições participativas no Brasil.4
Enfim, e não obstante a riqueza da análise de Avritzer, entendemos que nada há de conclusivo, seja em torno do diagnóstico da corrosão institucional inerente ao presidencialismo de coalizão e por ele supostamente produzida, diagnóstico de resto conveniente a versões legitimadoras do golpe parlamentar, seja ainda no que tange à existência de uma crise de representação afetando o quadro político institucional brasileiro.
Outro tópico central no ensaio de Avritzer consiste no impacto do ciclo de protestos de 2013 sobre o processo político brasileiro. Quanto a esse tópico, parece-nos fundamental notar, primeiramente, que os significados e raízes da convulsão social experimentada em junho de 2013 ainda estão para ser descobertos e explicados. Nesse quesito, fatores sociais e institucionais, entre os quais destacaríamos a atuação dos agentes repressivos do aparelho de Estado, se misturam, dificultando um diagnóstico claro e consistente do perfil dos manifestantes e, portanto, da manifestação em jogo. A contribuição de Avritzer, aqui, caminha no sentido de mostrar como operou uma espécie de quebra do monopólio exercido pelas forças civis e políticas de esquerda sobre a mobilização de rua em nosso país. O desafio, em nossa visão, é explicitar claramente em que medida aquela profusão de bandeiras e vozes realmente se articula com os vetores recentes e regressivos assumidos pela política institucional. Nesse sentido, Impasses se torna de saída leitura incontornável para quem quiser entender, por exemplo, se e como se entrelaçam 2013, a acirrada disputa presidencial de 2014 e o triste episódio do golpe parlamentar.
Por último, e no que entendemos ser um dos pontos altos de Impasses, a questão do combate à corrupção e dos poderes a ele ligados. A citação é longa, mas necessária e algo premonitória:
A forma como no primeiro semestre de 2015 o Poder Judiciário colocou o Executivo na defensiva com práticas políticas questionáveis, como o vazamento seletivo de informações da Operação Lava-Jato e um abuso de prisões preventivas e de delações que têm como objetivo desestabilizar o campo político,mostra o perigo de uma solução para os impasses que não transite pelos poderes constituídos pelo voto popular [p. 116].
Tal intervenção, politizada e espúria, de agentes e instituições de controle, sejam ou não do Judiciário, frente a órgãos do Executivo e do Legislativo nos remete diretamente ao alerta imprescindível dado por Max Weber5 a seus contemporâneos da República de Weimar: ao funcionário público não cabe a disputa política nem a respectiva convicção. As alçadas do funcionário e do político profissional são distintas, assim como são distintas as responsabilidades estatuídas a cada posto. Que a política de seu país se tornasse refém da burocracia era um dos maiores temores de Weber – essa lição não pode ser hoje olvidada por aqueles que, como nós e Avritzer, entendem o potencial nefasto contido numa instância de poder que,em nome do combate à corrupção, atua de modo ilegal.
Ironicamente, se podemos falar de crise institucional de nosso modelo político, esta não emerge do presidencialismo de coalizão. A leitura de Impasses é mais uma confirmação,a nosso ver,de que graves distorções atingem o desenho mesmo de nossas instituições de controle, tal como inscrito na Constituição de 1988. Nesse particular, as recentes intervenções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),por exemplo, nas regras eleitorais e partidárias, bem como os ataques seletiva e partidariamente orientados do Ministério Público contra lideranças políticas ressoam uma das mais famosas preocupações madisonianas: quem controla os controladores? A ingerência administrativa sobre a disputa política exige não só sua crítica teórica. Exige, antes, a ação política daquele que é, ao fim e a cabo, o principal afetado pela instabilidade do jogo democrático judicialmente instilada e também o único soberano desse mesmo jogo: a vontade popular. Nesse sentido, e aprofundando uma pista dada por Avritzer, dois caminhos necessários e convergentes para a pacificação do Judiciário e das instâncias de controle no Executivo são o aprofundamento de mecanismos de controle tanto institucionalizados como externos às instituições.
A despeito das eventuais discordâncias interpretativas, Impasses se coloca como obra seminal nos projetos de reconstrução da democracia brasileira. A tarefa não será fácil, como não foi fácil a redemocratização consagrada na Carta de 1988. O primeiro desafio, certamente, passa pela responsabilização dos atores que desestabilizaram e usurparam a dinâmica democrática até aqui conquistada. No plano da disputa político-institucional, máscaras de atores que defendem um liberalismo douto requentado, quando não somente neoliberal, deverão ser reconhecidas enquanto tais.Já no plano da cultura política, o fenômeno é ainda mais complexo: o crescente fascismo das classes médias, alimentado não somente pela crise econômica mas também pelo Judiciário e por mídias hegemônicas, é realidade que julgamos imprescindível conhecer e combater. Em verdade, não é outra a questão maior que atravessa, além e aquém de Impasses, toda a obra de Leonardo Avritzer: a cultura política brasileira e sua contribuição para nossa história democrática – ou ainda democrática.
Referências
AVRITZER, Leonardo; Souza, Clóvis (Org.). Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade. Brasília: Ipea, 2013. [ Links ]
FREITAS, Andréa. O presidencialismo da coalizão. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2016. [ Links ]
GURZA LAVALLE, Adrian; Szwako, José. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, v. 21, n. 1, pp. 157-187, 2015. [ Links ]
PIRES, Roberto (Org.). Efetividade das instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: Ipea , 2011. [ Links ]
POGREBINSCHI, Thamy; Santos, Fabiano. “Participação como representação: o impacto das conferências nacionais de políticas públicas no Congresso Nacional”. Dados, v. 54, n. 3, pp. 259-305, 2011. [ Links ]
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Regresso: máscaras institucionais do liberalismo oligárquico. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994. [ Links ]
WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política do funcionalismo e da natureza dos partidos. Petrópolis: Vozes, 1993. [ Links ]
Notas
1 Santos, 1994.
3 Ver, entre outros, Pogrebinschi e Santos, 2011.; Avritzer e Souza, 2013; Gurza Lavalle e Szwako, 2015.
4 Ver Pires, 2011.
5 Weber, 1993.
José Szwako – Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Fabiano Santos- Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Obras Filosóficas y Científicas – LEIBNIZ (D)
LEIBNIZ G W. Obras Filosóficas y Científicas. Granada: Editorial Comares, 2007. Resenha de: MIGUEL, Bernardino Orio de. Dissertatio, Pelotas, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.
La inmensa obra intelectual de Leibniz (Leipzig, 1646 – Hannover, 1716) ha asombrado siempre a sus biógrafos e intérpretes. Jurista, semiólogo, matemático, metafísico, teólogo, historiador y, por encima de todo, insaciable escrutador de todo aquello que pudiera incrementar el desarrollo de la razón humana, el filósofo emborronó miles de folios, la mayor parte de ellos publicados muchos años después de su muerte y no pocos todavía inéditos en la actualidad, constituyendo así un fascinante laberinto de ideas y proyectos, de hallazgos científicos y de hipótesis futuristas, que él rubricó bajo el epígrafe de la Ciencia General y el sueño de una Característica Universal, que permitiera a los humanos descubrir la unidad orgánica e intencional de un mundo “que, a su modo, representa al Creador”, y con ello caminar por el sendero de la felicidad posible. Pues – solía decir – “la ciencia es la caridad del sabio; y la sabiduría, la ciencia de la felicidad” (AA VI, 4, p. 3-7; 133-136; 136-140; 970-981, etc).
Esta inagotable selva de escritos de Leibniz ha inclinado a los editores de la Academia de Ciencias de Berlín y de Göttingen a optar por repartir de forma pragmática en Series monográficas todo el material disponible (Asuntos Generales y correspondencia General, Escritos Filosóficos, Escritos Matemáticos, Escritos Jurídicos y Morales, Escritos Teológicos, Correspondencias filosóficas, por una parte, y matemáticas, por otra, etc) y distribuir cronológicamente cada serie en sucesivos volúmenes. Otra opción hubiera sido mantener la sincronía de los diversos intereses del filósofo en una única serie, que habría permitido cotejar más fácilmente la evolución y las íntimas relaciones que anudaban su múltiple discurso. Pero esta segunda alternativa acarreaba otros muchos problemas no menores en el proceso de transcripción de manuscritos y edición crítica aséptica de una obra tan compleja.
Ha de quedar, pues, para nosotros leer al mismo tiempo, por citar sólo un ejemplo, un escrito filosófico como el Système Nouveau (1695) en un volumen, y su correspondiente discurso dinámico Specimen Dynamicum junto con su inevitable fundamento matemático Specimen Geometriae Luciferae de la misma época, en otro. En cualquiera de las dos alternativas, es la exuberancia intelectual y la intuición holística de los grandes problemas humanos, que pugnaban en la mente de Leibniz, la que ha quedado ahí para sus lectores, como uno de los retos más fascinantes del pensamiento de todos los tiempos.
La traducción de los escritos de Leibniz al español, como la de otros muchos filósofos, ha tenido entre nosotros una trayectoria dispersa, asistemática y a veces caótica. El trabajo más importante y en alguna medida ordenado a pesar de sus inevitables limitaciones lo realizó Patricio de Azcárate en los excelentes cinco volúmenes de su Obras de Leibniz (Madrid, Casa Editorial de Medina, 1878). Las sucesivas entregas de la Edición de la Academia en los últimos treinta años y el creciente interés por la obra de Leibniz propició en los años ochenta del pasado siglo la fundación de la Sociedad Leibniz de España para estudios del Barroco, auspiciada por el querido y malogrado Quintín Racionero y un pequeño grupo de leibnizianos. Varios congresos, seminarios, debates y presentación de libros, han ido jalonando la producción de estudios, tesis doctorales y documentos diversos sobre el filósofo. Pero había que dar un paso más. Con la inapreciable e insólita garantía de la Editorial Comares, de Granada, el prof. Juan A. Nicolás, catedrático de filosofía de la universidad de dicha ciudad, presentó el arriesgado proyecto “Leibniz en español” para la traducción sistemática, lo más amplia y completa posible, de los escritos de Leibniz, siguiendo las pautas de la Academia. Teniendo en cuenta que el filósofo se repite incansablemente y, al mismo tiempo, modifica sus perspectivas caleidoscópicas casi al infinito, a ningún entendido en estas lides se le oculta la enorme dificultad de seleccionar lo más representativo de su pensamiento. Además del apoyo institucional y editorial, han colaborado desinteresadamente en el empeño una cohorte de traductores, correctores y editores en el magno proyecto coordinado por el Prof. Nicolás, que constará en torno a veinte o veintidós volúmenes que van apareciendo conforme los traductores y editores los tienen a punto. Paso a reseñar brevemente los publicados hasta ahora y me detendré un poco más en presentar el último volumen, el de Escritos Matemáticos, aparecido en los años 2014 y 2015, puesto que consta de dos tomos.
En 2007 apareció el volumen 14, Correspondencia I, que contiene las Correspondencias con Antoine Arnauld y con Bartolomé Des Bosses, con traducción y edición a cargo de Juan A. Nicolás y María Ramón Cubells respectivamente.
Dos correspondencias esenciales en la trayectoria de Leibniz; la primera, en su momento álgido cuando el filósofo trataba de asentar definitivamente la noción de sustancia simple (1688-1690); y la segunda (1706-1716), en el momento en que Leibniz se ve sorprendido ante las últimas dificultades acerca de la unidad metafísica vs orgánica de la sustancia.
En 2009 se publicó el volumen 8 con diversos traductores y edición a cargo de Juan Arana. Son los Escritos Científicos. Como he sugerido más atrás, Leibniz entendía por “ciencia” algo mucho más ancho que la mayoría de sus contemporáneos: su ciencia era a la vez matemática y metafísica. El lector encontrará aquí los escritos esenciales acerca de la Dinámica y sus fundamentos, así como, por ejemplo, la bellísima “Protogaea” (de 1692) y variados discursos, desde la invención del fósforo, la máquina aritmética, la construcción de relojes, el barómetro, etc
En 2010 le tocó el turno al volumen 2, Metafísica, con diversos traductores y edición de Ángel Luis González. Ocurre con la metafísica lo mismo que con los escritos científicos: una y otros se desbordan a sí mismos. El volumen trata de los conceptos metafísicos esenciales para Leibniz: la noción de ente, los principios de contradicción y de razón suficiente, la necesidad y la contingencia, y los textos fundamentales, desde el principio de individuación y la reforma de la filosofía primera hasta el discurso de Metafísica y el origen radical de las cosas, etc.
Siguió en 2011 el volumen 16A+16B, Correspondencia III, las Correspondencias con Burcher de Volder y con Johann Bernoulli, traducción y edición de Bernardino Orio de Miguel. Así como los intercambios con Arnauld y Des Bosses se centraban en la metafísica, estos últimos (1693-1716) tienen como objeto central la dinámica y la matemática respectivamente. De Volder forzó a Leibniz a apurar sus más recónditos conceptos de la ciencia dinámica. Johann Bernoulli colaboró con él en el desarrollo del cálculo infinitesimal y su aplicación a las ecuaciones transcendentes, que Descartes había excluido de la Geometría. Johann Bernoulli fue, quizás, el primer leibniziano.
En 2013 vio la luz el volumen 5, Lengua Universal, Característica y Lógica, con diversos traductores y edición a cargo de Julián Velarde y Leticia Cabañas.
Después de todo lo dicho hasta aquí, habrá que añadir que Leibniz fue, ante todo, un epistemólogo, un semiólogo genial y obsesivo. El lector encontrará aquí los escritos esenciales y técnicos acerca de la Lógica formal, desde la aristotélica a la ampliación leibniziana, sus mecanismos y sus fundamentos, la construcción de un lenguaje racional y universal. Todo ello en el contexto de los volúmenes 1 y 3-4, donde Leibniz explicará largamente el subsuelo gnoseológico de todo el saber humano en la que él llamaba la Ciencia General.
En 2014 se publicó el volumen 10, Ensayos de Teodicea, con traducción y edición de Tomás Guillén Vera. Una de las obras más extensas, más conocidas y más problemáticas de Leibniz, la Teodicea plantea, en polémica con el escepticismo de Pierre Bayle, la justificación de la bondad, de la sabiduría y de la voluntad de Dios en la contingencia de los hechos de este mundo a la luz de su principio de lo óptimo y de los otros principios que vertebran toda su metafísica y su ciencia de la naturaleza, sin los que la obra corre el peligro de no ser bien entendida.
Bernardino Orio de. Miguel – Madrid.
Obras Filosóficas y Científicas. Vol, 7: Escritos Matemáticos- LEIBNIZ- D
LEIBNIZ G. W. Obras Filosóficas y Científicas.Vol, 7: Escritos Matemáticos. Ed. Marisol de Mora. Granada: Editorial Comares, 2014-15. Resenha de: MIGUEL, Bernardino Orio de. Dissertatio, Pelotas, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.
Le toca el turno finalmente al volumen 7A+7B, Escritos Matemáticos, 2014-15, que acaba de salir de las prensas en el momento en que se redacta esta recensión. Con diversos traductores y edición de Mary Sol de Mora, presenta en dos entregas los textos esenciales del inmenso e imaginativo quehacer matemático de Leibniz desde su primera juventud hasta el final de su vida, una febril actividad inventiva que abarca todo el espectro matemático de la época: el cálculo binario, las primeras intuiciones sobre el uso de determinantes en las ecuaciones lineales, el arte combinatorio, la teoría de números, desarrollos en serie, el cálculo infinitesimal, la característica aplicada a la geometría más allá de la analítica cartesiana, la probabilidad, los juegos de azar y la estadística, etc, a lo que me referiré luego con un poco más de detalle. Pero antes conviene hacer algunas breves precisiones.
A diferencia de los grandes matemáticos más o menos coetáneos del filósofo (Galileo, Cavalieri, Vallis, Barrow, Descartes, Fermat, los Gregory, los Bernoulli, Huygens, Newton, etc), Leibniz entendió siempre la matemática como un instrumento, un instrumento autónomo sin duda y autosuficiente en el universo inteligible e, incluso, necesario y aplicable a todo razonamiento humano, pero al servicio de una visión orgánica de lo real que trasciende todo cálculo, pues lo real, o sea, lo singular, cada mónada, cada suceso del mundo, a diferencia del infinito ideal del cálculo, es un infinito actual irrepetible en la serie sin límite de los hechos (AA VI 4, p. 1515ss; OFC 2, p. 151ss). La matemática, la geometría – la geometría analítica cartesiana, la mathesis universalis –, una geometría sometida todavía al trazado sensible de figuras en el plano, fue en el siglo XVII el paradigma de toda demostración científica. Y así lo entendió Leibniz desde sus años jóvenes. “Yo veía – le dice a Arnauld en 1671, antes de su viaje a París (1672-76) – que la geometría o filosofía del lugar da acceso a la filosofía del movimiento o cuerpo, y la filosofía del movimiento a la ciencia de la mente” (AA II,1, p. 278). Y al duque Johann Friedrich por las mismas fechas: “Tengo intención de escribir unos Elementos acerca de la mente lo mismo que Euclides hizo acerca de la magnitud y la figura, y Hobbes acerca del cuerpo o movimiento” (AA II,1, p. 182). De manera que – añadirá en febrero de 1676, tras el descubrimiento del cálculo diferencial – “sólo la geometría puede proporcionarnos el hilo para salir del laberinto de la composición del continuo y resolver los problemas acerca de máximos y mínimos, acerca de lo inasignable e infinito, de modo que nadie llegará a una sólida metafísica si no ha pasado por la geometría” (AA VI, 3, p. 449). Mas pronto descubrió, precisamente en el cálculo según él, que el continuo funcional siempre interminado de nuestras ecuaciones y de nuestras medidas y requiere para su completa inteligibilidad asumir la existencia de cosas discontinuas, únicas, no extensas, no medibles, verdaderas unidades, que den sentido y realidad a la idealidad de los fenómenos que observamos. Resultó así que la geometría – “la geometría más profunda” – se convertía para él en el método dialéctico-platónico de ascenso a lo verdaderamente real, las sustancias simples (ibídem). “Comprendemos así – dirá en 1685 – que unas son las proposiciones que pertenecen a las esencias y otras las que pertenecen a las existencias de las cosas” (AA VI 4, p. 1517; OFC 2, p.153). Y al final de su vida, pocos meses antes de morir, en un comentario a ciertas críticas que John Toland había hecho a su cálculo y a su sistema de las mónadas, respondía así: “A pesar de mi cálculo infinitesimal, yo no admito un número verdaderamente infinito, aunque confieso que la multitud de las cosas supera todo número finito, incluso todo número (…). El cálculo infinitesimal es útil cuando se trata de aplicar la matemática a la física; y sin embargo, no es mediante él como yo doy cuenta de la naturaleza de las cosas, y considero las cantidades infinitesimales como ficciones útiles” (GP VI, p. 629).
Paradójicamente, es precisamente la imperfección actual de las criaturas, frente a la perfección ideal del cálculo, la marca de su singularidad, de su completud interna, de su irrepetibilidad, que se muestra en la materia medible. (GP VII 563s). O si fuera lícito el anacronismo y pudiéramos evocar la actual física de partículas, entenderíamos a Leibniz afirmando, frente al mecanicismo entonces reinante, que el universo es radical y originariamente pura energía existencial, sólo expresable en las infinitas partículas de materia, crecientemente menores sin fin, como los neutrinos u otras partículas que quizás la naturaleza todavía esconde. Y la matemática y demás estrategias del cálculo sería el instrumento imprescindible de acceso a ella, pero corremos el riesgo de quedarnos en el cálculo cuando lo que buscamos es lo real, “como les ocurre a los ‘materiales’, que confunden las condiciones y los instrumentos con la causa verdadera” (GP III, p. 55; GM VI, p. 134; OFC 8, p. 223). “Quien aprehendiera absolutamente tan sólo una única parte de la materia – le decía a Des Bosses en 1710 –, ese tal comprendería absolutamente el universo entero” (GP II p. 412; OFC 14, p. 327).
Sirva, quizás, esta precipitada síntesis para sugerir el lugar que la matemática ocupó siempre en la cosmovisión de Leibniz. Cuando el año 1702 los matemáticos franceses – salvo el Marqués de L’Hôpital – ponían en duda – y con razón – el rigor lógico de los infinitésimos leibnizianos, el filósofo tuvo que tranquilizar a su corresponsal Varignon con estas palabras: “No es necesario hacer depender el análisis matemático de las controversias metafísicas ni afirmar que en rigor haya en la naturaleza líneas infinitamente pequeñas en comparación con las nuestras; nos basta explicar lo infinito por lo incomparable, es decir, concebir cantidades más grandes o más pequeñas que las nuestras, de modo que nos contentemos con grados de incomparabilidad” (GM IV, p. 91) y admitamos pragmáticamente la ley de los homogéneos: la suma ; y también el producto =xdy+ydx+[dxdy]=xdy+ydx. etc. pues los infinitésimos no son magnitudes reales sino relaciones ficticias de cocientes que se conservan constantes en su creciente pequeñez y son por ello “prescindibles”: aquello que es incomparablemente más pequeño es irrelevante introducirlo en el mismo cómputo con aquello que es incomparablemente más grande y hacer en la práctica la operación conmensurable; de esta manera, el error de cálculo será siempre “menor que cualquier error dado”, o sea, error nulo (Leibniz en Studia Leibniziana, Sonderheft 14, 1986, p. 97-102). Así que pueden y deben los matemáticos “en su oficio” seguir investigando. Y así lo hizo Leibniz en los maravillosos textos que contienen los dos tomos de este volumen “cuando oficiaba de matemático”.
Aunque Leibniz no fue el primer “inventor” del cálculo de base dos o Cálculo Binario, fue sin duda, tras conocer el I Chin por cartas de los Jesuitas en China, el principal impulsor en Occidente de lo que más tarde sería el Algebra de Boole, como base lógica de los circuitos electrónicos y de la fantástica aplicación a lo que ahora llamamos universo on line. Pues conviene recordar que el Cálculo Binario, lo mismo que el cálculo infinitesimal, eran, para él, sólo pequeñas aplicaciones de aquel magno proyecto de una Analítica y una Combinatoria Universal como instrumentos de la Ciencia General. Ya en 1675, cuando andaba enredado con el nuevo algoritmo, vaticinaba lo siguiente: “A medida que vaya progresando poco a poco el género humano, podrá ocurrir al cabo de muchos siglos que nadie merecerá ya alabanza por la exactitud de su juicio; pues, universalizado el arte analítico, que ahora apenas si se usa sólo de forma correcta y general en las matemáticas, y extendido a toda clase de materias con la ayuda de caracteres filosóficos, tal como yo pretendo, ocurrirá que, dado un tiempo suficiente para la meditación, razonar rectamente no será más meritorio que calcular secuencialmente grandes números” (AA VI 3, p. 429). [Textos I, i-1, i-2].
Siempre insatisfecho con la imperfección de la geometría analítica cartesiana, Leibniz ensayó, por una parte, la sustitución de las letras por números combinatorios en sistemas de dos o tres ecuaciones lineales, a fin de eliminar más fácilmente las incógnitas y dar unidad aritmética al sistema; fue ésta una primera intuición, todavía confusa y poco elaborada, de lo que más tarde serían los determinantes de las ecuaciones [Introducción, p. XVII-XX, y Textos II, ii-1 – ii-10]. Por otra parte, y a fin de evitar igualmente el “extensionalismo físico y los rodeos inútiles” que las ecuaciones algebraicas requerían, Leibniz pensó una vez más en su combinatoria para construir una nueva geometría abstracta que definiera numéricamente los lugares y sus relaciones, sus semejanzas, los puntos, los espacios, etc, a lo que llamó Característica Geométrica o Analysis situs. De esta manera, podría describirse cualquier objeto en el espacio “sin emplear figuras ni palabras, sino números”. A lo largo de toda su vida fue ésta quizás una de sus principales obsesiones matemáticas, que la editora de este volumen nos ofrece en su introducción [p. XXVIII-XXXIV] y en una amplia muestra de textos imprescindibles [Textos IV]. He aquí, una vez más, a Leibniz intuyendo lo que más tarde en el siglo XX sería, ya perfeccionada, la topología. Y no han faltado agudos intérpretes del filósofo que han visto en esta teoría abstracta del espacio uno de los fundamentos científicos de su metafísica, como se mostró al fin en la disputa con Clarke-Newton.
Dada su transcendencia científica e histórica, un capítulo especial merece el descubrimiento del cálculo infinitesimal, al que ya hemos hecho referencia más atrás a propósito de la cosmovisión de Leibniz. Este volumen recoge, entre otras muchas, varias piezas importantes, complicadas sin duda pero fundamentales, que aún no se conocían en versión española. El largo texto de la Cuadratura aritmética del círculo, de la elipse y de la hipérbola, del año 1675/76, donde el filósofo expone de manera sistemática su nuevo descubrimiento; y las cuatro cartas, la Epistola Prior y la Epistola Posterior de Newton con sus correspondientes respuestas de Leibniz, de las mismas fechas que la Cuadratura: todo un festín para amantes de la historia del cálculo; y para los menos valientes, el resto de los textos [Textos III. iii-1 – iii-15].
Desde los babilonios y los pitagóricos, la teoría de números y sus fascinantes aplicaciones habían subyugado a los matemáticos de todos los tiempos. El filósofo de Hannover no podía ser una excepción, como él mismo cuenta en numerosas ocasiones [Textos, V]. Fue precisamente en la contemplación de los números primos en su proyecto combinatorio donde Leibniz experimentó por primera vez en su adolescencia la manera de ampliar la lógica aristotélica de proposiciones a los términos simples del conocimiento y redactó su juvenil Dissertatio de arte combinatoria, que se traduce aquí íntegramente [Textos, VI]. Y fue también en el estudio de los números triangulares que, según él, Pascal no había explotado, donde se inició su camino hacia el cálculo infinitesimal [Textos III, iii-14]. A su vez, el estudio de las cónicas, desde Apolonio y Arquímedes, constituyó así mismo una de las fuentes más importantes para la solución de las cuadraturas, que Leibniz resolvió en su análisis. Etc.
Finalmente, la editora nos obsequia en la segunda entrega, volumen 7B (Textos VII-IX), con una serie de textos, si bien menos conocidos no por ello menos importantes, acerca de la enorme variedad de intereses matemáticoprácticos de Leibniz en torno a juegos de azar, análisis de la probabilidad, estadística y Seguros, materias todas ellas en las que Mary Sol de Mora es una de nuestras más excelentes expertas (Introducción, p. XXXIX-LXI).
La publicación de este volumen de Escritos Matemáticos de Leibniz debería constituir un hito en la historiografía española acerca de uno de los talentos más geniales y visionarios de nuestra cultura.
Durante los próximos años irán apareciendo otros volúmenes sobre Filosofía del Conocimiento-la Ciencia General-la Enciclopedia, Escritos Teológicos y Religiosos, Escritos Médico-Filosóficos, Escritos Éticos y Políticos, los Nuevos Ensayos, las Correspondencias II, IV, V, VI, para terminar en el último volumen con los Índices de toda la serie de Obras Filosóficas y Científicas de Leibniz.
Bernardino Orio de. Miguel – Madrid.
Teoría de La definición de Leibniz – VELARDE LOMBRAÑA (D)
VELARDE LOMBRAÑA, J. Teoría de La definición de Leibniz. Granada: Comares, 2015.Resenha de: ESCRIBANO, Miguel. Dissertatio, Pelotas, v. 47, p. 333-336, 20018, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.
La colección Nova Leibniz (http://leibniz.es/novaleibniz.htm) es fruto de la colaboración entre el proyecto de investigación “Leibniz en español” (www.leibniz.es) y la Editorial Comares. El proyecto “Leibniz en español”, coordinado por el catedrático de Filosofía de la Universidad de Granada, Juan Antonio Nicolás, lleva ocho años implicado en la edición en esta misma editorial de una selección sistemática de las obras de G.W. Leibniz. Entre los éxitos del proyecto cabe destacar además la constitución de la Red Iberoamericana Leibniz, cuyo principal objetivo es coordinar, visibilizar y potenciar el trabajo realizado por los investigadores de habla española y portuguesa, y la creación de la Biblioteca Hispánica Leibniz (www.bibliotecahispanicaleibniz.es), donde se está reuniendo todo lo publicado de y sobre Leibniz en el ámbito cultural de las lenguas española y portuguesa.
El objetivo de la colección Nova Leibniz es publicar trabajos de investigación novedosos relativos al pensamiento y la obra de G.W. Leibniz. Se presenta como una colección dirigida a la comunidad investigadora internacional, aceptando trabajos originales e inéditos escritos en alguno de los idiomas siguientes: español, portugués, inglés, francés, alemán o italiano. Entre sus últimas novedades cabe destacar: Deo volente. El estatus de la voluntad divina en la Teodicea de Leibniz, de M. Griselda Gaiada y Curvas y espejos. El carácter funcional de la actividad monádica en G.W. Leibniz, de Laura Herrera.
El profesor Julián Velarde Lombraña, catedrático de Filosofía en la Universidad de Oviedo, ha dedicado su larga y fructífera trayectoria al estudio de la lógica y su historia, la teoría del conocimiento y la teoría del lenguaje.
Ocupa un lugar destacado sus traducciones y trabajos sobre Platón, Aristóteles, Tomás de Aquino, Caramuel, Leibniz y Peano. Es precisamente su labor de investigación sobre el pensamiento del filósofo de Hanover la que ahora nos gustaría reseñar.
Además de su magnífica edición en castellano de la Monadología (Madrid: Biblioteca Nueva, 2001) y la publicación de numerosos y reconocidos artículos, su entrega a la obra y el pensamiento de Leibniz ha dado en los últimos años dos frutos destacados. En el año 2013 la Editorial Comares publicaba el volumen que para la edición de las Obras filosóficas y científicas de G.W. Leibniz había preparado junto a Leticia Cabañas, dedicado a los textos sobre Lengua Universal, Característica y Lógica (Granada: Comares, 2013, 528 págs.).
Paralelamente a la preparación de esta edición, el profesor Julián Velarde ha ido desarrollando una complementaria labor de investigación e interpretación sobre el pensamiento leibniziano que fue apareciendo en una serie de trabajos y ponencias en congresos. Toda esta labor culminó con la publicación del libro que aquí presentamos, Teoría de la definición de Leibniz (Granada: Comares, 2015), que recomendamos leer acompañado de la obra anterior, pues la mayoría de los textos sobre los que Velarde construye su interpretación están recogidos en esa edición.
La teoría de la definición es un elemento nuclear del pensamiento leibniziano dedicado a la búsqueda progresiva de un orden y una sistematización de todos los conocimientos, proyecto al que el filósofo dio el nombre de Ciencia General. Este método de sistematización se funda en el principio leibniziano de la ligazón universal de todas las cosas, que conecta con una concepción de la razón donde la inserción y el análisis de cada concepto o noción obedece a leyes generales que nos permiten, y obligan, a transitar analógicamente a largo de los distintos ámbitos del conocimiento.
La idea de Leibniz es que si conseguimos establecer el conocimiento sobre la base de unas nociones primitivas podremos formalizar y describir todos los reinos del saber. Todas las derivas que dio este proyecto se pueden sintetizar en torno a la problemática naturaleza de estas nociones primitivas, desde sus comienzos con la Combinatoria y la Característica hasta sus últimos logros a partir del descubrimiento del Cálculo.
Al igual que en su física Leibniz rechazó el atomismo en cuanto comprendió que en la naturaleza todo cuerpo está actualmente dividido al infinito, en su teoría de la definición Leibniz terminó por desechar la idea de encontrar una noción que una vez bien definida actuara como un átomo, dado que, como pronto comprendió, el análisis de una noción es inagotable.
Este “percance” relativo a la naturaleza de las nociones primitivas hizo por otra parte avanzar al proyecto leibniziano. En un primer momento Leibniz desdobló su metodología, bien estemos tratando con verdades necesarias (de análisis finito), bien con verdades contingentes (donde el análisis es infinito). En la metafísica leibniziana esta distinción entre necesidad y contingencia opera ligada a la distinción entre posible y existente, relación donde queda trabada la diferencia y la articulación entre los principios de la razón: principios lógicos y principios ontológicos. De todo ello deriva la distinción que Leibniz hace entre definición nominal y definición genética. Una muestra de cómo opera en su distinción y articulación este desdoble del análisis lo encontramos en la posición leibniziana con respecto a la prueba de la existencia de Dios, a la que Velarde dedica el tercer capítulo del libro. Leibniz se desmarca tanto de la definición cartesiana de Dios como causa sui como de la definición genética de Spinoza por el mismo motivo: confundir razón y causa. Leibniz reinterpreta esta distinción desde su teoría de los requisitos, sobre la que Velarde se extiende en el primer capítulo.
El análisis de términos, si se lleva a cabo adecuadamente bajo lo guía de los principios de no contradicción y de identidad, nos ha de conducir a la definición nominal, que nos permite enumerar las notas o requisitos suficientes para distinguir una cosa de todas las demás. Aunque en la definición nominal esté cifrada la constitución de la cosa (sus requisitos internos) lo más útil, afirma Leibniz, es si sus requisitos incluyen además la generación de la cosa, y nos ofrecen una definición genética. La primera, la definición nominal, es capaz de denotar la esencia de la cosa y la segunda, la definición genética, además demostrar que de ésta (de la esencia) se sigue la existencia: la definición genética, afirma Leibniz, envuelve una causa próxima de algo. Leibniz divide la definición en nominal y genética en función de que los constituyentes de la definición, esto es, los requisitos, sean o bien internos, y entonces representen la razón suficiente de la posibilidad de una cosa, o bien externos, y entonces incluyan además su causa. El éxito de la teoría de la definición radica en conseguir mostrarnos cómo se correlacionan los requisitos internos y los requisitos externos, sin confundirlos, como según Leibniz hacían Descartes y Spinoza. Para avanzar en ello Leibniz insertará ingredientes procedentes del Cálculo y la Dinámica.
A partir de aquí se abren varias opciones. La tomada por Julián Velarde en su libro es quizás una de las más interesantes, dado que permite abarcar más aspectos del pensamiento leibniziano. Se trata de saltar de la teoría de la definición a la teoría de la sustancia. Leibniz nos facilita ese paso, dada la relación intrínseca que establece entre los principios lógicos y los ontológicos. Como nos muestra Velarde, para comprender el sustrato que nutre la concepción leibniziana de la sustancia como noción completa o como ley de la serie hay que continuar el tratamiento leibniziano de las relaciones entre posibilidad-necesidad y esencia-existencia.
La distinción entre definición nominal y genética nos lleva a un doble tratamiento sobre lo posible. Por un lado, nos dice Velarde, nos encontramos , con la esfera de las esencia posibles, que son eternas y necesarias y que existen desde la eternidad en el entendimiento divino. Lo posible-esencial constituye el objeto interno del entendimiento divino desde el que Dios produce, actualiza, crea o da existencia a las cosas o verdades contingentes. En tanto verdades eternas, los posibles-esencias son independientes de la acción divina y sólo obedecen al principio de no contradicción. Nos dice así Velarde que la posibilidad de lo absolutamente posible y la verdad de las verdades eternas están más allá, y son independientes de, la voluntad, el poder y el entendimiento de Dios, lo que vincula a Leibniz con la tradición platónica. Ilustra Velarde esta posición de Leibniz con los comentarios que el filósofo de Hanover escribió sobre el Leptotatos de Caramuel.
Por otro lado, distinguimos un segundo tipo de posibles: los posibles realizados o existentes, sobre los que rige otra serie de principios.
(1) El principio de perfección o de máxima esencia nos define lo posible como categoría ontológica: lo posible demanda existencia en función de su grado de perfección o esencia. La existencia no es por tanto un complemento de la esencia sino que está contenido y determinado por ella. Nos conduce este principio hasta la teoría de la composibilidad (que enfrenta a Leibniz con la tesis spinozista de que todos los posibles existen) y a una lógica posibilista, cuya origen, nos muestra Velarde, lo podemos remontar hasta Aristóteles.
(2) El segundo principio es el de razón suficiente. Como el anterior, este principio atañe a la existencia o no existencia de todo ente, pero además, a su forma de ser, esto es, al conjunto de los atributos que lo definen como existente, para los cuales ha de haber una razón determinante que no es necesitante: todo ente se encuentra necesariamente en la serie de lo existente según alguna razón, pero no es necesario el que tenga está razón u otra. Enlaza Velarde desde este principio con la teoría de la sustancia como noción completa (unidad que incluye o envuelve todos sus atributos como existente) y con la interpretación de la naturaleza de la sustancia como ley de la serie (razón de la serie de esos atributos).
A la concepción de la naturaleza de la sustancia como ley de la serie están dedicados los dos últimos capítulos del libro, el cuarto, centrado en la sustancia finita, y el quinto capítulo sobre Dios. En esta última parte del libro es donde la interpretación de Velarde se muestra más original. Primero, en el modo como articula las ideas del Cálculo y la Dinámica para pensar la naturaleza activa de la sustancia en términos de la razón o forma que da unidad y orden al desarrollo de una serie. Resulta iluminador respecto a la concepción leibniziana de la sustancia el modo como Velarde aplica el modelo serial para comprender caracteres fundamentales de su naturaleza, como son la unidad y la actividad.
Destacar aquí la complicidad de Velarde con la investigación de Laura Herrera sobre el funcionalismo leibniziano (publicada en esta misma colección). Velarde va más allá de Herrera al extender el modelo de la serie a la explicación de la arquitectónica subyacente a la visión del mundo de Leibniz, desde el mínimo al máximo orden de perfección, desde las simples mónadas desnudas a los espíritus, o desde la naturaleza representativa de los sujetos al entendimiento infinito de Dios. Velarde nos muestra además cómo se correlacionan todos los principios leibnizianos en esta arquitectónica visión del mundo y cuál es el papel de Dios en todo ello.
Partiendo de la distinción que hace Leibniz entre homogeneidad y homogonía (por ejemplo, para explicar la relación entre el punto y la línea y la conversión entre ambos), Velarde nos dice que Leibniz se habilita una vía para explicar lo continuo desde lo discontinuo, como un caso de progresión que permite que una cosa llegue a ser (o se desvanezca en) una cosa de un género distinto, sin perder por ello los caracteres que la caracterizan (lo que explica, por ejemplo, que la línea esté compuesta de puntos). Esta interpretación de la ley de la continuidad leibniziana en términos de homogonía nos muestra como el mundo de los posibles existentes, mediante una progresión serial continua de más a más posibilidad, en el límite, esto es, en el máximo de posibilidad, se desvanece en el ser necesario, en Dios. En el infinito, nos dice Velarde, la posibilidad o la esencia máxima viene a equivaler a la necesidad o la perfección máxima, esto es, a Dios, definido como límite de la serie infinita de los posibles.
Miguel Escribano – Universidad de Granada.
Curvas y espejos.el carácter funcional de la actividad monádica en G.W. Leibniz – HERRERA (D)
HERRERA, Laura E. Curvas y espejos.el carácter funcional de la actividad monádica en G.W. Leibniz. Granada: Editorial Comares, 2015. Resenha de: HURTADO, Ricardo Rodríguez. Dissertatio, Pelotas, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.
Curvas y Espejos ofrece un riguroso análisis del concepto de función en la obra de Gottfried Wilhelm Leibniz. El texto de este libro se extrae de la tesis doctoral que la investigadora Laura E. Herrera realizó en la Universidad de Granada bajo la dirección del profesor Juan Antonio Nicolás Marín. El libro está publicado por la Editorial Comares en Nova Leibniz, una serie de estudios dedicados al pensamiento de este filósofo alemán, colección realizada en colaboración con el grupo de investigación Leibniz en español.
En este estudio una conclusión se impone rápidamente sobre el resto: el concepto de función presente en la obra de G.W. Leibniz no se asimila al actual concepto matemático de función ni tampoco se reduce al concepto geométricomatemático que el propio autor elabora en sus trabajos. Aunque pueden encontrarse relaciones entre estos dos métodos de análisis matemático y el concepto de función leibniziano, es un anacronismo buscar el actual concepto matemático de función en la obra de este filósofo del siglo XVII y un reduccionismo querer otorgar a este concepto un significado únicamente geométrico-matemático dentro de sus trabajos. Laura defiende que en el pensamiento de Leibniz encontramos una idea de funcionalidad definida por tres “elementos”: legalidad, reciprocidad y serialidad. Este “carácter funcional” está presente en toda su obra, motivo por el que acuña el termino de funcionalidad expandida, también el de funcionalidad desnuda (de matematicidad). Así expresa la idea en la página 151; “A partir de allí se llegó a tres características definitorias para la función: la variación conforme a ley; la asignación recíproca entre magnitudes, que hemos denominado como correspondencia o interdependencia; y la serialidad, pues el término se usa siempre en relación con la idea de series infinitas y aplicado a términos de tales series. Hemos caracterizado estos tres elementos como los rasgos de una funcionalidad desnuda del contexto matemático en el que la hemos encontrado, o una funcionalidad expandida a otros campos”.
Los principales desarrollos teóricos de esta idea de funcionalidad se identifican prestando atención a la división del libro en tres capítulos. El primer capítulo, titulado Del concepto matemático de función a la idea de funcionalidad en G. W.
Leibniz, se centra en el análisis de la construcción matemática del concepto de función leibniziano. En él, tras analizar los diversos usos que Leibniz hace del término functio, Laura extrae de ese análisis de la construcción matemática del concepto su idea de funcionalidad expandida. El segundo capítulo, titulado La metáfora del espejo y el carácter funcional de la expresión, relaciona la idea de funcionalidad expandida con la teoría expresiva del conocimiento de Leibniz. Tras una primera discusión sobre cómo debe entenderse el carácter analógico de la relación de expresión para percibir su carácter funcional, Laura pasa a analizar la metáfora del espejo viviente. Esta reflexión, tan precisa en la reconstrucción lexicográfica como sugerente en la evaluación teórica, afianza y especifica la relación entre el concepto de expresión y el de función. El tercer y último capítulo, Acción y fuerza: la funcionalidad en el doble carácter de la actividad monádica, defiende que los elementos de la funcionalidad expandida se encuentran también en el aparecer fenoménico de la mónada en tanto que fuerza actuante en la naturaleza. De manera similar al segundo capítulo, en el que se establecía la determinación representativa de la mónada a través del concepto de expresión, este tercer capítulo determina la realidad efectiva de la mónada, su corporalidad fenoménica, por el concepto de fuerza activa. Estas dos formas de determinación monádica, aunque inseparables, son independientes la una de la otra. Laura expresa esta idea, en la página 208, de la siguiente manera: “No puede explicarse fenoménicamente al fenómeno en cuanto sustancia, como tampoco puede comprenderse sustancialmente a la sustancia en cuanto fenómeno; la dinámica aporta las herramientas para comprender los fenómenos dentro de su lógica y conforme a sus propias leyes. Si la acción puede manifestarse en ambos lenguajes es porque, en rigor metafísico, la fuerza es expresión y, en su manifestación fenoménica, la expresión es fuerza”. Por el lado metafísico de la expresión están el carácter representativo y apetitivo de la acción; por el lado fenoménico de la fuerza, el carácter mecánico y orgánico de la misma. El último paso argumentativo es encontrar la legalidad, la reciprocidad y la serialidad de la funcionalidad expandida en la hipótesis de la armonía preestablecida con la finalidad de relacionar estas dos dimensiones.
Las tres grandes líneas de argumentación que se acaban de exponer se defienden con un estricto rigor bibliográfico y una valiosa contextualización.
Estos dos valores metodológicos son muy relevantes para comprender la profundidad filosófica y la exhaustividad académica de este estudio. Caracterizaré brevemente estas dos características.
Merece la pena mencionar los textos leibnizianos en los que Laura se apoya para defender tanto su idea de la funcionalidad expandida como las aplicaciones de esta idea a los conceptos de expresión y de fuerza. Artículos de geometría de la década de 1670 a 1680, como son Triangulum characteristica ellipsis y De functionibus plagulae quattour, y de la década de 1690 a 1700, publicados en el Acta eroditorum y el Journal de Sçavans son referencias fundamentales en el primer capítulo. También son importante algunos fragmentos de la correspondencia que Leibniz mantuvo con el matemático Bernoulli, a los cuales se les dedica un apartado. Las obras Quit sit idea (1677) y el Discours de métaphysique (1686), junto con algunas partes de la correspondencia con Antoine Arnauld (1686-1690), son referencias importantes del segundo capítulo. Sin embargo, es especialmente relevante en este capítulo el análisis bibliográfico y la reconstrucción lexicográfica que Laura hace de la metáfora del espejo viviente. Fragmentos de la correspondencia con De Volder en torno a 1700 constituyen el principal soporte bibliográfico del tercer capítulo. Aunque también son relevantes las referencias al Specimen dynamicum (1695), del De Ipsa Natura (1698) y del Eclairssement des difficultés que Monsieur Bayle a trouvées dans le systeme nouveau de l’union de l’ame et du corps.
El otro elemento que define la rigurosa profundidad filosófica y el excelente nivel académico de este estudio es la caracterización de los contextos polémicos a los que la obra refiere; tanto el debate científico y filosófico de la época de Leibniz como la discusión académica actual sobre la interpretación del concepto de función en la filosofía del autor alemán están muy bien retratados.
La distinción entre el cálculo diferencial de Leibniz y el de fluxiones de Newton del primer capítulo es un buen ejemplo del primer nivel de contextualización. Una distinción que, además, aparece acompañada por el rastreo del origen histórico que ambos tipos de cálculo tienen en los problemas científico-geométricos de la Edad Media. También se caracterizan debates filosóficos del siglo XVII como el protagonizado por el ocasionalismo y la teoría del conocimiento de Leibniz o la discusión entre el mecanicismo y la dinámica acerca de la naturaleza del fundamento racional de la explicación científica. Cada uno de estos debates está relacionado con el principal objeto de estudio: la idea de función leibniziana.
El segundo nivel de contextualización polémica está compuesto por las diferentes posiciones que mantienen los investigadores de la filosofía de Leibniz que se han ocupado del estudio del concepto de función. Aquí encontramos los trabajos tanto de emblemáticos historiadores de la filosofía, Ernst Cassirer quizá sea el más importante dentro de este apartado, como de investigadores actuales de la filosofía de Leibniz, entre los que cabe destacar a Juan A. Nicolás o Laerke.
No obstante la cantidad de diferentes posiciones que aparecen en estos debates a lo largo de todo libro, Laura consigue expresar cada una de estas posturas con claridad y definir el detalle filosófico que diferencia su posición de la del resto de estudiosos que han investigado esta cuestión.
Una posible deficiencia de este estudio es la lectura que hace de la metáfora de las proyecciones en perspectiva. La idea de perspectiva se trata en diferentes momentos en el libro, el análisis más relevante sin embargo es el que se realiza en el capítulo segundo. En él se encuentra la discusión de Laura con Kulstad y Swoyer acerca de la forma en que interpretar el carácter funcional de la relación de expresión. En este contexto aparece la metáfora de las proyecciones geométricas en perspectiva. Al final de la discusión, en la página 166, Laura concluye: “Esto muestra también por qué el ejemplo de la perspectiva, interpretando la perspectiva en la línea matemática como proyecciones geométricas, no es un ejemplo suficiente para recoger la riqueza del concepto de expresión”. Esta conclusión depende en exceso de la interpretación que sus adversarios hacen de la metáfora como función. Aunque es cierto que como defiende Swoyer, la preservación de la estructura está presente en la metáfora como elemento geométrico, aún así la conclusión sigue pareciendo bastante acelerada.
Pues las proyecciones geométricas, sobre las que se realizan las construcciones en perspectiva, no son un discurso exclusivamente matemático sino que también constituyen el estudio científico de la representación. Leibniz, quien estudió algunas de las principales obras de esta disciplina en el sentido apenas expresado, también tiene en cuenta esto al hablar de las proyecciones geométricas en perspectiva. Las cuales no son para él un modelo exclusivamente geométrico para pensar la expresión (a través de funcionalidad; como asumen Kulstad, Swoyer y Laura), sino que también sirven para pensar la representación; las leyes constitutivas de este fenómeno gnoseológico. En este punto se le podría exigir al estudio un mayor desarrollo y puntualización, pues Laura yerra únicamente al circunscribir y aislar un sentido de perspectiva, las proyecciones geométricas, del resto de las posibles acepciones de este concepto. De la misma forma que no se puede anticipar que pueda aislarse este sentido del resto de usos que Leibniz hace de la perspectiva, tampoco puede anticiparse que la autora no pudiera hacerse cargo del resto de posibles sentidos de que Leibniz adscribe a este concepto; ésta es por lo tanto una apreciación crítica de menor calado. La investigación que se ofrece en este trabajo no pierdo por ello ni una pizca de profundidad, constituye un estudio muy recomendable para estudiosos de Leibniz y prácticamente obligatorio para aquellos que quieran estudiar el concepto de función en el sistema filosófico del autor alemán.
Ricardo Rodríguez Hurtado – Universidad de Granada.
Spinoza and Medieval Jewish Philosophy – NADLER (CE)
NADLER, Steven (Ed.). Spinoza and Medieval Jewish Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. Resenha de: DAVID, Antônio. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.35, Jul./Dez., 2016.
Vem em boa hora a coletânea de artigos editada pelo renomado historiador da filosofia Steven Nadler e publicada pela Cambridge University Press . Não porque se trate de empreendimento novo – e aqui convém reconhecer o mérito da historiografia da filosofia de língua inglesa, que tem se dedicado ao assunto