Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (AF)

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Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano – KILOMBA (AF)

Grada Kilomba. Foto: Divulgação.

KILOMBA G Memorias da plantacao racismo cotidianoKILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira.1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. Resenha de: ARAUJO, Débora Oyayomi. Artefilosofia, Ouro Preto, v.15, n.28, abr., 2020.

Ao ler Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, de Grada Kilomba, a primeira sensação é de um lago calmo, de águas paradas que, quando tocado, provoca ondulações que reverberam em camadas. Quando as fraturas e os traumas produzidos ao longo de séculos são ratificados no contexto político atual por meio de uma política genocida de corpos e identidades diaspóricas, ler Grada Kilomba é uma convocação a revisarmos nossa existência. Por isso, ainda que muito depois de sua publicação original, esse livro chega ao Brasil no tempo certo.

A versão em português de sua tese de doutorado, tese esta laureada, em 2008, com a “mais alta (e rara) distinção acadêmica” (p. 12), nos diz muito mais do que havia sido registrado em sua versão original, escrita em inglês, pois reitera o quanto nosso idioma oficial é colonial e colonizado. Na “Carta da autora à edição brasileira”, coube à Grada Kilomba criar um glossário de termos coloniais, racistas e patriarcais para ressaltar terminologias produtora s do trauma racial, nos lembrando de que “cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (p. 14). Assim, enquanto algumas palavras são registradas em itálico devido à problemática “das relações de poder e de violência” (p. 15), outras são simplesmente abreviadas e grafadas em letra minúscula para que, no processo almejado por seu estudo, que envolve a “desmontagem da língua colonial” (p. 18), não rememoremos termos que expressam traumas. Essa primeira característica é imprescindível para o exercício proposto pela autora de produzir oposição absoluta ao “que o projeto colonial predeterminou” (p. 28). Por isso, neste texto, eu também utilizarei os mesmos formatos e, tal qual ela, produzirei o texto em primeira pessoa. Escrever em primeira pessoa e demarcar sua subjetividade é, sem dúvida, uma convocação de Grada Kilomba a todas as pessoas negras que lêem seu livro. Mas vai além, pois propõe o despojamento das armaduras coloniais e acadêmicas que nos aprisionam em modelos rijos de produção científica. Isso se evidencia não somente pela introdução (denominada “Tornando-se sujeito”), mas por todo o sumário, cuja proposta é de identificar, tratar e curar o trauma vivenciado pelo contato da pessoa negra com a branca, no processo de colonização de corpos e mentes da segunda sobre a primeira. Por isso, nada mais propício do que Memórias da plantação como título da obra, dada a capacidade de captura e dissecação do trauma colonial produzido por meio da Plantation. O seu subtítulo compromete-se com a contemporaneidade e a atemporalidade do trauma: o racismo cotidiano que “de repente coloca o sujeito negro em uma cena colonial na qual, como centro do cenário de uma plantação, ele é aprisionado como a/o ‘ Outra/o ’ subordinado e exótico” (p. 30).

Seu estudo tem como objetivo exprimir a realidade psicológica do racismo cotidiano manifestado, na forma de episódios, por relatos subjetivos, autopercepções e narrativas biográficas, de duas mulheres negras, sendo uma afro-alemã e outra afro-estadunidense que vive na Ale manha. Nesse processo, uma segunda marcante característica é o comprometimento da obra com uma abordagem interpretativa fenomenológica, envolvendo duas importantes dimensões: a escrita em primeira pessoa, entendendo que “[e]u sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como ato político. […] enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade da minha própria história.” (p. 28); o investimento na mais descrição do fenômeno em si e menos na abstração dos relatos subjetivos de mulheres negras, sob pena de esse processo “facilmente silenciar suas vozes no intuito de objetivá-las sob terminologias universais” (p. 89). Assim, seu estudo responde a um “desejo duplo: o de se opor àquele lugar de ‘Outridade’ e o de inventar a nós mesmos de (modo) novo” (p. 28).

Dividido em quatorze capítulos, Grada Kilomba perfaz as estratégias raciais operadas pela Plantation e atualizadas nas ações cotidianas contemporâneas. O silêncio é metaforizado, no primeiro capítulo, pela máscara, representante do colonialismo. De outro lado, as metáforas do mito da objetividade e da neutralidade acadêmica são exploradas no segundo capítulo (intitulado “Quem pode falar? Falando do Centro, Descolonizando o Conhecimento”), atuando, ao lado do primeiro, como um exercício de dissecação do racismo como discurso, e explorando e denunciando os processos de descrédito intelectual e acadêmico produzido sobre os corpos e identidades postas à margem. Com isso, a primeira cura ao trauma proposta pela autora envolve a necessidade de descolonização do conhecimento, reconhecendo a potência da posição à margem: “Falar sobre margem como um lugar de criatividade pode, sem dúvida, dar vazão ao perigo de romantizar a opressão. […] No entanto, bell hooks argumenta que este não é um exercício romântico, mas o simples reconhecimento da margem como uma posição complexa que incorpora mais de um local. A margem é tanto um local de repressão quanto um local de resistência […]” (p. 69). Isso envolve, pelo próprio exercício realizado pela autora, o reconhecimento de outras metodologias investigativas e de outros olhares interpretativos. O modo de produzir a pesquisa é impactado diretamente, pois realça as maneiras com o nos apresentamos ao mundo e como somos afetados pelo mundo à nossa volta. Assim, no texto de Grada Kilomba, somos, com nossa subjetividade e experiência individual com o racismo, convocadas/os a nos apresentar ao estudo, como interlocutoras/es ativas/os, críticas/os e conscientes do nosso papel social. É nessa perspectiva que sou impelida a assumir minha posição neste texto resenhístico a partir da minha trajetória pessoal como mulher negra e vivenciadora de experiências cotidianas com o racismo. Não seria possível de outro modo produzir qualquer síntese crítica da obra em questão.

O capítulo 3, “Dizendo o indizível – Definindo o racismo”, produz uma revisão teórica condizente com a proposta de descolonização do conhecimento: ao invés de recuperar a etimologia do termo e sua trajetória ao longo dos séculos, o racismo é apresentado por meio de autoras/es que o interpretam no plano cotidiano das relações sociais. Philomena Essed e Paul Mecheril são os nomes de destaque responsáveis por expor as próprias teor ias raciais e o protagonismo branco em suas definições: “Nós somos, por assim dizer, fixadas/os e medidas/os a partir do exterior, por interesses específicos que satisfaçam os critérios políticos do sujeito branco […]” (p. 73). Assim, a autora acena uma problemática pouco explorada quando se discute o mito da neutralidade: a de que as formulações, teorizações e epistemologias sobre o racismo podem estar sendo confortavelmente produzidas por intelectuais brancas/os que não necessariamente revisam sua própria condição de branquitude. Por isso o capítulo ressalta a necessidade de a pessoa negra tornar-se sujeito falante, ou, nas palavras de Mecheril (p. 74), a “perspectiva do sujeito”, em nível político, social e individual. Ao fazer isso, a autora encaminha-se para a definição do racismo por meio de três características simultâneas por ele assumidas: a construção de/da diferença; a ligação com valores hierárquicos intrínsecos; e o poder de base histórica, política, social e econômica. E, ao expor tais características, a autora ressalta uma afirmação amplamente difundida por nós, estudiosas/os negras/as das relações raciais, em especial no contexto brasileiro: “É a combinação do preconceito e do poder que forma o racismo. E, nesse sentido, o racismo é a suprema cia branca. Outros grupos raciais não podem ser racistas nem performar o racismo, pois não possuem o poder” (p. 76). É imprescindível, para nós, que intelectuais negras/os e intelectuais brancas/os engajadas/os assumam tal perspectiva pois, ainda que seja um aspecto simples e óbvio na interpretação das relações raciais, a compreensão de que poder e racismo são intrinsecamente ligados é uma operação complexa para muitos que resistem em manter sua perspectiva colonial e colonizadora de enxergar o mundo.

Contudo, um aspecto pouco explorado pela autora são as facetas desse racismo: ao passo que ela se dedica a explorar com relativo detalhamento alguns aspectos do cotidiano dos discursos racistas, ao procurar definir racismo estrutural e institucional, Grada Kilomba restringe-se a apresentá-los de modo sintético e sinonímicos, em certa medida. Já a descrição e conceituação do “racismo cotidiano”, uma categoria proposta pela autora – e que, como já destacado desde o início deste texto, representa sua base analítica –, há um maior detalhamento, com destaque para as formas em que o sujeito negro é percebido e que o relegam à condição de “outro”: infantilização, primitivização, incivilização, animalização e erotização. Nesse sentido, a autora conclui que é nos contextos cotidianos que a pessoa negra se depara com tais formas e, por isso, não se trata de experiências pontuais e sim corriqueiras que se repetem “incessantemente ao longo da biografia de alguém” (p. 80).

Nesse capítulo são apresentados os pressupostos metodológicos da pesquisa a partir da perspectiva da “pesquisa centrada em sujeitos ”, tomando como referencial analítico a teoria psicanalítica e pós-colonial a partir de Frantz Fanon. Nessa dimensão, a pesquisa emerge no exame das “experiências, autopercepções e negociações de identidade descritas pelo sujeito e pela perspectiva do sujeito ” (p. 81) e do study up, proposta metodológica em que pesquisadoras/es investigam membros do seu próprio grupo social. Tal proposta é mediada por uma “subjetividade consciente”: a compreensão de que ainda que a/o pesquisadora/a – e membro do grupo – não aceite sem críticas todas as declarações da pessoa entrevistada, ela respeita seus relatos acerca do racismo e demonstra “interesse genuíno em eventos ordinários da vida cotidiana” (p. 83). Assim, as relações hierárquicas frequentemente produzidas entre pesquisadoras/es e informantes é diminuída, considerando o compartilhamento de experiências semelhantes com o racismo. Co m o desenho da pesquisa delimitado, o capítulo adentra na descrição dos procedimentos das entrevistas “ não diretivas baseadas em narrativas biográficas ” (p. 85), que envolveram eixos como: percepções de identidade racial e racismo na infância; experiências pessoais e vicárias de racismo na vida cotidiana; percepções de branquitude no imaginário negro ; percepções de beleza feminina negra e questões relacionadas ao cabelo; percepções de feminilidade negra, entre outras. Foram, ao todo, seis mulheres negras participantes: “três afro-alemãs e três mulheres de ascendência africana que vivem na Alemanha: uma ganense, uma afro-brasileira e uma afro-estadunidense” (p. 84), mas ao final apenas duas – Alicia (afro-alemã) e Kathleen (afro-estadunidense) – tiveram suas entrevistas analisadas, devido ao fato, segundo a autora, de que as demais narrativas “não eram tão ricas e diversas quanto as de Alicia e Kathleen” (p. 84). As entrevistas, respondidas em inglês, alemão e português, captaram as mais diversas percepções acerca das memórias e contato com o racismo cotidiano, tema dos capítulos seguintes do livro.

Mas antes das análises, a autora mais uma vez assume a subjetividade como marca da descolonização acadêmica e mental para conectar raça e gênero a partir de uma experiência pessoal vivida: no capítulo 4 “Racismo genderizado – ‘(…) Você gostaria de limpar nossa casa?’ – Conectando ‘raça’ e gênero”, Grada Kilomba explora a necessidade de interpretações entrecruzadas sobre o racismo cotidiano que marca as experiências de mulheres negras, que são racializadas e generificadas. Para tanto, recupera perspectivas de Essed, Fanon, bell hooks, Heidi Safia Mirza e outras para interpretar, analisar e argumentar como operam as correlações entre mulheres negras e homens negros, mulheres brancas e homens brancos na interface de temas como patriarcado, feminismo, sexismo e violência. São expostas contradições do discurso feminista branco, da ideia de sororidade universal, e são evidenciados os limites do homem negro que não é “beneficiado” com o patriarcado. Por outro lado, sua perspectiva também ressalta a condição em que o termo “homem” é utilizado por Fanon tanto para designar “homem negro ” quanto “ser humano”, que acaba por realçar o masculino como condição única de representação da humanidade. Por isso, ressalta a autora, que a “reivindicação de feministas negras não é classificar as estruturas de opressão de tal forma que mulheres negras tenham que escolher entre solidariedade com homens negros ou com mulheres brancas, entre ‘raça’ ou gênero, mas ao contrário, é tornar nossa realidade e experiência visíveis tanto na teoria quanto na história” (p. 108).

Por meio de categorias, trechos das narrativas das entrevistadas foram divididos em capítulos, por temas. No capítulo 5, “Políticas espaciais”, os relatos dimensionam as experiências relacionadas à “Outridade”, ao estrangeirismo e ao estranhamento daquelas mulheres na Alemanha, país onde vivem. Perguntas como “De onde você vem?”, “Como ela fala alemão tão bem?” ou afirmações do tipo “Mas você não pode ser alemã!” são marcadores latentes nos relatos das entrevistadas, refletindo uma espécie de fantasia que domina a realidade acerca da história alemã, ignorando que existem várias histórias sobre uma mesma localidade. Assim, analisa a autora: “racismo não é a falta de informação sobre a/o ‘Outra/o’ – como acredita o senso comum –, mas sim a projeção branca de informações indesejável na/o ‘Outra/o’. Alicia pode explicar eternamente que ela é afro-alemã, contudo, não é sua explicação que importa, mas a adição deliberada de fantasias brancas acerca do que ela deveria ser […]” (p. 117).

O capítulo seguinte, “Políticas do cabelo”, analisa as experiências de violência e opressão que incidem sobre a imagem, autoestima e identidade das mulheres entrevistadas, ressaltando que existe “uma relação entre a consciência racial e a descolonização do corpo negro, bem como entre as ofensas racistas e o controle do corpo negro ” (p. 128). Na tentativa de aliviar as violências sofridas, a adoção de procedimentos de desracialização do “sinal mais significativo de racialização” (entendido, pela autora, como sendo o cabelo) é uma ação latente nas narrativas das entrevistadas. Mas oscilam, em seus discursos, a percepção da invasão de seus corpos por meio do toque, dos olhares de nojo e desprezo e experiências de resistência e consciência política.

“As políticas sexuais” são abordadas no sétimo capítulo da obra e apresentam o cerne da discussão em torno da objetificação e expropriação da humanidade do corpo negro. As histórias, cantigas, mitos e narrativas difundidas desde a infância constroem, para negras/os e brancas/os, uma barreira racial repleta de violência, sadismo e ódio. A autora explora, por meio da noção de “constelação triangular” (forjada a partir do complexo de Édipo em Freud e das ampliações analíticas de Fanon), as situações cotidianas em que o racismo é produzido sem nenhum cerceamento e, pelo contrário, muitas vezes apoiado por outrem: “Por conta de sua função repressiva, a constelação triangular, na qual pessoas negras estão sozinhas e pessoas brancas como um coletivo, permite que o racismo cotidiano seja cometido” (p. 137). Esse processo de triangulação também opera em contextos em que o homem negro é alvo do ódio do homem branco: “Dentro do triângulo do racismo, o sujeito branco ataca ou mata o sujeito negro para abrir espaço para si, pois não pode atacar ou matar o progenitor” (p. 140).

No capítulo 8, intitulado “Políticas da pele”, os relatos das entrevistadas são analisados sob a perspectiva d a deturpação versus identificação racial, que envolvem processos de negação da negritude feita pela pessoa negra ou branca, a depender das relações afetivas estabelecidas entre ambas. É o caso relatado por Alicia, ao ouvir de sua amiga branca que ela não era negra, ou de sua família adotiva, que se referia a ela como mestiça (Mischling), ao passo que as demais pessoas negras eram referidas pejorativamente como N. (Neger). Grada Kilomba interpreta tal processo como um misto entre fobia racial e recompensa: “Isso permite que sentimentos positivos direcionados a Alicia permaneçam intactos, enquanto sentimentos repugnantes e agressivos contra sua negritude são projetados para fora” (p. 147).

Numa categoria maior, intitulada anteriormente em seu texto como “cicatrizes psicológicas impostas pelo racismo cotidiano” (p. 92), a autora engloba os capítulos de 9 a 12. O primeiro deles, “A palavra N. e o trauma”, a dor, aspecto central de sua tese, é retomada a partir de narrativas que envolvem o contato com a violência exotizadora por meio da utilização discursiva de termos racistas. Para tanto, o capítulo inicia com a narrativa de Kathleen que ouviu de uma criança branca: “Que Negerin [Feminino de Neger ] linda! A Negerin parece tão legal. E os olhos lindos que a Negerin tem! E a pele linda que a Negerin tem! Eu também quero ser uma Negerin !”. Ao afirmar que quer ser uma Negerin também, a menina produz um efeito duplo: de reafirmação de sua posição d e sujeito branco – pois Negerin “nunca significa ser chamada/o apenas de negra/o; é ser relacionada/o a todas as outras analogias que definem a função da palavra N. ” (p. 157) – e recolocação da vítima na cena colonial original: “Essa cena revive, assim, um trauma colonial. A mulher negra continua a ser o sujeito vulnerável e exposto, e a menina branca, embora muito jovem, permanece a autoridade satisfeita” (pp. 157-158). O trauma causa dor, demonstrando os efeitos psicossomáticos do racismo por meio da necessidade de transferir a experiência psicológica para o corpo, buscando “uma forma de proteção do eu ao empurrar a dor para fora (somatização)” (p. 161).

“Segregação e contágio racial” é o título do capítulo 10, no qual o medo branco é acionado pela metáfora da luva branca utilizada por pessoas negras forçadamente quando tinham que tocar o mundo branco. Como descreve a autora, as luvas atuavam como uma “membrana, uma fronteira separando fisicamente a mão negra do mundo branco, protegendo pessoas brancas de serem, eventualmente, infectadas pela pele negra ” (p. 168). O efeito nefasto vai, contudo, além, pois as luvas que aliviavam o medo branco da contaminação “ao mesmo tempo, evitavam que negras e negros tocassem os privilégios brancos ” (p. 168). Outra metáfora acionada no capítulo é: “uma pessoa negra tudo bem, é até interessante, duas é uma multidão” (p. 170), expondo a faceta da solidão de pessoas negras em espaços segregados e o quanto suas ações são constantemente vigiadas e avaliadas. Esse tema liga-se diretamente ao capítulo seguinte, “Performando negritude”, em que o sujeito que representa a exceção é exposto e cobrado pois, ao mesmo tempo em que é alvo do medo e do ódio, deve “representar aquelas/es que não estão lá” (p. 173). Por isso, o questionamento e a comprovação da capacidade intelectual é uma marcante nas narrativas das entrevistadas. Ser “três vezes melhor do que qualquer pessoa branca para se tornar igual” (p. 174), faz dela uma pessoa “tríplice” e, assim, a compensação é acionada: “Você é negra, mas…” inteligente. A inteligência existe “desde que seja comparada à branquitude” (p. 177). Outros aspectos explorados no capítulo relacionam-se à recolocação geográfica do estrangeira/o ou da pessoa negra para fora, para a margem, e o racismo explícito, endossado por um processo discurso alienante, pois a pessoa é insultada sem ser alvo direto do insulto, retomando, novamente, as constelações triangulares. Tais contextos são ressaltados mais uma vez pela autora como mostras do racismo cotidiano.

O último capítulo da categoria “cicatrizes psicológicas…” é intitulado “Suicídio”. Sem dúvida é o máximo e último estágio do trauma e o mais eficaz do racismo. É quando o “ sujeito negro representa a perda de si mesmo, matando o lugar da Outridade” (p. 188). Tal capítulo é fruto da recorrência de narrativas das mulheres entrevistadas sobre experiências diretas com o suicídio (seja da mãe, da amiga…) e da necessidade de tratar o trauma. Assim, nos lembra Grada Kilomba que, no contexto da escravização, toda a comunidade negra era punida quando um de seus membros tentava ou cometia suicídio. Isso não explicita apenas o óbvio (o interesse das/os escravizadoras/es em não perder sua propriedade), mas, principalmente, “revela um interesse em impedir que as/os escravizadas/os africanas/os se tornem sujeitos ”. Por isso o suicídio “é, última instância, uma performance de autonomia” (p. 189). Mas não somente esse aspecto é explorado: a autora também analisa como a figura da mulher negra forte e, portanto, sem necessidade de apoio psicológico, é recorrente na trajetória de vítimas de suicídio. Essa imagem é uma resposta à outra figura estereotipada da mulher negra como preguiçosa e negligente em relação às suas filhas e filhos. Portanto, num duplo processo de estereotipia, as “mulheres negras só se encontram na terceira pessoa, quando falam de si mesmas através de descrições de mulheres brancas ” (p. 195).

Por fim, os últimos capítulos são dedicados ao tratamento: correspondem à categoria “estratégias de resistência” (p. 92). “Cura e transformação” intitula o 13º capítulo, e analisa situações vivenciadas por Kathleen (ao enfrentar um contexto de racismo) e Alicia (ao se reconectar consigo mesma). Dois marcadores desse capítulo são, portanto, a desalienação e o reencontro com seu coletivo. O contato com leituras, com suas histórias e com seus iguais emergiram nos discursos das duas mulheres entrevistadas atuando de modo a reparar uma conexão interrompida. É latente, nesse sentido, a narrativa de Alicia sobre o fato de inicialmente não entender e aceitar que pessoas negras desconhecidas a cumprimentassem e depois reconhecer o laço histórico que as une. Ao ser chamada de irmã (sistah) por um jovem negro, sua percepção foi de que “‘Sim, sistah, eu sei o que você passou. Eu também. Mas eu estou aqui… Você não está sozinha.’” (p. 210).

A “reparação traumática” é acionada por Alicia, assim como foi por Kathleen, quando enfrentou sua vizinha que insistia em manter um boneco negro como “enfeite” na varanda de sua casa. Esse processo liga-se diretamente à conclusão do livro, no capítulo “Descolonizando o eu”. Entre outros elementos explorados e retomados pela autora, está a proposição mais significativa para a cura do trauma: ao invés de perguntar à vítima o que ela fez diante do racismo cotidiano (e sempre inesperado), sua proposição é que a pergunta seja: “O que o racismo fez com você?”. “A pergunta é direcionada para o interior […] e não para o exterior”, produzindo um efeito de empoderamento “no qual alguém se torna o sujeito falante, falando de sua própria realidade” (p. 227). Mas, principalmente, a proposição de novas fronteiras é o elemento central da cura: é quando, para a autora, o triângulo é modificado e não mais são respondidas as perguntas produzidas pela branquitude que, verdadeiramente, não está interessada em respostas, mas sim na experiência de ocupar a posição de falantes sobre o sujeito negro. A cura também ocorre com a superação do perfeccionismo e a assunção da desalienação. A autora demonstra como todo esse processo opera por meio de cinco mecanismos diferentes de defesa do ego: negação (do racismo e reprodução da linguagem da/o opressora/opressor); frustração (percepção de sua condição de exclusão no mundo conceitual branco); ambivalência (coexistência de amor e ódio, nojo e esperança, confiança e desconfiança para com pessoas brancas); identificação (a busca por sua história e a produção da identificação positiva com sua própria negritude); descolonização: “não se existe m ais como a/o ‘Outra/o’, mas como o eu” (p. 238).

Ao pensar no contexto contemporâneo em que o racismo à brasileira vem assumindo novas configurações, a obra de Grada Kilomba não somente oferece respostas à cura do trauma, mas reafirma a necessidade de assumirmos a nossa história. Retomando a metáfora inicial do lago antes calmo e agora agitado pela reverberação das ondas, um convite inicial e retomado ao final do livro também é feito neste texto: “Somos eu, somos sujeito, somos quem descreve, somos quem narra, somos autoras/es e autoridade da nossa própria realidade […] tornamo-nos sujeito ” (p. 238).

Débora Oyayomi Araujo-Doutora Educação (UFPR) e Licenciada em Letras (Unespar). Professora de Educação das Relações Étnico-Raciais na Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenadora do LitERÊtura-Grupo de estudos e pesquisas em diversidade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para as infâncias. E-mail: [email protected]

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Entre servidão e liberdade – SANTIAGO (CE)

SANTIAGO Homero1 racismo cotidiano
Homero Silveira Santiago. 16 set. 2020. https://www.youtube.com/.

SANTIAGO H Entre servidao e liberdade racismo cotidianoSANTIAGO, H. Entre servidão e liberdade. São Paulo: Politeia, 2019. Resenha de: OLIVA, Luis César. Entre servidão e liberdade de Homero Santiago. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.42, jan./jun., 2020.

O caminho de um jovem professor e pesquisador depois de seu período de formação (supondo abstratamente que a formação termine com a conclusão das teses de mestrado e doutorado, o que é sabida – mente falso) é sempre sinuoso. Depois de anos regido por um projeto de pesquisa e “vigiado” por agências de fomento, ele se vê dividido em múltiplas tarefas didáticas, administrativas e intelectuais (algumas feitas de bom grado, outras nem tanto) que produzem, na sua obra publicada, uma inevitável impressão de dispersão. De certo modo, é esse percurso fragmentado que Homero Santiago nos traz em Entre Servidão e Liberdade (2019).

Depois de seu mestrado e doutorado sobre Espinosa, ambos revelando um historiador da filosofia de boa cepa, capaz de abordar temas circunscritos e pouco explorados pela tradição interpretativa, mesclando coerentemente rigorosas análises de texto com eruditas considerações históricas, eis que o autor agora deve dividir-se em escritos dos mais diferentes formatos: artigos especializados e para o público geral, traduções, prefácios, resenhas, entrevistas, etc. Ao reunir boa parte deles neste livro, Santiago não esconde a multiplicidade de formas nem a variedade de ocasiões que os motivaram. Porém, se a forma talvez denuncie a dispersão do percurso, o conteúdo a nega, atestando a admirável unidade de pensamento de um filósofo que usou as mais variadas vias de expressão para discutir uma única e fundamental questão: a transição (infelizmente nem sempre de mão única) da servidão à liberdade.

Dividido em cinco partes (e uma introdução que mencionaremos mais tarde), o livro se abre com um notável capítulo sobre a superstição em Espinosa, no qual o autor apresenta uma das mais completas e detalhadas análises já feitas sobre o famoso apêndice da parte I da Ética . Mais do que mostrar a renitência do historiador da filosofia meticuloso, este longo capítulo tem a função de revelar o ponto de vista com o qual Santiago pretende abordar os diversos assuntos presentes no livro. É com lentes espinosanas que o fará, e com atenção específica para o aspecto que talvez afaste Espinosa do outro filósofo que mais marcou o percurso de Santiago e é quase onipresente na etapa final do livro: Antonio Negri. Enquanto Negri, também inspirado em Espinosa, deixa-se levar pelo otimismo dos movimentos multitudinários e dá todo o destaque para a liberdade, Santiago ancora-se na análise espinosana da superstição para dar conta da inegável servidão que nos assola. Ao final do livro, quando Santiago explicitar suas críticas (que não impedem a enorme admiração) a Negri, o leitor perceberá plenamente o quanto era significativo ter no apêndice seu ponto de partida.

O mergulho na servidão, porém, não ocorre sem uma visão da praia. Embora as decepções com o sistema de crenças da superstição não apontem, na letra do apêndice, para uma saída, elas abrem ao menos uma possibilidade, que não será explorada neste texto, mas que remete Santiago a outro de Espinosa, o Tratado da Emenda do Intelecto, onde as decepções com os valores da vida comum nos levam à necessidade de começar a filosofar, ou pelo menos, como dirá o segundo capítulo,

já que os valores são necessários, tratemos nós de forjá-los em vista da alegria e do benefício à vida. Poder fazê-lo talvez seja o mais difícil, mas precisamos fazê-lo. Se não o fizermos, se nos restringirmos ao mais fácil, o preconceito, a tristeza, a superstição e os seus lugares-tenentes o farão por nós (SANTIAGO, 2019, pág. 118).

De um lado, esta surpreendente conclusão nos remete à introdução do livro, onde Santiago usa, também surpreendentemente, Pascal para pensar a transição entre servidão e liberdade. É no interior do determinismo da teologia jansenista da graça que Pascal inventa um sentido para a apologia: é preciso crer que estamos entre os eleitos, assim como os homens que nos cercam, por mais ímpios que sejam, enquanto lhes restar um momento de vida. Para Santiago, ao fazê-lo, Pascal está criando um possível no seio do necessário, e aí se encontra a surpreendente afinidade entre os dois pensadores.

De outro lado, o trecho citado nos remete a outro capítulo funda – mental, em que o que é apenas intuído na teologia de Pascal ganhará clareza conceitual para aplicar-se a Espinosa. A partir de uma engenhosa interpretação do papel da ignorância nas definições de contingente e possível, Santiago encontra para este último um lugar fundamental na ética e na política espinosanas:

o ponto de vista do possível ignora a causa, mas a ignora sobre – tudo porque a considera, ou seja, toma a coisa como tendo causa (…). Com efeito, se possível é aquilo cuja causa é indeterminada, possível é igualmente aquilo cuja causa pode ser determinada; sobre a qual, em suma, pode-se agir, pois o indivíduo se enxerga (correta ou incorretamente) como agente possível de um acontecimento (SANTIAGO, 2019, p. 153).

Sem desconsiderar o fato de que, ontologicamente, só há o necessário, Santiago dá ao possível a realidade de uma tarefa cujo cumprimento é imperioso para o uso da vida. Este capítulo, assim, fecha o bloco mais estritamente espinosano do livro, apresentando tanto a realidade da servidão, quanto a possível porta aberta para a liberdade. Como passar por ela? Eis a pergunta que o restante do livro tentará responder das mais variadas maneiras; nenhuma delas, porém, definitiva. Já chegando à terceira parte do livro, é curioso que o primeiro texto explicitamente dedicado ao pensamento de Negri seja antecedido por um capítulo dedicado a outra notória espinosana, Marilena Chaui. A despeito das diferenças interpretativas dos dois filósofos sobre a obra de Espinosa, a contiguidade dos dois capítulos acaba destacando algo de comum entre eles, e que remete à influência marxista que ambos compartilham: a importância dada à luta de classes. Olhar para os conflitos no interior da sociedade, e não só para a história do Estado, como se este fosse um ente transcendente e causa de si próprio, é uma tônica de vários textos de Chaui. Em Negri, é a partir da análise das lutas operárias que se desenvolverá a apropriação particular que o italiano faz do conceito espinosano de multidão, central em sua filosofia (e também na de Santiago, que com ele pensará, dentre outros temas, junho de 2013). Mas a atenção aos conflitos sociais e a recusa Espinosana da transcendência, comuns a ambos, levarão Chaui e Negri a caminhos diversos. Para Chaui, nas palavras de Santiago, “se a tirania persiste é porque se enraíza na vida social, dela emergindo como efeito que decorre de uma causa e envolve, de alguma maneira, todo o corpo social” (SANTIAGO, 2019, pág. 192). Daí surgirão as reflexões de Chaui sobre Brasil como sociedade autoritária. Seria o lado amargo da multidão? Para Negri, a multidão é o sujeito da práxis coletiva que brota do desejo primordial de libertação, subjacente a todas as carências particulares que aparecem nas lutas sociais. Como explica Santiago:

a noção restritiva de classe sai de cena em benefício de uma noção bem mais ampla, que permite pensar a unidade de todos os explorados em sua própria diferença, sem recurso à tradicional subsunção dessas diferenças à identidade do operário industrial, isto é, o operário-massa. Em segundo lugar, a luta de classes passa a ser considerada como possuindo seu motor no desejo. É a articulação dessas duas inovações que, nitidamente, vai nos direcionando para o conceito de multidão, que ao fim e ao cabo se revelará o único capaz de nomear essa nova classe (SANTIAGO, 2019, p. 212).

Aqui decerto não há lado amargo, mas a lente crítica de Santiago não se furtará ao questionamento óbvio (aliás retomando, por outro viés, o problema da passagem da servidão à liberdade): como pode este conceito fazer-se acontecimento?

A filosofia de Negri será retomada mais à frente, em detalhe. Antes disso, porém, a quarta parte do livro dará lugar a três preciosos ensaios sobre temas recorrentes em nossa realidade social: a polícia e seu pendor à violenta obediência abstrata; o Estado e seu escopo; e final – mente o dinheiro e a liberdade. Todos têm por ponto de partida objetos empíricos particulares, como o colaboracionismo da polícia francesa durante a segunda guerra ou as transformações sociais decorrentes do Bolsa-Família, mas a questão teórica de fundo é a mesma: os conceitos de servidão e liberdade. Ademais, depois da passagem por Chaui e Negri, não poderiam ser mais claras as razões de Santiago para voltar-se para os acontecimentos sociais. As conclusões, porém, são sempre teóricas, e tão surpreendentes quanto (para um leitor atento) coerentes com as bases conceituais estabelecidas nos capítulos anteriores.

Sem entrar em mais detalhes, inclusive para não entregar todas as voltas e reviravoltas ao leitor, cabe destacar mais uma vez a importância deste trabalho nos dias que correm. Útil tanto para especialistas (em Espinosa, Negri, Chaui e até mesmo Pascal e Nietzsche) quanto para o público geral, o livro traz reflexões particularmente vivas quando espasmos autoritários nos ameaçam de longe ou de perto. Embora seja o retrato do percurso intelectual singular de Homero Santiago, Entre Servidão e Liberdade alcança, se não a universalidade, pelo menos a comunidade dos bens que podem ser partilhados.

Referências

SANTIAGO, H. Entre servidão e liberdade. São Paulo: Politeia, 2019.

Luis César Oliva – Professor Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica – FRASER; JAEGGI (C-FA)

FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020. Resenha de: FILHO, José Ivan Rodrigues de Sousa. “A turbulência que se aprofunda ao nosso redor”. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 25 n.1 Jan./Jun, 2020.

“A turbulência que se aprofunda ao nosso redor” *.

Capitalismo em debate é, acima de tudo, uma obra filosófica sintomática do tempo presente. E o é porque o capitalismo se encontra em discussão na esfera pública, em especial nos Estados Unidos, onde o livro, há dois anos, viera a lume e onde Bernie Sanders, neste ano, conduziu uma pré-candidatura presidencial declaradamente socialista que angariou intenso apoio e provocou acalorado debate. Essa recente problematização política do capitalismo tem lugar sob uma constelação de graves desenvolvimentos econômicos, políticos e culturais que remontam ao ocaso dos anos 2000: a crise financeira mundial de 2007-2009, o imediato resgate estatal de graúdos bancos privados à beira da falência, o consequente agravamento da crise das finanças públicas, a política de austeridade fiscal então renovadamente receitada e imposta, o duradouro refreamento do crescimento econômico, os protestos massivos que proliferaram por todo o mundo em indignada reação a esse plexo de crises econômicas, os movimentos políticos regressivos que também emergiram mundo afora, as políticas públicas econômicas e culturais promovidas por novos governos de extrema-direita hiper-reacionária que se instalaram com o apoio de tais movimentos e que tanto mantêm como aprofundam a mesma diretriz neoliberal de distribuição regressiva da riqueza social pela qual se nortearam prévios governos de centrodireita e centro-esquerda, além de intensificarem o escangalhamento do Estado de bem-estar social, denegarem as profundas mudanças socioeconômicas necessárias para evitarmos ou enfrentarmos a iminente crise ecológica global, insuflarem o etnonacionalismo e o racismo, reforçarem o machismo e a homofobia e minarem o Estado de direito e a democracia liberal. É sob a opaca radiação dessa constelação capitalista que se gesta o livro de Nancy Fraser e Rahel Jaeggi, e é a tal constelação que ele responde diretamente, sintomatizando o nosso tempo em três sentidos: ele reflete (sobre) um complexo temático discutido publicamente, um complexo de crises distintas e interligadas de alcance global e um complexo heterogêneo de movimentos e lutas sociais.

Vertida para o nosso português por Nathalie Bressiani, filósofa notoriamente versada nas teorias críticas das duas autoras, a obra se torna muito mais acessível no Brasil, onde tanto Fraser como Jaeggi, embora sejam filósofas preeminentes com diversas obras de imenso peso teórico, ainda são pouco traduzidas: justamente as mais importantes obras de ambas (por exemplo: de Fraser, Fortunes of feminism: from state-managed capitalismo neoliberal crisis ; de Jaeggi, Kritik von Lebensformen ) ainda não o foram. Também nesse sentido, Capitalismo em debate é uma novidade muitíssimo bem-vinda: pela precisão e pela consistência teórica do trabalho de tradução e por difundir entre nós o que mais recentemente teorizaram a filósofa estadunidense e a suíça.

É na tentativa de fazer jus à obra (bem como à sua tradução brasileira) que, a seguir, se elabora um panorama interpretativo dela, e se esboçam algumas observações críticas gerais.

À guisa de conversa

O que mais dá nas vistas quando se abre, pela primeira vez, o livro de Fraser e Jaeggi e até provoca um leve estranhamento durante os primeiros progressos da leitura é a peculiar forma discursiva em que o livro se apresenta. Trata-se mesmo de uma “conversa”, conforme advertido pelas autoras já no subtítulo do livro. Mas se trata de uma conversa apenas entre aspas, pois o debate entre elas não se configura, de fato, como uma conversa propriamente dita: falada e espontânea, informal e cotidiana.

Trata-se, antes, de uma conversa escrita (não só transcrita): e escrita com a intenção de constituir um livro, não um livro qualquer, mas um livro plenamente teórico, um livro de teorização crítica da sociedade capitalista. Uma conversa, portanto, minuciosamente organizada em quatro aspectos básicos. Em primeiro lugar, ela põe em foco uma temática ampla e complexa, mas bem demarcada e sistematicamente abordada, abarcando o capitalismo, a própria teorização crítica do capitalismo e, ademais, a práxis política anticapitalista. Em segundo lugar, o livro se desenrola num nível de profundidade teórica deliberadamente restringido, ainda que elevado, pois, mesmo que pretenda ser plenamente teórico, não pretende esgotar a teorização que empreende, nem aprofundá-la tanto que se torne acessível exclusivamente a acadêmicos familiarizados com esse tipo de teorização, inacessível, porém, para grande parte do público potencial. Em terceiro lugar, a “conversa” se caracteriza por uma intencional e constante moderação do seu nível de polemização, considerando que as duas autoras ostentam e mantêm entre si muitas divergências fortes, inclusive divergências de saída (dentre as quais se destaca a divergência quanto a conceber o capitalismo como ordem social institucionalizada, como defende Fraser, ou como forma de vida, como defende Jaeggi 1 ), mas não querem travar a “conversa”, nem a espichar exageradamente, nem a tornar árida com a multiplicação de ressalvas, objeções e encruzilhadas teóricas. E, em quarto lugar, o livro apresenta uma exposição cujo desenvolvimento é articulado em quatro grandes blocos, ou capítulos, bem delimitados e estreitamente justapostos na seguinte sequência: conceituação – historicização – crítica teórica – contestação política (sempre do capitalismo).

Intentando constituir um livro teórico e organizadíssima nos seus aspectos básicos, a “conversa” se faz, então, altamente formal e inteiramente acadêmica.

Por isso, o seu público potencial é formado, sobretudo, por acadêmicos, intelectuais e outros leitores excepcionais, mas não só pelos que já têm alguma intimidade com a teorização crítica do capitalismo. Não se trata, em todo caso, de obra dirigida prioritariamente a “leigos”: inclusive nesse aspecto, a ligação da teoria com a práxis não é, aqui, concebida como imediata; há certo hiato entre o terceiro e o quarto capítulo, entre a crítica teórica e a contestação política, hiato que não é intransponível, mas não pode ser suprimido nem ignorado, de modo que os destinatários preferenciais de Capitalismo em debate são os que transitam em palcos e plateias de debates teóricos.

Retomada de produções acadêmicas individuais anteriores

A  maior parte da obra reapresenta, de maneira resumida, mas consideravelmente detalhada, os principais conceitos, explicações, teses e pressuposições de ambas as produções acadêmicas. Assim, quem ainda não travou contato com o que Fraser e Jaeggi, cada uma individualmente, já haviam publicado relativamente à crítica do capitalismo encontra, em Capitalismo em debate, um acesso adequado, amplo e instigante à particular crítica do capitalismo de cada uma das autoras.

No entanto, a obra não se circunscreve a uma reapresentação do já apresentado por cada uma delas alhures. Capitalismo em debate mescla a essa reapresentação, aqui e acolá e até em abundância, novos aprofundamentos, desdobramentos e esclarecimentos teóricos. Justamente a forma de “conversa” que tem a obra possibilita e convida a isso: cada uma das duas interlocutoras, recorrentemente, pressiona a outra a mais bem elaborar alguns aspectos da sua própria crítica do capitalismo, o que conduz, então, a alguns ganhos teóricos de reflexividade, abrangência e clareza.2 Há, ainda, inovações teóricas na obra em relação ao que as autoras haviam teorizado até então 3 Assim, proporciona-se, a quem já havia travado contato com a crítica do capitalismo de Fraser e/ou com a de Jaeggi, a possibilidade de retomar as suas leituras anteriores, levantar novamente questões que essas leituras lhe suscitaram e colocá-las perante a nova obra, tentando encontrar na última respostas para as primeiras, ainda que, nesse movimento, possa, com muita probabilidade, confrontarse com uma segunda onda de questões.

Outra vantagem da forma de “conversa” da obra é que se produz permanentemente a possibilidade de diversas comparações entre as duas críticas. Podem-se comparar os conceitos-chave empregados por cada uma das autoras. Podem-se comparar as explicações fundamentais que cada uma delas dá sobre: ontologia social do capitalismo; desenvolvimento temporal e diversificação espacial do capitalismo; distinção e articulação das dimensões específicas de uma crítica abrangente do capitalismo; análise das lutas sociais anticapitalistas hodiernas. Podem-se comparar, ainda, as teses centrais que cada uma delas articula quando se põem a explorar os terrenos da teoria social, da economia política, da metacrítica social e da análise empírica. E se podem comparar as mais importantes pressuposições subjacentes a cada uma das duas críticas do capitalismo, pressuposições metodicamente trazidas à tona e bastante discutidas em Capitalismo em debate. Além da diversidade do que pode ser submetido à comparação, também são diversos os critérios que podem ser utilizados para comparar: pode-se comparar à luz, por exemplo, dos critérios de fecundidade teórica, capacidade elucidativa, agudeza crítica e conectividade com a práxis política atual. Aliás, as próprias autoras usam, com frequência, os mencionados critérios para exigirem, uma da outra, respostas satisfatórias a várias questões abordadas no livro.

Retomando as suas próprias produções acadêmicas, Fraser e Jaeggi procedem, além do mais, a uma relativa sistematização das suas críticas do capitalismo, as quais se encontravam, até então, dispersas numa vasta lista de artigos e livros. E isso diz respeito principalmente a Fraser, que tem uma carreira acadêmica mais extensa e mais numerosas publicações que Jaeggi e, além disso, está mergulhada, já há uns bons dez anos, num processo de elaboração de uma nova crítica do capitalismo, publicando os seus resultados parciais de modo intermitente e numa prolífica sequência cumulativa, o que lhes impõe o aspecto de partes formadoras de um complexo mosaico ainda inconcluso. Trata-se de uma crítica do capitalismo nova, inclusive, em relação àquela que a mesma Fraser, até então, elaborara 4 e que não era, como a de agora, centrada: (a) nas divisões institucionais axiais que estruturam a sociedade capitalista em diversas esferas funcional, ontológica e normativamente específicas, mas interdependentes; (b) nas várias tendências de crise do capitalismo produzidas pelas incompatibilidades fundamentais e irredutíveis da lógica própria da economia capitalista, de um lado, com as lógicas próprias do poder público, da reprodução social e da natureza não humana, de outro; (c) nas lutas sociais travadas nas fronteiras entre a economia capitalista e os seus imprescindíveis planos de fundo político, sociorreprodutivo e natural. Esse ambicioso projeto teórico de Fraser, no entanto, não havia sido, até agora, realizado de modo concentrado (num grande livro) e rigorosamente sistemático, mas numa comprida fieira de artigos distribuídos entre diferentes revistas e livros, 5 de maneira que, em razão da própria forma artigo, ela não havia conseguido, até agora, conferir à sua nova crítica do capitalismo uma exposição completa e unificada. Apesar do seu currículo acadêmico menos volumoso, também Jaeggi se caracteriza pela mesma dispersão da sua interlocutora – uma dispersão, vale notar, nem errática, nem inconsciente, nem insuscetível à síntese. De fato, também Jaeggi elaborou a sua crítica do capitalismo de modo fragmentário. Num primeiro livro, ela elaborou o seu critério ético para a crítica do capitalismo, a saber, a alienação. Depois, num artigo, elaborou o arcabouço conceitual e explicativo da sua crítica da ideologia. Noutro artigo, veio a elaborar a sua metacrítica, que propõe uma teorização do capitalismo que indissoluvelmente entremeie análise e crítica e seja, ao mesmo tempo, funcional e ética. Elaborou, num terceiro artigo, um conceito funcional e ético de trabalho. Em seguida, noutro livro, elaborou a sua teoria social, centrada nas formas de vida. Elaborou, ainda, num quarto artigo, um conceito amplo de economia, economia como conjunto de práticas sociais específicas, mas inseparavelmente atreladas a outros tipos de práticas sociais e, enquanto conjunto, completamente partes, fundamentalmente características e parcialmente constitutivas de uma forma de vida específica; e assim por diante.6 Portanto, também à crítica do capitalismo de Jaeggi, faltava uma exposição completa e unificada.

Isso ocasionava, para o público leitor, uma expressiva dificuldade para compreender, de modo sistemático, ambas as críticas do capitalismo, já que elas mesmas foram elaboradas pelas suas autoras de maneira paulatina e fragmentária (mas não incoerente).Capitalismo em debate, não obstante, concede a ambas uma significativa chance de se fazerem sistemáticas enquanto teóricas críticas do capitalismo. Essa chance, contudo, é limitada, pois a sistematização não pode, nesse tipo de livro, escrito à guisa de conversa, ser exaustiva, nem definitiva, no que tange a aprofundamento, desdobramento e clarificação do previamente publicado.

A sistematização alcançada é, nesse sentido, relativa: trata-se de alinhavar o já publicado, recuperando explicitamente a sua coerência interna, indo, de vez em quando, um pouco além do já escrito anteriormente, sempre na medida do permitido pela forma “conversa”.

O pronunciado protagonismo de Fraser

A chance de sistematizar as suas dispersas contribuições anteriores para a crítica do capitalismo foi, de fato, aproveitada pelas duas autoras, mas Fraser, visivelmente, a aproveitou muitíssimo mais que Jaeggi. Talvez haja uma razão genética, editorial, para isso: o livro fora encomendado pelo editor estadunidense, ao que tudo indica, como uma homenagem à longeva, profícua e influente carreira acadêmica de Fraser, por ocasião do seu septuagésimo aniversário, em 2017. Ainda que as autoras tenham decidido alterar o propósito do livro proposto pelo editor, dedicando-o, então, ao estágio atual das suas pesquisas, cujo foco é justamente o capitalismo, é nítido que Jaeggi desempenha, predominantemente, o papel de uma entrevistadora, embora saia uma entrevistadora bastante erudita, perspicaz e crítica. Mesmo quando seria esperado que fosse dela a fala principal, o impulso do protagonismo de Fraser, rapidamente, desponta, se imiscui e se instala.

Nos capítulos I e II, que versam, respectivamente, sobre a conceituação e a historicização do capitalismo, o palco é quase unicamente de Fraser. Jaeggi se restringe, quase completamente, a estimular a sua interlocutora a reapresentar (e, aqui e ali, aprofundar, desenvolver e clarificar) duas grandes propostas suas (da própria Fraser): (a) a proposta de conceituação do capitalismo como uma ordem social cuja especificidade histórica reside na institucionalização de uma esfera econômica que é separada das esferas da reprodução social, do poder público e da natureza não humana, mas que é, ao mesmo tempo, dependente dessas três esferas “não econômicas”, ainda que denegue a imprescindível importância econômica que elas possuem e ainda que denegue a parasitação, o esgotamento e a devastação que impõe a elas; (b) a proposta de historicização do capitalismo como uma sequência (retrospectivamente reconstruível como sendo direcional) de regimes de acumulação privada de capital que não se circunscrevem à esfera econômica, mas são, ao mesmo tempo, regimes socio-rreprodutivos, políticos, socioecológicos e racializadores, quer dizer, os regimes de acumulação mercantil, liberal, administrado pelo Estado e financeirizado/neoliberal também abrangem, como componentes “não econômicos” essenciais, mas mantidos no plano de fundo, formas específicas de feminilização do “cuidado” e de seguridade social, formas específicas de configuração das relações entre os poderes privados econômicos e os poderes públicos políticos (nacionais e transnacionais), formas específicas de “natureza histórica” e formas específicas de subjetivação/sujeição política e de expropriação econômica.

Já o capítulo III seria, supostamente, o capítulo em que Jaeggi tomaria o protagonismo na “conversa”, já que se trata de um capítulo dedicado à metacrítica do capitalismo, ou seja, à reflexão sobre os critérios fundamentais com base nos quais se critica o capitalismo e sobre os tipos gerais de crítica do capitalismo. Enquanto Fraser, até então, na sua produção acadêmica anterior, havia se abstido largamente de escrever sobre a crítica do capitalismo, tendo se concentrado em escrever diretamente sobre o próprio objeto da crítica do capitalismo, é de Jaeggi, possivelmente, a principal elaboração da Teoria Crítica recente em termos de metacrítica do capitalismo. Seria, pois, esperado que, nesse capítulo, a voz preponderante fosse a de Jaeggi. Jaeggi chega a retomar a sua metacrítica do capitalismo já no início do capítulo, definindo, assim, os termos da discussão, de modo que a discussão passa, então, a girar em torno de três tipos gerais de crítica do capitalismo, distinguidos uns dos outros pela adoção de um de três critérios fundamentais: a crítica funcional põe em foco as tendências de crise do capitalismo; a crítica moral, a exploração e/ou a injustiça impostas pelo capitalismo; e a crítica ética, a alienação que o capitalismo produz.Definidos desse modo os termos da discussão, Fraser passa, no entanto, a fazer preponderar a sua voz. Primeiro, Fraser concorda com Jaeggi em que não é possível uma crítica puramente funcional do capitalismo, em que toda crítica funcional está ligada, explícita ou implicitamente, a algum ponto de vista normativo e, portanto, a algum tipo de crítica moral e/ou ética, ainda que o desenvolvimento teórico da crítica propriamente normativa se apresente como tímido e fugaz. A partir daí, no entanto, começam a mostrar-se divergências e diferenças entre as duas autoras. Por exemplo, Jaeggi defende que Marx não procedeu a uma crítica diretamente moral do capitalismo, mas Fraser sustenta que há, em Marx, uma dimensão moral explícita, relacionada à justiça política, ou a uma injusta (pois classista) destinação institucionalizada do excedente social. A obstinada oposição que Jaeggi faz a uma crítica moral é, então, contrastada com a insistência de Fraser numa crítica moral centrada nas dominações estruturais não só de classe, mas também de gênero e raça. Além disso (e muito mais importante), Fraser passa a apresentar a sua própria concepção de crítica ética do capitalismo, contrapondo-a abertamente à particular concepção de Jaeggi. E isso leva Fraser a retomar tanto a sua própria conceituação como a sua própria historicização do capitalismo, já desenvolvidas nos dois capítulos anteriores, para salientar-lhes as nuanças propriamente éticas.

Não obstante, é no capítulo III, sem dúvida, que Jaeggi é mais bem-sucedida em expor a sua própria crítica do capitalismo, ao menos nos seus traços gerais: uma crítica baseada em dois critérios entrelaçados, o critério funcional das contradições imanentes e tendências objetivas de crise e o critério ético não essencialista e não substantivo, mas antes processual e formal, da alienação – alienação como obstáculo à liberdade social. Trata-se de uma crítica que, em última análise, põe em relevo a irracionalidade inerente ao capitalismo como uma ordem social que sistematicamente bloqueia experiências sociais e processos de aprendizagem e, assim, distorce profundamente as reações sociais às suas próprias crises, o que acaba por causar e proliferar relações sociais alienadas e fenômenos de estranhamento. Nessa medida, o capítulo III é o capítulo de Jaeggi, ainda que, nele, o desempenho discursivo de Fraser não fique atrás do da sua interlocutora. No capítulo IV, Fraser reassume mais enfaticamente o seu protagonismo no livro. Isso ocorre porque a crítica do capitalismo de Fraser dispõe de uma elaboração acerca das lutas sociais que é muito mais rica e clarificadora do que a de Jaeggi. Essa elaboração se desenvolve em três vertentes diferentes e, não obstante, interligadas. A primeira vertente é a da ressignificação e ampliação do conceito clássico de “lutas de classe” através do conceito novo de “lutas de fronteira” – o que representa uma contribuição original de Fraser para a renovação do marxismo e da Teoria Crítica. Na “A turbulência que se aprofunda ao nosso redor” Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo | Jan./Jun..2020 129 segunda vertente, Fraser realiza uma apropriação crítica do conceito de “movimento duplo” de Karl Polanyi que o transforma num “movimento triplo”, constituído de três amplas tendências de desenvolvimento que atravessam toda a história do capitalismo e se relacionam umas com as outras de maneiras diferentes ao longo dessa história, a saber, as tendências de mercadorização, proteção social e emancipação. Já na terceira vertente, Fraser elabora o diagnóstico acerca do “neoliberalismo progressista” como a corrente política neoliberal hegemônica até há pouco, bem como acerca do recente arruinamento da hegemonia neoliberal sob a pressão geral de movimentos regressivos e emancipatórios, os primeiros alimentando o “populismo reacionário” de extrema-direita, os últimos nutrindo o “populismo progressista” de uma esquerda da qual se espera que possa unir toda a classe trabalhadora em sentido amplo, abarcando todos os expropriados e explorados num bloco contra-hegemônico que vise a uma transformação estrutural da ordem social capitalista. Jaeggi levanta importantes discordâncias e ressalvas a essa tripla elaboração de Fraser. Por exemplo, ela parece adotar uma compreensão mais aguda e mais dramática do racismo, do sexismo e da homofobia que caracterizam os atuais movimentos regressivos e os seus porta-vozes partidários de extrema-direita, em contraposição à proposta de Fraser de compreender essas gravíssimas atitudes sociopolíticas como reações reacionárias à crise da hegemonia neoliberal, suscetíveis, em princípio, ao esclarecimento e à mudança. Além disso, Jaeggi ressalta a necessidade de uma crítica da ideologia hoje, em contraposição à proposta de Fraser de recuperar o conceito de “hegemonia” de Antonio Gramsci. Em todo caso, nesse capítulo final, Jaeggi acaba por restringir-se a comentar as vastas propostas de Fraser.

Uma explicação do predomínio discursivo de Fraser

É possível explicar, com uma combinação de razões filosóficas e razões relativas à peculiar forma discursiva de Capitalismo em debate, a precedência que a crítica do capitalismo de Fraser exerce continuadamente sobre a de Jaeggi ao longo do livro. Ao conceituar o capitalismo como uma ordem social institucionalizada, Fraser monta um quadro conceitual que lhe rende algumas expressivas vantagens em relação a Jaeggi. Em primeiro lugar, o quadro conceitual de Fraser é consideravelmente menos abstrato que o de Jaeggi, o qual tem como cerne os conceitos de forma de vida, prática social, problema e processo de aprendizagem. Em segundo lugar, o quadro conceitual de Fraser é não só aberto à historicização – o de Jaeggi também o é –, mas também inerentemente dependente dela, ou seja, somente pode ser desdobrado teoricamente (e, assim, elucidar o seu próprio objeto) mediante uma narrativa abrangente do desenvolvimento histórico do capitalismo – o que não ocorre com o quadro conceitual de Jaeggi, cujo desdobramento teórico é significativamente independente de narrativas históricas, precisamente porque é de uma abstração elevadíssima. Em terceiro lugar, o quadro conceitual de Fraser tem como critérios da crítica a estabilidade estrutural (ou a sustentabilidade funcional), a não dominação de classe, gênero e raça e a autodeterminação coletiva socioeconômica, critérios com os quais Fraser consegue criticar o capitalismo de modo, ao mesmo tempo, mais simples, mais fértil e mais convincente do que Jaeggi com os seus critérios de êxito na compreensão e resolução de problemas e não alienação (ou apropriação). E, em quarto lugar, o quadro conceitual de Fraser é capaz de esclarecer imanentemente as lutas sociais de outrora e de hoje de modo abrangente e nuançado, quer dizer, oferece um panorama sistemático delas ao longo de toda a história capitalista, tanto no centro como na periferia do capitalismo mundial e em cada um dos períodos específicos dessa história; e oferece, ainda, um discernimento criterioso daquelas lutas conforme se posicionem em relação à mercantilização da sociedade, à proteção da sociedade contra a mercantilização e à emancipação de grupos sociais que permanecem estruturalmente dominados na sociedade capitalista.

Justamente em virtude dessas características do seu quadro conceitual, a crítica do capitalismo de Fraser se sobressai à de Jaeggi na “conversa”. Efetivamente, numa conversa (ainda que seja uma conversa só entre aspas), tende a perder espaço quem discursa muito abstratamente: discursos muito abstratos são mais adequadamente desdobrados em formas de escrever não dialógicas nem inclinadas à altercação oral, quer dizer, em formas de escrever mais monográficas, ensaísticas ou tratadísticas. Nesse sentido, é razoável supor que o quadro conceitual menos abstrato de Fraser tenda a ser propício ao desdobramento do seu particular discurso em Capitalismo em debate, enquanto o quadro conceitual muito mais abstrato de Jaeggi tenda ao contrário. Mesmo no capítulo I e no III, os mais abstratos do livro, a menor abstração do quadro conceitual de Fraser lhe proporciona bastante espaço discursivo. Além disso, as temáticas às quais se dedicam os dois outros capítulos do livro são francamente favoráveis a Fraser: no capítulo II e no IV, dedicados, respectivamente, à história do capitalismo e às lutas anticapitalistas atuais, é quase óbvio que Fraser se destaque muito mais que Jaeggi, dado que, entre as duas, é apenas Fraser que oferece uma crítica do capitalismo eminentemente histórica e explícita e sistematicamente ligada à práxis política anticapitalista.

Estamos conversados?

A forma de “conversa” que as autoras deram ao seu livro lhes permite sempre abrir e abordar uma gama formidável de temas e problemas, ao mesmo tempo que nem sempre lhes permite dar vazão à sua veia teórica na medida necessária. Essa constrição formal da reflexão teórica impõe a Capitalismo em debate três importantes limitações: a primeira diz respeito à relação da teorização que as autoras oferecem com a economia política e, em particular, com a teorização de Karl Marx; a segunda, à clarificação da religião nas suas (perigosas) relações com o capitalismo; e a terceira, à elucidação dos supostos populismos hodiernos. Tais limitações podem ser formuladas através das seguintes questões, que, no livro, ficam intocadas: Que traços fundamentais teria uma nova economia política que levasse a sério seja a concepção expandida de capitalismo de Fraser, seja a concepção alargada de economia de Jaeggi? Permaneceriam sustentáveis as bases do edifício teórico da crítica marxiana da economia política ante as novas, mais profundas e mais complexas concepções de trabalho, natureza, acumulação, contradição, crise, classe, luta de classes, democracia, sociedade e socialismo de Fraser? Como precisamente essas concepções de Fraser impactam as centrais conceituações marxianas de valor e mais-valor? Que lugar a religião ocupa na sociedade capitalista? Ela chegaria a constituir, para Fraser, uma esfera social própria com a qual a economia, assim como com a reprodução social, a política e a ecologia, manteria uma relação de separação, dependência e denegação; ou, para Jaeggi, uma forma de vida de escopo limitado, mas de forte resistência, sob a modernidade como uma abrangente forma de vida secularizada? Ou se circunscreveria ela a um resíduo de eticidade pré-moderna que, embora essencialmente incompatível com a secularidade moderna, pode ser e, de fato, é reaproveitado na sociedade capitalista para fins hegemônicos (diria Fraser, quiçá) ou ideológicos (talvez dissesse Jaeggi)? E que é populismo? Os atuais presidentes estadunidense e brasileiro (Donald Trump e Jair Bolsonaro), por exemplo, são mesmo populistas? Não seria mais adequado caracterizá-los como autoritários ou até fascistas? O que diferiria, hoje, o populismo do autoritarismo e do fascismo? Sem embargo dessas limitações gerais, Capitalismo em debate tem como virtude principal a de ser um livro tempestivo, um livro que liga estreita e profundamente a reflexão teórica ao seu contexto social, um livro que cabe ler justamente em meio à “turbulência que se aprofunda ao nosso redor” (p. 9). Ao final da leitura, permanecem ressoando as palavras de Fraser: “a crise não será resolvida com o ajuste desta nem daquela política. O caminho para a sua resolução só pode ser o da transformação estrutural profunda dessa ordem social”; palavras, aliás, reverberadas por Jaeggi: “sem um projeto emancipatório para além das alternativas às quais as pessoas parecem presas agora, as coisas podem ficar feias” (pp. 241-242).

Referências

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* Trata-se de uma citação da obra resenhada, situada na página 9.

Notas

1 Há outras três divergências centrais entre as autoras, a saber: primeiro, ao passo que Jaeggi parece manter uma considerável abertura para uma teoria da modernidade, ainda que não desenvolva uma, Fraser parece ater-se completamente à teorização do capitalismo, sem preocupar-se em caracterizálo como formação social moderna e em distingui-lo de formações sociais pré-modernas. Segundo, enquanto Jaeggi abraça uma crítica ética do capitalismo que, malgrado formal, é enfática, já que focada na alienação, Fraser assume uma crítica ética do capitalismo que é bastante tímida e parece ser mais política que ética, já que enfoca a autodeterminação coletiva quanto às mais importantes questões econômicas. Terceiro, se Fraser não hesita em conceber os movimentos sociais hodiernos, inclusive os regressivos, como reações diferentes ao neoliberalismo hegemônico, Jaeggi reluta em aceitar tal concepção e não descarta hipóteses que explicam os movimentos sociais regressivos por prismas predominantemente simbólicos, real ç ando, por exemplo, o racismo inveterado, a misoginia visceral, a homofobia entranhada e o ressentimento social que os impulsionaria

2 Por exemplo, quanto à conceituação do capitalismo, Fraser aprofunda reflexivamente a sua própria concepção ao explicitar que ela emprega duas metodologias distintas e que, no entanto, não correspondem a duas, mas a uma única ontologia social, ainda que diversificada para dar conta das diversas esferas sociais em que se divide estruturalmente a sociedade capitalista. Trata-se de uma metodologia estrutural-institucional e de uma metodologia de teoria da ação. Já quanto à historicização do capitalismo, Fraser desdobra a sua concepção, tornando-a mais abrangente, ao apontar um novo regime de acumulação capitalista, vigente do século XVI ao XVIII, anterior ao capitalismo liberal e concorrencial do século XIX, a saber, o capitalismo mercantil. Ademais, Fraser clarifica, quanto à conceituação do capitalismo, que a sua concepção não é meramente funcionalista, mas é também normativa; além do mais, clarifica, quanto à historicização do capitalismo, que o ideal seria elaborá-la de modo conjunto e sistemático, mostrando como as relações profundamente instáveis que a economia capitalista, de um lado, mantém com o poder público, a reprodução social e a natureza não humana, de outro, desenvolvem-se, ao mesmo tempo, distinta e combinadamente.

3 Por exemplo, em relação à crítica teórica do capitalismo, Fraser inova ao afirmar que a sua crítica do capitalismo tem não só uma dimensão funcionalista (focada em contradições estruturais e tendências de crise) e uma dimensão moral (focada em dominações institucionalizadas de classe, gênero e raça), mas também uma dimensão ético-estrutural que diz respeito à falta de autodeterminação coletiva no que se refere a questões econômicas centrais que moldam profundamente a forma de vida abrangente, sobretudo a questão do controle e do emprego do excedente social. E, em relação à contestação política do capitalismo, Fraser também inova ao afirmar que há uma crise de legitimação em curso, uma crise da hegemonia (do senso comum político) neoliberal, sendo que, em artigo publicado três anos antes, afirmara que faltava precisamente tal crise de legitimação.

4 As obras mais emblemáticas da fase anterior da crítica do capitalismo de Fraser são: Fraser & Honneth (2003) e Fraser (2013).

5 Ver, por exemplo, os seguintes artigos: Fraser (2014), Fraser (2018a), Fraser (2016), Fraser (2018b), Fraser (2018c), Fraser (2020).

6 Ver Jaeggi (2014), Jaeggi (2008), Jaeggi (2015), Jaeggi (2018a), Jaeggi (2018b), Jaeggi (2017).

José Ivan Rodrigues de Sousa Filho – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]

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Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático – STREECK (C-FA)

STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018. Crise e neoliberalismo no capitalismo setentrional. Resenha de: MARINO, Rafael; COSTANZO, Daniela. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 25 n.1 Jan-Jun, 2020.

A partir de uma longa visada, o livro de Wolfgang Streeck, Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático, pretende explorar as determinações essenciais da passagem, em meio a crises fiscais e financeiras, de um capitalismo democrático, baseado em um Welfare State e instituições políticas keynesianas, para um capitalismo neoliberal, no qual um regime econômico neo-hayekiano – caracterizado essencialmente por uma máxima desregulamentação econômica e pela proteção frente a qualquer normatização ou correções políticas de massa – impõe um mercado que se pretende imune a qualquer tipo de intervenção democrática. Nesse sentido, uma das teses mais fortes do economista alemão é a de que a crise de 2008 marcaria o possível fim dos adiamentos de conflitos decorrentes da crise do capitalismo democrático, ocorrida na década de 1970. Falamos em longa visada, pois o seu estudo abarca, pelo menos, as transformações do capitalismo e a marcha do capital desde os fins da década de 1960 até a década de 2010. O que acaba por tornar-se um respiro benfazejo em meio às análises políticas e econômicas presentes no mercado das ideias, fortemente pautadas por certo imediatismo e por estudos de curto fôlego.

A base material com que Streeck lida é a do capitalismo de países ricos  notadamente nações europeias, como Alemanha e França, além de nações de outros continentes, como Estados Unidos da América e Japão “como unidade multifacetada, constituída pela interdependência, em meio à dependência coletiva dos Estados Unidos, quanto pelas peculiaridades dos conflitos internos e dos problemas de integração sistêmica” (Streeck, 2018, p. 12).1 A fundamentação teórica que lança mão para cuidar deste material é um amálgama entre marxismo, renovado pela assim chamada novas leituras de Marx (Elbe, 2013), teoria crítica frankfurtiana das crises e as formulações de Michal Kalecki e Karl Polanyi. O que não deixa de também chamar a atenção, dada a preponderância de pesquisas e trabalhos fortemente especializados e centrados em particularismos formais e subjetivos, seja de atores ou mesmo de instituições políticas, nas ciências sociais, principalmente na economia e na ciência política. Não obstante a sua aproximação destas teorizações amalgamadas, Streeck não deixa de ver nelas algumas limitações frente ao material por ele enfrentando, o que serve, sobretudo, para o aperfeiçoamento daquele instrumental e não seu abandono.

Quanto às suas divisões internas, o livro é composto por seis partes, sendo quatro capítulos, um prefácio à segunda edição, de 2015, e uma introdução, os quais procuraremos explorar, mesmo que sumariamente e sem necessariamente seguir a sua ordenação.

No prefácio, Streeck volta-se para a discussão de seus pressupostos teóricos, suas escolhas de caminhos durante a apresentação de seu argumento e a exposição sucinta de alguns de seus achados de maior relevância. Quanto ao primeiro elemento, o referido amálgama crítico e neomarxista permite que o economista alemão veja o capitalismo como uma sequência de crises imanentes ao processo de valorização do valor; o mercado como algo reposto empiricamente a partir do entrecruzamento entre ação estratégica e as lutas distributivas coletivas “nos mercados expandidos, impulsionado por uma dinâmica relação de troca entre espaços de classes e de interesses, de um lado, e de grupo organizados e instituições políticas, de outro, com particular consideração do problema da reprodução financeira do Estado” (Streeck , 2018, p. 9) e o capital como uma espécie de sujeito capaz de assumir estratégias complexas para levar a bom termo sua valorização e expansão. Estratégias as quais operam, por exemplo, via greve de investimentos, como as antevistas por Kalecki (1943), para quem os capitalistas, vendo o pleno emprego e o poderio da classe trabalhadora aumentado, utilizariam-se daquele expediente para o enfraquecimento dos trabalhadores e para a extenuação do poder do Estado. Nesse bojo, o mercado e suas estratégias políticas, deixados por eles mesmos, sem a resistência da classe trabalhadora e de políticas voltadas para desmercadorização, poderiam, tendencialmente, tornar-se um moinho satânico com potencial para destruir a civilidade e a sociedade (cf. Polanyi, 2000).

Já em relação às trilhas percorridas por Streeck, três parecem ser os elementos essenciais. Em primeiro lugar, o capitalismo democrático dos países ricos a que se refere é visto pelo economista como um período de excepcional e específica estabilidade, construída politicamente a partir de uma elite tecnocrática, frustrada com os anos 1930 e “fundada em uma economia de guerra (…) centrada no Estado, que tinha uma coisa em comum com todas as linhas partidárias: profunda e experimentada dúvida sobre a viabilidade e sustentabilidade do livre mercado capitalista” (Streeck, 2018, p. 16). Havia, portanto, uma crise de legitimidade capitalista que exigiu que os capitalistas aceitassem um regime social democrata. Em segundo lugar, esse casamento entre capitalismo e democracia não é natural, pois, dentre outras coisas, ambos operam com formas contrárias de justiça. O capitalismo pratica uma justiça de mercado baseada no desempenho individual, enquanto a democracia se baseia na universalidade de direitos a partir da justiça social. Há, além disso, uma assimetria entre as duas justiças, já que o capital tem mais condições de reagir, podendo impor crises ao conjunto da população e justificar suas reivindicações como condições para o funcionamento do sistema como um todo. Já as reivindicações dos trabalhadores são vistas como perturbações e não como necessidades ao funcionamento do sistema.

Como último elemento distintivo da pista sob a qual o argumento de Streeck se desenvolve, vê-se a ideia de que, a partir do final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, esse casamento forçado entre capitalismo e democracia começou a mostrar suas contradições através de crises que foram seguidamente adiadas de formas distintas até o momento atual. Com, principalmente, três fatores: a) a diminuição do crescimento econômico, antes constante e crescente; b) o clima político desenvolvido a partir das revoltas de 1968, a partir do qual alguns atores políticos, organizações de classe e intelectuais passaram a falar até mesmo na superação do mercado e do capitalismo; e c) a uma revalorização grande do mercado como instância de satisfação e gestão das mais diversas esferas da sociedade. Nesse período, a burguesia, acossada principalmente pelos dois primeiros fatores elencados acima e legitimada pelo terceiro fator, inicia a quebra do que fora duramente acordado por décadas e deixa de financiar essa forma de organização estatal voltada ao bem estar social. Desta feita, criticando a visão de autores como James Buchanan, Gordon Tullock e outros teóricos da chamada public choice, o Estado de Bem-estar social não teria chegado ao fim pela irresponsabilidade fiscal de trabalhadores que votariam pela maximização de seus bens e serviços de seu interesse, mas sim por uma escolha política deliberada dos capitalistas em geral.

Na sua introdução, intitulada “Teoria da crise  no passado e no presente”, Streeck enuncia mais fortemente a sua filiação às teorizações da crise vindas da assim chamada Escola de Frankfurt, passando, de forma inespecífica, por Theodor Adorno, Max Horkheimer, Friedrich Pollock, Jürgen Habermas e Claus Offe. O essencial desta formulação sobre a crise, para o autor alemão, gira em torno de dois aspectos: i) o seu fundamento heurístico, desde o qual é possível ver uma tensão essencial entre a vida social civilizada e suas esferas e uma economia dirigida pelo imperativo de valorização do capital, que tende ao infinito e não possui freios normativos contra a barbarização; ii) o pressuposto de que o mais importante a ser estudado são os processos, em sua historicidade e em suas determinações basilares, e não os estados e momentos; de modo que aí as instituições sociais seriam vistas como engendradas pelo processo social, isto é, seriam provisórias, em permanente debate entre orientações políticas contraditórias e instáveis. Isso, a nosso ver, possibilitou um ponto de arrimo crítico interessante para Streeck, dado que, a partir dessa visão complexificada sobre a totalidade social em movimento, não caiu nas armadilhas da economia e da ciência política mainstream, confinadas ao individualismo metodológico e a uma operacionalização que isola o econômico e o político de outras esferas da vida (cf. Sartori, 2004; cf. Paulani, 2005). Não obstante, Streeck também faz críticas às teorizações frankfurtianas, pois, a seu ver, teriam acreditado demais na capacidade política de legitimação e planejamento do Estado e subestimado o poder do capital enquanto agente político e força social apta a desmobilizar e destroçar formas estatais específicas. Algo que, apesar de nosso acordo quanto a Habermas e Offe, é injusto com os frankfurtianos da chamada primeira geração, como mostraremos ao fim de nosso exercício de leitura crítica.

Já no primeiro capítulo do livro, Streeck repisa a sua crítica apesar de reafirmar sua filiação à teoria crítica frankfurtiana das crises, argumentando que esta teria se transformado em teorias da cultura, do Estado e da democracia, deixando de lado a crítica da economia política, achado essencial de Karl Marx e boa parte de suas teorizações sobre, por exemplo, crescimento, subconsumo e superprodução. Contra isto, o autor alemão propõe que voltemos a olhar o capital como um agente econômico e político voltado à sua autovalorização constante e dotado de forte capacidade estratégica contra o que acha ser uma barreira contra seu desígnio maior: a acumulação. Deste modo, a construção de um capitalismo democrático, durante as chamadas três décadas de ouro após a Segunda Guerra Mundial, deveria ser vista como um momento muito específico no qual o capitalismo e os capitalistas estavam em baixa e aceitaram a fusão, tensa, com a democracia e com a melhoria constante do nível civilizacional da classe trabalhadora. Tudo isso fora aceito pelos agentes do capital como uma forma de reestruturação de sua legitimidade, bem como uma espécie de imposição pela luta entre as classes e não como mudança do ímpeto acumulativo do capital.

Esta crítica de Streeck às ideias de crise de legitimação frankfurtiana deságua num diagnóstico bastante instigante a respeito da crise desta forma de capitalismo democrático em meados da década de 1970, a saber: “não foram as massas que se recusaram a seguir o capitalismo do pós-guerra, acabando com ele, mas, sim, o capital sob a forma de organizações, organizadores e proprietários” (Streeck , 2018, p. 65). Porém, por que essa recusa se deu? Sobre este ponto, as explicações dadas pelo autor aparecem em momentos distintos do texto, o que pode causar certa confusão no(a) leitor(a); além disso, duas delas, ao menos aparentemente, são contraditórias – conforme exploraremos mais adiante. Todavia, Streeck aponta que três seriam as causas. Em primeiro lugar, teria ocorrido o início de certo achatamento da lucratividade do capital, devido, principalmente, aos custos com mão de obra, cada vez mais valorizada, e com os chamados encargos do Welfare State. Em segundo lugar, com as revoltas da década de 1960, mais especificamente, as de 1968, instaura-se um clima político entre segmentos específicos de forças sociais, políticas e intelectuais supostamente voltados à negação e superação do mercado e da mercadoria, deixando os capitalistas extremamente assustados. Em terceiro lugar, nessa mesma década de 1960, assiste-se a uma elevação inédita da legitimidade, em várias camadas da sociedade, das forças do mercado vistas, neste período, como as melhores gestoras de diversas esferas da vida e da política  e ao aumento exponencial do consumismo e sua ideologia, conquistando novos domínios da vida social. Essa nova onda de legitimidade do mercado deu-se, num primeiro momento, a despeito das revoltas de 1968. Todavia, posteriormente, ela se deu utilizando-se, também, das pretensões emancipatórias dos manifestantes quanto à maior autonomia, à criatividade e à possibilidade de novas formas de vida distintas da família de classe média europeia e estadunidense. Deste modo, o desejo de autorrealização e flexibilidade comportamental e libidinal dos revoltosos de 1968 fora capturado por formas de trabalho e ocupação que embaralhavam termos opostos como independência e precariedade, conforme os diagnósticos de Boltanski e Chiapello (2009).

Outro lance argumentativo interessante de Streeck é quando liga a crise  adiada do capitalismo democrático de 1970 aos dias de hoje. De acordo com o nosso economista, tendo em vista os três elementos anteriores, pode-se notar o abandono dos capitalistas (ou dos dependentes do capital) do capitalismo democrático. Não obstante, esse abandono foi algo processual e não peremptório, dado que, ao mesmo tempo em que deveriam lograr a liberalização total da economia e de outras esferas da sociedade, não poderiam perder a sua legitimidade frente aos dependentes de salário em geral. Até porque, sem nenhum tipo de distribuição aos de baixo, o caminho para revoltas de todos os tipos estaria pavimentado. Streeck nota que, andando próximo àquela tendência de desacoplamento frente à regulação democrática, vê-se, entre as décadas de 1970 e 2010, uma contínua diminuição do crescimento econômico das economias centrais cada vez mais estagnadas. Tal diminuição do crescimento econômico fica sem maiores explicações e explicitações causais e de gênese por parte de Streeck – o que também criticamos ao final da resenha.

De toda forma, três seriam as formas de adiamento dos conflitos decorrentes da crise dos anos de 1970: i) inflação; ii) endividamento do Estado e iii) endividamento privado por meio da expansão dos mercados de créditos privados. Todos esses adiamentos, de um modo ou de outro, marcaram derrotas importantes para os assalariados e serão explorados por nós rapidamente  juntamente com as suas consequências para o povo dependente de salários e para a tentativa autoritária do mercado em se livrar de qualquer constrição da democracia.

A primeira forma de adiamento da crise se deu entre as décadas de 1970 e 1980 e foi materializada por meio da inflação. Isso se deu porque já nos anos de 1970 o pleno emprego, pedra angular da democracia no pós-guerra, passa a ser de difícil manutenção, dado que o crescimento econômico resultante do trabalho e do capital deixou de ser sistemático e ascensional. Assim, para evitar uma insatisfação popular generalizada com a não redistribuição dos lucros vindos da produção, o aumento salarial acima do aumento da produtividade fora sustentando por meio de uma política monetária de introdução “de recursos adicionais, que, no entanto, não estavam disponíveis senão sob a forma de dinheiro, não ou ainda não como algo real” (Streeck, 2018, p. 80). Gerando-se, desta feita, inflação. Mas não só. Essa ilusão monetária fora uma miragem de curto prazo, cujo fim fez com que investimentos diminuíssem ou fossem canalizados para outras moedas fora da zona econômica do atlântico norte. Já na metade da década de 1970, os agentes do capital, vendo tal situação de estagnação e inflação, colocaram na ordem do dia, sob a liderança de Reagan, nos Estados Unidos da América, e Thatcher, na Inglaterra, medidas de estabilização neoliberal drásticas. As quais foram um duro golpe nos dependentes de salários, visto que a deflação da economia foi decisiva para recessão e desemprego constantes. Condições importantes para a perda de poder dos sindicatos e da classe trabalhadora. Por conseguinte, a arena da disputa de classes, a partir deste momento, passa a se deslocar do mercado de trabalho e das fábricas, para lugares cada vez mais “abstratos” e inacessíveis ao cidadão comuns.

Essa política econômica “estabilizadora”, localizada no final dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, mostrou-se uma porta de entrada importante, a um só tempo, para uma nova configuração estatal. Com a deflação anterior e o decréscimo no nível de vida, viu-se novamente o perigo da não legitimação do capitalismo tardio frente às camadas médias e populares, fazendo com que Estados e agentes econômicos fossem atrás de outra fonte de adiamento e legitimação, qual seja: o endividamento público. Ao modo da inflação, o endividamento público permite ao governo utilizar recursos financeiros provenientes do sistema monetário, mais especificamente do pré-financiamento de futuras receitas fiscais do Estado via instituições privada de crédito. Recursos que serão de suma importância para pacificação de conflitos sociais provenientes do crescente fosso entre as promessas do capitalismo e sua realização efetiva para a maioria da população. Outro movimento a que se assistiu, juntamente com esse endividamento do Estado, foi o de aumento dos créditos sobre os sistemas de seguridade social, em função, principalmente, da elevada taxa de desemprego e pelo fato de a moderação salarial da classe trabalhadora ter tido como termo de negociação o aumento de parcelas. Ou seja, politicamente, os governos não podiam nem cortar mais direitos do Estado Social nem aumentar impostos, dado que uma ou outra alternativa poderia cutucar onças com varas curtas; fazendo com que recorresse ao endividamento público.

Essa forma de adiamento fora tão sensível que se constitui como um pilar essencial da passagem do que Max Weber, Adolph Wagner, Richard Musgrave e Rudolf Goldscheide concebiam como Estado Fiscal, que expropriou sistematicamente e soberanamente os cidadãos em geral da sociedade civil, a fim de financiar o cumprimento de suas tarefas como interferir no crescimento econômico, redistribuir riqueza e cobrir externalidades negativas do mercado -, para o Estado endividado.Este, para cumprir as suas tarefas e obrigações, passa a contrair empréstimos e deixa de cobrar uma taxa mais elevada de impostos daqueles que se apropriam da maior parte da riqueza socialmente produzida, os chamados dependentes do capital. Assim, Streeck pode afirmar, com dados e fatos, que a crise financeira não foi gerada pelas massas e suas demandas de civilidade, mas sim pelo andar de cima, que, década após década, viu seus rendimentos e propriedades, cada vez mais aumentados, serem cada vez menos taxados. Ou seja, numa movimentação unilateral de classe, deixaram de financiar o Estado social e o capitalismo democrático em prol da valorização do capital. Nesse bojo, a luta entre as classes também ganha outro contorno, passando a ser disputada dentro dos Estados de bem-estar social e não mais na produção, como anteriormente, girando em torno de disputas intraburocráticas e ainda mais distantes dos cidadãos dependentes do trabalho.

Nessa forma de Estado endividado, Streeck identifica propriamente uma nova fase de relação entre capitalismo e democracia. Isso se dá pelo fato de que, como o Estado passa a dever para instituições privadas de crédito, há sempre a desconfiança por parte destas de que o aparato estatal não honre as suas dívidas apesar de ser um devedor deveras lucrativo e seguro -, o que faz com que os agentes do mercado passem cada vez mais a influenciar a política estatal com o intuito de assegurar seus lucros. Por conseguinte, os credores passam a ser uma espécie de segunda raiz constitutiva do Estado, de sorte que as políticas devem responder a dois setores ou povos distintos, a saber: a) o povo do Estado, composto por cidadãos nacionais, portadores de direitos civis, dependentes de serviços públicos, formadores da opinião pública e que expressam sua vontade eleitoral periodicamente  tudo isso em troca de lealdade ao Estado e ao pagamento de impostos; b) o povo do Mercado, formado por investidores – e não cidadãos – internacionalmente integrados, que visam exclusivamente a maximização de seus lucros e que se ligam ao primeiro povo apenas por contratos.

À vista deste quadro, o nosso autor tira algumas consequências importantes da relação entre capitalismo e democracia. Primeiro, o capital ou o povo do mercado deixou de influenciar a política apenas indiretamente, via investimento na economia, e passou para uma ação direta na política nacional ao escolher ou não financiar todo o Estado. Segundo, o povo do Estado, principalmente as camadas mais pobres, por resignação, comparecem cada vez menos às eleições, pois já não veem o que esperar de mudança do partido no governo, visto que a agenda política e econômica da esquerda e da direita pouco se diferenciam e passam a sofrer constrições decisivas do povo do mercado. Com isto, cada vez mais o capitalismo vai se blindando em relação à democracia e suas decisões e a transição neoliberal vai se estabilizando e se alastrando.

Na passagem da segunda para a terceira forma de adiamento da crise vê-se, além de uma nova forma de preterir a crise (o endividamento privado), a constituição de outra configuração estatal, ainda mais voltada aos interesses do capital e para consolidação do neoliberalismo. Já ao final dos anos 1980 e começo da década de 1990, iniciou-se um movimento dúplice: os governos passaram a se preocupar cada dia mais com o aumento do peso do serviço da dívida no orçamento e os credores, a cada dia que passava, desconfiavam da capacidade estatal para o pagamento das dívidas. Nesse período, sendo os EUA de Clinton a vanguarda do atraso, começaram cortes nos gastos sociais e tentativas de “equilibrar” o orçamento, prática seguida por várias outras nações e incentivada diretamente por organizações como Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Apesar desse processo de liberalização radical dos mercados já vir de duas décadas anteriores, o capitalismo ainda precisava de uma forma de legitimação que, de uma só vez, mobilizasse recursos adicionais para evitar revoltas populares e não permitisse que a procura de capitais pelos países diminuísse, isto é, que a varinha de condão da confiança burguesa não deixasse de tocar as nações centrais. Para cumprir essas duas demandas, a saída da vez fora o endividamento privado, ou o que Colin Crouch chamou de “keynesianismo privado” (Crouch, 2009), injetando uma solvência antecipada no mercado numa segunda onda de liberalização dos mercados de capitais. Deste modo, substitui-se o endividamento público pelo endividamento privado como uma forma de aumentar as reservas disponíveis de recursos para distribuição. Nesse contexto, o papel do Estado mudou novamente, via liberalização do mercado de capitais no sentido de permitir o endividamento irrestrito dos agregados familiares, os quais tentam compensar tanto as perdas salariais de décadas, quanto a destruição das políticas estatais de desmercadorização.

Essa nova forma de adiamento forjou as bases para duas mudanças políticas e ideológicas importantes. Politicamente, vê-se a harmonização total entre a saída política encontrada e os desejos dos agentes do capitalismo neoliberal, harmonizando as necessidades e expectativas de ambos; até porque a desregulamentação das esferas da vida e dos mercados de capitais atingiu ali um nível nunca antes visto. Ideologicamente, operou-se um movimento dúplice: ao mesmo tempo em que surgiram novas teorizações a respeito da eficiência dos mercados desregulados, os quais contariam com agentes racionais que deteriam todas as informações necessárias para agir desde que o Estado não interferisse e desestabilizasse essa dinâmica, foram reabilitadas ideias de autores como o austríaco Friedrich Hayek, cuja proposição da transfiguração de todas as esferas da sociedade em empresas fora importante para imantar a prática de agentes capitalistas.

Nesse mesmo período, a formação estatal ganha outra conformação: passasse do Estado endividado nacional para o Estado de consolidação internacional. Por consolidação, Streeck entende o crescente processo de consolidação do orçamento e das finanças públicas no sentido de restringir direitos e parcelas do Welfare State à população e permitir um ambiente seguro para as movimentações políticas e econômicas do povo do mercado. Desta feita, essa consolidação está intrinsecamente ligada a três outros movimentos importantes: i) redução do Estado ao mínimo funcional à expansão dos mercados, impedindo a intervenção estatal ativa no sentido de regular e mitigar a justiça de mercado; ii) institucionalização de uma economia política internacionalizada e a transformação dos Estados nacionais em entidades não soberanas ajustadas a uma política fiscal decidida por uma diplomacia internacional do capital, cujo ponto de fuga não é a civilidade e sim o da valorização do capital e iii) restrição da capacidade de ação e regulação democrática do povo do Estado, de forma a colocar na ordem do dia uma democracia desdemocratizada e domesticada pelas forças do mercado e não o contrário. Como o Estado de consolidação é um regime internacional, a própria luta distributiva atinge o seu maior nível de abstração e inacessibilidade aos estratos médios e popular, já que o poder passa a se concentrar numa diplomacia financeira internacional e em mercados de capitais blindados à intervenção democrática e política.

Não obstante, em 2008, o keynesianismo privado veio abaixo. Essa forma de endividamento sustentou uma prosperidade enorme do setor financeiro e uma economia afluente, tudo isso sustentado pelo endividamento inaudito e colossal dos agregados familiares. Porém, a estrutura de crédito que permitia esse novo adiamento foi para os ares e o motivo era que todo aquele crédito liberado de modo algum poderia ser efetivamente saldado e boa parte do dinheiro em circulação, na forma de crédito, era fictício e lastreado em nada. Desta feita, os recursos para o adiamento da crise do capitalismo foram, um a um, testados e fracassaram, tornando qualquer saída cara demais para a diplomacia financeira internacional. À vista disto, o economista alemão vê duas alternativas possíveis: ou instaura-se realmente uma ordenação estatal neoliberal internacionalizada e pós-democrática, na qual o totalitarismo do mercado único sobrepujaria totalmente o povo do Estado, ou, a partir das mais variadas resistências populares – como o movimento global Occupy dos 99% –, volta-se a pensar na reconsolidação de democracias nacionais capazes de reinstaurar instituições promotoras de uma justiça social não redutível à justiça do mercado, a exemplo do praticado durante o chamado consenso socialdemocrata, além da repactuação de um Bretton Woods necessário à manutenção da soberania e democracia nacionais. Desta feita, a alternativa pensada por Streeck passaria, necessariamente, pelas seguintes medidas: a) reaproveitamento e revitalização de instituições nacionais, ao modo de parlamentos, bancos centrais, canais de representações popular e instituições de seguridade social socialdemocratas, as quais representariam as diferenças entre os povos e as nações; b) o aumento do espaço de autonomia dos Estados nacionais frente às instituições globais de governança do povo do mercado e c) a reformulação de um acordo econômico europeu, feito Bretton Woods, desde o qual se repactuassem regras para relações econômicas, as quais resistissem ao avanço desenfreado da desregulamentação mercantil. Tendo isso em vista, poder-se-ia argumentar que isto é muito pouco perto do diagnóstico feito pelo próprio economista alemão. Todavia, o próprio Streeck nos adverte que todas essas medidas são formas de ganhar tempo contra a expansão capitalista desmedida e que soluções melhores e mais radicais de ação contra a desdemocratização neoliberal devem ser pensadas com urgência.

Apesar de ser um estudo com elementos e argumentos indispensáveis para compreensão do capitalismo contemporâneo, articulando de modo exemplar a relação entre economia, política e sociedade, algumas críticas podem ser tecidas ao estudo de Streeck, as quais div idimos em teóricas, geopolíticas e de encadeamento interno da exposição.

No primeiro grupo, nota-se uma leitura generalizante a respeito da chamada Escola de Frankfurt ou da teoria crítica, 2 por dois motivos. Em primeiro lugar, a ideia de confiabilidade no caráter controlável do capitalismo, a partir da intervenção estatal e da democracia, é bem mais aplicável ao pensamento de Habermas e, em menor medida, ao de Offe -, para quem o Estado democrático de direito teria plenas condições de domesticar o crescimento capitalista, de modo que os cidadãos teriam aí direitos políticos para tomar parte e direitos sociais de ter parte nos processos decisórios e redistributivos da sociedade (Habermas, 2015). Deste modo, o problema essencial a ser enfrentado é o da continuidade da legitimidade do compromisso em torno deste Estado e os possíveis problemas da intervenção estatal na vida das pessoas; assim, a saída seria apenas a repactuação em torno de arenas políticas e discursivas, para que o princípio da solidariedade e o mundo da vida tivessem condições de sobrepujar os imperativos sistêmicos. Em Adorno e Horkheimer, como podemos ver em vários momentos de suas obras, o poder de mudança regressiva do capital e da forma mercadoria não são deixados de lado em prol de “análises culturais”. Mas sim que, partindo do diagnóstico pollockiano, poderíamos ver outros tipos de dominação menos imediatas determinadas não em sentido fatalista pela lógica da mercadoria (Fleck, 2016; Cook, 1998). Desta feita, a análise que fazem dos rackets não deixa dúvidas sobre a atenção que davam ao econômico e ao político (Adorno, 2003; Horkheimer, 2016). Ademais, se for permitido um reparo adorniano ao trabalho de Streeck, muito mais interessante que o uso da vaga ideia de ideologia do consumismo, seria lançar mão da noção de indústria cultural, dado que ela deveria ser entendida como uma continuação específica e crítica das teorizações sobre fetichismo e reificação de Marx e Lukács, de acordo com Adorno e Horkheimer (2006).Isso se dá porque o caráter de sistema da indústria cultural – composta pelo cinema, rádio, jazz, revistas, esporte, moda e livros de alta vendagem –, seria explicável justamente pela imposição do processo de reificação ao lazer e à cultura, impondo-lhes sua forma mercantil e tornando-as prolongamento do trabalho reificado. Forma reificada que condicionaria fortemente a apreensão da realidade, que passa a ser entendida agora como sistema imutável de leis especializadas e apreendida apenas pela contemplação, conformando uma individuação integrada à totalidade do capital e aos seus desígnios de consumo e manutenção do sistema.

Em segundo lugar, a teorização de Pollock surgiu em contraposição a outras duas. Uma, de origem social-democrata, propugnava a ideia de que as transformações do capitalismo no início do século XX apontavam para a sua estabilização; outra, aventada por figuras do comunismo ocidental, acreditava que estas transformações aprofundavam as contradições internas do capitalismo, apontando para seu colapso ou crise definitiva (Rugitsky, 2015). Contra ambas, Pollock (1973;1982) propõe que inexiste qualquer tendência inelutável de mudança ou colapso automático do capitalismo e que ele não estava passando por uma estabilização, mas sim por uma reestruturação na qual a primazia deixa de ser dos mecanismos do mercado e passa a ser do Estado, cuja política garante a reprodução da vida econômica.

À vista disto, pode-se entender a crítica de Streeck a certa “confiança” no planejamento mediante as reviravoltas do capital, porém é interessante que o economista alemão fale em greve de investimentos, em ação política das classes e na ideia de que as relações econômicas possuem uma fundamentação política, visto que isto não destoa de uma parte importante do diagnóstico de Pollock a respeito da politização do quadro institucional do capitalismo. E mais: o economista alemão havia pensado em duas possibilidades organizacionais para o capitalismo de Estado, o democrático e o autoritário; desta feita não poderíamos estar assistindo, na verdade, a passagem não para um Estado de consolidação, mas sim para um capitalismo de Estado autoritário? É preciso lembrar que o fato de a economia sofrer menos intervenções da democracia não quer dizer que a política saiu de cena, mas sim um tipo de política: a democracia de massas. Podendo restar aquilo que já era antevisto por Pollock, a saber: a força abismal dos dirigentes de grandes conglomerados e empresas, que, na esteira da monopolização acentuada decisivamente nos primórdios do século XX, passam a ser essenciais na vida social, política e econômica da população, pois, de um lado, o seu poder passa a se confundir com o poder estatal e, de outro, os seus prejuízos passam a ser socializados, dado que a sua falência causaria enorme impacto em toda a economia (Rugitsky, 2015, p. 63). Algo que, salvo engano, foi visto sistematicamente após a crise de 2008 em relação a variadas empresas e bancos, como Goldman Sachs e General Motors. Aspecto que poderia andar muito bem de mãos dadas com o processo de “ desdemocratização do capitalismo por meio da deseconomização da democracia ” (Streeck, 2018, p. 55).

Em relação à geopolítica, há duas ausências importantes na argumentação de Streeck: a primeira é a força da União Soviética e o contexto de Guerra Fria, a segunda são os processos de descolonização que assolaram o capitalismo central. Em relação ao primeiro fator, é possível dizer que a URSS, nas primeiras décadas do século XX, mostrou-se  independentemente de se gostar disto ou não  como uma alternativa de organização produtiva e social para a forte e organizada classe trabalhadora do centro e da periferia capitalista. Destarte, esses dois fatores um proletariado empoderado e dotado de uma alternativa de poder  produziram condições muito importantes para a consolidação de uma série de direitos sociais voltados para o bem-estar e para desmercadorização da população (Esping-Anderser, 1991), ou, como dizia Francisco de Oliveira, os direitos do antivalor (1998). Tanto é que Buci-Glucksmann e Therborn (1981) chegaram mesmo a entender o Welfare State como uma espécie de revolução passiva, na qual as classes dominantes passam a acolher uma série de demandas dos trabalhadores, dado que estão pressionadas política e socialmente pela possibilidade real de uma Revolução.

Já quanto ao segundo elemento elencado, desde o final da Segunda Guerra Mundial e se arrastando pelas décadas de 1950 e 1970, é possível notar um importante processo de descolonização pelo mundo, o que necessariamente implicou na perda relativa de poder político e econômico sobre a periferia do capitalismo mundial, deixando os dependentes do capital nos países centrais preocupados com uma diminuição da lucratividade de atividades organizadas em torno de matérias primas das ex-colônias (Jameson, 1999; Visentini, 2012). Nesse bojo, é notável o caso da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), que passou a nacionalizar as reservas petrolíferas e regular seus preços, e que produziu  em represália ao apoio dos EUA a Israel na guerra do Yom Kippur a chamada primeira crise do petróleo (Hobsbawn, 1995, p. 421-447). Com a qual, a partir do aumento proposital dos preços dos barris da referida commodity, a OPEP produziu consequências profundas nas economias centrais, cujos índices inflacionários bateram recordes, e que pode ter ajudado a acender o sinal amarelo das elites nacionais sobre os caminhos que o capitalismo democrático poderia traçar contra seus interesses de acumulação.

Ainda nessa seara, outro fato geopolítico importante, e que não aparece na explicação de Streeck, é a concorrência do que Araujo e Bresser-Pereira (2018) chamam de porções não-ocidentais do mundo no pós-Segunda Guerra Mundial. De acordo com estes autores, na esteira dos processos de globalização e descolonização, o que ocorreu não foi a destruição da forma política Estado-nação soberano, mas sim a sua dispersão e depuração mundial. Com isto, tais países alcançaram condições políticas e técnicas suficientes para controlar os recursos minerais de seus territórios e para dispor de um contingente enorme de mão de obra. Fatores que, combinados, passaram a exercer uma profunda pressão sobre os países desenvolvidos do centro ocidental do capitalismo, a qual “acabou afetando, a partir da década de 1970, o modo de legitimação dos Estados sob o chamado ‘consenso socialdemocrata’ dos anos dourados do capitalismo, os quais, após a Segunda Guerra Mundial, puderam oferecer cada vez melhores condições de vida às suas classes médias e populares” (Araujo; Bresser-Pereira, 2018, p. 556).

Desde o começo, salientou-se que a base sobre a qual o estudo de Streeck se concentra são os países desenvolvidos do centro do capitalismo, não obstante o fato de que considerações de economia geopolítica, como as que expomos, não fazerem parte de sua exposição acaba enfraquecendo seu argumento, dado que não se consegue explicar satisfatoriamente as determinações essenciais da estagnação do crescimento dos países centrais, por exemplo. À vista disso, partiremos para a exposição do que consideramos ser problemático no encadeamento expositivo interno do trabalho do economista alemão.

Conforme dissemos anteriormente, os anos de 1970 são chave para a passagem ao início de um adiamento tríplice da crise do capitalismo democrático e para o baixo crescimento econômico do que era antes o centro dinâmico do capitalismo no atlântico norte. No entanto, apesar da centralidade destes dois processos para o livro de Streeck, há três elementos que tornam essas passagens expositivas insatisfatórias.

Em primeiro lugar, como já dissemos no início deste exercício de leitura, as três causas do início da crise adiada a saber, o achatamento do lucro do capital no centro do capitalismo, a radicalização de alguns setores importantes contra a lógica mercantil e o prestígio da ideologia consumista são expostas de forma disparatada no texto, sem maior imbricamento e coesão entre elas, obrigando o(a) leitor(a) a caçar estas explicações ao longo do livro. Prova disto é que, ao longo dos capítulos um e dois, nos quais ele se debruça sobre os momentos de passagem de um capitalismo democrática mais consolidado para os adiamentos de sua crise, poucas são as vezes em que, ao menos, duas das causas expostas acima sejam apresentadas conjuntamente, de modo que durante quase cinquenta páginas é necessário pinça-las no texto. Ademais, a sua apresentação conjunta e imbricada não se dá durante a argumentação do economista alemão.

Em segundo lugar, apesar de Streeck concentrar-se propositalmente nos países desenvolvidos do capitalismo, algumas determinações de seus insucessos econômicos e políticos devem ser buscadas fora deles. Isso não se coaduna com a ideia de que Streeck seria etnocêntrico ou coisa do gênero (cf. Cariello, 2019), mas, tão somente, pretende-se chamar atenção para uma das lições da crítica da economia política de Marx (1983) reivindicada por Streeck contra as teorizações que esquecem das reviravoltas do capital: o fato de que o capitalismo é um sistema totalizante e que impõe a forma mercadoria e sua lógica em todos os cantos do globo e em todas as esferas da vida. Consequentemente, a exposição, mesmo concentrando-se nos países do centro do capitalismo, deveria prestar atenção em determinações que estão fora dele, pois, de acordo com outro ensinamento dos dialéticos, a primazia do método deve estar no objeto e suas implicações, as quais, no caso do capitalismo, são mundiais, queira-se ou não.

Em terceiro lugar, o economista alemão argumenta que haveria, em meados das décadas de 1960 e 1970, uma tendência contrária ao capitalismo e uma tendência que alargaria a sua legitimidade. À princípio, isto não seria em si problemático, porém a exposição do autor não deixa claro como esses dois termos se apresentam na realidade. A partir do que Streeck escreve, mas não desenvolve satisfatoriamente, poderíamos desdobrar a seguinte linha de raciocínio: ao mesmo tempo que segmentos específicos da sociedade, como parte dos trabalhadores, intelectuais e frações jovem e estudantis, tentavam colocar em xeque o sistema, gestou-se uma hegemonia ainda mais forte de legitimação mercantil, a qual enraizou-se de forma mais eficaz na sociedade. Ademais, essa tendência pró-capitalista pôde, ainda, apropriar-se de boa parte das bandeiras levantadas nos movimentos radicais de 1960 e 1970, convertendo-as aos dogmas do capital, apesar de sua aparência libertária. Desta feita, a luta por formas de vida autônomas e contrárias ao poder da mercadoria, fora funcionalizada como engrenagem de um capitalismo mais, aparentemente, flexível e hype.

Notas

1 À vista disto, não há base para Cariello (2019) chamá-lo de eurocêntrico, como se Streeck, espertamente, não tivesse revelado a base a partir da qual estuda mudanças importantes do capitalismo. Na verdade, Cariello é que nitidamente procura uma forma de atacar as posições de Streeck para elogiar as pretensas qualidades distributivas e civilizatórias do capitalismo. Que as pessoas tenham mais alguns dólares hoje do que o que ganhavam três décadas atrás, qualquer estudo empírico revela, mas Cariello esquece de dizer que as jornadas de trabalho no mundo voltaram a ter um nível de destrutividade poucas vezes visto e que, apesar de ganhos miseravelmente maiores, as desigualdades continuam aumentando de maneira gritante (Cf. Streeck, 2018, p.100; Piketty, 2014).

2 À primeira vista, esta crítica a Streeck pode parecer não essencial. Contudo, de acordo com argumento explorado posteriormente, caso o economista alemão tivesse dado maior consequência aos textos de Adorno e Horkheimer, poderia ter chegado a um diagnóstico e a uma crítica mais contundentes ao capitalismo contemporâneo e ao imbricamento ainda mais acentuado da tendência à reificação das subjetividades e ao poder destrutivo do capital, cujo cerne depõe contra o caráter facilmente controlável do capitalismo.

Referências

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DanielaCostanzo – Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Rafael Marino – Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Objetos trágicos, objetos estéticos – SCHILLER (AF)

Objetos trágicos, objetos estéticos – SCHILLER (AF)

SCHILLER, F. Objetos trágicos, objetos estéticos. Organização e tradução de Vladimir Vieira. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2018. Resenha de: BELLAS, João Pedro. Artefilosofia, Ouro Preto, n. 27, dez., 2019.

A incursão de Friedrich Schiller pela filosofia deu-se em um curto período de tempo, ficando restrita à década de 1790. Os textos de cunho filosófico do autor são relativos, majoritariamente, à estética e foram publicados em dois periódicos organizados pelo próprio Schiller: “Neue Thalia” e “Die Horen”, este editado ao lado de Goethe. O interesse por questões de natureza filosófica surgiu em um momento de crise poética vivenciado pelo dramaturgo após a composição do drama “ Don Carlos”, e o seu interesse pelo campo da estética, especificamente, é decorrente do desejo de alcançar maior clareza acerca dos princípios fundamentais de sua arte.

Embora constituam um corpo bastante denso e de mérito filosófico quase que indiscutível, tais escritos de Schiller foram praticamente ignorados pelos especialistas da área a partir do século XX. Esse desinteresse, de um ponto de vista mais geral, pode ser resultado da ausência de uma abordagem sistemática de temas clássicos da filosofia, como a questão do conhecimento, por exemplo. Surpreende, contudo, que mesmo no campo da estética ainda sejam escassos os estudos de mais fôlego acerca da obra filosófica do autor.

No Brasil, especificamente, até pouco tempo atrás muito da produção teórica do autor não se encontrava disponível em boas edições em língua portuguesa. Nesse sentido, o volume “Objetos trágicos, objetos estéticos”, organizado por Vladimir Vieira e publicado pela editora Autêntica, oferece uma contribuição importante para o debate estético brasileiro ao trazer quatro dos ensaios de Schiller em uma tradução bastante criteriosa e cuidadosa. O volume complementa o livro “Do sublime ao trágico”, organizado por Pedro Süssekind e editado pela mesma editora em 2011, na medida em que os te mas discutidos nos dois ensaios reunidos nessa obra, especialmente o conceito do sublime, são desenvolvidos também nos textos que compõem “Objetos trágicos, objetos estéticos”.

Os quatro ensaios que integram o volume foram publicados entre os anos de 1792 e 1793 nos quatro volumes da “Neue Thalia” e evidenciam, em maior ou menor grau, uma influência da filosofia crítica de Kant, sobretudo da obra “Crítica da faculdade do juízo”, sobre o pensamento de Schiller. Não se trata, contudo, de uma mera assimilação passiva do pensamento do filósofo de Königsberg. Como observa Vladimir Vieira (p. 141) no artigo que serve de posfácio a “Objetos trágicos”, Schiller procura refletir, a partir do sistema transcendental kantiano, sobre a sua vivência enquanto artista e sobre a própria experiência estética proporcionada pela arte. Nesse sentido, os ensaios schillerianos consistem em uma das primeiras e mais relevantes respostas às questões postuladas por Kant, em especial na terceira Crítica, 1 mesmo que a tradição filosófica subsequente não tenha-lhes concedido a devida atenção.

Os dois primeiros ensaios reunidos em “Objetos trágicos”, “Sobre o fundamento do deleite com objetos trágicos” e “Sobre a arte trágica”, como os títulos indicam, abordam questões mais diretamente relacionadas à tragédia. Ambos foram publicados no primeiro volume da “Neue Thalia”, em 1792, e as considerações presentes em cada um dos textos complementam umas às outras.

O primeiro ensaio explora as relações entre a estética e a ética, um tema recorrente em sua produção de cunho filosófico, e busca fundamentar a ideia de que a arte tem como fim menos a instrução moral e uma adequação às regras do decoro do que a produção de deleite. Schiller argumenta que, diferentemente do prazer mediato possibilitado pelo entendimento e pelo assenso da razão, que requerem, respectivamente, esforço e sacrifícios, somente o deleite proporcionado pela arte pode ser realizado de forma imediata. O postulado do autor vai, portanto, de encontro à proposta de determinada corrente moderna da estética, ligada especialmente ao Neoclassicismo, que busca subordinar a arte, e o deleite que ela é capaz de produzir, à instrução moral.

O deleite estético, como é compreendido pelo dramaturgo, mantém uma relação dupla com a moral, promovendo-a e sendo dela dependente. Porém, para que seja capaz de promovê-la, a arte não pode ser privada daquilo que a torna mais poderosa, sua liberdade: “Só cumprindo o seu mais alto efeito estético é que a arte terá uma influência benfazeja sobre a eticidade; mas só exercendo a sua total liberdade é que ela pode cumprir o seu mais alto efeito estético” (p. 20).

Entendendo que a fonte de todo o deleite é a conformidade a fins, Schiller reflete principalmente sobre o deleite livre, que seria decorrente de representações por parte das faculdades do ânimo. Estas poderiam ser divididas em seis classes, conforme as faculdades responsáveis pela representação: o entendimento ocupar-se-ia do verdadeiro e do perfeito, enquanto a razão teria como objeto o bom ; quando atuam em conjunto com a imaginação, essas faculdades ocupar-se-iam, no primeiro caso, do belo, e, no segundo caso, do sublime e do comovente. Essa classificação serviria, ainda, para organizar, mesmo que não perfeitamente, as artes: as que satisfaz em o entendimento e a imaginação seriam as belas artes (artes do gosto ou do entendimento); já aquelas que satisfazem a razão e a imaginação seriam as artes comoventes (artes do sentimento ou do coração).

Por se tratar de um texto voltado a uma investigação acerca dos fundamentos do prazer proporcionado pela arte trágica, Schiller aborda com mais detalhe as artes do sentimento, explorando principalmente os conceitos de sublime e comovente. Ambos não parecem possuir nenhuma diferença essencial, e têm em comum o fato de que são produzidos através de um desprazer, ou seja, eles “nos fazem sentir […] uma conformidade a fins que pressupõe uma contrariedade a fins” (p. 24). Na segunda metade do ensaio, o pensador passa a se ocupar exclusivamente da comoção, e investiga de que maneira seria possível determinar se uma representação comovente produz, no sujeito, mais prazer do que desprazer e quais seriam os meios que o poeta deveria utilizar para criar esse tipo de representação.

“Sobre a arte trágica” apresenta-se como um complemento de “Sobre o fundamento…” na medida em que tem como objetivo determinar a priori as regras e fundamentos da tragédia a partir do princípio da conformidade a fins. Nesse sentido, o ponto de partida do ensaio é uma tentativa de chegar a uma compreensão mais profunda do modo como podemos auferir prazer com o sofrimento. Para tanto, Schiller introduz a distinção entre afeto originário e afeto compartilhado, sendo o primeiro experimentado diretamente pelo sujeito e o segundo o que se observa vivenciado por outrem.

Essa distinção, na verdade, remete à ideia, recorrente no debate clássico sobre o sublime, de que, para que seja possível sentir prazer a partir de um objeto que se apresenta como um perigo, é necessário que a ameaça não seja direta, isto é, que estejamos em uma posição de segurança em relação ao objeto. Schiller, entretanto, apresenta uma visão bastante peculiar em relação à sua época ao conceder que, em determinados casos, também seria possível auferir prazer a partir de um afeto originário, ou seja, a partir de um desprazer que se dá de modo imediato. Não fosse assim, não poderíamos explicar, por exemplo, o apelo de jogos de azar e de outras situações semelhantes nas quais nos colocamos em um risco direto.

Schiller esclarece que as sensações de prazer ou desprazer resultam de uma relação, que pode ser positiva ou negativa, do objeto em questão com nossa sensibilidade ou nossa faculdade ética, a razão. Enquanto os afetos relacionados à razão seriam determinados de maneira necessária e incondicional, aqueles que se relacionam com nossa faculdade sensível poderiam ser controlados e sobrepujados por nossa razão. Assim, por meio de um aprimoramento moral, seríamos capazes de superar os afetos sensíveis, e experimentar prazer a partir do sofrimento, até mesmo quando se trata de um afeto originário.

Na sequência do ensaio, o autor desenvolve a ideia de que o maior deleite que se pode experimentar se dá a partir de uma representação em que a liberdade de nossa faculdade racional seja afirmada frente aos impulsos sensíveis. Essa ideia é fundamentada principalmente pela noção de atividade: o deleite seria decorrente de uma representação por meio da qual as capacidades da razão seriam postas em ação. É precisamente por despertar a atividade de nossa faculdade ética que a representação do conflito entre a razão e nossos impulsos sensíveis pode ser considerada conforme a fins.

Por fim, após as discussões de natureza mais filosófica sobre os fundamentos do prazer a partir do sofrimento, Schiller volta-se para os objetivos iniciais de estabelecer as regras da tragédia a partir do princípio da conformidade a fins. Elas são reunidas na definição proposta pelo dramaturgo: a tragédia seria uma “imitação poética de uma série concatenada de eventos (de uma ação completa) que nos mostra seres humanos em estado de sofrimento e que tem por propósito incitar a nossa compaixão” (p. 61).

O terceiro texto reunido no volume compreende a parte final de um ensaio mais amplo, intitulado “Do sublime (para uma exposição ulterior de algumas ideias kantianas)” e publicado em 1793 nos volumes 3 e 4 da “Neue Thalia”. Somente essa parte foi preservada por Schiller quando da organização de seus “Escritos menores em prosa” – a parte suprimida integra o livro “Do sublime ao trágico”, mencionado anteriormente.

Ao contrário dos dois textos que lhe antecedem, “Sobre o patético” manifesta uma influência mais profunda da filosofia de Kant. Em linhas gerais, Schiller retoma as suas considerações sobre a tragédia e busca repensá-las a partir do arcabouço teórico da terceira Crítica. Nesse sentido, o dramaturgo buscará reformular a sua definição de tragédia, entendo-a como a representação de um conflito entre nossa faculdade suprassensível da razão e a sensibilidade, na qual a primeira supera a segunda. A partir dessa ideia geral, Schiller reduz a dois os seus princípios constitutivos: ela deve (i) apresentar uma natureza que sofre, e (ii) também a resistência moral a esse sofrimento. Essas duas leis funcionariam para alcançar o fim da tragédia, a saber, a produção do pathos.

Esses princípios estabelecem que a mera representação do sofrimento não é suficiente para a produção do pathos. Isso só ocorre na medida em que ela for capaz de evidenciar para nós a nossa natureza suprassensível. Por isso, Schiller exclui do âmbito da tragédia os afetos que se relacionam apenas com a natureza sensível do sujeito. Assim, não dizem respeito à arte trágica os afetos lânguidos, que apenas agradam a sensibilidade, e aqueles que a perturbam por serem demasiadamente intensos. “O patético”, afirma Schiller, “só é estético na medida em que é sublime” (p. 77).

O pensador argumenta que nos tornamos conscientes de nossa natureza suprassensível apenas a partir da representação da resistência ao próprio sofrimento, e não de suas causas. Em outras palavras, a resistência apresentada deve ser moral e não física. Se, por um lado, as ideias da razão não podem, por definição, ser apresentadas de maneira direta na sensibilidade, isso pode se dar indiretamente. Essas são as situações que seriam capazes de produzir pathos.

Reconhecendo dois tipos de fenômenos, um determinado pela natureza e outro controlado pela vontade, Schiller argumenta que a representação do sofrimento coloca esses dois domínios em conflito. Nesse sentido, duas seriam as condições necessárias para a produção do pathos: (i) a dor deve apresentar-se em todas as regiões do corpo que são dependentes da natureza; (ii) a ausência de sofrimento naquelas que são determinadas por nossa própria vontade. O pathos, portanto, decorre da participação de nossas faculdades sensíveis e racionais; sem o sofrimento, não há representação estética, sem a resistência moral, ela não se torna patética, inviabilizando uma experiência do sublime.

As reflexões desenvolvidas ao final de “Sobre o patético” extrapolam o domínio do quadro conceitual estabelecido por Kant. Aqui, Schiller propõe uma classificação do sublime de acordo com a manifestação da autonomia moral perante o sofrimento: se a dor possui uma origem sensível, nossa eticidade é afirmada negativamente, tratando-se do “sublime do controle”; se a sua causa é moral, a moralidade é afirmada positivamente e temos o “sublime da ação” (p. 90). O segundo compreende, ainda, dois casos, a saber, um a situação em que o sofrimento é escolhido em função de um dever, configurando uma ação da vontade, ou uma situação em que o sofrimento purga uma ação imoral, sendo, aqui, um efeito da afirmação do dever moral como um poder.

Essa distinção serve de funda mento para a diferenciação entre duas formas de julgar: uma moral e outra estética. A primeira consiste em atestar que um sujeito agiu conforme deveria, a segunda em avaliar que ele possuía a capacidade para tal. Enquanto o juízo estético proporciona entusiasmo por explicitar uma capacidade superior aos impulsos da sensibilidade, o moral nos humilha, por mostrar que, por sermos seres sensíveis, não somos determinados exclusivamente pelos imperativos da razão. Essa diferenciação, por sua vez, permite justificar o fim último da arte, que seria a produção de deleite, e porque o recurso à moral deve estar subordinado a ele. Assim, a conclusão desse ensaio retoma a ideia, apresentada em “Sobre o fundamento do deleite com objetos trágicos”, de que o pathos trágico não deve ser sacrificado em função da instrução moral.

O último artigo do livro, “Observações dispersas sobre diversos objetos estéticos”, publicado em 1793 no quarto e último volume da “Neue Thalia”, complementa as reflexões contidas no ensaio “Do sublime”, mencionado anteriormente. Em “Do sublime”, Schiller admite a distinção estabelecida por Kant entre os casos matemático e dinâmico do sublime, porém direciona o seu foco apenas ao segundo. Suas considerações sobre o sublime matemático são desenvolvidas em “Observações dispersas…”.

O título do ensaio poderia levar a crer que se trata de uma compilação de ideias distintas que não possuem muita relação entre si. Trata-se, contudo, de um escrito bastante sistemático e pouco preocupado em ilustrar as ideias discutidas por meio de exemplos artísticos. Assim como Kant, Schiller entende que a experiência do sublime tem origem a partir da contemplação de um objeto que ultrapassa a nossa capacidade de apreensão (no caso matemático) ou de resistência (no caso dinâmico), desde que ele não proporcione “uma repressão de cada uma dessas duas faculdades” (p. 113).

Explorando o primeiro caso, o autor sustenta que, para ser qualificado como sublime, o objeto não pode ser uma grandeza mensurável, mas deve ser uma grandeza absoluta. Na primeira circunstância, teríamos uma avaliação matemática, na segunda, uma avaliação estética. Schiller tem como ponto de partida a ideia kantiana de que a apresentação de um objeto na imaginação envolve duas operações distintas: a apreensão dos dados sensíveis e a sua síntese em uma unidade. Enquanto a primeira operação pode avançar indefinidamente, a segunda possui um limite. O objeto absolutamente grande, por sua disposição no espaço-tempo, traz à consciência esse limite.

O fracasso da síntese gera desprazer, mas, logo em seguida, temos um sentimento de prazer que é decorrente do reconhecimento de que possuímos uma capacidade de pensar uma ideia que não pode ser apresentada na sensibilidade: o infinito. Assim, se, por um lado, experimentamos um sentimento de impotência por não conseguirmos sintetizar o objeto contemplado, por outro, experimentamos nossa força, na medida em que somos capazes de pensar o infinito. O sublime caracteriza justamente o movimento do ânimo que traz à tona a percepção de que somos, sobretudo, seres suprassensíveis, capazes de pensar uma ideia que não se apresenta na sensibilidade.

Ao final do ensaio, Schiller considera em que grau a altura e o comprimento colaboram para o sentimento do sublime. Ao sustentar que a altura afeta o sujeito em um grau mais elevado por acrescentar o terror à experiência, o pensador adota uma posição que atesta a possibilidade da confluência dos casos matemático e dinâmico do sublime.

Os quatro ensaios presentes em “Objetos trágicos, objetos estéticos”, reforçam o quão densos são os textos filosóficos de Schiller e dão testemunho de sua relevância para a estética, ainda que a tradição filosófica ocidental nos tenha levado a crer no contrário. O volume, portanto, traz consigo a oportunidade de potencializar pesquisas que possam vir a restaurar a relevância das ideias de Schiller frente à tradição filosófica, e acrescenta muito aos estudos desenvolvidos no Brasil ao introduzir ideias e conceitos que em muito contribuem para a compreensão do fenômeno estético.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 001.

Nota

1 A expressão “terceira Crítica” é comumente empregada pelos comentadores para referir à “ Crítica da faculdade do juízo ”, uma vez que a obra é a terceira das críticas publicadas por Kant, precedida pela “ Crítica da razão pura ” e pela “ Crítica da razão prática ”. Ela será utilizada daqui em diante em todas as ocasiões em que nos referimos à “ Crítica da faculdade do juízo ”.

João Pedro Bellas-Doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Possui mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Brasileira e graduação em Filosofia pela mesma universidade. E-mail: [email protected]

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A arte de contar histórias – BENJAMIN (AF)

BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. Org. Patrícia Lavelle. Trad. George Otte, Marcelo Backes e Patrícia Lavelle. São Paulo: Hedra, 2018. Resenha de: CHIARA, Jessica Di. O filósofo e o contista Walter Benjamin. Artefilosofia, Ouro Preto, n.26, jul., 2019.

Há pelo menos 50 anos o público universitário brasileiro vem entrando em contato com os textos filosóficos, os escritos críticos e ensaísticos de Walter Benjamin e as disputas interpretativas que se geraram em torno do pensamento do autor. Lido e assimilado e m diversas áreas do conhecimento, sobretudo nos cursos de filosofia, comunicação, letras, educação, história e sociologia, transcorridas mais de cinco décadas desde as primeiras abordagens, podemos dizer que já é bem sedimentada e ampla a tradição de comentadores da obra de Benjamin no Brasil.1 Contudo, mesmo em um solo fértil e produtivo, diante de uma obra estamos sempre diante de um mistério: mesmo se a lemos tantas e tantas vezes. É por esse motivo que a nova edição de reunião de escritos de Benjamin organizada por Patrícia Lavelle, “A arte de contar histórias”, contribui para a fertilidade do solo dos estudos benjaminianos por aqui. O livro inaugura a Coleção Walter Benjamin da editora Hedra, cuja intenção é somar-se às iniciativas já existentes e que s e destacam pela efetiva contribuição para o desenvolvimento da recepção da obra de Benjamin em português. Além de propor uma nova tradução anotada do ensaio clássico sobre o contador de histórias “ Der Erzähler ” (que no Brasil é amplamente conhecido pela tradução de Sérgio Paulo Rouanet como “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”), 2 o livro reúne e nos apresenta a pouco conhecida produção ficcional de Benjamin, trazendo para o público leitor brasileiro o conjunto de seus contos, alguns inéditos em português, e algumas peças radiofônicas, além de textos híbridos.

A nova tradução do ensaio, realizada por Patrícia Lavelle e Georg Otte, é atenta às alterações e diferenças entre as versões alemã e francesa. Como a nota dos editores contextualiza e informa, a versão alemã foi escrita entre março e julho de 1936 para a revista “Orient und Ok zident”, na qual foi publicada em outubro do mesmo ano, e é provável que entre 1936 e 1939 Benjamin tenha trabalhado numa versão francesa para o mesmo ensaio, que não chegou a ser publicada, pois a revista a que se destinava o texto em francês (Europe) par ou de circular antes disso. A versão francesa seria então publicada apenas postumamente, em 1952, no “Mercure de France”.3 A escolha em traduzir “ Der Erzähler ” por “O contador de histórias” acompanha aspectos sobretudo da recepção francófona (com conteur), mas também da anglófona (com storyteller).4 Contudo, parece decisivo para a escolha da presente tradução, além da pertinência etimológica,5 o amparo biográfico: a partir do trecho de um bilhete escrito pelo próprio Benjamin em francês, em dezembro de 1939, e destinado ao filósofo alemão exilado como ele em Paris, Paul Ludwig Landsberg, que tinha consigo já a versão alemã. No bilhete, Benjamin diz, ao enviar uma cópia da versão em francês, o seguinte: “Voilà ‘le narrateur’ (mais il faudrait bien plutôt traduire: Le conteur)”. 6 Ou seja: “Eis ‘o narrador’ (mais seria preciso de preferência traduzir: O contador de histórias)”. 7 Se o próprio ensaísta em seu trabalho de tradução do alemão para o francês atesta que a palavra “ conteur ” expressa melhor ou com mais precisão aquilo que o substantivo alemão “ Erzähler ” significa no contexto do ensaio, a tradução para o português, uma língua neolatina assim como a francesa, dá crédito à intuição benjaminiana. De todo modo, não deixa de ser inusitada a relação entre o título traduzido (“ le narrateur ”) e o bilhete com a sugestão de tradução (“le conteur”), ambos assinados por Walter Benjamin, que parece ter duvidado de si mesmo após o trabalho da tradução. Mas o livro “A arte de contar histórias” não se restringe a apresentar uma nova tradução do clássico ensaio sobre o papel da arte tradicional de contar histórias, e Marcelo Backes soma-se a Lavelle e Otte no trabalho de tradução dos textos ficcionais. Este é dividido em quatro partes, que são acompanhadas de uma nota de apresentação da coleção escrita pelos editores Amon Pinho e Francisco Pinheiro Machado e de um posfácio assinado por Lavelle. A primeira parte, intitulada “Ensaio”, abriga a nova tradução do ensaio sobre o contador de histórias. Já a segunda parte, “Contos”, traz ao todo dezesseis contos escritos por Benjamin ao longo das décadas de 1920 e 1930 (com prevalência da produção na última década), em sua maioria inéditos em língua portuguesa. Na terceira parte, intitulada “O contador de histórias no rádio”, temos acesso a quatro peças radiofônicas escritas pelo autor e filósofo alemão que foram transmitidas durante a década de 1930, com exceção da peça “No minuto exato”, que teria sido publicada no Frankfurter Zeitung, em 6 de dezembro de 1934, sob o pseudônimo de Detlef Holz. A quarta e última parte do livro, de nome “Conto e crítica”, abriga quatro textos híbridos publicados em jornais. Uma tal divisão do livro poderia indicar um viés de leitura que parte da teoria sobre a arte de contar histórias para a sua aplicação em contos e peças, sugerindo para quem leia os textos ficcionais encontrar neles traços dos conceitos e reflexões que são apresentadas no ensaio de abertura. Ler assim o livro ora organizado e os escritos de Benjamin seria, melhor dizendo, não lê-lo, pois desconsidera a novidade que a leitura dos textos ficcionais benjaminianos solicita. Ao contrário, é possível ler essa proposta de organização como um caminho que vai da filosofia à literatura, de maneira a, por fim, trazer textos onde essa divisão mesmo já não faz sentido.

De tom marcadamente nostálgico e bastante crítico a ainda jovem modernidade técnica, o ensaio sobre o contador de histórias apresenta a figura arcaica, o que vale dizer aqui pré-moderna, do contador de histórias como a imagem que caracteriza um tipo de arte que carrega em sua própria forma a memória de uma organização social comunitária, em que a transmissão de experiências se organizava mediada pelo trabalho artesanal, era apreendida e transmitida a partir de um mestre e compartilhada por uma comunidade. Ou seja, a arte de contar histórias carregaria consigo, em sua forma oral (e encarnada nas figuras do ancião, do mestre ou do viajante estrangeiro), a lembrança e a potência de uma organização social pouco mediada pela técnica moderna, índice para Benjamin nesse ensaio de uma modernidade bárbara, que fragmentou, sobretudo no século XX, não só o trabalho e o processo produtivo com máquinas e linhas de produção, mas os próprios indivíduos em sua subjetividade e vida social nas grandes cidades e na experiência da Primeira Grande Guerra Mundial. Vale dizer que Benjamin também associa o declínio ou desaparecimento do contador de histórias ao surgimento de uma nova forma de arte, a do romance como gênero narrativo, que tem em “Dom Quixote” se u marco, mas que irá se desenvolver sobretudo a partir do século XVIII. A invenção da imprensa produz ainda, depois do romance, a informação, que desassocia a narrativa e dispensa o contador porque explica tudo. O contador de histórias seria aquele capaz de encontrar na riqueza da experiência transmissível a matéria de sua arte e preservar da experiência sempre algum mistério que não é totalmente dito. Contudo, Lavelle ressalta, apesar do tom nostálgico pelo diagnóstico decaído do teor da experiência media da pela técnica Benjamin, “ao evocar [com a figura do contador de histórias] o arcaísmo da narrativa que se inscreve na tradição oral […] tem o projeto de construir uma nova forma, profundamente moderna”. 8 Para a filósofa e tradutora, Benjamin não tematiza a narração tradicional apenas teoricamente (como o público brasileiro até agora tinha acesso pelos ensaios e textos críticos sobre o tema), mas também através de uma produção ficcional de contos e peças radiofônicas nos quais “as estratégias tradicionais da arte de contar histórias são mobilizadas, discutidas e ironizadas”.9 Tais procedimentos são bastante explícitos, por exemplo, em contos como “A sebe de cactos” e “O segundo eu”, em que certo efeito de choque causado pela evocação nostálgica do contado r de histórias e sua arte acontece concomitantemente à denúncia dessa mesma nostalgia através do recurso à ironia do contista moderno no modo como este se utiliza das formas narrativas tradicionais, às quais claramente está interditada a ele uma adesão substancial.10 Em “A sebe dos cactos”, por exemplo, vemos o desenrolar de uma história contada vinte anos depois de ocorrida: a do primeiro estrangeiro que chegou à ilha de Ibiza, o irlandês O’Brien. O estrangeiro, um homem experiente e viajado, antes de chegara Ibiza vivera alguns anos de sua juventude na África, e é a partir dessa experiência em outro continente e de suas consequências que o conto se desenvolve. Circulava entre os habitantes de Ibiza a história de que O’Brien havia perdido para um amigo sua única e valiosa propriedade: uma coleção de máscaras negras que havia adquirido com nativos em seus anos pelo continente africano. O amigo usurpador teria morrido em um incêndio de navio, levando consigo para sempre a tal coleção. A história era famosa entre todos os moradores da ilha, porém ninguém sabia ao certo suas fontes. Certo dia, O’Brien convidou o narrador para uma refeição e, depois de concluída a refeição, o estrangeiro decidiu-se por mostrar algo ao narrador: sua coleção de máscaras negras, exatamente a mesma que havia naufragado, segundo era sabido por todos, com o amigo desleal. O narrador nos descreve assim a cena de encontro com as máscaras:

Mas eis que ali estavam penduradas, vinte ou trinta peças, no quarto vazio, sobre parede s brancas. Eram máscaras de expressões grotescas, que revelavam sobretudo uma severidade levada ao cômico, uma recusa completamente inexorável de tudo que era desmedido. Os lábios superiores abertos, as estrias abobadadas que haviam se tornado a fenda das pálpebras e sobrancelhas pareciam expressar algo como asco infinito contra aquele que se aproximava, até mesmo contra tudo o que se aproxima, enquanto os cimos empilhados dos adorno na testa e os reforços das mechas de cabelos entrançadas se destacavam como macas que anunciavam os direitos de um poder estranho sobre aquelas feições. Para qualquer dessas máscaras que se olhasse, em lugar nenhum sua boca parecia destinada, como quer que fosse, a emitir sons; os lábios grossos e entreabertos, ou então bem cerrados, eram cancelas instaladas antes ou depois da vida, como os lábios dos embriões ou dos mortos. 11

Após a descrição, O’Brien conta ao narrador como reencontrou cada uma daquelas peças. As janelas de sua casa davam para uma sebe de cactos enorme e bastante velha e, nu m dia de lua cheia, ao tentar dormir, sua cabeça foi tomada por lembranças e pela luz da lua, o que fez com que visse, como uma aparição, penduradas na sebe de cactos, as imagens das máscaras que havia perdido. Como que tomado pelo sono e pela visão, passo u dias inteiros esculpindo as máscaras que via, e assim produziu todas aquelas que estavam na sala e que o narrador podia ver também. Ou seja, o estrangeiro havia rememorado as máscaras e, a partir de seu trabalho, reproduzido artesanalmente cada uma delas em madeira. Depois disso nunca mais o narrador do conto e o estrangeiro se viram, pois logo em seguida O’Brien morreu. Anos mais tarde, diferente da visão que fizera O’Brien esculpir uma a uma as máscaras perdidas, o que faz o narrador do conto rememorar uma tal história é ter se deparado, certo dia, com três máscaras negras numa vitrine de um comerciante de arte em Paris. O conto termina assim: “Posso”, disse eu, voltando-me para o diretor da casa, “parabenizá-lo de coração por essa aquisição incrivelmente bela?” “Vejo com prazer”, foi a resposta, “que o senhor sabe honrar a qualidade! Vejo também que o senhor é um conhecedor! As máscaras que o senhor com razão admira não são mais do que uma pequena amostra da grande coleção cuja exposição estamos preparando no momento!” “E eu poderia pensar, meu senhor, que essas máscaras certamente inspirariam nossos jovens artistas a fazer suas próprias tentativas interessantes.” “É o que eu espero, inclusive!… Aliás, se o senhor se interessar mais de perto pelo assunto, posso fazer com que cheguem até o senhor, do meu escritório, os pareceres de nossos maiores conhecedores de Haia e de Londres. O senhor haverá de ver que se trata de objetos de centenas de anos. De dois deles eu diria até que de milhares de anos.” “Ler esses pareceres de fato me interessaria muito! Eu poderia perguntar a quem pertence essa coleção?” “Ela pertence ao espólio de um irlandês. O’Brien. O senhor com certeza jamais ouviu seu nome. Ele viveu e morreu nas Ilhas Baleares.” 12 Aquele que escreve agora o conto é alguém que anda pelas ruas e galerias de uma grande cidade, a Paris do começo do século XX, e que tem a capacidade de, mesmo em meio à atenção difusa e distraída que a percepção nas grandes cidades produz, consegue transformar o choque de um encontro furtivo na rememoração de uma experiência.

O filósofo italiano Giorgio Agamben pensa, no ensaio “O que é o contemporâneo?”, que uma tal questão pode ser caracterizada por aquilo ou aquele que “mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”, 13 e que vê esse escuro do seu tempo “como algo que lhe concerne e não cessa de interpretá-lo”.14Pensando o contemporâneo como intempestividade – retomando assim a proposta nietzschiana presente nas Considerações Intempestivas –, a exigência de “atualidade” em relação ao presente é pensada não nos termos de uma sincronicidade, mas sim de uma desencontro com este. “Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões”. 15 Essa não-coincidência entre tempo e pertencimento não significa que o homem contemporâneo, nos termos agambenianos, seja um nostálgico. Pelo contrário, um homem pode não concordar com os rumos de seu tempo e saber que lhe pertence irrevogavelmente, sendo o caráter contemporâneo pensado aqui como uma singular relação com o próprio tempo. Esse parece ser o caso dos escritos teóricos e ficcionais de Benjamin presentes no livro “A arte de contar histórias”. Seus contos, como podemos ler na cena que encerra “A sebe de cactos”, abordam ao mesmo tempo em que parecem promover uma relação entre o arcaico e o moderno que talvez seja da ordem de “um compromisso secreto”, como nos diz Agamben, “e não tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto porque a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico”. 16 A reelaboração dos objetos rituais africanos na pintura cubista de Pablo Picasso, marcada então pelo que veio a se chamar primitivismo, encontra afinidades com a fragmentação dos corpos mutilados pelas máquinas de guerra, frutos da civilização técnica. As vanguardas da primeira metade do século XX irão produzir, assim, uma nova forma de arte que circula em galerias mundialmente, e que pode ter sido exposta pela primeira vez em alguma galeria parisiense como aquela que o narrador de “A sebe de cactos” passeia. Aprendemos também com o contista Walter Benjamin a pensar não a partir de dicotomias, mas sim por imagens dialéticas: a modernidade técnica e sua relação tensa com a tradição como aquilo que pode condenar e salvar o destino dos homens e das civilizações.

Notas

1 Sobre a recepção de Benjamin no Brasil Cf., por exemplo, PRESSLER, Günter Karl. Benjamin, Brasil. A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005. Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: AnnaBlume, 2006.

2 BENJAMIN, W. “O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, vol. 1).

3 Cf. a nota editorial presente em BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. São Paulo: Hedra, 2018, p. 19.

4 Cf. PINHO, A.; Pinho MACHADO, F. P. “Sobre a Coleção Walter Benjamin” In: BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. São Paulo: Hedra, 2018, p. 13.

5 O verbo zählen em alemão significa “contar”, no sentido de “fazer conta”, “enumerar”, e há uma gama de termos ligados ao verbo que engendram um campo semântico próprio ao universo contabilístico. Em relação ao mesmo campo semântico do verbo zählen deriva o verbo erzhälen, que também significa contar, contudo, por meio de palavras, no sentido de relatar um enredo ou uma história. De onde, por fim o sentido de “Erzähler” como contador de histórias.

6 Conforme indicação da nota dos editores “Sobre a Coleção Walter Benjamin”, Cf. BENJAMIN, Walter. Gesammelte Briefe, vol. VI. Edição de Christoph Gödde e Henri Lonitz. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2000, p. 367.

7 Cf. PINHO, A.; MACHADO, F. P. Op. cit., p. 13

8 LAVELLE, Patrícia. “O crítico e o conta dor de histórias” In: BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 267.

9 Id.

10 Ver LUNAY, M a r c. “ P r e f a c e ”. I n: B E NJA M I N, Walter. N’oublie pas le meilleur et autres histoires et récits. Apud LAVELLE, Patrícia. Op. cit., p. 267.

11 BENJAMIN, Walter. “A sebe dos cactos”. In: A arte de contar histórias. Op. cit., pp. 85-86.

12 Ibid, pp. 89-90.

13 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 62.

14 Ibid., p. 64.

15 Ibid., pp. 58-59.

16 Ibid., p. 70.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 57.

BENJAMIN, Walter. A arte de contar histórias. Org. Patrícia Lavelle. Trad. George Otte, Marcelo Backes e Patrícia Lavelle. São Paulo: Hedra, 2018.

__________. Gesammelte Briefe, vol. VI. Edição de Christoph Gö dde e Henri Lonitz. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2000.

__________. N’oublie pas le meilleur et autres histoires et récits. Trad. Marc de Launay. Paris: L’Herne, 2012.

PRESSLER, Günter Karl. Benjamin, Brasil. A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005. Um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: AnnaBlume, 2006.

Jessica Di Chiara-Possui Graduação (2015) e Mestrado (2018) em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense e atualmente é doutoranda em Filosofia pela PUC-Rio. É autora de artigos publicados em livros e revistas acadêmicas, estudando a relação entre pensamento e forma sobretudo a partir da filosofia de Theodor W. Adorno. Também atua como curadora no coletivo A MESA, que promove exposições em galeria própria no Morro da Conceição, Rio de Janeiro. Integrante do grupo de pesquisa Arte, Autonomia e Política, da PUC-Rio. E-mail: [email protected]

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Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia – FLUSSER (AF)

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia. São Paulo: É Realizações, 2018. Resenha de: PEREIRA, Juliana Santos. Artefilosofia, Ouro Preto, n.26, jul., 2019.

A primeira edição de “Filosofia da caixa preta – Ensaios para uma filosofia da fotografia” do filósofo e escritor tcheco-brasileiro Vilém Flusser foi inicialmente publicada em alemão – “Füreinephilosophie der fotografie” – e recriada e publicada em português pelo próprio autor no mesmo ano de publicação da edição alemã, 1983. O livro é resultado de aulas e conferências que aconteceram na Alemanha e na França, sendo pioneiro na discussão sobre a filosofia da fotografia, a qual se tornou o fio condutor de toda a produção de Flusser até o fim de sua vida. A reedição do livro pela editora É Realizações é fruto da pesquisa de doutorado de Rodrigo Maltez Novaes, durante o seu período de imersão no Arquivo de Berlim. Com o objetivo de enriquecer a edição, foram incluídos um texto de apresentação e posfácios de professores e intelectuais conhecidos por seus trabalhos com a obra do filósofo.

A obra “Filosofia da Caixa Preta” é apresentada para o leitor de capa como um livro de filosofia. Entretanto, localizá-lo em uma única disciplina é tarefa desafiadora, já que a hipótese de Flusser pode ser aplicada em diferentes áreas, como antropologia, sociologia, arqueologia e, por último e mais presente, em futurologia (ciência do futuro). Logo, é necessário começar pelo o que essa obra não é. Além de não ser apenas uma abordagem filosófica, ela também não é uma discussão sobre a arte da fotografia. O tema fotografia é utilizado como pretexto para uma discussão sobre como os aparelhos têm papel fundamental na modelação do pensamento humano. A palavra urgência é vista em vários momentos do livro como alerta à necessidade de uma filosofia dos aparelhos para que possamos manter a liberdade de pensamento. Para Flusser, a filosofia da fotografia é caminho para a liberdade e “liberdade é jogar contra o aparelho” (p. 100). Assim, tratar da intenção deste último é caminho para que possamos decifrá-lo.

Os aparelhos inauguraram o momento pós-industrial onde o homem, antes cercado por máquinas, passa a pensar, viver, conhecer, valorar e agir em função deles. O início desse momento é marcado pelo surgimento da fotografia. O filósofo defende que o aparelho fotográfico é o patriarca dos aparelhos, é o ponto de partida de uma nova existência humana que abandona a escrita linear em troca de um pensar imagético. “No momento em que a fotografia passa a ser modelo de pensamento, muda a própria estrutura da existência, do mundo e da sociedade.” (p. 98) Além do aparelho, os conceitos de imagem, imagem técnica, programa e informação são base para o desenvolvimento da hipótese flusseriana. Com o intuito de “criar atmosfera de abertura para campo virgem” (p. 10), Flusser nos apresenta um glossário com novos significados para as palavras, inserindo o leitor no universo pós-histórico das imagens técnicas, que inauguram “um modo de ser ainda dificilmente definível” (p. 9). O autor faz uso de elementos do universo fotográfico para conceituar a formação do pensamento por meio das imagens técnicas.

Ao abordar o conceito de imagem, o autor afirma que elas “são superfícies sobre as quais circula o olhar” (p. 96), são mediações entre o homem e o mundo. Para que esta mediação não seja percebida como a realidade, é necessário decifrar os elementos que são apresentados em sua superfície, que é dotada de múltiplos significados. O receptor, ao tentar decifrar a imagem, circula pela mesma voltando o olhar para elementos preferenciais de significado. O ato de circular pela imagem é definido por Flusser como “tempo de magia” (p. 16), tempo em que o olhar estabelece relações significantes.

Diferentemente da escrita linear, que possui plano contínuo e que “estabelece relações causais entre eventos” (p. 16). O autor afirma que as imagens não eternizam eventos; “elas substituem eventos por cenas” (p.

17). E é o que define o caráter mágico das mesmas. Se inicialmente as imagens tinham o propósito de “serem mapas do mundo” (p. 17), elas passaram a esconder o mundo para o seu receptor. A humanidade passa a viver em função delas e o mundo torna-se um conjunto de cenas. Sua superfície é a realidade. Assim, caracteriza-se a idolatria, o homem que vive magicamente. Diante desse homem, a humanidade, que não decifra mais imagens, passa a desfiá-las de modo que os elementos planos são postos em linhas. Surge a escrita linear e com ela a consciência histórica, “consciência dirigida contra as imagens” (p. 18). Antes da escrita linear, não havia história, e sim acontecimentos. Contudo, o homem novamente cria o instrumento para se servir dele e acaba servindo a ele. Como nova mediação, entre o homem e a imagem, o texto tapa a imagem para o homem, e o mesmo não é capaz de reconstituir as imagens explicadas pelos textos, ou seja, decifrá-los. A ciência é exemplo de como os textos explicam um universo inimaginável. Surge então a textolatria. Ambas as alienações tratadas pelo autor – idolatria e textolatria – acontecem pois há uma dialética interna inerente às mediações entre o homem e o mundo. Tanto a imagem quanto o texto representam o mundo, mas também o encobrem. Serve m para orientar a humanidade, mas também formam biombos, alienando-a e desalienando-a. O homem esquece da razão pela qual criou o instrumento e passa a agir em função dele.

E, diante de um universo inimaginável e dominado por textos, surgem as imagens técnicas. A fotografia é criada. Para seu deciframento, é importante entender seu posicionamento ontológico: “as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo” (p. 21). E é preciso considerar que essa imagem do mundo passou por intenções que incluem a “cabeça” do agente humano e um aparelho com conceitos definidos. O aparelho é incógnita no processo de codificação dos símbolos, é caixa preta, “dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquanto analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos como decifrá-las” (p. 24). Devido a isso, as imagens técnicas tornam-se barreiras entre o homem e o mundo.

Historicamente, as imagens tradicionais (pinturas) definem a pré-história e o surgimento da escrita linear (texto) define o conceito de história. O surgimento das imagens técnicas define o fim de uma narrativa linear e, portanto, o início da pós-história. As imagens técnicas são, segundo o filósofo, a segunda tentativa da humanidade de resolver os desdobramentos gerados por revoluções fundamentais na estrutura cultural.

“As imagens técnicas são produzidas por aparelhos” (p. 29). Para apresentar o conceito de aparelho, Flusser, por meio de uma perspectiva histórica, aponta três momentos importantes da relação da humanidade com os objetos culturais. No período pré-industrial, o homem era cercado por instrumentos, que “são prolongações de órgãos do corpo” (p. 31). A enxada é o dente; o martelo é o punho. Com a revolução industrial, os instrumentos são aperfeiçoados por teorias científicas e temos então as máquinas. O autor afirma que os instrumentos funcionavam em função do homem até então e, no período industrial, o homem passa a funcionar em função das máquinas. Com a criação da fotografia, ou seja, do aparelho fotográfico, o filósofo aponta para uma dificuldade em definir este novo objeto cultural, uma vez que é pós-industrial. O período industrial é marcado pelo trabalho, e aparelhos não trabalham, são brinquedos. A intenção deles, segundo o autor, não é modificar o mundo, e sim modificar a vida do homem. O homem que os opera não trabalha, ele joga – é “ homo ludens” (p. 35).

O funcionário que o manipula está concentrado em explorar as suas potencialidades, é a “pessoa que brinca com o aparelho e age em função dele” (p. 9). O aparelho emancipa o homem do trabalho e o libera para o jogo.

Por meio do aparelho fotográfico, o conceito de programa é apresentado. As imagens geradas pelo aparelho contêm em sua superfície o resultado do que foi programado e pré-inscrito no mesmo. Inscrição feita com conceitos definidos por outro programa, a indústria fotográfica. Os conceitos definidos, de acordo com os interesses da indústria, permutam no aparelho de maneira automática e aleatória. As intenções do fotógrafo precisam passar por esses conceitos, para que se chegue à fotografia. Por estar amalgamado, imerso, o fotógrafo tem suas intenções limitadas pelas possibilidades dispostas no programa. Não se escolhe dentro de limitações, “o fotógrafo somente pode agir dentro das categorias programadas no a parelho” (p. 49).

Portanto, cabe questionar: há liberdade no ato de fotografar? Para o filósofo, ser livre é conseguir driblar o programa que foi criado por outro programa, a indústria fotográfica, que responde a outro acima dele e assim consecutivamente.

“Todo programa exige metaprograma para ser programado. A hierarquia dos programas está aberta para cima” (p. 38).

E é nesse ponto que o autor levanta o problema da crítica à fotografia e de como os críticos já estão inseridos no aparelho. Para Flusser, no embate entre o homem e o aparelho, a vitória humana só é possível se ele conseguir contornar os limites do programa. Logo, “as fotografias ‘melhores’ seriam aquelas que evidenciam a vitória da intenção do fotógrafo sobre o aparelho” (p. 58).

Flusser também aponta problemas ligados aos canais de distribuição da fotografia que imprimem o significado final da imagem por meio de linhas editoriais. Para uma crítica adequada da fotografia, é necessário considerar os canais de distribuição no momento do seu deciframento. Além das intenções primárias a serem analisadas, a do fotógrafo e a do aparelho, é preciso analisar as intenções do canal de distribuição. Flusser afirma que os canais de distribuição são silenciados pela maior parte da crítica e o resultado dessa crítica funcional é que “o receptor da fotografia vai recebê-la de modo não crítico” (p. 70).

O filósofo também trata dos conceitos de propriedade e informação, que têm seus valores redefinidos no universo da fotografia. O caráter multiplicável do objeto fotográfico tem como resultado a perda de valor da mesma. O valor da fotografia não está no papel no qual foi impressa, mas sim na informação contida em sua superfície. Portanto, a informação passa a ter mais valor que o objeto em si – a “folha” (p. 70). Ser proprietário de uma folha fotográfica não tem mais o peso de propriedade da era industrial. Ser proprietário do programa que distribui a informação é o que de fato tem valor. “Pós-indústria é precisamente isto: desejar informação e não mais objetos” (p. 64). O poder não está mais em quem possui os aparelhos, mas em quem é dono dos programas. E também em quem produz os programas.

Para além da sua desvalorização como objeto, as fotografias contribuem para uma ausência de consciência histórica. Fotografias de fatos históricos pedem análise de suas causas e efeitos para seu deciframento, o que implica ir além dos significados postos n a superfície da imagem. O receptor, programado magicamente, não vai além da imagem, uma vez que essa é a realidade e nada mais precisa ser explicado, lido, contextualizado. Os olhos programados já se encarregaram de entender os fatos. “Esse ‘saber melhor’ deve ser reprimido quando se trata de agir segundo o programa” (p. 78). A repressão da consciência histórica contribui para uma existência robotizada, pois somente ela é capaz de tornar transparente o jogo dos aparelhos.

No fim do livro, Flusser dirige a questão da liberdade aos fotógrafos experimentais, pois sua práxis é realizada contra o aparelho. Ele trata da estupidez do aparelho, enfatizando que os programas podem ser alterados, as informações produzidas podem ser desviadas e, portanto, são passíveis de serem driblados. E essas ações só serão possíveis quando a humanidade encarar o jogo dos aparelhos, quando a intenção dos donos do programa for revelada. Somente assim retomaremos a liberdade de pensamento.

“Filosofia da caixa preta” é uma obra atual e impactante. Tratar do universo fotográfico desta obra é tratar do universo dos aparelhos: administrativo, político, publicitário. A urgência de Flusser é sobre como exercer a liberdade em um contexto em que a humanidade já está integralmente programada – se é que ainda há tempo para se libertar na atualidade, uma vez que “a filosofia da fotografia trata de recolocar o problema da liberdade em parâmetros inteiramente novos” (p. 98). Em “ Filosofia da caixa preta ”, Flusser pede para refletirmos sobre um pensa r imagético, um pensar no “modo pelo qual ‘pensam’ computadores” (p. 97).

Juliana Santos Pereira-Bacharela em Comunicação Social (UAM). Pós-graduanda em Artes Plásticas e Contemporaneidade (UEMG). E-mail: [email protected]

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O mais natural dos regimes Espinosa e a Democracia – AURÉLIO (CE)

Aurélio, D. P. (2014). O mais natural dos regimes. Espinosa e a Democracia. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores. Resenha de: BRAGA, Luiz Carlos Montans. Uma tese radical: Espinosa e a Democracia. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.40, jan./jun., 2019

O termo radical, tal como ética, democracia, política, e tantos outros, pelo excesso de uso e vulgarização demasiada, ao ser trazido à discussão, merece ser precisado, para que, em meio ao caos semântico, inimigo maior da filosofia, signifique algo claro e distinto. De fato, certo senso comum associa a palavra radical àquele que é fundamentalista em algo; em geral, o indivíduo contrário à boa ordem social, aos bons costumes. Porém, o que a expressão deve significar nesta resenha tem a ver com seu sentido etimológico. Ou seja, radical é o que vai à raiz, ao fundamento.

E por que a tese espinosana acerca da democracia, tema protagonista do livro ora resenhado, é radical? Porque ousa ir à raiz ontológica da política, como o belo ensaio de Diogo Pires Aurélio mostra com cuidado demandado por uma filosofia que, durante aproximadamente três séculos, esteve sob a sombra de uma imagem equivocada que dela se produziu. De panteísta que nega a liberdade do homem a pensador maior da política e do direito – em tempos recentes –, o caminho das teses e textos espinosanos é um labirinto cujas primeiras saídas foram encontradas pelos estudos fundamentais de Antonio Negri (1998) 1 e Alexandre Ma – theron (1988) 2, os quais foram aprofundados por outros comentadores de peso, posteriormente, entre os quais, em terras brasileiras, Marilena Chaui (1999, 2003, 2016). Aurélio, é preciso salientar, compõe esta linhagem.

Uma, entre outras muitas, imagem equivocada que sombreou a compreensão das teses espinosanas está condensada no influente verbete Spinoza, de autoria de Pierre Bayle (1696). No verbete, as teses espinosanas são descritas como as de um panteísta e ateu de sistema, filosofia diabólica precisamente por ser de difícil refutação, dada sua costura com as linhas de aço da geometria. A tradição posterior, raciocinando a partir de premissas exteriores às da filosofia espinosana, só poderia, em uma filosofia em que tudo é necessário, encontrar absurdos e contradições insolúveis. De fato, se há apenas uma substância – Deus ou a natureza –, na qual os homens são modos finitos, isto é, intensidades de potência expressas pela substância em sua causalidade imanente e necessária, onde encontrar a liberdade do homem? Em que fissura da causalidade da substância haveria espaço para a ação livre, para o campo da ética e da política? Pois um dos paradoxos quase insolúveis que a tradição de leituras exponenciaria aos comentadores até muito recentemente 3 seria exatamente este: de que fio puxar a ética e a política em uma filosofia da necessidade? Em uma palavra: se tudo é determinado, resta saber qual a liberdade possível. Ou, de outro ponto de vista, como passar do infinito positivo da substância eterna aos modos finitos das existências dos homens sem compreender estes últimos como meros epifenômenos de Deus? Estas imagens acerca do autor influenciaram, por exemplo, Voltaire, passando por Hegel e, em paragens brasileiras, chegaram a Machado de Assis (2009, p. 242) em seu poema dedicado a Espinosa – e tiveram ainda fôlego largo durante o século 20. Quanto a Machado de Assis, o Espinosa que tinha em mente seria, eis uma hipótese, o do verbete de Bayle, a saber, o panteísta.

O que o belo ensaio de um dos mais eruditos e eminentes estudiosos contemporâneos de Espinosa mostra é precisamente a ligação radical entre ontologia e política. Daí, talvez, a importância maior de Espinosa em tempos opacos como os que se desenham. Se a ciência política de corte formal não diz muito sobre a política atual, talvez seja porque não tenha lentes para tanto. E Espinosa bem pode ser, tantos séculos depois, se bem desvendado e comentado, uma dessas lentes. Permite, por exemplo, para ir ao título do ensaio que ora se resenha, que se possa dizer, acerca da democracia, que não é o “menos mau dos regimes”, mas “o mais natural” (Aurélio, 2014, p. 9). Mudança aparentemente banal, mas que traz à cena algo esquecido das discussões políticas que mais têm mídia, a saber, a natureza humana. Espinosa, pela pena de Aurélio, é trazido à cena para que mostre exatamente sua inovação fundamental no campo da filosofia política, isto é, declarar, a partir de um ponto de visto ontológico, o encaixe preciso entre a natureza humana e este regime político, tão celebrado nos belos discursos de retórica vazia quanto aviltado em seu exercício. A democracia que se proclama como tal em discursos pomposos, com seus formalismos vazios e malandros – pois fintam o conceito para lhe retirar o que tem de substantivo –, não ousa ser radical como a proposta por Espinosa. Não ousa ser ontologicamente fundada.

O livro é uma reunião de ensaios – uns já publicados outros agora republicados com acréscimos e, ainda, alguns inéditos, apresentados, até o momento, apenas sob a forma de conferências –, os quais formam, segundo o autor, não um conjunto esparso de textos, mas um todo coerente, alinhavado (Aurélio, 2014, p. 11). São três as partes do livro, somadas a uma “Introdução”, cujo título aguça a curiosidade: Espinosa, Marx e a democracia . O que haveria de comum entre Marx e Espinosa? Muita coisa, como o leitor poderá ver, e das quais esta resenha adianta uma apenas: a tese de Marx, que ecoa ideias espinosanas, e projeta a democracia “para além da tradicional questão dos regimes políticos” (Aurélio, 2014, p. 34), para afirmá-la como “horizonte de refundação permanente do demos, quer fazendo alastrar o princípio da soberania popular a todas as esferas da sociedade, quer resistindo à tendência do poder para se impor como fecho absoluto e se tomar pela totalidade social” (Aurélio, 2014, p. 34). Eis a iguaria fina que o autor serve ao leitor como entrada ao livro. A primeira das três partes que seguem, por sua vez, é baseada na “Introdução” de Aurélio ao Tratado teológico-político (TTP), por ele traduzido e publicado no Brasil pela editora Martins Fontes (2003). Intitula-se TTP : Genealogia do Poder . Nesta parte, os temas próprios ao TTP são trabalhados com a minúcia de quem estuda Espinosa há muitos anos. Ou seja, a questão da profecia, das leis, do fundamento do Estado, do direito natural e sua permanência no estado civil, da liberdade de expressão como um dos pilares de uma república bem constituída, etc. A segunda parte tem como título “O império das paixões”, composta por Capítulos que tratam de temas especificamente políticos em Espinosa. Uma das teses de Aurélio nesta parte, muito recente e atual, analisada em filigrana, é a da relação imbricada entre afetos e política. A terceira e última parte, nomeada “ TP : Da multidão ao poder”, sistematiza esses temas políticos e lhes dá acabamento. Tal parte foi originalmente publicada como “Introdução”, escrita por Aurélio, à sua tradução do Tratado político (TP) 4, no Brasil publicada também pela editora Martins Fontes (Espinosa, 2009).

O livro traz como questão mais aguda a democracia em Espinosa, isto é, a inovadora visão do filósofo acerca do tema. Curiosamente, ainda que já explícito no TTP como o mais natural dos regimes, por ser aquele que mais satisfaz a natureza humana de potência para perseverar no ser, não pôde ser desdobrado no TP, Capítulo XI, dedicado precisamente à democracia e não concluído pelo autor em razão de sua morte. A questão a democracia em Espinosa, na verdade, ainda é um problema a ser investigado pelos comentadores. Tal problema é levantado por Aurélio no momento em que indaga como seria este regime quanto às instituições. É possível dizer que o essencial da democracia já estaria nos demais textos de Espinosa? Uma passagem do “Prefácio” do livro dá pistas do projeto espinosano quanto ao tema:

Entre governantes e governados há sempre uma brecha, uma feri – da permanente […]. O que distingue a democracia dos outros regimes é o facto de, por definição, ela contrariar a cicatrização dessa ferida, evitar que a desigualdade se instale como natural, mantendo acesa, […] a ideia de um querer da totalidade, que está na origem e é fundamento de todo o poder. Reside aí o projeto de Espinosa. Reside aí, porventura, a sua atualidade (AURÉLIO, 2014, p. 10)

O livro de Aurélio cuidará de desdobrar este projeto, não obstante o não findo Capítulo XI do TP – aliás, quanto a este tema, o autor expõe sua posição, bem como a de outros comentadores, como Antonio Negri (1985) 5 e Étienne Balibar (1985), os quais igualmente transitaram pela questão. Mas onde está, mais precisa e analiticamente, a radicalidade de Espinosa, apontada no início desta resenha? Aurélio a desdobra, e ela consiste no seguinte: a rigor, não há seres isolados, indivíduos – humanos ou não–, isolados. Quanto aos homens, são indivíduos constituídos por outros indivíduos, formando uma totalidade complexa. Nas palavras do autor: “O indivíduo é sempre um ser coletivo e complexo, um aglomerado de partes cujas naturezas se conjugam momentaneamente num todo em que as forças de sinal positivo, que tendem a preservá-lo na existência, são superiores às de sinal negativo, que tendem a desagregá-lo.” (AURÉLIO, 2014, p. 36). Tais indivíduos, humanos ou não, são modificações finitas da substância absolutamente infinita, a qual é o ponto fundante da ontologia espinosana. O que vem a seguir é que amarra a política, que lida com o poder, à ontologia espinosana. Escreve Aurélio, para concluir o desenho da tese que será protagonista de muitas páginas do ensaio: “É esta a ontologia, desenvolvida nas duas primeiras partes da Ética [cujos temas são, respectivamente, De Deus e Da natureza e origem da mente ], que serve de fundamento à antropologia e à política de Espinosa.” (AURÉLIO, 2014, p. 34). Ontologia uma vez que os homens, como modificações da substância única (Deus, ou seja, a natureza), modos finitos do pensamento e da extensão, intensidades parciais de potência advindas da potência absoluta, apenas se constituem como tal em razão e como partes desta potência fundante do real, eterna e infinita, causa sui (causa de si). Tese magistral, com desdobramentos em campos vários, ao amarrar uma teoria do ser à política, à ética e ao direito, sem olvidar as variações de potência próprias aos humanos, a saber, os afetos, derivando daí o fundamento dos corpos políticos e a tese relevante e inovadora do direito natural como prevalecente no estado civil, o qual é criado para preservá-lo. Vários conceitos se apresentarão como importantes à compreensão do mecanismo da política, desvelando e desenvolvendo a tese inicial da democracia como o mais natural dos regimes uma vez que, potência que são, os homens desejam governar e não ser governados.

Em vez de analisar cada passo da longa cadeia argumentativa do autor em cada parte do livro, o que tornaria esta resenha muito longa e talvez enfadonha, opta-se por analisar, a seguir, dois ou três fios que se ligam à tese geral do livro, explicitada nas linhas acima. No interior do tema geral Aurélio introduz uma série de autores cujos conceitos são postos a dialogar com os espinosanos, a se afastar ou se aproximar deles. Eis alguns desses movimentos, a seguir.

Maquiavel é um autor com o qual Espinosa dialoga explicitamente. Chama-o agudíssimo no TP (ESPINOSA, 2009, TP, v, 7, p. 46) 6 e o pressupõe em várias passagens. Este é um tema que Aurélio desdobra com maestria, a saber, o Maquiavel latente, bem como o explícito, que há nas análises da filosofia política espinosana. Há várias e elucidativas páginas acerca das semelhanças e diferenças entre os autores. Dentre as semelhanças, Aurélio chama a atenção para o fato de que ambos dão à multidão uma importância política significativa. Maquiavel teria sido o primeiro autor da filosofia política, e durante séculos o único, a pôr “em causa a imagem negativa vulgarmente associada à multidão” (AURÉLIO, 2014, p. 370). E, ademais, ela é capaz de ser politicamente mais sábia e estável que o príncipe, tese de Maquiavel presente nos Discorsi (MAQUIAVEL, 2007 D, I 58, pp. 66-172) 7 e n’ O Príncipe (MAQUIAVEL, 2017, p. IX, pp. 147-151) 8 . Para Espinosa, por seu turno, a liberdade política dos súditos-cidadãos, no estado civil, para dizer de modo sumário, tem como fiadora a multidão, tese presente em vários momentos do TP.

O Maquiavel dos Discorsi – bem como o de O Príncipe –, afirma Aurélio, explicita a tese da positividade da multidão e Espinosa a recupera e endossa, ao seu modo (AURÉLIO, 2014, p. 370 e seguintes). Não casualmente a multidão terá papel fundamental na argumentação exposta no TP, e o termo aparecerá várias vezes no correr do texto. Ela é o fundamento de uma república bem instituída e, nesse sentido, é a protagonista maior da política.

Há outro ponto de encontro entre os autores, a seguir apenas indicado, o qual é analisado por Aurélio:

Considerar, pois, a natureza como horizonte inultrapassável do político significa integrar o político num horizonte de conflitualidade e contingência, onde não obstante os homens se unem de forma mais ou menos duradoira, consoante os afetos comuns que estabilizam e predominam em dado momento. É aí, nesse preciso horizonte, que Espinosa se encontra com Maquiavel (AURÉLIO, 2014, p. 381).

Não aparece no livro ora resenhado, mas em outro estudo de Aurélio, uma diferença entre ambos que é digna de nota. Trata-se do fato de que em Maquiavel predominam os exemplos históricos que levam às teses políticas, ao passo que em Espinosa existe uma ontologia de fundo que informa e dá sustentação aos conceitos políticos. Tal tema se apresenta quando o autor analisa o conceito de virtude em ambos.Afirma Aurélio:

[…] as ocorrências do termo ‘virtude’ no TP adquirem um alcance completamente diferente do que possuiriam quando encaradas apenas como um reflexo da leitura de Maquiavel. À superfície, haverá, com certeza, alguma coincidência: […]. Tanto Maquiavel como Espinosa rejeitam a tese ciceroniana, geralmente aceite, segundo a qual a conveniência ou utilidade e a rectidão moral seriam inseparáveis [Cícero, De Officiis, II, III, 9, ed. The Loeb Clasical Library, 1970, p. 176 ]. Mas o primeiro chega a essa conclusão com base apenas num cotejo da experiência e da história, chamando a atenção para aqueles a quem a glória bafejou no passado, apesar de se lhe imputarem actos criminosos. […] Espinosa, raciocinando embora a partir de idêntica integração do indivíduo na trama de relações em que os seus actos ganham significado e podem ser valorizados, transfere, no entanto, o problema para a sistematicidade de uma ordem ontológica onde o confronto entre razão moral e razão política é subsumido (AURÉLIO, 2000, pp. 84 – 85).

Outro autor que surge no ensaio, em muitos momentos como contraponto às teses espinosanas, é Hobbes. Espinosa possuía um exemplar do De Cive em sua biblioteca pessoal, e Hobbes é um autor cujas ideias foram amplamente debatidas no período maduro de Espinosa. Espinosa o leu, é certo, e na famosa Carta 50 afirma o que o diferenciaria do autor Inglês. Esse é um mote fortíssimo, muito bem analisado por Aurélio precisamente para desdobrar as diferenças entre ambos. Uma hipótese que aqui se levanta é: os conceitos contidos e pressupostos na filosofia política hobbesiana podem ser considerados vencedores na história das ideias, ao passo que os espinosanos ficaram nas sombras por muito tempo. Por exemplo, Aurélio desenvolve muito bem o tema da representação em Hobbes, bem como o do contrato, para mostrar como Espinosa propõe algo muito diverso. Em muitas passagens do ensaio, ambos são comparados para que se possa ver com maior clareza e distinção o que os une – temas comuns – e, especialmente, o muito que os separa.

O Capítulo VIII, constituinte da Segunda Parte do livro, pode dar margem a sadias polêmicas. Nele, Aurélio propõe uma aproximação entre Kelsen e Espinosa, especialmente quanto aos temas da norma jurídica e do Estado. Entre outras passagens ricas e ousadas, o autor escreve: “Se o analisarmos a partir desse seu caráter de absoluta imanência, não é difícil ver no Estado kelseniano um eco do imperium espinosano.” (AURÉLIO, 2014, p. 283). Tese tão ousada quanto, ao ver deste resenhista, de difícil sustentação. Pois se Espinosa propõe uma explicação da política fundada em redes de afetos e de potência – procurando, no limite, a sustentação real do direito natural de cada súdito-cidadão no estado civil –, Kelsen está muito mais preocupado com a fundação de uma ciência do direito que seja autônoma – ao menos é este o projeto de sua Teoria Pura do Direito (1998), obra na qual estão condensadas muitas de suas principais teses acerca do direito. E se é certo, como afirma Aurélio, que Kelsen é um crítico das doutrinas clássicas do jusnaturalismo – o mesmo se poderia dizer de Espinosa –, em nenhum momento, salvo melhor juízo, argumenta a favor de um direito que se identifique a potência. Ao invés, está sempre na chave do direito como dever-ser e na proposta de um direito que possa ser objeto de ciência autônoma, com objeto próprio, a saber, as normas validamente postas e constituintes do ordenamento jurídico. Espinosa parece estar em trilhos muito diversos. Veja-se sua tese da identificação do direito à potência, bem como a de que o direito do Estado tem seu fundamento na potência da multidão – conceito este, o de multidão, em que o tema dos afetos se apresenta como um dos pilares explicativos de sua constituição. Ora, esses temas não são objeto dos textos de Kelsen. Porém, o brilho do ensaísta está precisamente em desenvolver uma argumentação tão cerrada e tão convincente que faz o leitor pensar à revelia de suas convicções, a contrapelo de si mesmo – tarefa da filosofia. Eis um ponto a ser ressaltado, neste e em outros Capítulos: Aurélio ousa levar sua pena e seu talento ensaístico a territórios pouco frequentados.

A discordância acima indicada é bastante pontual e lateral. Com efeito, o fio principal do texto – e as análises de Aurélio – pode ser resumido como um brilhante e erudito ensaio acerca do mais natural dos regimes, a democracia, a tese radical de Espinosa. Neste ensaio de Aurélio, Espinosa é apresentado como filósofo num dos sentidos originais da ex – pressão, ou seja, o que leva à verdade como alétheia [ αλήθεια ], isto é, desvelamento ou desocultamento. Na filosofia política que propõe o autor holandês, e que Aurélio apresenta tão bem, há reviravoltas conceituais que levam à constituição de lentes polidas com extrema precisão. Espinosa faz o leitor que se apropria de seus conceitos enxergar o que antes era opa – cidade. E Aurélio é excelente mapa para o território da filosofia política espinosana – antes que escureça! Uma resenha deve insinuar coisas interessantes sem mostrar o essencial. Espera-se que o intento tenha sido alcançado, ou seja, que este texto seja convite ao leitor para palmilhar com a velocidade lenta da filosofia a bela geografia conceitual criada por Aurélio.

Notas

1 A primeira edição de L’anomalia selvaggia : potere e potenza in Baruch Spinoza é de 1981 .

2 Que é uma reimpressão do texto de 1969 (Matheron, 1988, p. I).

3 Como indicado acima, uma das primeiras leituras que rompe com este estado de coisas é a de Matheron, de 1969 (Matheron,1988), e depois a de Negri, publicada pela primeira vez em 1981 (Negri, 1998) .

4 Agraciada, em 2009, com o prêmio de Tradução Científica e Técnica em Língua Portuguesa, atribuído pela União Latina em parceria com a Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal.

5 Traduzido no Brasil em: Negri, A. (2016). Espinosa subversivo e outros escritos. Tradução de Herivelto Pereira de Souza. São Paulo: Autêntica, pp. 46 – 85.

6 Em romano o capítulo, em arábico o parágrafo -Espinosa, 2009.

7 Em romano o Livro, em arábico o Capítulo – Maquiavel, 2007.

8 Em romano o Capítulo – Maquiavel, 2017

Referências

AURÉLIO, D. P. (2000). Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: Edições Colibri.

_______. (2014) O mais natural dos regimes. Espinosa e a Democracia. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores.

ASSIS, M. (2009). A poesia completa de Machado de Assis. Rutzkaya dos Reis (Org.). São Paulo: Nankin/Edusp.

BALIBAR, E . (1985) Spinoza et la politique . Paris: puf .

BAYLE, P . (1696) Dictionnaire historique et critique. Article Spinoza . Disponível em: < http://www.spinozaetnous.org/telechargements/Commentaires/ Bayle/Bayle_Spinoza.pdf >. Acesso: 15 dez. 2017.

CHAUI, M . (1999) A nervura do real: Imanência e liberdade em Espinosa. Vol. I : Imanência. São Paulo: Companhia das Letras.

_______. (2003) Política em Espinosa . São Paulo: Companhia das Letras.

_______. (2016) A nervura do real : Imanência e liberdade em Espinosa. Vol. II : Liberdade São Paulo: Companhia das Letras.

ESPINOSA, (2003) Tratado teológico-político .Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes.

_______. (2009) Tratado político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes.

KELSEN, H. (1998) Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes.

MAQUIAVEL, (2007) Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio . Tradução MF . São Paulo: Martins Fontes.

_______. (2017) O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Editora 34.

MATHERON, A. (1988) Individu et communauté chez Spinoza . Paris: Les Édi – tions de Minuit.

NEGRI, A . (1998) L’anomalia selvaggia : potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternità in Spinoza). Roma: DeriveApprodi.

_______. (1985) Reliquia desiderantur: congettura per una de fi nizione del concetto di democrazia nell’ultimo Spinoza. In: Studia Spinozana I, n. 8, pp. 143-181.

Luiz Carlos Montans Braga – Professor Universidade Estadual de Feira de Santana. E-mail: [email protected]

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Justificação e crítica: Perspectivas de uma teoria crítica da política – FORST (C-FA)

FORST, Rainer. Justificação e crítica: Perspectivas de uma teoria crítica da política. São Paulo: Unesp, 2018. Resenha de: MORALLES e MORAES, Felipe. O que é mais importante vem primeiro. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 24 n 1 Jan-Jun, 2019.

Rainer Forst é um dos mais proeminentes representantes contemporâneos da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Em seu dizer – oportunamente reproduzido na contracapa da edição brasileira publicada recentemente pela Unesp e cuidadosamente traduzida por Denilson Luis Werle –, a filosofia crítica começa com uma tentativa de evitar os “becos sem saída” nos quais a própria filosofia política vem se metendo.

A tarefa que se coloca esse discípulo de Habermas é, como explicado no prefácio, desfazer os dualismos enganadores. À primeira vista, o livro Justificação e crítica consiste em uma reunião de artigos publicados anteriormente, em diferentes locais e sem sistematicidade, como os três capítulos finais que discutem a obra de Henrik Ibsen, Hannah Arendt e a literatura utópica. Há um fio condutor dos artigos reunidos, porém, que é enfrentar falsas oposições, como entre imanência e transcendência; dominação e liberdade; igualitarismo e suficientarianismo; paz e justiça; iluminismo e pós-colonialismo; redistribuição e reconhecimento; a fim de defender que, por trás delas, há algo mais importante, que é o direito fundamental à justificação.

A linhagem kantiana da crítica de Forst é notável. À sua época, Kant tinha por alvo a oposição entre, por um lado, o ceticismo, com sua tese da impossibilidade do conhecimento universal e necessário sobre o mundo; e, por outro lado, o dogmatismo metafísico, com sua pretensão de decifrar o mundo a partir da razão pura. É conhecida a solução kantiana de rejeitar o tribunal tanto da natureza sensível (empirismo), quanto de um ser, bem ou valor superior ao sujeito (racionalismo dogmático), para alçar a razão como o tribunal do uso legítimo e ilegítimo de suas faculdades (racionalismo crítico). A filosofia crítica continua merecendo seu nome na medida em que denuncia as ilusões para as quais é arrastada a razão no interesse emancipatório de conhecer o mundo e agir corretamente.

A tarefa kantiana de Forst não se limita, contudo, a desmascarar essas ciladas da razão, como também faziam, cada um a seu modo, Marx e as primeiras gerações da Escola de Frankfurt. Há um objetivo maior em comparação com esses críticos da modernidade: colocar a razão ao abrigo dos ataques céticos e dogmáticos. Por isso, uma segunda tarefa filosófica que permeia Justificação e crítica é a de fundamentação dos direitos humanos e da justiça. A obra complementa análises precedentes de Forst, nas quais o autor reconstrói e busca superar as aporias do debate entre liberalismo e comunitarismo, em Contextos da justiça, com edição brasileira pela editora Boitempo (2010 [1994]), ou apresenta uma concepção construtivista moral e política da justiça e dos direitos humanos, em Direito à justificação, ainda sem tradução (2012[2007]). Nesta resenha, contento-me em apresentar (1) a resolução forstiana de dois impasses internos à teoria crítica e (2) a fundamentação trazida em Justificação e crítica (daqui em diante JC), para depois tecer (3) alguns comentários sobre a tradução e (4) levantar quatro possíveis objeções ao modelo de teoria crítica em questão.

  1. O primeiro impasse enfrentado por Forst diz respeito à ideia de crítica imanente da sociedade, que os teóricos críticos tradicionalmente contrastaram com o que seriam críticas transcendentes, platônicas ou idealizadas. O argumento do autor é que essa contraposição mostra-se ilusória, porque ninguém está totalmente inserido em um contexto ou prática social, havendo sempre possibilidade de questionar e criticar reflexivamente essa prática. Os conflitos sociais surgem, com efeito, com um “não” às formas de justificação da dominação existente. Eles estão sempre questionando e transcendendo costumes, relações econômicas e instituições.

Assim, se consideramos os seres humanos como seres que participam ativamente na definição das relações e ordens sociais válidas, estamos diante de um padrão a um só tempo imanente e transcendente. A recusa às justificações vigentes pode ser traduzida como uma pretensão de que as relações sociais não sejam arbitrárias, isto é, que sejam justificadas recíproca e universalmente. Segundo Forst, a razão é, ao mesmo tempo, a mais imanente e a mais transcendente das capacidades humanas: a capacidade de se orientar por justificações. A crítica da sociedade precisa se orientar pelo critério da reciprocidade e da universalidade das justificações, em lugar da divisão artificial entre imanência e transcendência (JC, p. 17-8).1

Outro impasse na teoria crítica que merece destaque está na discussão entre duas gramáticas internas às lutas sociais: redistribuição ou reconhecimento. Trata-se de uma disputa em vários níveis, encabeçada por Nancy Fraser e Axel Honneth.

Ambas gramáticas são indeterminadas do ponto de vista de quais lutas sociais são justificáveis – argumenta Forst. Antes da pretensão por paridade de participação, no modelo de Fraser (duplipartido em redistribuição e reconhecimento), ou da pretensão por reconhecimento, no modelo de Honneth (tripartido nas esferas do amor, da igualdade jurídica e da estima social), é preciso uma gramática normativa que diferencie as pretensões justificáveis das injustificáveis, isto é, aquelas que podem, ou não, ser justificadas de modo recíproco e universal aos que participam nos respectivos contextos de justiça (JC, p. 185 e 192). É certo que, conforme o contexto, surgirão pretensões legítimas de igualdade econômica e política ou de valorização social; primeiro, porém, vem a instância da possibilidade de produzir e questionar essas pretensões. A gramática normativa é a das condições para que os sujeitos se justifiquem e demandem justificações: o direito básico à justificação. A abordagem de Forst é denominada, por isso, “o que é mais importante vem primeiro” – na feliz tradução de das Wichtigste zuerst ou first-things-first da edição inglesa (2014). Ele afirma dar uma “guinada política” diante das abordagens antecedentes, ao colocar em primeiro plano exercício e distribuição social do poder de justificação (JC, p. 196).

Daí repetir Forst nos artigos que a tarefa primeira de uma teoria crítica da justiça é visar ao estabelecimento de uma estrutura básica de justificação na qual as pessoas possuam procedimentos e condições materiais de exigir, produzir e questionar justificações – o que não se confunde, nem exclui, a perspectiva mais utópica de uma estrutura básica justificada, na qual todos os procedimentos e condições materiais foram justificados universal e reciprocamente. Isso lhe permite dar um passo atrás nas disputas entre modelos de justiça distributiva (pois o poder de justificação sobre as estruturas de produção e distribuição antecede a discussão sobre o que será distribuído – recursos, bem-estar ou capabilities ); na tensão entre paz e direitos humanos (porque ambos estão subordinados a um princípio de justiça, que reivindica a entrada no domínio das justificações recíprocas e se contrapõe às injustiças que acompanham conflitos violentos); nas críticas feministas, negras e pós-coloniais contra machismo, etnocentrismo e iluminismo (que se apoiam na exigência de uma justificação aceitável para todos, de modo que é a própria justiça a tornar visível sua realização imperfeita).2

  1. A fundamentação forstiana do direito fundamental à justificação diferencia-se da fundamentação kantiana, porque se baseia, em lugar de uma razão prática pura, em uma razão que se efetiva contextualmente na forma de justificações. Ela pode ser resumida do seguinte modo. Toda crítica pressupõe a recusa à arbitrariedade. E entende-se como arbitrária qualquer relação que não possa ser razoavelmente aceita por todos os concernidos. Acontece que interesses básicos humanos podem sempre abrigar arbitrariedades. Vínculos afetivos, sentimentos de pertença ou concepções de vida boa (como as emergentes em uma cultura machista, racista, eurocêntrica, por exemplo) podem ser razoavelmente recusados por outras pessoas. Logo, uma perspectiva crítica da sociedade não consegue fundamento racional em interesses humanos básicos. Para Forst, a razão deveria ser compreendida não como um interesse humano básico, mas pura e simplesmente como justificação discursiva. Uma relação deixa de ser arbitrária, então, se ela pode ser justificada discursivamente para todos os concernidos. Logo, a crítica da sociedade pressupõe um poder de todos de exigir, produzir e questionar justificações na sociedade: um direito universal à justificação. A justiça (entendida como negação da arbitrariedade) e os direitos humanos (entendidos como direitos de não se sujeitar ao arbítrio de outrem) têm fundamento nesse direito básico à justificação.

Com essa fundamentação, Forst sublinha que os seres humanos não são seres passivos, necessitados e sofredores, mas sim reivindicam reconhecimento como sujeitos reflexivos e autônomos. Eles não somente participam de relações sociais, normas e instituições que constantemente reivindicam validade, mas também examinam suas justificações, as rejeitam e redefinem. Daí falar de relações sociais como ordens de justificação. A justificação efetiva que legitima e constitui as relações de poder é comparada, em meio aos conflitos sociais, com a justificação devida – que tem a qualidade de ser recíproca e universal. Essa vinculação entre justificações dadas e devidas; entre ordens produzidas por justificações e obstáculos ao direito fundamental à justificação; em suma, entre descrição e normatividade dá-se por meio (i) da descoberta das relações sociais que não podem ser justificadas recíproca e universalmente, (ii) da crítica às justificações falsas ou ideológicas, no sentido de um bloqueio ao direito à justificação, e (iii) da explicação do fracasso ou ausência de estruturas efetivas de justificação (JC, p. 195-6). Nesse sentido, permanece ele no interior da “velha questão de por que a sociedade moderna não está em condições de produzir formas racionais de ordem social”, ou seja, da investigação de por que as ordens de justificação se tornam dominações arbitrárias (JC, p. 20-1).

  1. Antes de adentrar nas possíveis críticas, três breves questões sobre a tradução.

Werle conserva a tradição da sociologia weberiana de traduzir Herrschaft como “dominação”, a qual aproxima as noções de dominação e legitimidade. Toda forma de dominação é legítima, na medida em que se entenda o conceito de legitimidade em um sentido estritamente descritivo, sem sobrepor um sentido normativo e crítico, como prioriza Forst: a qualidade de uma ordem normativa de explicar e justificar seu poder vinculativo geral aos seus subordinados (2015a, p. 189). Diferentemente da tradição weberiana, porém, Forst distingue a forma neutra (e possivelmente justa) Herrschaft da forma injusta Beherrschung (JC, p. 27). Para reproduzir no português, seria necessário algo como a distinção entre “domínio” e “dominação”, não tão intuitiva ao leitor e que pouco contribuiria para a clareza da argumentação.

Andou bem o tradutor, pois, em se manter fiel à tradição e traduzir Herrschaft e Beherrschung respectivamente como “dominação” e “dominação arbitrária”.

Uma opção que também merece comentário é a tradução da necessidade de um consentimento baseado em procedimentos de justificação institucionalizados e, ao mesmo tempo, em um sentido contrafactual, de modo recíproco e universal, com a expressão “no modo subjuntivo” (JC, p. 51 e 141). Diferente dos equiparáveis im Konjunktiv e konjunktivisch utilizados por Forst, que remetem mais diretamente, na língua alemã, à situação irreal, o subjuntivo da língua portuguesa é um modo verbal que tem vários tempos, dos quais só o pretérito representa um modo contrafactual.

Acredito que, novamente se distanciando do original, mais clara seria a expressão “no modo contrafactual”, como na tradução inglesa (2014, p. 34 e 83). O consentimento é contrafactual porque a pretensão normativa mostra-se válida moralmente na medida em que não lhe podem ser opostas justificações gerais e recíprocas. A pretensão normativa não é rejeitável, o que independe de um consenso ou aceitação efetiva (2012[2007], p. 21).

Uma opção mais polêmica é a tradução da concepção de pessoa de Forst als begründendes, rechtfertigendes Wesen, isto é, como um ser fundamentador e justificador, em termos menos carregados: “como sujeito que fundamenta e justifica” (JC, p. 159). Essa opção oferece mais consistência à argumentação, ao custo de minimizar a pretensão antropológica de Forst, como se verá a seguir.

  1. O aspecto desconcertante da obra – ou “irritante” para usar a tradução preferida nessa edição (JC, p. 135) – é sua vinculação ao individualismo metodológico: a argumentação parte de conceitos a priori, do “a priori da justificação” (JC, p. 192), em detrimento da análise social e histórica das relações de justificação. Essa análise até aparece no texto, mas só a título de ilustração. Tal ponto foi levantado por Rúrion Melo em sua crítica ao construtivismo moral de Forst: a praxis da justificação funda-se em pressupostos morais que independem da gênese histórica e política e que não oferecem um diagnóstico de época de como as reivindicações por justiça tornam-se reivindicações por respeito aos sujeitos de justificação (2013, p. 26-8). O aspecto metodológico não desmerece, no entanto, os objetivos traçados por Forst de afastar dualismos enganadores e de fundamentar o projeto de uma teoria crítica da justiça.

Na dimensão da ontologia social reside um problema mais grave para a teoria crítica defendida pelo autor. A teoria do direito à justificação não contém só uma tese sobre o domínio da teoria crítica da política (devemos investigar a distribuição do poder de justificação na sociedade), mas também uma tese ontológica (as esferas sociais são ordens de justificação). A questão que se coloca é se não bastaria, em lugar da tese ontológica, uma tese, por assim dizer, sociológica (há uma relação necessária entre esferas sociais e relações de justificação). Soa bastante implausível, com efeito, que todos os fenômenos de dominação operem no interior de ordens de justificação. Ainda que tais ordens existam, estão envolvidas por poderes anônimos – como autovalorização do capital, incremento da técnica, massificação social –, que conservariam sua intensidade mesmo diante de uma estrutura básica de justificação. O que sempre causou perplexidade na modernidade foi por que tantas pessoas se identificam com a desigualdade e a dominação arbitrária e deixam de questioná-las. Seus grilhões não são de ferro, mas imaginários. Que todos tivessem garantias de exigir justificativas dos demais não significa que os poderes sistêmicos seriam amplamente questionados. Se a justificação permanecesse potencialmente aberta, esses poderes ainda não desmoronariam como tais, não ficariam vulneráveis, nem seriam desmascarados como injustificáveis, porque continuariam produzindo, de modo massivo e duradouro, bloqueios à atividade crítica. Daí a dificuldade de pensar em uma primazia ontológica da justificação.

A questão acerca da ontologia social surge sempre e novamente diante das tentativas de compreender a sociedade com base em um eixo único – como acontece comumente em relação ao sistema capitalista (cf. Dardot & Laval, 2016, p. 31 e 3845; Jaeggi, 2015, p. 15) ou à ideia de liberdade (cf.

Honneth, 2011, p. 9 e 35-40). Não é preciso supor metafisicamente, como ainda é comum entre os teóricos críticos, que todas esferas sociais e todos valores da sociedade moderna estejam fundidos em uma lógica, valor ou razão. No caso da teoria crítica de Forst, não é possível ignorar que há ordens que não se estabelecem por justificações, senão por seu bloqueio sistemático. Mais plausível parece supor uma relação necessária entre as esferas sociais e as justificações, mas sem excluir a relação concomitante com estruturas que impedem que as esferas sociais sejam planejadas, controladas ou direcionadas por razões. É o que sinaliza Forst ao mencionar os complexos de justificação ideológica, que naturalizam a dominação e se esquivam de questionamento crítico (JC, p.170). Poderes sistêmicos parecem ser ordens que dependem necessariamente de justificações, mas que dependem delas de uma forma necessariamente preconfigurada e entravada, o que impede a abolição, ou mesmo reforma dessas ordens. Por isso, a dominação sistêmica antes determina justificações do que é por elas determinada.3

Ao responder a críticas contra seu conceito de poder, Forst vai admitir a necessidade de distinguir a dominação relacional da estrutural, insistindo, então, na conexão que existe entre essas estruturas e a produção de justificações e ações dos que se beneficiam delas ou dos que poderiam modificá-las: “nós devíamos nos livrar da oposição não-dialética entre considerações de poder estruturais ou entre agentes [inter-agential], porque claramente precisamos de ambas” (2018, p. 303).4 A sociedade moderna parece estruturada tanto em ordens de justificação, quanto em ordens sistêmicas, mesmo que entre elas subsista uma relação necessária, que se poderia chamar, mais convincentemente, liames de justificação, muito mais frágeis. Isso significa recusar a ontologia social monista de Forst e retornar a uma relação dualista, entre mundo da vida e sistema, como desenvolvido por Habermas (1995[1981]).

Essa crítica à pretensão ontológica da teoria de Forst não afeta, contudo, a abordagem defendida. A preocupação do filósofo alemão é que o direito à justificação precisa considerar o que há de racional na história e manter a distinção entre lutas sociais emancipatórias e não-emancipatórias, entre justificações boas e ideológicas, que é a pressão pela reciprocidade e universalidade adentrando todas esferas sociais, aí compreendidas as esferas de dominação sistêmica (2015c, p. 52-3). O direito à justificação não requer a tese extravagante de que todas as esferas sociais são realmente ordens de justificação. Em suas palavras:

Isso é uma razão importante para separar a análise, primeiro, sobre o exercício de poder entre agentes da análise, segundo, sobre formas estruturais de poder que expressam, constrangem e permitem tais formas de poder e, terceiro, do caráter e formação de recursos inteligíveis [ noumenal ] ou condições de fundo que levam e suportam essas estruturas, especialmente as narrativas de justificação em que se apoiam (2018, p. 306).

Além da crítica ao sentido ontológico da teoria do direito à justificação, é preciso acrescentar uma crítica à sua pretensão antropológica (os seres humanos são seres justificadores), a qual está no centro do argumento da obra Direito à Justificação (cf. 2007, p. 13 e 38-9) e é reproduzida nos trabalhos mais recentes (cf. 2018, p.317-8). Não que a imagem de uma sociedade plenamente transparente e baseada em conteúdos e razões não rejeitáveis razoavelmente entre indivíduos dotados de um direito igual à justificação seja vaga e idealista, que ela abstraia das relações sociais ou que tome os sujeitos como unidades atomizadas. Nada disso. Afinal, as justificações dadas são sempre aqui e agora, conforme a situação e os conflitos reais, envoltas e obscurecidas por emoções, ideologias, ameaças; e as justificações devidas são aquelas voltadas pragmaticamente ao estabelecimento de uma estrutura básica de justificação (JC, p. 143).5 A questão que se coloca é se a ideia normativa de um direito individual à justificação volta a ser escorada em um interesse básico humano.

Em vez de o direito fundamental à justificação ser apresentado somente como condição de possibilidade para qualquer discurso crítico, cai-se na tentação de justificar a justificação. Forst invoca a natureza humana para justificar o dever de reconhecer os outros como seres justificadores, em outras palavras, como seres que usam e necessitam de justificações (JC, p. 159). A carência por justificações e a capacidade de as produzir, exigir e questionar são convertidas em um direito moral, embora possam ser tão arbitrárias quanto qualquer outra carência ou capacidade. A questão é saber se a argumentação forstiana prescinde desse fundamento. De fato, não é necessário vincular o direito à justificação a uma antropologia. Em Justificação e crítica, Forst parte de que não uma capacidade ou carência humana, mas um princípio moral representa o critério último para julgar sobre a legitimidade das relações sociais. A tradução brasileira tem razões, pois, para minimizar o apelo ao ser justificador. Evita-se confundir o fundamento moral do direito à justificação seja com o fundamento em capacidades e carências humanas, seja com o fundamento em uma concepção de vida boa (a vida autônoma e reflexiva), do qual Forst busca se distanciar (JC, p. 90 e 105).

A maneira de conectar a dimensão moral da justificação aos demais contextos da justiça vem a reboque, ainda assim, das pretensões ontológica e antropológica, das quais se tentou resguardar até aqui a teoria crítica de Forst. O direito de recusar razões não-recíprocas e não-universais tem como objeto “toda ação ou norma que pretende ser legítima”, em uma “teoria abrangente dos direitos humanos” (JC, p.111). Acontece que, salvo a dimensão moral, as razões para agir não são recíprocas e universais. A justificação das ações individuais é incapaz, na maioria dos casos, de generalização, pois depende de premissas éticas, econômicas, jurídicas ou políticas compartilhadas, sem as quais não há ação justificada. Nesse aspecto, Seyla Benhabib tem razão em apontar que reciprocidade e universalidade funcionam para justificar deveres perfeitos, em uma estrutura básica de justificação, não deveres imperfeitos.

É incompreensível como tais critérios poderiam guiar agentes individuais na justificação discursiva de suas ações éticas, políticas, jurídicas e econômicas (2015, p. 5-7). Respondendo, Forst exemplifica que a reciprocidade exclui o apelo a verdades religiosas ou à vontade da maioria para proibir a construção de minaretes ou o uso de vestes religiosas pelas mulheres (2015b, p. 50), o que está correto; todavia, a reciprocidade nada esclarece se o patrimônio urbanístico deve ter preferência à construção de templos, se certas vestes devem ter primazia à igualdade de gênero, quer dizer, acerca de conflitos entre valores e razões diferentes e irreconciliáveis. As dificuldades emergem na medida em que o direito à justificação seja alçado a uma teoria moral abrangente, capaz de regular todas as ações que tocam outras pessoas, em vez de uma teoria política, no sentido rawlsiano do termo (2005[1993], I, §2).

Nenhuma dessas críticas obscurece o que se pode reconhecer como avanços importantes na teoria crítica contemporânea, em razão do esforço de Forst de “limpar o terreno” dos “entulhos conceituais” acumulados nas controvérsias sobre esse modo de fazer filosofia. Trata-se de uma obra incontornável para todos que se engajam na tarefa de fazer um diagnóstico das sociedades contemporâneas do ponto de vista emancipatório, isso quer dizer, da justiça.

Notas

1 Essa questão vai ser retomada na obra mais recente de Forst (2015a, p. 13-5).

2 Sobre esse último ponto, ver especialmente os argumentos de Forst contra as críticas feministas à ideia de pessoa de direito e às linguagens políticas universalistas (1994, p. 117-123 e 199-209).

3 Devo essa ideia de poder sistêmico a conversa com José Ivan Rodrigues de Sousa Filho.

4 Sobre isso, ver respostas a Steven Lukes, Clarissa Hayward e Albena Azmanova (2018).

5 Forst insiste nesses pontos ao responder às críticas de que sua teoria seria ingênua e racionalista quanto às motivações humanas, ou excessivamente vaga e abstrata quanto à determinação dos direitos humanos, como acusam Seyla Benhabib (2015b), Simone Chambers (2015c), Simon Susen, Steven Lukes, Mark Haugaard e Matthias Kettner (2018).

Referências

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HABERMAS. J. (1995).Theorie des kommunikativen Handelns: zur Kritik der funktionalistischen Vernunft [1981]. Band 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

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RAWLS, J. (2005).Political liberalism [1993]. Expanded edition. New York: Columbia University Press.

Felipe Moralles e Moraes – Universidade Federal de Santa Catarina E-mail: [email protected],

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Como nasce o novo: Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel – NOBRE (C-FA)

NOBRE, Marcos. Como nasce o novo: Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel. São Paulo: Todavia, 2018. Resenha de: CAUX, Luiz Philipe de. Sobre jovens e velhos: Marcos Nobre entre Fenomenologia e Sistema. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 23 n.2 Jul-Dez, 2018.

Tornou-se comum no último meio século – pense-se paradigmaticamente em Honneth – narrar filosoficamente a história da teoria crítica da sociedade como uma trama de sucessivas oportunidades vislumbradas, porém perdidas, para uma adequada crítica da dominação.2 Numa das variantes desse verdadeiro paradigma narrativo estabelecido, caberia a cada vez recuperar as intuições de juventude não desenvolvidas por filósofos sociais que, em vez de amadurecê-las, delas se extraviaram, se tornando velhos incapazes de ver a emergência da novidade. Em sendo prima facie “apenas” uma (excepcional, diga-se de passagem) leitura estrutural da Introdução da Fenomenologia do espírito, o recente livro de Marcos Nobre, Como nasce o novo, esboça praticamente uma teoria geral desse suposto enrijecimento da crítica e vai buscar de modo metacrítico no jovem Hegel um antídoto contra esse envelhecimento. Seu empreendimento levanta hipóteses fecundas e mostra, sem dúvida, um caminho para escapar do estado há anos estacionado e estéril da teoria crítica neofrankfurtiana. Sugiro aqui, no entanto, uma avaliação de até que ponto o próprio Nobre responde satisfatoriamente a suas pretensões e propósitos. Trata-se de objetivos que o resenhista acredita compartilhar com o autor, de modo que o sentido dessas considerações é o de um debate franco sobre o melhor modo de alcançar certos objetivos comuns.

A ligação entre os dois planos tão díspares do livro, a leitura estrutural de um texto clássico e a metacrítica da (pré-)história da teoria crítica, é feita pela mediação de uma chave de interpretação do texto hegeliano como aquilo que Nobre chama de “modelo filosófico”, isto é, uma interpretação que postula a sua autonomia e subsistência como obra fechada e apartável de uma consideração sistematizante da obra de Hegel como um todo, levando em conta ainda a sua relação não com as intenções subjetivas do filósofo, mas com a experiência objetiva do tempo à qual o livro responde, ou, na expressão reiterada por Nobre, com as suas condições de produção intelectual. Numa palavra, a tese central de Nobre é que a Introdução da Fenomenologia absorveria e registraria na forma de um programa de método filosófico a eufórica experiência da emergência do novo vivida nos tempos de sua redação (a entrada da modernização a cavalo na Prússia), servindo como que de arquétipo de um modo “jovem” de se fazer teoria crítica que deveria ser recuperado. Nobre divide sua exposição em duas partes principais, o “trabalho de análise e comentário do texto da Introdução” e a sua própria “tomada de posição” em relação a ele.

3 Na ordem da apresentação, esta vem antes daquele, com o próprio texto de Hegel intercalado, vertido novamente para o português pelo próprio Nobre. Inverterei aqui esta ordem, passando, entretanto, apenas brevemente pelo comentário ao texto hegeliano e dirigindo o interesse sobretudo à posição de Nobre sobre “a importância desse modelo de pensamento para o momento presente” (p. 9).

A sempre mais estreita especialização imposta pelo modo de operação das universidades e sua distribuição de recursos inibe entre nós a produção de trabalhos como o de Nobre. Reconhecido como um “especialista” nas tradições frankfurtianas, o autor realiza uma exegese de Hegel que não fica aquém da primeira linha de obras de hegelianos brasileiros – o que não surpreende em vista da notória competência transdisciplinar de um filósofo que se destacou nos últimos anos como um dos mais importantes analistas da conjuntura política. O texto é informado em particular pela literatura secundária clássica e mais recente alemã, francesa, estadunidense e brasileira e oferece amparos sólidos para suas teses interpretativas centrais em substanciosas notas de rodapé, entregando ao leitor ainda um panorama das interpretações divergentes encontráveis. Estas teses, para ir logo ao ponto, dizem respeito aos momentos de início e de conclusão da Fenomenologia. Trata-se para Nobre de descerrar o texto desses limites iniciais e finais e mostrar que o livro não começa nem termina onde se costuma fazê-lo começar e terminar. Essa reabertura do texto é justificada ainda extratextualmente pela remissão a dois fatos contextuais: o de que Hegel escreveu a Fenomenologia e, em particular, a sua Introdução, como introdução a um sistema ainda inconcluso (isto é, como a entrada em um sistema fechado ainda aberto ); e isso no exato momento em que os exércitos franceses e, junto com eles, a ordem político-econômica burguesa, conquistavam a Prússia e aceleravam a dissolução da ordem feudal ali vigente (entenda-se: no momento histórico em que um potencial revolucionário se atualiza sem que se saiba ainda aonde vai dar). É como se, na Fenomenologia, Hegel tivesse cristalizado o próprio processo aberto, produzido algo que ainda não sabe o que é, trazendo a abertura de seu próprio tempo ao conceito.4

Intratextualmente, isso significa sustentar, por um lado, que no livro de 1807 o movimento da experiência não tem início, como em geral se sustenta e como a própria obra induz a ser lida, com o momento da certeza sensível, mas já antes na Introdução. Em outras palavras, na Introdução, já estaríamos no interior da experiência fenomenológica, que pega o bonde em movimento no seu exato tempo presente e o toma como pressuposto para poder negá-lo de modo determinado.

Esse pressuposto atual inescapável, no qual a experiência começa apenas a fim de negá-lo, é uma concepção representativa de conhecimento que Nobre, na esteira da primeira frase da Introdução, chama de “representação natural” (correspondente em certa medida, mas não de modo tão determinado, à concepção kantiana de conhecimento). Essa “representação natural” é levada às suas últimas consequências e o resultado é uma concepção “apresentativa” de conhecimento (concepção que se revela, num nível “meta”, como a que acabara de estar em ação nessa apresentação da passagem da representação à apresentação). Tendo entendido a si mesma, vindo a saber que não tem nenhuma “fixidez ontológica” e retirado o entrave da concepção representativa de conhecimento do caminho fenomenológico, a experiência precisa então retornar à certeza sensível como modo de recuperar a história de como se prendeu às positividades prévias e de como delas se desprendeu, e assim reabrir no presente o caminho para o novo. A outra tese interpretativa central é a de que a passagem da razão ao espírito no meio do livro não representa uma ultrapassagem do ponto de vista da experiência, que na verdade caminha até o saber absoluto na conclusão do livro. Também o saber absoluto é, para Nobre (apoiado parcialmente em Hans Friedrich Fulda), experiência da consciência, e não recai, portanto, num ponto de vista de Deus que seria aquele típico do sistema enciclopédico. A tese de Fulda é que o saber absoluto ainda é um saber experimentado, finito, de modo que também ele precisa ainda se pôr em movimento (p. 45). Mesmo que em formulações distintas, essa é por excelência a compreensão “jovem-hegeliana de esquerda” (à qual Nobre se filia (p. 220)), para a qual o sistema pronto e acabado de Hegel, justamente ao ser levado a sério em seu teor de verdade, entrava novamente em contradição na experiência com a realidade irreconciliada, exigindo a emergência de uma nova suprassunção, dessa vez prática.

As duas teses interpretativas de Nobre sobre o início e o fim da Fenomenologia – a) a de que o movimento dialético da experiência tem início já na Introdução e, nesse sentido, inicia sua dança lá onde se encontra a rosa, em sua experiência histórico-filosófica presente, e b) a de que esse movimento não termina onde parece terminar, mas projeta-se para além de si mesmo, uma vez que permanece finito –, essas duas teses convergem para a definição de “modelo filosófico” como obra que responde a seu tempo e que se sustenta sem recurso aos demais momentos da obra do autor. A ideia é que a Fenomenologia, ao contrário do estabelecido hegemonicamente na literatura secundária, não pressuporia o sistema pronto e acabado. Ela é “simplesmente” um engajamento filosófico crítico com o estado de coisas presente, sem ancoramento numa verdade definitiva atemporal (o sistema, do qual Hegel ainda não dispunha), e que começa sua ação partindo não de uma abstrata experiência imediata em geral (certeza sensível), mas sim da sua própria experiência imediata concreta (a concepção representativa de conhecimento), a fim de eliminar os entraves para a emergência de um novo que, de resto, já marchava ao seu encontro. A Introdução da Fenomenologia se destacaria então como texto paradigmático para a determinação da tarefa da crítica em geral porque, no corpus da obra de Hegel, é o local inaugural onde o filósofo se dirige precisamente aos “entraves autoimpostos” de seu tempo, a fim de eliminá-los e de liberar o automovimento do conceito.

Mas a caracterização da Fenomenologia como “modelo” possui ainda um aspecto decisivo para o horizonte do trabalho de Nobre. Não se trata apenas de dizer que o texto de 1807 para em pé sem o escoro da Lógica ou da Enciclopédia, isto é, do sistema em geral. Se a Fenomenologia é um “modelo” que responde a um diagnóstico de tempo específico, o programa filosófico da Enciclopédia, no qual se encaixam, por exemplo, a Lógica e a Filosofia do Direito, é, por sua vez, um “modelo” distinto que só emerge pela necessidade de reagir a um outro diagnóstico. “Mudanças na posição de Hegel estão necessariamente vinculadas a mudanças de diagnóstico de tempo”, diz Nobre (p. 23).5 O autor não é obviamente o primeiro a constatar essa relação, mas sua originalidade está nas consequências teórico-programáticas que deseja dela derivar. Para Nobre, trata-se buscar as “afinidades desse modelo filosófico [da Fenomenologia ] com o momento atual e suas condições de produção intelectual” e “projetar Hegel para além de 1807” (p. 10). A fim de verificar a plausibilidade desse programa hoje, é preciso entender melhor que passagem foi aquela que teria levado Hegel à necessidade de formular um novo “modelo”.

A Fenomenologia se distinguiria enquanto “modelo” por dar conta de uma transformação epocal em curso, a invasão napoleônica na Prússia e a consequente modernização das suas relações políticas, econômicas e sociais, da qual Hegel era, todavia, partidário. O “nascimento do novo” ao qual Hegel quis fazer jus em seu texto corria em paralelo com as transformações radicais que vinham do outro lado do Reno. Em registro filosófico, Hegel deveria dar conta do fato de que “o nascimento do novo se dá em uma situação de descompasso entre uma consciência que ainda não está à altura da real novidade do seu tempo (que corresponderia ao que Hegel chama de consciência ‘natural’) e aquela forma de consciência (chamada de ‘filosófica’ pela bibliografia hegeliana) que alcançou uma compreensão de seu tempo em todos os seus potenciais” (p. 18). A “real novidade” é, obviamente, a deposição do Antigo Regime e a instauração de uma ordem burguesa.

É como se se tratasse então de elevar a filosofia ao nível de racionalidade já atingido pelas relações sociais reais.

Mas há algo de incomodamente delicado nessa tese: o nascimento do novo de Hegel é então não mais do que a atualização do (aqui) atrasado à altura de um novo (alhures) já surgido? Se não quisermos enfraquecer o argumento a tal ponto, é preciso antes compreender que espécie de “novo” Hegel pretende de fato estar vendo emergir, um novo que não apenas acertasse os ponteiros com o fuso francês, mas lhe fizesse avançar mais um grau do relógio histórico. Mas este é o momento em que Nobre diverge e prefere não acompanhar o envelhecimento do filósofo.

Ora, o “novo” que emerge após a Fenomenologia e a ocupação francesa é justamente a Restauração e aquilo que, para Nobre, é seu correlato filosófico: o sistema. Trata-se, aos olhos da obra de maturidade de Hegel, ou, se se quiser, de seu novo “modelo”, efetivamente de uma nova figura do espírito do mundo na qual a própria negatividade que girava em falso e jacobinamente é institucionalizada e pode operar de modo “seguro”, preenchido por “relações éticas”. Em outras palavras, trata-se daquele momento “alemão” do desenvolvimento do espírito, no qual a liberdade sabe a si mesma como fundamento das ordens sociais e assim finalmente se reconcilia consigo mesma e forma sistema. “A modernidade” – e cabe acrescentar, em particular a “modernidade normalizada” após o Congresso de Viena – “é a primeira época a comportar e suportar o negativo dentro de si, a primeira época capaz de ir além de si mesma sem sair de si mesma” (p. 61).

Mas, se assim é, então não tanto a interpretação de Nobre da Fenomenologia, mas sua ideia de recuperá-la como “modelo” para o presente, se encontra diante de um dilema. Pois se a noção de “modelo” associa conteúdos filosóficos às experiências históricas objetivas com as quais tiveram de lidar, é em face de cada diagnóstico que os “modelos” podem ser julgados como “bons” ou “ruins”, se não se quiser recair em um historicismo no qual todos os “modelos” são igualmente bons porque são sempre adequados a seus respectivos presentes.

O próprio Hegel parece ter entendido que o sistema filosófico enciclopédico fechado e a nova organização social alemã “normativamente autocertificada” (para usar uma expressão de Habermas cara a Nobre) correspondem de fato àquele “novo” que deveria ser desbloqueado para perseguir e levar adiante a trilha de transformação reaberta com a Revolução Francesa (como Nobre mostra em pp. 52-61). Cada “modelo” hegeliano seria então igualmente bom, pois encontraria seu critério de avaliação na respectiva experiência histórica. Mesmo que se admita, portanto, que a Fenomenologia é um “modelo” no sentido de não carregar o sistema dentro de si como seu pressuposto, o que faz dela um modelo a ser “atualizado” hoje (p. 61)? Também essa pretensão não é contraditória? Se se trata sempre de modelos e se modelos são dependentes de diagnósticos, que sentido há em projetar um modelo para além de seu diagnóstico? A não ser que se sustente uma analogia de diagnósticos entre o Brasil de 2018 e a Prússia de duzentos anos antes, como essa “atualização” é possível? Qual é a experiência de emergência do novo hoje à qual a filosofia teria de fazer jus? O caminho de atualização de Nobre, no entanto, não passa por um diagnóstico, embora poucos filósofos entre nós estejam tão atentos ao presente e bem preparados para oferecer um quanto ele ( vide sua inteira atividade como intelectual público).6 Em vez disso, Nobre percorre outra vez algumas estações da história do hegelianismo de esquerda a fim de mostrar como alguns dos filósofos dessa tradição (em particular Marx, Lukács e Honneth) apresentariam um modo semelhante de “envelhecer”, passando, como Hegel, de uma fase “fenomenológica” a uma fase “sistêmica” ou “enciclopédica”. A analogia soa apressada e demandaria de Nobre mais material de convencimento.7 Em todo caso, ela se dá pela tradução daquele modo jovem, fenomenológico e aberto ao novo de se fazer teoria social pela chave da “visada da subjetivação da dominação”. Cada um destes autores teria privilegiado em sua obra de juventude a análise de como a dominação social tem vez junto ao próprio processo de formação da subjetividade, mas teria sentido a necessidade de formular outros modelos em razão de seus respectivos diagnósticos ulteriores (Marx, com sua revolução que nunca chega; Lukács, com a redução dos potenciais emancipatórios liberados na Revolução Russa com a burocratização e o socialismo de um só país da União Soviética; Honneth, com a colocação em risco e a necessidade de salvaguardar os “progressos” morais da geração de 68). Obras tão díspares como O Capital, Ontologia do ser social e O direito da liberdade teriam em comum serem obras “enciclopédicas”, cuja compreensão sistemática pronta e acabada do mundo recalcaria o momento fenomenológico, que, na definição do autor, “concede um lugar de destaque aos processos de subjetivação da dominação em toda a sua complexidade e sem a unilateralidade da primazia de uma determinação da subjetividade pelas estruturas de dominação” (p. 63).

Pois bem, se o propósito de “atualizar” o “modelo” da Fenomenologia não é justificado, como parecia necessário, por uma analogia dos diagnósticos de tempo de outrora e de hoje, 8 ele parece sê-lo, então, por essa tomada de partido de Nobre pela prioridade da tarefa de investigação da subjetivação da dominação e das formas de resistência à integração total. Ao cabo, Nobre advoga que a Introdução da Fenomenologia é hoje o modelo que, devidamente “atualizado”, poderia abrir caminho para a teoria crítica escapar do “reconstrutivismo” (velhohegeliano) em que se encontra. Em vez de “reconstruir” critérios da crítica lá onde estão institucionalmente estabelecidos, a teoria deveria se voltar, se leio bem as entrelinhas do texto de Nobre, a uma normatividade reprimida ou que vigora às margens, abafada e refugiada, enquanto mera ideia, na subjetividade de grupos oprimidos. Verificar como a dominação é introjetada seria ao mesmo tempo verificar como ela poderia não o ser. Em conclusão, caberia apenas perguntar se o que Nobre quer recuperar então não seria antes o jovem Honneth que o jovem Hegel.

A formulação sintética dada por Nobre para a caracterização dos modelos “de extração fenomenológica” (a “visada da subjetivação da dominação”) parece, ao fim da leitura da Introdução da Fenomenologia, na verdade mais próxima dos primeiros trabalhos de Honneth do que do dialético Hegel9 Não é claro no texto de Hegel lido por Nobre de que modo o complexo programa de (não-)método desenvolvido pelo filósofo pode ser reduzido a uma consideração teórica das lacunas e falhas da integração social tendencialmente total representadas por aquilo que, nos sujeitos, recalcitra à subsunção no universal. Se a Fenomenologia representa de fato, como sustenta Nobre, um modelo para a crítica radical que visa desbloquear o movimento do seu objeto através da recepção ativa de sua própria negatividade, então a ideia de que a transformação do objeto ocorre pela oposição a ele dos restos e falhas nas quais ele não se efetivou plenamente já é uma projeção subjetiva da teoria sobre o objeto e representa exatamente aquilo que Hegel deseja superar, aquela concepção que Nobre chama de “representação natural”. Isso porque opera implicitamente com a ideia restrita de que a negatividade a ser acolhida pela teoria está localizada nos excessos de subjetividade não integrada. Essa concepção parece confundir, no conceito hegeliano de “experiência”, a subjetividade da consciência que experimenta o movimento do objeto (i.e., a subjetividade do teórico) com a subjetividade do indivíduo não completamente integrado, que só pode aparecer, de fato, como objeto da experiência do teórico. Significa, ademais, tomar as lacunas de integração (as “práticas de resistência e contestação à dominação em suas múltiplas dimensões” (p. 71)) como ponto de ancoragem da crítica e esperar que a superação de um estado atual venha justamente do seu “lado de fora”, daquilo que não está subsumido à sua lógica.10 O objeto é cindido num universal a ser negado e num particular afirmado e a crítica perde a imanência ao objeto, a sociedade, – pois não há crítica imanente onde o seu objeto não pode ser sintetizado especulativamente como um objeto único em movimento (e este sim me parece ser o sentido da Introdução e sua lição para a teoria crítica). O próprio Honneth, que iniciou sua proposta de reformulação da teoria crítica nos termos ora repropostos por Nobre, não a abandonou porque se tornou um velho saudosista de 68, mas porque percebeu as aporias a que aquela posição conduzia: a aparente recalcitrância à integração na ordem de dominação não faz por si só da subjetividade marginal um ponto de ancoramento para a crítica, o que deveria ser claro em tempo de eleitores de Trump, da Alternative für Deutschland ou de Bolsonaro. Na teoria, a subjetividade antagônica apenas posterga o momento em que é preciso diferenciar entre a “boa” oposição e a “ruim”, e nesse caso o critério é extrassubjetivo. Assim, o Lukács de História e Consciência de Classe (que comparece em Nobre como exemplo de autor “jovem”) teve de se apoiar numa análise de crítica da economia política para indicar o proletariado como aquele que poderia se subjetivar em acordo com sua própria essência; e, mais tarde, Honneth teve de buscar nas expressões conceituais das regularidades da integração social funcional o critério das reivindicações de reconhecimento boas e ruins. Se ser “jovem” em filosofia é dedicar-se à análise da subjetivação da dominação, os jovens deixaram de ser jovens justamente quando levaram esse problema a sério e enxergaram que ele não se resolve na subjetividade; ou que a subjetividade é porta de acesso e obviamente não pode ser desprezada, mas precisa passar a uma análise mais aprofundada da pré-constituição objetiva da subjetividade. Em outras palavras, os “velhos” tiveram muitas vezes seus bons motivos para envelhecerem, e fizeram sim, em parte, justiça ao mundo em se tornando sistemáticos, porque a estruturação social possui sim um caráter tendencialmente sistemático. Justamente por o possuir, ela determina a subjetivação até mesmo lá onde parece não determinar, e a subjetividade antagônica é ela mesma também marcada por ser subjetividade antagônica à ordem de dominação e estar, portanto, determinada por essa ordem de dominação, não ser a ela externa e não poder ser tomada por critério de sua crítica.

Por isso compra-se sempre o risco, ao privilegiar a subjetividade já encontrada dada na realidade, de se estar sendo afirmativo do mundo, mas com a aparência de se o estar negando. Adorno disse uma vez que “apenas quem reconhece o mais novo como o mesmo serve àquilo que seria distinto” (Adorno, 2003, p. 376). A proposta de Nobre arrisca-se a, em vez de instigar e participar do “nascimento do novo”, afirmar nostalgicamente o “bom e velho” que ainda não cedeu ao universal e representa assim antes um resquício de uma figura anterior do q ue um anúncio de uma que surge.

Notas

1 O autor agradece o acolhimento gentil do prof. Marcos Nobre na leitura da resenha.

2 Esta espécie de romance de “deformação” dos filósofos-lidos (espelhado numa implícita história da formação do filósofo-leitor) é a estrutura da narrativa conceitual, por exemplo, de Crítica do Poder (Honneth, 1989 [1985]) em geral e de Luta por Reconhecimento (Honneth, 2003 [1992]), no que diz respeito à leitura de Hegel.

3 “E, no entanto, realizar essa necessária tomada de posição juntamente com um trabalho de análise e comentário do texto da Introdução prejudicaria consideravelmente a exposição. A solução foi expor essa tomada de posição separadamente” (p. 9). A opção de exposição/método de Nobre contrasta notavelmente com aquela, todavia de elevadas pretensões, da própria Fenomenologia : “O mais fácil é julgar o que possui um teor e uma solidez, mais difícil do que isso é apreendê-lo, e o mais difícil é produzir a sua exposição, o que unifica a ambos” (Hegel, 1986 [1807], p. 13).

4 “O modelo teórico legado pela Fenomenologia tem, portanto, pelo menos dois aspectos característicos: o de um work in progress em sentido mais restrito, que resultou no próprio livro publicado, e o de um work in progress em que um Sistema da ciência a ser produzido permanece como horizonte, configurado em um diagnóstico de tempo de intenção sistemática” (p. 47).

5 Cf. a distinção útil feita por Nobre entre “diagnóstico de época” e “diagnóstico do tempo presente” (p. 280-1, n. 28).

6 E embora sugira ainda que “a Teoria Crítica poderia deixar para trás o fardo da ‘melhor teoria’ em que se embrenhou nas últimas décadas, voltando a conceder ao diagnóstico de tempo presente a primazia que sempre teve na melhor tradição marxista” (p. 80).

7 Cf. afirmações como a seguinte: “Se História e consciência de classe pode ser entendido como a Fenomenologia de O Capital, a Ontologia do ser social pode ser lida, analogamente, em termos de uma versão materialista da Enciclopédia de Hegel” (p. 64).

8 “Atualização” significa aqui antes um update ao “estado da arte” da filosofia do que uma verificação da sua relação com a situação história presente: “assim como uma atualização do projeto da Fenomenologia teria hoje de proceder a uma reconstrução em termos comunicativos da noção de ‘espírito’ (a ser realizada segundo a noção de ‘experiência’), a ideia de ‘formação’ teria de ser ela mesma reconstruída nesses termos, de maneira a libertá-la do macrossujeito que pressupõe” (p323, n. 95).

9 Trata-se de uma filiação expressa: “É desse ponto de vista que se pretende jogar nova luz sobre um modelo de renoção da Teoria Crítica considerado aqui de extração fenomenológica como o oferecido por Luta por reconhecimento – ou, talvez, mais precisamente, aquele veio de atualização aberto por Crítica do Poder ” (p. 81). Cf. ainda, ilustrativamente, a semelhança quase parafrástica do penúltimo parágrafo de Nobre (“E a crítica dessa invisibilidade é o que faz desse livro [a Fenomenologia ] um modelo filosófico ainda hoje um ponto de partida talvez incontornável para uma Teoria Crítica da sociedade que tenha por objetivo não apenas investigar a cunhagem da subjetividade pelas estruturas de dominação, mas igualmente os processos de subjetivação em que surgem os potenciais não só de resistência, mas também de superação da própria dominação” (p. 238)) e o modo como Honneth define a tarefa da teoria crítica no posfácio de Crítica do poder (“hoje um problema-chave da teoria crítica da sociedade é representado pela questão de como pode ser obtido o quadro categorial de uma análise que seja ao mesmo tempo capaz de abarcar, com as estruturas de dominação social, também os recursos sociais para sua superação prática” (Honneth, 1989 [1985], p. 382).

10 Em termos semelhantes, Nobre se refere a uma passagem de Adorno, na qual este estaria a dizer, na sua intepretação, que “integração” e “resistência” se relacionariam “como água e óleo” (p.75). Tanto a interpretação da passagem parece estar equivocada (o que infelizmente não pode ser discutido aqui), quanto, como dito, essa parece ser antes uma implicação do programa de Nobre

Referências

ADORNO, T. W. (2003 [1942]). „Reflexionen zur Klassentheorie“. In: ________.Soziologische Schriften I (= Gesammelte Schriften, 8 ) (pp.373-391). Frankfurt a.M.: Suhrkamp.

HONNETH, A. (1989 [1985]).Kritik der Macht: Reflexionsstufen einer kritischen Gesellschaftstheorie. Mit einem Nachwort zur Taschenbuchausgabe. Frankfurt a.M.: Suhrkamp

____________.(2003 [1992]).Luta por reconhecimento : A gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34.

Hegel, G.W.F. (1986 [1807]).Phänomenologie des Geistes (= Werke 3). Frankfurt a.M.: Suhrkamp.

Luiz Philipe de Caux – Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

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Staying Alive: Personal Identity, Practical Concerns, and the Unity of a Life – SCHECHTMAN (D)

SCHECHTMAN, M. Staying Alive: Personal Identity, Practical Concerns, and the Unity of a Life. Oxford: Oxford University Press, 2014. Resenha de: BORBA, Alexandre Ziani de. Dissertatio, Pelotas, v.47, 2018.

Marya Schechtman volta a publicar uma obra, também sobre identidade pessoal e pessoalidade, após 18 anos. Staying Alive demonstra ser fruto de um longo período de maturação teórica. O livro é um exemplo de boa escrita sobre um tópico filosófico. Mesmo em passagens onde as ideias expostas pela filósofa não são tão claras, ela as reconhece como ideias que merecem explicações e que eventualmente serão melhor explicadas ao longo do livro. E quando nos deparamos com a filósofa declarando uma frase duvidosa, ela presta um serviço à inteligência de seus leitores, reconhecendo a dubitabilidade da ideia por ela declarada e apresentando razões para que aceitemo-la ‒ ou antecipando que assim será feito no decorrer da leitura.

Além de tratar sobre o tema da pessoalidade e da identidade pessoal, o livro acaba por nos forçar a refletir sobre a metodologia filosófica comumente empregada neste assunto. Como Schechtman destaca, o método comumente empregado em filosofia para tratar o problema da identidade pessoal envolve reflexões acerca de cenários hipotéticos que buscam o tipo preciso de relação, ou relações, que são individualmente necessárias e conjuntamente suficientes para se obter as condições de persistência de pessoas. Porém, a filósofa quer apresentar razões para que duvidemos desta metodologia, uma vez que entes tão complexos como nós, pessoas, não parecem poder ser compreendidos a partir de um único tipo de relação ou de um conjunto de relações necessárias e suficientes.

Schechtman pretende endossar uma perspectiva bastante original, de acordo com a qual as relações que constituem nossa identidade pessoal estão relacionadas a considerações práticas não por acidente, mas de maneira inerente. Conforme a obra se desdobra, o significado da palavra “inerente” é elucidado. A obra ela mesma pode ser dividida em três grandes partes, como a própria Schechtman destaca. A primeira delas cobre os quatro primeiros capítulos, os quais buscam insights de diferentes visões existentes sobre a identidade pessoal, usando-os para oferecer um quadro geral de nossas identidades a partir de uma conexão com nossas considerações práticas. Schechtman, ao longo de toda a obra, se apresenta como uma filósofa que busca evitar as deficiências e salvaguardar as vantagens relativas de cada teoria por ela abordada. Espera-se, assim, que o resultado final seja bastante satisfatório ‒ tanto quanto se possa ser neste assunto. A segunda parte da obra cobre os capítulos 5 e 6, nos quais a filósofa elabora em detalhes sua própria abordagem, que ela chama de “visão da vida da pessoa” [person life view] (daqui em diante, PLV) que, basicamente, mas de maneira não muito informativa, define a identidade de uma pessoa em termos da unidade de um tipo característico de vida. Em outras palavras, a identidade de uma pessoa é definida por se viver uma vida característica de uma pessoa. Posto desta maneira, a tese é claramente circular, não sendo, portanto, informativa. Porém, é preciso ter em mente que esta é apenas a ideia básica e geral da visão de Schechtman e as minúcias de sua visão revelam uma visão bastante amadurecida sobre o assunto.

A terceira e última parte da obra cobre apenas o capítulo 7. Aqui, a filósofa debate questões ontológicas a respeito da pessoalidade e da identidade pessoal. De acordo com ela, a PLV deve ser encarada como um tratamento a respeito da identidade literal de pessoas, não apenas metafórica ou figurativa. Schechtman acaba por sugerir modificações na própria questão a respeito da identidade pessoal, ou melhor, na maneira como a questão é tradicionalmente colocada.

Os primeiros quatro capítulos buscam dar uma maior precisão na ideia de que fatos acerca da identidade literal de seres como nós estão “inerentemente conectados” a considerações práticas. Para isto, o capítulo 1 inicia discutindo as ideias do filósofo John Locke. Schechtman oferece uma interpretação acerca do tratamento de Locke sobre identidade pessoal que escapa das interpretações padrão, segundo as quais a identidade pessoal pode ser definida em termos de relações puramente psicológicas ou, de maneira ainda mais restrita, relações mnemônicas. Como Schechtman nota, para Locke, “pessoa” é um “termo forense”. Muitos tomam a asserção de Locke como sendo a de que juízos de identidade devem diretamente coincidir com juízos forenses. A esta visão, a filósofa chama de “modelo da coincidência”. No entanto, Schechtman propõe que, embora as evidências textuais não sejam conclusivas, Locke pode ser interpretado como promovendo uma conexão mais substantiva entre identidade pessoal e capacidades forenses—como as de responsabilidade moral e racionalidade prudencial. Segundo ela, o tratamento de Locke para a identidade pessoal em termos de continuidade, ou mesmidade [sameness], de consciência é um tratamento das condições de identidade para aquilo que ela chama de unidade forense [forensic unit]. Deste modo, Schechtman sugere que, para Locke, uma pessoa é um alvo de considerações práticas relativas às suas capacidades forenses. A este modelo, Schechtman dá o nome de “modelo da dependência”, e é basicamente este o modelo que a filósofa quer endossar ao longo da obra, com a diferença de que, para a filósofa, as considerações práticas relevantes para a identidade pessoal vão além das capacidades forenses de uma pessoa.

O capítulo 2 apresenta os chamados “modelos fortes da independência”, para os quais questões sobre identidade pessoal devem ser rigidamente distinguidas de questões práticas, sugerindo, assim, uma divisão do trabalho para cada uma destas questões. Do lado da axiologia, Schechtman apresenta Christine Korsgaard e sua teoria agencial da identidade como a principal representante deste modelo. Do lado da metafísica, a filósofa apresenta Eric Olson e seu tratamento biológico da identidade pessoal como o principal represente deste modelo.

Partindo dos trabalhos de Hilde Lindemann, o capítulo 3 propõe uma ampliação do modelo da dependência que Schechtman favorece para elucidar a conexão inerente entre identidade pessoal e considerações práticas. Para ela, nós devemos ampliar nossa concepção da importância prática da identidade pessoal para além das considerações forenses que herdamos de Locke. Uma consequência desta visão é a de que muitos indivíduos que não seriam considerados pessoas na visão de Locke ‒ tais como lactentes e pessoas com demência ou deficiências cognitivas graves ‒, serão consideradas como pessoas genuínas em seu modelo da dependência ampliada. Pessoas, neste modelo, são loci individuais de interação prática para os quais todo o conjunto de interesses e considerações práticas associadas à pessoalidade são apropriadamente direcionadas. Porém, como a própria filósofa nota, dado o amplo escopo de interesses práticos que nós temos com pessoas, não é imediatamente claro como definir um único locus que é um alvo inerentemente apropriado de todos estes interesses. Este é, de maneira sumarizada, o que Schechtman chama de o “problema da multiplicidade”.

Ao terminar o terceiro capítulo de sua obra, Schechtman deixa por ser respondido três grandes desafios à sua proposta, a saber, o desafio sincrônico da unidade individual, o desafio diacrônico da unidade individual e o desafio da unidade definicional. Enquanto este último é tratado no quinto capítulo da obra, o capítulo 4 se dedica a apresentar duas abordagens que, cada uma à sua vez, podem lançar luz aos dois primeiros desafios. Em particular, Schechtman argumenta que o tratamento da mente corporificada de Jeff McMahan, ou mais especificamente, sua teoria dos interesses temporalmente relativos [theory of time-relative interests], pode lançar luz ao desafio sincrônico da unidade individual. Por outro lado, a abordagem da autoconstituição narrativa, que a própria Schechtman havia desenvolvido em sua obra anterior ‒ The Constitution of Selves (1996) ‒, de acordo com ela, lança luz ao desafio diacrônico da unidade individual.

O capítulo 5 faz uso dos insights ganhos nos primeiros quatro capítulos para avançar o tratamento positivo da identidade pessoal de que Schechtman quer nos convencer, a saber, a PLV [person life view]. Numa formulação circular, não-informativa, desta ideia, pessoas são entidades que vivem tipos característicos de vidas, a saber, “vidas de pessoas”. Na sua melhor expressão, a PLV é formulada como a visão segundo a qual pessoas são entes que vivem uma vida constituída por interações dinâmicas entre funções e atributos biológicos, psicológicos e sociais. Nesta visão, a ideia de que as vidas de pessoas são inerentemente sociais é crucial. Considero que este aspecto da proposta de Schechtman aponta para uma guinada social no debate sobre pessoalidade. Para a filósofa, viver uma vida característica de pessoas envolve ocupar um espaço ‒ o “person-space” ‒ no interior de uma infraestrutura social e cultural do tipo que seres como nós naturalmente desenvolvem. Schechtman toma o cuidado de tornar claro o significado de palavras como “cultura” e “infraestrutura social” aos seus leitores.

No capítulo 6, Schechtman propõe que nós entendamos as condições de perisistência de uma pessoa não em termos de condições necessárias e suficientes, mas como um conjunto de propriedades que se reforçam mutuamente. Para a filósofa, há uma variedade de combinações diferentes de relações às quais colaboram entre si para a manutenção de uma unidade singular, integrada de interação ‒ que é a pessoa. Deste modo, Schechtman propõe que a PLV seja baseada em um modelo de propriedades aglomeradas, de acordo com a qual não há condições necessárias e suficientes para a continuidade de uma pessoa, mas tão somente um aglomerado de propriedades que se reforçam de maneira mútua. No caso de pessoas, como já antecipado pela PLV, estas propriedades envolvem seus componentes biológicos, psicológicos e sociais.

Finalmente, o capítulo 7 se dedica à ontologia das pessoas. De acordo com Schechtman, a PLV é corretamente considerada como um tratamento da identidade literal de pessoas. Para argumentar em favor de seu ponto, a filósofa precisa responder aos desafios que surgem a partir dos defensores do tratamento biológico da pessoalidade ‒ o chamado “animalismo” ‒, tal como defendido por Eric Olson. Algumas possíveis respostas ao animalismo são apresentadas.

Nesta resenha, quero tratar particularmente da proposta positiva de Schechtman para a pessoalidade e identidade pessoal. A meu ver, Schechtman tem razão em destacar que pessoas são entes envolvendo a interação de um aglomerado de propriedades que vão desde seus componentes biológicos até seus componentes psicológicos e sociais. Mais ainda, ela tem razão em destacar que estes componentes não são facilmente isoláveis uns dos outros. Em boa medida, muitos cenários hipotéticos na literatura sobre identidade pessoal desconsideram tanto os componentes biológicos e sociais com os quais pessoas se realizam, quanto a íntima interação entre eles e os componentes psicológicos ‒ o que nos leva ao questionamento da metodologia padrão. Ao fim e ao cabo, Schechtman parece indicar uma abordagem mais antropológica para o problema da identidade pessoal, uma para a qual uma guinada social se faz necessária.

Uma das ideias que Schechtman desenvolve em sua obra é a de que pessoas se tornam pessoas no interior do que ela chama de “person-space”, o qual possui a dinâmica peculiar de autoperpetuar pessoas enquanto pessoas. Apesar de considerar este conceito bastante atrativo, devo dizer que senti falta de um tratamento mais minucioso acerca da dinâmica que o caracteriza e de como um tratamento minucioso desta dinâmica se conecta à guinada social que Schechtman parece favorecer. Explico. Schechtman, ela mesma, reconhece o “person-space” como um espaço autoperpetuador na medida mesma em que serve para o desenvolvimento dos seres que o sustentam (Cf. p. 118) ‒ no caso, pessoas. Ora, se é assim, então a existência de pessoas atípicas enquanto pessoas ‒lactentes, pessoas com severas debilidades cognitivas e pessoas em estado vegetativo persistente ‒ depende ontologicamente da existência de pessoas típicas ‒ pessoas com capacidades forenses ‒, pois, do contrário, a infraestrutura cultural e social que permite a perpetuação das vidas características de pessoas não pode ser satisfeita.

Embora entenda que o ponto de Schechtman seja o de justificar a ampliação da pessoalidade a casos atípicos de pessoas, parece improvável, como já argumentado, que a dinâmica autoperpetuadora do “person-space” seja satisfeita caso muitas ou quase todas as pessoas sejam exemplares atípicos do tipo de entes que somos. Deste modo, para que esta dinâmica seja satisfeita, é preciso que quase todas as pessoas sejam pessoas típicas, i.e., pessoas com capacidades forenses. Se eu estiver certo, então as capacidades forenses de pessoas são base para a dinâmica autoperpetuadora do “person-space”.

Alexandre Ziani de Borba – PPGFil – Universidade Federal de Santa Maria

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Ritratti hegeliani. Um capitolo della filosofia americana contemporânea- CORTI- D

CORTI, L. Ritratti hegeliani. Um capitolo della filosofia americana contemporânea. Roma: Carocci Editore, 2014. Resenha de: BAVARESCO, Agemir. Dissertatio, Pelotas, v.47, 2018

O autor, Luca Corti, tem a seguinte trajetória intelectual: Obteve sua graduação (2008) e o mestrado (2011) em filosofia na Universidade de Florença. O doutorado (2015) realizou-se na Universidade de Pádua, tendo como tema de tese Mind and Method in Hegel’s Philosophy of Subjective Spirit, sendo o orientador o Prof. Luca Illetterati. Corti tem em seu currículo vários pós-doutorados em universidades europeias, além de desenvolver uma ampla pesquisa expressa em artigos, livros e traduções (ver currículo em http://rub.academia.edu/LucaCorti/CurriculumVitae).

O livro Ritratti hegeliani pode ser considerado uma história da filosofia americana sobre Hegel. O autor mantém a boa tradição italiana de escrever histórias da filosofia. O livro é composto de cinco capítulos em cada um trata de um autor. O primeiro é sobre Wilfrid Selars e seu kantismo normativo (p.29 a 58); o segundo descreve a filosofia de McDowell e o seu espaço de razões na experiência (p.59 a 110); o terceiro é a leitura de Robert Brandom sobre Hegel (p.111 a 180); o quarto é a intepretação de Robert Pipin e sua interpretação normativa institucional de Hegel (p.181 a 234); e o último é a leitura de Terry Pinkard entre história e natureza em Hegel (p.235 a 270).

Luca Corti divide a sua pesquisa a respeito da recepção americana de Hegel em três fases que correspondem a três perguntas: 1ª fase: How Hegel Came to America? Esta fase corresponde a primeira metade do século XIX em que alguns filósofos americanos adotam em seu trabalho algumas ideias alemãs, entre os quais William T. Harris e Henry C. Brokmeyer. Eles foram os primeiros a engajar-se num projeto de tradução de Hegel e sua abordagem é mais eclética do que propriamente filosófica.

A 2ª fase: How Hegel Left America? A resposta foca-se a partir de dois grandes filões da tradição americana: o pragmatismo e a filosofia analítica. Do lado do pragmatismo menciona-se William James que tem uma fase mais crítica e depois de reconciliação em relação a Hegel. Porém, outros pragmatistas como J. Dewey e Charles Peirce têm uma relação mais articulada com o pensamento hegeliano. Do lado da filosofia analítica, mais anti-hegliana temos Moore (Refutation of Idealism) e Russell. Segundo Corti estas duas fases são um tanto ignoradas nos departamentos de filosofia americanos ao longo do século XX. Enfim na 3ª fase: How Hegel Came Back to America? Para Corti, esta fase trata da recepção de Hegel feito pelo mainstream filosófico americano nos últimos 40 anos, cujo livro será dedicado a descrever os cinco autores principais deste período: Sellars, McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard.

No começo dos anos 50, há um renascimento dos estudos hegelianos inspirados pela pesquisa de Sellars que admira Hegel, embora o cite raramente. Porém, as raízes históricas e teóricas deste renascimento encontram-se em Sellars, cujos autores McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard de uma forma ou de outra inspiram-se. Corti afirma que tentará elaborar uma síntese reconstrutiva das suas interpretações e dos debates que gravitam ao seu redor, respondendo a duas questões: “Como Hegel retornou aos Estados Unidos”, mas sobretudo: “Qual Hegel retornou ao centro das atenções nesse contexto filosófico?” (Idem, p.19).

Cabe ponderar que segundo Corti, embora a relação daqueles autores com Sellars seja fundamental, ele não é o único, mas também há a influência do segundo Wittgenstein e da tradição analítica, e de Charles Taylor e de Klaus Hartmann e John N. Findlay que já nos anos 50 e 60 traziam da Europa uma nova leitura de Hegel.

Há um debate sobre a etiqueta da Escola de Pittsburgh e o círculo sellarsiano. Alguns começaram a chama-la de “Escola neohegeliana de Pittsburgh” ou “neohegelianos de Pittsburgh”. Porém, nem todos os membros sentiram-se identificados com tal etiqueta, como por exemplo McDowell. Por isso, eliminou-se o adjetivo hegeliano e manteve-se apenas “Escola de Pittsburgh”.

Para Corti trata-se de constatar qual é o modo peculiar de relação desses autores com a história da filosofia, ou seja, de ler os textos da tradição, ao mesmo tempo, de um modo original e controverso. Sellars tinha um grande interesse pela história da filosofia afirmando que “sem história da filosofia, a filosofia, se ela não é cega ou vazia, pelo menos é muda” (Idem, p.21). Face às variadas leituras propiciadas pela abordagem histórica surge a questão: “Mas isso é realmente Hegel?”. Temos abordagens opostas: ou a crítica frontal que coloca os limites histórico-filológicos de tais leituras e uma aparente estranheza ao texto hegeliano (“este não é o verdadeiro Hegel”); ou então, a adesão ao novo modo de ler os textos, as vezes até fazendo Hegel um predecessor da filosofia analítica (ver p.23). Conti entende que a alternativa não se dá entre esses dois tipos ideais de abordagens, mas explicitando, dialeticamente, suas teorias e leituras históricas.

Tendo presente estes pressupostos, Luca Corti apresentará Sellars e sua interpretação de Kant, pois esta é fundamental para compreender os desdobramentos posteriores e os “retratos” elaborados por McDowell, Brandom, Pipin e Pinkard. Para elaborar os referidos retratos, Corti apresenta de cada autor, em primeiro lugar, o quadro teórico e os temas de fundo, os aspectos mais discutidos e a herança histórica mais relevante. Depois, ele irá verificar como estes elementos se traduzem na leitura de Hegel. O objetivo de tais retratos é aproximar o leitor dos autores e também fazer emergir algumas semelhanças e problemas comuns entre eles. O esforço é fundir os vocabulários pertencentes a duas tradições distantes: o léxico hegeliano e a tradição do campo analítico.

A chave de leitura e o fundo teórico, segundo Corti, que une estes autores é a normatividade. O tema da ‘norma’ é central neste livro: “Todos os nossos autores partilham a ideia de que o pensamento e a ação sejam fenômenos do tipo normativo, relacionadas ao nosso seguimento de regras” (p.26). Cabendo distinguir que a ordem normativa não se reduz à ordem natural, ou seja, como Sellars diferenciava entre o “espaço das razões”, de natureza normativa, e o “espaço das causas”, próprio das explicações naturais.

O conceito de ‘regra ou norma’ é o que faz a ponte para a interpretação dos textos do idealismo alemão. Sellars aplicará a teoria normativa dos conceitos na leitura de Kant, abrindo a estrada para a passagem a Hegel realizado pelos seus sucessores: “A tese comum a todos estes autores é que Geist é, precisamente, o termo hegeliano para indicar uma dimensão normativa não naturalizável, figura fundamental da racionalidade prática e conceitual” (p.26).

Os termos regra e norma assumem significados múltiplos e controversos: O que são as normas? Qual é o seu estatuto? Como compreender fenômenos enquanto intencionalidade, o conhecimento perceptivo e o significado em termos normativos? As respostas a estas perguntas colocam em diálogo Hegel e Wittgenstein. Para isso é necessário retornar a Sellars e ver como ele aproxima Wittgenstein de Kant que ensina como seguir uma regra e, também, como Kant dialoga com Wittgenstein encontrando o pragmatismo. “Um encontro que produziu visões tão originais, fazendo do filósofo vienense o meio para um diálogo entre o pragmatismo e a filosofia clássica alemã” (p.27).

O livro de Luca Corti é uma obra que nos permite conhecer, de modo sistemático, uma das atualizações hegelianas contemporâneas muito importante: a recepção norte americana. O autor tem o mérito de apresentar os autores de modo didático, introduzindo a teoria de cada autor e a sua relação com Hegel. O leitor pode seguir os passos de apresentação do autor, pois ele usa um estilo simples e direto, evitando diletantismos ou informações desnecessárias, não perdendo o foco de sua pesquisa. Recomendo a leitura dessa obra incontornável para quem necessita conhecer a recepção hegeliana norte-americana.

Agemir Bavaresco – Pontifícia Universidade Católica – RS.

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Spinoza como educador – RABENORT (CE)

RABENORT, William. Spinoza como educador. Pref. Juliana Merçon; introd. Trad. Bras. Fernando Bonadia de Oliveira; tradução para o português GT Benedictus de Spinoza; coordenação Emanuel Angelo da Rocha Fragoso/Francisca Juliana Barros Sousa Lima. – 1.Ed. – Fortaleza: EdUECE, 2016. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.38, jan./jun., 2018.

O mesmo interesse pedagógico despertado pela filosofia de Espinosa na primeira década do século passado, período em que William Louis Rabenort publica “ Espinosa como educador ”(Spinoza as educator), reaparece aqui no Brasil no presente momento. A tradução realizada pelo Coletivo GT Benedictus de Spinoza, sob a coordenação do Prof. Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e da Profa. Francisca Juliana Barros Sousa Lima, tem como objetivo reconstituir esse primeiro encontro das ideias de Espinosa com o campo da educação. É bem verdade que o filósofo do “infinito atual” ou do Deus sive Natura desperta um interesse mais pela profundidade e rigor de sua ontologia e a agudeza de sua análise política, do que propriamente de sua relação com a pedagogia ou escritos sobre a educação. Entretanto, é a própria filosofia de Espinosa que nos faz perceber que essas divisões de ciências ou saberes, na verdade, não se põem. Tudo o que existe, existe necessariamente e todas as relações existentes se conectam e se interconectam umas às outras, num turbilhão de causalidade que tem como único fundamento a substância absolutamente infinita. Sendo assim, se a educação não pode ser pensada sem relacioná-la à política, por que não pensar estes campos do conhecimento imersos numa ontologia do necessário? A maestria com que Rabenort conduz o leitor, interconectando a ontologia, a política e a educação em Espinosa, faz do seu livro uma obra necessária para os professores de filosofia e pedagogos repensarem os caminhos da educação. A tradução de Rabenort que vem a lume, e que tem como objetivo essencial contribuir para a elaboração de uma teoria da educação em Espinosa, talvez seja o início da percepção da importância da sua filosofia também para os educadores.

Em seu primeiro capítulo, intitulado “A possibilidade da Educação”, Rabenort confessa que em suas obras Espinosa não se preocupou explicitamente nem com a educação nem com as crianças. Entretanto, Rabenort chama a atenção para o fato de que a educação precisa ser pensada num âmbito maior que aquele circunscrito pela infância: “A educação é mais ampla do que a infância e o interesse de Espinosa deve ter sido pelos adultos.” (Rabenort, 2016, p.65 66). Não seria mais coerente educar os adultos para que posteriormente houvesse a possibilidade de os adultos educarem as crianças e jovens? Apesar de afirmar a incapacidade do vulgo para questões filosóficas, Rabenort nos convence de que Espinosa atesta a possibilidade de educação pela relação que manteve com seus amigos e correspondentes. É através da atitude pessoal do filósofo que podemos perceber a importância da educação implicada em seu sistema filosófico, já que Espinosa não deu um tratamento sistemático ou explícito para a educação.

Na filosofia de Espinosa os conceitos de necessidade e impossibilidade têm um significado universal, pois eles se aplicam a Deus e ao todo da natureza na qual o homem é apenas uma partícula. Sendo assim, é através dos conceitos de possibilidade e contingência, que possuem significado apenas para a existência humana, que devemos pensar a possibilidade de educação do homem numa doutrina construída a partir da ideia de necessidade: “A educação, até agora, está posta além da interferência humana. O professor deve ir com a maré, cujo fluxo é determinado pela configuração do universo” (Rabenort, 2016, p. 79). Visto que a capacidade de conhecimento do homem é limitada, o conhecimento absoluto e eterno é contrário à natureza humana.

No segundo capítulo, intitulado “Os elementos da Natureza Hu mana”, Rabenort introduz o leitor aos principais conceitos de Espinosa em relação ao lugar dos seres humanos como parte da Natureza sujeitos às leis de causa e efeito. Ele esclarece como são definidos os conceitos de essência, existência, causalidade, substância, atributos, a relação entre a mente e o corpo, além de enfatizar a importância que o corpo possui na filosofia espinosana destacando sua concepção de imaginação, memória e modos de conhecimento. Diferentemente de toda a tradição filosófica, para Espinosa não há abismo entre a mente e o corpo: ambos são a expressão de atributos que são diferentes mas que constituem a essência de uma mesma substância, isto é, Deus.

No terceiro capítulo, intitulado “A supremacia do intelecto”, Rabenort realiza o estudo da atividade natural do pensamento, a maneira como ele opera e a relação do pensamento com o seu objeto e conteúdo. A complexa teoria do conhecimento em Espinosa é analisada em sua distinção entre ideias adequadas (razão/intuição) e as ideias inadequadas (imaginação). O pedagogo enfatiza a importância da formação das noções comuns em Espinosa como base do raciocínio de todos os homens, visto que tais noções integram dentro de seu sistema o limiar entre imaginação e razão. Sem dúvida, na filosofia de Espinosa há uma semelhança entre raciocínio e causalidade, pois “nomear uma causa é oferecer uma razão” (RABENORT, 2016, p. 136) . A experiência nos fornece o conhecimento das coisas finitas existentes enquanto a razão faz perceber as coisas sub quadam species eternitatis .

O quarto capítulo é dedicado a pensar “As complicações de personalidade” que, segundo Rabenort, constituem a base da teoria política de Espinosa. Como bem analisa em seu livro, as diferenças de personalidade entre os homens são causadas por causas externas, as quais modificam seus respectivos desejos, já que estes são a essência do homem. Assim, a composição das forças externas que moldam a afetividade e que causam as diferenças de personalidade e disputas entre os homens prejudicam a possibilidade de sua união. Entretanto, Espinosa concorda com a definição de que o homem é um ser social, visto que a teoria educacional implícita na obra de Espinosa nos conduz à percepção de que nada é mais útil ao homem do que outro homem. Tanto a política quando a educação devem nos conduzir a essa compreensão: “o homem é um Deus para o homem”.

É apenas no último capítulo, “Os critérios da educação”, que Rabenort analisa de fato o problema da educação na filosofia de Espinosa. Pelo fato do homem ser um membro da sociedade, ele não existe isoladamente, mas em cooperação e harmonia com outros como ele. Rabenort propõe a tese de que Espinosa foi verdadeiramente tanto um professor quanto filósofo. É através da distinção entre experiência e razão, como duas formas de consciência, que podemos classificar o processo educacional em Espinosa. A base do currículo seria composta pela prioridade que Espinosa outorga aos dois itens da experiência: as relações sociais e a preservação da vida e da saúde. A habilidade política é entendida como o primeiro desejo que a educação deveria estimular. Porém, o curriculum, propriamente dito, é o próprio professor, pois ele tem a aptidão em auxiliar os homens para o exercício de seu poder racional: “O professor é a pessoa a quem é delegada, em razão da aptidão especial para a tarefa, a função da sociedade, que consiste em ajudar os homens a exercerem o seu poder de forma racional” (Rabenort, 2016, p. 186 – 187) . Apenas o conhecimento da experiência não é suficiente para tornar o homem consciente de si, será necessário conduzir os homens ao entendimento da união que existe entre a mente e a natureza inteira. Como vimos, o homem possui naturalmente a predisposição para a sociabilidade e desenvolvimento da razão; sendo assim, o professor deve apenas desenvolver o fortalecimento que a certeza racional pode proporcionar. Rabenort alerta que tanto a razão quanto a intuição (insight), embora também envolvam cooperação, devem ser o exercício da energia humana autoiniciada e autocontrolada: “A educação, para merecer esse nome, deve ser autoeducação (self-education).” (Rabenort, 2016, p. 201) . Portanto, o obra de Espinosa contempla a atividade essencial da educação que nada mais é do que o ensinar e o aprender entre homens que se dedicam ao conhecimento da Natureza. Numa sociedade em que os homens cada vez mais desenvolvem aversão à política e a desvalorização dos professores, esta obra torna-se fundamental.

Referências

RABENORT, William (2016). Spinoza como educador. Pref. Juliana Merçon; introd. Trad. Bras. Fernando Bonadia de Oliveira; tradução para o português Coletivo GT Benedictus de Spinoza; coordenação Emanuel Angelo da Rocha Fragoso/Francisca Juliana Barros Sousa Lima. – 1. Ed. – Fortaleza: Eduece, 2016.

Juarez Lopes Rodrigues – Doutorando Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Teoria da religião – BATAILLE (AF)

BATAILLE, G. Teoria da religião. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015. Resenha de: CAMILO, Anderson Barbosa. Artefilosofia, Ouro Preto, n.23, dez., 2017.

A recente publicação no Brasil de Teoria da religião de Georges Bataille pela editora Autêntica, com a competente tradução de Fernando Scheibe, traz uma edição ímpar deste escrito. Além de disponibilizar de modo integral o texto Teoria da religião, a presente edição dispõe da famosa conferência Esquema de uma história das religiões, proferida em 1948 no Collège Philosophique em Paris, na qual Bataille expôs noções chaves que posteriormente desenvolveu no manuscrito de Teoria da religião, redigido no mesmo ano, logo após esta conferência que “serviu de embrião ao livro” (p. 7), como diz Fernando Scheibe. É interessante ressaltar que a presente edição de Teoria da religião contém a presença das notas extraídas do volume VII das Obras Completas de Bataille, e também a inclusão das “Notas do editor francês”. Percebe-se nitidamente um empenho da editora Autêntica de apresentar ao público uma edição que proporcione uma leitura mais rica e frutífera de Teoria da religião, oferecendo ao leitor, num único volume, não somente o texto integral, mas, também, as notas adicionais e a mencionada conferência que originou o escrito.

Originalmente publicado pela editora francesa Gallimard em 1974, Teoria da religião veio a público após 12 anos da morte de Georges Bataille. Trata-se, portanto, de um escrito póstumo e que podemos considerá-lo abandonado, pois, como consta na “Nota do editor francês”, “[…] este texto estava destinado à coleção ‘Miroir’ [Espelho] das Edições ‘Au masque d’Or’ (Angers) ” (p. 11, grifo original), que não chegou a ser enviado em sua versão final. Bataille enviou para o editor um manuscrito incompleto, prometendo posteriormente enviar um quadro e mais algumas páginas. Assim, a publicação de Teoria da religião pela coleção “Miro ir” não foi concluída, desconhecendo-se o real motivo, mas vale salientar que o mencionado escrito de Bataille é citado diversas vezes nos planos para compor a Suma Ateológica (p. 11).

Por ser composto no diálogo da filosofia com a antropologia e da história da religião com a economia e com a sociologia, trata-se de uma obra plural que afirma o caráter incompleto e insuficiente dos pretensos discursos unilaterais sobre o ser humano. Mesmo assim, multifacetado, o pensamento de Bataille se esforça para permanecer numa constante: ser um pensamento aberto, “ móvel ”, pois um pensamento que se quer atrelado às vicissitudes da existência não pode se querer acabado, fechado. “[…] procurei exprimir um pensamento móvel, sem buscar seu estado definitivo” (p. 19), diz Bataille sobre seu escrito.

Como aponta o título do livro, vemos o desenvolvimento de uma teoria da religião que pode ser entendida como uma teoria sobre o sentimento religioso a partir da experiência da imanência ou da intimidade. Para Bataille, a religião responde a uma “busca da intimidade perdida” (p. 47). No percurso de sua argumentação, o autor se esforça por mostrar como a relação do homem com o domínio da imanência ou da intimidade, que é o fundamento da experiência do sagrado, se origina nas sociedades primitivas e quais lugares essa relação ocupa ao longo da história, do surgimento e do desenvolvimento das religiões, indo até a era industrial.

Para dar conta desta abordagem, Teoria da religião é constituída por duas partes. A primeira, intitulada “Dados fundamentais”, trata da construção de um quadro em que os conceitos de animalidade, intimidade, imanência, sacrifício, profano e sagrado são explicados. No início da primeira parte, Bataille afirma que o domínio da imanência é o da situação animal. “[…] a animalidade é a imediatez ou a imanência” (p. 23). A situação animal se passa num plano de indistinção na medida em que não há relação entre sujeito e objeto, isto é, não há a relação em que o objeto é posto por um sujeito que se sabe diferente do objeto. Assim, fundamentalmente, a noção de distinção é pensada.

Acrescenta-se a isso que a duração temporal do objeto é condição necessária para que ele seja posto enquanto tal: “É na medida em que somos humanos que o objeto existe no tempo em que sua duração é apreensível” (p. 24). Para a animalidade não existe a consideração do tempo por vir, portanto, não existe relação entre sujeito e objeto, não existe “[…] nada que possa estabelecer de um lado a autonomia e do outro a dependência” (p. 24).

A continuidade indistinta é o princípio fundamental da animalidade, de modo que Bataille afirma: “todo animal está no mundo como a água no interior da água ” (p. 24, grifo original). É impossível falar da situação animal com precisão, senão de modo poético, “[..

.] visto que a poesia não descreve nada que não deslize para o incognoscível” (p. 25). A animalidade apresenta-se a nós como “um enigma bem embaraçoso” (p. 25).

A partir dessas noções Bataille distingue o mundo humano em contraposição à situação animal. Se a animalidade está imersa numa continuidade, isto é, indistinção, o mundo humano está dado numa descontinuidade, e enquanto tal se configura a partir da posição do objeto enquanto diferenciado da consciência, como não-eu. Assim também o sujeito se faz conhecedor, pois conhece a si mesmo como um outro: “Isso quer dizer […] que só passamos a nos conhecer distinta e claramente no dia em que nos percebemos de fora como um outro” (p. 31).

Nessa perspectiva, a relação do sujeito com o objeto se dá no domínio da utilidade, pois foi na finalidade de manter-se viva que a humanidade estabeleceu sua relação com o mundo. É no plano da fabricação de ferramentas e da utilidade que a humanidade se tornou possível, e é nesse plano que se originou o sujeito conhecedor. Na medida em que transforma a natureza em algo que serve, o homem se coloca como peça fundamental nessa lógica dos meios para os fins, pois ele também está servindo a uma finalidade. Desta maneira, na relação útil com o objeto, o homem também torna-se uma coisa útil.

A questão principal nesta abordagem batailleana é que, no percurso histórico, mesmo a humanidade se realizando no mundo das obras úteis, no mundo profano, ela em alguma medida responde à imanência indistinta, ela responde à sua intimidade mais profunda, e passa a dar origem a um mundo “espiritualizado”, com a representação de um “Ser supremo”, depois animais e plantas dotadas de espíritos e, finalmente, a representação mítica do mundo através de deidades. É nessa perspectiva que o problema do sa grado é introduzido. O sagrado está relacionado à imanência e à continuidade, de modo que, para Bataille, o sentimento do sagrado, que responde à intimidade do homem, está imbuído de angústia, pois o sagrado é contraposto ao mundo profano que obedece ao imperativo da utilidade dando continuidade às possibilidades da vida gregária.

As práticas relacionadas ao sagrado, ao sacrifício e à festa não acontecem senão ao preço do mal estar e do medo, adquirido pelo homem que é arrancado do plano ordenado das obras úteis e levado ao domínio da intimidade e da imanência que põe em risco a duração da vida pela presença da morte. Nessa perspectiva, o sacrifício é pensado como uma prática que se determina como destruição do caráter de coisa da vítima. “É a coisa – somente a coisa – que o sacrifício quer destruir” (p. 39). Porém, o sacrifício se dá ao custo de retirar a vítima realmente do mundo das coisas, matando-a, fazendo-a voltar à intimidade, ao mundo sagrado dos deuses, e isso só é possível na medida em que o sacrificador pertence a esse mundo, “[…] ao mundo da generosidade violenta e sem cálculo” (p. 39).

O que há de mais importante na análise sobre o sacrifício em Teoria da religião é a destruição do laço entre o homem e o mundo da utilidade, o mundo da possibilidade da vida: “[…] o sacrifício vira as costas para as relações reais” (p. 40). Isto, no entanto, não acontece sem angústia, pois o medo da morte permeia o mundo das coisas de tal forma que uma prática que instaure a presença da morte só pode ser concebida com medo. “O homem tem medo da ordem íntima que não é conciliável com aquela das coisas” (p. 44). A ordem íntima para os primitivos está ligada à ordem mítica, e esta se contrapõe ao mundo real, a ordem mítica (íntima) é a negação da ordem real.

Segundo Bataille, na vida cotidiana a presença da ordem íntima é como uma sombra, traz consigo apenas a potência da morte que destrói o primado da duração, que é o fundamento da posição objetiva do mundo das coisas. O caráter devastador da morte é a todo o momento amortecido na ordem das coisas, a neutralização da vida íntima faz da morte algo irreal, mas quando ela se faz realmente presente, “[…] a morte mostra de repente que a sociedade mentia” (p. 41).

Georges Bataille compreende que a neutralização da intimidade pelo primado da duração na ordem real das coisas, por medo da morte, na realidade é a neutralização da vida, de modo que afirma: “[…] é claro que a necessidade da duração nos furta a vida e que, em princípio, só a impossibilidade da duração nos libera” (p. 42). É difícil para Bataille falar da intimidade, pois é impossível exprimi-la discursivamente. Ela é a ordem do desencadeamento violento das paixões, no sentido mais extremo de violência; é a ordem da intensidade de vida nas fronteiras da morte. A intimidade é paradoxal, “porque não é compatível com a posição do indivíduo separado” (p. 43), ou seja, o estatuto da experiência da intimidade é impossível. O que está jogo para Bataille é que o homem primitivo se via perante um impasse existencial: de um lado, o ímpeto para a imersão na intimidade e continuidade comandado por uma violência interior, e por outro, a satisfação das necessidades materiais guiada por uma vontade sempre crescente da racionalidade calculadora que neutraliza os instantes de intensidade da vida.

A festa é uma prática que tentou solucionar esse impasse, na medida em que nela explode uma aspiração à destruição, “[…] mas é uma sabedoria conservador a que a ordena e a limita” (p. 45). Nela as possibilidades de consumo são proporcionadas pelo desencadeamento das diferentes artes, por exemplo, dança e poesia, mas o limite desse desencadeamento da festa se determina na medida em que o mundo das coisas ainda deva ser assegurado. Só assim a festa é suportada.

Este quadro esboçado sobre a relação entre sagrado e profano traduz a incompatibilidade e atração da consciência clara e distinta frente ao domínio da intimidade. Essa incompatibilidade é a perspectiva a partir da qual Bataille afirma sua teoria da religião nos seguintes termos: A religião, cuja essência é a busca da intimidade perdida, se resumiu ao esforço da consciência clara que quer ser inteiramente consciência de si: mas esse esforço é vão, já que a consciência da intimidade só é possível no nível em que a consciência não é mais uma operação cujo resultado implica a duração, ou seja, no nível em que a clareza, que é o efeito da duração, não é mais nada (p. 47).

O problema ao qual o livro se concentra é o da humanidade querer, através da religião, a intimidade pela consciência clara e distinta, mas tal operação é impossível, pois a humanidade extraviou a intimidade, a negou para permanecer na consciência clara das coisas. No final do livro, Bataille afirma que a fraqueza das religiões, na medida em que não tentaram modificar a ordem das coisas, consiste em reduzir a ordem íntima à ordem real (p. 72), ligando cada vez mais o sagrado a operações produtivas ao longo da história. E o princípio fundamenta l desse problema é o da relação entre sujeito e objeto que está imerso no domínio da utilidade.

Cada vez mais a humanidade aumentou o abismo entre o homem e a sua intimidade indistinta, separou cada vez mais o homem daquilo que ele é (p. 47). As sociedades de combate, mesmo tentando corresponder à exigência de consumo da ordem mítica, não suportaram as práticas cruéis de tal consumo violento, que, nascidas da angústia, geravam uma angústia ainda maior em meio ao desenvolvimento material do mundo das obras úteis graças à empresa da guerra. “O primado do consumo não pôde resistir ao primado da força militar” (p. 50).

Na segunda parte do livro, intitulada “A religião nos limites da razão (Da ordem militar ao crescimento industrial)”, o autor faz uma análise do distanciamento cada vez mais crescente entre o homem e a sua intimidade no curso do desenvolvimento econômico das sociedades. As sociedades de combate que fizeram da conquista e da expansão territorial uma operação metódica, tornam-se impérios. O império era a ordem militar que “pôs fim aos mal-estares que respondiam a uma orgia do consumo” (p. 53). A representação do império é de uma “coisa universal”, a essência do império não está em dar a vez ao desencadeamento do consumo violento, mas está em desviar a violência para fora dele mesmo.

No império, o divino realiza atividades operatórias, isto é, está reduzido ao real. Origina-se, segundo Bataille, uma visão dualista do mundo: o divino é transcendente e o real é imanente (p. 57). O homem do império é dualista, é o homem do direito e da moral, diferente do arcaico, pois o homem do império é o homem da consciência reflexiva, desviado dos ritos de retorno à intimidade indistinta. Para o homem dualista, o sagrado (inteligível) está fora, é inacessível, está além, e nisso o divino é “moralizado”, o transcendente é fasto e o imanente é nefasto. Esta atribuição de valores ao sagrado e ao profano é resultado da redução do sagrado à ordem universal da razão pela moral. No império, os homens “[…] racionaliza m e moralizam a divindade, no próprio movimento em que a moral e a razão são divinizadas” (p. 56). A moral tem em vista regras para salvaguardar a vida dos indivíduos no futuro por vir, e por isso condena o consumo violento da intimidade. “Ela [a moral] condena as formas agudas da destruição ostentatória das riquezas. Condena de modo geral todos os consumos inúteis” (p. 56).

Como Bataille tem em vista falar, em Teoria da religião, da experiência da consciência com a intimidade, e com isso pretende fornecer um quadro geral, ele não se detém em nomear quais são as religiões dos homens dualistas, mas, na conferência Esquema de uma história das religiões, Bataille se refere explicitamente ao islã e ao cristianismo (p. 132-133).

No mundo das mediações, que caracteriza essas religiões, as obras da “salvação”, que é para elas a intimidade (p. 64), pertencem à lógica dos meios para os fins graças à moral, que cada vez mais reduziu o divino a operações eficazes. No mundo da mediação, mundo das obras, “[…] a salvação é buscada como se fia a lã” (p. 65).

Segundo Bataille, o universo material passa a ser rechaçado em sua participação com o sagrado, a lógica da eficácia se atenua a tal ponto que o “valor divino” das obras é negado, tudo o que diz respeito ao sagrado é abandonado no além e tudo o que diz respeito ao mundo das obras é isolado no aquém. Esse mundo das obras, diz o autor, “[…] não tem outro fim senão seu próprio desenvolvimento. A partir de então, só a produção é, aqui embaixo, acessível e digna de interesse” (p. 66).

O que passa a existir então é um “reinado das coisas autônomas”. Por esse caráter se define, segundo Bataille, o mundo do crescimento industrial, o da total cisão da ordem íntima com a ordem real. Claramente é o resultado do movimento do princípio da operação produtiva desde o império que “[…] dominou de maneira feral a consciência” (p. 67).

Bataille vê no crescimento industrial, que caracteriza a era capitalista, uma radical mudança de posição com relação ao consumo improdutivo das riqueza s excedentes, normalmente destinado ao sagrado, pois “[o] excedente da produção pôde ser consagrado ao crescimento do equipamento produtivo, à acumulação capitalista (ou pós-capitalista)” (p. 68).

Dessa forma, neste momento do livro, o autor afirma, de modo lapidar, a total subserviência do homem à lógica da eficácia. Há um abandono da vida “[…] a um movimento que ele [o homem] não comanda mais” (p. 68). Eis o grande “negócio” incontrolável que tem a força de direcionar todas as instâncias da vida à contínua produção, em que se torna latente a “soberania da servidão”, e não há nada que arruíne este negócio. Numa lucidez desoladora, Bataille afirma que não há outro modo de ser, seria muito difícil um outro encaminhamento das coisas, pois, “comparado ao crescimento industrial o resto é insignificante” (p. 69).

Á guisa de conclusão da segunda parte de Teoria da religião, o problema da religião é retomado, apontando para o fato de que a verdade da religião não faz mais sentido. “A busca milenar pela intimidade perdida é abandonada pela humanidade produtiva” (p. 68). O problema da religião alcança seu ápice de problematização no livro quando são tratados aspectos do crescimento industrial, uma vez que nesse momento histórico “[…] o homem se afasta de si mesmo m ais do que nunca” (p. 68). No entanto, o caráter de irrealidade que agora se confere a todo o resto contrário à produção não aniquila a existência desse outro. E então a perspectiva sobre o problema da religião muda, pois, por mais que haja a redução do homem para a operação produtiva, não se pode “evitar que haja nele alguma ligação entre a operação e a intimidade” (p. 72). É fraca a ordem íntima no mundo da consciência clara, não passa de balbucios. Mas a força desses balbucios encontra-se no fato de serem incomuns ao mundo da produção, são estranhos, pois representam a oposição da intimidade à ordem real.

Georges Bataille coloca em evidência o erro que proporcionou o “reinado da soberania produtiva”, a saber: a humanidade, a partir do sentimento do sagrado, representou cada vez mais a intimidade à luz da consciência clara. Mas isso traz um paradoxo, pois a possibilidade contrária é de antemão excluída pela contraposição entre intimidade e ordem real. As religiões fracassaram ao tentarem solucionar seu problema fundamental, de buscar a intimidade perdida, e acabaram por afirmar a ordem das coisas e a ela reduzir a ordem íntima. “No final, o princípio de realidade triunfou sobre a intimidade” (p. 72). O conhecimento distinto, ligado à ordem real, se difere da ordem íntima pelos modos de existência no tempo. “A vida divina é imediata, o conhecimento é uma operação que exige a suspensão e a espera” (p. 71).

Assim, Bataille coloca como possibilidade a restituição da ordem íntima no plano da consciência clara se a consciência deixar de iluminar a intimidade com a luz que pretende fundamentar um saber, e então dê lugar ao “não saber”. A intimidade pode ser restituída se a consciência clara mergulhar na obscuridade da intimidade. Tal possibilidade de restituição da intimidade só se dá pela consciência de si. “A consciência de si escapa assim do dilema da exigência simultânea da imediatez e da operação” (p. 71).

Georges Bataille não define claramente o que entende por consciência de si em Teoria da religião, mas, para o autor, diferentemente da satisfação da consciência no saber absoluto, a consciência é consciência de si quando encontra a sua verdade no não-saber. A consciência de si não soluciona o paradoxo fundamental da teoria da religião, mas desvia dele numa operação impossível. E nesse desvio a ordem das coisas não é destruída, mas reduzida à ordem íntima. O que a consciência submissa à ordem das operações produtivas pode fazer, segundo Bataille, é “[…] proceder à operação contrária, a uma redução da redução ” (p. 72), em suma, é levar a operação ao seu limite, e então a consciência se encontrará “[…] reduzida àquilo que ela é profundamente” (p. 72). É no reencontro com a intimidade em sua noite que ela, a consciência, “[…] completará tão bem a possibilidade do homem ou do ser que reencontrará distintamente a noite do animal íntimo no mundo – onde ela entrará ” (p. 72).

A destruição geral das coisas é condição para a consciência de si, é a operação contrária. Bataille alude à imagem do copo com vinho sobre a mesa para afirmar como essa destruição pode ocorrer. Os objetos que rodeia os homens são frutos do trabalho. Uma cama, uma mesa, uma cadeira. Alguém os fez para um outro comprar e usufruir, e o dinheiro de compra foi fruto de um trabalho. O que está em jogo é um conjunto de atividades que tem seu sentido num tempo por vir, trabalhar para receber dinheiro, fazer mesas para vender, etc. A mesa e a cadeira podem proporcionar dinheiro a um pensador, pois escreverá usando a mesa e a cadeira. E o pensador pagará o açougueiro pela carne, e assim o encadeamento do trabalho se perpetua. Mas, quando se coloca um copo com vinho sobre a mesa, esta já não serve mais para o trabalho, e sim para o consumo do vinho. Segundo Bataille, quando isso acontece, a mesa é destruída, isto é, nela todo o encadeamento do trabalho a que pertencia é destruído. E tudo isso em prol de uma fruição, de um desencadeamento que respondeu à ordem do instante e não mais do tempo por vir: beber um copo de vinho. “[…] todas as tarefas que me permitiram chegar a isso são destruídas de chofre, esvaziam-se infinitamente como um rio no oceano desse instante ínfimo” (p. 73). Pode ser uma destruição em ínfima escala, mas é nessa ínfima escala que, por um instante, a relação entre sujeito e objeto mudou. U m objeto não foi posto como tal, escapou do encadeamento da duração, uma vez que o resultado esperado no futuro pertenceu, por um momento, à fruição do instante. Por um momento o por vir foi aniquilado e somente o instante foi afirmado. Todo o tempo do esforço laboral não foi nada diante desse instante.

Portanto, segundo Bataille, a dissolução dos objetos no instante íntimo é o fundamento da consciência de si, “[…] é a negação da diferença entre o objeto e eu mesmo ou a destruição dos objetos como tais n o campo da consciência” (p. 74). E a destruição dos excedentes da produção pode manter o movimento da economia, segundo uma inversão fundamental, a do consumo improdutivo, na medida em que “[…] a produção excedente fluirá como um rio para fora ” (p. 74, g rifo original). Assim, a permanente destruição dos objetos produzidos dissolverá a diferenciação entre sujeito e objeto, de modo que a destruição do objeto no plano da consciência clara implica na destruição do sujeito. Mas, nessa operação contrária, “[…

] os objetos efetivamente destruídos não destruirão os homens” (p. 74). A realização do homem, consciência que se torna consciência de si, se dá na destruição do objeto, no contrário do que constitui a operação útil.

Teoria da religião parece tratar de uma aposta, e o que Bataille quer afirmar, com essas asserções acerca da destruição dos objetos no plano da consciência clara, é uma vida humana não submissa ao primado da utilidade, em que o homem deixe de ser uma coisa subjugada. É um pensamento “[…

] para quem a vida humana é uma experiência a ser levada o mais longe possível ” (p. 77, grifo original). Somente na consciência de si o homem pode ser soberano, restituindo a totalidade à sua vida. Assim o autor define o que é a soberania: “Soberania designa o movimento de violência livre e interiormente dilacerante que anima a totalidade, dissolve-se em lágrimas, em êxtase e em gargalhadas e revela o impossível no riso, no êxtase e nas lágrimas” (p. 78).

Georges Bataille conclui seu escrito com algumas considerações críticas sobre o método de abordagem feito por ele mesmo, e traz uma lista de referenciais teóricos que o ajudaram a fomentar o seu pensamento acerca do impasse existencial entre ordem íntima e ordem real. Neste referencial teórico destacam-se: Introduction à la lecture de Hegel, de Alexandre Kojéve; Les formes élémentaires de l avie religieuse, de Émile Durkheim; La doctrine du sacrifice dans le brahmanas, de Sylvain Lévi; Essai sur le don, de Marcel Mauss; Di e protestantiche Ethik und der Geist des Kapitalismus, de Max Weber.

Portanto, Teoria da religião é um livro que aborda muitas questões referentes a um objeto de reflexão que não se deixa precisar pela linguagem discursiva. Nessa pretensão, Georges Bataille esforça-se em mostrar um quadro geral coerente, no que se refere ao problema da religião – da situação humana no impasse dos incompatíveis domínios da ordem íntima e da ordem real –, mas que resultou em alguns momentos em imprecisões históricas e imprecisões de referências (p. 84-85). No entanto, o esquema desenvolvido por Bataille em Teoria da religião, “[…] que devia evitar sistematicamente referências precisas” (p. 85), não poderia vir à luz sem uma liberdade de reflexão que o tornou possível.

Torna-se válido retomar que o autor tentou promover uma abertura da reflexão. É um livro que trata de uma experiência de abertura, intenta ser libertador, como diz Bataille acerca de si mesmo e de seu escrito: “Gostaria de ajudar meus semelhantes a se acostumarem à ideia de um movimento aberto da reflexão. Esse movimento nada tem a dissimular, nada a temer” (p. 84).

Anderson Barbosa Camilo-Bacharel em Filosofia (UFRN). Mestre em Estética e Filosofia da Arte (UFOP). Doutorando em Metafísica (UFRN). E-mail: [email protected]

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Linhas de animismo futuro – BENSUSAN (AF)

BENSUSAN, Hilan. Linhas de animismo futuro. Brasília: Editora IEB Mil Folhas, 2017. Resenha de: KANGUSSU, Imaculada. Artefilosofia, Ouro Preto, n.23, dez., 2017.

Animismo refere-se à anima, à alma, à animação. Linhas de animismo futuro, de Hilan Bensusan, apresenta a distinção, presente na história da filosofia, entre os seres considerados animados, aqueles portadores de alma, e os demais, o s inanimados, para discorrer sobre a necessidade de anular tal distinção. De um lado da linha, estamos nós, seres humanos, do outro lado todo o resto. Nós, as animadas, criamos esta distinção e toda engrenagem que precisa ser mantida para que ela funcione.

Diante desta situação, o autor coloca a pergunta sobre a possibilidade de uma política animista capaz de perceber um protagonismo anímico expandido, isto é, capaz de perceber uma animação generalizada e universal: uma cosmopolítica, cuja proposta é a continuação da política por outros meios, na linhagem de Isabelle Stengers e Bruno Latour. Parece-nos importante e necessário observar, como bem o faz Bensusan, que a atual crise com o meio-ambiente e os problemas com o esgotamento da natureza, quase sempre tratados como pano de fundo inanimado, têm encontrado o que há de mais insubmisso e mesmo catastrófico. Em Linhas de animismo futuro, a partir da observação de que o termo “natureza” agrupa nele tanto tudo o que nela não é humano, como a própria fisicalidade do ser humano, vemos como o “naturalismo”, desenvolvido na Europa entre os séculos XVI e XVII, foi o meio de o discurso moderno lidar com a physis, à qual atribuiu uma legalidade constante, exercida pelas “leis da natureza” e deixou de lado a possibilidade de haver nela, na physis, uma genuína animação. Apenas a natureza humana possuiria em sua interioridade, que pode ser diversa, a soberania em relação à natureza exterior. Vale lembrar, ainda que não seja assunto desta obra, a permanência desta mesma posição no pensamento de Kant, no final do século seguinte, onde as leis da natureza são consideradas necessárias ao passo que o sujeito, a partir de sua interioridade, pode adotar as chamadas “leis da liberdade” – sendo capaz inclusive de produzir modificações na natureza, mas não de transformar suas leis. Temos então, na Primeira e na Segunda Crítica, uma separação radical entre Natureza e Liberdade, regidas pela Legalidade e Vontade, respectivamente. Distintamente, no animismo, mesmo possuindo uma fisicalidade diferente do humano, o não-humano também é percebido como portador de uma interioridade e não apenas como fisicalidade “desanimada”, sem interior. Conforme passagem do livro: “Os animismos oferecem outra atitude diante da mesma crise: não é que o ambiente circundante precise ser preservado, ou que nós devamos parar de entrar em conflito com ele, mas que nele há uma demanda de protagonismo” (p.22).

Ao invocarem a possibilidade de a animação ser não apenas humana, os animismos provocam bastante desconforto. Um, dentre os múltiplo s motivos deste fenômeno ressaltado pelo autor, liga-se ao fato de o próprio termo “animismo” talvez evocar as fábulas nas quais elementos naturais – rios, árvores, estrelas, mares, montanhas, ventos – são falantes; ou talvez trazer à tona um tempo mítico quando, segundo Claude Lévi-Strauss, não se fazia distinção entre animais e humanos. Nas palavras de Bensusan, “ele se associa, portanto, à ideia vaga, mas pródiga, de um mundo reencantado” (idem, ibidem). Animismos foram exorcizados e são fantasmagóricos em um mundo desencantado. E o autor considera que eles, de alguma forma, permanecem vivos e se insinuam nos futurismos, nas ficções científicas, nos robôs que se ativam sozinhos, nas possibilidades de dar ânimo às máquinas… O livro vai além desta perspectiva de fábulas e também da certeza vigente – segundo a qual animais podem ser treinados, plantas podem ser cuidadas, pedras são carregadas, mas a conversa só é possível entre seres humano – ao considerar a imagem do conhecimento animista como aquela em que o conhecido, quem conhece e o conhecer é resultado de um encontro, de um trato, de uma conversa. No contexto animista, saber algo parece estar mais próximo de uma negociação do que do contemplar ou estabelecer um ponto de vista sobre algum fenômeno. Neste sentido, o texto remete-nos às conferências de Alfred North Whitehead (publicadas em Modes of Thought. New York: Macmillan, 1938), onde aparece a ideia de a natureza ser portadora de animação. Ao perguntar, na oitava conferência, sobre as evidências de um mundo animado, o filósofo julga encontrá-la na experiência corporal do mundo: a experiência corporal pode revelar o funcionamento animado das associações capazes de dar forma aos processos experimentados. A proposta de Whitehead consiste então em “construir o mundo em termos das sociedades corporais e as sociedades corporais em termos dos funcionamentos gerais do mundo” (em Modes of Thought, op. cit., p.164, citado em Linhas de animismo futuro, p.26). Algo muito distante do procedimento em curso de adapta r os corpos ao mercado. A dinâmica do animismo é a da politização do natural. Assim, ele desafia as determinações constitutivas do olhar sobre o mundo que não trazem à baila o que as determinou como constitutivas. Distinta de outras obras que passam ao largo da (ir)responsabilidade do capitalismo nas determinações do mundo hoje existente, como a de Donna Haraway, por exemplo, nesta a posição política é explícitada. Conforme descreve o autor, “é um livro que se situa à esquerda e pretende explorar uma maneira de integrar bandeiras vermelhas com bandeiras verdes de um modo teoricamente articulado e politicamente fértil” (p.28). Articulação necessária, pois, enquanto as esquerdas parecem estar sempre presas no âmbito do humano, os movimentos ecológicos tendem a considerar o não-humano como instância meramente passiva a ser defendida. “O livro aposta em um avesso do capitalismo que não o entende como uma etapa revolucionária e menos ainda como uma etapa necessária para um futuro almejado”, continuando com as palavras do autor, “quanto às bandeiras verdes, ele [o livro] aposta em uma expansão da agência política contra a persistente tendência da ecologia política de apresentar o não-humano como objeto de tutela” (p.29). Na mesma página, Bensusan declara acreditar que, “até a medula”, o animismo é “anátema do capitalismo”. E na página seguinte, apresenta sua proximidade com a autonomia das sociedades indígenas, presente nas tribos de todo o mundo, ao repetir as insígnias “é melhor pobre virar índio do que índio vir ar pobre”, e “ou a gente vira índio ou vira indigente”.

Quanto à composição, Linhas de animismo futuro traz um breve prefácio, uma introdução, onde fica claro a que veio, e oito capítulos compostos por textos autônomos que dialogam entre si. “Quibungos: a vingança do pó”, texto que compõe o capítulo 4, está publicado na revista ARTEFILOSOFIA 20, cujo tema é “A arte da vingança”. E como este número atual da revista trata das relações entre filosofia e psicanálise, esta resenha termina remetendo-se às considerações feitas por Freud a respeito do pensamento de Empédocles de Agrigento, filósofo da physis, a quem caberia bastante bem o epíteto de “animista”. Empédocles julgava que dois princípios básicos, amor (j i l i a) e discórdia, ódio (n e i k o z), que estão em guerra perpétua um com o outro, dirigem os eventos da vida humana e de todo o universo. Enquanto um deles, amor, se esforça por aglomerar as partículas dos quatro elementos primevos em uma só unidade; o outro, ódio, em contrapartida, procura destruir estas fusões e levar os elementos de volta a seus estados primitivos. Segundo o filósofo grego, há em todas as coisas um elemento que as impele à união, mas há também uma força hostil que as separa, e estes dois impulsos estão envolvidos no embate que produz todo devir e toda destruição. Freud observou que sua própria teoria das pulsões se encontrava tão próxima da teoria de Empédocles que ele sentir-se-ia tentado a sustentar que as duas eram idênticas, “não fosse a diferença de a teoria do filósofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica” (“Die endliche und die unendliche Analyse”, GW 16, p.91; na tradução brasileira, “Análise terminável e interminável” (1937), OC XXIII, p.279). Tendo em vista os animismos, é instigante perceber que Freud considerou o movimento das pulsões humanas semelhante àquele do cosmos, proposto por Empedócles.

 

Imaculada Kangussu-Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, com a tese Leis da Liberdade. As relações entre Estética e Política na Filosofia de Herbert Marcuse (defendida em 2000 e publicada pela Ed. Loyola em 2009) e Mestre em Filosofia pela mesma instituição, com a dissertação Imagens e História: as Passagens de Walter Benjamin (defendida em 1996). Pos-doutorado na School of Arts and Science da New York University sobre o tema Phantasy and Reason. Atualmente é Professora Titular no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto. Desenvolve pequisas na área de Estética e Filosofia da Arte, com ênfase na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e no pensamento contemporâneo dedicado a estas áreas. Coordena o grupo de pesquisa Arte e Conhecimento, é membro do GT Estética e da International Herbert Marcuse Society. E-mail: [email protected]

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L’arte Espansa – PERNIOLA (AF)

PERNIOLA, Mario. L’arte Espansa. Turín: Giulio Einaudi Editore, 2015. Resenha de: VEGA, José Fernández. Artefilosofia, Ouro Preto, n.22, jul., 2017.

La completa mercantilización del mundo del arte y la consolidación de un nuevo panorama donde la especificidad de la categoría “obra de arte” parece haber perdido su antiguo prestigio y nitidez, constituyen los temas centrales de L’arte espansa. La expansi ón a la que hace referencia el título volvió difusa la noción de arte y la proyectó sobre cualquier espacio social. Ya no son claras sus diferencias respecto de la publicidad, la decoración o el diseño industrial. Por otra parte, los artistas se han conver tido en “marcas” y se posicionan en el mercado como figuras del espectáculo. Esta situación es el resultado de un largo proceso que, para Perniola, se inicia a partir de la emergencia del Pop Art. Los artistas se volvieron celebridades, la figura del críti co o del teórico se hundió en la insignificancia y un conjunto de mediadores culturales – galeristas, curadores, coleccionistas, subastadores-se convirtieron en los verdaderos jueces de la legitimidad dentro del mundo del arte.

Desde un plano estético, p areciera que la tesis hegeliana de la “muerte del arte” consigue captar bien las condiciones del presente. Al mismo tiempo, la inflación que sufre el perfil del artista individual impresiona como un hiperbólico triunfo de las concepciones del romanticismo de los siglos XVIII y XIX que privilegiaban la subjetividad creadora. Pero, de manera paradójica, en el nuevo panorama se borró también la diferencia entre artista y no artista, puesto que una de las consecuencias del Pop fue que cualquiera puede autodenom inarse artista sin que la legitimidad de esa pretensión pueda ser cuestionada. Para aspirar a esa categoría ya no es preciso exhibir una trayectoria, sostener una poética, poseer una habilidad artesanal, tener una formación y ni siquiera realizar una obra (el arte conceptual llegó al punto de impulsar un arte sin obra). El mundo del arte está siendo devorado por sus propias contradicciones internas, sostiene Perniola. En el primer capítulo de su libro dedica considerable espacio para contrastar dos episod ios que juzga cruciales para ejemplificar la crisis del arte contemporáneo. El primero fue un proyecto de la galería Saatchi de Londres, una de las más relevantes del mundo en su género, que incorporaba a su página web a cualquiera que dijera ser artista. La propuesta se restringió luego, puesto que para aparecer publicado se debía pasar por un proceso previo de selección. El segundo episodio tuvo lugar en la edición 2013 de la Bienal de Venecia convocada bajo el título: “El palacio enciclopédico”. Su cur ador, Massimiliano Gioni, seleccionó 158 “artículos” (ya no los denominaba “obras”), algunos de los cuales Perniola describe a lo largo de varias páginas. Se trataba de proyectos de todo tipo difícilmente asimilables a lo que convencionalmente se denominab a arte y pretendían ampliar el campo y ofrecer una selección a la vez arbitraria y comprensiva. La idea se inspiraba en el ambicioso plan de un poco conocido estadounidense quien diseñó un museo, nunca construido, donde pretendía exhibir todo el conocimien to humano. El catálogo de la muestra no incluía intervenciones críticas, sino textos de cualquier otro género (narraciones, testimonios, etc). Esta Bienal señaló un cambio de paradigma que, según Perniola, puede compararse con la irrupción del Pop habitual mente asociada a una exhibición de 1964 que tuvo lugar en la galería de Leo Castelli en Nueva York. Esta edición de la Bienal cierra entonces un período que abarcó medio siglo y abre un otro que el autor denomina fringe. En él predominan los contornos borr osos, lo periférico puede ubicarse en el centro en cualquier momento y donde no es preciso ser un artista, mostrar obra o cumplir con los requisitos de legitimación tradicionales.

Ese nuevo período, signado por el populismo cultural y en el que la obra no es una credencial suficiente, despliega a la vez estrategias teóricas de justificación y comerciales de promoción. El anti-arte de las vanguardias históricas se volvió completamente institucional e incapaz de preservar su potencial crítico. Ahora todo pued e ser arte, afirma Perniola en su segundo capítulo, basta con que alguien lo afirme así. Viejas nociones como la de originalidad o belleza han caído en desuso. Contra visiones como la de la socióloga francesa Nathalie Heinrich quien lanzó el concepto de “a rtificación” para indicar la sobrevaloración del arte y su expansión ilimitada (arte de los enfermos mentales, de los niños, de los animales, etc.), Perniola propone la categoría de “artistización” (artistizzazione). Nada es arte en sí mismo. Los esfuerzos filosóficos de la estética para definir el arte y captar su esencia ya no conducen a ningún resultado. Se vuelve preciso dirigir la mirada hacia un proceso cultural en rápido cambio, donde los artistas se designan a sí mismos, el mercado se volvió un acto r central y las obras exigen un acompañamiento hermenéutico sin el cual no pueden sostenerse. Este proceso generó una multiplicación inaudita de ferias, bienales, museos de arte contemporáneo, artistas y tendencias mientras abre la posibilidad para que cualquier creador marginal ocupe posiciones en el campo. El t ercer capítulo del libro gira en torno de las teorías del psiquiatra Hans Prinzhorn (1886-1933) sobre el arte de los autistas y los esquizofrénicos. Perniola conecta estas producciones con el Art Brut defendido por Jean Dubuffet (1901-1985) para quien sólo los marginados sociales y psíquicos podían hacer verdadero arte. En los años 1990 estas concepciones derivaron en distintas corrientes afines, como por ejemplo el Outsider Art. Para Perniola, sin embargo, resulta preciso establecer la diferencia entre el arte de un enfermo mental, encerrado en su propio padecimiento, y el que produce un artista. En el capítulo siguiente – casi una conclusión — se argumenta que con la irrupción de un escenario fringe la distinción entre incluidos y excluidos se desmoronó y carece de sentido. Otra de las curiosas secuelas de la nueva condición del arte alude a la conservación de las obras contemporáneas. Muchas de ellas no sobreviven porque están realizadas expresamente para perimir o fueron elaboradas con materiales barat os. La conservación se volvió documentación, más adecuada para mantener registro de las acciones, performances e intervenciones de todo tipo que caracterizan a un arte en el cual también se revitalizó la idea romántica del fragmento vis-à-vis la obra acaba da predominante en la tradición occidental. El siglo XX que llevó a un clímax las ideas de novedad y actualidad del arte puede dejar como herencia solo ruinas, en claro contraste con el arte de los siglos previos. El arte contemporáneo, señala el autor, se burla de sí mismo y a la vez se burla de los valores estéticos del pasado. Pero esta actitud no puede sostenerse en el tiempo. Su impacto se diluye; se trata de una operación quizá ya agotada por Marcel Duchamp hace ya cien años.

Como balance ambivalente, Perniola considera que el arte contemporáneo es para-político (no auténticamente político, y en esto también encuentra una herencia romántica) y está animado por una ampliación populista de sus fronteras a partir de la cual todo puede ser obra y cualquier a puede llamarse artista. La inversa también resulta válida: nada es arte y nadie un artista. El giro fringe se insinuó ya en las vanguardias históricas del siglo XX, pero tomó verdadero impulso en los años sesenta. La culminación de este proceso, para el autor, se hizo manifiesta en la Bienal de Venecia de 2013.

En un epílogo, el autor comenta la siguiente edición de esa Bienal, que tuvo lugar en 2015 bajo la dirección de Okwui Enwezor, estadounidense oriundo de Nigeria, donde se realizaron lecturas de El Capital de Karl Marx. Allí también proliferaron artistas profesionales, pero en un nuevo sentido: egresados de universidades (de carreras de arte o de otras, como la premiada Adrian Piper, filósofa y autora de diversas obras en la disciplina). Emerge, ento nces, un artista-profesor-intelectual, vale decir, un académico diferente del artista académico que conoció la tradición. Otra nota distintiva es que los artistas provienen de todo el mundo, pero terminan su perfeccionamiento y lanzan sus carreras internac ionales desde los centros representados por EE. UU. y el norte de Europa (Perniola lamenta que Italia ya no figure en la geografía del arte).

L’arte espansa es un ensayo que discute la deriva del arte contemporáneo y se muestra implacable a la hora de denu nciar sus imposturas y su caída en la sociedad del espectáculo y de la cultura comercial. Escrito por un especialista en estética, critica la banalización del mundo del arte y el declive en su seno de todo pensamiento crítico. Sus tesis, animadas por una i ndignación poco novedosa, se pueden discutir, pero indudablemente se encuentran bien argumentadas y fundamentadas en un aparato erudito actualizado. Una evidente virtud de esta obra consiste en la combinación de reflexiones teóricas con asociaciones ligad as a la actualidad del arte y a su historia; pero en ocasiones dicha virtud amenaza con volverse un defecto pues Perniola dedica largas páginas a exponer distintas poéticas o puntos de vista, no siempre indispensables para su argumento. Otro problema del l ibro es que pretende abarcar demasiados fenómenos y esto debilita sus objetivos centrales. En ocasiones deja la impresión de que, siempre manteniendo un discurso a la vez coherente, crítico e informado, el autor salta de un tema a otro sin agotar ninguno.

Perniola no se deja influir por el esnobismo ni hace concesiones intelectuales, aunque su enfoque general no es enteramente original puesto que desde hace años se publican trabajos que embisten contra lo que consideran una nueva superficialidad de la cultu ra visual, ya completamente integrada al giro financiero y a la publicidad centrada en sus agentes antes que en sus realizaciones. L’arte espansa se ubicaría en un terreno intermedio dentro del panorama de la reflexión estética: es crítico pero no está esc rito desde una perspectiva cultural radicalmente conservadora. No comparte el optimismo de muchos agentes del mundo del arte. Ofrece una mirada derivada de un íntimo conocimiento del panorama artístico de la actualidad nada hostil a la teoría sino arraigad a en ella.

José Fernández Vega-Professor na CONICET – UBA. E-mail: [email protected]

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A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa, volume 2 – CHAUI (CE)

CHAUI, Marilena. A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa, volume 2. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: OLIVA, Luís César; LACERDA, Tessa Moura. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.36, Jan./Jun. 2017.

O lançamento do segundo volume de A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa, de Marilena Chaui, conclui um processo de análise e exposição sistemática da filosofia de Baruch de Espinosa, em especial de sua obra maior, a Ética, processo que se confunde com a própria trajetória da Marilena Chaui como docente do Departamento de Filosofia da USP e uma das mais importantes intelectuais brasileiras das últimas décadas. Dedicando-se à pesquisa sobre Espinosa desde os anos 60, Chaui defendeu sua livre-docência, em 1977, já com o título de A nervura do real, um calhamaço em dois volumes que representava, naquele momento, o principal trabalho sobre Espinosa feito em língua portuguesa. Chaui, no entanto, não a publicou de imediato, apesar dos insistentes apelos dos colegas e alunos. Para a autora, faltava ao “tijolo” uma reflexão mais detalhada sobre o quadro amplo da história da filosofia diante do qual a revolução espinosana ficaria mais evidente e compreensível, além de uma análise mais detida da parte i da Ética, que contém os fundamentos ontológicos do sistema.

O que para outros intérpretes poderia ser uma curta introdução histórica transformou-se em um novo livro, de quase mil páginas, reconstruindo não só as referências históricas de Espinosa, mas todo o percurso do espinosismo depois da morte de seu autor. Ao final, coroava o livro uma análise linha a linha da parte I da Ética, cuja solidez e densidade não tem paralelo na literatura internacional. Foi o primeiro volume da Nervura do real, dedicado à imanência, e publicado em 1999. O longo intervalo de 22 anos entre a tese de livre-docência e esta publicação foi marcado por inúmeros outros livros, especialmente sobre o Brasil, mas a reflexão espinosana em curso sempre norteou os escritos de Marilena Chaui, em temas tão variados quanto ideologia ou repressão sexual, o combate à ditadura civil-militar ou o ensino de filosofia. Em todas estas obras, o leitor atento pode encontrar A nervura do real em gestação, ou melhor, em operação.

Feito esse imenso trabalho, a própria autora acreditava que o segundo volume previsto sairia mais rapidamente, até por ser uma retomada da tese de livre-docência, dedicada sobretudo à liberdade. Todavia, aos 22 anos de espera pelo primeiro volume, somaram-se outros 17 para o segundo. A conclusão da obra não aproveitou praticamente nada da antiga livre-docência, integralmente reescrita. Nem poderia ser diferente, considerando que 39 anos de reflexão espinosana, vivência em sala de aula e muitas lutas políticas separam a antiga tese deste novo volume que recentemente chegou a nossas mãos. Os leitores não perceberão apenas o avanço interpretativo em relação à tese original, mas também uma expressiva mudança de tom em comparação com o próprio primeiro volume. Enquanto naquele Marilena Chaui antepunha à apresentação de cada noção espinosana uma larga reconstituição histórico-conceitual, em uma empreitada de imensa erudição, no segundo volume a autora permite-se uma análise mais circunscrita ao texto de Espinosa. Parafraseando a própria autora, enquanto o primeiro volume foi uma discussão com toda a história da filosofia, o segundo volume é uma conversa entre ela e Espinosa. Isto dá ao livro uma fluência que o torna acessível a uma ampla gama de leitores, incluindo aqueles que tenham pouco contato prévio com a filosofia espinosana. No fluxo desta conversa, densa mas extremamente agradável, Chaui conduz o leitor pela integralidade das partes II, III, IV e v da Ética, considerando-se que a parte I já fora sufi – cientemente destrinchada no primeiro volume. Os atuais e antigos alunos reencontrarão nesta escrita muito do ritmo cativante – e ao mesmo tempo conceitualmente rigoroso – das aulas de Marilena Chaui dadas na USP e em outras universidades do Brasil e do mundo.

A fluência do texto, porém, não nos deve enganar. Os desafios propostos pelo livro são de monta e implicam discussões conceituais de extrema sofisticação, frequentemente em oposição à quase totalidade da crítica especializada. Talvez o principal destes desafios já se apresente na primeira parte do livro: a imensa tarefa de demonstrar, contra uma longa tradição de interpretação, a existência de seres singulares na filosofia da substância imanente espinosana. Contra essa tradição interpretativa que remonta ao século XVII, e que a autora denominara, no primeiro volume, “a imagem do espinosismo”, cabe a Marilena Chaui desmontar a falsa aporia que diz ser impossível o singular em uma filosofia na qual só há uma substância.

Esse trabalho é um trabalho espinosano: como Espinosa, Marilena desconstrói o discurso cristalizado e, ressignificando as palavras, mostra como a existência de seres singulares é efeito de uma dupla causalidade, a causalidade da substância e a causalidade da Natureza naturada. Como efeitos determinados em uma complexa rede causal, os seres singulares não existem necessariamente por sua própria essência, mas sua existência é necessária pela causa.

Ora, uma vez afirmada essa necessidade da existência do suingular, coloca-se a segunda questão do Nervura II: é preciso demonstrar como necessidade não se opõe a liberdade. Ser livre, para Espinosa, é ser uma causa não passivamente determinada pelo exterior, mas internamente disposta. É tomar parte na atividade do todo. A concepção que relaciona liberdade e livre-arbítrio é uma concepção imaginária da liberdade. Para demonstrar a existência de coisas singulares que podem ser causas livres, Marilena Chaui inicialmente percorre as obras de Espinosa para mostrar a presença do singular em todas elas. No Tratado da emenda do intelecto, Espinosa afirma que, diferente da razão, a imaginação lida com coisas singulares corporais, e o intelecto lida com as essências das coisas singulares. A imaginação organiza essas coisas singulares como ideias obscuras ou universais abstratos. Mas o intelecto é capaz de conhecer a essência particular afirmativa e, por meio dela, a coisa particular .

Essas afirmações do Tratado da emenda operam em outras obras. No Tratado político, Espinosa afirma que os regimes políticos distinguem- se não da maneira clássica pelo número de governantes, mas porque são essências particulares determinadas: sua causa é o direito natural particularizado pelas relações de força e potência da multitudo (agente político). No Tratado teológico-político, Espinosa trata da essência particular do Estado hebraico, um regime político existente na duração, unindo geometria e um método histórico. O Estado hebraico é uma coisa singular . Sua essência é uma singularidade historicamente determinada. E a Bíblia, por sua vez, é uma singularidade que existe como efeito de uma causa singular, a  sociedade hebraica. Essa análise do Tratado político e do Tratado teológico-político permite, a Marilena Chaui, distinguir no interior da obra de Espinosa essência particular e essência de coisa singular : a  essentia particularis é “o momento em que uma ideia apreende a conexão lógica entre uma essência e suas determinações ou propriedades” (Chaui, 2016, p.32) e a essentia rei singularis é “empregada para assinalar a relação interna entre uma essência e sua existência” (Chaui, 2016, p.32). Essa distinção existe também na Ética: na parte i, os modos da substância são coisas particulares ; na parte II a mente, modo do atributo pensamento, é uma coisa singular, o corpo, modo do atributo extensão, é uma coisa singular . A coisa singular é um modo singular .

As partes I e II da Ética, nas palavras de Marilena Chaui, são um díptico. Assim, a parte I demonstra a existência do que é necessário por sua própria essência, a Natureza naturante e a Natureza naturada. A parte I I, como segundo pano do díptico, concentra-se na Natureza naturada para deduzir a existência dos modos finitos, necessário não por sua própria essência, mas pela sua causa. Por isso, na parte I, por meio da causa de si, Espinosa demonstra a identidade entre essência e existência em Deus; na parte I I, por sua vez, é afirmada a inseparabilidade entre essência e existência nos modos finitos. A essência do modo finito humano não envolve existência necessária, mas são necessários pela sua causa, jamais contingentes ou possíveis (cf. Chaui, 2016, cap.2).

O modo finito é definido, na parte I a Ética, como modo que está em outro e é concebido por outro; a parte II da Ética sublinha a singularidade de um modo que exprime a essência do ser absoluto.

O modo finito humano é deduzido na parte II como corpo e mente que se relacionam. Essa relação pode se dar de forma inadequada (por meio da imaginação) ou de forma adequada (por meio da razão e da intuição). A perspectiva determinante na parte II da Ética é, portanto, a perspectiva epistemológica, mas também a dimensão causal da coisa singular é enfatizada e, ganha ainda mais espaço na parte III, quando Espinosa demonstra que a coisa singular pode ser causa adequada ou inadequada, porque finita; dessa finitude trata a parte IV, e a parte v mostra como a mente pode ser causa adequada e chegar à felicidade.

O singular é uma existência determinada e uma atividade causal, é um indivíduo complexo. Marilena Chaui mostra essa construção da singularidade na Ética de Espinosa. O singular é singular porque é uma determinação finita no interior da complexa rede causal da Natureza. E é finito porque não existe como causa de si, mas é também causa.

Ser parte, em Espinosa, é saber-se parte de um todo e, então, tomar parte na atividade do todo. Cabe ao final da Ética, bem como ao final da Nervura II, mostrar como este tomar parte no todo é um tomar parte na eternidade. Este conceito, na primeira parte da Ética, parecia restrito à existência própria da substância, que segue necessariamente de sua essência. Às coisas singulares, como modos finitos, não caberia mais que a duração, numa contraposição insuperável. Uma das principais novidades de Chaui é explicitar como a Ética, no seu desenvolvimento, vai ampliando o sentido de eternidade, de modo que alcance as próprias coisas singulares enquanto são em Deus. Trata-se de uma eternidade dada desde sempre, pela imanência das coisas a Deus e de Deus às coisas, mas simultaneamente de uma eternidade conquistada pela adequação do conhecimento. Não há contradição nisso porque tal conquista não implica passagem nem transformação radical. O tomar parte no todo significa tornar-se aquilo que já se é. Nas palavras de Chaui, “a eternidade da mente não implica uma transformação de seu ser ou de sua essência; o que muda é o objeto do qual ela é ideia: passa das afecções do corpo na duração à ideia da essência do corpo, essência contida e compreendida como singularidade no atributo extensão e cuja ideia, simultaneamente, está contida e compreendida no atributo pensamento” (Chaui, 2016, p. 571). Em suma, a mente não se torna eterna, ela passa a conhecer que é eterna, e não apenas como se conhece a um objeto externo. Mais que isso, como diz a célebre expressão de Espinosa, nós sentimos e experimentamos que somos eternos.

Ao terminar a leitura do livro de Chaui, podemos olhar para trás e ver com toda a clareza o processo de concretização do que havia sido demonstrado nas primeiras páginas. Não só a singularidade não é incompatível com a imanência, mas só se realiza plenamente como liberdade quando percebe esta imanência por meio da participação ativa nela. Esse processo de concretização de si como ser autônomo, livre e feliz não é um processo meramente cognitivo, mas simultaneamente afetivo. Por isso, também com afeto olhamos para a tese de livre-docência, de 77, ou para os primeiros estudos espinosanos de Chaui, nos anos 60. Tudo já estava lá. Como já estava no mestrado Merleau-Pontyano, no debate sobre a democracia nos anos 70, na criação do PT em 80, etc. Mas agora, com a publicação do segundo volume da Nervura do Real, tudo isto ganha um sentido que não podia ser completamente transparente naqueles momentos. Trata-se de uma única Obra, que se confunde com a maneira de viver e de filosofar de Marilena, inseparáveis entre si e in – separáveis do pensamento de Espinosa.

Referências

CHAUI, Marilena (2016). A nervura do real II. Imanência e liberdade em Espinosa . São Paulo: Companhia das Letras.

Luís César Oliva – Professor Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Tessa Moura Lacerda – Professora Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Filogênese na metapsicologia freudiana – CORRÊA (C-FA)

CORRÊA, Fernanda Silveira. Filogênese na metapsicologia freudiana. Campinas: Editora Unicamp, 2015. Resenha: SILVEIRA, Léa. Freud e o peso do gelo. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.22, n.1, jan./jun., 2017.

Su, straniero, ti sbianca la paura!

E ti senti perduto!

Su, straniero, il gelo che dà foco,

che cos’è?

(Turandot, ópera de G. Puccini, libreto de G. Adami e R. Simoni)

Conhecemos bem a advertência com que V. Goldschmidt encerra seu ensaio sobre o tempo na interpretação de sistemas filosóficos, aquela que se refere ao recurso a textos póstumos no estudo da história da filosofia. Para se situar no tempo lógico e assim pretender alcançar o movimento e a estrutura do pensamento, o intérprete deve privilegiar a “obra assumida” e se precaver contra o perigo de camuflar a obra publicada a partir de argumentos apenas manuscritos. “Notas preparatórias, onde o pensamento se experimenta e se lança sem ainda determinarse”, ele escreve, “são léxeis sem crença e, filosoficamente, irresponsáveis; elas não podem prevalecer contra a obra, para corrigi-la, prolongá-la, ou coroá-la, e desse modo, falseá-la” (Goldschmidt, 1970, p.147). Ora, nenhum preceito poderia talvez ser mais equivocado, em termos de método de leitura, quando se trata de ler Freud. Se bem que seja controversa a possibilidade de aplicação de uma metodologia estrutural stricto sensu à obra freudiana, certo é que, concordando-se ou não com tal possibilidade, ninguém negaria hoje a importância de se considerar o famoso Projeto de uma psicologia, seja qual for o viés de leitura que se imprima ao lugar dessa consideração, para a compreensão do pensamento de Freud. Quer se trate de traçar a gênese dos conceitos da metapsicologia, de recuperar o movimento pelo qual Freud direcionou seus esforços iniciais para conferir inteligibilidade à neurose, ou mesmo de compreender algumas das diretrizes implicadas em sua ontologia do psíquico, nenhuma dessas discussões filosóficas maiores relativas à psicanálise poderia hoje, é seguro dizer, passar ao largo desse rascunho de 1895, descoberto na correspondência endereçada a W. Fliess e publicado pela primeira vez apenas em 1950, mais de dez anos após a morte de Freud. Muito provavelmente essa afirmação seja tomada como algo bastante trivial. O que talvez não seja trivial ou muito veiculado é que temos desde 1985 acesso a um segundo rascunho póstumo de Freud (1987). Ou, à guisa de afirmação menos inflada, talvez não seja muito conhecido o alcance do conteúdo desse segundo rascunho em sua obra, o que coloca, por si só, uma questão curiosa e bem legítima: será que há algo nele que incomoda os leitores de Freud? Conteria ele elementos de um pensamento que não se quer reconhecer como freudiano? Não pretendo responder a essa pergunta aqui, mas fato é que não é comum ver as pesquisas sobre a teoria freudiana, mesmo aquelas empreendidas no âmbito da filosofia, enfrentarem a tão espinhosa hipótese filogenética exposta sistematicamente neste que seria o décimo segundo artigo metapsicológico, mas presente de um modo mais ou menos fragmentado ao longo de toda a obra.

Insisto no ponto. Freud é um pensador célebre, entre tantas coisas, por ter escrito obras ousadas. Apesar disso, por vezes nos esquecemos do que deve ter sido, para um neurologista formado no século XIX no modelo anátomo-patológico da Universidade de Viena, publicar um livro voltado para a defesa da existência de um sentido nos sonhos e para a apresentação de um método que permitiria alcançá-lo. Ou, para alguém que tentava instaurar e consolidar um novo campo de saber e de prática, apresentar em 1905 não apenas uma defesa da existência da sexualidade infantil (o que já não era original), mas a defesa de que as características dessa sexualidade seriam distintas da sexualidade adulta, sustentando que os comportamentos sexuais desviantes – chamados à época “perversos”, listados e classificados na Psychopathia sexualis, de Krafft-Ebing 1 – seriam, não uma degenerescência, mas nossa condição de partida. O que dizer então da defesa de que a origem da cultura residiria no assassinato do pai de agrupamentos humanos arcaicos e, por essa via, de que o sentimento de culpa estaria instalado no cerne daquilo que somos hoje e desde sempre como civilização? Reconhecido o caráter prima facie insólito destas e de tantas outras formulações freudianas, esse reconhecimento não nos impede de dizer que aquela dentre as teses de Freud que tem todos os pré-requisitos para ser qualificada com o virtuosismo desse apanágio, o da ousadia, e que está profundamente vinculada a esta última pergunta (sobre a origem da cultura), permanece pouco debatida.

A hipótese filogenética é todavia onipresente em sua obra, como uma espécie de novelo cujo fio poderia nos ajudar a sair do labirinto ou fazer com que nos percamos ainda mais nele.

Isso não significa, obviamente, que não haja uma bibliografia relevante sobre o tema. Ela apenas não deixa de soar marginal quando temos em vista o vigor e a amplitude da pesquisa que se faz sobre a psicanálise freudiana. No próprio momento em que o rascunho veio à luz, I. Grubrich-Simitis, que o descobriu 2, transcreveu e editou, o fez ser acompanhado de um importante ensaio (1985), mais de apresentação e contextualização do que de interpretação. Em datas anteriores à descoberta do manuscrito, J. Laplanche e J.-B. Pontalis (1988) dedicaram à questão das fantasias originárias, que é uma questão vinculada à hipótese filogenética, um comentário que está no centro de toda uma compreensão da reflexão freudiana e F. Sulloway (1992) trouxe um encaminhamento que se distancia bastante da leitura dos psicanalistas franceses numa tentativa de fortalecer a defesa de que Freud seria, antes de tudo, um biólogo. Entre nós, o texto de L. R. Monzani (1991) é um elemento incontornável do debate e o monumental Freud, pensador da cultura, de Renato Mezan (1985), apresenta elementos e análises que convergem para a tese de que a hipótese filogenética deve ser compreendida, antes de mais nada, como uma fantasia de Freud, fantasia que seria, de seu ponto de vista, prescindível para a teoria psicanalítica.

Mas a nenhum desses textos pode ser atribuído o objetivo de explorá-la até o fim e de uma maneira interna – isto é, considerando-se as premissas e as elaborações que encontramos na própria pena de Freud. Esse é, a meu ver, o principal mérito do livro A filogênese na metapsicologia freudiana : a autora, Fernanda Silveira Corrêa, enfrenta essa questão e o faz até extrair as últimas consequências das teses assumidas por Freud a esse respeito, sem deixar de vinculá-las a um contexto teórico mais vasto.

O que é a hipótese filogenética? Grosso modo, trata-se do lugar para onde converge a ideia de que as neuroses testemunham o desenvolvimento psíquico da espécie humana, ou, da raiz e fundamento, para emprestar uma expressão do breve ensaio sobre Totem e tabu de G. Lebrun, da seguinte ideia: “o primitivo é o arquivista do original, o neuropata é o seu hermeneuta ” (Lebrun, 1983, p.98). No manuscrito encontrado em 1983, ela é chamada a responder pela origem da fixação da libido, a qual constitui uma disposição que contribui decisivamente para a determinação da neurose. Ocorre que Freud sustenta que essa fixação tanto pode ser contingente, resultante de uma história específica e individual, quanto inata. A necessidade de considerar a possibilidade de a fixação ser inata pode ser compreendida lendo-se outro texto de Freud, que é o relato do caso clínico do Homem dos Lobos. Tratase ali, entre outras coisas, da tentativa de sustentar que o coito entre os pais fora observado pela criança, tentativa que Freud arremata com um non liquet ao qual se sucede a afirmação de que ela, a observação, caso não tenha tido lugar na vida do indivíduo, foi, certamente, herdada3 Mas, então, indaga-se Freud, se a fixação pode ser inata, seria porventura possível perguntar-se pelo modo como ela se constitui exatamente como herança? Por motivos que precisariam ser considerados em outro lugar, Freud quer mostrar que o próprio inato é adquirido – se não pelo indivíduo, então pela espécie. Eis como ele apresenta esse ponto:

Onde se leva em consideração o elemento constitucional de fixação não se afasta o adquirido: ele retroage para um passado ainda mais remoto, já que se pode justamente afirmar que disposições herdadas são restos de aquisições dos antepassados. Com isso, chega-se ao problema da disposição filogenética atrás da individual, ou ontogenética, e não há contradição quando o indivíduo adiciona às suas disposições herdadas, baseadas em vivência anterior, as disposições recentes derivadas de vivências próprias (Freud, 1987, p.71).

Partindo dessa ideia, ele tenta estabelecer um paralelo entre duas séries, que são a sequência cronológica conforme a qual as neuroses surgem na vida individual (algumas eclodem caracteristicamente na primeira infância, outras na puberdade, por exemplo) e uma sequência filogenética que instalaria aquelas fixações constitutivas das disposições e que, por sua vez, seria dividida em duas gerações de indivíduos: uma que teria vivido o advento da 4 era glacial e outra posterior que teria se organizado psiquicamente por referência ao pai opressor da horda primitiva. Seriam tais os momentos desta sequência filogenética: 1a era glacial que interrompe a convivência amistosa com o meio ambiente, produzindo-se a angústia; 2a limitação da procriação decorrente da escassez de alimentos; 3o desenvolvimento da inteligência e da linguagem e a convergência dessas novas capacidades para o pai opressor; 4a efetiva castração dos filhos pelo pai; 5o estabelecimento de um laço erótico homossexual entre os filhos que teriam conseguido escapar ao domínio paterno; 6o assassinato do pai. Esses acontecimentos, vividos por nossos antepassados mais distantes, teriam sido transmitidos, como traços de memória (Freud, 2008, p.96), ao longo das gerações (sem que se encontrem, aliás, nem em Darwin nem tampouco em Lamarck, argumentos em favor da possibilidade dessa herança). Nossa neurose de cada dia seria o signo mais palpável dessa improvável transmissão.

  1. S. Corrêa mostra em seu livro que Freud associa aspectos centrais de sua teoria às heranças filogenéticas, tais como a vinculação entre prazer sexual e angústia, o caráter perverso-polimorfo da sexualidade humana, a erotização da dor e a disposição libidinal passivo-masoquista, o amor homossexual e o narcisismo masculino, a disposição para a mania e a melancolia. A serviço dessa investigação, a análise de cada fase filogenética exige que a autora confronte o rascunho com diversos outros textos de Freud dedicados às problemáticas que são centralizadas a cada vez, o que resulta na argumentação geral de que ele é coerente com o restante da obra, ou, dito de outro modo, de que o manuscrito não está nela como um corpo estranho. No desenvolvimento dessa conexão, a autora constrói diversas soluções próprias, que transcendem a letra de Freud sem transcenderem o espírito de seu pensamento. Vale-se em muitos momentos para isso de uma aproximação entre Freud e Nietzsche. É interessante acompanhar o modo pelo qual ela recorre à perspectiva genealógica para pensar a tensão entre a psicologia do pai primitivo e a da segunda geração, situando a psicologia dos filhos, estruturante da vida coletiva, como uma psicologia de ressentidos.

Destaco outro feito importante alcançado pelo livro de F. Corrêa. Além de indicar consistentemente a relevância do manuscrito sobre a filogênese para a compreensão de teses freudianas centrais, ele traça um vínculo teórico entre este rascunho e aquele outro de 1895, o rascunho do Projeto…

O caminho que permite à autora fazer isso passa pelo seguinte. Para sustentar que no ser humano a libido se transforma em angústia conforme um processo que, em larga medida, barra a satisfação sexual, será necessário, do ponto de vista da teoria do aparelho psíquico, supor um caminho de esforço de retomada da própria possibilidade dessa satisfação.

Quando Freud monta no Projeto…

um aparelho determinado empiricamente pelas próprias representações, isso corresponderia a uma forma de pensar o que poderia ser esse caminho, considerando-se que ele não pode ser determinado a partir de uma dimensão biológica da qual a sexualidade humana exatamente se afastou. O livro de F. S. Corrêa encontra uma articulação engenhosa – tanto mais que em 1895 a sexualidade infantil não está presente no horizonte teórico de Freud – entre, de um lado, esse processo de passagem de uma sexualidade passiva (pré-humana) que seria dada biologicamente e uma sexualidade objeto de uma construção representacional, e, de outro lado, o processo de construção ontogenética do aparelho psíquico que está no centro das preocupações do Projeto…

e que é um processo de acordo com o qual a alucinação (passiva) envolvida nas vivências originárias de satisfação e de dor deve ceder espaço para a ação. Escreve a autora, nesse sentido:

Freud então supõe duas coisas: um aparelho, por um lado, determinado por suas experiências de satisfação, passivo, no sentido de que se satisfaz com suas marcas das experiências; por outro, que tem de resgatar sua atividade, agora, não mais determinada pela ação biológica, mas pelas próprias representações. (Corrêa, 2015, p.148)

A percepção dessas relações permite à autora enveredar seu comentário para a exploração das semelhanças entre as duas fases da “história” 5 filogenética e as teorias da vivência de satisfação e da vivência de dor, bem como as consequências de se projetar retroativamente a sexualidade infantil perversa – e então o próprio conceito de fantasia – sobre as teses do Projeto…

Tudo isso lhe permite problematizar uma leitura mais convencional da teoria freudiana da cultura (muito pautada em O mal-estar na cultura ) na medida em que temos aí elementos para compreender que, para Freud, não é a cultura que conduz à inibição da sexualidade infantil, mas o contrário: “é a inibição da sexualidade infantil que propicia a energia para a civilização” (Corrêa, 2015, p.150). Essa inibição é pensada como algo determinado filogeneticamente. Isso significa que, na perspectiva freudiana, o ato sexual genital só é possível do ponto de vista psíquico como resultado da incidência dos poderes reativos (herdados) da vergonha e da repugnância. Sem eles, a sexualidade humana – na medida em que se encontrasse um caminho, para nós hoje insondável, para a reprodução da espécie – teria permanecido perversa polimorfa, tal como exigido pela era glacial.

Não apenas a inibição da sexualidade infantil teria origem filogenética, mas a própria sexualidade infantil em sua peculiaridade. Na primeira fase da sequência filogenética, explica a autora, a era glacial dá origem à angústia de anseio.6 “O eu, ameaçado em sua existência (…) absteve-se do investimento dos objetos sexuais e transformou a libido sexual em angústia, temendo ainda mais o real. Não se trata de uma perda do objeto, mas sim da abstenção do investimento deste” (Corrêa, 2015, p.110). Freud se referiria aqui, desse modo, a uma perda que seria anterior à própria vivência de satisfação e diria respeito a uma ruptura inaugural do ser humano com a função sexual biológica, estabelecendo-se um laço intrínseco entre pulsão 7 sexual e angústia. Essa ruptura inicial, filogenética, teria condicionado as fases subsequentes na história da espécie e possibilitado o próprio desenvolvimento psíquico, aí incluída a inscrição psíquica de objetos aos quais a libido viria se vincular. O que está em jogo aqui é, evidentemente, uma ruptura radical com a ideia de instinto. Mas a autora afirma que, por ter dado lugar a novas formações, a disposição produzida nos tempos glaciais teria se tornado permanente e, de uma disposição temporária, então contextualizada na era glacial, teria se tornado uma disposição herdada: o afastamento da ordem biológica “possibilitou novas formações (…) que serão descritas nas próximas fases da história filogenética, e que, por isso, de temporário se tornou permanente, se tornou disposição herdada, inata, presente em todos os seres humanos.” (Corrêa, 2015, p.125). A meu ver, isso parece trazer três dificuldades: 1Ora, o fato de x dar lugar a y não constitui, por si só, argumento para a defesa da permanência de x. Certamente, a construção é feita de modo retroativo: se as neuroses são tais e tais, as disposições que se tornaram permanentes foram estas.

Mas o raciocínio de Freud não parece fornecer uma justificativa para a transformação de algo temporário em algo permanente. 2Em se assumindo os pressupostos que Freud assumiu, por que a herança não teria, por sua vez, se alterado ao longo da própria história da espécie? Por que as disposições teriam permanecido as mesmas ao longo de dezenas de milhares de anos? Especialmente, por que teriam permanecido as mesmas após o término da glaciação? 3-A tese da herança não retorna à biologia? Como a herança poderia, ela mesma, não ser um fato biológico? Aquilo que se tratava aqui de alijar não retorna na posição mesma de fundamento? Se toda a questão é o afastamento da sexualidade humana da biologia, a hipótese filogenética não acaba exigindo um retorno a ela? Tudo indica que nos deparamos, ademais, com um jogo de recuos na argumentação de Freud. Se as disposições são herdadas, se todas elas estão presentes em todos os indivíduos divergindo entre eles apenas por uma questão de intensidade, se é a intensidade que, por sua vez, determina a escolha da neurose, obviamente torna-se necessário perguntar o que determinaria a intensidade da disposição.

Lebrun sugere em sua leitura, aliás também inspirada em Nietzsche, que a repetição da filogênese pela ontogênese – “herdada” por Freud de E. Haeckel e então traduzida pelo primeiro para disposições libidinais e traços psíquicos – nunca passa, na reflexão do psicanalista, de um pressuposto, por maior que seja sua potência heurística. Um pressuposto que precisa ser explicitado enquanto tal. Porque reconhecê-lo assim nos permite bem situar uma questão como a seguinte: em que medida a hipótese filogenética freudiana (assim como a argumentação de Totem e tabu ) constitui uma estratégia pretensa e explicitamente natural e tacitamente metafísica para a reprodução desse paralelo constitutivo da história do Ocidente entre, de um lado, masculino, pensamento e cultura, e de outro lado, feminino, afeto e natureza? Freud não opera aqui de fato, como sustenta Lebrun, uma sobreposição entre valores sócioculturais e normas vitais? Todos os pontos aqui ligeiramente levantados convocam a uma reflexão filosófica sobre a obra de Freud (e com ela). Sua discussão exige uma leitura adequada do rascunho do décimo segundo artigo metapsicológico. Para tal tarefa, encontramos, de uma maneira muito viva, elementos cruciais no livro de F. S. Corrêa, livro que contribui com brilho para a continuidade de uma tradição brasileira de estudos localizados na interseção entre filosofia e psicanálise. Ele é ferramenta sofisticada da qual o leitor brasileiro pode se valer, de modo privilegiado, para medir por si mesmo o peso que Freud atribui ao gelo na determinação e na compreensão dos fenômenos psíquicos.

Notas

1 Obra publicada em 1886.

2 Em 1983, na correspondência de Freud com S. Ferenczi, que foi quem sugeriu inicialmente os pressupostos da hipótese filogenética

3 Lemos: “As cenas de observação do ato sexual entre os pais, de sedução na infância e de ameaça de castração são indubitavelmente patrimônio herdado, herança filogenética, mas podem também ser aquisição da vivência individual. (…) O que vemos na história primitiva da neurose é que a criança recorre a essa vivência filogenética quando sua própria vivência não basta. Ela preenche as lacunas da verdade individual com verdade pré-histórica, põe a experiência dos ancestrais no lugar da própria experiência” (Freud, 2010, pp.129-30).

4 Freud parece supor apenas uma.

5 O início do livro traz uma discussão voltada para justificar a escolha de caracterizar a hipótese filogenética como história, em vez de mito.

6 É a tradução da autora para Sehnsuchtangst.

7 F. S. Corrêa prefere “impulso” para verter Trieb, embora empregue por vezes o adjetivo “pulsional

Referências

FREUD, S. (1987). Neuroses de transferência: Uma síntese (manuscrito recémdescoberto) ([1915]1985). Tradução de A. Eksterman. Rio de Janeiro: Imago.

____________. (2008). “Moisés y la religión monoteísta” (1939 [1934-38]) In: Obras completas, volume XXIII. Traducción de J. L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu.

____________. (2010). “História de uma neurose infantil (‘O homem dos lobos’, 1918 [1914])”. In: Obras completas, volume 14. São Paulo: Companhia das Letras.

GOLDSCHMIDT, V. (1970). “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos”. In: A religião de Platão (1949). São Paulo: Difusão Europeia do Livro.

GRUBRICH-SIMITIS, I. (1987). “Metapsychology and metabiology – On Sigmund Freud’s draft Overview of the transference neuroses”. In: Freud, S. A phylogenetic fantasy – Overview of the transference neuroses. ([1915]1985). Translated by A.Hoffer and P. T. Hoffer. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.

LAPLANCHE, J. & Pontalis, J.-B. (1988). Fantasia Originária, Fantasias das Origens, Origens da Fantasia (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

LEBRUN, G. (1983) “O selvagem e o neurótico”. In: Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense.

Mezan, R. (1985).Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense.

Monzani, L. R. (1991). “A fantasia freudiana”. In: B. Prado Jr. (ed.). Filosofia da psicanálise. São Paulo: Brasiliense.

SULLOWAY, F. (1992).Freud biologist of the mind – Beyond the psychoanalytic legend. Cambridge, Massachusetts/London: Harvard University Press.

Léa Silveira – Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais. E-mail: [email protected]

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Impasses da democracia no Brasil – AVRITZER (NE-C)

AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Resenha de: SZWAKO, José; SANTOS, Fabiano. Dos impasses aos desafios de reconstrução da democracia no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, v. 35, n.3, Nov., 2016.

O contexto sociopolítico brasileiro pós-2013 colocou dilemas práticos e teóricos incontornáveis para nossas ciências sociais. Como chegamos até aqui? Quais atores, instituições e processos levaram ao impeachment da presidente Dilma Rousseff? Dispomos ainda de categorias e dimensões de análise adequadas à complexidade desse evento? A sucessão presidencial foi legítima? Foi, ao menos, legal? Olhando para trás, o encanto de parte dos analistas com os protestos de junho de 2013 virou perplexidade, quando não o triste pesadelo, de muitos: haveria, porém, continuidade entre 2013 e 2016? E, mirando-se adiante: quais são os reflexos do Regresso (para lembrar o opúsculo de Wanderley Guilherme dos Santos)1 encarnado no golpe parlamentar de agosto de 2016 em nossa prática política?

Como se vê,não são poucas as questões a serem urgentemente por nós encaradas e respondidas. É no rol desses dilemas que se inscreve Impasses da democracia no Brasil, de Leonardo Avritzer. Escrito no final de 2015, o livro traz a marca das tensões sociais e partidárias, expressas de modo mais evidente no ranço antipetista e antigovernista dos protestos massivos de março, abril e agosto daquele ano; “o governo da presidenta Dilma Rousseff passa por uma forte crise da qual não é possível saber se sobreviverá” (p.109) – como de fato não sobreviveu. Na pequena resenha que se segue,tentaremos tirar proveito do conhecimento prévio do evento.

O ar de análise de conjuntura do livro não faz dele menor porquanto conjuga em estilo acessível política e teoria política. Isto é, visa dar respostas teoricamente adequadas a questões da ordem do dia vis-à-vis alguns dos diagnósticos disponíveis sobre a qualidade da democracia brasileira, especialmente os elaborados por Paulo Arantes e Marcos Nobre,que tendem a enfatizar supostos déficits democráticos.

Impasses é crítico de feição frankfurtiana. Sua postura não se rende às páginas das sempre evocadas insuficiências, sejam elas institucionais ou culturais, brasileiras. Se nosso sistema político tem falhas, e Avritzer tem hipóteses robustas para mostrá-las, cabe ao analista completar sua crítica,quer dizer,fazer o diagnóstico das limitações do sistema vigente impreterivelmente seguido das fissuras e alternativas também por ele trazidas à baila. Destrinchado ao longo do livro, o diagnóstico se distribui em cinco elementos, quais sejam:

i) os limites do presidencialismo de coalizão, isto é, a deslegitimação da forma de fazer alianças, característica da democracia brasileira desde 1994; ii) os limites da participação popular na política, que tem crescido desde 1990 e é bem-vista pela população, mas não logra modificar sua relação com a representação; iii) os paradoxos do combate à corrupção, que avança e revela elementos dramáticos da privatização do setor público no país, os quais terminaram por deslegitimar ainda mais o sistema político; iv) as consequências da perda de status das camadas médias que passaram a estar mais próximas das camadas populares a partir do reordenamento social provocado pela queda de desigualdade; v) por fim, o novo papel do Poder Judiciário na política[p. 9].

Avritzer articula em pente-fino essas dimensões de seu diagnóstico somando,no terceiro capítulo,as causas e efeitos do ciclo de protestos de 2013.Sob risco de simplificar seu argumento,poderíamos dizer que a imbricação de uma dinâmica institucional de alianças (fundamentalmente ambivalente dado que virtuosa e custosa) com a percepção de corrupção (generalizada porém enviesada em desfavor do Partido dos Trabalhadores) opera no sentido de deslegitimar, aos olhos de uma classe média reconfigurada devido às políticas distributivas pós-2003, o sistema político como um todo, mas, mais danosamente, o próprio PT.Ao par presidencialismo de coalizão e corrupção,é somada uma análise da limitação das formas institucionais de participação, que,embora tenham deixado sua marca em parte das políticas sociais, não chegaram a permear áreas estratégicas do Estado brasileiro,levando a uma dupla “ruptura” (p. 66) no campo das mobilizações do país – à esquerda e,como se nota desde 2013,também à direita.Complexo, esse diagnóstico é complementado por uma saída de tom republicano: ampliar, aprofundar e tornar mais eficaz a participação popular – um pacote institucional que, como hipótese e potência, melhoraria tanto um suposto déficit de representação quanto o combate à corrupção. “Assim, a primeira agenda importante de um processo de reorganização do sistema político poderia ser uma extensão da participação social para a área de infraestrutura com o objetivo de democratizar essas obras e torná-las mais transparentes” (p. 121).

Três tópicos nos parecem centrais na argumentação contida no livro, a saber, o presidencialismo de coalizão, a herança de 2013 e os paradoxos resultantes da política de combate à corrupção dos três últimos mandatos democraticamente eleitos.

Sobre o presidencialismo de coalizão, parece-nos que Avritzer adota e reproduz uma definição mais ampla do conceito, definição que acaba por imputar a esse modelo institucional um grande conjunto de vícios do qual a política brasileira seria vítima. Falamos de definição mais ampla porque,em verdade,o termo presidencialismo de coalizão, numa visão mais restrita e, a nosso ver, mais precisa, tal como utilizado na literatura institucionalista stricto sensu, denota tão somente a conjugação da separação de poderes,característica do sistema presidencial, com o multipartidarismo, comumente derivado da adoção do sistema proporcional para o preenchimento das cadeiras no Legislativo.

Aqueles que criticam nosso modelo institucional, chamado de presidencialismo de coalizão, estabelecem uma espécie indevida de relação de causalidade entre a dinâmica de tal modelo e uma prática política que não só corrói os princípios, digamos, programáticos dos partidos que lideram a coalizão governamental como, no limite, compromete a legitimidade do sistema institucional em seu conjunto (ver p. 38 e seguintes). Ora, segundo nosso ponto de vista, e nisso seguindo análises mais recentes sobre o presidencialismo de coalizão,2 nada autorizaria, de uma perspectiva conceitual ou empírica, colocar na conta do modelo fenômenos políticos complexos e reconhecidamente ruins, tais como corrupção, descrença popular e profusão de escândalos aproveitados, e não raro produzidos, pela mídia.

Aqui é fundamental discernir dois elementos que são frequentemente sobrepostos na análise política:atores e instituições.Embora empiricamente e em todos os casos seja difícil identificar onde um ou outro esteja preponderando no desdobramento da conjuntura política, não se pode inferir a legitimidade ou eficiência das instituições a partir do uso que delas fazem os principais atores em cena. Em nossa avaliação, o exemplo brasileiro recente mostra exatamente isto: desde fins de 2014, a cada passo da conjuntura, e à medida que as crises econômica e social se aprofundavam, as cúpulas do PMDB e do PSDB se articulavam e se utilizavam das regras do jogo tendo em vista construir as condições ótimas para a consecução do golpe parlamentar que redundou no impeachment. Nada inerente ao desenho institucional brasileiro permitiria prever um comportamento desestabilizador assim assumido, desde o resultado das eleições daquele ano, por uma oposição até aquele momento leal à democracia e por lideranças de um partido até aquele momento parceiro na coalizão.

Rótulo alternativo para o que vem ocorrendo na política brasileira é amalgamado na ideia de uma suposta crise de representação. É inegável a existência de insatisfação de parte significativa das elites judiciárias, midiáticas, empresariais e de setores importantes das classes médias com os marcos centrais da democracia tal como consagrados na Constituição de 1988. Todavia, concomitantes à expressão de tais sentimentos, a ampliação e a pluralização da capacidade de representação externa ao Congresso,mas no interior do Estado brasileiro,têm sido ressaltadas em diversos trabalhos atinentes às interações Estado-sociedade.3 Se a inclusão de temas e atores da sociedade civil nos processos decisórios é alvo de crítica, como bem mostra Avritzer no livro, isso não infirma o diagnóstico – pouco conhecido, diga-se de passagem – de que as políticas públicas têm sido, desde a redemocratização,cada vez mais interpeladas e modificadas por organizações e movimentos sociais. Em suma, a agenda de pesquisa mais atual sobre os efeitos da institucionalização da participação denota não a limitação, mas antes a indagação sobre a efetividade das instituições participativas no Brasil.4

Enfim, e não obstante a riqueza da análise de Avritzer, entendemos que nada há de conclusivo, seja em torno do diagnóstico da corrosão institucional inerente ao presidencialismo de coalizão e por ele supostamente produzida, diagnóstico de resto conveniente a versões legitimadoras do golpe parlamentar, seja ainda no que tange à existência de uma crise de representação afetando o quadro político institucional brasileiro.

Outro tópico central no ensaio de Avritzer consiste no impacto do ciclo de protestos de 2013 sobre o processo político brasileiro. Quanto a esse tópico, parece-nos fundamental notar, primeiramente, que os significados e raízes da convulsão social experimentada em junho de 2013 ainda estão para ser descobertos e explicados. Nesse quesito, fatores sociais e institucionais, entre os quais destacaríamos a atuação dos agentes repressivos do aparelho de Estado, se misturam, dificultando um diagnóstico claro e consistente do perfil dos manifestantes e, portanto, da manifestação em jogo. A contribuição de Avritzer, aqui, caminha no sentido de mostrar como operou uma espécie de quebra do monopólio exercido pelas forças civis e políticas de esquerda sobre a mobilização de rua em nosso país. O desafio, em nossa visão, é explicitar claramente em que medida aquela profusão de bandeiras e vozes realmente se articula com os vetores recentes e regressivos assumidos pela política institucional. Nesse sentido, Impasses se torna de saída leitura incontornável para quem quiser entender, por exemplo, se e como se entrelaçam 2013, a acirrada disputa presidencial de 2014 e o triste episódio do golpe parlamentar.

Por último, e no que entendemos ser um dos pontos altos de Impasses, a questão do combate à corrupção e dos poderes a ele ligados. A citação é longa, mas necessária e algo premonitória:

A forma como no primeiro semestre de 2015 o Poder Judiciário colocou o Executivo na defensiva com práticas políticas questionáveis, como o vazamento seletivo de informações da Operação Lava-Jato e um abuso de prisões preventivas e de delações que têm como objetivo desestabilizar o campo político,mostra o perigo de uma solução para os impasses que não transite pelos poderes constituídos pelo voto popular [p. 116].

Tal intervenção, politizada e espúria, de agentes e instituições de controle, sejam ou não do Judiciário, frente a órgãos do Executivo e do Legislativo nos remete diretamente ao alerta imprescindível dado por Max Weber5 a seus contemporâneos da República de Weimar: ao funcionário público não cabe a disputa política nem a respectiva convicção. As alçadas do funcionário e do político profissional são distintas, assim como são distintas as responsabilidades estatuídas a cada posto. Que a política de seu país se tornasse refém da burocracia era um dos maiores temores de Weber – essa lição não pode ser hoje olvidada por aqueles que, como nós e Avritzer, entendem o potencial nefasto contido numa instância de poder que,em nome do combate à corrupção, atua de modo ilegal.

Ironicamente, se podemos falar de crise institucional de nosso modelo político, esta não emerge do presidencialismo de coalizão. A leitura de Impasses é mais uma confirmação,a nosso ver,de que graves distorções atingem o desenho mesmo de nossas instituições de controle, tal como inscrito na Constituição de 1988. Nesse particular, as recentes intervenções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE),por exemplo, nas regras eleitorais e partidárias, bem como os ataques seletiva e partidariamente orientados do Ministério Público contra lideranças políticas ressoam uma das mais famosas preocupações madisonianas: quem controla os controladores? A ingerência administrativa sobre a disputa política exige não só sua crítica teórica. Exige, antes, a ação política daquele que é, ao fim e a cabo, o principal afetado pela instabilidade do jogo democrático judicialmente instilada e também o único soberano desse mesmo jogo: a vontade popular. Nesse sentido, e aprofundando uma pista dada por Avritzer, dois caminhos necessários e convergentes para a pacificação do Judiciário e das instâncias de controle no Executivo são o aprofundamento de mecanismos de controle tanto institucionalizados como externos às instituições.

A despeito das eventuais discordâncias interpretativas, Impasses se coloca como obra seminal nos projetos de reconstrução da democracia brasileira. A tarefa não será fácil, como não foi fácil a redemocratização consagrada na Carta de 1988. O primeiro desafio, certamente, passa pela responsabilização dos atores que desestabilizaram e usurparam a dinâmica democrática até aqui conquistada. No plano da disputa político-institucional, máscaras de atores que defendem um liberalismo douto requentado, quando não somente neoliberal, deverão ser reconhecidas enquanto tais.Já no plano da cultura política, o fenômeno é ainda mais complexo: o crescente fascismo das classes médias, alimentado não somente pela crise econômica mas também pelo Judiciário e por mídias hegemônicas, é realidade que julgamos imprescindível conhecer e combater. Em verdade, não é outra a questão maior que atravessa, além e aquém de Impasses, toda a obra de Leonardo Avritzer: a cultura política brasileira e sua contribuição para nossa história democrática – ou ainda democrática.

Referências

AVRITZER, Leonardo; Souza, Clóvis (Org.). Conferências nacionais: atores, dinâmicas participativas e efetividade. Brasília: Ipea, 2013. [ Links ]

FREITAS, Andréa. O presidencialismo da coalizão. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2016. [ Links ]

GURZA LAVALLE, Adrian; Szwako, José. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate”. Opinião Pública, v. 21, n. 1, pp. 157-187, 2015. [ Links ]

PIRES, Roberto (Org.). Efetividade das instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: Ipea , 2011. [ Links ]

POGREBINSCHI, Thamy; Santos, Fabiano. “Participação como representação: o impacto das conferências nacionais de políticas públicas no Congresso Nacional”. Dados, v. 54, n. 3, pp. 259-305, 2011. [ Links ]

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Regresso: máscaras institucionais do liberalismo oligárquico. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994. [ Links ]

WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política do funcionalismo e da natureza dos partidos. Petrópolis: Vozes, 1993. [ Links ]

Notas

1 Santos, 1994.

2 Freitas, 2016.

3 Ver, entre outros, Pogrebinschi e Santos, 2011.; Avritzer e Souza, 2013Gurza Lavalle e Szwako, 2015.

4 Ver Pires, 2011.

5 Weber, 1993.

José Szwako – Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Fabiano Santos- Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Obras Filosóficas y Científicas – LEIBNIZ (D)

LEIBNIZ G W. Obras Filosóficas y Científicas. Granada: Editorial Comares,  2007. Resenha de: MIGUEL, Bernardino Orio de. Dissertatio, Pelotas, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.

La inmensa obra intelectual de Leibniz (Leipzig, 1646 – Hannover, 1716) ha asombrado siempre a sus biógrafos e intérpretes. Jurista, semiólogo, matemático, metafísico, teólogo, historiador y, por encima de todo, insaciable escrutador de todo aquello que pudiera incrementar el desarrollo de la razón humana, el filósofo emborronó miles de folios, la mayor parte de ellos publicados muchos años después de su muerte y no pocos todavía inéditos en la actualidad, constituyendo así un fascinante laberinto de ideas y proyectos, de hallazgos científicos y de hipótesis futuristas, que él rubricó bajo el epígrafe de la Ciencia General y el sueño de una Característica Universal, que permitiera a los humanos descubrir la unidad orgánica e intencional de un mundo “que, a su modo, representa al Creador”, y con ello caminar por el sendero de la felicidad posible. Pues – solía decir – “la ciencia es la caridad del sabio; y la sabiduría, la ciencia de la felicidad” (AA VI, 4, p. 3-7; 133-136; 136-140; 970-981, etc).

Esta inagotable selva de escritos de Leibniz ha inclinado a los editores de la Academia de Ciencias de Berlín y de Göttingen a optar por repartir de forma pragmática en Series monográficas todo el material disponible (Asuntos Generales y correspondencia General, Escritos Filosóficos, Escritos Matemáticos, Escritos Jurídicos y Morales, Escritos Teológicos, Correspondencias filosóficas, por una parte, y matemáticas, por otra, etc) y distribuir cronológicamente cada serie en sucesivos volúmenes. Otra opción hubiera sido mantener la sincronía de los diversos intereses del filósofo en una única serie, que habría permitido cotejar más fácilmente la evolución y las íntimas relaciones que anudaban su múltiple discurso. Pero esta segunda alternativa acarreaba otros muchos problemas no menores en el proceso de transcripción de manuscritos y edición crítica aséptica de una obra tan compleja.

Ha de quedar, pues, para nosotros leer al mismo tiempo, por citar sólo un ejemplo, un escrito filosófico como el Système Nouveau (1695) en un volumen, y su correspondiente discurso dinámico Specimen Dynamicum junto con su inevitable fundamento matemático Specimen Geometriae Luciferae de la misma época, en otro. En cualquiera de las dos alternativas, es la exuberancia intelectual y la intuición holística de los grandes problemas humanos, que pugnaban en la mente de Leibniz, la que ha quedado ahí para sus lectores, como uno de los retos más fascinantes del pensamiento de todos los tiempos.

La traducción de los escritos de Leibniz al español, como la de otros muchos filósofos, ha tenido entre nosotros una trayectoria dispersa, asistemática y a veces caótica. El trabajo más importante y en alguna medida ordenado a pesar de sus inevitables limitaciones lo realizó Patricio de Azcárate en los excelentes cinco volúmenes de su Obras de Leibniz (Madrid, Casa Editorial de Medina, 1878). Las sucesivas entregas de la Edición de la Academia en los últimos treinta años y el creciente interés por la obra de Leibniz propició en los años ochenta del pasado siglo la fundación de la Sociedad Leibniz de España para estudios del Barroco, auspiciada por el querido y malogrado Quintín Racionero y un pequeño grupo de leibnizianos. Varios congresos, seminarios, debates y presentación de libros, han ido jalonando la producción de estudios, tesis doctorales y documentos diversos sobre el filósofo. Pero había que dar un paso más. Con la inapreciable e insólita garantía de la Editorial Comares, de Granada, el prof. Juan A. Nicolás, catedrático de filosofía de la universidad de dicha ciudad, presentó el arriesgado proyecto “Leibniz en español” para la traducción sistemática, lo más amplia y completa posible, de los escritos de Leibniz, siguiendo las pautas de la Academia. Teniendo en cuenta que el filósofo se repite incansablemente y, al mismo tiempo, modifica sus perspectivas caleidoscópicas casi al infinito, a ningún entendido en estas lides se le oculta la enorme dificultad de seleccionar lo más representativo de su pensamiento. Además del apoyo institucional y editorial, han colaborado desinteresadamente en el empeño una cohorte de traductores, correctores y editores en el magno proyecto coordinado por el Prof. Nicolás, que constará en torno a veinte o veintidós volúmenes que van apareciendo conforme los traductores y editores los tienen a punto. Paso a reseñar brevemente los publicados hasta ahora y me detendré un poco más en presentar el último volumen, el de Escritos Matemáticos, aparecido en los años 2014 y 2015, puesto que consta de dos tomos.

En 2007 apareció el volumen 14, Correspondencia I, que contiene las Correspondencias con Antoine Arnauld y con Bartolomé Des Bosses, con traducción y edición a cargo de Juan A. Nicolás y María Ramón Cubells respectivamente.

Dos correspondencias esenciales en la trayectoria de Leibniz; la primera, en su momento álgido cuando el filósofo trataba de asentar definitivamente la noción de sustancia simple (1688-1690); y la segunda (1706-1716), en el momento en que Leibniz se ve sorprendido ante las últimas dificultades acerca de la unidad metafísica vs orgánica de la sustancia.

En 2009 se publicó el volumen 8 con diversos traductores y edición a cargo de Juan Arana. Son los Escritos Científicos. Como he sugerido más atrás, Leibniz entendía por “ciencia” algo mucho más ancho que la mayoría de sus contemporáneos: su ciencia era a la vez matemática y metafísica. El lector encontrará aquí los escritos esenciales acerca de la Dinámica y sus fundamentos, así como, por ejemplo, la bellísima “Protogaea” (de 1692) y variados discursos, desde la invención del fósforo, la máquina aritmética, la construcción de relojes, el barómetro, etc

En 2010 le tocó el turno al volumen 2, Metafísica, con diversos traductores y edición de Ángel Luis González. Ocurre con la metafísica lo mismo que con los escritos científicos: una y otros se desbordan a sí mismos. El volumen trata de los conceptos metafísicos esenciales para Leibniz: la noción de ente, los principios de contradicción y de razón suficiente, la necesidad y la contingencia, y los textos fundamentales, desde el principio de individuación y la reforma de la filosofía primera hasta el discurso de Metafísica y el origen radical de las cosas, etc.

Siguió en 2011 el volumen 16A+16B, Correspondencia III, las Correspondencias con Burcher de Volder y con Johann Bernoulli, traducción y edición de Bernardino Orio de Miguel. Así como los intercambios con Arnauld y Des Bosses se centraban en la metafísica, estos últimos (1693-1716) tienen como objeto central la dinámica y la matemática respectivamente. De Volder forzó a Leibniz a apurar sus más recónditos conceptos de la ciencia dinámica. Johann Bernoulli colaboró con él en el desarrollo del cálculo infinitesimal y su aplicación a las ecuaciones transcendentes, que Descartes había excluido de la Geometría. Johann Bernoulli fue, quizás, el primer leibniziano.

En 2013 vio la luz el volumen 5, Lengua Universal, Característica y Lógica, con diversos traductores y edición a cargo de Julián Velarde y Leticia Cabañas.

Después de todo lo dicho hasta aquí, habrá que añadir que Leibniz fue, ante todo, un epistemólogo, un semiólogo genial y obsesivo. El lector encontrará aquí los escritos esenciales y técnicos acerca de la Lógica formal, desde la aristotélica a la ampliación leibniziana, sus mecanismos y sus fundamentos, la construcción de un lenguaje racional y universal. Todo ello en el contexto de los volúmenes 1 y 3-4, donde Leibniz explicará largamente el subsuelo gnoseológico de todo el saber humano en la que él llamaba la Ciencia General.

En 2014 se publicó el volumen 10, Ensayos de Teodicea, con traducción y edición de Tomás Guillén Vera. Una de las obras más extensas, más conocidas y más problemáticas de Leibniz, la Teodicea plantea, en polémica con el escepticismo de Pierre Bayle, la justificación de la bondad, de la sabiduría y de la voluntad de Dios en la contingencia de los hechos de este mundo a la luz de su principio de lo óptimo y de los otros principios que vertebran toda su metafísica y su ciencia de la naturaleza, sin los que la obra corre el peligro de no ser bien entendida.

Bernardino Orio de. Miguel – Madrid.

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Obras Filosóficas y Científicas. Vol, 7: Escritos Matemáticos- LEIBNIZ- D

LEIBNIZ G. W. Obras Filosóficas y Científicas.Vol, 7: Escritos Matemáticos. Ed. Marisol de Mora. Granada: Editorial Comares, 2014-15. Resenha de: MIGUEL, Bernardino Orio de. Dissertatio, Pelotas, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.

Le toca el turno finalmente al volumen 7A+7B, Escritos Matemáticos, 2014-15, que acaba de salir de las prensas en el momento en que se redacta esta recensión. Con diversos traductores y edición de Mary Sol de Mora, presenta en dos entregas los textos esenciales del inmenso e imaginativo quehacer matemático de Leibniz desde su primera juventud hasta el final de su vida, una febril actividad inventiva que abarca todo el espectro matemático de la época: el cálculo binario, las primeras intuiciones sobre el uso de determinantes en las ecuaciones lineales, el arte combinatorio, la teoría de números, desarrollos en serie, el cálculo infinitesimal, la característica aplicada a la geometría más allá de la analítica cartesiana, la probabilidad, los juegos de azar y la estadística, etc, a lo que me referiré luego con un poco más de detalle. Pero antes conviene hacer algunas breves precisiones.

A diferencia de los grandes matemáticos más o menos coetáneos del filósofo (Galileo, Cavalieri, Vallis, Barrow, Descartes, Fermat, los Gregory, los Bernoulli, Huygens, Newton, etc), Leibniz entendió siempre la matemática como un instrumento, un instrumento autónomo sin duda y autosuficiente en el universo inteligible e, incluso, necesario y aplicable a todo razonamiento humano, pero al servicio de una visión orgánica de lo real que trasciende todo cálculo, pues lo real, o sea, lo singular, cada mónada, cada suceso del mundo, a diferencia del infinito ideal del cálculo, es un infinito actual irrepetible en la serie sin límite de los hechos (AA VI 4, p. 1515ss; OFC 2, p. 151ss). La matemática, la geometría – la geometría analítica cartesiana, la mathesis universalis –, una geometría sometida todavía al trazado sensible de figuras en el plano, fue en el siglo XVII el paradigma de toda demostración científica. Y así lo entendió Leibniz desde sus años jóvenes. “Yo veía – le dice a Arnauld en 1671, antes de su viaje a París (1672-76) – que la geometría o filosofía del lugar da acceso a la filosofía del movimiento o cuerpo, y la filosofía del movimiento a la ciencia de la mente” (AA II,1, p. 278). Y al duque Johann Friedrich por las mismas fechas: “Tengo intención de escribir unos Elementos acerca de la mente lo mismo que Euclides hizo acerca de la magnitud y la figura, y Hobbes acerca del cuerpo o movimiento” (AA II,1, p. 182). De manera que – añadirá en febrero de 1676, tras el descubrimiento del cálculo diferencial – “sólo la geometría puede proporcionarnos el hilo para salir del laberinto de la composición del continuo y resolver los problemas acerca de máximos y mínimos, acerca de lo inasignable e infinito, de modo que nadie llegará a una sólida metafísica si no ha pasado por la geometría” (AA VI, 3, p. 449). Mas pronto descubrió, precisamente en el cálculo según él, que el continuo funcional siempre interminado de nuestras ecuaciones y de nuestras medidas y requiere para su completa inteligibilidad asumir la existencia de cosas discontinuas, únicas, no extensas, no medibles, verdaderas unidades, que den sentido y realidad a la idealidad de los fenómenos que observamos. Resultó así que la geometría – “la geometría más profunda” – se convertía para él en el método dialéctico-platónico de ascenso a lo verdaderamente real, las sustancias simples (ibídem). “Comprendemos así – dirá en 1685 – que unas son las proposiciones que pertenecen a las esencias y otras las que pertenecen a las existencias de las cosas” (AA VI 4, p. 1517; OFC 2, p.153). Y al final de su vida, pocos meses antes de morir, en un comentario a ciertas críticas que John Toland había hecho a su cálculo y a su sistema de las mónadas, respondía así: “A pesar de mi cálculo infinitesimal, yo no admito un número verdaderamente infinito, aunque confieso que la multitud de las cosas supera todo número finito, incluso todo número (…). El cálculo infinitesimal es útil cuando se trata de aplicar la matemática a la física; y sin embargo, no es mediante él como yo doy cuenta de la naturaleza de las cosas, y considero las cantidades infinitesimales como ficciones útiles” (GP VI, p. 629).

Paradójicamente, es precisamente la imperfección actual de las criaturas, frente a la perfección ideal del cálculo, la marca de su singularidad, de su completud interna, de su irrepetibilidad, que se muestra en la materia medible. (GP VII 563s). O si fuera lícito el anacronismo y pudiéramos evocar la actual física de partículas, entenderíamos a Leibniz afirmando, frente al mecanicismo entonces reinante, que el universo es radical y originariamente pura energía existencial, sólo expresable en las infinitas partículas de materia, crecientemente menores sin fin, como los neutrinos u otras partículas que quizás la naturaleza todavía esconde. Y la matemática y demás estrategias del cálculo sería el instrumento imprescindible de acceso a ella, pero corremos el riesgo de quedarnos en el cálculo cuando lo que buscamos es lo real, “como les ocurre a los ‘materiales’, que confunden las condiciones y los instrumentos con la causa verdadera” (GP III, p. 55; GM VI, p. 134; OFC 8, p. 223). “Quien aprehendiera absolutamente tan sólo una única parte de la materia – le decía a Des Bosses en 1710 –, ese tal comprendería absolutamente el universo entero” (GP II p. 412; OFC 14, p. 327).

Sirva, quizás, esta precipitada síntesis para sugerir el lugar que la matemática ocupó siempre en la cosmovisión de Leibniz. Cuando el año 1702 los matemáticos franceses – salvo el Marqués de L’Hôpital – ponían en duda – y con razón – el rigor lógico de los infinitésimos leibnizianos, el filósofo tuvo que tranquilizar a su corresponsal Varignon con estas palabras: “No es necesario hacer depender el análisis matemático de las controversias metafísicas ni afirmar que en rigor haya en la naturaleza líneas infinitamente pequeñas en comparación con las nuestras; nos basta explicar lo infinito por lo incomparable, es decir, concebir cantidades más grandes o más pequeñas que las nuestras, de modo que nos contentemos con grados de incomparabilidad” (GM IV, p. 91) y admitamos pragmáticamente la ley de los homogéneos: la suma ; y también el producto =xdy+ydx+[dxdy]=xdy+ydx. etc. pues los infinitésimos no son magnitudes reales sino relaciones ficticias de cocientes que se conservan constantes en su creciente pequeñez y son por ello “prescindibles”: aquello que es incomparablemente más pequeño es irrelevante introducirlo en el mismo cómputo con aquello que es incomparablemente más grande y hacer en la práctica la operación conmensurable; de esta manera, el error de cálculo será siempre “menor que cualquier error dado”, o sea, error nulo (Leibniz en Studia Leibniziana, Sonderheft 14, 1986, p. 97-102). Así que pueden y deben los matemáticos “en su oficio” seguir investigando. Y así lo hizo Leibniz en los maravillosos textos que contienen los dos tomos de este volumen “cuando oficiaba de matemático”.

Aunque Leibniz no fue el primer “inventor” del cálculo de base dos o Cálculo Binario, fue sin duda, tras conocer el I Chin por cartas de los Jesuitas en China, el principal impulsor en Occidente de lo que más tarde sería el Algebra de Boole, como base lógica de los circuitos electrónicos y de la fantástica aplicación a lo que ahora llamamos universo on line. Pues conviene recordar que el Cálculo Binario, lo mismo que el cálculo infinitesimal, eran, para él, sólo pequeñas aplicaciones de aquel magno proyecto de una Analítica y una Combinatoria Universal como instrumentos de la Ciencia General. Ya en 1675, cuando andaba enredado con el nuevo algoritmo, vaticinaba lo siguiente: “A medida que vaya progresando poco a poco el género humano, podrá ocurrir al cabo de muchos siglos que nadie merecerá ya alabanza por la exactitud de su juicio; pues, universalizado el arte analítico, que ahora apenas si se usa sólo de forma correcta y general en las matemáticas, y extendido a toda clase de materias con la ayuda de caracteres filosóficos, tal como yo pretendo, ocurrirá que, dado un tiempo suficiente para la meditación, razonar rectamente no será más meritorio que calcular secuencialmente grandes números” (AA VI 3, p. 429). [Textos I, i-1, i-2].

Siempre insatisfecho con la imperfección de la geometría analítica cartesiana, Leibniz ensayó, por una parte, la sustitución de las letras por números combinatorios en sistemas de dos o tres ecuaciones lineales, a fin de eliminar más fácilmente las incógnitas y dar unidad aritmética al sistema; fue ésta una primera intuición, todavía confusa y poco elaborada, de lo que más tarde serían los determinantes de las ecuaciones [Introducción, p. XVII-XX, y Textos II, ii-1 – ii-10]. Por otra parte, y a fin de evitar igualmente el “extensionalismo físico y los rodeos inútiles” que las ecuaciones algebraicas requerían, Leibniz pensó una vez más en su combinatoria para construir una nueva geometría abstracta que definiera numéricamente los lugares y sus relaciones, sus semejanzas, los puntos, los espacios, etc, a lo que llamó Característica Geométrica o Analysis situs. De esta manera, podría describirse cualquier objeto en el espacio “sin emplear figuras ni palabras, sino números”. A lo largo de toda su vida fue ésta quizás una de sus principales obsesiones matemáticas, que la editora de este volumen nos ofrece en su introducción [p. XXVIII-XXXIV] y en una amplia muestra de textos imprescindibles [Textos IV]. He aquí, una vez más, a Leibniz intuyendo lo que más tarde en el siglo XX sería, ya perfeccionada, la topología. Y no han faltado agudos intérpretes del filósofo que han visto en esta teoría abstracta del espacio uno de los fundamentos científicos de su metafísica, como se mostró al fin en la disputa con Clarke-Newton.

Dada su transcendencia científica e histórica, un capítulo especial merece el descubrimiento del cálculo infinitesimal, al que ya hemos hecho referencia más atrás a propósito de la cosmovisión de Leibniz. Este volumen recoge, entre otras muchas, varias piezas importantes, complicadas sin duda pero fundamentales, que aún no se conocían en versión española. El largo texto de la Cuadratura aritmética del círculo, de la elipse y de la hipérbola, del año 1675/76, donde el filósofo expone de manera sistemática su nuevo descubrimiento; y las cuatro cartas, la Epistola Prior y la Epistola Posterior de Newton con sus correspondientes respuestas de Leibniz, de las mismas fechas que la Cuadratura: todo un festín para amantes de la historia del cálculo; y para los menos valientes, el resto de los textos [Textos III. iii-1 – iii-15].

Desde los babilonios y los pitagóricos, la teoría de números y sus fascinantes aplicaciones habían subyugado a los matemáticos de todos los tiempos. El filósofo de Hannover no podía ser una excepción, como él mismo cuenta en numerosas ocasiones [Textos, V]. Fue precisamente en la contemplación de los números primos en su proyecto combinatorio donde Leibniz experimentó por primera vez en su adolescencia la manera de ampliar la lógica aristotélica de proposiciones a los términos simples del conocimiento y redactó su juvenil Dissertatio de arte combinatoria, que se traduce aquí íntegramente [Textos, VI]. Y fue también en el estudio de los números triangulares que, según él, Pascal no había explotado, donde se inició su camino hacia el cálculo infinitesimal [Textos III, iii-14]. A su vez, el estudio de las cónicas, desde Apolonio y Arquímedes, constituyó así mismo una de las fuentes más importantes para la solución de las cuadraturas, que Leibniz resolvió en su análisis. Etc.

Finalmente, la editora nos obsequia en la segunda entrega, volumen 7B (Textos VII-IX), con una serie de textos, si bien menos conocidos no por ello menos importantes, acerca de la enorme variedad de intereses matemáticoprácticos de Leibniz en torno a juegos de azar, análisis de la probabilidad, estadística y Seguros, materias todas ellas en las que Mary Sol de Mora es una de nuestras más excelentes expertas (Introducción, p. XXXIX-LXI).

La publicación de este volumen de Escritos Matemáticos de Leibniz debería constituir un hito en la historiografía española acerca de uno de los talentos más geniales y visionarios de nuestra cultura.

Durante los próximos años irán apareciendo otros volúmenes sobre Filosofía del Conocimiento-la Ciencia General-la Enciclopedia, Escritos Teológicos y Religiosos, Escritos Médico-Filosóficos, Escritos Éticos y Políticos, los Nuevos Ensayos, las Correspondencias II, IV, V, VI, para terminar en el último volumen con los Índices de toda la serie de Obras Filosóficas y Científicas de Leibniz.

Bernardino Orio de. Miguel – Madrid.

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Teoría de La definición de Leibniz – VELARDE LOMBRAÑA (D)

VELARDE LOMBRAÑA, J. Teoría de La definición de Leibniz. Granada: Comares, 2015.Resenha de: ESCRIBANO, Miguel. Dissertatio, Pelotas, v. 47, p. 333-336, 20018, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.

La colección Nova Leibniz (http://leibniz.es/novaleibniz.htm) es fruto de la colaboración entre el proyecto de investigación “Leibniz en español” (www.leibniz.es) y la Editorial Comares. El proyecto “Leibniz en español”, coordinado por el catedrático de Filosofía de la Universidad de Granada, Juan Antonio Nicolás, lleva ocho años implicado en la edición en esta misma editorial de una selección sistemática de las obras de G.W. Leibniz. Entre los éxitos del proyecto cabe destacar además la constitución de la Red Iberoamericana Leibniz, cuyo principal objetivo es coordinar, visibilizar y potenciar el trabajo realizado por los investigadores de habla española y portuguesa, y la creación de la Biblioteca Hispánica Leibniz (www.bibliotecahispanicaleibniz.es), donde se está reuniendo todo lo publicado de y sobre Leibniz en el ámbito cultural de las lenguas española y portuguesa.

El objetivo de la colección Nova Leibniz es publicar trabajos de investigación novedosos relativos al pensamiento y la obra de G.W. Leibniz. Se presenta como una colección dirigida a la comunidad investigadora internacional, aceptando trabajos originales e inéditos escritos en alguno de los idiomas siguientes: español, portugués, inglés, francés, alemán o italiano. Entre sus últimas novedades cabe destacar: Deo volente. El estatus de la voluntad divina en la Teodicea de Leibniz, de M. Griselda Gaiada y Curvas y espejos. El carácter funcional de la actividad monádica en G.W. Leibniz, de Laura Herrera.

El profesor Julián Velarde Lombraña, catedrático de Filosofía en la Universidad de Oviedo, ha dedicado su larga y fructífera trayectoria al estudio de la lógica y su historia, la teoría del conocimiento y la teoría del lenguaje.

Ocupa un lugar destacado sus traducciones y trabajos sobre Platón, Aristóteles, Tomás de Aquino, Caramuel, Leibniz y Peano. Es precisamente su labor de investigación sobre el pensamiento del filósofo de Hanover la que ahora nos gustaría reseñar.

Además de su magnífica edición en castellano de la Monadología (Madrid: Biblioteca Nueva, 2001) y la publicación de numerosos y reconocidos artículos, su entrega a la obra y el pensamiento de Leibniz ha dado en los últimos años dos frutos destacados. En el año 2013 la Editorial Comares publicaba el volumen que para la edición de las Obras filosóficas y científicas de G.W. Leibniz había preparado junto a Leticia Cabañas, dedicado a los textos sobre Lengua Universal, Característica y Lógica (Granada: Comares, 2013, 528 págs.).

Paralelamente a la preparación de esta edición, el profesor Julián Velarde ha ido desarrollando una complementaria labor de investigación e interpretación sobre el pensamiento leibniziano que fue apareciendo en una serie de trabajos y ponencias en congresos. Toda esta labor culminó con la publicación del libro que aquí presentamos, Teoría de la definición de Leibniz (Granada: Comares, 2015), que recomendamos leer acompañado de la obra anterior, pues la mayoría de los textos sobre los que Velarde construye su interpretación están recogidos en esa edición.

La teoría de la definición es un elemento nuclear del pensamiento leibniziano dedicado a la búsqueda progresiva de un orden y una sistematización de todos los conocimientos, proyecto al que el filósofo dio el nombre de Ciencia General. Este método de sistematización se funda en el principio leibniziano de la ligazón universal de todas las cosas, que conecta con una concepción de la razón donde la inserción y el análisis de cada concepto o noción obedece a leyes generales que nos permiten, y obligan, a transitar analógicamente a largo de los distintos ámbitos del conocimiento.

La idea de Leibniz es que si conseguimos establecer el conocimiento sobre la base de unas nociones primitivas podremos formalizar y describir todos los reinos del saber. Todas las derivas que dio este proyecto se pueden sintetizar en torno a la problemática naturaleza de estas nociones primitivas, desde sus comienzos con la Combinatoria y la Característica hasta sus últimos logros a partir del descubrimiento del Cálculo.

Al igual que en su física Leibniz rechazó el atomismo en cuanto comprendió que en la naturaleza todo cuerpo está actualmente dividido al infinito, en su teoría de la definición Leibniz terminó por desechar la idea de encontrar una noción que una vez bien definida actuara como un átomo, dado que, como pronto comprendió, el análisis de una noción es inagotable.

Este “percance” relativo a la naturaleza de las nociones primitivas hizo por otra parte avanzar al proyecto leibniziano. En un primer momento Leibniz desdobló su metodología, bien estemos tratando con verdades necesarias (de análisis finito), bien con verdades contingentes (donde el análisis es infinito). En la metafísica leibniziana esta distinción entre necesidad y contingencia opera ligada a la distinción entre posible y existente, relación donde queda trabada la diferencia y la articulación entre los principios de la razón: principios lógicos y principios ontológicos. De todo ello deriva la distinción que Leibniz hace entre definición nominal y definición genética. Una muestra de cómo opera en su distinción y articulación este desdoble del análisis lo encontramos en la posición leibniziana con respecto a la prueba de la existencia de Dios, a la que Velarde dedica el tercer capítulo del libro. Leibniz se desmarca tanto de la definición cartesiana de Dios como causa sui como de la definición genética de Spinoza por el mismo motivo: confundir razón y causa. Leibniz reinterpreta esta distinción desde su teoría de los requisitos, sobre la que Velarde se extiende en el primer capítulo.

El análisis de términos, si se lleva a cabo adecuadamente bajo lo guía de los principios de no contradicción y de identidad, nos ha de conducir a la definición nominal, que nos permite enumerar las notas o requisitos suficientes para distinguir una cosa de todas las demás. Aunque en la definición nominal esté cifrada la constitución de la cosa (sus requisitos internos) lo más útil, afirma Leibniz, es si sus requisitos incluyen además la generación de la cosa, y nos  ofrecen una definición genética. La primera, la definición nominal, es capaz de denotar la esencia de la cosa y la segunda, la definición genética, además demostrar que de ésta (de la esencia) se sigue la existencia: la definición genética, afirma Leibniz, envuelve una causa próxima de algo. Leibniz divide la definición en nominal y genética en función de que los constituyentes de la definición, esto es, los requisitos, sean o bien internos, y entonces representen la razón suficiente de la posibilidad de una cosa, o bien externos, y entonces incluyan además su causa. El éxito de la teoría de la definición radica en conseguir mostrarnos cómo se correlacionan los requisitos internos y los requisitos externos, sin confundirlos, como según Leibniz hacían Descartes y Spinoza. Para avanzar en ello Leibniz insertará ingredientes procedentes del Cálculo y la Dinámica.

A partir de aquí se abren varias opciones. La tomada por Julián Velarde en su libro es quizás una de las más interesantes, dado que permite abarcar más aspectos del pensamiento leibniziano. Se trata de saltar de la teoría de la definición a la teoría de la sustancia. Leibniz nos facilita ese paso, dada la relación intrínseca que establece entre los principios lógicos y los ontológicos. Como nos muestra Velarde, para comprender el sustrato que nutre la concepción leibniziana de la sustancia como noción completa o como ley de la serie hay que continuar el tratamiento leibniziano de las relaciones entre posibilidad-necesidad y esencia-existencia.

La distinción entre definición nominal y genética nos lleva a un doble tratamiento sobre lo posible. Por un lado, nos dice Velarde, nos encontramos , con la esfera de las esencia posibles, que son eternas y necesarias y que existen desde la eternidad en el entendimiento divino. Lo posible-esencial constituye el objeto interno del entendimiento divino desde el que Dios produce, actualiza, crea o da existencia a las cosas o verdades contingentes. En tanto verdades eternas, los posibles-esencias son independientes de la acción divina y sólo obedecen al principio de no contradicción. Nos dice así Velarde que la posibilidad de lo absolutamente posible y la verdad de las verdades eternas están más allá, y son independientes de, la voluntad, el poder y el entendimiento de Dios, lo que vincula a Leibniz con la tradición platónica. Ilustra Velarde esta posición de Leibniz con los comentarios que el filósofo de Hanover escribió sobre el Leptotatos de Caramuel.

Por otro lado, distinguimos un segundo tipo de posibles: los posibles realizados o existentes, sobre los que rige otra serie de principios.

(1) El principio de perfección o de máxima esencia nos define lo posible como categoría ontológica: lo posible demanda existencia en función de su grado de perfección o esencia. La existencia no es por tanto un complemento de la esencia sino que está contenido y determinado por ella. Nos conduce este principio hasta la teoría de la composibilidad (que enfrenta a Leibniz con la tesis spinozista de que todos los posibles existen) y a una lógica posibilista, cuya origen, nos muestra Velarde, lo podemos remontar hasta Aristóteles.

(2) El segundo principio es el de razón suficiente. Como el anterior, este principio atañe a la existencia o no existencia de todo ente, pero además, a su forma de ser, esto es, al conjunto de los atributos que lo definen como existente, para los cuales ha de haber una razón determinante que no es necesitante: todo ente se encuentra necesariamente en la serie de lo existente según alguna razón, pero no es necesario el que tenga está razón u otra. Enlaza Velarde desde este principio con la teoría de la sustancia como noción completa (unidad que incluye o envuelve todos sus atributos como existente) y con la interpretación de la naturaleza de la sustancia como ley de la serie (razón de la serie de esos atributos).

A la concepción de la naturaleza de la sustancia como ley de la serie están dedicados los dos últimos capítulos del libro, el cuarto, centrado en la sustancia finita, y el quinto capítulo sobre Dios. En esta última parte del libro es donde la interpretación de Velarde se muestra más original. Primero, en el modo como articula las ideas del Cálculo y la Dinámica para pensar la naturaleza activa de la sustancia en términos de la razón o forma que da unidad y orden al desarrollo de una serie. Resulta iluminador respecto a la concepción leibniziana de la sustancia el modo como Velarde aplica el modelo serial para comprender caracteres fundamentales de su naturaleza, como son la unidad y la actividad.

Destacar aquí la complicidad de Velarde con la investigación de Laura Herrera sobre el funcionalismo leibniziano (publicada en esta misma colección). Velarde va más allá de Herrera al extender el modelo de la serie a la explicación de la arquitectónica subyacente a la visión del mundo de Leibniz, desde el mínimo al máximo orden de perfección, desde las simples mónadas desnudas a los espíritus, o desde la naturaleza representativa de los sujetos al entendimiento infinito de Dios. Velarde nos muestra además cómo se correlacionan todos los principios leibnizianos en esta arquitectónica visión del mundo y cuál es el papel de Dios en todo ello.

Partiendo de la distinción que hace Leibniz entre homogeneidad y homogonía (por ejemplo, para explicar la relación entre el punto y la línea y la conversión entre ambos), Velarde nos dice que Leibniz se habilita una vía para explicar lo continuo desde lo discontinuo, como un caso de progresión que permite que una cosa llegue a ser (o se desvanezca en) una cosa de un género distinto, sin perder por ello los caracteres que la caracterizan (lo que explica, por ejemplo, que la línea esté compuesta de puntos). Esta interpretación de la ley de la continuidad leibniziana en términos de homogonía nos muestra como el mundo de los posibles existentes, mediante una progresión serial continua de más a más posibilidad, en el límite, esto es, en el máximo de posibilidad, se desvanece en el ser necesario, en Dios. En el infinito, nos dice Velarde, la posibilidad o la esencia máxima viene a equivaler a la necesidad o la perfección máxima, esto es, a Dios, definido como límite de la serie infinita de los posibles.

Miguel Escribano – Universidad de Granada.

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Curvas y espejos.el carácter funcional de la actividad monádica en G.W. Leibniz – HERRERA (D)

HERRERA, Laura E. Curvas y espejos.el carácter funcional de la actividad monádica en G.W. Leibniz. Granada: Editorial Comares, 2015. Resenha de: HURTADO, Ricardo Rodríguez. Dissertatio, Pelotas, Volume Suplementar 3, Dossiê Leibniz, Out, 2016.

Curvas y Espejos ofrece un riguroso análisis del concepto de función en la obra de Gottfried Wilhelm Leibniz. El texto de este libro se extrae de la tesis doctoral que la investigadora Laura E. Herrera realizó en la Universidad de Granada bajo la dirección del profesor Juan Antonio Nicolás Marín. El libro está publicado por la Editorial Comares en Nova Leibniz, una serie de estudios dedicados al pensamiento de este filósofo alemán, colección realizada en colaboración con el grupo de investigación Leibniz en español.

En este estudio una conclusión se impone rápidamente sobre el resto: el concepto de función presente en la obra de G.W. Leibniz no se asimila al actual concepto matemático de función ni tampoco se reduce al concepto geométricomatemático que el propio autor elabora en sus trabajos. Aunque pueden encontrarse relaciones entre estos dos métodos de análisis matemático y el concepto de función leibniziano, es un anacronismo buscar el actual concepto matemático de función en la obra de este filósofo del siglo XVII y un reduccionismo querer otorgar a este concepto un significado únicamente geométrico-matemático dentro de sus trabajos. Laura defiende que en el pensamiento de Leibniz encontramos una idea de funcionalidad definida por tres “elementos”: legalidad, reciprocidad y serialidad. Este “carácter funcional” está presente en toda su obra, motivo por el que acuña el termino de funcionalidad expandida, también el de funcionalidad desnuda (de matematicidad). Así expresa la idea en la página 151; “A partir de allí se llegó a tres características definitorias para la función: la variación conforme a ley; la asignación recíproca entre magnitudes, que hemos denominado como correspondencia o interdependencia; y la serialidad, pues el término se usa siempre en relación con la idea de series infinitas y aplicado a términos de tales series. Hemos caracterizado estos tres elementos como los rasgos de una funcionalidad desnuda del contexto matemático en el que la hemos encontrado, o una funcionalidad expandida a otros campos”.

Los principales desarrollos teóricos de esta idea de funcionalidad se identifican prestando atención a la división del libro en tres capítulos. El primer capítulo, titulado Del concepto matemático de función a la idea de funcionalidad en G. W.

Leibniz, se centra en el análisis de la construcción matemática del concepto de función leibniziano. En él, tras analizar los diversos usos que Leibniz hace del término functio, Laura extrae de ese análisis de la construcción matemática del concepto su idea de funcionalidad expandida. El segundo capítulo, titulado La metáfora del espejo y el carácter funcional de la expresión, relaciona la idea de funcionalidad expandida con la teoría expresiva del conocimiento de Leibniz. Tras una primera discusión sobre cómo debe entenderse el carácter analógico de la relación de expresión para percibir su carácter funcional, Laura pasa a analizar la metáfora del espejo viviente. Esta reflexión, tan precisa en la reconstrucción lexicográfica como sugerente en la evaluación teórica, afianza y especifica la relación entre el concepto de expresión y el de función. El tercer y último capítulo, Acción y fuerza: la funcionalidad en el doble carácter de la actividad monádica, defiende que los elementos de la funcionalidad expandida se encuentran también en el aparecer fenoménico de la mónada en tanto que fuerza actuante en la naturaleza. De manera similar al segundo capítulo, en el que se establecía la determinación representativa de la mónada a través del concepto de expresión, este tercer capítulo determina la realidad efectiva de la mónada, su corporalidad fenoménica, por el concepto de fuerza activa. Estas dos formas de determinación monádica, aunque inseparables, son independientes la una de la otra. Laura expresa esta idea, en la página 208, de la siguiente manera: “No puede explicarse fenoménicamente al fenómeno en cuanto sustancia, como tampoco puede comprenderse sustancialmente a la sustancia en cuanto fenómeno; la dinámica aporta las herramientas para comprender los fenómenos dentro de su lógica y conforme a sus propias leyes. Si la acción puede manifestarse en ambos lenguajes es porque, en rigor metafísico, la fuerza es expresión y, en su manifestación fenoménica, la expresión es fuerza”. Por el lado metafísico de la expresión están el carácter representativo y apetitivo de la acción; por el lado fenoménico de la fuerza, el carácter mecánico y orgánico de la misma. El último paso argumentativo es encontrar la legalidad, la reciprocidad y la serialidad de la funcionalidad expandida en la hipótesis de la armonía preestablecida con la finalidad de relacionar estas dos dimensiones.

Las tres grandes líneas de argumentación que se acaban de exponer se defienden con un estricto rigor bibliográfico y una valiosa contextualización.

Estos dos valores metodológicos son muy relevantes para comprender la profundidad filosófica y la exhaustividad académica de este estudio. Caracterizaré brevemente estas dos características.

Merece la pena mencionar los textos leibnizianos en los que Laura se apoya para defender tanto su idea de la funcionalidad expandida como las aplicaciones de esta idea a los conceptos de expresión y de fuerza. Artículos de geometría de la década de 1670 a 1680, como son Triangulum characteristica ellipsis y De functionibus plagulae quattour, y de la década de 1690 a 1700, publicados en el Acta eroditorum y el Journal de Sçavans son referencias fundamentales en el primer capítulo. También son importante algunos fragmentos de la correspondencia que Leibniz mantuvo con el matemático Bernoulli, a los cuales se les dedica un apartado. Las obras Quit sit idea (1677) y el Discours de métaphysique (1686), junto con algunas partes de la correspondencia con Antoine Arnauld (1686-1690), son referencias importantes del segundo capítulo. Sin embargo, es especialmente relevante en este capítulo el análisis bibliográfico y la reconstrucción lexicográfica que Laura hace de la metáfora del espejo viviente. Fragmentos de la correspondencia con De Volder en torno a 1700 constituyen el principal soporte bibliográfico del tercer capítulo. Aunque también son relevantes las referencias al Specimen dynamicum (1695), del De Ipsa Natura (1698) y del Eclairssement des difficultés que Monsieur Bayle a trouvées dans le systeme nouveau de l’union de l’ame et du corps.

El otro elemento que define la rigurosa profundidad filosófica y el excelente nivel académico de este estudio es la caracterización de los contextos polémicos a los que la obra refiere; tanto el debate científico y filosófico de la época de Leibniz como la discusión académica actual sobre la interpretación del concepto de función en la filosofía del autor alemán están muy bien retratados.

La distinción entre el cálculo diferencial de Leibniz y el de fluxiones de Newton del primer capítulo es un buen ejemplo del primer nivel de contextualización. Una distinción que, además, aparece acompañada por el rastreo del origen histórico que ambos tipos de cálculo tienen en los problemas científico-geométricos de la Edad Media. También se caracterizan debates filosóficos del siglo XVII como el protagonizado por el ocasionalismo y la teoría del conocimiento de Leibniz o la discusión entre el mecanicismo y la dinámica acerca de la naturaleza del fundamento racional de la explicación científica. Cada uno de estos debates está relacionado con el principal objeto de estudio: la idea de función leibniziana.

El segundo nivel de contextualización polémica está compuesto por las diferentes posiciones que mantienen los investigadores de la filosofía de Leibniz que se han ocupado del estudio del concepto de función. Aquí encontramos los trabajos tanto de emblemáticos historiadores de la filosofía, Ernst Cassirer quizá sea el más importante dentro de este apartado, como de investigadores actuales de la filosofía de Leibniz, entre los que cabe destacar a Juan A. Nicolás o Laerke.

No obstante la cantidad de diferentes posiciones que aparecen en estos debates a lo largo de todo libro, Laura consigue expresar cada una de estas posturas con claridad y definir el detalle filosófico que diferencia su posición de la del resto de estudiosos que han investigado esta cuestión.

Una posible deficiencia de este estudio es la lectura que hace de la metáfora de las proyecciones en perspectiva. La idea de perspectiva se trata en diferentes momentos en el libro, el análisis más relevante sin embargo es el que se realiza en el capítulo segundo. En él se encuentra la discusión de Laura con Kulstad y Swoyer acerca de la forma en que interpretar el carácter funcional de la relación de expresión. En este contexto aparece la metáfora de las proyecciones geométricas en perspectiva. Al final de la discusión, en la página 166, Laura concluye: “Esto muestra también por qué el ejemplo de la perspectiva, interpretando la perspectiva en la línea matemática como proyecciones geométricas, no es un ejemplo suficiente para recoger la riqueza del concepto de expresión”. Esta conclusión depende en exceso de la interpretación que sus adversarios hacen de la metáfora como función. Aunque es cierto que como defiende Swoyer, la preservación de la estructura está presente en la metáfora como elemento geométrico, aún así la conclusión sigue pareciendo bastante acelerada.

Pues las proyecciones geométricas, sobre las que se realizan las construcciones en perspectiva, no son un discurso exclusivamente matemático sino que también constituyen el estudio científico de la representación. Leibniz, quien estudió algunas de las principales obras de esta disciplina en el sentido apenas expresado, también tiene en cuenta esto al hablar de las proyecciones geométricas en perspectiva. Las cuales no son para él un modelo exclusivamente geométrico para pensar la expresión (a través de funcionalidad; como asumen Kulstad, Swoyer y Laura), sino que también sirven para pensar la representación; las leyes constitutivas de este fenómeno gnoseológico. En este punto se le podría exigir al estudio un mayor desarrollo y puntualización, pues Laura yerra únicamente al circunscribir y aislar un sentido de perspectiva, las proyecciones geométricas, del resto de las posibles acepciones de este concepto. De la misma forma que no se puede anticipar que pueda aislarse este sentido del resto de usos que Leibniz hace de la perspectiva, tampoco puede anticiparse que la autora no pudiera hacerse cargo del resto de posibles sentidos de que Leibniz adscribe a este concepto; ésta es por lo tanto una apreciación crítica de menor calado. La investigación que se ofrece en este trabajo no pierdo por ello ni una pizca de profundidad, constituye un estudio muy recomendable para estudiosos de Leibniz y prácticamente obligatorio para aquellos que quieran estudiar el concepto de función en el sistema filosófico del autor alemán.

Ricardo Rodríguez Hurtado – Universidad de Granada.

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Spinoza and Medieval Jewish Philosophy – NADLER (CE)

NADLER, Steven (Ed.). Spinoza and Medieval Jewish Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. Resenha de: DAVID, Antônio. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.35, Jul./Dez., 2016.

Vem em boa hora a coletânea de artigos editada pelo renomado historiador da filosofia Steven Nadler e publicada pela Cambridge University Press . Não porque se trate de empreendimento novo – e aqui convém reconhecer o mérito da historiografia da filosofia de língua inglesa, que tem se dedicado ao assunto com grande afinco. O próprio organizador, especialista em filósofos da chamada primeira época moderna, é autor de outros títulos dedicados à relação entre a filosofia judaica e Espinosa.

É exatamente o estatuto dessa relação que precisa ser examinado, razão pela qual Spinoza and Medieval Jewish Philosophy merece ser lido. Ainda que as respostas oferecidas no livro sejam questionáveis, é meritório o esforço em pensar sobre uma relação que, sob todos os ângulos, é tensa.

Espinosa pode ser considerado um “filósofo judeu”? Nadler é taxativo:

Não se pode negar que textos, história e pensamento judaicos continuam a cumprir um papel importante no pensamento de Espinosa – de tal forma que Espinosa pode com justiça ser considerado um filósofo judeu, seja porque suas ideias revelam um forte compromisso com a filosofia judaica que o precedeu, seja porque em suas principais obras ele filosofou sobre judaísmo (Nadler, 2014, p. 3-4).

Não obstante as duas razões oferecidas por Nadler procedam, elas não parecem ser suficientes para encerrar a questão. Aliás, a questão pouco nos interessa. Mais interessante e profícuo do que perguntar sobre a identidade judaica da filosofia de Espinosa – questão que nunca cessará de gerar polêmica, uma vez que envolve a identidade judaica do próprio Espinosa –, é perguntar sobre a maneira específica pela qual a filosofia deste autor lida com conceitos e ideias próprios da ou assimilados pela filosofia judaica e, consequentemente, do judaísmo, para forjar sua própria filosofia.

Nesse sentido, a coletânea traz uma grande contribuição. Ela ajuda a ampliar o escopo de interpretação da obra de um dos mais importantes nomes da filosofia, interpretação essa que tem sido bastante exitosa em estabelecer os laços que unem Espinosa à modernidade (são inúmeros os trabalhos que comparam Espinosa com Maquiavel, Hobbes, Descartes e Leibniz) e que já deu passos importantes no estabelecimento da crítica de Espinosa às tradições antigas e cristãs, tanto medievais como modernas1

Que Espinosa tenha debruçado-se sobre o judaísmo, não é novidade. Estabelecida no Tratado teológico-político, essa leitura contém teses e argumentos que lhe renderam severas acusações, em particular talvez a tese de que a natureza dos hebreus amparava-se pela piedade para com a própria pátria e no ódio para com outras nações (Spinosa, 1997, p. 371) . Poliakov, por exemplo, dirá que a obra de Espinosa expressaria um “anti- semitismo virulento” (Poliakov, 1996, p. 23) .

Em contrapartida, o forte compromisso para com a filosofia judaica é menos evidente à primeira vista, inclusive por estar como que disseminado na obra, presente não só naquelas passagens em que Espinosa examina práticas e história judaicas. É notório e belo o exemplo de uma das últimas proposições que fecham sua mais importante obra, e também a mais conhecida: “Disso inteligimos claramente em que coisa consiste nossa salvação ou felicidade ou Liberdade: no Amor constante e eterno a Deus, ou seja, no Amor de Deus aos homens. E não é sem razão que este Amor ou felicidade é chamado Glória nos códices Sagrados” (Espinosa, 2015, e v, p 37 . Esc.) 2 .

A obra de Espinosa está impregnada de filosofia judaica – o que não necessariamente significa estar ela impregnada de filosofia exclusivamente judaica, uma vez que, como dissemos anteriormente, os conceitos, teses e argumentos transitaram na rica interlocução entre diferentes tradições. Os autores foram felizes em expressar esse diálogo, sobretudo em se tratando de filósofos judeus e árabes, com especial destaque para os excelentes artigos de Charles Manekin e Julie R. Klein.

O livro possui muitos méritos, dos quais o maior mérito reside no exame dos conceitos e sua “passagem” entre Espinosa e seus interlocutores judeus. Só pela enorme quantidade de citações da Ética demonstra-se que a presença do judaísmo em Espinosa transborda e muito o escopo do Tratado teológico-político, chegando ao núcleo de sua filosofia.

Vemos dois pontos francos no resultado final da proposta, sendo um na coletânea e outro nos artigos. A coletânea concentrou-se demasiadamente, quase exclusivamente, na recepção de determinados filósofos na obra de Espinosa, como Gersonides, Crescas e, com especial ênfase, Maimônides – o que é reconhecido pelo organizador, na Introdução. Com isso, ela deixou de lado dois campos de interlocução extremamente importantes para a compreensão da obra de Espinosa: de um lado, seus contemporâneos na comunidade de Amsterdam; de outro, as tradições místicas judaicas.

Em relação aos artigos, a despeito de seu mérito, percebemos certa inclinação nos autores em procurar estabelecer débitos demasiado diretos e mecânicos de Espinosa para com este ou aquele filósofo. Jacob Adler, por exemplo, após constatar a similaridade entre certa tese de Espinosa e Alexandre de Afrodísias, conclui: “tal pormenor fornece a mais forte evidência de que Espinosa estava seguindo Alexandre” (ibidem, p. 25) . T. M. Rudavsky, por sua vez, argumenta que Espinosa “segue a sugestão de Ibn Ezra’s de que Moisés não teria escrito toda a Torá” (ibidem, p. 86). Já Warren Zev Harvey, numa controversa interpretação de Espinosa, conclui: “ao atribuir alegria e amor intelectual a Deus, Espinosa faz companhia a Maimônides, e segue Avicena e Gersonides”. Na sequência, este mesmo autor afirma: “ao sustentar que o autoconhecimento de Deus implica em Seu conhecimento de todas as coisas, Espinosa segue a interpretação de Aristóteles do Timeu, presente em Metafísica, XII 7 e 9” (ibidem, p. 114 – 115). Fiquemos nestes três exemplos.

Em certo sentido, todo filósofo segue outros que o precederam. Mas este é um sentido fraco, que designa apenas e tão somente o fato de haver interlocução entre os filósofos. Os autores, no entanto, procuraram muitas vezes estabelecer laços fortes entre Espinosa e seus interlocutores, como se certo conceito, certa tese ou certo argumento presente na obra de Espinosa já figurasse nesse ou naquele autor. Ao proceder dessa forma, o intérprete corre o risco de perder de vista o sentido da presença do conceito, da tese ou do argumento no interior da obra daquele que a recebeu. Ao se estabelecer recepções e linhagens, há que se tomar cuidado.

Quanto a isso, estamos de acordo com Nadler, quando este afirma que a filosofia de  Espinosa “assimila, transforma e subverte um projeto antigo e religioso” (ibidem, p.2). A este projeto, acrescentaríamos outras tradições e correntes, como a filosofia de Aristóteles, o estoicismo e as filosofias de Hobbes e Descartes. Espinosa segue Gersonides, Maimônides, Crescas e outros, tanto quanto Hobbes, Descartes e Maquiavel, mas sob o preço de subvertê-los.

A despeito destes dois pontos, ressaltamos que o conjunto da coletânea compreende artigos escritos com rigor e erudição. Esperamos que sua publicação encoraje os espinosistas fora do mundo anglófono a engajar-se mais no estudo da presença da filosofia judaica em Espinosa.

Notas

1 A coletânea contém dez artigos. Para um resumo de cada um dos artigos, cf. Nadler, 2014, p.8-12.

2 Essa passagem foi abordada na coletânea por Warren Zev Harvey (Nadler, 2014, p.115), Kenneth Seeskin (Ibidem, p.122) e Julie R. Klein (Ibidem, p.210).

Referências

NADLER, s. (Ed.) (2014), Spinoza and Medieval Jewish Philosophy, Cambridge: Cambridge University Press.

POLIAKOV, l . (1996) De Maomé aos Marranos. História do Anti-semitismo II, São Paulo: Perspectiva.

SPINOSA, b . (1997) Tratado teológico-político, Barcelona: Altaya.

ESPINOSA, b . (2015) Ética, São Paulo: Edusp, 2015.

Antônio David – Doutorando Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Introdução à Tragédia de Sófocles – NIETZSCHE (C-FA)

NIETZSCHE, Friedrich. Introdução à Tragédia de Sófocles. Tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2014. Resenha de: SOUZA, Ronaldo Tadeu de Souza. A Estrutura Filológica da Tragédia Grega: a propósito da “ Introdução à tragédia de Sófocles ”de Nietzsche. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.21, n.2 jul./dez., 2016.

Karl Marx escreveu um dos pontos mais significativos de sua Introdução para a crítica da economia política que:

a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopéia estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem ainda prazer estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelos inacessíveis (Marx, [1857] 1974, p.131).

É certo que devemos aceitar na sua completude a afirmação de Marx acerca do “prazer estético” que a arte grega nos oferece ainda em nossos dias, mas é certo também que devemos nos esforçar para negar Marx ao dizer-nos que a arte grega porta “modelos inacessíveis”. A questão aqui envolve a possibilidade ou não de compreendermos aquela que talvez tenha sido a principal expressão artística do mundo grego antigo, a saber: a tragédia. Quanto mais compreensíveis forem as obras de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, mais estaremos em condições de acessarmos o estatuto da cultura grega clássica para a história das sociedades humanas.

Introdução à tragédia de Sófocles, de Nietzsche, recentemente publicado pela editora Martins Fontes (fim de 2014 / início de 2015), nos apresenta esta possibilidade. Assim, quais são os pontos a serem destacados no escrito introdutório de Nietzsche sobre o drama antigo? Uma observação inicial que é preciso ser feita sobre Introdução à tragédia de Sófocles é a respeito da edição do livro. É um trabalho cioso e esmerado que a erudição de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e André Luis Muniz Garcia apresenta aos leitores brasileiros – sobretudo na organização das notas explicativas que percorrem todo o texto de Nietzsche. André Luiz Muniz Garcia, referindo-se ao seu companheiro de tradução e preparação do texto, diz que o trabalho de Marcos Sinésio “é resultado de (…) profundo trabalho de tradução, mas também de pesquisa filosófica e filológica” (Garcia, [Apresentação] 2014, p.XV) que o erudito da Universidade Federal do Maranhão oferece ao nosso público. Em tempo de especialização e profissionalização empobrecedora da universidade, Marcos Sinésio desejou ofertar “tradução e comentários [que] chegassem às mãos não apenas do público acadêmico, mas, principalmente, do leitor não especializado, daquele [não iniciado em] pensamentoschave de nossa cultura” (idem, ibidem). Ao estilo de Fichte: a erudição, aqui, serve à humanidade 1.

Se o esforço de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e de André Luis Muniz Garcia foi o de empreender rigorosa pesquisa filológica na tradução de Introdução à tragédia de Sófocles, é porque o próprio estudo de Nietzsche emoldura-se pela filologia. Assim, mais do que um estudo introdutório sobre o sentido da tragédia no mundo grego antigo, e, mais especificamente, sobre a obra de Sófocles, o trabalho de Nietzsche nos apresenta a estruturação filológica da arte trágica. Resultado de um curso proferido por Nietzsche na Universidade da Basileia em 1870, Introdução à tragédia de Sófocles é composta por 20 lições nas quais o filósofo alemão expõe detalhadamente cada composição estética e narrativa que forma a estrutura filológica da tragédia na Grécia clássica. Ao longo das lições, Nietzsche analisa a configuração de significados que a tragédia procura representar na cultura grega antiga. Esta é uma das virtudes do estudo: posicionar os lineamentos narrativos de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes com os momentos constitutivos do mundo da Grécia clássica. É claro que Nietzsche não faz trabalho de historiador arranjando linearmente os trágicos nos pontos mais sensíveis e de maior relevância daquela sociedade. Com efeito, a arte esquiliana, sofocleana e euripideana são perscrutadas como documentos literários que expressam as tensões sobre o sentido da vida e da existência de toda uma civilização. Não é ocasional e de menor importância o fato de Nietzsche iniciar seu curso comparando “a antiga forma da tragédia [com] a moderna” (Nietzsche, 2014, p.3), pois, para esta última, Édipo Rei “é pura e simplesmente uma má tragédia, porque nela a antinomia entre destino absoluto e culpa fica insolúvel” (idem, ibidem). O núcleo substantivo da tragédia antiga na leitura de Nietzsche é a oposição de ânimos que conformam o significado estético da narrativa; vale dizer, é aquilo sobre o que o homem grego procurou se equilibrar: “o sentimento de triunfo do homem justo, comedido e isento de paixão” (idem, p.5) com o “instinto [ hybris ] (…), o enigma no destino do indivíduo, a culpa sem consciência, o sofrimento imerecido [e] sua musa trágica [que leva à] idealidade da infelicidade” (idem, pp.7-8). É este núcleo que Nietzsche procura emoldurar com a estrutura filológica de suas lições. Quais são os aspectos mais significativos destas lições que compõem a Introdução à tragédia de Sófocles ?

Se hoje nós compreendemos todas as artes dramáticas como artes da visibilidade, do ver a performance de grupo de indivíduos inseridos em espaços construídos especialmente para isto, na sua origem a arte dramática, que emerge da tragédia grega, é a arte do ouvir. É a arte da palavra que se apresenta como característica primeva de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Assim, a “intuição íntima através da palavra induzindo à fantasia é o que vem primeiro, a visibilidade do quadro da fantasia na ação é algo mais tardio” (Nietzsche, 2014, p.10). Podemos perceber, deste modo, que um dos esforços de Nietzsche em seu curso é entender a tragédia antiga como símbolo do humor: da disposição de ânimo que tensiona a existência dos homens. Não é mero exercício de retórica a afirmação de Nietzsche acerca do fato de que a beleza da lírica, seus componentes filológicos sublimes, seja também a “expressão da dor diante da desarmonia entre mundo desejado e o real” (idem, ibidem). Ele procurou representar em suas lições sobre Sófocles na Basileia o sentimento existencial da cultura grega antiga. Mas vamos acompanhar o estudo introdutório nietzschiano um pouco mais nesta abordagem sobre a tragédia como arte do ânimo musicalizado.

O significado da tragédia concernente à linguagem da cultura grega surpreende àqueles educados na estética do idealismo pós-kantiano – aqui é o belo, a formação mesma da educação sentimental pela beleza que estrutura o entendimento da arte 2 ; em Nietzsche, é a filologia do instinto que deve ser compreendida na tragédia como um dos documentos constitutivos da cultura dos gregos. O que estes enfrentavam, e que a arte de Ésquilo, Sófocles e Eurípides procurou dramatizar pela lírica musical, era o sentir da vida como “elemento (…) perigoso (…) dos poderes mais perigosos da natureza” (Nietzsche, 2014, p.13) que fornece o suporte necessário para os gregos entenderem e, também apreciarem, que a transcendência se faz igualmente na existência terrificante (idem, ibidem). Diz Nietzsche:

Culpa e destino são apenas tais meios, (…) tais [ mekhanaí ]: o grego queria absoluta fuga para fora desse mundo da culpa e do mundo do destino: sua tragédia não consolava, algo como um mundo após a morte. Mas, momentaneamente, abriu-se ao grego a intuição de uma ordem das coisas inteiramente transfigurada (…) os atenienses fizeram isso abertamente quando não coroaram o Oedipus rex : eles ouviram tão somente os golpes de timbale, o selvagem circulozinho das Mênades, mas queriam também que Sófocles lhes dissesse que tinha visto Dioniso. O velho Sófocles exprimiu-se em Édipo em Colono (como Eurípides nas Bacantes ) sobre o elemento libertador-do-mundo da tragédia: Eurípides, com uma espécie de palinódia, na medida em que se deixou despedaçar como Penteu, como o sensato e racionalista opositor do culto de Dioniso (Nietzsche, 2014, pp.13-4).

Mas Nietzsche ainda insiste na musicalidade como elemento distintivo da tragédia grega. Esta é uma das contribuições de Introdução à tragédia de Sófocles para o entendimento desta arte tão particular – e da cultura que organizava o universo simbólico e filológico da Grécia antiga. Com efeito, “a tragédia [nasceu] da lírica musical das Dionisíacas” (idem, p.21), de sorte a estabelecer os lineamentos sentimentais de toda a subjetividade do povo grego. A tragédia como arte dionisíaca despertava nos populares um profundo sentimento de embriaguez musical possibilitando aos que a ouvissem a percepção plácida da transcendência. Importa dizer acerca das lições de Nietzsche sobre Ésquilo, Sófocles e Eurípides o caráter inteiramente popular da tragédia. Assim, a extensão da linguagem da lírica dramática “abrange a vida social” (idem, p.23) dos Gregos. E a “música popular subjetiva (…), a poesia popular da massa, nas fascinantes e demoníacas Dionisíacas (…), [a] impetuosa lírica das massas” (idem, p.24) irrompia na cena cultural como expressão do ímpeto de ânimo do homem grego na existência. Não foi fortuito que no “predomínio da reflexão e do socratismo, começa uma degeneração do dionisíaco na tragédia” 3 (idem, p.27).

Na sequência de seu curso na Universidade da Basileia, Nietzsche estuda com seus alunos (e nos oferece) dois elementos fundamentais na estrutura filológica da tragédia: “a construção do drama” e o “coro”. No que consiste a construção do drama na tragédia antiga? Pode-se dizer que, para a Introdução à tragédia de Sófocles, o edifício estético posto de pé por Sófocles e seus iguais objetivava à realização de “um ato” (idem, p.32); isto é, o drama grego potencializava o “ pathos [da] cena” (idem, ibidem), de modo que a construção daquele tinha como exigência a figuração do ato mesmo no curso da temporalidade existencial de quem a assistisse. Isto fica mais claro quando Nietzsche propõe em suas lições uma comparação entre a construção do drama moderno de Shakespeare e a tragédia de Ésquilo e Sófocles. O encadeamento da sequência no drama shakespeariano foi forjado para intensificar o movimento da fantasia; o que significa dizer que a linguagem da “tragédia” moderna necessitava para sua melhor exploração artística de espaço adequado no qual aquela pudesse ser representada. Por isso a configuração da cena “contém um palco mais elevado e menor; diante dele, degraus; ao lado, pilares; em cima, um balcão cujas escadas descem até o proscênio” (Nietzsche, 2014, p.33). Esta construção tensionava a fantasia (idem, p.34) de quem a assistisse como fatura do jogo entre o “palco” e seus “degraus”, entre as “escadas” e o “proscênio”, a “pausa” temporal (obrigando à atividade da fantasia) e os personagens que surgem dos “pilares” – é que tudo no drama de Shakespeare era para ser visto e depois imaginado. Em Ésquilo e Sófocles, a construção do drama buscava outros fins: aquela fantasia impulsionada pelas imagens “o grego não conhecia em sua tragédia” (idem, ibidem). Era a interiorização do pathos musical que o drama antigo objetivava; o que importava era (e é) o “ Tá apóskenês ” 4, o a partir da cena… Daí que a construção do drama antigo e, sobretudo, o sofocleano, estruturou-se pela disposição filológica do coro. De sorte que o efeito do cântico na tragédia conformava o “antagonismo” entre “o espectador idealizado (…) representante dos pontos de vista gerais” (idem, ibidem) e o coro dramáticolírico enquanto tal. Diz Nietzsche a esse respeito:

as canções do coro tinham que assumir um pathos interior: para não tornar a representação do coro inconsequente. Eurípides conduzia com consciência o coro em regiões sentimentais mais brandas e empregava também uma música mais suave em correspondência (…) Em Ésquilo e Sófocles, há por vezes incongruência entre o coro dos grandes cantica e os dos diálogos. A situação dos cantica é deslocada (…) o coro e a música coral já são (…) [ hedýsmata ] (Nietzsche, 2014, pp.34-5).

Assim, é no coro que podemos encontrar o real sentido da tragédia como documento cultural do mundo grego antigo. Nietzsche deixa entrever isto nos quatro pontos que estruturam a articulação interna da linguagem do coro. Ele, então, afirma que os pesquisadores devem atentar para os seguintes elementos: (1) o coro representa a construção filológica do novo momento do mundo antigo, ele é a expressão artística da apropriação pelo povo sensível dos negócios do palácio, ou seja, é como se o ânimo musical dos deuses se voltasse agora para o peito dos homens (Nietzsche, 2014, p.41) na intervenção do coro na estrutura da tragédia; (2) pode-se dizer com isto que com o coro a tragédia adquire aspectos reflexivos acerca dos conflitos da vida e do pensamento, de modo que a “liberdade lírica [com] todo o poder sensível do ritmo e da música” (idem, ibidem) presente no coro conduz à ação refletida, mas com “força poética” (idem, ibidem); (3) isto, inevitavelmente, de acordo com Nietzsche, faz do coro na arquitetura filológico-narrativa da tragédia o ponto de inflexão entre a simples exposição organizada de diálogos existenciais e a grandeza trágica; (4) quer dizer, o coro é a possibilidade de alcançar a exuberância dos afetos, é a capacidade que a arte de Ésquilo, Sófocles e Eurípides tem de transformar o “ânimo do espectador” (idem, ibidem) em um ensaio para a liberdade de e na ação existencial. Com efeito, “o coro é o idealizante da tragédia: sem ele, temos uma imitação naturalística da realidade [n]a tragédia, sem coro, (…) os homens falam e andam” (idem, p.42).

Nietzsche chega assim ao fim de sua Introdução à tragédia de Sófocles, e nós, deste breve ensaio. As leituras e hipóteses dele se voltam agora diretamente para a obra de Sófocles – o ponto mais elevado da tragédia antiga. Como Nietzsche procede aqui? A comparação no espaço mesmo da tragédia grega foi o procedimento utilizado por ele: o que Nietzsche pretende com isto é ressaltar os elementos distintivos das peças sofocleanas. Sendo a tragédia de Sófocles o ápice da arte dramática antiga, ela se posiciona a meio caminho entre o puro instinto esquiliano e a construção racionalizada – a destruição do instinto – de Eurípides. De sorte que em Sófocles “o pensamento é acrescido”, só que aqui “o pensamento está em harmonia com o instinto” (Nietzsche, 2014, p.63). Mas é na estruturação filológica que Sófocles se põe em patamar superior ao do drama de Ésquilo e Eurípedes. Assim, a obra do autor de Édipo Rei preconiza não certas unilateralidades que atravessam as peças de Ésquilo e de Eurípides, sobretudo acerca da interpretação (e utilização) da forma e do pensamento na fatura da tragédia – a grandeza artística de Sófocles foi dada pela unidade da forma com o pensamento, da fusão tensa e motivada pelo existencial e seu significado na cultura grega entre a feição exterior (a disposição enquanto tal das partes constitutivas da tragédia) e os momentos de reflexão do ser pela linguagem do drama (a irrupção decisiva, de acordo com Nietzsche, do coro…). A ocorrência deste posicionamento superior de Sófocles em face a Ésquilo e Eurípides se dá porque ele “ressuscita o ponto de vista do povo” (idem, p.68). Enquanto a tragédia esquiliana é épica e a euripideana socrática, o drama antigo em Sófocles representa a massa trágica, “o enigma na vida do homem”, quer dizer, o sentido da tragédia sofocleana é a transformação do sofrimento humano em algo “santificante” e virtuoso – é a busca do entendimento de que, uma vez o povo lançado na existência incerta e incomensurável, o sentido da vida frente ao destino, “o abismo infinito” (idem, ibidem), não resulta em culpa passiva, mas na musicalidade lírica da humanidade heroica. Terminemos com as próprias lições de Nietzsche:

agora, sabemos certamente que Sófocles no primeiro período imitava Ésquilo (…) A tragédia de Eurípides é a medida do pensamento ético-político-estético daquele tempo: em oposição ao instintivo desenvolvimento da arte mais antiga, que, com Sófocles nele, chega ao seu fim. Sófocles é a figura de transição; o pensamento movese ainda no caminho do impulso [ Trieb ], por isso ele é continuador de Ésquilo (…) [Pois] Sófocles havia comprimido a reflexão no coro, para purificar o poema dramático, (…) [para] distribuir felicidade e infelicidade [a]os povos, ou [a] humanidade [e as] pessoas individuais (Nietzsche, 2014, pp.74,76,79).

Por isso Sócrates não preferiu esta construção e estruturação filológica sofocleana. Sócrates como sábio de si mesmo e dos poucos: ele “assiste à tragédia de Eurípides.Sócrates o mais sábio junto com Eurípides” (idem, ibidem) preferiu a arte racionalizada e filosófica. É que com Eurípides, ao contrário de Sófocles, o autor trágico de Nietzsche por excelência, que a tragédia deixa de ser elemento “bombástico” (idem, p.80) na cultura grega antiga e passa a ser componente da ordem filosofante. Resta-nos aqui investigarmos (talvez na trilha de Marx), em que medida esta disputa trágicofilológica entre Ésquilo, Sófocles e Eurípides ainda guarda beleza – e possibilidade de deleite e reflexão de nossa existência. Introdução à tragédia de Sófocles ora recebido pela nossa cultura pode ser a primeira lição sobre isto.

Notas

1 Sobre a relação entre a erudição (e os eruditos) e a humanidade, ver: Fichte, 2014.

2 Ver sobre o idealismo alemão e a arte: Werle, 2005 e Videira, 2009.

3 Gostaria de chamar a atenção do leitor para as páginas 27, 28, 29, 30 e 31 do livro que ora estamos estudando. As passagens que constam nestas páginas são de importância seminal para a compreensão ofertada por Nietzsche sobre a relação da arte trágica antiga com os cidadãos atenienses – entendendo estes como os populares da cidade.

4 Ver nota 79 em que consta a tradução da expressão e seu significado filosófico e filológico

Referências

FICHTE, J. G. (2014).O Destino do Erudito. São Paulo: Hedra.

MARX, K. (1974). Introdução à Crítica da Economia Política. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural.

Nietzsche, F. (2014). Introdução à Tragédia de Sófocles. São Paulo: Martins Fontes.

Videira, M. (2009). Resenha de Arte e Filosofia no Idealismo Alemão, organizado por Marco Aurélio Werle e Pedro Fernandes Galé. São Paulo: Barcarolla, 2009.Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, 14, pp.147-151

Werle, M. A. (2005). O Lugar de Kant na Fundamentação da Estética como Disciplina Filosófica. Revista Dois Pontos, 2 (2), pp.129-143.

Ronaldo Tadeu de Souza – Universidade de São Paulo. [email protected]

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Metafísicas Canibais-CASTRO-(NE-C)

CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosacnaifty, 2015. Resenha de: PIMENTA, Pedro Paulo. A permanência da metafísica, pelas lentes de um antropólogo. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, v. 35, n.1, Mar, 2016

Desde sua publicação em meados de 2015, o livro de Eduardo Viveiros de Castro vem sendo comemorado por parte significativa da comunidade antropológica brasileira, e por boas razões. Trata-se de mais uma contribuição desse etnólogo à reflexão sobre o estatuto, o papel e a dimensão da antropologia como ciência social que não hesita em assumir também uma dimensão filosófica-vocação essa que muitos, inclusive este resenhista, consideram inerente a ela. É natural, portanto,que também os filósofos se posicionem diante do livro,de preferência sem aderir de antemão ao projeto em que ele se insere ou tampouco rechaçá-lo (só porque esse projeto se imiscui,sem pedir muita licença, nos domínios da filosofia).Desde o título,acertado e provocativo,este Metafísicas canibais tem tudo para alienar uma parcela do mundo acadêmico e cultural pouco afeita a irreverências com a filosofia (há uma razão para isso: volta e meia, ela é constrangida a se explicar, e mesmo a justificar a própria existência – por que filosofia? Por que filósofo? Pergunta que volta e meia se põe, como observava Rubens Rodrigues Torres Filho nos idos de 1974). O leque de referências filosóficas abertamente mobilizadas por Viveiros de Castro, que relê a antropologia estrutural de Lévi-Strauss pelo crivo de Deleuze e Guattari, constitui outro fator, se não alienante, certamente divisor, dada a paixão com que o pensamento destes últimos, atualmente divulgado à exaustão no Brasil, é aceito/rejeitado por leitores que por ele se interessam (num fenômeno similar ao que ocorre com Foucault).Mas, se é verdade que não se pode julgar o livro pelo título, e muito menos pela bibliografia, então não resta dúvida de que a chegada da obra em língua portuguesa (o texto de base surgiu na França em 2009) deve ser comemorada como uma boa-nova, pois não há dúvida de que Viveiros de Castro merece ser lido por todos aqueles que tomam a peito a filosofia e que, nessa condição, certamente receberão a obra criticamente – atitude que, se não me engano, ela mesma reclama de seu leitor.

A primeira coisa que observo é que Metafísicas canibais é um livro original não somente pelas teses que expõe, ou, melhor dizendo, que costura,como também pelo modo como as enuncia.O estilo de Viveiros de Castro é vivamente coloquial,sem nunca se tornar prosaico.O tom de sua voz,pessoal desde as primeiras páginas,não raro inusitadamente confessional, põe o leitor em contato direto com a inteligência do autor, marcada pelo raciocínio rápido, a virada engenhosa, o arremate inesperado, a ironia por vezes sarcástica, nunca desmesurada. Tudo isso, percebe-se logo, é estritamente necessário para a encenação de um balé arriscado, em que a antropologia estrutural e a filosofia contemporânea são os protagonistas. Seria impreciso referir-se à relação entre elas,tal como concebida por Viveiros de Castro,como um diálogo ou interlocução – situação demasiadamente relacionada ao logos que o autor quer descentrar.Trata-se antes de choque,fricção,desencontro, conflito e outras situações próximas do desacerto e da incompreensão, estratégia que as hábeis mãos do encenador julgam a mais conveniente para alargar as perspectivas da filosofia ao mesmo tempo que reforça a posição da antropologia como ciência com ambições filosóficas. Um clima de tensão, que resulta dessa abordagem, perpassa as páginas do livro e garante – o que não é pouco, em se tratando de uma obra com elevadas pretensões teóricas e extensas digressões conceituais-queo interesse do leitor se mantenha o mesmo,do início ao fim.

Uma das evidências de que estamos diante de um discípulo autêntico e original de Lévi-Strauss é a adoção por Viveiros de Castro de um viés bem determinado,que pauta os diferentes estudos que compõem este Metafísicas canibais, e que poderíamos descrever como um pendor, que se mostra, nas mais densas análises teóricas, para conclusões com consequências vultosas. Efeito notável, que infunde o texto com a promessa de que, atravessadas as páginas mais áridas de teoria propriamente dita, chegar-se-á por fim a um resultado de monta, que diz respeito a muito mais do que a teoria mesma que levou a ele. No caso de Lévi-Strauss,a dissolução da filosofia na etnologia,movimento coerente,que as Mitológicas finalmente executam,com as indicações e esquemas legados ao estruturalismo por Rousseau; no caso de Viveiros de Castro,a absorção mútua de certa filosofia (a de Deleuze e Guattari, mas também a de um Latour) e da única antropologia que no fundo lhe importa,justamente essa que Lévi-Strauss inventou,ao levar a sério as injunções lançadas por Rousseau à razão ocidental.Aqui e ali,trata-se em alguma medida da reforma (ou mesmo da sorte) de um saber ancestral,que,como se sabe,se encontra em plena crise desde o início do século XIX:a própria filosofia.A exemplo de Lévi-Strauss,Viveiros de Castro saboreia a ironia de que justamente um herdeiro dessa mesma filosofia – o antropólogo, logo ele, filho da Ilustração – venha a propor algo como uma reformulação da metafísica, essa “ciência” há muito combalida e desacreditada, porém resistente. É uma ideia irônica, mas que nenhum deles considera despropositada. Com efeito, a filosofia se encontra, tanto para Viveiros de Castro quanto para Lévi-Strauss,no banco dos réus – ou,melhor seria dizer,no leito de morte, tendo caducado em virtude de suas próprias deficiências e limitações (basicamente de perspectiva) e da arrogância que por séculos a fio a levou a ignorá-las. Daí a aliança com Deleuze e Guattari, que se inscrevem num horizonte de reflexão pós-metafísica. É o pano de fundo a partir do qual desponta o conceito central de toda a obra de Viveiros de Castro,ou pelo menos deste livro e do que o precedeu, A inconstância da alma selvagem: o perspectivismo. Um modo de simplificar ao extremo e mesmo banalizar Metafísicas canibais seria dizer que é uma obra de fundamentação filosófico-antropológica do perspectivismo, com vistas a assentar essa nova teoria no centro das reflexões teóricas e métodos de estudo, em campo e no gabinete, adotados pelos estudiosos simpáticos à antropologia estrutural. E mais. Uma vez adotado esse programa, sugere-se, a nova antropologia não somente prescindirá dos serviços dos antigos funcionários do logos como poderá reclamar para si as prerrogativas que um dia couberam a estes, desde Platão. Em suma, teríamos uma ciência que faz algo de fato singular: propõe uma visão de mundo,completa e abrangente.E o faz num movimento dos mais interessantes: a morte da filosofia como evento que traz o renascimento da metafísica, no seio da antropologia.

Sabiamente,o autor se recusa a rebaixar sua empreitada a um inquérito, como se a “história da filosofia” pudesse ser acessada, de repente, sem mais, a partir de um ponto de vista exterior que reduzisse a quase nada as aventuras da razão (e não só dela: entre suas acompanhantes, não esqueçamos aqui a imaginação, tão louvada pelos filósofos que entreviram o advento do saber etnológico).A insuficiência da filosofia,tal como diagnosticada pelo pós-estruturalismo(se me permitem o termo), não será identificada por nenhuma leitura rápida,com nenhum recurso aos antigos manuais que nos brindavam com a triunfante marcha da razão rumo a sua efetivação completa.Ao contrário,e pode-se dizer que quanto a isso Viveiros de Castro se coloca mesmo numa posição privilegiada,em relação àquela de Lévi-Strauss. Enquanto este,em meio a rompantes contra os filósofos,não conseguiu jamais apagar a impressão de que no fundo era um deles (e dos mais raros:um discípulo de Rousseau, talvez o único depois de Kant), nosso autor se dirige à filosofia como quem busca por uma aliada,ciente de que o título desse saber,e daquele que o pratica (filósofo), é um nome geral que recobre muitas ideias particulares, cada uma delas com suas nuances e sutilezas, algumas mais próximas de seus propósitos, outras que, de tão alheias a eles, podem simplesmente ser ignoradas. É uma estratégia inteligente, que contribui muito para o vigor dos argumentos expostos. (E representa um passo importante em relação a A inconstância da alma selvagem, onde o peremptório acerto de contas com alguns clássicos da filosofia era feito com um misto de má vontade e simplificação – Hume um herdeiro da reforma luterana,Kant,obscuro,porém conveniente etc.)

Para compreender Metafísicas canibais e saboreá-lo não é preciso,porém,concordar com esse diagnóstico,apenas embarcar com o autor em sua aventura intelectual, sem necessariamente se comprometer com ela (em sã consciência,ninguém lê Descartes ou Hegel em busca da verdade,mas,via de regra,porque são autores interessantes).É então que surge a questão de saber que sentimentos o livro estaria apto a despertar num leitor oriundo da filosofia que se interessa pela exposição como testemunho de uma vigorosa empreitada intelectual. Tudo depende, é claro, da formação de cada um, de suas leituras, dos filósofos que se está acostumado a frequentar,por assim dizer.Os leitores acostumados à filosofia surgida na França em fins dos anos 1950 não terão dificuldade em extrair muito proveito das páginas de Viveiros de Castro,pois é efetivamente com essa tradição que ele dialoga, inclusive no terreno da antropologia – se pensarmos que em 1966 Foucault encerra As palavras e as coisas saudando a etnologia de Lévi-Strauss como uma das formas legítimas do saber filosófico de nosso tempo (pois o tempo de então é também,em larga medida,o nosso).Mas é claro que nem todos os filósofos são herdeiros de Foucault. E questões inusitadas podem surgir,a partir de uma posição mais distante em relação a tudo isso.

Por exemplo, um leitor de Kant (como este resenhista) poderia observar, já no próprio título do livro, a filiação do projeto de Viveiros de Castro a uma tradição especificamente moderna, que consiste na elevação, a objeto de reflexão filosófica, de um tema raramente estudado antes do século XVIII,e em todo caso tido como de importância marginal: acuriosa permanência da metafísica, a despeito de todos os ataques e contestações sofridos por essa pretensa ciência – ou por esse saber,se quisermos simplificar as coisas.É um tema fascinante:outrora “rainha de todas as ciências”,ela se vê contestada,declara a Crítica da razão pura, por todas as partes. Mas mesmo os céticos, que a rechaçam com mais contundência, concedem a ela algum valor, que seja relativo à configuração específica da razão humana, e logo lhe concedem uma perenidade. É claro que o título cunhado por Viveiros de Castro tem um forte sabor irônico, mas nem por isso é menos sério. Em suas lições no Collège de France,Lévi-Strauss advertia:o canibalismo,estritamente falando,não existe como instituição social. O que seriam então essas “metafísicas canibais”? Precisamente isto, eu arrisco dizer: sistemas de leitura e interpretação, que surgem não da cogitação do indivíduo a respeito do mundo, mas do lugar mesmo que ele ocupa em relação a outros indivíduos, na trama das relações que perfazem isso que por conveniência se chama de mundo, natureza, totalidade, cosmos, gaia etc. Muito se discutiu, na época moderna, acerca dos limites da razão e da possibilidade ou impossibilidade da metafísica como ciência;mas,como alerta Kant, haverá metafísica enquanto houver relação e enquanto essas relações forem concomitantes a ações – ou seja, haverá metafísica enquanto houver seres (não necessariamente humanos) que atuam em consequência de necessidades sentidas, sejam elas transcendentais (Kant), sejam empíricas (Condillac, Rousseau). A esse respeito, cabe lembrar a lição de Lebrun,intérprete de Kant:pode-se esperar pelo fim da metafísica comociência,mas seria uma grande tolice aguardar por sua dissolução como instinto próprio,resultante do fato de que o homem é uma espécie de animal que cogita e pensa abstratamente;logo,sempre haverá uma metafísica, como presença surda e incontornável na constituição de todo e qualquer pensamento ou saber positivo – seja ele abstrato ou civilizado, seja concreto ou selvagem (Lévi-Strauss), seja ainda, como sugere Viveiros de Castro (na trilha de um Iluminismo expandido),animal,vegetal,pós-humano etc.Não custa muito,assim, à antropologia estrutural reiterar algo que o século xviii apenas esboçara: a equivalência entre esses múltiplos sistemas, quanto ao valor da interpretação que eles sugerem (e cada um deles sugere sua própria interpretação como única, verdadeira e necessária, ainda que restrita a um só evento ou fenômeno: logo, como relativa a quem interpreta). Que se afirme a existência de classes reais na natureza;que estas sejam reduzidas a uma síntese da imaginação,que sejam elevadas a princípios transcendentais, dissolvidas e anuladas pela perspectiva de um indivíduo qualquer – em todo caso,articula-se uma visada sobre indivíduos e relações, e é prudente deixar em suspenso qual delas deve ter prioridade ou se seriam mesmo excludentes.

Com isso, Metafísicas canibais reforça o convite, que já fora feito indiretamente pelo autor em A inconstância da alma selvagem e diretamente em conferências (que eu saiba,não publicadas por escrito) para que os filósofos sejam lidos do mesmo modo como quem se encontra diante da enunciação de uma concepção de mundo essencialmente alheia ao senso comum (teórico ou não) de cada um – experiência com que o etnógrafo/etnólogo se depara o tempo inteiro, se estiver aberto ao que a experiência, direta ou indireta, tem a lhe oferecer. Assim como seria uma perda de tempo deslocar-se até o Alto Xingu ou a Itanhaém apenas para reforçar o que os manuais de outrora e de hoje dizem sobre “povos primitivos”, de que valeria abrir as páginas de um Espinosa ou de um Aristóteles, se é apenas para confirmar o que cada um tem na cabeça e toma como verdades intocáveis a respeito do que é relevante ou não para o atual debate filosófico? É preciso conceder a um filósofo que parece falar e pensar como nós, e que parecemos compreender, a possibilidade de que aquilo que ele diz seja uma articulação estranha, de verdades cujasimplicações nos escapam, que, para ser compreendidas, exigiriam realmente algo como um descentramento de nossa razão, uma abertura tal que levasse a considerar cada sistema filosófico como a expressão de uma singularidade completa quanto ao modo de pensar.É preciso,em suma, que a ideia de uma razão ocidental seja posta em suspenso, para que a filosofia associada a essa alcunha venha a ressurgir em todo o seu esplendor e riqueza. Aceita essa premissa, na verdade bastante sensata, e silenciosamente em operação na melhor historiografia filosófica (como a de um Deleuze ou de um Lebrun, como nas leituras de um Foucault), fica difícil falar, sem mais, em logos e em razão ocidental. Por mais que os filósofos da tradição compartilhem de certos pressupostos,seriam estes suficientes,como se costuma pensar,para sustentar a unidade dessa entidade rarefeita,a razão ocidental,diante do peso e da força das singularidades de cada um? Pensamento selvagem ou pensamentos selvagens? Daí a pertinência do título escolhido por Viveiros de Castro, que fala em metafísicas, não em metafísica: se é verdade que esta morreu,com a revolução kantiana ou com a Revolução Francesa,pouco importa aqui,sua posteridade é igualmente irrecusável.Encontram-se metafísicas por toda parte – das ciências da natureza às da linguagem, da medicina à economia,da história à política e,é claro,em toda filosofia que se preze (mesmo nas pós-metafísicas, que pretendem atravessar a antiga ciência).Com as ciências humanas não é diferente,e uma lição silenciosa de Metafísicas canibais é esta: basta que se ignore ou, pior, se faça pouco da presença de uma metafísica num saber positivo qualquer para que este adquira, inadvertidamente, as feições de uma metafísica única, centralizada, pronta para suprimir a pluralidade de saberes, possíveis e existentes, às voltas com as condições de possibilidade de sua efetivação como saberes.

A sugestão que se depreende da leitura de Viveiros de Castro para a compreensão da reflexão filosófica em relação com a historicidade da própria filosofia é tão mais pertinente quando se pensa que o próprio Deleuze, cuja obra perpassa as páginas desse livro, foi antes de tudo um exímio leitor de Hume (1953), Nietzsche (1962), Kant (1963), Espinosa (1968) e Leibniz (1986). Essa série de livros pode inclusive ser vista como uma espécie de mitologia filosófica do autor, teia de referências sobre a qual repousa sua própria reflexão – ela mesma,mais um capítulo das mitológicas filosóficas que vislumbrei aqui, a partir de Metafísicas canibais. Em vista disso, uma frustração que o leitor de cabeça filosófica poderá eventualmente experimentar ao percorrer as páginas de Metafísicas canibais é a relutância mostrada pelo autor sempre que tem diante de si a possibilidade de explorar as sendas percorridas por Deleuze em sua historiografia (indissociável de sua filosofia). É o caso, por exemplo, de uma sugestão feita por Viveiros de Castro, porém não explorada, de que o perspectivismo teria afinidades com a monadologia de Leibniz. Parece indubitável que, se uma abertura como essa fosse aproveitada, o livro seria bastante diferente, embora não necessariamente melhor. Em todo caso, fica a tentação de pensar o que seria esse outro livro, que um leitor entusiasmado de Leibniz (ou de Borges) poderia inclusive supor como realmente existente – correlato metafísico, determinação complementar da mônada que é o Metafísicas canibais que temos diante de nós. (Seria esse livro aquele a que o autor se refere nas páginas iniciais – o anti-Narciso?) A etnologia de Viveiros de Castro,ousada e sugestiva, deixa assim no leitor a impressão de ser um pensamento que se estrutura à maneira do organismo leibniziano – totalidade encerrada em si mesma, máquina vital cujas partes remetem a determinações infinitas de uma substância una (cujo equivalente, no plano da exegese crítica, seria a tradição antropológico-filosófica, em constante evolução, que serve de pano de fundo ao autor).

Como toda mônada,essa se encerra em si mesma no mesmo movimento em que se abre para outras,e o leitor de filosofia tirará proveito do modo como Viveiros de Castro se posiciona em relação à tradição estruturalista e seus desdobramentos;e quem sabe se,estimulado por esse embate, não mergulhará (ou se perderá?) nos escritos de Clastres, Descola, Ingold, Sahlins, Strathern, Wagner e tantos outros que aí comparecem – incluindo, evidentemente, o saber dos “povos da selva”.É um enfrentamento estimulante,conduzido por um pensador que se põe à altura de uma corrente de pensamento para a qual sua própria obra vem contribuindo, pelo menos desde Araweté: os deuses canibais (1986).Sem mencionar que é impossível não retornar,ainda uma vez,ao Lévi-Strauss de Opensamentoselvagem e das Mitológicas – ponto de partida e de retorno de Viveiros de Castro, em sua etnografia bem como em sua própria “metafísica” (aqui já com as devidas aspas).Essa (re)descoberta de fontes poderá inclusive reforçar esta indagação, a que a leitura do livro progressivamente dá corpo:e quanto aos limites dessa metafísica tão singular, que, na pena de Viveiros de Castro, pretende contestar a metafísica clássica? Não estariam eles na articulação discursiva,na formulação dos conceitos,na leitura e interpretação das fontes, orais, escritas, simbólicas – enfim, numa certa presença, talvez incontornável,daquela racionalidade que tanto incomoda e que se pretende superar? Se essa indagação tiver sentido, o livro de Viveiros de Castro se mostrará também,entre muitas outras coisas,como uma confirmação da atualidade de Kant e de Nietzsche. E, nessa exata medida, poderá ser inscrito numa mitologia que, felizmente para todos nós, não parece dar sinais de esgotamento.

Pedro Paulo Pimenta– Professor do Departamento de Filosofia da USP.

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Revolução dos Cravos e os trânsitos coloniais – LIMA et al (AF)

LIMA, Edilson Vicente et al; FERNANDES, José Antônio da Costa (Org). Revolução dos Cravos e os trânsitos coloniais. São Paulo: Editora Kafka, 2016. Resenha de: PAOLIELLO, Guilherme. Artefilosofia, Ouro Preto, n.21, 2016.

Organizado a partir de um evento promovido pelo Ministério da Cultura em parceria com a Casa de Portugal (SP/BR) e o Centro Cultural 25 de Abril, sobre a Revolução de 25 de abril-entre nós mais conhecida como a Revolução dos Cravos-, o livro “A Revolução dos Cravos e os trânsitos coloniais” aborda temáticas que englobam aspectos políticos, sociais, históricos e culturais, e amplia não apenas nossa compreensão daquele movimento inspirador para o destino da democracia no mundo, como estabelece reflexões aprofundadas acerca das possibilidades de relações entre Portugal e Brasil.

O livro é estruturado em três capítulos, cada qual precedido de uma introdução elucidativa.

O capítulo 1, intitulado “desafios de Portugal: da revolução aos dias de hoje” trás dois textos. No primeiro, “Revolução e contrarrevolução em Portugal (1974-1976)”, Augusto Buonicore contextualiza o ambiente politico e social que possibilitou o advento da revolução que democratizou o país após os anos de ditadura salazarista, projetando a nação para um futuro que se identifica com ideais mais libertários e progressistas. A fim de compreender a grande complexidade da sociedade portuguesa no período pós-revolucionário, o segundo texto, intitulado “Portugal entre prósperos e calibans: ontem e hoje”, de José Antônio da Costa Fernandes, interliga momentos da história de Portugal numa perspectiva de longa duração, desde o Portugal Imperial, anterior ao 25 de abril, até o Portugal europeu, da União Europeia, em busca de uma identidade ressignificada no mundo globalizado. Para isso se vale d o potencial crítico de conceitos definidores da identidade portuguesa, a partir de autores como Boaventura de Sousa Santos, tais como “pós-colonialismo”, “neocolonialismo”, “barroco”, “periferia e semiperiferia”, a fim de perspectivar o papel das ciências sociais na compreensão e significação de Portugal.

O capítulo 2, “Revolução dos Cravos: cultura e trânsitos coloniais” é composto por três textos que enfatizam o papel da cultura, das artes e das letras na construção de todo um contexto de longa duração no qual se insere a Revolução.

Edilson Vicente de Lima e Rosemeire Moreira, em “F ado, trânsitos coloniais e resistência” traçam um painel histórico no qual o fado, enquanto manifestação musical autenticamente portuguesa, tem origens e se relaciona com gêneros musicais híbridos, tais como a modinha e o lundu, todos eles resultantes dos trânsitos e das trocas culturais triangulares entre Portugal, Brasil e países africanos de colonização portuguesa.

Tendo a diáspora negra como fator determinante na construção da cultura ocidental, “ressoa no fado atual uma memória longínqua de quando nos encontrávamos na festa, na dança e na música, ou seja, nos fados, compartilhando nossos destinos plurais”. Assim como a música sintetiza os trânsitos e as trocas culturais, outras linguagens também inscrevem seu modo de interpretar o mundo. É assim que Alexandre Huady Torres Guimarães, em “ A Revolução dos Cravos pelo olhar foto jornalístico” analisa um conjunto de fotografias de jornais no período da Revolução estabelecendo uma leitura dessas imagens tanto do ponto de vista de sua significação histórica, quanto da composição propriamente fotográfica. No terceiro texto deste capítulo, Lincoln Secco, em “Fernando Pessoa depois da Revolução” investiga a produção textual política do poeta portugues, esquecida nos anos da ditadura, mas de interesse crescente após a Revolução. Não apenas a produção poética e textual propriamente dita mas a fotografia jornalística e a música são tratadas, neste capítulo, como textos a serem lidos e interpretados, no sentido que propõe Alberto Manguel, para quem ler é um “processo de reconstrução desconcertante, labiríntico, comum e, contudo, pessoal”.

Após contextualizar e problematizar os desdobramentos da Revolução dos Cravos no primeiro capítulo e ampliar o arco interpretativo tendo como referência diferentes modos de ler a cultura e a história, no segundo, o terceiro capítulo do livro se volta para os sujeitos da relação Portugal-Brasil.

Daí o título “Imigrantes, resistências e acomodações”. Neste capítulo podemos observar parte das discussões que envolvem a Revolução dos Cravos e seus desdobramentos, pois durante o período da ditadura salazarista, vários foram os deslocamentos de portugueses pelo globo, e que impactaram os países receptores e construíram formas novas de sociabilidade e de inserção nestes países. O primeiro texto deste terceiro e último capítulo, “Ações antissalazaristas e protagonismo feminino: Maria Archer e Arajaryr Campos (décadas de 1950-1970)”, de Maria Izilda Santos de Matos, parte de uma sólida pesquisa documental para evidenciar o processo de recepção de imigrantes portugueses em São Paulo e sua atuação política na condição de exilados.

O texto ressalta a importância do jornal “ Portugal Democrático ”, que funcionou numa das salas do Centro Republicano Português de São Paulo, editado ininterrupta e mensalmente, entre 1956 e 1977 com tiragem de cerca de 3000 exemplares, por iniciativa de membros do Partido Comunista Português.

O texto final do livro, “Influências políticas na programação cultural da Casa de Portugal de São Paulo”, de Leandro Rodrigues Gonzalez Fernandez, analisa, sob a ótica da história cultural, parte da programação desta instituição que recebeu algum tipo de influência política, mormente as homenagens e honrarias concedidas pela Casa, já num período mais recente, a membros de partidos políticos brasileiros de viés conservador.

Dessa maneira, o livro “A revolução dos cravos e os trânsitos coloniais”, surge num momento crucial da história de nosso país. Chama a atenção para a urgência de discussão e ampliação do aparato crítico em tempos de retrocesso social e desestabilização da ordem democrática. Conhecer e discutir o processo de democratização perpetrado pela Revolução de 25 de abril de 1974, em Portugal, representa não apenas uma oportunidade de aprofundar as relações entre esses dois países, mas é, sobretudo, um alento para nós brasileiros, n o momento em que se instaura em nosso país uma espécie de estado de exceção operado por um aparelho judiciário historicamente vinculado a setores conservadores da sociedade, sustentado por um oligopólio midiático sem precedentes no mundo contemporâneo e um a tendência à regressão no campo dos costumes pressionada pela atuação de grupos religiosos com forte atuação nos poderes legislativo e executivo.

Guilherme Paoliello-Professor do curso de Música no Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected]

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Palavras cruzadas – GRAMMONT (AF)

GRAMMONT, Guiomar. Palavras cruzadas. [Sn.]. Resenha de: JARDIM, Eduardo. Artefilosofia, Ouro Preto, n.20, 2016.

Palavras cruzadas, de Guiomar de Grammont, é um livro corajoso. Aborda o destino trágico dos guerrilheiros do Araguaia, que se tornaram perseguidos políticos no período da ditadura militar. Muitos foram mortos, outros continuam desaparecidos, como Leonardo, o personagem do romance. O tema já foi tratado anteriormente pelos historiadores, mas não da forma tão livre como faz Guiomar.

Essa liberdade certamente tem a ver com o fato de que a exploração do assunto se faz, no caso, por meio de uma obra literária. O livro escapa da visão simplificadora que opõe heróis e vilões e encara de frente a complexa e dolorosa trajetória do personagem do desaparecido. A narrativa de Sofia, irmã de Leonardo, é o fio condutor do romance. Ela quer a todo custo resgatar do esquecimento a história do irmão. São vários os sentidos da sua busca. Explicitamente trata-se de uma retomada da figura de Antígona, que enfrenta as leis da cidade para poder en terrar o corpo do irmão. Porém, de forma indireta, o romance toca em aspectos centrais do significado da narrativa literária, incluindo a tragédia grega. Dois deles são particularmente pertinentes: a dimensão catártica da literatura e, relacionado com ela, a possiblidade de a literatura promover a reconciliação com a realidade e, como decorrência, tornar possível um recomeço da vida.

Guiomar tem todo motivo para usar como epígrafe uma passagem da Antígona, de Sófocles, que se refere à decisão da heroína d e não deixar insepulto o cadáver do irmão, exposto aos ataques dos cães famintos e das aves carniceiras. O livro também traz à lembrança uma passagem de outra escritora, a dinamarquesa Isak Dinesen, lembrada por Hannah Arendt: “Todas as mágoas são suportáveis quando se pode contar uma história a seu respeito.” Como explicar este poder da narrativa de dar alento àquele que ouve ou lê a história de seus próprios sofrimentos, como aconteceu com Ulisses, na corte dos feácios? Há, primeiramente, o fato de que o contar a história estabelece uma distância do que efetivamente ocorreu. Há uma cessação do sofrimento efetivo. Ao mesmo tempo, a narrativa torna possível a reapresentação dos acontecimentos, o que constitui uma forma de se reaproximar deles. Isto quer dizer que a narrativa promove a reconciliação com a realidade. Ao mesmo tempo que guarda um elemento curativo, o contar a história tem o dom de dar significado àquilo que escapa à compreensão. Em Palavras cruzadas, dois personagens contrastam em sua maneira de lidar com a trajetória de Leonardo – a irmã, Sofia, e a mãe, Luisa. Esta última prefere esquecer. Já envelhecida, ela revela à filha que não se importa de perder a memória, pois lembrar é doloroso demais. Narrar a história do que aconteceu está vedado para ela. Assim, não há chance s de superar a dor, de reconciliar-se com o que aconteceu, de compreender seu significado. Sofia, pelo contrário, encarna a figura da narradora, adota o ponto de vista que é possivelmente da própria autora do livro. Não seria exagerado dizer que, no seu caso, existe salvação. Por este motivo, pode-se dizer que Palavras cruzadas, apesar de todo o percurso trágico descrito, tem um desfecho positivo. A comprovação disto é o encontro de Sofia com a sob rinha, até então desconhecida, que representa no livro a vida que se reinicia. Narrar, reconciliar-se, compreender efetivam o acabamento de um processo, não a sua anulação. O acabamento libera a possibilidade de um novo começo. Assim, novas vidas se iniciam, como a da sobrinha Cíntia, em Paris, com seu gesto de libertar o passarinho para voar. E estas vidas serão possivelmente o assunto de novas histórias para contar. Com sua linguagem ágil e nunca pretensiosa, Guiomar de Grammont reconstitui em seu livro um capítulo difícil da história recente do país. Ao mesmo tempo, com muita inteligência, provoca a reflexão sobre importantes aspectos da natureza da narrativa literária, de um ponto de vista filosófico.

Recortes do livro, trechos escolhidos pela autora:

Seu irmão jazia insepulto; ela não quis que ele fosse espedaçado pelos cães famintos ou pelas aves carniceiras.

Antígona, Sófocles

Sofia voltou para casa perturbada. Despiu as roupas molhadas e tomou um banho quente. Era inverno, mas ela não sabia se os arrepios que sentia eram febre ou efeito da descoberta. Entrou no quarto e, depois de hesitar um momento, decidiu procurar a caixa. Precisou subir em uma cadeira para alcançá-la na parte mais alta do armário, em seu quarto. Deixara ali para evitar a tentação da lembrança. Sempre que estava triste, sempre que se sentia só, nos aniversários, nas datas que marcavam a passagem do tempo e faziam com que ela pensasse mais ainda no irmão, voltava a procurar aquelas fotos e objetos, para buscar algum conforto. Eram os poucos indícios que conservava da presença dele no mundo, e aquelas incursões ao passado acabavam por aumentar sua angústia. As bordas das fotos tinham sido danificadas, aqui e ali, por suas lágrimas. Sofia pegou a caixa e procurou a foto tirada na casa de seus pais, quando ela tinha uns dez anos, em que Leonardo e seu amigo sorriam. Leonardo a pegava no colo, com visível orgulho, como se ela fosse um troféu. Sofia olhou com atenção o rosto do amigo ao lado do irmão. Sim, era ele, sem dúvida. Então, guardou a foto e colocou a caixa no mesmo lugar.

[…] Sofia estava concluindo suas pesquisas e começou a ficar intrigada com um ponto que não tinha conseguido esclarecer: como Leonardo teria ido parar no Araguaia? A resposta a essa pergunta era fundamental, pois, dependendo do resultado, ele podia estar vivo ou morto. E ela acalentava a esperança de que ele estivesse vivo em algum lugar, que pudesse retornar de repente e contar que tudo não passara de um pesadelo. Talvez estivesse há anos conduzindo trens em um metrô sombrio da Suécia, ou entregando jornais, ou limpando latrinas em algum país europeu ou nos Estados Unidos. Papéis falsos, um ou dois casamentos com mulheres que não amava, apenas para obter cidadania e viver do seguro desemprego, esquecido de tudo que tinha vivido antes. A vida é assim, nos leva por caminhos inusitados. E, muitas vezes, é difícil voltar. A volta dá uma preguiça enorme. É melhor lembrar as pessoas que fomos e os entes que um dia amamos a enfrentar o estranhamento. Olhar para eles e perceber que não se sente mais nada, que o elo se partiu, definitivamente, que não há retorno. Quantos exilados não viviam dessa forma? Sem passado e sem futuro, expatriados para sempre? Seria essa a história de Leonardo? Sofia tanto temia quanto desejava essa possibilidade. E, se fosse assim, como ter certeza? Como poderia saber se ele estava vivo? Provavelmente a vida iria transcorre r até o fim e eles jamais se encontrariam. Leonardo iria morrer, em algum lugar desconhecido, sem jazigo de família, sem memória, sem história.

Afinal, a morte é a única certeza da vida. Se Leonardo já não estivesse morto, morreria um dia, e ela também, e tudo que haviam partilhado. Todas as lembranças, as trocas de afeto quando ela era criança, os abraços, as brincadeiras, tudo se desfaria no tempo.

Era esse o destino de todos os seres humanos. Então, porque ela sofria tanto? Por que aquela permanente angústia pela falta de uma conclusão, um desfecho, um ponto final? Por que não deixava o tempo passar e a lembrança se desvanecer até se tornar poeira no infinito, como se nada tivesse acontecido, como se tudo fosse aqui e agora e para sempre? “Tudo é sempre a gora”, o poema ecoava como um mantra em seu pensamento. Esqueça, tudo é sempre agora. Nada foi, nem será. Nada se perde, tudo se transforma, tudo é sempre agora.

Porém, ela não conseguia esquecer. Não havia sono que não fosse visitado pela presença de seu irmão, nem momento de felicidade que não viesse empanado por aquela ausência. Uma culpa fina e constante a trespassava, por ter sobrevivido, por estar no mundo e poder aproveitar os momentos felizes. Cada instante de alegria era um momento a mais sem Leonardo, um momento a menos que ele estaria vivendo ou compartilhando com ela e com a família. Leonardo era um rosto sorrindo no escuro, quando ela assistia a um filme ou espetáculo, era um braço que roçava o seu, cálido, humano. Ela olhava para o lado, de rep ente, esperando dar com o olhar dele, doce e próximo, e se desapontava. Quando Sofia ouvia uma música ou via um filme que a emocionava, imaginava-se contando a ele e as lágrimas vinham a seus olhos. Sempre que ela abraçava um homem mais alto, a reminiscência de um gesto semelhante atravessava por um segundo seu inconsciente, mesmo que ela não estivesse pensando em seu irmão, mesmo que ela não pensasse em nada. Aquela falta pulsava, buraco negro no espaço.

O tempo passava e um dia todas as lembranças seriam esquecidas, as vivências, sentimentos e histórias se dissolveriam no insondável.

[…] O vento insistia em dobrar a folha de papel presa na máquina de escrever, como se quisesse atrair a atenção de Sofia. Ela se aproximou, moveu o carrinho e soltou a folha. O papel parecia ter sido deixado preso ali para que alguém o encontrasse. Como uma explicação ou…

uma carta de despedida?!, pensou. E, de repente, a dúvida.

Sentou-se na poltrona, trêmula, o papel na mão. As letras embaralhavam.

Rememorou os eventos d aquela manhã, quando chegou, depois do telefonema da vizinha. Viu a ambulância na porta da casa e entrou correndo, a porta do carro ficou aberta. No quarto, a mãe nas mãos dos enfermeiros. Lábios arroxeados, a pele pálida. O coração de Sofia saltava a cada choque que eles imprimiam no peito dela. A brutalidade dos procedimentos de reanimação sacudia também as entranhas da filha. Os enfermeiros a instaram a chamar a mãe pelo nome. Luisa! Luisa! Sofia disse e, de repente, entendeu que ela nunca mais a ouviria. Nunca mais. Mãe! Mãe! gritou, sem reconhecer a própria voz.

Luisa foi carregada em uma maca e Sofia entrou na ambulância com ela, sem saber se ela reagira ou não. Mais tarde, a dor de cabeça, sob as luzes fortes do hospital. Só então se permitiu chorar, um choro convulso e forte, de criança. Sedativos, sono, quando talvez tivesse que estar acordada. Depois, a impressão de assistir a si mesma, num pesadelo, no velório e na cerimônia de cremação.

Somente semanas depois conseguiu retornar para arrumar as coisas, ver o que iria guardar e o que iria doar, desmontar tudo, enfim, para que a casa pudesse ser vendida. Os móveis cobertos com lençóis. Nada restaria que pudesse contar o que havia acontecido entre aquelas paredes. A mãe se foi, logo seria a vez dela, Sofia.

Estou sozinha, pensou. E reagiu: Não, tenho meus amigos. Tenho Marcos. De repente, compreendeu a importância que Marcos tinha para ela. A constatação deu-lhe um suave sentimento de liberdade.

E foi esse pensamento reconfortante que a fez voltar a si e ser capaz de ler, enfim, o texto que a tinha surpreendido e intrigado, ao encontrá-lo preso à máquina de escrever de Luisa. A página amarelada indicava que ele tinha sido escrito há muito tempo.

Então, a mãe o tinha colocado na máquina de propósito, para que Sofia o lesse: “A porta bate e me viro, a respiração suspensa. A cortina ondula na janela. Mais uma vez tenho a impressão de que você entrou, certamente no banheiro. Escondeu-se para me dar um susto, como fazia quando criança? Eu fingia que não estava te vendo debaixo da mesa, ou atrás do tapete. Procurava, chamando seu nome. Como faço agora, num murmúrio que cresce e se transforma em pergunta. Pressinto sua presença. Sei que você está aqui. A certeza me perturba, o coração bate, o rubor me sobe às faces. Meu corpo se prepara para esse abraço que irá me tirar do chão.

Ficarei tonta quando você me girar no ar, os braços mais fortes agora, homem feito. A barba irá roçar meu rosto? Não, você iria querer chegar com o rosto escanhoado, medo de que, depois de tantos anos, eu não mais te reconhecesse. Fosse possível não te reconhecer! Você, que saiu do meu ventre. Por que tantos anos sem notícias? A quem deseja punir com sua falta? A seu pai? Você teria medo do retorno? Não imagina quantas vezes ouvi seu pai chorar sozinho, a porta do banheiro fechada, para que eu não percebesse. Não posso chorar, filho. Não choro nunca, só vou chorar quando tiver certeza de que você não voltará mais.

“Ouço um ruído na direção da cozinha. O cachorro sentiu seu cheiro, levanta o focinho, late. Uma, duas, três vezes. Somos dois, agora, em expectativa. Quase vejo seu vulto, oculto no umbral da cozinha. Entro, de repente, quero te surpreender. Você me olha, ao mesmo tempo assustado e excitado. Leva à boca o dedo com o creme roubado da cobertura do bolo. Repreendo, um tapinha na mão, sem força. Seu rosto se ilumina. Sinto uma vontade momentânea de te bater de verdade, mas, no fundo, estou feliz. Daria o bolo inteiro a você, se não soubesse que prefere assim. A travessura te encanta, aumenta seu prazer. Você sempre fez o que quis. Nada te detinha. Ninguém podia te impedir de ser você mesmo. Arrumo a mesa para o café, coloco sua xícara preferida, aquela da asa quebrada. A avó te de u e você nunca me deixou jogar fora. Nunca deixei que ninguém sentasse em seu lugar, meu filho, nem as visitas, ninguém.

“Tenho tantas perguntas a te fazer! Não, primeiro, vou explodir em choro, junto a seu peito. Da mais pura alegria. As lágrimas que jamais derramei. Vejo seus olhos sorrindo. Também marejados. E o abraço? O abraço que me tira o fôlego. Desfaleço em seus braços. Consumi todas as forças nessa espera. Quantas tentativas de encontrar seu paradeiro! Por que você precisou se esconder, meu filho? A quantas fugas te obrigaram! Mas não te farei recriminações. Não precisa explicar nada. Tudo é passado. Podemos começar outra vida. Há tanto a contar um ao outro! Você sabe o que aconteceu nesse tempo? Quem morreu, os presidentes que sucederam, as mudanças de moeda? Esteve tão longe de casa… Leio relatos de exilados. Procuro seu rosto nas fotos de homens de sobretudo, em paisagens cobertas de neve. Imagino te encontrar vagando no escuro dos metrôs, esfomeado e sem emprego. Sem documentos, em algum país onde será sempre estrangeiro. Errante, com medo de voltar e não encontrar o que deixou. Medo de não encontrar mais a si mesmo. Mas agora… Agora tudo acabou, meu filho! “Repito esse ritual todas as manhãs, e sigo seus passos invisíveis pela sala. Entro na cozinha, abro armários, num gesto sem sentido. Como a te convencer de que entrei nesse jogo de esconde-esconde.

“Fecho-os, rápido, quero que acabe logo, já não tenho forças para continuar. Vivo apenas a sua volta, seu retorno se repete em meus sonhos. Acordo com a sensação de que, finalmente, aconteceu: você está dormindo no quarto ao lado. Levanto no meio da noite, pé ante pé, abro a porta, na expectativa de escutar sua respiração. Chego junto à cama vazia e ajeito os lençóis sobre o corpo que não está ali. Como fazia quando você era menino, e dormia sem se lavar, me fazendo despi-lo e vestir seu pijama com dificuldade, você já mergulhado no sono. Tenho vontade de te meter dormindo sob o chuveiro, mas não quero perturbar o sono pesado, depois de tantas brincadeiras. Seu abandono, ressonando, me comove.

Eduardo Jardim-PUC – Rio.

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O circuito dos afetos – SAFATLE (AF)

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016). Resenha de: FILHO, Sílvio Rosa. Do corpo latente do texto. Um pressentimento de manifesto 1. Artefilosofia, Ouro Preto, n.20, 2016.

Eu gostaria de propor minha leitura d’ O circuito dos afetos, assinalando que se trata de uma proposta elaborada em circunstâncias adversas, porque contemporâneas, e supondo que o modo de ler tenha-se dado a partir de um ângulo de abordagem específico, peculiar o bastante para trazer consigo implicações, ao menos, na releitura do livro. Hoje estou menos interessado em situar Vladimir Safatle na divisão social do trabalho intelectual no Brasil, visto ora como polemista ora como colunista, ou publicista ou ensaísta ou compositor ou professor ou historiador d a filosofia. O autor que me interessa está em contraste com aquele que vai aparecendo logo na quarta capa do livro, o proponente da filosofia necessária para uma teoria política da transformação, ambas solidárias de transformações sociais efetivas. Encampa das a ambição filosófica e a ousadia política, tampouco me interessa hoje o jogo técnico de contrapartidas, muito engenhoso ao seu modo, por exemplo, entre Hobbes e Espinosa, Hegel e Adorno, Freud e Lacan, Foucault e Canguilhem, entre tantos outros.

Eu me voltaria então, principalmente, para os lados que flertam com alguns pontos de fuga do livro, aqueles que talvez permitam enxergar O circuito dos afetos não como publicação que constitui algum bloco de teor normativo, mas antes – esta é a minha proposta – como livro que estaria a instituir o próprio corpo latente de um texto. Se esta leitura faz sentido, é porque ali se funda algo assim como um circuito “híbrido”. Digamos que, junto ao circuito impresso do livro, o próprio corpo latente do texto se abre para as contingências de um corpo outro. Mas então, simplesmente, um corpo a corpo? Ou ainda: passagem iminente do corpo latente do texto ao corpo outro enquanto corpo manifesto? Esta é a minha primeira, em certo sentido, a minha única questão, mas ficando b em entendido que “outro”, aqui entre aspas, antes de tudo não é uma propriedade, não é um atributo nem um predicado desses corpos.

Quero crer que a rigor há uma certa compatibilidade entre a questão e o problema central do livro. Este último, expresso à queima roupa, é o seguinte: que afetos criam novos sujeitos? Não haveria incompatibilidade, mas exigência de certos descentramentos, pois, se a natureza da experiência política propriamente dita significa “desbloqueio do novo” (como em Paulo Arantes, por exemplo, desde A ordem do tempo), e, no caso, vale como abertura para alteridades impensadas (como em Michel Foucault) e para alteridades incomensuráveis (como em Jacques Lacan), então não será com os mesmos corpos que haveremos de construir realidades políticas tão transformadoras quanto mais impensadas e incomensuráveis. A certa altura do texto impresso, trecho passível de acender a imaginação do leitor nos começos do século XXI, diz Vladimir: “mais do que novas ideias, precisamos de outro corpo, pois não haverá nova política com os mesmos sentimentos de sempre”.

Deixo de lado quem nessas frases só tiver ouvidos para ouvir algum tipo de anti-intelectualismo, caso de regressão que não vou comentar. Mas há quem tenha ouvidos para captar nessas frases, menos os ecos de Beckett, e mais, as ressonâncias de Artaud. Não digo que não; afinal, neste último caso, o teatro e o seu duplo não precisam ficar reservados ao campo do silêncio; o debate sobre o livro, com efeito, não é de hoje. De todo modo eu diria que a reverberação das formas argumentativas dá a ver uma geopolítica dos afetos e dá a ouvir um diálogo do corpo latente do texto com os corpos – individuais e coletivos – pois são os corpos que leem. E, depois de tudo, os corpos é que haverão de se entende r, mudando o patamar dos consensos ou reconfigurando a plataforma do dissenso com-sentido. Daí um desdobramento neoespinosano que, coetâneo à questão inicial, põe em jogo o problema da intercorporeidade e poderia ser reformulado como segue: o que pode o corpo que lê no limite tenso de um tempo presente que se desnaturaliza, tempo presente do corpo que cria ou inventa ou institui as suas próprias possibilidades de ampliação?

De modo um pouco mais específico, não havendo política sem afetos, o circuito já instituído é literalmente um circuito fechado, apenas constituinte, não ainda instituinte. No entanto é possível imaginar que nem todo ambiente institucional é ambiente institucionalmente consolidado, ainda mais nos tempos que correm, com gestões aceleradas de desinstitucionalização, catástases, catástrofes e assim por diante. Ademais, a mobilização conceitual da contingência, no texto impresso, vem contrariar impossibilidades presumidas na contemporaneidade. Remanescendo um ímpeto para 203 contrariar inclinações estruturais ao famigerado fatalismo brasileiro, mais a recusa do luto pontilhado ao infinito por corpos tantos e melancolizados, depois da leitura d’ O circuito dos afetos, o impossível está posto em suspeita. Nesse passo pode servir de contraexemplo um trio de figuras do “absoluto”, nem tanto em Hegel quanto em Derrida, ou seja, figuras do absolutamente impossível nos dias que correm: a figura da hospitalidade em ato (incomensurável com o cosmopolitismo); a figura do dom em ato (incomensurável com a reciprocidade); a figura do perdão em ato (incomensurável com a justiça).

Mas a ser assim, em ambiências institucionais incipientes, pergunta-se: a intercorporeidade política não haveria de irromper como circuito instituinte ? Quando se explicita a finitude de uma instituição específica, longe de nos lamentarmos pela perda ou pela falta que ela parece fazer ou alardear, vale a constatação: não é toda e qualquer institucionalidade que efetivamente desmorona, problema de formação do discernimento, portanto, no campo aparentemente adverso dos indiscerníveis. Resumindo a minha segunda questão: por aproximação do corpo manifesto, sem perder de vista o propósito da política transformadora, o circuito dos afetos latente estaria proibi do de se apresentar afinal como circuito instituinte dos afetos ?

Ainda por aproximações, acompanhando esses halos expansivos a partir do circuito latente, há toda uma série de negatividades revisitadas no circuito impresso: nem o medo nem sua irmã gêmea, a esperança; nem uma confirmação dos predicados do sujeito, nem as heteronomias que sujeitam; nem assinatura de contrato ficto nem pactuação com a recta ratio. À primeira vista, mas à segunda vista também, o leitor parece estar às voltas com um corpo destituído, esfoliado no estranhamento, totalmente desamparado. Nonada. Nonada, entretanto, com um olho posto n’ O futuro de uma ilusão e com o outro num não sei quê de Félix Guatary. Pois que, nesse novo regime de visibilidades proposto, não dá no mesmo manter Freud de pernas pro ar, confinar-se na dispersão das diferenças apenas abstratas ou perseverar na luta por universalidades não abstratas. E visto que, ao horizonte de expectativas decrescentes, vem contrapor-se um horizonte antipredicativo de reconhecimento, o que parece insinuar-se é a promessa de um corpo coletivo “restituído”. À terceira vista, contudo, um campo outro de visibilidades se deixa entrever. A questão agora passou a ser: o que pode o corpo desamparado na relação com o corpo latente do texto político? O que pode o corpo em desamparo na relação com o corpo manifesto do texto político? À margem do texto, cheguei a notar que muitas vezes Vladimir procede como se estivesse glosando em prosa – e com um grão de sal – alguns versos de Manuel Bandeira e sua “Arte de Amar”, quando o poeta diz mais ou menos assim:

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

À terceira vista, portanto, porque o corpo turbulento requer um tempo próprio a ponto de radicar sua existência fora do tempo do Capital, não o livro, mas a coisa mesma; porque a vida apresenta uma mobilidade tão soberana quanto insubmissa a ponto de encontrar a sua própria maneira de resolver problemas ontológicos; porque, em suma, novas formas de ser e de vivermos juntos estão na força de acontecimentos que começam novamente a se fazer sentir – é a contingência que unifica o que se mostra como possível e o que se manifesta como realmente efetivo. Assim – nessa política que fará jus ao conceito de política da suspensão se efetivamente ela tomar corpo; nessa política da síntese não normativa que já não temera dizer o seu nome como política de esquerda e sempre se quis transformadora – a cena se produz pelo reconhecimento da contingência.

Na medida em que a exposição do desamparado irrompe à contraluz de uma desindividuação irredutivelmente singular, na medida em que supõe um aumento na potência de agir no fundo do mais fundo desamparo, a visada ético-política desse circuito de afetos parece ao menos tão exigente quanto as perversões acadêmicas que outrora insistiam no avesso da dialética. Está claro, porém: colocando perversões acadêmicas à parte. À parte, igualmente, a realização do fantasma sádico que Vladimir já estudou na figura de Justine, tomada então como vítima por excelência, analisada sob o prisma dessa angústia de gozar com aquilo mesmo que lhe causa horror (ver Um limite tenso, ensaio intitulado “O ato para além da lei”).

*

Para terminar, vou me permitir o acréscimo de uma pequena nota sentimental no rodapé de uma conversa que se vai fazendo de vida inteira, tentativa de resumir a leitura proposta e apontar para o que vem por aí, implicado, suponho, na sua própria síntese. A nota sentimental talvez explique, embora não justifique, as camadas e camadas de 205 latência necessariamente cifrada numa fala de vinte minutos. Camadas, por exemplo, como as contidas em aulas anotadas de Merleau-Ponty (Institution, passivité), antes das camadas póstumas de Claude Lefort, sem com isso querer complicar mais do que o necessário a já considerável complexidade safatleana; mas querendo, de algum modo, intervir no andamento de um projeto que nunca se poderá reduzir a um corpo só.

É que as minhas conversas com Vladimir remontam a um tempo em que muitos dos que se acham aqui, hoje, estavam nascendo ou por nascer. É igualmente esse o c aso da moça a quem o livro é dedicado; dedicatória, aliás, onde se diz: “Para Valentina, que saberá viver sem medo”. Em 1997, quando Vladimir apresentou sua dissertação de mestrado, eu era uma das duas pessoas que assistiram à defesa de “O amor pela superfície: Jacques Lacan e o aparecimento do sujeito descentrado”. Nos anos seguintes, entre 1998 e 2000, lemos juntos com Ruy Fausto algumas obras de Freud e de Lacan, num grupo de estudos composto por nós três e às vezes na companhia de Jean-Pierre Marcos, em Paris; apresentamos alternadamente alguns seminários no curso de pós-graduação de Paris-VIII, sobre Adorno e a Dialética negativa ; principalmente, passamos noites em claro discutindo as charneiras entre a Fenomenologia do espírito e a Ciência da lógica, o papel do “prefácio” na primeira, o alcance da “realidade efetiva” e a instabilidade das essências, nesta última. Hoje o que os franceses chamavam de nuit blanche, tornou-se Nuit Debout. A noite em claro, nestes dias intermináveis, tornou-se noite em pé.

Por isso mesmo, a minha fala não poderia ser mais do que a miniatura de uma conversa – sempre recomeçada, às vezes silenciada pela força das coisas – há vinte anos.

O que pode o corpo latente do texto? A inverter-se a passagem dos conteúdos (de manifesto s a latentes), do pesadelo acordado a uma rêverie em que se passeia nas cadências de Sigmund Freud, resume-se: corpo manifesto ? Numa palavra: corpo instituinte ? Resumindo à mínima, por fim, a pequena variação sobre o tema: a intercorporeidade – esses corpo s aquém do medo da morte violenta, abandonados de toda esperança, desamparados, desindividualizados, e, contudo, vivos, essa intersubjetividade com indivíduos findos parece implicar um circuito outro do sujeito político que, ingressando num campo em disputa, eu tenderia a designar com um ou dois neologismos: como interobjetividade instituinte, como transobjetividade manifesta. E para além dos nomes (parce que je ne voudrais ici disputer ni sur les mots ni sur les choses: intersubjetividade com indivíduos findos, interobjetividade instituinte, transobjetividade manifesta), o que importa perguntar-se é o seguinte: esses corpos políticos não implicam uma entidade literária inteiramente outra, nova, um corpo de um texto político manifesto?

Se assim for, eu m e atrevo a dizer que o próximo livro de Vladimir Safatle não será algo voltado para ilusões históricas e socialmente necessárias da intercorporeidade dos afetos. Será, afinal, um manifesto.

Nota

1 Este texto foi apresentado originalmente no dia 20/06/2016, em Debate com o autor, evento organizado pelo Departamento de Filosofia da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP, sobre o livro de Vladimir Safatle, O Circuito dos afetos (Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016).

Sílvio Rosa Filho-Professor de filosofia na Universidade Federal de São Paulo, autor de Eclipse da moral: Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporâneo (Barcarolla/Discurso Editorial-USP, 2009) e de Hegel na sala de aula (Fundação Joaquim Nabuco/Unesco, 2009).

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Hobbes on legal authority and political obligation – VENEZIA (CE)

VENEZIA, Luciano. Hobbes on legal authority and political obligation., 2015. Resenha de: HIRATA, Celi. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.34, Jan./Jun. 2016

Em seu livro, publicado no ano passado, Luciano Venezia pretende fundamentar uma leitura deontológica da obrigação política em Hobbes. Trata-se de um comentário que se opõe à leitura mais difundida, leitura segundo a qual o principal traço da lei seria a coerção, de forma que os súditos seriam obrigados a obedecer à lei porque o seu cumprimento constituiria a melhor maneira de promover os seus interesses e não porque a lei obrigaria por si mesma. Venezia, em contraste, pretende argumentar que os súditos estão moralmente obrigados a obedecer à lei na medida em que as promessas e contratos possuem a força de obrigar por si mesmas, independentemente dos interesses do agente, sendo que há casos nos quais a ordem legal requer que os súditos ajam de um modo diferente do que o interesse racional ordenaria. A marca característica da lei seria, pois, a autoridade e não a coerção. Para o autor, o que está em questão é a defensabilidade mesma da teoria política de Hobbes, na medida em que uma interpretação que enfoca no caráter coercitivo da lei e no interesse próprio comprometeriam a relevância teorética de sua filosofia política e legal pelas seguintes razões: em primeiro lugar, porque teorias que fazem da coerção a característica fundamental da lei não são hodiernamente populares; em segundo, como H. Hart argumenta, a teoria hobbesiana da lei, de acordo com essa interpretação predominante, não daria conta de uma certa variedade de leis — como aquelas que conferem poderes ao invés de imporem obrigações — bem como da persistência das leis ao longo de diferentes gerações de legisladores; por fim, como S. Shapiro defende, um regime no qual as sanções de não-cumprimento constituíssem a única razão para a obediência seria logicamente impossível pela simples razão de que há um limite para as ameaças e sanções.

A interpretação de Venezia é fundamentada em três sub-teses, como o próprio autor formula nas considerações finais: em primeiro lugar, Venezia defende que as diretivas legais introduzem razões autorizadas para a ação, que, como tais, excluem e tomam o lugar de outros tipos de razão, como as razões de teor prudencial; em segundo, o autor argumenta que os súditos são moralmente obrigados a obedecer a quase tudo que é ordenado pelo soberano, mesmo quando o cumprimento da ordem é desvantajoso para a sua autoconservação; em terceiro, Venezia sustenta que a teoria contratual de Hobbes fundamenta as obrigações políticas de modo independente dos estados motivacionais dos súditos, sendo que as suas obrigações podem ir para além da promoção de seus interesses racionais.

Quanto ao primeiro ponto, Venezia argumenta que a noção de autoridade ocupa um lugar de destaque na filosofia legal e política de Hobbes e que ela se distingue normativamente de outras razões que influenciam o comportamento humano, como a persuasão e o poder: enquanto as diretivas coercitivas influenciam as ações pelo seu conteúdo (na medida em que um agente as segue para evitar um mal maior ou alcançar um bem maior), as diretivas autorizadas influenciam o raciocínio prático pela sua origem, sendo que um agente a segue porque uma pessoa ou instituição exige que ele aja assim, independentemente de seu conteúdo, mesmo quando o agente não acredita que o seu cumprimento seja vantajoso (incluindo no cálculo as sanções que podem advir de seu não-cumprimento). A distinção que está na base dessa diferenciação é aquela que Hobbes realiza no capítulo XXVI do Leviatã entre conselhos (counsels) e ordens (commands): enquanto os primeiros fornecem uma razão para agir em virtude de seu conteúdo, as segundas o fornecem em função de sua origem. A lei, na medida em que motiva a ação pela sua origem, tem, segundo Venezia, o propósito de interromper a deliberação prática e fornecer a razão relevante para a obediência. É nesse sentido que Hobbes de fi ne nos Elementos da Lei que uma ordem é uma lei quando “a ordem é uma razão suficiente para mover a ação” (EL, XIII, 6). É também nesse sentido que a sentença do árbitro exclui e substitui a avaliação pessoal, tornando-se a razão definitiva para agir. Sendo assim, as sanções pelo não-cumprimento não desempenham um papel central na concepção hobbesiana da lei, mas são apenas coadjuvantes. Venezia opõe-se, assim, à leitura analítica predominante sobre a obrigação, leituras como as de D. Gauthier, G. Kavka, J. Hampton, K. Hoekstra, que sustentam que o papel do soberano consiste em resolver o dilema do prisioneiro, superando a in fluência das paixões e aliando o interesse privado com o interesse comum por meio das sanções.

O argumento de que as leis seriam um tipo diferente de razão por meio da distinção entre ordens e conselhos, entre motivação pela origem e motivação pelo conteúdo é bastante convincente. Entretanto, fica a questão de se seria possível algo assim como interromper a deliberação para Hobbes. A alternância das imagens das consequências boas ou más de uma dada ação na mente ou dos apetites e aversões parece ser descrito por Hobbes como um processo universal, que se dá em todos os corpos animados. Este argumento deveria, pois, ser fundamentado não apenas na natureza da lei, isto é, no terreno político e legal, mas também no terreno antropológico.

Outro argumento que Venezia apresenta para defender que as sanções não são centrais na filosofia legal de Hobbes é que mesmo agentes que, por suposição, fossem perfeitamente racionais e morais, precisariam de autoridade para regular as suas ações, mesmo na ausência de sanções. A guerra no estado de natureza se daria, segundo a interpretação de Venezia, porque os homens discordam em suas interpretações particulares do que é válido ou razoável, isto é, devido à ausência de padrões do que é bom ou ruim e das ações que devem ser realizadas. A explicação do conflito não seria moral ou psicológica, mas residiria na falta de definições autorizadas de noções morais. Essa explicação do conflito abre espaço para uma filosofia política e legal que enfatiza a autoridade como o traço característico da lei. Embora toda lei envolva penalidade e as sanções sejam uma parte constitutiva da lei, trata-se mais de uma questão empírica do que conceitual, sendo que a ordem do soberano fornece por si mesma a razão para agir e as sanções introduzem apenas uma razão adicional para o cumprimento da lei, minimizando o risco de abuso e não-cumprimento. A coerção não seria, deste modo, indispensável na regulação das leis.

A despeito de centralizar na noção de autoridade, afirmando que é ela que caracteriza a lei e não a coerção, o autor não analisa a noção de autorização e de representação tal qual Hobbes a apresenta no Leviatã. A justificativa que ele indica é dupla: em primeiro lugar, o autor alega que a autorização não acrescenta nada de significativo para a obrigação contratual de obediência às diretivas do soberano; em segundo, ele afirma, seguindo nisto o comentário de P. Martinich, que a fundamentação da obediência na autorização e na alienação do direito natural são incompatíveis, na medida em que, quando uma pessoa autoriza uma outra, esta última apenas a representa, de modo que a primeira possui autoridade e permanece superior em relação à segunda, em contraste com a alienação. Ora, seria importante mostrar isso de forma mais fundamentada, já que não é essa a consequência que Hobbes parece extrair do ato de autorização. Uma vez que a noção de autoridade é central para a argumentação de Venezia, seria preciso, parece-nos, dar mais atenção a essa noção tal como ela é apresentada no texto de Hobbes.

Quanto ao segundo ponto, Venezia argumenta que se a tese de que a obediência se fundamenta no auto-interesse dos súditos fosse correta, os agentes poderiam legitimamente desobedecer à lei quando ela não o promovesse, o que não é afirmado por Hobbes. Pelo contrário, a desvantagem da obediência da lei não legitima a desobediência. A desobediência em relação às leis só é justificada nos casos nos quais os súditos não se obrigaram a obedecer ou a não resistir. Deste modo, mesmo a liberdade para desobedecer é normativa, segundo Venezia.

Além disso, a teoria de Hobbes introduziria, segundo Venezia, as duas notas características das razões morais, tais como elas são descritas contemporaneamente por Stephen Everson. Segundo este, as razões morais são aquelas que, em primeiro lugar, motivam o agente a agir pelo interesse de outro além do interesse próprio e que, em segundo, são categóricas, sendo que a sua força normativa não depende das motivações do agente. Ora, Venezia argumenta que Hobbes introduz a análise de determinadas paixões, como piedade, caridade, benevolência, etc., pelas quais os homens podem ser motivados apenas pela ideia de promoverem o interesse de outros. Quanto ao segundo ponto, o comentador argumenta que, a partir da definição hobbesiana de justiça, os homens justos não são motivados pelo benefício próprio, mas exclusivamente por considerações morais, sendo que aquele que cumpre a lei não pela lei, mas pelo medo da sanção, é injusto (Do Cidadão, IV, 21). Ora, a partir do parágrafo referido, no qual Hobbes afirma que a lei de natureza compete à consciência, não se pode fundamentar a tese de que essas leis sejam imperativos categóricos, e consequentemente razões morais no sentido descrito por Everson. No Leviatã, Hobbes, pela contraposição entre foro interno e foro externo, afirma que a obrigação em consciência das leis de natureza só obrigam de fato quando há segurança no seu cumprimento. Ou seja, trata-se de um imperativo hipotético e não categórico, já que a obrigação se fundamenta na obtenção da paz e vale apenas com a condição de que os outros a cumpram 1 .  Elas tornam impositivo o desejo de as colocar em prática, mas nem sempre obrigam porque dependem de circunstâncias exteriores ao agente. Há, neste ponto, uma grande distância entre a filosofia de Hobbes e aquela de Kant. A perspectiva acaba sendo até mesmo inversa: para Hobbes, aquele que agisse incondicionalmente de acordo com as leis de natureza, aplicando- as mesmo na ausência de garantias de que os outros a cumprissem, agiria contrariamente ao fundamento mesmo das leis de natureza, invalidando a sua aplicação futura.

Enfim, quanto ao terceiro ponto, Venezia sustenta que Hobbes analisa as obrigações contratuais numa maneira deontológica, na medida em que depois de renunciar pelo contrato à parte de seus direitos naturais, os agentes adquirem obrigações que são independentes de seus estados motivacionais contingentes. A obrigação tem como fundamento

a promessa, sendo que a penalidade constitui uma motivação meramente adicional. Nesse sentido, a razão para contrair a obrigação distingue-se da razão para cumpri-la: enquanto a primeira é prudencial, baseada no auto-interesse, a segunda não o é. A obrigação política não se fundamenta na possibilidade de sanções em caso de não cumprimento, mas em atos voluntários que expressam consentimento.

Por fim, Venezia critica esse fundamento mesmo da obrigação política em Hobbes, a saber, a tese de que as ações realizadas sob coerção são completamente voluntárias. O comentador argumenta que as ações cometidas sob coerção não são voluntárias porque as condições sob as quais os agentes coagidos fazem as suas escolhas não refletem a sua vontade real, considerando-se a afirmação de Hobbes de que “o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos” (Leviatã, XIV, p. 115). Os agentes não realizariam as ações em questão se elas tivessem oportunidade de agir de outro modo, sendo que a escolha em questão não expressa o arbítrio próprio do agente, mas a escolha é de outro, que deliberadamente reduz as opções possíveis. As suas decisões não refletiriam a sua verdadeira vontade, mas eles seriam o mero instrumento de outros agentes. Ora, tal crítica se opõe à definição mesma de voluntaridade em Hobbes, definição segundo a qual é voluntário todo ato que provém da vontade, a qual consiste, por sua vez, no último momento da deliberação do qual se segue imediatamente a ação, independentemente de como e em quais circunstâncias foi determinada. É justamente nesse sentido que Hobbes reavalia o exemplo de ação dado por Aristóteles na Ética a Nicômaco, a saber, a de um capitão que joga a carga de sua embarcação no mar pelo medo de seu navio afundar, exemplo que é mencionado por Venezia. Enquanto para o estagirita essa ação constitui o exemplo de uma ação mista, nem voluntária e nem contra-voluntária, visto que a ação não seria desejada por si mesma, ainda que o princípio da ação resida no agente, para Hobbes se trata de uma ação perfeitamente voluntária porque procedente da vontade. Essa redefinição e simplificação do que é a vontade e do que é voluntário é absolutamente central na filosofia hobbesiana. Afirmar, pois, que o que Hobbes de fi ne como voluntário nem sempre o é, na medida em que as ações realizadas sob coação não seriam desejadas em si mesmas, é rejeitar a definição de Hobbes e endossar o que o autor já refutara. Mas como o próprio Hobbes defende, se a definição é compreendida e não admitida, a controvérsia se encerra (De Corpore, VI, § 1 5) .

Por fim, nas considerações finais, Venezia dirige críticas a diversos pontos da filosofia política de Hobbes. Em primeiro lugar, Hobbes erraria no ponto de partida de sua teoria política ao colocar o desacordo humano e a guerra civil no mesmo patamar, ponto de partida que resultaria numa teoria política extremamente autoritária. Os filósofos políticos contemporâneos, como J. Rawls, mostraram que o conflito e a diversidade de opiniões são constitutivas das sociedades democráticas. Outro ponto a ser criticado, tal como Hume já o fizera, é que apenas um número muito limitado de súditos obrigaram-se, tanto pelo consentimento tácito como explícito, a obedecer à lei. Além disso, Venezia critica o fato de que o direito do soberano de governar não é apenas o resultado da transferência dos direitos pelos súditos, mas está fundamentado em seu direito natural, o que seria inapropriado, pois deste modo não se distinguiria o soberano enquanto um indivíduo privado e enquanto portador de um cargo oficial. Por fim, além daquela crítica concernente à voluntariedade das ações feitas sob coação, Venezia endossa a crítica dos filósofos liberais, notadamente, J. Locke, de que não se pode ter obrigações políticas em relação a um governo absoluto por não possuirmos o direito de nos escravizar. À exceção da segunda crítica, que diz respeito ao número dos que pactuaram e que parece ter validade mesmo pressupondo a filosofia hobbesiana, as demais críticas são exteriores à filosofia de Hobbes e só podem ser realizadas a partir de pressupostos completamente estranhos ao filósofo. Se, por um lado, é louvável o esforço de trazer a filosofia de Hobbes para os debates contemporâneos, por outro, medi-lo a partir dos parâmetros da filosofia política atual faz o seu sistema filosófico perder o seu sentido.

De toda forma, o livro de Luciano Venezia constitui uma contribuição importante para os estudos da filosofia hobbesiana, uma vez que apresenta bons argumentos em favor de uma leitura diferente daquela predominante sobre a obrigação política, a natureza da lei e do contrato na filosofia de Hobbes, além de ser extremamente claro e objetivo. O que nesta resenha se apresentou como sendo problemático decorre em grande medida da discrepância entre dois métodos e tradições de interpretação distintos, a saber, entre o método estrutural de leitura e o método analítico, que é o método adotado pelo autor do livro.

Nota

1 “(…) Aquele que fosse modesto e tratável, e cumprisse todas as suas promessas numa é poca e lugar em que ninguém mais assim fizesse, torna-se-ia presa fácil para os outros, e inevitavelmente provocaria a sua própria ruína, contrariamente ao fundamento de todas as leis de natureza, que tendem para a preservação da natureza ” (Hobbes, 2014, p. 136).

Referência

HOBBES, Thomas. (2 0 1 4). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes.

Celi Hirata – Professora Universidade Federal de São Carlos. E-mail: [email protected]

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Arte e técnica em Heidegger – BORGES DUARTE (C-FA)

BORGES DUARTE, Irene. Arte e técnica em Heidegger. Lisboa: Documenta, 2014. Resenha de: PASQUALIN, Chiara, Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v .21, n.1, Jan./Jun., 2016.

O livro de Borges-Duarte propõe uma investigação límpida e rica sobre as questões entrelaçadas de arte e técnica, consideradas como fios condutores da reflexão heideggeriana posterior à Ontologia Fundamental. A contribuição original da autora não se endereça apenas aos especialistas de Heidegger, mas se apresenta também como uma imprescindível introdução ao pensamento do filósofo, pelo menos no que diz respeito ao período que vai desde inícios dos anos 1930 até o final dos anos 1960. Excluindo o primeiro capítulo, que oferece uma visão geral e introdutiva dos conteúdos apresentados, o volume reúne sete ensaios, concebidos originariamente como trabalhos autônomos, mas coesos em seus objetivos. Enfeitam o volume tanto a tradução inédita de alguns textos menos conhecidos de Heidegger, quanto a inserção de reproduções das obras de arte mais significativas a que Heidegger se refere nos seus escritos. Entramos, dessa maneira, não somente no processo genético da elaboração de algumas ideias centrais do filósofo, mas, especialmente, no seu “imaginário” íntimo, que é assim desvelado ao leitor.

O segundo capítulo se dedica à análise da entrevista concedida por Heidegger à revista alemã Der Spiegel em 1966, publicada postumamente. A autora lê esse breve texto não tanto como documento biográfico, mas como uma via de acesso preferencial aos densos assuntos do pensamento heideggeriano. Baseando-se no comentário da famosa afirmação heideggeriana “já só um deus nos pode ainda salvar”, a análise se concentra sobretudo na questão de qual salvação é ainda possível na época do atual domínio da técnica. Segundo a leitura proposta, o deus mencionado por Heidegger não deve ser confundido com qualquer representação histórico-religiosa de deus, mas circunscreve a dimensão do divino que sempre escapa ao controle e à manipulação do homem, não obstante o envolva na profundidade da sua essência. De acordo com a autora, não é, contudo, o próprio deus quem salva o homem. Uma tal perspectiva só iria reiterar a imagem tradicional de um deus todo-poderoso, invocado, como ex machina, para restaurar a ordem no caos produzido pelos homens. Pelo contrário, o que salva é o cultivo da recordação de deus, a saudade de nosso vínculo com algo que transcende o âmbito ôntico e o horizonte do manipulável. Nessa perspectiva, tornase claro o convite de Heidegger, sugerido pela entrevista, a colocar em prática um “outro pensar”, depois do fim da filosofia, que seja capaz de despertar o homem para aquela dimensão ulterior que permanece escondida no febril planejamento técnico.

O terceiro capítulo aborda a reflexão heideggeriana sobre a arte e pretende mostrar a sua importância para uma plena compreensão do ser humano. A esse respeito, a autora propõe uma reformulação do conceito de “ser-aí”, tradução corrente do termo alemão Dasein, que nos ajuda explicar o papel da arte na realização existencial: o Da-sein é o “aí-do-ser”, ou seja, o lugar em que o ser se manifesta e ilumina. A arte constitui uma modalidade exemplar por meio da qual o Dasein realiza esse seu posicionamento essencial, na medida em que, criando a obra, funda um espaço, um “aí”, para o descobrir-se do ser. Ao cumprir essa função, a arte tem, de acordo com a autora, uma vantagem sobre o pensamento. Se o pensar só raramente seria capaz de ser mais do que uma preparação da possibilidade do encontro homem-ser, na arte, diversamente, essa reunião se daria de maneira direta e imediata. Partindo dessas coordenadas gerais, o terceiro capítulo segue a evolução da longa reflexão heideggeriana sobre a arte, esclarecendo, em particular, o contexto especulativo – a exploração da verdade e do seu acontecer histórico-epocal – que leva Heidegger a focalizar a arte no começo dos anos 1930. A autora se afasta da tese de Pöggeler, segundo a qual a abordagem heideggeriana da arte seria uma simples fuga romântica depois da desilusão política (cf. Pöggeler, 1972), reivindicando, pelo contrário, a íntima ligação dessa abordagem com o percurso especulativo do filósofo e, sobretudo, a função privilegiada que ela vem a assumir servindo a Heidegger de premissa indispensável para a reflexão posterior sobre a técnica. Adotando uma perspectiva diacrônica, a autora defende que as conferências sobre a origem da obra de arte dos anos 1930 (Heidegger, 2002, pp.5-94) já contêm as linhas essenciais da concepção heideggeriana sobre a arte, a qual não seria depois posta em questão, mas só retocada parcialmente nos anos 1950 e 1960 para ser integrada à reflexão sobre a essência do mundo técnico e sobre a Quadrindade ( Geviert ). Para oferecer um exemplo e uma demonstração dessa tese, a autora passa a traduzir e analisar um breve texto heideggeriano do ano de 1955 sobre o quadro de Rafael, a Madonna Sixtina. Esse escrito não somente conteria todos os elementos-chave definidos na reflexão dos anos 1930, mas também acrescentaria tanto uma meditação mais consciente sobre o destino da obra de arte na época contemporânea, quanto a referência ao conceito de Quadrindade, implícito na ideia de um encontro entre o celestial e o terreno na imagem artística. O quarto capítulo se abre com a afirmação de que a consideração heideggeriana da arte está centrada, desde o começo até o final, na crença básica de que a obra representa o ponto de intersecção entre, por um lado, homem e ser e, por outro, entre humano e divino. Em cada fase da sua história, a arte continuaria a executar essa tarefa, oferecendo-se como manifestação do invisível, como espaço de epifania do sagrado. O que muda é, na visão da autora, a maneira como o homem, em diferentes épocas, experiencia o sagrado: se, no mundo grego, o homem parecia dócil e temeroso frente à poderosa manifestação divina, na época contemporânea ele tem apenas um contato frágil com o sagrado através das experiências da morte e da ausência. A autora estuda como exemplos desses dois extremos do processo histórico da arte, por um lado, a figura imponente do templo grego, referência favorita de Heidegger nos anos 1930; e, por outro, a arte minimalista de Klee, à qual o filósofo se aproxima, sobretudo na década de 1960, vendo, na obra do artista, um testemunho da arte pós-metafísica.

No quinto capítulo, a análise se dirige a duas traduções/interpretações que Heidegger conduz a respeito do primeiro estásimo da Antígona de Sófocles: em 1935, no contexto do curso Introdução à Metafísica e, em 1943, para preparar uma edição privada como presente de aniversário a sua esposa. Esse trabalho de assimilação do texto grego, de intensidade análoga àquele dedicado por Hölderlin à mesma fonte nos anos de 1799 e de 1802-1803, é considerado pela autora como um laboratório fundamental para a gênese da concepção heideggeriana da técnica. No comentário interpretativo do estásimo, desenvolvido no curso Introdução à Metafísica, começa a anunciar-se o interesse de Heidegger pela questão da técnica, a qual se tornará tema central a partir dos anos 1950. Com base no texto de Sófocles, Heidegger elabora uma ontologia da essência do humano como ser duplamente inquietante ( unheimlich ): num sentido positivo, ele é unheimlich em virtude do seu poder criador e violento que força o ser a manifestar-se no ente; por outro lado, o ser humano se revela terrível também num sentido negativo, podendo perverter a sua energia criativa num exercício de controle e de programação rígida que oprime a livre doação do ser. O sexto capítulo examina o particular estilo de pensar posto em prática nos Beiträge zur Philosophie de Heidegger. O problema que surgiu na elaboração dessa obra, e que deve ter sido um motivo para a decisão heideggeriana de não a publicar imediatamente, foi o de individuar uma linguagem adequada para captar e manifestar o Ereignis. A autora traduz esse conceito fundamental dos Beiträge como “acontecimento propício ”, destacando, assim, tanto o aspecto de apropriação recíproca (sublinhado na ressonância da raiz latina prope ), quanto a componente cairológica do instante propício em que acontecem simultaneamente o lance do ser ( Zuwurf ) e o projeto humano ( Entwurf ). Como o ser é em si indizível, o pensar que lhe pode dar voz é nomeado por Heidegger de “sigética” (com referência ao verbo grego sigân, “calar”) e é caracterizado, por um lado, como um acolher cauteloso e reservado, não impositivo; e, por outro, como um dizer não assertivo, mas questionador, aberto e itinerante. Esse estilo de pensamento, que deixa para trás os sistemas da metafísica, é enraizado no afeto fundamental ( Grundstimmung ) da reserva ( Verhaltenheit ), entendida como proximidade discreta e receptiva ao acontecimento do ser. O reconhecimento desse enraizamento do pensar na dimensão afetiva é bem detectado pela autora e a leva à justa intuição de identificar o medium da inter-relação entre ser e homem na disposição ( Stimmung ), na “porosidade afectiva” (p.151). Desse acolhimento afetivo do lance do ser surge um pensar que se configura como obra de arte arquitetônica ou musical, na medida em que ele oferece ao ser um espaço internamente construído e articulado (na sequência harmônica das chamadas “fugas”) para a sua manifestação.

No sétimo capítulo, expõe-se a concepção heideggeriana da técnica, com base no escrito Die Frage nach der Technik, publicado em 1954. Pensar a técnica representa a tarefa fundamental do “outro pensar”, pela qual Heidegger pretende ultrapassar a metafísica. Querendo imprimir à sua reflexão uma marca estritamente ontológica, Heidegger distancia-se tanto de uma abordagem ética, que implicaria uma tomada de posição a favor ou contra a técnica, quanto da concepção vulgar desse fenómeno enquanto instrumento funcional às finalidades humanas. A forma de relacionamento técnico em que o homem moderno está preso, ou seja, o desfrutamento calculador da natureza para fins de autoconservação, pode ser compreendida plenamente somente a partir do reconhecimento da essência da técnica, que consiste no chamado Ge-stell.

Segundo a autora, esse termo conceitual não é “infeliz”, mas é muito adequado, pois permite explicar três traços fundamentais da técnica. Em primeiro lugar, o prefixo ge revela que essa palavra define um conjunto de comportamentos sociais e humanos e que, aliás, é o resultado de um processo genético. Em segundo lugar, o verbo stellen evidencia o ato do pôr, que é ambivalente, pois indica tanto o “deixarser” da techne grega, isto é, o libertar a natureza para a sua luminosa manifestação no ente produzido, quanto a tendência a im -por, típica da racionalidade moderna.

Finalmente, Ge-stell traz à mente a Gestalt, a figura, sendo que a técnica é a forma, o esquema prévio aplicado à realidade para torná-la correspondente à exigência de uma vontade dominadora e interessada na conservação e no progresso do bemestar humano. A tradução mais apropriada para exprimir essa tripla determinação presente no termo Ge-stell é, de acordo com a autora, a de “com-posição”. Partindo dessa precisa análise lexical, a autora descreve a essência da técnica moderna como uma “estrutura estruturante”, pois ela é, ao mesmo tempo, tanto a configuração moderna da relação homem-ser e quanto aquilo que determina de antemão cada comportamento humano. Ao expor o raciocínio heideggeriano, a autora sublinha, enfim, a duplicidade, a natureza de Jano, da técnica moderna, a qual não representa somente o perigo extremo, enquanto esquecimento do ser, mas contém em si também a chance de salvação. Essa última repousa no vínculo originário homem-ser, que ainda é perceptível, embora fracamente, em nosso mundo técnico. A experiência repentina desse vínculo pode levar o homem a recuperar o sentido primitivo da técnica que estava em vigor no mungo grego, e a exercer um saber criativo, que não é mais um fazer opressivo, mas um pôr-se-em-obra da verdade.  No último capítulo do livro, a autora volta à questão da técnica e esclarece a sua íntima conexão com a da arte. Com a publicação do texto Die Frage nach der Technik, a meditação heideggeriana sobre a arte, iniciada nos anos 1930, chegaria ao seu pleno desdobramento. Nesse texto, seria trazido à luz e explicitado um elemento que, nas conferências dos anos 1930, ainda permanecia implícito: o da união profunda entre arte e técnica em virtude da sua comum proveniência, a techne grega. No seu sentido autêntico, arte e técnica são modos da techne, isto é, do pôr-se-em-obra da verdade do ser. Contudo, esse “pôr”, no mundo grego, correspondia, de maneira dócil e cheia de assombro, ao desencobrir-se do ser. Assim, foi apenas a partir da modernidade que se perdeu a capacidade de se surpreender, e que se afirmou a necessidade de certeza e segurança – a qual transformou o saber produtivo originário num ávido projeto calculador. A única salvação que se delineia para a nossa época é aquela que consiste na realização do “passo atrás”, isto é, na recuperação do perdido sentido antigo da técnica como saber produtivo, respeitoso da dinâmica de manifestação-retraimento do ser. Nisso resume-se, substancialmente, a mensagem da conferência de Atenas de 1967, intitulada A proveniência da Arte e a determinação do Pensar, cuja abordagem representa a conclusão do livro e o ápice da longa interrogação heideggeriana sobre a essência da arte. Depois dessa breve exposição das teses principais defendidas no texto, gostaríamos de apontar algumas questões que são aludidas pela autora, sem, contudo, ser objeto de uma tematização detalhada, e que estimulam possíveis caminhos para um aprofundamento futuro.

Para uma plena compreensão da reflexão heideggeriana sobre a arte, parecenos imprescindível levar em conta os Beiträge zur Philosophie, nos quais a arte é definida, ao lado de outros modos, como uma das vias de abrigo ( Bergung ) da verdade no ente. Dentre esses outros modos, é mencionada a fabricação de utensílios (cf. Heidegger, 2015, §32, p.73) 1, isto é, a técnica artesanal. Então, no conceito de Bergung, Heidegger pensa, já nos anos 1930, a essência comum da arte e da técnica, ambas as quais são, no seu sentido autêntico e primordial, produções capazes de incorporar a verdade do ser no ente produzido. Além disso, com os Beiträge, cujo projeto já está fixado no seu núcleo central em 1932, surge o primeiro contexto de investigação sobre a essência da técnica moderna, que aqui é designada como maquinação ( Machenschaft ). A esse respeito, não se pode esquecer que, dentre os sintomas da época da maquinação, é mencionado o generalizado mal-entendido acerca da essência da arte, a qual – observa Heidegger – está sujeita hoje ao consumo cultural e é reduzida a mero estimulador de vivências subjetivas ( Erlebnisse ) (cf.

idem, § 56, p.116; § 44, p.92). Essa referência aos Beiträge permite afirmar que, desde a sua primeira concepção, a reflexão heideggeriana sobre a arte está ligada à meditação sobre a técnica: o que Heidegger argumentará nos anos 1950 e 1960 é apenas um desenvolvimento mais amplo do que está contido de forma substancial nos Beiträge. Já nos anos da elaboração (desde 1932) e, depois, da redação dos Beiträge (1936-1938), Heidegger, portanto, não somente concebia a arte como uma maneira de abrigar a verdade ao lado da produção técnica de utensílios (no sentido da techne grega), como também estava perfeitamente ciente do risco ao qual a arte está submetida na época da maquinação. Mas isso não é tudo. Muitos anos antes da conferência de Atenas, Heidegger formulara de maneira explícita, embora ainda de forma interrogativa, a ideia de “uma outra origem da arte” (idem, § 277, p.489), isto é, a possibilidade de que ela volte a ser novamente um meio para a fundação da verdade. A confirmação dessa possibilidade parece vir das anotações heideggerianas sobre a arte de Klee. De fato, o artista personifica, aos olhos de Heidegger, a figura exemplar do “vindouro” (um dos poucos raros Zukünftige de que Heidegger fala nos Beiträge ). Enquanto vindouro, Klee está imerso no afeto fundamental da reserva e na experiência autêntica da morte e, por isso, está receptivo para o dar-se do ser e o acenar do “deus derradeiro ” ( letzter Gott ). Em última análise, vê-se que a própria obra dos Beiträge, e a filigrana conceitual aqui delineada, lançam luz sobre toda a sua produção posterior. É essa obra que representa a “chave hermenêutica” para compreender tanto a filosofia da arte heideggeriana quanto a reflexão sobre a técnica 2, mas, sobretudo – ao que nos parece – para entender a conexão entre elas.

Com a menção dos conceitos heideggerianos de afeto fundamental e de deus derradeiro, levantam-se duas outras questões que podem integrar, de maneira frutífera, o já rico conjunto de problemáticas abordadas pela autora: 1. para compreender a arte é necessário meditar de maneira essencial sobre a essência da Stimmung, do afeto ou da tonalidade; 2. a arte é possibilidade de abertura àquela que poderíamos chamar de “transcendência teológica”. Nesse contexto, pode-se oferecer só algumas sugestões nas duas direções mencionadas. No que diz respeito ao primeiro ponto, a possibilidade de “ uma outra origem da arte” parece-nos depender tanto da experiência real da Grundstimmung pelo artista e pelos espectadores, quanto de uma compreensão filosófica transformada, não-metafísica, da afetividade.

Se o sentir é reduzido a mero Erlebnis, isto é, a emoção superficial, autocentrada e pobre de verdade, a arte é destinada a sucumbir (cf. Heidegger, 2002, pp.85-6).

De fato, como emerge claramente do curso sobre os hinos de Hölderlin dos anos de 1934-1935 (cf. idem, 2004), a obra pode surgir somente de um afeto fundamental e da experiência de verdade que ele oferece. Isso significa que o saber produtivo autêntico, tanto aquele artístico quanto aquele técnico, está sempre fundado na Grundstimmung, pois a afetividade é o medium do encontro entre homem e ser (como já mencionado justamente, mas só brevemente, pela autora). Voltando ao segundo ponto, a arte possibilita a chamada “transcendência teológica”, isto é, a relação do homem com o divino, que transparece na ideia heideggeriana do deus derradeiro. O motivo dessa revelação concedida pela arte está implícito no fato de que a obra é o que funda a verdade do ser. Sabe-se, de fato, que já nos Beiträge Heidegger distingue o seu conceito de ser daquele de deus, e que ele considera o acontecimento do ser como o horizonte em que o deus se pode ainda manifestar (cf.idem, 2015, § 123, pp.236-238 e § 126, pp.239-240). Portanto, se a obra funda o ser, ela desenrola, assim, o horizonte em que o homem poderia, talvez, encontrar deus.

O desenvolvimento das duas questões delineadas precisaria, enfim, de um esclarecimento genuíno da Geworfenheit típica da obra de arte. A sua Geworfenheit não exprime somente o fato de que a obra está situada no âmbito mundano e está exposta ao consumo e à decadência. A Geworfenheit da arte sugere o que Platão, de maneira poética, exprimia na ideia da manía erótico-criativa enquanto dom de deus. Analogamente, a arte é, segundo Heidegger, sempre o fruto de uma dádiva que provém do ser. Além disso, o que se pode extrapolar da reflexão inteira do “segundo” Heidegger é a ideia de que esse lance do ser consiste na kháris, isto é, na dinâmica de uma Stimmung originária, sobre-humana e sobre-linguística, que é amor que possibilita, Mögen que ermöglicht (cf. Heidegger, 2005, p.12) 3. Seguindo essa linha de leitura, aqui só esboçada, a arte resulta ser, em última análise, a resposta hermenêutica possibilitada pelo acontecimento “pático” ou afetivo daquela doação originária.

Notas

1 Veja-se também: Heidegger, 2015, § 242, p.378; § 243, p.379

2 Veja-se: Herrmann Von, 1997, pp.75-86 e também Herrmann von, 1994.

3 Ver também: Heidegger, 2006, p.180.

Referências:

Heidegger, M.( 2002 ). “ A origem da obra de arte”. In: Caminhos de Floresta. BorgesDuarte, I. (ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

___________. (2004).Hinos de Hölderlin.Tradução de Lumir Nahodil.Lisboa: Instituto Piaget.

___________.(2005).Carta sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias São Paulo: Centauro.

___________.(2006).“…poeticamente o homem habita…”. In: Ensaios e conferências.Tradução de Emmanuel Carneiro Leã o, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. 3ª ed. Petrópolis: Vozes.

___________. ( 2015).Contribuições à filosofia (Do Acontecimento Apropriador) Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita.

Herrmann von, F.-W. ( 1994).Wege ins Ereignis. Zu Heideggers »Beiträgen zur Philosophie«. Frankfurt a.M.: Klostermann.

___________. (1997). „Die „Beiträge zur Philosophie“ als hermeneutischer Schlüssel zum Spä twerk Heideggers”. I n : H appel, M. ( Org.) Heidegger neu gelesen. Würzburg : Königshausen und Neumann, pp.75-86.

Pöggeler, O. (1972).Philosophie und Politik bei Heidegger. Friburg/München: Alber

Chiara Pasqualin – Universidade de São Paulo. [email protected]

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Nietzsche e o ressentimento – PASCHOAL (C-FA)

PASCHOAL, Antonio Edmilson. Nietzsche e o ressentimento. São Paulo: Humanitas, 2015. Coleção Nietzsche em Perspectiva). Resenha de: SHILKAWA, Ítalo Kiyomi. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.21, n.1 Jan./Jun., 2016.

O novo livro de Antonio Edmilson Paschoal figura como o fechamento de uma pesquisa por ele empreendida entre 2007 e 2012 com o apoio do CNPq que, durante esses anos, publicou uma série de artigos sobre o tema do ressentimento na filosofia de Nietzsche. O livro ora em tela retoma e reelabora tais textos, o que permite ao leitor acompanhar como Paschoal se propôs a explorar um dos temas centrais da filosofia nietzschiana. Os objetivos do livro, segundo o autor, são de colocar em relevo “o modo como o conceito [de ressentimento] aparece e é utilizado na filosofia de Friedrich Nietzsche e as possibilidades de superação do ressentimento consideradas por ele, além de algumas especulações que se desdobram de seu pensamento” (p.25).

Atento à maneira como Nietzsche demonstra para seus leitores o ponto de partida de sua interpretação frente aos debates por ele assumidos, Paschoal também explicita qual é o viés interpretativo que norteia sua visão do tema do ressentimento: que, para ele, Nietzsche não é tão somente um filósofo corrosivo que abala os alicerces da moral e da cultura, mas Nietzsche também aponta soluções para os problemas por ele denunciados. Assim, o horizonte da leitura de Paschoal sobre o tema do ressentimento é de buscar meios de sua superação a partir da filosofia nietzschiana.

O primeiro capítulo tem caráter introdutório, no sentido de que visa contextualizar as conotações que o termo ressentimento possuiu na filosofia do século XIX, principalmente na Alemanha e na França. Em seguida, o autor faz um levantamento do termo nos escritos de Nietzsche, cuja primeira ocorrência remonta a uma correspondência de 1875, na qual Nietzsche comenta a obra do filósofo e economista alemão Eugen Dühring, O valor da vida. É importante notar que o interesse de Nietzsche em Dühring, segundo Paschoal, deve-se à procura do filósofo por referências fora do universo schopenhaueriano de seus primeiros escritos. Nesta etapa, Nietzsche estaria procurando novos interlocutores para desenvolver seu pensamento.

A ideia de ressentimento proposta por Dühring marcou profundamente Nietzsche, que criticou tal ideia em textos como Além de bem e mal e Assim falou Zaratustra sem lançar mão da palavra e sem fazer referência direta a Dühring. Todavia, a concepção de que a vingança e a justiça se originam de sentimentos negativos já passa a se configurar como o gérmen da filosofia da superação do ressentimento que Nietzsche desenvolverá em seus escritos posteriores. O termo ressentimento surge com força na Genealogia da moral com dois significados principais: como um problema individual do homem, que se torna fraco diante de uma vingança não realizada; e como um problema social, na medida em que corresponde a uma concepção de justiça e intervenção política.

No segundo capítulo, “Ressentimento e vontade de poder”, Paschoal parte da interpretação de que o ressentimento pensado por Nietzsche não é uma simples reação mecânica como havia proposto Dühring, mas é um fenômeno que se insere no jogo das pluralidades de vontade de poder. Enquanto vontade de poder, o ressentimento é um fenômeno social que busca o domínio, e como sintoma fisiológico, resulta de um enfraquecimento do organismo do homem. Neste capítulo, ganha destaque o aspecto social do ressentimento, ao passo que forma e nivela um tipo de ser humano enfraquecido, não afeito às diferenças, segundo Paschoal:

não é necessário que o outro tenha cometido uma agressão para se tornar alvo de uma sede de vingança do homem do ressentimento. Basta ser diferente, pois, por uma expectativa de segurança ou por medo, o homem do ressentimento se volta para aqueles que são diferentes dele e, tomando-os como um perigo, real ou imaginário, busca tê-los sob seu domínio (p.61).

Paschoal identifica a gênese do ressentimento como fenômeno social no diagnóstico dado por Nietzsche na Genealogia da moral : é com a “rebelião escrava da moral” (GM I 7) que o ressentimento se tornou dominante, o que figura não só o adoecimento daqueles que são adeptos do ideal de nivelamento do homem, mas se tornou também nocivo a toda cultura Ocidental na medida em que se elevou como a forma vitoriosa de criação de valores. A estratégia identificada por Paschoal, que permitiu a vitória da moral do ressentimento no diagnóstico nietzschiano, é de produzir a si mesma através de uma “degeneração e diminuição do homem em direção do perfeito animal de rebanho” (Além de Bem e Mal 203); tal estratégia é tematizada por Nietzsche sob as rubricas de uma “pequena política”, que expressa o ressentimento como formador do corpo social. Um dos mecanismos centrais identificados pelo autor, e que representa um dos pontos chaves do livro, é o papel que a vingança exerce na política de disseminação do ressentimento, a moral ressentida universaliza, sob o nome de “justiça”, a sede de vingança que propaga um adoecimento coletivo. O capítulo se encerra com algumas pistas que já sinalizam uma possível saída do ressentimento a partir da filosofia de Nietzsche. Uma vez que a moral do ressentimento tenha sido vencedora, não é possível aos homens escapar de sua influência, mas há indicativos de um ideal contrário, que retira do ressentimento um resultado que não é sua mera reprodução, mas para isso é necessário ao homem uma força que transforma a doença do ressentimento numa tensão capaz de elevá-lo (pp.75–6).

No terceiro capítulo, “Nietzsche e Dühring: ressentimento, vingança e justiça”, Paschoal verticaliza um tema anunciado no capítulo anterior, a relação filosófica entre Nietzsche e o professor de filosofia em Berlim na época, Karl Eugen Dühring. Paschoal demonstra que em 1875 Nietzsche se debruçou sobre a obra de Dühring, O valor da vida, a ponto de fazer uma extensa resenha onde destaca os aspectos centrais da obra, ideias que serão cuidadosamente refutadas na Genealogia da moral, obra de 1887. Contudo, Paschoal percebeu um sutil aspecto da resenha de 1875: no Valor da vida, Nietzsche encontrou a ideia de que a vida não pode ser avaliada de forma desinteressada, pois toda forma de avaliação sobre a vida é movida por um afeto. Essa ideia, que inicialmente Dühring utiliza para criticar Schopenhauer, será incorporada no pensamento de Nietzsche, sem, contudo, fazer referência ao professor de Berlim.

O ponto central destacado por Paschoal na contraposição de Nietzsche a Dühring diz respeito à visão deste sobre os fundamentos do conceito de justiça. Para Dühring, a ideia de justiça tem origem em impulsos e afetos reativos, que buscam compensação por um dano sofrido, e a justiça seria, então, uma compensação de um sofrimento, o que se coaduna com a ideia de vingança. Assim, o sentimento de justiça, em Dühring, tem proveniência no ressentimento.

Paschoal demonstra zelo no tratamento que confere à questão ao contrapor o conceito de justiça oriundo da vingança em Dühring à ideia de justiça apresentada por Nietzsche na Genealogia da moral. Para Nietzsche, a justiça nasce a partir de um pathos de distância de indivíduos nobres, que criam leis tanto para resolver conflitos quanto para obrigar as massas a assumir compromissos. Para se constituir como tal, a justiça precisa da imparcialidade que é diametralmente oposta a qualquer sentimento de vingança, e a justiça tem como finalidade o futuro da comunidade, e não a compensação impossível de danos. Os sentimentos de superioridade e de imparcialidade dessa concepção de justiça podem levar a comunidade, segundo Nietzsche, a se dar ao luxo de, em alguns casos, promover um curto-circuito no mecanismo de vingança do ressentimento ao deixar “livre os insolventes” (GM II 10) num “ato de graça ”.

Os paralelos entre a filosofia nietzschiana e a literatura de Dostoiévski t ê m sido alvo de estudo de diversos pesquisadores na Pesquisa Nietzsche do Brasil, e os trabalhos de Paschoal sobre o tema são, sem dúvida, muito importantes para o desenvolvimento do assunto; tais artigos foram compilados no quarto capítulo do livro em tela. “Dostoiévski e Nietzsche: especulações em torno do ‘homem do ressentimento’” explora a relação entre a filosofia de Nietzsche e os traços psicológicos de personagens do autor russo.

Paschoal realiza um trabalho de pesquisa em fontes ao consultar a mesma edição da obra de Dostoiévski que Nietzsche utiliza como referência na Genealogia da moral.Trata-se de uma compilação francesa intitulada L’esprit souterrain, que reúne as obras A senhoria e Memórias do subsolo, todavia, essa edição foi editada de modo a parecer uma única obra, e tal torsão editorial foi percebida por Nietzsche, que registrou tal fato numa carta. Chama a atenção de Paschoal, na segunda parte de L’esprit souterrain, que corresponde às Memórias do subsolo, a tradução do termo russo “ Zlosti ” por “ ressentiment”, termo que é empregado por Dostoiévski para descrever o personagem que é caracterizado como “homem da consciência hipertrofiada” e que se considera um “camundongo”. Na visão de Paschoal, o fino tratamento psicológico que o autor russo utiliza para particularizar seu personagem é uma das influências mais marcantes para a interpretação nietzschiana do ressentimento na Genealogia. O personagem não-nomeado pelo escritor russo recebe essa caracterização por criar em si uma “peçonha” devido aos desagravos vividos, e ele alimenta em si uma crescente ofensa e sofrimento. Tal ampliação negativa do mundo interior corresponde ao homem do ressentimento da Genealogia da moral.

Igualmente, o homem nobre do livro de Nietzsche de 1887, aquele que não permite que o ressentimento se instale em seu organismo, tem um paralelo nas Memórias do subsolo, trata-se do “ l’homme de la nature et de la vérite ”, este não se torna rançoso porque reage imediatamente frente aos agravos, não permitindo, assim, a sua introspecção.

Segundo a análise de Paschoal, a leitura de Dostoiévski foi fundamental para Nietzsche cunhar uma das concepções de ressentimento na Genealogia. A esmerada construção psicológica do personagem de Dostoiévski fez com que Nietzsche admitisse que o autor russo fosse o “único psicólogo” com o qual o filósofo teve algo a aprender ( Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo 45). Não obstante as semelhanças, Paschoal chama a atenção para os diferentes projetos que separam os autores analisados: enquanto Dostoiévski utiliza o ressentimento para a caracterização intimista de um personagem, Nietzsche, por sua vez, parte da psicologia do homem ressentido para expandir a interpretação do ressentimento, num viés que atinge a moral e a sociedade.

No quinto capítulo, “Má consciência e ressentimento”, Paschoal realiza um mapeamento dos termos “má consciência” e “ressentimento” na obra nietzschiana.

Atento às nuanças e variações que os termos recebem, o autor constata que os termos possuem sua maior relevância na obra Genealogia da moral. Ao analisar o par de conceitos, Paschoal oferece ao público um exemplo da utilização do método contextual de interpretação da filosofia de Nietzsche, sugerido por Werner Stegmaier, que propõe a interpretação dos conceitos nietzschianos no contexto em que surgem e auscultando os propósitos localizados em cada passagem. Tal método permite compreender o experimentalismo de Nietzsche, que utiliza de conceitos para mobilizar propósitos circunscritos em determinados contextos, o que oportuniza compreender Nietzsche como um filósofo ao mesmo tempo não-sistemático e nãocontraditório.

Atento às variações que um mesmo conceito recebe na pena de Nietzsche, Paschoal demonstra que antes de 1887 a ideia de ressentimento em Nietzsche fica estritamente vinculada à ideia de Dühring, a qual o filósofo critica vorazmente. Na Genealogia da moral, o termo ressentimento ganha em significados, seja na ampliação do mundo interior do homem, ou na imposição de uma moral do ressentimento.

Paschoal dedica o mesmo cuidado analítico ao perseguir as acepções do termo má consciência nos escritos de Nietzsche, termo que antes de 1887 fica próximo de sua concepção cristã, isto é, como um conflito interior ou remorso. Na Genealogia, Nietzsche apresenta sua “hipótese própria” à noção de má consciência – que não é unívoca. Primeiramente, a má consciência é pensada como interiorização do homem, como mudança do curso dos instintos animais do homem que, por meio do processo civilizatório, “não podem ser descarregados para fora, mas são internalizados” (GM II 16), a ponto de expandir o mundo subjetivo do humano, o que o torna um “animal interessante” (GM I 6). Se a interiorização do homem pela má consciência é uma doença necessária, tal como a gravidez (GM II 19), por outro lado, em posse da política de dominação da moral do ressentimento, a má consciência se torna um adoecimento crônico no diagnóstico nietzschiano, pois para ele o cristianismo tornou os antigos instintos animais do homem culpáveis, o que aos olhos de Nietzsche é uma “loucura da vontade” (GM II 22). E mais, o cristianismo, segundo Nietzsche, amplia a má consciência do homem ao colocá-lo numa dívida impagável frente a Deus.

No sexto capítulo, “Possibilidades para se colocar para além do ressentimento”, o autor busca em Nietzsche possíveis soluções para o problema do ressentimento.

Primeiramente, Paschoal identifica que a direção para o problema da saída do ressentimento possuiu uma solução diversa daquela descrita na terceira dissertação da Genealogia da moral. Nesta dissertação, Nietzsche apresenta as técnicas do sacerdote ascético que, para lidar com o sofrimento causado pelo ressentimento, acaba tornando o homem um “animal manso” (GM III 15), fraco e entorpecido.

Nietzsche, na direção contrária, constrói três possíveis soluções, segundo Paschoal, para a saída do ressentimento.

A primeira possível saída do ressentimento, identificada nos textos de 1882 até o início de 1888, é buscada através do cultivo de um tipo de homem superior – o Übermensch –, e tal intenção de criar um tipo humano figura, nos textos deste período, como uma utopia possível, e não como algo irrealizável. A segunda saída possível do ressentimento está intimamente relacionada à primeira e, na interpretação de Paschoal, pode ser encontrada tacitamente na forma como os tipos elevados de homem lidam com o ressentimento, seja numa etiqueta de ordenamento e de oligarquia dos impulsos que fazem a assimilação psíquica da energia introjetada pelo ressentimento, ou pela ideia de uma higiene do espírito (GM I 10; II 1). A higiene do espírito proposta no Ecce Homo, a do “fatalismo russo” (EH Por que sou tão sábio 6), visa conservar a vida em condições desfavoráveis e de fraqueza, mas tal condição de estivação não figura, como no sacerdote ascético, um fim, mas é apenas um meio para a recuperação da saúde e a consequente saída do ressentimento. O terceiro modo de superação do ressentimento, segundo Paschoal, está inserido numa virada do pensamento de Nietzsche nos seus últimos escritos, pois no Ecce Homo e no Anticristo os contornos de uma utopia do além-do-homem cede lugar a uma filosofia voltada eminentemente para o presente. A ideia de amor fati é reavaliada nesse sentido, pois diferentemente de seu primeiro uso em 1882 (Gaia Ciência 276), a ideia não figura nos textos derradeiros de Nietzsche como um ideal futuro, mas como um conceito presente na avaliação retrospectiva de Nietzsche sobre seu próprio pensamento (EH Por que sou tão esperto 10). Seguindo as indicações de Montinari e Stegmaier, Paschoal pensa o tipo Jesus do Anticristo como um exemplo de uma figura que não dá margem para o surgimento do ressentimento. Tanto no amor fati do Ecce Homo quanto no tipo Jesus do Anticristo acontece a superação do ressentimento, pois em ambos os casos o homem se coloca para além do mecanismo do ressentimento, já que ambos não negam aquilo que é necessário e nada desejam de forma diferente e, portanto, nada t ê m a ressentir.

O livro se encerra com um apêndice intitulado “Especulações para novas investigações”, que conduz o tratamento do conceito de ressentimento para limites mais amplos do que a exegese dos textos nietzschianos. Paschoal lança mão da filosofia de Nietzsche para pensar a superação do ressentimento na prática política e social contemporânea e, para isso, utiliza um modelo político: a figura de Nelson Mandela e a implantação da política que permitiu vencer o apartheid na África do Sul.

O contraponto à reflexão proposta por Paschoal é o conceito de justiça promulgado por Dühring, para o qual a justiça se fundamenta num sentimento de vingança que busca equivaler o dano à punição. Todavia, tal concepção de justiça, segundo Paschoal, termina por promover o mecanismo social e político do ressentimento, ao passo que a punição só é ficcionalmente equalizada aos danos, e a punição é tão somente destinada ao indivíduo que cometeu o dano, pois se exime de punir o meio que o produz e, por fim, tal concepção de justiça produz um tipo humano decadente, incapaz de se elevar sobre o cálculo que satisfaz sua sede de vingança.

Paschoal encontra em algumas passagens de Nietzsche a possibilidade inusitada da emergência de tipos humanos destacados, que se esquivam do mecanismo que produz a justiça ressentida e, na Genealogia da moral, Nietzsche aponta para a “autossupressão da justiça” (GM II 10), que “culmina em fazer vista grossa e deixar escapar os insolventes – ela termina como toda coisa boa sobre a terra, suprimindo a si mesma ”. A despeito de tão enigmática passagem do filósofo alemão, Paschoal procura interpretá-la a partir do sutil trabalho de homens destacados, pois nessa passagem Nietzsche afirma que deixar de cobrar uma punição só pode figurar como uma graça ( die Gnade ) ou indulgência por parte de tipos humanos elevados. Tal concepção de graça não tem a mesma acepção do universo religioso de onde advém, mas, ao contrário, pode ser entendida a partir de indicações do Ecce Homo, como um “luxo” dado por naturezas destacadas e voltadas para si mesmas que, num ato de indulgência, deixa de cobrar uma dívida não por compaixão, mas como parte “do egoísmo, do cultivo de si” (EH Porque sou tão esperto 9).

Paschoal identifica na figura de Mandela o modelo de um homem que propôs uma política que se coloca para além do ressentimento, pois se na época pósapartheid todas as injustiças fossem “reparadas” num movimento contrário, como na justiça-vingança de Dühring, a África do Sul seria impelida numa guerra civil insolúvel, e assim a possibilidade de um futuro diferente da lógica de exclusão estaria seriamente comprometida. A política de Mandela, na interpretação de Paschoal, ao buscar o fim do confronto racial na dissolução do anseio político por vingança, figura como um modelo ímpar de uma política de combate ao ressentimento para o século XXI, época para o qual o discurso nietzschiano de superação do ressentimento soa tão atual quanto foi no século XIX.

Nietzsche e o ressentimento é obra de um pesquisador maduro, que demonstra preocupação tanto com a metodologia quanto ao trabalho em fontes para interpretar os textos nietzschianos, e tal primoroso trabalho de exegese se dirige para o apelo de construir uma filosofia comprometida a refletir aspectos essenciais para o presente.

Nesse sentido, Paschoal tem o mérito de atualizar a filosofia de Nietzsche, isto é, de fazer com que o filósofo alemão diga algo a respeito sobre o problema do ressentimento – que figura como doença humana, tanto no homem individual quanto no coletivo social –, e suas possibilidades de ultrapassagem.

Nietzsche e o ressentimento surge como obra obrigatória para estudiosos que se debruçam sobre o tema, assim como para aqueles interessados na relação entre o pensamento de Nietzsche com Dühring e com Dostoiévski.

Ítalo Kiyomi Ishikawa – Universidade Federal do Paraná. [email protected]

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O impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma crise – SALLUM-(NE-C)

SALLUM JUNIOR, Brasilio. O impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma crise. São Paulo: Editora 34, 2015. Resenha de:  AVRITZER, Leonardo. Entre o conflito de interesses e a nova institucionalidade política. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.103, Nov,  2015

O livro O impeachment de Fernando Collor é uma obra importante e necessária e que certamente acrescentará ao debate acadêmico nas ciências sociais no país. Desde o impeachment de Collor é pequena a literatura produzida sobre o assunto, e a referência mais importante ainda é um livro publicado por Keith Rosenn e Richard Downes nos Estados Unidos no final dos anos 1990. Poucos trabalhos de fôlego foram realizados no país sobre o tema. O livro de Brasilio Sallum Jr. vem preencher essa lacuna. Ao mesmo tempo, não poderia ser mais oportuno. Existem, neste momento, diversas propostas de impeachment do mandato da presidente Dilma Rousseff tramitando no Congresso Nacional, e o debate sobre o impeachment está sendo travado no Congresso e fora dele sem um conhecimento adequado sobre o assunto. Mais uma vez o livro em tela pode ajudar a preencher essa lacuna.

O livro O impeachment de Fernando Collor tem dois pontos bastante fortes. O primeiro deles é uma tentativa de propor um modelo analítico para o impeachment de Collor que se assenta na literatura de sociologia política. Aliás, o próprio autor destaca no subtítulo a ideia de uma análise a partir da sociologia. O motivo para essa intenção parece bastante claro e está ligado ao fato de o impeachment de Collor, assim como outros momentos decisivos da história do país, envolverem uma ampla coalizão de interesses e ideias. Assim, parece bastante importante analisar quais interesses são esses. O segundo ponto forte é uma análise de atores e coalizões que é um trabalho de natureza fortemente historiográfica com o qual o autor nos permite ver a diferente movimentação dos atores políticos ao longo dos quase três anos de governo Collor. Em conjunto, a sociologia política do autor permite uma complexa análise das movimentações políticas do atores e partidos.

Brasilio Sallum Jr. começa o seu livro mostrando a forte reorientação que o estrangulamento fiscal do Estado brasileiro ocorrido com a crise da dívida externa provocou. Para ele, são as reações à crise da dívida que levaram a um forte reposicionamento no interior da elite empresarial, no sistema de empresas estatais e no interior do sistema político. Esse reposicionamento favoreceu o fim do autoritarismo e permitiu a redemocratização do país. Com a volta da democracia e a Constituinte tivemos um momento de forte rearticulação do desenho institucional brasileiro, que Sallum Jr. sintetiza em alguns pontos: o maior poder concedido a estados e municípios; o aperfeiçoamento dos dispositivos da democracia representativa com a introdução de diversos institutos que propiciaram a participação direta e um conjunto de dispositivos cujo objetivo era diminuir a desigualdade social no país. Mas, junto com essas características, Sallum destaca também o fato de a Constituição ter emprestado uma moldura rígida ligada ao nacional-desenvolvimentismo já afetado pela crise da dívida externa. Por fim, no que diz respeito à arquitetura institucional, o ponto central de Sallum é que a derrota do parlamentarismo teve profundos efeitos. Segundo ele, o balanço geral da Constituição é que ela não foi capaz de superar a crise de hegemonia que perpassava o Estado (p. 38).

Vale a pena analisar o marco proposto por Sallum não só porque ele explica bastante bem as polêmicas que não foram resolvidas pela Assembleia Nacional Constituinte como também porque ele oferece pistas importantes para pesarmos os conflitos em torno do mandato da presidente Dilma que envolvem conflitos semelhantes tanto sobre a configuração do Estado quanto sobre a organização das políticas sociais. Brasilio Sallum Jr. argumenta que houve uma forte inflexão liberal no final dos anos 1980, reforçando agentes econômicos que já haviam se reposicionado a favor do liberalismo no começo da década. Assim, surge com força um projeto de integração competitiva entre esses setores, e é esse projeto que vai polarizar a sociedade brasileira em 1989. Assim, o marco proposto por Sallum é um marco que entende a diferenciação de interesses econômicos causando dilemas societários que por sua vez geram enfrentamentos políticos. Esse é, ao mesmo tempo, o ponto mais forte do livro, mas como mostrarei mais à frente é o seu ponto mais vulnerável também.

A campanha que levou Collor ao poder é descrita com uma grande riqueza de detalhes pelo autor. Ele mostra a importância do complexo midiático, em especial da Rede Globo, cuja influência era muito superior à atual, com a audiência se situando entre 65% e 80%. A construção da imagem de Collor é bem trabalhada, aparecendo frequentemente com os punhos cerrados e os braços erguidos em desafio (p.73), dando a impressão de um super-homem capaz de enfrentar os desafios do país. O autor mostra também a importância do discurso liberal, modernizante e de redução do Estado. Sua vitória eleitoral estabeleceu, desse modo, uma hegemonia do projeto liberal de redução do Estado. No entanto, essa hegemonia não fez com que o debate sobre o próprio Estado e o modelo liberal refluísse. Pelo contrário, Sallum também mostra em detalhes como a clivagem social fez com que o conflito político persistisse durante o governo Collor.

A análise do governo Collor por Sallum opera na tensão entre os interesses econômicos que o apoiaram e as propostas políticas do presidente. Nesse sentido, é como se a articulação entre interesses econômicos e apoio político tivesse trincado já no primeiro momento. Assim, a primeira análise do autor sobre a montagem do ministério já aponta para a vontade do presidente de não colocar um representante de peso da nova agenda liberal no Ministério da Economia. O presidente deixava claro o seu afastamento relativo dos interesses que o elegeram e a sua vontade de ser ele mesmo o gestor da economia. A matriz explicativa para essa tensão que perpassou a formação de todo o ministério é a mesma e se assenta na sociologia política proposta por Sallum, que defende uma forte conexão entre interesses e articulação política. Ainda assim, o argumento do autor é que o campo político amplo da rearticulação liberal, em um primeiro momento, esteve disposto a apoiar o presidente e o seu plano de estabilização econômica. O núcleo do Plano Collor, como é sabido, foi a apropriação e o congelamento de 80% dos ativos financeiros e da moeda em circulação (p. 90). Ao fazê-lo, Collor se posicionou contra a riqueza financeira, como comentaram diversos órgãos de imprensa da época. Assim, em sua primeira ação econômica de peso, Collor propôs um plano entre um certo intervencionismo de esquerda e o reformismo liberal (p.94). Da esquerda, o Plano Collor retirou a ideia de intervir nos direitos associados à moeda indexada, ao passo que do reformismo liberal ele retirou a ideia de intervir profundamente nas estruturas do Estado desenvolvimentista. Junto com o congelamento dos ativos financeiros, ele propôs uma reforma administrativa que mexeu profundamente com a liderança sindical ao anunciar que poria à disposição entre 20% e 25% dos servidores públicos. Desse modo, o que Sallum mostra é que Collor se colocou à margem dos principais interesses representados por ele e se chocou fortemente com os principais interesses representados pelo grupo oposicionista, em especial pelo PT e pela CUT. Nesse sentido, Collor construiu uma imagem voluntarista e autocrática que levaria até o seu impeachment. Sallum mostra como as principais forças dentro do Congresso se posicionaram pela aprovação do Plano Collor: “Os partidos que haviam se comprometido previamente a apoiar o Plano – PRN, PFL, PDS, PTB, PL e PDC – acabaram votando em peso a seu favor […]. O PSDB o PT ou por melhorá-lo e o PMDB – o maior partido, com 159 deputados e 28 senadores – acabou contribuindo decisivamente para a sua aprovação […]”. Assim, a análise de Sallum é que Collor inicia o seu mandato com uma certa disjunção entre interesses e representação política. Ao contrariar os interesses alinhados com uma agenda liberal e tentar atuar por cima deles, ele rompeu com a sua base e passou a depender de uma base no Congresso que lhe dava apoio condicional. Já no final de 1990, Collor é derrotado na votação de diversas medidas provisórias. Assim, Sallum passa a centrar sua análise na arena legislativa e no novo Congresso eleito em 1990.

Os anos 1991 e 1992 foram os anos decisivos para Collor. Brasilio Sallum Jr. começa a descrição desse período com a posse do novo Congresso em 1º de fevereiro de 1991. O dia foi o mesmo em que foi anunciado o Plano Collor II, que mais uma vez congelou os preços e anunciou um tarifaço nos preços da energia elétrica, telefonia e gasolina (p. 121). O segundo Congresso a ser enfrentado por Collor não era muito diferente do primeiro em termos de composição partidária, era um Congresso majoritariamente conservador. Mas era um Congresso mais independente, não apenas porque os seus membros tinham mais quatro anos de mandato, mas principalmente porque ali já se colocava uma agenda de maior autonomia do parlamento em relação ao Poder Executivo. O presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, já falava naquela altura na regulamentação da edição de medidas provisórias. Collor consegue aprovar o Plano Collor II, ainda que com algumas modificações. No entanto, o mais importante naquele momento foi que as modificações não foram mais aprovadas por reedição de medidas provisórias, e sim através de uma negociação com os partidos de centro. Ainda assim, a base política de Collor já aparece arranhada em meados de 1991 devido a diversos conflitos, em especial com o Congresso, com os trabalhadores e com o sindicalismo. Collor, percebendo o esgarçamento da sua base parlamentar, tentou alguns movimentos, entre os quais a substituição da sua ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, por um liberal mais ortodoxo, Marcílio Marques Moreira. Assim, é possível entender a embocadura da análise de Sallum. Para o autor, os arranjos políticos têm que expressar interesses econômicos e quando não o fazem produzem crises. A crise do governo Collor foi provocada por uma disjunção entre representação de interesses e arranjo político. O voluntarismo do presidente tende a afastar dele primeiro a sua base empresarial e em segundo lugar a sua base política. Percebendo tal disjunção, ele muda a condução da economia, em que ainda estava presente uma certa heterodoxia na equipe, mas de alguma forma a recomposição da iniciativa política do presidente não foi possível, já que não houve melhora nem na economia nem na capacidade de negociar com o Congresso Nacional. Começa já em meados de 1991 a pipocar no Congresso um conjunto de iniciativas, todas elas destinadas a reduzir as prerrogativas do presidente. Ao mesmo tempo, começa a se formar uma frente parlamentar que passa a coordenaras ações de PMDB, PT e PSDB. Essa frente, por seu lado, reduziu as possibilidades de um amplo processo de liberalização econômica. Mais uma vez, vemos em operação a ideia de Sallum de sociologia política. Na medida em que o presidente não foi capaz de agregar os interesses econômicos que ele defendia em uma base política sólida, rearticularam-se partidos de centro e esquerda, que então bloquearam a liberalização, mesmo após a mudança do ministério. É essa frente, acrescida da mobilização popular, que será a responsável pelo impeachment.

Oanode1992começoucomumadisputaemtornodoreajustedos aposentados. A partir de uma decisão do Judiciário do Rio de Janeiro sobre esse reajuste, Collor entrou em uma disputa com o Judiciário e o Legislativo que acentuou a crise do seu governo. O presidente do Supremo Tribunal Federal, que tentava naquele momento fazer uso das novas prerrogativas concedidas pela Constituição de 1988 ao Judiciário, se declarou incompetente para sustar um aumento concedido pela justiça aos aposentados do Rio. Collor mais uma vez recorreu ao expediente comum: foi à televisão dizer que não havia recursos para tal e propôs um aumento das contribuições. Imediatamente a Câmara dos Deputados se pronunciou contra tal aumento, criando um impasse em torno do assunto com a assinatura, pelo presidente, de um decreto que retirava poderes do Congresso. Esse impasse azedou de vez a relação do presidente com o Congresso e acentuou a queda da sua popularidade. A popularidade de Collor, que iniciou o seu mandato com mais de 70% de aprovação, vai caindo ao longo dos dois anos e alcança marca próxima a 20% no meio de 1992. Assim, todos os componentes da crise estão no lugar em meados de 1992 e são explicados por Sallum da seguinte forma:“[…] entrou em crise o modo como o presidente da República interpretava o regime democrático por suas palavras e atos de governo, modo distinto em relação ao esperado e propugnado pela maioria das forças políticas presentes no Congresso […]” (p. 184).

Temos assim o início da crise, que se exponencia com as entrevistas do irmão Pedro Collor, que colocam o tema da corrupção no centro da crise política já vivida pelo governo, e que aponta a denúncia na direção do próprio presidente. Collor responde ao irmão no dia 25 de maio, acusando-o de insensato e prometendo processá-lo. Mas a crise prospera no Congresso com a formação, no dia 27 de maio, de uma Frente Parlamentar de Oposição entre PMDB, PT e PSDB, cujo objetivo explícito era a atuação conjunta na CPIM (p. 211). Nesse mesmo contexto, doze organizações se reúnem no dia 29 de maio na sede da OAB e convocam uma mobilização da sociedade civil. Sabemos todo o desenrolar desses eventos. A partir de um desafio tosco à sociedade brasileira, em que um presidente sem apoio pede a manifestação da sociedade a seu favor, o Brasil inteiro se mobiliza, com o apoio da imprensa, a partir de meados de agosto de 1992. Sallum nos dá uma ideia desse ciclo mobilizatório: de quatro a seis eventos por semana ao longo das cinco semanas anteriores a 16 de agosto, passamos a 56 eventos por semana com uma média de participantes de 15 mil pessoas (p. 306). É esse o caldo da mobilização que irá levar, no dia 29 de setembro, ao afastamento de Collor da presidência, seguida da sua renúncia em dezembro.

Um balanço da análise de Sallum encontra alguns pontos fortes decorrentes, como o autor reivindica, da sua sociologia política, mas alguns pontos débeis decorrentes exatamente da sua incapacidade de ir além dela. Os pontos fortes já foram mencionados e estão relacionados à maneira como o autor utiliza a sociologia para tecer uma relação entre o realinhamento dos interesses econômicos nos anos 1980 e uma análise específica de como esses interesses se rearticularam no Congresso. A tese fundamental sobre Collor surge a partir desse marco analítico, e o seu ponto central é que o voluntarismo e o desrespeito a sua base econômica e política criaram os problemas que o presidente enfrentou em 1991 e 1992. Mas os limites da análise de Sallum se encontram justamente aí, porque no primeiro semestre de 1992 Collor muda o seu ministro da Economia e realiza uma reforma ministerial justamente com o objetivo de alinhar o seu governo aos interesses das forças que o elegeram. É esse justamente o momento em que se acentua a mobilização contra Collor. Sallum não tem uma explicação para o fenômeno. O que ele afirma em relação às manifestações é o seguinte:

Durante o governo Collor houve uma crise política importante embora não muito profunda iniciada em 1992 e encerrada com a reforma ministerial de abril. O que diferencia a crise política que se desenvolvia desde o fim de junho […] é que especialmente a partir do domingo negro, ela alterou significativamente a dinâmica do processo político porque a intensificação da mobilização de atores societários não participantes usuais da política nacional rompeu os limites do campo político institucional (p. 308).

Entendo que essa frase expressa os limites da capacidade analítica do autor. O problema que parece lhe escapar é que a democratização brasileira e a Constituição de 1988 ampliaram os limites do campo político institucional, que tem que ser entendido com a presença desses atores e as conexões adequadas entre mobilização, organização da sociedade e dinâmica política institucional. A sociologia de Sallum opera muito bem na interseção entre interesses econômicos e institucionalidade política. Ali ele demonstra os movimentos importantes que as forças sociais realizam no interior das instituições políticas. No entanto, outras categorias mais próprias, como a do institucionalismo político ou da ideia de inovação institucional, faltam no livro, e sua lacuna constitui um problema na sua capacidade explicativa. Sallum aborda de forma muito superficial a nova institucionalidade criada pela Constituição de 1988, que criou inovações que foram muito importantes no governo Collor. Assim, quando o Congresso ou movimentos sociais procuram o Poder Judiciário por meio de ADINs para tentar barrar o decreto sobre as aposentadorias, esse foi um fenômeno absolutamente novo, assim como o foi o ato do presidente do Supremo, de não se posicionar junto com o Executivo na questão das aposentadorias do Rio de Janeiro. Sallum menciona todos esses fatos, mas não lhes atribui a novidade e a importância que tiveram na época e seguem tendo. A análise de Sallum para no voluntarismo e na reação do sistema político ao presidente, utilizando a inovação institucional e a capacidade de mobilização social da oposição como uma variável externa a sua análise. Tenho a impressão de que não é possível entender plenamente o impeachment de Collor sem mostrar uma dimensão que no livro aparece secundarizada: o fio que vai da mobilização da sociedade na direção do papel das novas instituições no campo jurídico (Ministério Público, ADINs e o novo papel da OAB) e alcança o sistema político. O autor mostra muito bem a capacidade de Collor de estabilizar a sua situação no interior do campo político. Mas sua capacidade explicativa parece sucumbir na incapacidade de julgar novos atores e instituições que desde 1988 vêm tendo um papel diferente na política brasileira. Foram elas que influenciaram decisivamente no impeachment de Collor, são elas que têm hoje um papel fundamental em um possível processo de impeachment da atual presidente que está colocado no processo político em curso no Brasil neste ano de 2015. Para entender essas novas instituições não é possível utilizar apenas o marco da sociologia política, como pretende Sallum. É necessário utilizar um marco que atribua às instituições um papel maior que o do abrigo a grupos sociais e políticos com interesses diversos e mostrar como novas instituições produzem novos padrões de relação entre Estado e sociedade. O livro O impeachment de Fernando Collor é uma excelente descrição e análise do evento sob o ponto de vista da articulação política de interesses sociais, mas deixa a desejar sob o ponto de vista de uma análise do impacto das novas instituições nessa mesma institucionalidade. Somente assim seria possível explicar o que falta explicar no livro: por que a ancoragem/blindagem de Collor nos interesses políticos e social-liberais não salvou o seu mandato? Por que os grupos de oposição ao modelo liberal conseguiram se mobilizar muito mais fortemente que os grupos que poderiam sustentá-lo? Por fim, em 1992 como hoje, seria importante explicar o novo marco jurídico das instituições de controle e seu impacto sobre a democracia no Brasil. Em todos os casos, uma sociologia dos interesses nos deixa a meio caminho no processo de explicação desses fenômenos.

Leonardo Avritzer –Professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG.

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The Pseudoscience wars Emmanuel Velikonsy and The Modern Fringe – GORDIAN (NE-C)

GORDIAN, Michael D. The Pseudoscience wars Emmanuel Velikonsy and The Modern Fringe. Chicago: Editora da Universidade de Chicago,2012. Resenha de: Toledo junior, Joaquim.  Mundos em colisão: catastrofismo e as fronteiras da ciência. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.102, Jul, 2015.

“Após pesquisar o assunto por mais de um quarto de século”, escreveu Randolph Weldon em Doomsday 2012, “o autor [Weldon refere-se a si mesmo na terceira pessoa], que ocupa uma alta posição no reino celeste, oferece este livro como ajuda para os não iniciados tomarem conhecimento e se prepararem para o massacre de que seremos vítimas em breve.” Uma sessão de hipnose teria revelado a Weldon que, em uma de suas vidas passadas, encarnou como um artesão egípcio que sobreviveu aos desastres que atingiram a região à época de Moisés e da primeira diáspora do povo judeu, por volta de 1500 a. C.

Weldon ligou os cataclismos que alegadamente testemunhou aos relatos de Barbara Hand Clow sobre um cometa cuja trajetória coincide com a da Terra a cada 3500 anos, e que teria causado sua morte (também em uma vida passada,em que foi uma sacerdotisa grega),e à data aproximada do nascimento do planeta Vênus conforme calculada por um certo dr. Immanuel Velikovsky (coincidentemente ou não,há cerca de 3500 anos, após desprender-se de Júpiter e transformar-se em um cometa que quase aniquilou a vida na Terra – justamente durante o Êxodo,o que explicaria fenômenos pouco comuns como a abertura do mar Vermelho e a chuva de maná que alimentou o povo judeu durante a travessia do deserto -, antes de se assentar pacificamente em sua órbita no sistema solar entre a Terra e Mercúrio), fez as contas e chegou à terrível conclusão, que seu livro tem a missão de divulgar: o evento voltaria a ocorrer em breve,mais precisamente em dezembro de 2012, e destruiria a Terra por impacto direto ou pelo desastre nuclear que resultaria da desestabilização provocada pela proximidade do cometa.

O livro de Weldon seria mais um (embora certamente dos mais imaginativos) da enxurrada recente de publicações que advertem, explicam e oferecem orientações práticas e conforto espiritual para o fim do mundo, que,segundo garantem seus autores,está próximo,muito próximo,não fosse a referência às teorias há algum tempo esquecidas do médico,psicanalista e dublê de astrônomo, historiador, geólogo e filólogo russo Immanuel Velikovsky (1895-1979), o pai do catastrofismo moderno. Velikovsky foi,na opinião de Weldon, um mártir que enfrentou corajosamente o mainstream científico, que jamais lhe deu, ou a suas teorias, muita atenção,a não ser negativa.Embora Mundos em colisão,seu best-seller de 1950 que detalha sua teoria do nascimento de Vênus e sugere a necessidade de revisão completa de quase todos os pressupostos fundamentais de boa parte da ciência moderna (da astrofísica à história antiga, passando pela geomorfologia e pela teoria da evolução), o tivesse transformado em celebridade, para bem e para mal, e o colocado no centro de uma polêmica a respeito das fronteiras entre ciência,má ciência,não ciência e pseudociência, Velikovsky foi condenado a viver à margem do universo ao qual tentou a vida inteira se integrar: a comunidade científica norte-americana do pós-guerra. “Os chefões de laboratórios e seus lacaios”, escreveu Weldon,“pisotearam sua obra,esquartejaram e queimaram-na em praça pública – e teriam feito o mesmo a seu autor se não houvesse uma lei que os proibisse, tão vingativos e incapazes que são, aqueles esnobes,de admitir que estejam errados.”

O NASCIMENTO DE VÊNUS

Se estivesse vivo, no entanto, Velikovsky talvez tivesse torcido o nariz para essa defesa entusiasmada de sua obra. Do mesmo jeito que procurou a vida inteira a aprovação dos grandes cientistas contemporâneos seus, fugia com horror à simpatia não requisitada de criacionistas, parapsicólogos, reichianos e pregadores do apocalipse que se solidarizavam com sua condição de pária da comunidade científica “oficial”.Para Velikovsky, sua teoria era estritamente racional e científica; estes últimos,por sua vez,eram,em sua opinião,fundamentalistas e charlatães que flertavam com o obscurantismo e a irracionalidade.

Dada a enormidade da tarefa a que Velikovsky se dedicou em Mundos em colisão, é praticamente impossível resumir seu conteúdo. “Não deixei ali”, escreveu o próprio Velikovsky anos depois da publicação de seu magnum opus, “uma frase sequer que julgasse supérflua.” Ao longo de mais de quatrocentas páginas,o livro procura,pela análise de textos sagrados (o Velho Testamento em especial) e de mitos dos lugares e épocas mais variados e distantes, justificar a tese central da qual Velikovsky passaria a vida toda tentando convencer a comunidade científica: “Por força de grande número de argumentos cheguei à conclusão – da qual não tenho mais dúvida alguma – de que foi o planeta Vênus,à época ainda um cometa, que causou as catástrofes dos dias do Êxodo”.

Por volta de 1500 a.C.,um pedaço do planeta Júpiter teria se desprendido,sua trajetória perigosamente apontada em direção à Terra. A interação gravitacional e eletromagnética dos dois corpos teria causado gigantescas rupturas na crosta terrestre, o deslocamento do eixo de rotação da Terra e uma longa e intensa chuva de meteoros sobre nosso planeta. Após alguns anos, o cometa se integraria ao sistema solar,dando origem ao que hoje é o planeta Vênus.O trauma decorrente dessa catástrofe natural (e aqui a formação psicanalítica de Velikovsky desempenha papel crucial) levou a humanidade a manter o registro desses acontecimentos de forma velada,travestido de mitologia – um caso típico de amnésia coletiva pós-traumática. Mas tratar-se-ia de uma verdade histórica,revelada pela leitura atenta e literal de documentos até então considerados alegóricos, e que deveria levar à reformulação de boa parte das teorias convencionais da mecânica celeste,física,química,geologia,paleontologia e biologia.“As leis da ciência devem adequar-se aos fatos históricos”,insistia Velikovsky, “e não os fatos às leis.”

E a história (escondida nas entrelinhas da mitologia mundial) revelava que o sistema solar e a Terra chegaram ao seu estado presente não pela ação de forças contínuas e desde sempre em operação, como sugeria a ciência moderna, mas pela intervenção recorrente de catástrofes naturais como o nascimento de Vênus.

GRITO DE GUERRA

O livro catapultou Velikovsky para o centro de um debate muito diferente daquele que esperava. Para a comunidade científica, suas teorias eram evidentemente furadas, um pastiche de erudição típica de intelectuais do “velho mundo” e pseudociência. (Albert Einstein, de quem Velikovsky se aproximou na cidade norte-americana de Princeton, para onde emigrou em 1939, e cujo apoio procurou em vão obter, teria dito a respeito de Mundos em colisão, em sua maneira caracteristicamente polida:“Não é um livro ruim,só é completamente maluco”.) O alvo principal da reação ampla e enraivecida de cientistas eminentes, relata o historiador Michael D. Gordin em Pseudoscience Wars: Immanuel Velikovsky and the birth of the modern fringe, foi não o livro e suas teorias,mas a Macmillan,uma das casas editoriais mais respeitadas no meio científico, que o colocou no mercado.

“Os cientistas protestaram contra o envolvimento da editora com esse livro”, escreve Gordin, “e se ressentiram de sua campanha publicitária vigorosa (e bemsucedida),com a qual involuntariamente contribuíram com suas manifestações indignadas.” O debate se transformou em uma discussão pública acalorada a respeito das responsabilidades profissionais da editora e da autoridade de cientistas como juízes do que é ou não é “ciência”;um debate a respeito do papel da ciência na esfera pública das sociedades modernas e das fronteiras entre ciência e “pseudociência”.

“Pseudociência” é um daqueles termos que, mais do que sentido, têm uma função clara: delimitar o campo do que é considerado trabalho científico legítimo, com os privilégios decorrentes (posições em universidades,acesso a financiamento,direito de influenciar políticas públicas).É um grito de guerra usado pela comunidade científica com a intenção de criar e defender uma determinada imagem pública da ciência, contrastando-a favoravelmente a outras atividades intelectuais. Definir as fronteiras entre ciência e “o resto” não é simplesmente um problema analítico para a diversão de filósofos; é uma das tarefas cruciais a que cientistas se dedicam incessantemente. Acusar alguém do pecado da “pseudociência” é classificar e estigmatizar,excluindo do jogo social da “ciência” e suas instituições, outsiders e inimigos.

DIPLOMACIA

O astrônomo Harold Shapley (à época um dos cientistas mais destacados do meio científico norte-americano, ao lado de Oppenheimer e Einstein) liderou a reação contra a publicação, por uma editora científica respeitada, de um livro que pretendia revolucionar as teorias sobre o sistema solar a partir da interpretação de mitos antigos. Sua atitude foi um golpe para Velikovsky: este esperava de Shapley cooperação científica, e não hostilidade. A “nova história” do sistema solar delineada em Mundos em colisão apontava, como toda boa ciência (na opinião de Velikovsky), para hipóteses falseáveis; bastaria a boa vontade de astrônomos e uma ou outra observação com os novos e potentes instrumentos desenvolvidos nas últimas décadas para de uma vez por todas confirmar, ou não, a consistência de suas teorias e encerrar a polêmica.

VelikovskyteriainicialmenteprocuradoShapley,emummovimento diplomático de aproximação ao meio científico oficial.“Eu gostaria muito de que você lesse o meu manuscrito”, disse-lhe Velikovsky. “E, se a leitura indicar que minha tese é suficientemente sólida para merecer testes em laboratório, seria possível realizar uma ou duas análises espectroscópicas não muito complicadas?” Velikovsky tentava,candidamente, obter acesso aos recursos materiais disponíveis para outros cientistas,mas vedados a ele (que não tinha vínculo institucional com nenhuma instituição científica),e que poderiam salvá-lo da combinação decepcionante de sucesso popular e ostracismo entre os especialistas, de quem no fundo desejava reconhecimento.

O conflito, no entanto, escalou rapidamente. Alegando falta de tempo, Shapley respondeu que daria uma olhada no manuscrito caso Velikovsky conseguisse alguém de sua confiança para recomendá-lo. Pouco depois Velikovsky voltou a escrever, mas Shapley, por meio de sua secretária, deu o assunto por encerrado. “Na minha longa experiência no campo da ciência”, disse Shapley em correspondência, “essa é a fraude mais bem-sucedida entre todas as perpetradas contra publicações americanas de ponta.” E, em outro contexto, pressagiou, de maneira bastante precisa: “Daqui a um ano saberemos se a reputação da editora Macmillan será ou não prejudicada pela publicação de Mundos em colisão”.

O veredicto de Shapley não poderia ser mais claro. “Se o dr. Velikovsky está certo”, escreveu a um dos emissários de Velikovsky que procurava conquistar sua simpatia, “todos nós estamos loucos.” As ameaças de boicote à Macmillan (principalmente aos livros didáticos utilizados nas universidades norte-americanas) surtiram efeito, e,poucos meses depois de sua publicação,a editora vendeu os direitos da obra – que passou algum tempo nas listas de mais vendidos atrás apenas da Bíblia – à editora popular Doubleday.

UM NOVO LYSENKO?

Nos anos 1950 a comunidade científica norte-americana viu seu prestígio, visibilidade e acesso a recursos se expandir em escala sem precedentes. No entanto, ela sentiu-se ameaçada pela publicação de um livro de um autor que praticamente todos os especialistas consideravam maluco. Qual era a fonte da inquietação que despertou os esforços para relegar Velikovsky e sua obra à bacia das almas da pseudociência?

A legitimação inadvertida, por uma editora científica (um dos filtros do campo científico cuja função é fazer controle do que passa ou não como “ciência”), das teorias de Velikovsky despertou inquietações bastante compreensíveis na comunidade científica norte-americana. O medo era a reedição, daquele lado da Cortina de Ferro, do “caso Lysenko”.

Os cientistas da época tinham uma memória bastante clara do russo Trofim Denisovich Lysenko, técnico agrícola que conquistou as simpatias de Stálin e transformou-se em uma das principais autoridades científicas da URSS, impondo a ortodoxia da ciência legitimamente “soviética” e perseguindo os supostos defensores da ciência “burguesa”, em especial os geneticistas.

Proteger as fronteiras da ciência era impedir sua colonização pela política. Involuntariamente, Velikovsky pareceu a figuras como Shapley e outros a cabeça de ponte que poderia realizar o primeiro de uma série de ataques à autonomia da ciência em solo americano.

CATASTROFISMO VS. UNIFORMITARISMO

Velikovsky, no entanto, ficou furioso com o tratamento que lhe foi dispensado. Para ele, o que realmente incomodava os cientistas (além de eles também serem vítimas inconscientes da amnésia coletiva que apagou da memória da humanidade as experiências cósmicas traumáticas que seu livro revelara) era sua defesa de uma visão catastrofista do mundo natural. Se as revelações de Mundos em colisão estivessem corretas, ela seria um desafio à teoria darwiniana da evolução e dos pressupostos uniformitaristas e gradualistas da história da Terra – a ideia de que as forças que agem sobre a Terra hoje são as mesmas que sempre agiram desde o começo – aceitos por geólogos e astrônomos. “A crença de que vivemos em um universo sereno, que nada ocorreu com a Terra e com outros planetas desde o começo, que nada ocorrerá até o fim, é uma ilusão que contamina os livros didáticos. E é igualmente uma ilusão pensar que vivemos em um sistema solar seguro, imperturbável, hoje como no passado.”

As teorias de Velikovsky apelam para um sentimento bastante difundido de que o mundo, de alguma forma, está condenado à destruição iminente.De fato,no final da vida,nos anos 1970,resignado e cansado de guerra,Velikovsky passou a advertir para os perigos da Era Nuclear e para a ameaça de uma destruição completa do planeta (em uma catástrofe dessa vez gerada pelo próprio homem) pelo belicismo paranoico da Guerra Fria, não raramente compartilhado pela própria comunidade científica.Por improváveis e excêntricas que fossem suas teorias, Velikovsky soube tirar delas uma lição pacifista.

CIÊNCIA E A GRANDE INDÚSTRIA

Uma das lições centrais do livro de Gordin é (além da análise dos usos retóricos e políticos da noção de pseudociência) que,mais do que o conjunto não pouco numeroso de malucos inofensivos e suas criações fantasiosas (catástrofes cósmicas, ovnis, astronautas do futuro, mensagens apocalípticas criptografadas em calendários de civilizações antigas) que povoam as franjas do mundo científico, a grande ameaça pública associada à ciência é a cooptação de parte da comunidade científica pelos interesses da Grande Indústria. Não são poucos os recursos destinados à investigação científica cujo objetivo é dirimir as preocupações contemporâneas com os riscos do consumo de tabaco, álcool, da queima de combustíveis fósseis ou do uso crescente de remédios psiquiátricos.

Velikovsky estava, certamente, errado ao imaginar que uma única “descoberta” histórica poderia revolucionar toda a ciência moderna.A lógica da ciência é ela própria uniformitária,gradualista,e nem mesmo os períodos revolucionários se assemelham às catástrofes velikovskianas:o impacto de uma única obra nunca é suficiente para forçar o abandono completo dos consensos em torno dos quais a comunidade científica trabalha. Antes, é o trabalho longo e contínuo de acúmulo de evidências e contraevidências que faz a ciência progredir. Uma tarefa coletiva e no mais das vezes tediosa, sem os grandes arroubos de imaginação e a eloquência visionária dos tantos Velikovskys que, felizmente, povoam as periferias da ciência.

Joaquim Toledo Junior– Doutorando em filosofia pela Unicamp.

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Albert Camus, de la transfiguration – pour une expérimentation vitale de l’immanence – BOVE (CE)

BOVE, Laurent. Albert Camus, de la transfiguration – pour une expérimentation vitale de l’immanence, 2014. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.33, Jul./Dez., 2015

Publicado em 2014, “Albert Camus, de la transfiguration”, constitui, ao lado de “Vauvenargues ou le séditieux”, de 2010, mais um esforço realizado por Laurent Bove no sentido de valorizar o tema pascaliano da “segunda natureza” através de um ponto de vista espinosista. Por aí se vê que Bove é consequente ao se distanciar tanto do tema da “filosofia do absurdo”, reiteradas vezes associada à obra de Camus pela interpretação hegemônica que dele se faz, quanto da imagem de um moralista, associada a Camus através de Sartre. Ainda que Bove percorra grande parte da obra Camus, podemos afirmar sem grandes embaraços que os personagens merecedores de maior consideração são Meursault e o Cristo das pinturas de Piero della Francesca, tal como descrito nas Noces 1. Através da identificação do tema de uma filosofia do corpo, Bove sustenta que Camus prepara, nas suas primeiras obras, notadamente em O estrangeiro e nas Noces, a questão da transfiguração, a qual será pos – teriormente desdobrada nos seus aspectos políticos e históricos, em O homem revoltado, por aí se articulam as duas partes da obra de Bove 2.

Camus não pode, portanto, segundo a análise de Bove, ser com – pletamente identificado ao tema do absurdo, desenvolvido em O mito de Sísifo, nem à saída moralista dele derivada. Em 1960, logo após a morte de Camus, Sartre escreve um artigo a respeito do autor de O estrangeiro : “Camus representava neste século, e contra a História, o herdeiro atual desta longa linhagem de moralistas cujas obras constituem possivelmente aquilo que de mais original existe nas letras francesas. Seu humanismo empedernido, estreito e puro, austero e sensual, travava um combate duvidoso contra os eventos massivos e disformes deste tempo. Mas, inversamente, pela tenacidade de sua recusa, ele reafirmava, no coração da nossa época, contra os maquiavelianos, contra o bezerro de ouro do realismo, a existência do fato moral” (sartre, 1964, p. 127). No lugar de articular o absurdo à revolta, como a interpretação de Sartre sugere, Bove procura mostrar a articulação entre o pensamento da imanência, aquiescente ao mundo, com a revolta. Por essa via, a revolta não aparece como efeito de um fato moral, como se fosse algo de externo à aquiescência ao mundo de que se trata, e o mundo mesmo procede em cada indivíduo pela determinação dos problemas e dos casos necessários de solução 3 . Nesse sentido, a revolta é tanto um fato interno à ordem do comum, tanto um fato do mundo quanto um fato da comunidade humana – em nenhum caso ela é um fato externo ao comum.

O conceito de transfiguração aparece logo na introdução da obra de Bove, onde ele é imediatamente remetido a certa potência de ruptura vis-à-vis as diversas formas de niilismo impostas pela transcendência da História, potência esta que é indissociável da própria afirmação do plano imanente do agir (p. 15). Mas, uma vez que o conceito de transfiguração é articulado por Bove à imagem de Cristo, notadamente tal como este aparece nos quadros de Piero della Francesca, cabe a referência à ocorrência deste termo no texto bíblico. O termo aparece no Evangelho, onde é relatada a transfiguração de Cristo, no alto de um monte, diante de Pedro, João e Tiago: “e foi transfigurado diante deles; o seu rosto resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz” (Mt 17:2) 4 . Este episódio deve, todavia, ser compreendido em associação com a ressurreição de Cristo, pois, após a transfiguração, Mateus relata que “descendo eles [Pedro, João e Tiago] do monte, Jesus lhes ordenou, dizendo: a ninguém conteis a visão, até que o Filho do homem seja ressuscitado dentre os mortos’” (Mt. 17: 9). Se bem que o tema da transfiguração – e o da ressurreição a ele associado – se apresente numa perspectiva transcendente, é possível valorizar, por detrás da questão teológica, a descrição de uma mutação radical que se exprime na sua corporeidade essencial; é precisamente esta corporeidade, o aspecto sensual da filosofia de Camus, que nos permite perceber a centralidade da referência a Piero della Francesca, numa espécie de revalorização da “segunda natureza” pascaliana, não como signo de decaimento, mas como espaço de expressão e desenvolvimento da humanidade.

Lida sob o signo da imanência, a transfiguração envolve uma ontologia da potência enquanto “atividade superabundante”; expressão através da qual Bove evoca o estudo das filosofias neoplatônicas realizado por Camus quando da redação da sua monografia na universidade de Argel 5 . Submetido a uma lógica imanentista, o elemento neoplatônico deve ser interpretado à luz de um “excesso de presença”, que fratura o ser a partir da sua própria potência. Nesse sentido, cabe-nos a referência a esta fórmula de Camus, extraída por Bove de L’homme revolté : “a revolta […] fratura o ser e o ajuda a transbordar. Ela libera ondas que, estagnadas, tornam-se furiosas” (p. 117). A transfiguração designa um processo imanente de afirmação do real, o qual não pode ser compreendido sob o signo da identidade, pois a ênfase recai, antes, sobre a produção de uma diferença radical interna à segunda natureza, sem qualquer recurso à transcendência.

Ao mesmo tempo, a passagem da filosofia do corpo, tal como tematizada na primeira parte do livro de Bove, à resistência, tal como. analisada na segunda parte, não deve ser compreendida como análoga à transição clássica entre passividade e atividade, ou entre pura aquiescência (“sim”) e puro dissentimento (“não”). Muito embora a abertura de Meursault ao mundo seja indicativa da sua passividade, Bove enfatiza de que modo esta passividade é índice mesmo da potência de Meursault. Em Meursault, a passividade é virtude (p. 46). E é virtude porque ela envolve também atividade . A concepção do agir encontrada por Bove em Camus não pode ser compreendida à luz do niilismo do “individua – lismo possessivo” 6, mas remete, pelo contrário, à mesma ontologia dinâmica que ele já havia encontrado em Vauvenargues, o qual “identifica o ser com a potência, a potência, com a ação, e sustenta uma necessidade imanente de produtividade da natureza, produtividade que se dá, especialmente em e pelo homem” (bove, 2015, p. 2) 7 . Da filosofia do corpo à revolta, o que se vê é o esquadrinhamento de uma mesma ontologia dinâmica com fortes acentos vauvenargueanos, a qual, analisada na sua corporeidade essencial na primeira parte da obra, passa a ser investigada em articulação com elementos histórico-políticos na segunda parte do livro de Bove.

Embora Bove não o diga diretamente, podemos deduzir da sua interpretação de Camus, uma estrutura organizada em torno de dois conceitos: forma e figura, de onde resultam duas estratégias ético-políticas (e filosóficas), quais sejam, a transformação e a transfiguração. A figura remete a uma “concepção do agir de singulares inter-dependentes inscritos sobre um plano de imanência da potência comum da vida” (p. 156), é o corolário mesmo de um pensamento da medida, o qual é “suscitado pelo conhecimento desta inter-dependência ontológica que impõe suas exigências imanentes e a dinâmica afirmativa dos seus equilíbrios, dos seus conflitos e dos seus ritmos profundos” (p. 141). A forma, por sua vez, pode ser conectada a “uma deriva dialética do pensamento da identidade dos contrários e da sua superação (a Aufhebung hegeliana) numa síntese totalizadora” (p. 141). É, pois, sob a lógica da forma que os homens são erigidos em “sujeitos”.

Eis que o binômio forma/figura nos conduz, na obra de Bove, a uma das máximas de Vauvenargues: “nada existe em si ou à parte” (Máxima 201), e à filosofia do corpo que dela se deduz. Semelhante filosofia impõe o desafio de criação de uma vida propriamente humana, em comunicação com o mundo, bem como com os demais corpos humanos. O mundo humano somente se realiza por meio de uma aquiescência à presença imanente dos corpos, que constitui a base de uma nova socialidade constitutiva do comum. Nesse sentido, a valorização do quadro de Piero della Francesca A ressureição, representa a própria transfiguração do niilismo e da História moderna. Ao mesmo tempo, sob a ideia de figura, percebemos uma rejeição análoga da ideologia da gênese com forte acento althusserianos. Com efeito, em sua correspondência com Diatkine, Althusser rechaça os conceitos de origem e gênese, considerando a ambos como conceitos transcendentes. Althusser sustenta, nesse senti – do, que, de acordo com a ideologia da gênese, as mudanças são sempre apreendidas à luz de uma substância imutável, na forma de acidentes que se desenvolvem a partir de uma origem, na qual este desenvolvimento já se encontrava, de algum modo, pressuposto, isto é, de algum modo, já existente (althusser, 1993, p. 56) .

Através de Camus, Bove conecta a figura ao “desejo sem objeto”, que extrai o homem de uma humanidade agitada pela esperança e permanentemente aprisionada por objetos. Trata-se, então, de um abandono, de uma passividade desinteressada, mas é pela via do seu próprio desinteresse que este abandono ultrapassa os limites da passividade ordinária, constituindo, na verdade, o corolário mesmo de uma ontologia dinâmica, tal como mencionamos acima. Nesse sentido, o “desejo sem objeto” constitui o contrário da lógica da eficácia, um processo plenamente afirmativo, irredutível quer à finalidade quer à falta. À figura pertence o tempo próprio ao desejo sem objeto (nem origem nem fim), o tempo da res gestae, no seu antagonismo à História, a Historia rerum gestarum, que atribui objetos ao desejo, e, dessa forma, impõe um telos ao tempo. A abertura ao tempo do desejo sem objeto é constitui uma subversão radical da História e, ao mesmo tempo, funda a possibilidade de uma história antropológica, isto é, de uma antropogênese. O tempo deixa de ser uma realidade imposta, correlato a uma natureza estagnada sob uma forma, mas passa a ser efetivamente vivido, o que permite a concepção de uma natureza humana enquanto algo permanentemente em construção, num processo que se nutre da tensão com o desejo sem objeto.

A revolta, enquanto corolário do paradigma da figura, implica não a realização da lógica niilista de uma indignação concebida segundo a imagem do “individualismo possessivo”, mas, antes, a constituição e, ao mesmo tempo, a pressuposição, da comunidade humana imanente, que destrói todas as formas, isto é, todas as ilusões que lhe impõem uma ideologia totalitária. Bove toma o cuidado de mostrar que a revolta não deve ser concebida à luz da negação da negação; pelo contrário, a revolta associada à presença do corpo, constitui o único fundamento verdadeiro da comunidade humana. A revolta se dirige contra a transformação dos homens em sujeitos, contra a submissão do desejo a objetos, contra a imposição de um telos ao tempo. Mas todo dissenso inerente à revolta decorre do fato de que ela exprime uma ontologia dinâmica. Em Camus, Bove enxerga mais um ponto por onde ele emaranha um estranho fio que, passando por Espinosa, enlaçara Vauvenargues, após passar por Pascal. No final das contas, ao valorizar as afinidades de Camus com Vauvenargues, este “moralista” do começo do século XVIII, parece que, então, as palavras de Sartre a respeito de Camus poderiam ser verdadeiras. Mas, após tudo o que vimos, é preciso reconhecer que se trataria de uma estranha moral, de uma moral imanente ao corpo, uma moral que é ela mesma transfigurada em ética. Eis, então, que a referência a Vauvenargues talvez tenha como efeito reverso, lida diante dos ecos de Sartre, tencionar vivamente esta estranha categoria das letras e do espírito franceses, isto é, os moralistas.

Notas

1 Noces (Núpcias) é um conjunto de quatro ensaios escritos por Camus entre 1936 e 1937 com caráter biográfico. A obra de Piero della Francesca é analisada por Camus no ensaio O deserto, onde o autor conta suas impressões a respeito da viagem que fez pela Toscana.

2 A primeira parte se intitula “Meursault au cœur du monde: corps puissant/corps christique”, e a segunda parte, «La transfiguration libertaire : le temps de la résistance et l’Histoire».

3 O leitor encontrará em La stratégie du conatus : affirmation et résistance chez Spinoza, a chave para compreensão desta questão. Remetemos o leitor à seguinte formulação: “(…) contrariamente à ilusão da consciência, os problemas não se põem por si mesmos e nem nascem, propriamente falando, do obstáculo com o qual costumeiramente se confundem. O problema não é um “dado” encontrado na experiência. É um produto da potência mesma de afirmação de um ser qualquer (indivíduo ou sociedade) na sua articulação dinâmica complexa ao real. O corpo é capaz e simultaneamente a ideia desta afecção, pela qual esse corpo é afirmado e o problema, posto. É então na natureza mesma da afirmação – que, compreendida necessariamente num complexo de relações de forças, é também a atividade constitutiva de uma resistência –, de problematizar o real, isto é, de constituí-lo como problema e, num mesmo gesto, de produzir o caso de solução correspondente a esta posição. Tal é o movimento real do real numa afirmação singular, ou a dinâmica estratégica e hermenêutica do conatus ” (Bove, 1996, p. 308).

4 Além do Evangelho de Mateus, encontramos a descrição do mesmo episódio em Marcos (Mc 9:2) e Lucas (Lc 9:29).

5  Este texto, escrito em 1936, foi publicado sob o título Métaphysique chrétienne et néoplatonisme nos dois volumes da Pléiade dedicados a suas obras completas.

6  A referência, sem dúvida, é a obra de MacPherson: “A teoria política do individualismo possessivo”.

7 Cabe, aqui, uma referência a Vauvenargues: “o fogo, o ar, o espírito, a luz, tudo vive pela ação; daí a comunicação e a aliança de todos os seres; daí a unidade e a harmonia no universo” (Máxima 198).

Referências

ALTHUSSER, l . (1993) “Lettre à D… (nº 2)». In:______. Écrits sur la psychanalyse. Paris: Stock/IMEC, 1993.

BOVE, l . (1996) La stratégie du conatus – Affirmation et résistance chez Spinoza. Paris: Vrin, 1996.

BOVE, l . (2015). Vauvenargues ou le séditieux – Entre Pascal et Spinoza. Une philosophie pour la seconde nature . Paris: Honoré Champion, 2015.

SARTRE, j.-p. (1964) “Albert Camus”. In: Situations IV, Paris: Gallimard, 1964.

Bernardo Bianchi – Doutorando, Université Paris 1- Panthéon Sorbonne, Paris, França. E-mail: [email protected]

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Le Travail de l’œuvre Machiavel – LEFORT (CE)

LEFORT, Claude. Le Travail de l’œuvre Machiavel. Paris: Gallimard, 1972. Resenha de: RAMOS, Silvana de Souza. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.32, Jan./Jun., 2015.

A leitura feita por Claude Lefort da obra de Nicolau Maquiavel – publicada em Le Travail de l’œuvre Machiavel – abre uma direção inédita de interpretação ao trazer para o primeiro plano de análise o campo de pensamento instaurado pelo autor de textos clássicos da filosofia política, tais como os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e o famoso livro de aconselhamento dedicado a Lorenzo de Médici, O Príncipe . A ideia de obra é central para Lefort: trata-se de compreender que o pensamento de Maquiavel institui um horizonte de reflexão sobre o político, de forma que a compreensão deste pensamento exige que nos reportemos ao trabalho crítico despertado por ele, uma vez que a obra não se encerra sobre si mesma. Noutros termos, Lefort pretende mostrar que as diferentes interpretações de Maquiavel estão vinculadas ao campo de questão aberto pela obra, de modo que aquelas aparecem como desdobramentos desta. Por isso, Lefort investiga esse campo onde o trabalho da obra se faz e se refaz no intuito de nos colocar em contato com o imenso volume de reflexões que reverberam a presença da obra maquiaveliana no pensamento e na experiência política moderna.

Isso não o impede, porém, de arriscar uma interpretação original, fruto do enfrentamento do próprio texto de Maquiavel e do contexto em que este se inscreve. Neste ponto, a contribuição crítica da leitura empreendida por Lefort pode ser medida por diversos fatores. Em primeiro lugar, destaca-se a análise do poder enquanto fenômeno. Trata-se de mostrar que, para além da discussão sobre a moralidade ou a imoralidade das ações do príncipe, Maquiavel foi capaz de compreender, contra os humanistas de seu tempo, que a política se desenrola no campo das aparências e que, por consequência, o sentido dessas ações desenha a figura do príncipe e a possível aprovação deste por parte dos que estão sob o seu poder. Noutros termos, o ser do príncipe é exterior – é o resultado do sentido que suas ações ganham na relação deste com os governados. Logo, não há por que julgar o príncipe segundo valores morais absolutos já que a manutenção do poder depende da virtù do governante para lidar com a rede de significações que delineiam sua própria figura segundo as circunstâncias impostas pela fortuna .

Em segundo lugar, trata-se, ainda de acordo com a leitura de Lefort, de mostrar que toda cidade é atravessada pelo conflito entre os grandes, ou os que desejam dominar, e o povo, isto é, os que desejam não ser dominados. Quer dizer, podemos ler Maquiavel como um pensador da liberdade ligada ao funcionamento do desejo no interior do campo político, pois a liberdade de todos depende da força do desejo de não dominação para resistir à investida dos grandes. Ora, ao atribuir aos grandes um desejo insaciável de dominação, Maquiavel dissolve a associação entre nobreza e moderação, feita por aqueles que argumentavam em favor do governo aristocrático e por isso sustentavam a ideia de que quem tem mais se contenta com aquilo que tem, ao passo que o povo seria incapaz de moderação. Entra em jogo aqui não apenas o questionamento das virtudes atribuídas à nobreza, mas também a rejeição da representação tradicional do povo, cujo comportamento volúvel e anárquico seria determinado principalmente pelo desejo de prazer – o que o tornaria fonte de tumulto na cidade –, para apresentá-lo como o verdadeiro promotor de leis aptas a salvaguardar a liberdade republicana. Assim, ciente da divisão entre os dois humores que atravessam a cidade, o governo equilibrado não deverá contar com a pretensa virtude e sabedoria dos nobres, mas sim com o contrapeso institucionalizado que ao desejo de dominação dos grandes opõe o desejo de liberdade do povo. Nestes termos, Lefort oferece uma resposta fecunda a um dos principais problemas que cercam a obra de Maquiavel. Afinal, como compatibilizar a figura paradoxal do autor florentino (de um lado, confesso amante da liberdade republicana e, de outro, conselheiro de um tirano)? De acordo com a perspectiva lefortiana, essas duas faces encontram um ponto de convergência quando compreendemos que para Maquiavel o desejo de não ser dominado ou oprimido – desejo negativo, que não pode de fato ocupar o poder – é, na verdade, um impulso para a liberdade, tanto nos principados quanto nas repúblicas. Tal desejo abre campo, nos principados, à busca por uma vida segura sob a proteção de um príncipe cuja figura não comporte a feição de um déspota ou de um tirano, e, nas repúblicas, à busca pelo bom ordenamento de leis com vistas à guarda da liberdade de todos.

Em terceiro lugar, a interpretação de Lefort permite a incorporação da obra de Maquiavel à reflexão sobre a democracia. Seguindo, neste ponto, os passos dados anteriormente por Espinosa, um dos raros autores a buscar em Maquiavel, já no século XVII, uma fonte para o pensamento democrático, Lefort mostra que a obra do florentino se constrói a partir de uma reflexão sobre o papel da indeterminação e do conflito no interior da experiência política. A defesa do caráter negativo do desejo de liberdade – desejo que se caracteriza pela recusa à opressão – e a ideia segundo a qual a ordem instituída no horizonte da cidade livre não abole o conflito entre os dois humores que a atravessam exigem, ambos, o abandono da imagem da boa sociedade e do bom governo. Ora, uma vez que não há comunidade livre e, ao mesmo tempo, trans – parente, absolutamente virtuosa e sem conflitos, desfaz-se a possiblidade de que esta produza uma imagem identitária de si mesma. Por isso, a comunidade – ou a sociedade, em termos modernos – se caracteriza pela ausência de determinação definitiva. Por um lado, uma vez que é atravessada pelo conflito e dinamizada pelo movimento de resistência à opressão, a comunidade tem de lidar com sua própria indeterminação. Essa desincorporação da sociedade será trazida à tona quando a força do número – expressa pela exigência do sufrágio universal enquanto direito – se tornar uma das marcas instituintes da democracia moderna. Por outro lado, o fenômeno do poder permanece sem o respaldo de uma boa figura, pretensamente definitiva, ancorada na natureza ou na história, uma vez que a dinâmica do desejo de liberdade resiste à tentativa daqueles que pretendem incorporá-lo de maneira absolutamente fundada. O poder permanece infundado e só encontra respaldo contingente no jogo das aparências e das opiniões, com os quais tem de dialogar constantemente. Apoiada nesses dois elementos, a obra de Lefort desdobra o pensamento de Maquiavel no intuito de decifrar o sentido da invenção democrática.

Referências

LEFORT, Claude. (1972). Le Travail de l’œuvre Machiavel. Paris: Gallimard

Silvana de Souza Ramos – Professora Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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A alma e as formas – LUKÁCS (AF)

LUKÁCS, Georg. A alma e as formas. Introdução de Judith Butler; tradução, notas e posfácio de Rainer Patriota. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. Resenha de: PIMENTA, Olímpio. Artefilosofia, Ouro Preto, n.19, 2015.

Há quase três décadas, então estudante de graduação em Filosofia, recebi as lições que viriam a constituir o escasso acervo de meus conhecimentos sobre a obra do pensador húngaro G. Lukács. Na ocasião, na esteira da avaliação do próprio autor, sublinhava-se que seu desenvolvimento filosófico tinha um caráter inequivocamente evolutivo, com o que a formulação sistemática da “ontologia do ser social”, núcleo de sua produção tardia, seria também o resultado mais importante de todo o percurso. Era uma abordagem que favorecia pouco os trabalhos de crítica literária dos primeiros tempos, e os ensaios reunidos no livro de 1911 ficaram, assim, envoltos em sombra.

Se, em algum a medida, este caso representa uma situação mais ampla, pode-se perceber a relevância do aparecimento entre nós do livro de estréia de Lukács, em edição amparada por estudos críticos muito elucidativos de Judith Butler e do próprio responsável pela tradução e pelas notas ao texto, Rainer Patriota. Pois, em que pese a apreciação desfavorável aludida acima, parece-nos que os escritos em foco, embora desiguais quanto a alcance e mérito intrínseco, formam um conjunto bastante coeso, versando sobre um extenso repertório de temas literários e filosóficos, organicamente articulados à meditação sobre nossa condição existencial.

O princípio organizador da reflexão é idealista, estabelecido logo no âmbito dos dois exercícios iniciais “Sobre a forma e a essência do ensaio” e “Platonismo, poesia e as formas”. Concebida como busca por elevação acima d o tumulto sem sentido da vida comum, a jornada da alma só se realiza ria de modo pleno mediante a configuração integrada do que ali aparece disperso e fragmentário. As estruturas complexas que emergem em sua atividade, propostas como articulação necessária entre fins e meios, intenção e execução, conteúdo e aparência, interioridade e exterioridade, são as formas a que se almeja. Seria um programa de trabalho razoavelmente convencional, capaz até de produzir resultados triviais, não fosse a disposição experimental de quem o conduz. Pois uma das razões do interesse destas primícias lukácsianas é a ausência de dogmas entre seus elementos constitutivos, sinal de uma atitude investigativa honesta, dominada pela curiosidade.

Segundo tal inspiração, um grande atrativo dos ensaios em foco é o estabelecimento, em seu desenrolar, de conexões múltiplas entre os móveis de sua atenção, capazes de evidenciar o copertencimento entre estratos distintos da realidade, mas também entre fenômenos que à primeira vista nada teriam a ver uns com os outros. As formas, ou se se quiser, as ideias, quase sempre entretêm boas relações com a vida — a exceção mais ostensiva estando na angustiada visão das coisas presente nos dois últimos textos, “Metafísica da tragédia” e “Da pobreza de espírito” –, porque são pensadas não apenas como essência incondicional da totalidade, mas também como algo cuja realização no mundo só ocorre a partir do vivente que experimenta. Empresta-se, assim, um caráter muito dinâmico à já referida demanda por sentido. Em função disso, os nexos entre o material de que se parte e a composição a que se chega não são rígidos nem unívocos, como se fossem resultado da sujeição do múltiplo da vivência a regras universais, mas mostram-se compatíveis com a variedade efetiva, tanto dos problemas humanos e das questões artísticas ventilados, quanto das possibilidades de um equacionamento formal que os unifique. Uma tal abertura de espírito é o que torna viável a aproximação entre, por exemplo, Platão e Montaigne, reivindicados como expoentes máximos do ensaísmo a que se pretende filiar o próprio livro.

Todavia, como se sabe, boas intenções costumam não ser o suficiente. Aos olhos deste leitor noviço, o que assegura força aos ensaios é o sucesso n a aplicação de sua estratégia global. Firmada a tarefa de acompanhar o trânsito da alma entre e vida e as formas, optou o autor pelo exame de uma série de obras em que os diversos aspectos da relação entre esses dois pólos puderam ser acompanhados segundo um extenso leque de especificidades. Portanto, por mais heterogêneos que sejam os casos estudados, cabe tomar o que temos em mãos como um conjunto de variações sobre um mesmo tema de fundo. Porque multifacetado, tal tema admite associações muito diversas, conforme os propósitos e o colorido próprios de cada objeto visado. Porém, não obstante a peculiaridade das partes, a feição final do todo é bem proporcionada, justamente porque o plano que a ordena cumpre à risca o que promete. Correndo algum risco de impertinência, imaginamos acertar ao entender o notável resultado dos esforços aqui empreendidos por Lukács como efeito da compreensão da s forma s como perspectiva s, de preferência a estruturas essencialmente invariáveis. Os momentos em que isto fica mais nítido estão nos ensaios sobre Kierkegaard, Sterne, Storm e Novalis, respectivamente “Quando a forma se estilhaça ao colidir com a vida”, “Riqueza, caos e forma”, “Burguesia e l’art pour l’art ” e “Sobre a filosofia romântica da vida”.

O tratamento d ado ao filósofo escandinavo prima pela percepção nuançada do alcance de um gesto de separação que decidiu em definitivo o rumo posterior de sua vida e de sua produção intelectual. Apesar de realçar a tensão entre est as duas esferas, o ensaio termina provando a consistência paradoxal vigente na relação entre elas: somente a renúncia a uma vida afetivamente significativa tornou Kierkegaard apto a cumprir seu destino, assegurando-lhe de uma vez por todas aquilo que teria sido perdido pouco a pouco a cada dia. Junto a o escritor irlandês, em contrapartida, admite-se, ao termo de um diálogo muito movimentado, o triunfo da riqueza vital da forma aberta sobre a exigência do sacrifício da vida à forma acabada. Aliás, em nenhum outro ponto do livro a combinação entre vida e forma mostra resultados tão animadores, frutos de uma reciprocidade que marca um dos extremos no espectro de possíveis encaminhamentos para seu tema central.

Também em relação a Novalis, encontramo-nos em presença de uma coerência insuspeitada, mas cujo balanço em termos da forma presta-se à demonstração de uma ruína. Um distanciamento cordial d o romantismo garante a Lukács um ponto de vista independente a respeito d a questão alemã. Até onde pude ver, ele trata aqui de ambos os assuntos livre de qualquer partidarismo, com o que suas análises ganham em pertinência e agudeza, ensinando sobre o que expõem sem querer doutrinar. Assim, embora a palma seja atribuída ao classicismo goetheano, entende-se em que medida a alma romântica viveu sua peripécia com dignidade, tendo na figura em foco sua mais alta expressão.

Por que o que em uns é contínuo, enquanto em outros resta contraditório, apenas os caminhos sutis do ensaio sobre a lírica de Theodor Storm nos permitem constatar a integridade que reúne nele poesia e existência burguesa. A solução do aparente dilema deriva de observações a propósito do sentimento de comunidade que marca a autêntica atitude ética diante da vida. É pela prevalência de injunções desta natureza que o poeta teria alcança do seu melhor. Não importando se este se restringe à modéstia da maestria artesanal, interessa sublinhar mais uma vez a ocorrência de uma coexistência bem lograda entre os dois pólos da equação lukácsiana, que figura, neste passo, exatamente no meio do espectro de possibilidades mencionado há pouco.

Sob esse mesmo horizonte geral, ao deslocarmos nosso olhar para su as regiões mais conflagradas, localizamos os ensaios sobre Stefan George, Richard Beer-Hoffmann, Charles-Louis Philippe e Paul Ernst, cujos títulos respectivos são “A nova solidão e sua lírica”, “Nostalgia e forma”, “O instante a as formas” e o já citado “Metafísica da tragédia”. Para o leitor que, como eu, se fia em traduções, talvez esteja aí a parte menos acessível do livro, dada a carência de documentos que permitiriam uma confrontação dos achados lukácsianos com suas fontes originais. Tomadas em bloco, são leituras que enfatizam a miséria da modernidade no que concerne à chance de realização de for mas artísticas substanciais, considerando-se a degradação dos laços que dariam à existência coletiva um sentido comum. Em especial, o último escrito traz uma conclusão bastante pessimista quanto às chances de reunião entre a vida vivida e as formas. Segundo tal conclusão, apenas o mundo fechado e perfeito das formas definitivas pode ria fornecer aos homens um referencial perene para a justificação de sua efêmera passagem pelo mundo da vida.

Assinalando o limite em que os dois pólos da problemática em estudo estão mais dissociados um do outro, essa metafísica da tragédia é seguida por sua consequência mais rigorosa, a defesa de uma atitude existencial próxima à singularidade dos santos dostoievskianos, chamada pelo russo de idiotia. Sem discutir se esta atitude revela uma adesão amorosa incondicional ao mundo ou sua exata antípoda, uma recusa odiosa incondicional ao mundo, notamos que somente um a perspectiva mística autoriza esta versão extrema do assunto, em que as formas são radicalmente separadas da realidade imanente. Quem sabe se esconde, nesta vasta oscilação entre as páginas calorosas sobre Sterne e as declarações niilistas do protagonista masculino do diálogo sobre a pobreza de espírito, uma cifra para o entendimento do percurso ulterior do pensador, em que a generosa inclinação a favor da realização histórica do socialismo contrasta com a aceitação irrestrita de formas absolutas de opressão?

Mas não vale concluir a exposição dessas impressões sem antes mencionar duas razões pelas quais est a edição de “A alma e as formas” parece-nos exemplar. Por um lado, o senso de oportunidade que preside a distribuição das notas ao texto lhes assegura o devido caráter informativo. Porém, a par do uso consciencioso deste expediente, o que mais se destaca na tarefa levada a excelente termo pelo tradutor é a qualidade literária da prosa, provando com folga que o prazer do texto não é, entre nós, uma graça perdida.

Rainer Patriota – Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (DEFIL/IFAC/UFOP.

Olímpio Pimenta – Professor Titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (DEFIL/IFAC/UFOP).

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O retorno do real – HAL (NE-C)

HAL, Foster. O retorno do real. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de: LEONÍCIO, Otavio. O real e a História. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.101, Jan/Mar, 2015.

Os problemas em torno dos quais O retorno do real se constitui são imensos. Eles têm pautado o pensamento e a prática de críticos e artistas desde meados dos anos 1960 – ou seja, há exatamente meio século; de um modo ou de outro, e sobretudo no que concerne à questão do significado da arte dita contemporânea, dizem respeito a uma questão crucial: a crise da concepção de história sobre a qual a arte vinha sendo (e,parcialmente pelo menos,ainda vem sendo) produzida desde o romantismo. Mais especificamente, a questão central de O retorno do real é a eventual superação de um “historicismo persistente que julga a arte contemporânea atrasada, redundante e repetitiva” (p. 30). Em certo sentido, portanto, Foster se vê aqui às voltas com os mesmos desafios e dilemas de uma geração de artistas e críticos que, como afirmou um de seus maiores expoentes, Robert Smithson, percebeu que “uma consciência transistórica emergiu nos anos sessenta”1.

A agenda de Foster não coincide, todavia, com a dos artistas sessentistas. Pois o que está em jogo para ele é também, e talvez sobretudo, a viabilidade de uma modalidade discursiva (a crítica de arte) que, desde o romantismo, busca o significado das obras de arte na interseção entre qualidade estética (vinculada à noção transcendental de experiência estética) e pertinência histórica (vinculada à situação das obras de arte no quadro geral da História da Arte). Ou seja, o que está em jogo para Foster são as condições de possibilidade de um discurso crítico cujos fundamentos em larga medida coincidem com o próprio advento (em fins do século XVIII) do historicismo – precisamente os fundamentos que a arte dos anos 1960 pôs em xeque. Quer dizer, diferentemente do que ocorre com boa parte da práxis artística dos anos 1960 e 1970, Foster pretende salvaguardar a prática crítica tradicional. Como? Dotando-a de um vocabulário conceitual “pós-histórico” (p. 25) não apenas operativo mas igualmente legitimável num ambiente de crescente desprestígio das “grandes narrativas” – as históricas, sobretudo2.

A solução encontrada por Foster lança mão do conceito de “neovanguarda”, compreendido aqui de modo idiossincrático, i.e., em termos da noção de “Nachträglichkeit” (“efeito a posteriori” ou, literalmente, “ação retardada”). Tomada de empréstimo à teoria psicanalítica, a noção supõe que “um evento só é registrado por meio de outro que o recodifica; só chegamos a ser quem somos no efeito a posteriori(Nachträglichkeit)”. Toda a argumentação de Foster parte pois da hipótese de que “a vanguarda histórica e a neovanguarda são constituídas de maneira semelhante, como um processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos” (p. 46). Nessa perspectiva, supostamente cairia por terra o argumento (levantado por Peter Bürger em Teoria da vanguarda, contra o qual O retorno do realexplicitamente se volta)3 de que a arte dos anos 1960 se restringiria a uma repetição farsesca e acrítica das ações empreendidas pelas chamadas vanguardas históricas. Para Foster,ao contrário,a neovanguarda dos anos 1960 consistiria na plena efetivação daquilo que apenas de modo incompleto ou inacabado foi empreendido no início do século XX por movimentos como construtivismo, dadaísmo e surrealismo.

Obviamente, pode-se arguir o rendimento heurístico do modelo psicanalítico proposto por Foster, quer dizer, questionar em que medida ele constitui de fato um ganho de conhecimento sobre a arte dos anos 1960.Significativamente,a questão é levantada pelo próprio autor, o qual, numa nota de pé de página desconcertante, admite que “[a]inda que eu combine o desenvolvimento com o efeito a posteriori, minha extensão da (re)construção do sujeito individual até a (re) construção de um sujeito histórico é problemática”. Donde a dúvida: “Será que posso abordar historicamente a lógica do sujeito se meu modelo da história pressupõe essa lógica? Esse vínculo duplo seria produtivo ou paralisante”.

O fato de Foster ter ido adiante com seu modelo psicanalítico (sem o qual este livro não existiria) não dá por encerrada a questão. De fato, em termos epistemológicos, o livro apenas explicita os dilemas de uma geração de intelectuais progressistas que, tendo sido formada num ambiente francamente desconstrutivista, viu-se nos anos 1980 (ou seja, num contexto em que grassavam sem resistência institucional tanto Aids quanto Reaganomics) à procura de um aparato teórico porventura menos irrealista que o desconstrutivismo. A advertência de Foster acerca dos limites de sua própria empreitada intelectual, voluntariamente destinada a resgatar não todo e qualquer real, mas apenas a uma reconstrução subjetiva sua4, soa nesse sentido duplamente sintomática: por um lado, evidencia um incontido desejo de realidade; por outro, denuncia o mal-estar para com a própria noção de realidade – ao menos com relação àquelas noções de realidade que, advertidamente ou não, possam evocar uma referencialidade minimamente estável. Mais do que um dilema, a posição de Foster expõe a condição porventura aporética do projeto pós-pós-modernista, do qual Foster é um avatar. Significativamente, no capítulo final de O retorno do real, Foster se pergunta acerca das desconstruções operadas por Foucault e Derrida: “Esses pós-estruturalismos reelaboram os acontecimentos do pós-colonial e do pós-moderno criticamente? Ou servem de ardis por meio dos quais esses acontecimentos são sublimados, deslocados ou, ao contrário, desativados?” (p. 199). Enredado numa espécie de limbo epistemológico, Foster – como muitos de nós, aliás – procura abrigo num mundo pós-transcendental particularmente inóspito a desconstrutivistas não irrealistas e sobretudo não pluralistas (avessos portanto ao “falso pluralismo do museu, do mercado e da academia pós-históricos” [p. 7]).

O que a solução proposta por Foster revela, no entanto, é um vício de origem – qual seja, a suposição de que, como queria Bürger, a arte dos anos 1960 caracterizar-se-ia por um resgate (aos olhos de Bürger, acrítico e anacrônico, aos de Foster, deliberado e pertinente, porquanto produto de uma inusitada e lúcida “consciência histórica”) de práticas próprias às “vanguardas históricas”. De fato, nas palavras de Foster, “os artistas da década de 1960 tiveram de elaborar [os procedimentos da vanguarda histórica] criticamente; a pressão da consciência histórica não permitia nada menos do que isso” (p. 25). Este, de fato, o pressuposto não problematizado de O retorno do real: dar por suposto (contra inúmeras evidências de que o que de fato caracteriza a arte dos anos 1960 não é em absoluto o predomínio de uma consciência histórica, senão a emergência e disseminação de uma consciência meta ou anti-histórica) que a questão crucial para a neovanguarda seria “remodela[r] procedimentos da vanguarda para fins contemporâneos” (p. 8). Como se vê, a divergência de Bürger é apenas parcial, a diferença residindo no modo como um e outro interpretam um mesmo fenômeno, Bürger condenando-o, Foster exaltando-o.

Os limites insuperáveis de O retorno do real vêm daí. A começar pela evidente dificuldade do autor de dar conta da arte com a qual, aparentemente, tem maior empatia – o minimalismo. Pois se de um modo ou de outro o minimalismo (mas também uma parte importante da arte produzida em sua esteira) põe em xeque a ideia de vanguarda (em função justamente da consciência de seus vínculos com a visão de mundo historicista), Foster se revela incapaz de conceber quaisquer práticas artísticas “ambiciosas” que não sejam igualmente “avançadas” ou “inovadoras” (passim), ou seja, que não suponham a noção de “desenvolvimento histórico”. Dito de outro modo, o que Foster não parece estar pronto a conceber (a exemplo de Bürger) e mais ainda aceitar é – parafraseando T.J. Clark – uma arte sem futuro5. Donde o descompasso: ali onde uma parte significativa da arte dos anos 1960 e 1970 buscava conjurar uma experiência temporal meta-histórica (em cujo contexto o conceito de vanguarda simplesmente não faz sentido), Foster se empenha a todo custo em preservar a ideia e o valor não apenas da vanguarda, mas acima de tudo de uma historicidade supostamente inerente à arte – em suas palavras, a “historicidade de todas as artes, incluindo a contemporânea” (p. 33). De par com essa historicidade essencial, o que Foster pretende salvaguardar é a criticalidade da arte – mais especificamente, a criticalidade histórica da arte. Uma vez mais, estamos diante de uma posição axiomática. Pois, aos olhos de Foster, simplesmente não há criticalidade num ambiente em que predomina a “desatenção à historicidade” e no qual, portanto, a crítica resulta marcada pela “perda de influência histórica” (p. 13).

Os pressupostos modernistas dessa salvaguarda da historicidade da arte (e com ela de uma crítica baseada num conceito supostamente renovado de “desenvolvimento histórico”, não mais progressista e teleológico) são evidentes: com a noção de neovanguarda o que se quer preservar é uma tradição: a tradição do novo, i.e., de uma ideia de arte segundo a qual,como afirmou um de seus mais influentes praticantes – Harold Rosenberg –, “ter um lugar na história da arte é o valor”6.

Obviamente, Foster não há de concordar com essa leitura; de toda evidência, ele está convencido de que seu modelo alternativo de desenvolvimento histórico foi de fato capaz de complexificar categorias fundamentais como “causalidade”, “temporalidade” e “narratividade” (cap. 1, passim), e, assim, superar o modelo historicista de desenvolvimento, na qual a narrativa modernista se baseia. Até onde percebo, no entanto, o que Foster logrou superar não foi propriamente o modelo historicista, mas uma versão bastante simplória deste.

Não que Foster ignore a complexidade dos problemas teóricos com os quais está lidando aqui. Notadamente, o autor está a par da centralidade que aqui adquire a noção de evento – o fato de que, como adverte Zizek, uma das referências teóricas de O retorno do real, “o ponto crucial aqui é o status modificado do evento”7. Mas aqui também fica claro como o diálogo com Bürger resultou pouco produtivo. Pois a noção de evento que Foster pretende complexificar, tomada emprestada de Bürger, não vai muito além daquela que subjaz à boutade marxiana de que “todos os grandes acontecimentos da história mundial ocorrem duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa” (p. 32). A escolha de Foster é curiosa – mesmo de parte um intelectual marxista; surpreende sobretudo que Foster tome como contramodelo uma noção tão estereotipada de evento histórico – noção que ignora a evidência de que o traço principal da noção de evento no contexto do historicismo não é nem a originalidade nem a autonomia, senão, conforme a formulação de Reinhart Koselleck, o fato de estar sempre pronto a “alterar sua identidade em função do status cambiante que adquire no progresso da história”8. Nessa perspectiva, fica claro como a noção de evento que Foster deriva de Marx (na qual, em parte pelo menos, se baseiam os realismos de um e de outro) deixa de lado a questão central do significado dos eventos num contexto epistemológico (o historicismo) comandado pela noção de “processo” – mais especificamente, por um processo que, como percebeu Hannah Arendt, “torna por si só significativo o que quer que porventura carregue consigo, adquirindo assim um monopólio de universalidade e significação”9. A suposição de que Foster logrou complexificar as noções de evento e, por conseguinte, de desenvolvimento histórico é, como se vê, enganosa. O que Foster complexificou foi um par de estereótipos.

A opção de Foster por operar a partir de tal contramodelo não é injustificada, contudo; ela se adéqua à perfeição a uma argumentação que pretende requalificar historicamente as neovanguardas, vistas não mais como repetição farsesca mas, alternativamente, como plena realização histórica. Uma vez mais, fica claro quão limitada é a divergência de Bürger. Pois a leitura de Foster permanece atravessada pelas noções – e, além dessas, pelos valores – tipicamente modernistas de autenticidade e originalidade. Afinal, o que Foster pretende sustentar por meio de seu modelo alternativo de desenvolvimento senão a tese de que as neovanguardas não são farsescas e espúrias? A argumentação de Foster é, de fato, sem ambiguidade: se as neovanguardas repetem eventos históricos, isso se deve ao fato de que, de acordo com o conceito de “efeito a posteriori”, sua primeira manifestação/ocorrência se restringiria apenas a uma dimensão incompleta, reprimida. Em vez de mera repetição, sua segunda ocorrência nos anos 1960 seria portanto da ordem do desrecalque de algo que por trinta, quarenta anos havia permanecido reprimido. O que a teoria de Foster sustenta, portanto, é a ideia de que, em sua integridade e plenitude, as ações retardadas da neovanguarda constituem um evento histórico autêntico, original, verdadeiramente vanguardista. Ora, mas uma posição de fato meta-historicista não deveria, ao contrário, simplesmente descuidar das noções de autenticidade e originalidade, não obstante os enormes problemas que esse deslocamento coloca para um sistema de arte dependente – hoje como ontem – da ideia de vanguarda?

O que Foster não é capaz de conceber, em revanche, é uma história que não seja desenvolvimental, isto é, que não se oriente naturalmente em direção ao futuro – mais especificamente, a um futuro entendido como “horizonte de expectativa”, i.e., como campo aberto a transformações mais ou menos utópicas. Dito de outro modo, desenvolvimento é compreendido aqui não como categoria adstrita a um regime de historicidade específico (o historicismo), senão como condição antropológica e transistórica,e nesse sentido insuperável, da experiência temporal humana. Como se vê, o argumento em favor de uma “historicidade de todas as artes” tem uma origem definida.

Que a defesa de um marxismo renovado (em contraste com o marxismo alegadamente ossificado de Bürger) esteja no centro da reflexão de Foster não é, como se vê, fortuito: é sempre preservar a ação historicamente empenhada – isto é, a ação empreendida na e para a “História” – aquilo que está em jogo aqui. Para Foster, afinal, prática artística ambiciosa é também, necessariamente, prática engajada. Dito de outro modo, aos olhos de Foster o que cabe à práxis artística não diverge muito do que cabe à ação política: viver no front da História, fazer com que esta avance, combater a ameaça de estagnação. O pressuposto tem, é claro, um desdobramento no âmbito da crítica: se não se faz arte ambiciosa fora da História, o mesmo se dá com respeito à crítica. Esta, de fato, a função precípua, e a decorrente legitimidade, da crítica modernista (mas também, como se vê, da crítica supostamente pós-modernista de Foster), cuja principal incumbência, na prática, é de fato a atribuição da situação histórica das obras, quer dizer, a definição do lugar preciso ocupado pelas obras de fato avançadas e inovadoras em cada etapa do “desenvolvimento histórico”. Tanto quanto a práxis artística, a atividade crítica deve pois obedecer ao preceito de que “a compreensão histórica não depende do apoio contemporâneo, mas um engajamento no presente, seja artístico, teórico e/ou político, é indispensável” (p. 11).

Mas, repare-se: tanto quanto o “engajamento no presente”, o argumento supõe um “presente” definido essencialmente como tempo e espaço de “engajamento”, quer dizer, como tempo e espaço de uma ação historicamente engajada e transformadora. Ora, como destacou Hans U. Gumbrecht, tal concepção do presente é um dos pressupostos mais básicos, ainda que tácitos, do historicismo. Segundo Gumbrecht, é de fato apenas no contexto do regime temporal historicista que “em cada momento presente, o sujeito deve imaginar uma gama de situações futuras que têm de ser diferentes do passado e do presente e dentre as quais ele escolhe um futuro de sua preferência”; é apenas nesse contexto que a “subjetividade pode integrar o componente de ação na autoimagem que ela oferece à humanidade. E é essa inter-relação entre tempo e ação que cria a impressão de que a humanidade é capaz de ‘fazer’ sua própria história”. Coerentemente, é também apenas nesse contexto que o tempo, compreendido como agente absoluto de mudança, “dá à inovação o rigor de uma lei compulsória”10. Como fica claro, modernismo e consciência histórica (mas também marxismo) são astros de uma mesma constelação epistemológica, em cujo centro jaz o regime de historicidade historicista. O que tal evidência expõe é o tamanho dos desafios que a crise do historicismo coloca para a crítica “progressista”. Pois o que está em jogo neste caso é nada menos do que a viabilidade não apenas de uma esquerda sem futuro (nas palavras de Clark, uma esquerda apta a “não ver uma forma ou uma lógica – um desenvolvimento desde o passado até o futuro”, e que portanto diz adeus às “reflexões [afterthoughts] e imagens da vanguarda”)11, mas de uma esquerda historicamente desengajada, ou pelo menos eventualmente disposta a engajar-se numa concepção alternativa de história. Não por acaso, Foster conclui O retorno do real indagando-se em que medida um sujeito pós-moderno disfuncional (o sujeito “suspenso entre a proximidade obscena e a separação espetacular”) não se limitaria a obedecer à lógica de “uma razão cínica [que] não elimina mas renuncia ao poder de ação [agency]” (p. 206).

Que o apego de Foster à episteme modernista/historicista constitui tanto a marca registrada quanto os limites de O retorno do real fica evidente na afirmação de que Michael Fried (como se sabe, o grande detrator do minimalismo)12 “é um excelente crítico do minimalismo não porque tem razão em condená-lo, mas porque, para ser persuasivo, tem de entendê-lo, e isso significa entender sua ameaça ao modernismo tardio” (p. 66). A tese é absurda; Fried jamais compreendeu o minimalismo, fenômeno que ele – como tantos outros depois dele, aliás – se restringia a ver do ponto de vista de sua suposta objetidade literal, uma visão que, como destacou Anne M. Wagner, é francamente reducionista13. O que tal afirmação deixa claro, no entanto, é a afinidade entre os fundamentos vanguardistas (e portanto modernistas/ historicistas) das práticas críticas de Fried e Foster.

Não surpreende, nesse sentido, que, não obstante a ressalva que faz à ênfase excessivamente fenomenológica que Rosalind Krauss dá ao minimalismo14, Foster tenda sempre a ver o minimalismo como expressão essencialmente fenomenológica e de tipo site specific (específico do lugar) – em suas palavras, como uma arte na qual o espectador “é instigado a explorar as consequências perceptivas de uma intervenção particular num determinado local [site]. É esta reorientação fundamental que o minimalismo inaugura” (p. 53). Que tal definição (afeita à obra tipicamente antiminimalista do segundo Robert Morris, mas também aos objetos e operações fenomenológicos de um Richard Serra) implica uma redução absurda do significado da obra crucial de Donald Judd é uma das consequências do enviesamento conceitual/ ideológico de Foster. Que ela não acomode, ou acomode de modo canhestro, no espaço minimalista a obra essencialmente antifenomenológica e anti-site specific de Robert Smithson, é outro. Numa chave psicanalítica, pode-se dizer que, em sua busca pelo desrecalque do real, Foster acabou reprimindo o real minimalista – algo, aliás, que Joseph Kosuth já havia destacado com respeito às construções historiográficas perpetradas ainda nos anos 1970 pelo grupo de críticos ao qual Foster está ligado, a começar por Krauss. De fato, como afirmou Kosuth, “a fácil assimilação do minimalismo no mainstream como mais um tipo de forma na história da escultura constitui basicamente a limpeza [cleansing] de seu peso filosófico”15.

Nada disso diminui a importância de O retorno do real. Publicado originalmente em 1996, mas contendo partes fundamentais apresentadas ainda em meados dos anos 1980, o livro deixa claro como as questões levantadas pela arte dos anos 1960 ainda pautam, e em grande medida assombram, a arte e a crítica atuais. Nesse sentido, a importância do livro está menos em seus achados que no modo como revela, ainda que involuntariamente, os desafios e dilemas que a crise do conceito moderno de história coloca para o pensamento crítico (ou metacrítico) contemporâneo, o de Hal Foster inclusive. Em tempo: a presente edição conta com tradução de Célia Euvaldo, especialmente eficaz na manutenção da fluidez da leitura16.

Notas

1 SMITHSON, Robert. “Ultramodern”. Arts Magazine, v. 42, nº 1, set.- out. 1967, p. 31. Minha tradução.

2 LYOTARD, JF. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

3 BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: CosacNaify, 2008.

4 “Reprimido por numerosos pós-estruturalismos, o real retornou, mas como real traumático” (p. 46, n. 38). Em sua formulação original, tal restrição era ainda mais rigorosa: “Reprimido por vários pósestruturalismos, o real retornou – mas não um real qualquer, apenas o real traumático”. Foster, Hal. “What’s new about the neoavantgarde?”October, v. 70, outono 1994, p. 29. Minha tradução.

5 CLARK, T.J. Por uma esquerda sem futuro. São Paulo: Ed. 34, 2013.

6 ROSENBERG , Harold. “O novo como valor”. In: ___. Objeto ansioso. São Paulo: CosacNaify, 2004.

7 ZIZEK, Slavoj, apud Foster, p. 46, n. 42. Minha tradução.

8 KOSELLECK, ReinhartFuturo passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Contraponto, 2006.

9 ARENDT, Hannah. “O conceito de história: antigo e moderno”. In: ____. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 96.

10 GUMBRECHT, Hans U. “Cascatas de modernidade”, In: ___. Modernização dos sentidos. São Paulo: Ed. 34, pp. 15-16.

11 CLARK, T.J., op. cit. Minha tradução.

12 Cf. FRIED, Michael. “Arte e objetidade”. A/E Revista da Pós-Graduação em Artes Visuais, Rio de Janeiro, EBA-UFRJ, 2002, pp. 130-147.

13 WAGNER, Anne M. “Reading minimal art”. In: BATTCOCK, GregoryMinimal art: a critical anthology. Berkeley: University of California Press, 1995.

14 Ver, em especial KRAUSS, Rosalind. “Sense and sensibility: reflection on post ‘60s sculpture. Artforum, v. 12, nº 3, nov. 1973, pp. 43-53.

15 KOSUTH, Joseph, “History for”. Flash Art, Milão, nº 143, nov.-dez. 1988, p. 101. Minha tradução.

16 Agradeço a leitura e os comentários de Marcelo G. Jasmin, Felipe Charbel e Henrique Estrada.

Otavio Leonidio – Arquiteto, doutor em História, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio.

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De segunda a um ano – CAGE (AF)

CAGE, John. De segunda a um ano. Tradução Rogério Duprat; revista por Augusto de Campos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013. Resenha de: VEIGA, Milton Castelli. Artefilosofia, Ouro Preto, n.16, jul., 2014.

O livro De segunda a um ano é uma coleção de ensaios do compositor norte-americano John Cage (1912-1992). O primeiro e único livro do compositor traduzido para o português, graças ao pioneirismo de Rogério Duprat, ganhou em 2013 sua segunda edição; sendo que a primeira fora publicada pela Hucitec em 1985 por ocasião da visita do compositor à 18ª Bienal de São Paulo.

John Cage (John Milton Cage Jr.) foi um dos compositores mais controversos do século XX e o que mais exerceu influência na música do pós-guerra. Foi um dos criadores da música concreta e o primeiro artista a fazer um happening. O principal ícone da chamada música experimental traz ainda o título de ter sido o inventor do piano preparado 1. Viveu de maneira muito própria as antinomias estéticas do século; sua educação musical se deu num momento delicado da história da música ocidental, quando a linguagem da tradição, ou seja a linguagem tonal, estava sendo sistematicamente abandonada. Alguns sistemas referenciais foram projetados para sua substituição, e apesar de proféticos e promissores muitos deles estavam longe de se estabelecer como consensuais ou caminho seguro a ser trilhado; ademais, nenhum desses sistemas de composição sequer ultrapassou duas gerações de compositores. Cage iniciou sua carreira de compositor utilizando o sistema dodecafônico, seguindo, assim, os passos de seu professor Arnold Schoenberg, mas foi a partir de 1938 na Cornish School of Arts, quando veio a desenvolver trabalho com o coreografo Merce Cunningham, que seu ímpeto pelo novo alçou voos pelo experimentalismo. Sua teoria acerca do silêncio no processo de criação deu-lhe projeção internacional – chegando, inclusive, a dar nome a seu primeiro livro, publicado em 1961. O uso do acaso no processo da criação também foi fundamental na sua carreira. Cage não se limitou ao ofício de compositor; era também crítico, filósofo, poeta, artista gráfico, pintor e designer. Em 1946, através do músico indiano Gita Sarabhai, John Cage entrou em contato com a filosofia oriental e a partir daí sua concepção de mundo se transformou, transformando também seu entendimento sobre a estrutura e a compreensão musical. São emblemáticas desse momento suas Sonatas e Interlúdios de (1946-8) onde se fazem presente as oito emoções permanentes da estética indiana. Em fins da década de 40, o compositor se aproxima das teorias hindus e do Zen Budismo donde passa a cultivar a estética do silêncio. De Segunda a um ano faz parte desse momento, onde o compositor se põe a refletir sobre outras possibilidades de compreender o mundo. O próprio título do livro é fruto de suas concepções acerca do acaso, como o autor demonstra já na introdução. Diferente de seu primeiro livro, Silence, este se dedica menos a assuntos propriamente musicais do que temas sociais ligados ao pensamento de N. O. Brow n, Marshall McLuhan, Buckminster Fuller, Marcel Duchamp e Jasper Johns. Durante a redação dos textos que enfeixam o livro, o compositor depositou tanto interesse nas teorias sociais que chegou a refutar o próprio fazer musical, o qual, aliás, interessava-lhe cada vez menos, pois via no compositor uma figura autoritária. De fato, essa postura não harmonizava com os princípios anárquicos de Cage. Felizmente logo após a conclusão do livro, Cage volta a dedicar-se à composição. A editora Cobogó, Rio de Janeiro, nos presenteou com um trabalho primoroso, tanto pela beleza da edição, como pela dedicada prudência na preservação da concepção gráfica, nada convencional, utilizada pelo autor. A presente edição se coloca à altura do projeto de Cage, provocando e estimulando os nossos sentidos de percepção. Traz dois prefácios assinados pelo poeta Augusto de Campos. O primeiro com o título CAGE: CHANCE: CHANGE fez parte da primeira publicação brasileira de 1985. Esse texto é de uma beleza tão rara quanto o próprio restante do livro. O poeta dispôs-se da licença poética para apresentar, através de sua incrustada técnica concretista, o percurso criativo de John Cage até a década de 80. Para essa nova edição, Campos assinou uma segunda introdução, onde complementa o percurso do compositor até seu falecimento em 1992.

De segunda a um ano é um livro-mosaico formado por artigos, manifestos, conferências, proposições, pensamentos e aforismos. Uma miscelânea de textos construídos de modo maravilhosamente não linear. Um livro audiovisual, diria Campos. Os textos foram concebidos entre 1961 e 1967 – com exceção de Conferência na Juilliard, Conferência sobre o compromisso, e algumas histórias englobadas sob o título Como passar, chutar, cair e correr, que remontam à década de 1950. No Antepapo e Fim de Papo o autor descortina o enigma do título do livro e mostra-nos a partir daí sua capacidade de lidar com o acaso e o indeterminado como uma estética anárquica da vida. Alguns textos obedeceram às operações do acaso, obtendo dessas elaboradas operações a ordenação das ideias, a quantidade de palavras, a formatação e o tipo gráfico. Nessa linhagem está o texto Diário: como melhorar o mundo (você só tornará as coisas piores) em que o autor estreita os laços com os projetos de Fuller, principalmente com a teoria do “comprehensive design”; ainda nessa linha temos a Conferência sobre o compromisso e o Diário: audiência. O texto Duas proposições sobre Ives também chama a atenção pelo projeto gráfico, pois o autor incorpora à linguagem escrita alguns códigos de expressão musical. O Papo nº 1 também se destaca pela sua estrutura gráfica. Esse modo de conceber o texto, onde os meios de comunicação exercem influência na percepção dos sentidos, é resultado do contato que Cage teve com a obra de McLuhan. Os leitores que têm interesse no pensamento musical do compositor poderão se deleitar com os textos Diário: seminário de música de Emma Lake, Seriamente Vírgula!, Happy New Ears, Daqui, para onde vamos?, Conferência na Juilliard, Ritmo etc., e no Como passar, chutar, cair e correr. Já o texto Mosaico é um interessante comentário crítico sobre as cartas de Arnold Schoenberg selecionadas por Erwin Stein.

De cativante interesse são os textos 26 proposições sobre Duchamp, Jasper Johns: histórias e ideias, Miró na terceira pessoa: 8 proposições, Nam June Paik: um diário onde o autor expõem sua relação com o projeto artístico desses seus coetâneos. Todos os textos são precedidos por uma pequena introdução, onde o autor explica a finalidade do texto e quando necessário, explica a técnica para a sua leitura. Enfim, o livro surge como um projeto de “renuncia à competição” e um apelo à “iluminação do mundo” bem aos moldes de Buckminster Fuller; e apresenta-nos um artista curioso e observador, que buscou interpreta r o mundo pelo viés social e anárquico. Cabe-nos, ainda, ressaltar o notório empreendimento do maestro Rogério Duprat em traduzir esse livro poucos anos depois de sua publicação original. Certo é que esse feito é uma das inegáveis contribuições que Duprat concedeu à música brasileira e à reflexão musical da vanguarda brasileira. Sem adentrarmos em detalhes sobre a formação musical e intelectual de Rogério Duprat, quero sublinhar o seu pioneirismo em empreender tal tradução que, diga-se de passagem, acusam não só o seu domínio das poéticas e estéticas musicais do século XX, mas sua intimidade com a linguagem prosaica e poética ao “recriar” as aventuras de Cage. Enfim, De segunda a um ano é um livro provocativo, divertido e de rara beleza onde podemos encontrar as principais inquietações do compositor, o que já se manifesta a partir de sua dedicatória: “Para nós e todos aqueles que nos odeiam, para que os EUA possam se tornar simplesmente uma outra parte do mundo, nem mais nem menos.” -John Cage.

Nota

1 O papel do compositor no trato do piano preparado foi fundamental para a compreensão desse instrumento como forma de expressão, porém não podemos desconsiderar a iniciativa do compositor austro-boêmio Heinrich Ignaz Franz von Biber (1644-1704), que utilizou de técnica semelhante na obra Battalia à 10 D-dur, C.61 (1673).

Milton Castelli Veiga-Graduado em música pela Universidade Cruzeiro do Sul/SP e mestrando em música pela UFRJ.

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William Shakespeare: as canções originais de cena – ZWILLING (AF)

ZWILLING, Carin. Colaboração de Leonel Maciel Filho e Andrea Kaiser. William Shakespeare: as canções originais de cena. São Paulo: Annablume, 2010. Resenha de: PATRIOTA, Rainer; BESSA, Robson. Artefilosofia, Ouro Preto, n.16, jul., 2014.

O livro William Shakespeare: as canções originais de cena, de Carin Zwilling (com a colaboração de Leonel Maciel Filho e Andrea Kaiser), é resultado da pesquisa de doutorado concluída pela autora no Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo sob orientação do prof. Dr. John Milton. Desde já, registre-se a importância crucial do livro, que resgata para o público brasileiro uma faceta raríssima conhecida e comentada do teatro shakespeariano, mas que nem por isso deixa de ser imprescindível a todos aqueles que buscam uma compreensão mais ampla d a arte deste que é o mais admirado artista inglês de todos os tempos. Imprescindível, uma vez que n o teatro de Shakespeare, como deixa bem claro o livro de Carin Z willing, a música não se restringia a uma função meramente decorativa, mas antes operava por dentro da trama e com um impacto estético-catártico decisivo. William Shakespeare: as canções originais de cena, desdobra-se ao longo de s eis capítulos. No primeiro, intitulado “ Sobre William Shakespeare: uma visão panorâmica ”, a autora traça um breve painel da vida e da obra do dramaturgo, oferecendo um quadro cronológico de suas peças em que informa o gênero, as possíveis fontes literárias de que Shakespeare teria se servido, e os principais personagens de cada uma ; o capítulo, cuja brevidade condiz com seu caráter preambular, termina com um interessante comentário de John Dryden – extraído de seu Essay of Dramatic Poesy (1668) – e uma linha do tempo situando os principais eventos da vida de Shakespeare no contexto político e literário da época. O segundo capítulo, “ O teatro inglês ”, da autoria de Leonel Maciel Filho, versa sobre a construção dos teatros londrinos durante os períodos elisabetano e jacobino. Nele, ficamos sabendo que o primeiro teatro moderno fora construído em 1576 por James Burbage, um “ simples ” marceneiro e ator, que custe ara sozinho todo o empreendimento e, com um a ousadia que é tão própria ao homem do Renascimento, veio a fundar aquele que provavelmente foi o primeiro teatro popular da Europa. Por problemas contratuais, o teatro de Burbage teve de se r demolido, mas a madeira empregada em sua construção servi ria para a edificação do famoso Globe – o teatro para o qual Skakespeare veio a escreve r grande parte de suas peças. Leonel Maciel Filho finaliza seu capítulo com uma discussão s obre a retomada do teatro clássico durante o Renascimento. Seguindo as orientações de Vitrúvio em seu De Architectura sobre acústica e teoria da música, os arquitetos do Renascimento tiveram grande preocupação com a questão sonora. Segundo Leonel, essa mesma preocupação norteou a construção d o teatro shakespeariano, pensado mais em função do ator (e do músico) que do cenógrafo. Em “ A música na época de William Shakespeare ”, Carin Zwilling volta à cena e, nesse terceiro ato de sua obra, atua com excelente desenvoltura. De início, descreve a situação social dos músicos e seus divers os papéis, sobretudo o de músico de corte, abordando em seguida – com o auxílio de interessantes ilustrações de época – os

instrumentos mais utilizados, como o alaúde, o virginal, a s viola s da gamba, as flautas, sacabuxas etc. Sua exposição culmina n uma importante exposição conceitual sobre a canção moderna. Nascida da busca pelo resgate da música grega e em oposição ao “artificialismo” da polifonia renascentista, a canção se pauta na expressão de afetos embutidos no texto e elaborados pela melodia. Depois de incursionar pelas terras italianas e esclarecer o conceito de seconda prattica, formulado por Claudio Monteverdi, Zwilling destaca a figura de Thomas Morley – importante madrig alista do período elisabetano, autor de duas canções para o teatro de Shakespeare e de um manual de composição (que é brevemente comentado pela autora). Com o quarto capítulo, “ A música na obra de William Shakespeare ”, chegamos a um momento crucial do livro de Carin Zwilling.

Nele, a autora fornece uma série de dados sobre as canções n as peças de Shakespeare e nos instrui sobre as inúmeras referências musicais feitas pelo dramaturgo, não apenas as poéticas, mas também as técnica s – as indicações para a execução de música de fundo ou para a entrada em cena dos músicos. Discute – a partir das categorias apresentadas pelo renomado pesquisador em Shakespeare Frederick W. Sternfeld – as diversas funções que cabia à música desempenhar dentro da trama e no palco, a exemplo da “música mágica”, que ambientava situações idílicas ou oníricas como aquela em que as fadas ninam Titânia em Sonho de uma Noite de Verão. Às quatro categorias de Sternfeld, Zwilling acrescenta a categoria de “música das esferas”, observando que não só em Shakespeare, mas no teatro da época em geral, o conceito pitagórico de “harmonia das esferas” circulava como um signo cósmico a traduzir a vida e a arte. Segue-se uma descrição das formas de música vocal presentes na dramaturgia shakespeariana, como o carol e o catch, o madrigal, a balada – o gênero predileto de Shakespeare – e a lute air, esta última intimamente associada à obra do ilustre compositor e alaudista John Dowland. O capítulo termina com um quadro das canções utilizadas por Shakespeare, indicando não só a peça da canção, mas também o nome do compositor, o gênero musical a que pertence e sua localização específica na peça (ato e cena). O quinto capítulo, “As canções originais de cena de William Shakespeare”, é o coração do livro de Carin Zwilling. Fruto de cinco anos de pesquisa, ele traz comentários esclarecedores sobre 3 2 canções d e Shakespeare (apenas 33 foram encontradas de um total de 72), contendo ainda a transcrição das partituras e a tradução dessas canções – feita pela autora em colaboração com Leonel Maciel Filho e Andrea Kaiser. Trata-se de um material precioso e do maior interesse para músicos – especialmente aqueles que se dedicam ao repertório antigo –, gente d e teatro e apreciadores de Shakespeare e da literatura em geral. O livro termina com um capítulo que é, na verdade, um apêndice – “Biografia dos compositores das canções de Shakespeare”. Tem-se aqui dez verbetes extraídos do The New Grove Dictionary of Music and Musicians traduzidos por Leonel Maciel Filho. A despeito de seu caráter genérico, o material cumpre sua função como uma fonte de informação para estudantes de música, pesquisadores e curiosos em geral. Não há dúvida de que o livro de Carin Zwilling é digno da maior consideração, sobretudo pelo esforço musicológico de transcrição e análise das canções. Na verdade, ao chamar a atenção para o fato de que o teatro de Shakespeare possuía canções e muita música de fundo, a autora nos convida a reformular nosso ponto de vista acerca d e uma obra que tem sido apreciada sobretudo como literatura, mas que, em sua origem, é mais que isso – é teatro, ou seja, palco, com atores, cantores e instrumentistas. Pela importância da temática e do livro em si mesmo, faz falta, no entanto, uma boa apresentação ou mesmo um prefácio que, em chave estética e musicológica, fizesse as devidas honras ao livro.

Observe-se, por fim, que a autora, que também é alaudista, nos dá um excelente exemplo de que o trabalho do músico não precisa se confinar à lida da performance, podendo – ou mesmo devendo – se prolongar e potencializar pela atividade intelectual e investigativa.

Rainer Patriota-Graduado em música pela UFPB e doutor em filosofia pela UFMG; professor e pesquisador pelo PRODOC junto ao IFAC/UFOP.

Robson Bessa-Graduado em música pela UFMG e doutorando em literatura pela UFMG.

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Capital in the Twenty First Century – PIKETTY (NE-C)

PIKETTY, Thomas. Capital in the Twenty First Century. Trad. Arthur Goldhammer. Cambridge: Harvard University Press, 2014. Resenha de: RUGITSKY, Fernando. Diagnóstico Capital: O Capital no Século XXI. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.99, Jul, 2014.

Em certa passagem de seu livro, ao examinar a evolução da desigualdade na França ao longo do século XX, Thomas Piketty afirma que “[d]esigualdades socioeconômicas – disparidades de renda e riqueza entre grupos sociais – são sempre tanto causa quanto efeito de outros desenvolvimentos em outras esferas. Todas essas dimensões são indissociavelmente entrelaçadas”. E conclui: “Assim, a história da distribuição da riqueza é uma das maneiras de interpretar a história mais geral de um país”1. Qual é a natureza de O capital no século XXI, este livro de recepção estrondosa? Na pletora de comentários, resenhas e críticas, é possível encontrar quem pretenda interpretar o livro seguindo a pista do trecho acima. Nessa leitura, Piketty partiria da história da distribuição da riqueza e da renda nos países ricos, ao longo dos últimos três séculos, mas terminaria propondo uma reinterpretação histórica abrangente. O livro, segundo Mike Konczal, seria “uma grande façanha da história econômica”2. Há também aqueles que veem o livro como uma contribuição à teoria econômica. Nesse caso, as várias séries históricas a que Piketty recorre não seriam senão instrumentos para questionar hipóteses teóricas dominantes e fundamentar um “modelo” alternativo. Suas duas “leis fundamentais do capitalismo”, em conjunto com a “contradição central” que ele identifica, são interpretadas como elementos de uma formulação teórica que representa, nas palavras de Branko Milanovic, “uma combinação da teoria do crescimento com as teorias da distribuição funcional e pessoal da renda e, assim, uma descrição abrangente da economia capitalista”3. Não há dúvida de que ambas as leituras dão conta de parte do livro de Piketty. Mas a sua contribuição não se esgota aí. Para usar uma expressão cara à teoria crítica, o que ele realizou no livro, com suas ousadias e seus limites, foi um diagnóstico do tempo presente4 . Debruçado sobre o capitalismo do início do século XXI, Piketty buscou apreender sua estrutura e sua dinâmica, apontando as tendências de desenvolvimento visíveis e as alternativas possíveis. Para tanto, recorreu a um primoroso e inestimável esforço coletivo de coleta e organização de séries estatísticas que lhe permitiram colocar o presente em perspectiva histórica e jogar nova luz sobre os últimos três séculos. Todavia, o resultado essencial da análise é a descrição do momento atual como uma bifurcação, explicitando os termos dos conflitos que estão e seguirão sendo travados no século atual. Como indica, aliás, o próprio título do livro, trata-se de examinar o capital no século XXI.

A DESIGUALDADE DO VELHO AO NOVO MUNDO

O diagnóstico de Piketty baseia-se em um contraste entre duas trajetórias estruturalmente diferentes de aumento da desigualdade: a que caracteriza a realidade europeia e a dos Estados Unidos5. São, para tomar emprestado o título de um dos capítulos do livro, “dois mundos” distintos6. O ponto essencial do diagnóstico, contudo, é sugerir a possibilidade de tal contraste estar se tornando uma característica do passado. A convergência do pior dos dois mundos poderia criar, no século XXI, um padrão de desigualdade inédito e, segundo Piketty, “aterrorizante”7 . Seria a emergência de um “novo capitalismo patrimonial”8.

Comecemos pela trajetória da Europa. Uma das variáveis que organizam o argumento de Piketty é a razão capital/renda. A sua pouco usual definição do capital de um país inclui sob essa rubrica propriedades rurais, imóveis residenciais, o capital das firmas e das organizações governamentais (incluindo imóveis, máquinas, computadores, patentes) e ativos líquidos detidos no resto do mundo (isto é, os ativos detidos por residentes menos os ativos no país detidos por estrangeiros)9. Assim, quando ele afirma que tanto na Inglaterra como na França a razão capital/renda era aproximadamente 7 ao longo dos séculos XVIII e XIX, isso quer dizer que o capital acumulado era cerca de 7 vezes maior do que a renda gerada nesses dois países a cada ano10.

Na França e na Inglaterra, a razão capital/renda apresentou uma trajetória muito similar. Após a mencionada estabilidade nos séculos XVIII e XIX, tal razão cai de aproximadamente 7 para menos de 3 entre o começo do século XX e o ano de 1950. Essa queda vertiginosa é, então, seguida de uma recuperação gradual. Em 2010, a razão capital/renda estava entre 5 e 6 na Inglaterra e havia superado 6 na França11 . Os dados para a Alemanha estão disponíveis apenas a partir do processo de unificação do país, na década de 1870. Mas a trajetória é semelhante: a razão capital/renda cai de cerca de 6,5 em 1910 para pouco mais de 2 em 1950 e a partir daí recupera-se gradualmente12.

A questão essencial a explicar, tendo em vista tal paralelismo, é a queda observada na primeira metade do século XX13. Dentre as razões plausíveis, seria possível incluir as destruições físicas do capital durante as duas guerras mundiais, especialmente na Europa continental. Piketty argumenta, no entanto, que essa não é a explicação principal. Ele atribui uma importância substancial ao virtual desaparecimento dos patrimônios europeus (líquidos) detidos no resto do mundo, devido tanto a expropriações (empréstimos ao governo russo que foram repudiados pela revolução de 1917, a nacionalização do canal de Suez etc. ) como ao processo de descolonização. Além disso, o entreguerras foi marcado por crescimento baixo e pelo colapso da Grande Depressão, o que afetou particularmente a renda dos mais ricos. Visando manter o seu padrão de vida, eles reduziram substancialmente sua poupança (e em muitos casos até se desfizeram de parte do patrimônio) e assistiram à diminuição de seu capital. Piketty afirma que tais desdobramentos “provaram-se mais destrutivos para o capital do que o próprio combate”14. Finalmente, parte da queda da razão capital/renda deve ser atribuída a “escolhas políticas deliberadas” do pós-guerra, isto é, a políticas de controle de aluguéis, regulação financeira e tributação de dividendos e lucros que levaram a uma redução dos preços dos imóveis e das ações negociadas em bolsa. Nas palavras de Piketty, “o declínio da razão capital/renda entre 1913 e 1950 é a história do suicídio da Europa e, em particular, da eutanásia dos capitalistas europeus”15.

Nas últimas quatro décadas, no entanto, a razão capital/renda aumentou de modo marcante nos países ricos (inclusive fora da Europa), aproximando-se dos valores observados na belle époque (quando, nas palavras dele, “o capital reinava”16). Sua explicação para esse desenvolvimento é o fato de que as taxas de poupança recuperaram-se após a crise da primeira metade do século XX e permitiram uma aceleração da acumulação de capital, ao passo que o crescimento da renda nacional desacelerou17. A isso se deve adicionar ainda uma recuperação dos preços dos imóveis e das ações negociadas em bolsa, fruto das desregulamentações observadas no período, “em um contexto político que era em geral mais favorável à riqueza privada do que aquele do imediato pós-guerra”18.

Mas como essas trajetórias relacionam-se com o padrão de desigualdade observado na Europa? A resposta dele pode ser dividida em três partes. Em primeiro lugar, um valor elevado da razão capital/renda é, por si só, um indicativo do poder político e social dos proprietários. Assim, a tendência de essa razão retornar a valores observados às vésperas da Primeira Guerra Mundial aponta para o restabelecimento de um nível de desigualdade que não foi observado, nos países ricos, ao longo de todo o século XX. Em segundo lugarPiketty argumenta que a elevação da razão capital/renda pode ser acompanhada da elevação do percentual das rendas do capital na renda nacional e, como as rendas do capital são sempre mais concentradas do que as rendas do trabalho, essa última elevação se reflete automaticamente em uma maior desigualdade19. Em terceiro lugar, o aumento da razão capital/renda, por uma decomposição contábil, eleva o percentual do fluxo de heranças na renda naciona20. Assim, a importância crescente da riqueza acumulada tende a resultar no predomínio das heranças sobre o esforço individual, no que concerne à obtenção da renda, colocando em xeque a retórica meritocrática das sociedades contemporâneas: “o passado tende a devorar o futuro”21.

A ênfase na razão capital/renda como uma das raízes da desigualdade é uma das inovações mais importantes do livro de Piketty, uma vez que o debate sobre desigualdade tem se concentrado há algum tempo quase que exclusivamente nas disparidades salariais22. Segundo ele, esse foco desconsidera um dos principais determinantes do aumento recente da desigualdade. É necessário, assim, voltar a examinar a riqueza acumulada e sua distribuição. A trajetória da razão capital/renda explica boa parte da trajetória da desigualdade na Europa ao longo do século XX: do violento declínio entre 1913 e 1950 ao aumento expressivo a partir da década de 1970.

O mesmo não é verdade, no entanto, para os Estados Unidos. Não apenas porque lá a razão capital/renda foi muito mais estável do que nos países europeus, mas também porque o principal determinante do aumento recente da desigualdade norte-americana é a explosão dos salários elevados dos executivos das grandes empresas23. Tendo se estabelecido essencialmente a partir de intensos fluxos migratórios, é compreensível que a riqueza acumulada tenha desempenhado um papel muito distinto nos Estados Unidos ao longo do século XIX. Enquanto os imigrantes traziam consigo muito pouco capital acumulado, do outro lado do Atlântico a economia capitalista escorou-se nas riquezas herdadas do Ancien Régime24. Além disso, o impacto destrutivo das duas guerras mundiais foi muito menor para o capital norte-americano.

Levando em consideração essa estabilidade maior da razão capital/renda e o fato de que, apesar dela, a desigualdade nos Estados Unidos trilhou uma trajetória similar à europeia (reduzindo-se substancialmente na primeira metade do século XX e recuperando-se a partir da década de 1970), conclui-se que a desigualdade salarial desempenhou um papel importante. Piketty passa, então, a descrever com detalhes a “ascensão dos superexecutivos”, um fenômeno característico dos Estados Unidos, mas que também pode ser observado, em algum grau, nos demais países anglo-saxões25. Segundo ele, deve-se atribuir predominantemente aos tais supersalários o fato de que atualmente a desigualdade na economia norte-americana tenha atingido um nível semelhante àquele observado na Europa do início do século XX, no qual o percentil dos mais ricos (que ocupa um “lugar proeminente na paisagem social e não apenas na distribuição de renda”26) apropria-se de um quinto de toda a renda gerada anualmente no país, a mesma quantia que é dividida pela metade mais pobre da população27.

TEORIA E HISTÓRIA

Tendo em vista, por um lado, que a razão capital/renda está aumentando, tanto na Europa como nos Estados Unidos, podendo alcançar os níveis observados na belle époque e, por outro, que a explosão dos salários dos superexecutivos pode vir a se difundir para além dos países anglo-saxões, Piketty teme que o século XXI assista à emergência de uma sociedade ainda mais desigual do que a Europa de 1910 e os Estados Unidos de 2010. Uma sociedade em que uma parcela ainda maior da renda seja apropriada pelo percentil dos mais ricos, povoado por herdeiros que vivem de renda e por superexecutivos transformados em rentistas28. Esse é o seu sombrio diagnóstico, o “novo capitalismo patrimonial”.

O que lhe permite relacionar a trajetória retrospectiva da desigualdade a um prognóstico para o século atual é um conjunto de hipóteses teóricas relativamente simples. Dentre elas, está uma relação que ele denomina “segunda lei fundamental do capitalismo”, formalmente = s/g (sendo que é a razão capital/renda, s é a taxa de poupança e g é a taxa de crescimento da renda nacional)29. Na sua argumentação, no longo prazo, com a estabilização de s e de g, a razão capital/renda é explicada por essa “lei”, desde que os preços relativos do capital e dos bens de consumo não se alterem, em média, e que a parcela do capital representada por recursos naturais puros seja pequena. Ele usa essa relação não apenas para explicar as trajetórias da razão capital/renda na Europa e nos Estados Unidos, mas também para prever, com alguma hesitação, sua trajetória futura. Supondo um declínio de g, devido predominantemente ao declínio da taxa de crescimento demográfico30, e uma estabilização de s, Piketty conclui que, “em 2100, o planeta inteiro poderá se parecer com a Europa da virada para o século XX, pelo menos em termos de intensidade de capital”31.

Conforme mencionado anteriormente, um dos mecanismos pelos quais um aumento da razão capital/renda gera uma maior desigualdade, na argumentação de Piketty, é um aumento no percentual das rendas do capital na renda total. A relação entre essas duas variáveis é determinada pela “primeira lei fundamental do capitalismo”, α = rβ (sendo α, o percentual das rendas do capital na renda nacional, e r, a taxa de retorno sobre o capital)32. A hipótese convencional sobre essa “lei” (que, como o próprio autor reconhece, é simplesmente uma identidade contábil) é que um aumento de β seria sempre compensado por uma diminuição de r, de modo que permaneceria estável. Segundo o jargão, isso é o que se pode derivar de uma função de produção Cobb-Douglas em que a elasticidade de substituição entre capital e trabalho é igual a 1. Intuitivamente, significa que, dado um número determinado de trabalhadores, um aumento no capital leva a uma diminuição de sua produtividade marginal e, consequentemente, de sua taxa de retorno33.

Piketty argumenta, entretanto, que a própria elasticidade de substituição é historicamente determinada: ela parece ter sido inferior a 1 em economias agrícolas tradicionais, em que havia poucas alternativas para utilização do capital, e poderá ser maior do que 1 no século XXI 34. Além disso, o fato de que tanto β como aumentaram nos últimos quarenta anos sugere que ela já ultrapassou 1. Esse movimento paralelo de β e α não é apenas importante para o argumento do autor porque ele permite relacionar o aumento da razão capital/renda com o aumento da desigualdade. Ainda mais crucial é que ele evita que o aumento de β seja acompanhado por uma queda acentuada de r.

Chega-se, assim, à terceira hipótese teórica adotada por Piketty, a “contradição central do capitalismo”, formalmente r > g 35. Essa desigualdade é a razão principal para a concentração da riqueza e, consequentemente, das rendas do capital. Ela permite que, nas palavras do autor, “a riqueza acumulada no passado seja recapitalizada muito mais rapidamente do que a economia cresce”36. Foi a sua operação através do tempo que permitiu que, na Europa da belle époque, o percentil dos mais ricos detivesse metade de todo o patrimônio acumulado. Atualmente, esse percentil ainda detém uma parte menor da riqueza total tanto na Europa como nos Estados Unidos (25% e 35%, respectivamente). Mas, segundo Piketty, isso se deve, essencialmente, à imensa destruição de capital ocorrida na primeira metade do século XX, ao crescimento acelerado observado nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e a imposição de uma tributação elevada sobre os lucros e a riqueza. A combinação desses fatores permitiu que, por quase um século, a desigualdade se invertesse, isto é, r < g. Também a esse respeito, o século XX parece ter sido um período excepcional: com a desaceleração do crescimento e a redução dos impostos sobre o capital desde os anos 1980, a “contradição central” tende a se restabelecer no século XXI 37.

O foco nessa desigualdade entre r e g representa uma inversão significativa dos termos do debate usual. Segundo a inclinação tecnocrática da maior parte dos economistas, a questão que foi objeto de investigação principal nas últimas décadas foi o impacto da distribuição de renda no crescimento econômico. Dessa maneira, não se considerava a desigualdade um problema em si, mas buscava-se analisar se ela contribuía ou não para a obtenção de uma elevada taxa de crescimento do produto, o fetiche dos economistas. Esse foco, na realidade, remonta a um deslocamento da teoria econômica iniciado por John Maynard Keynes. Os economistas políticos clássicos e seu principal crítico centravam sua investigação nos determinantes da distribuição da renda entre os proprietários de terra, os capitalistas e os trabalhadores. Era esse, na expressão de David Ricardo, o “problema principal” da economia política38. No segundo capítulo de sua Teoria geral, Keynes menciona essa tradição e se distancia dela, afirmando que o que lhe interessa é a determinação da renda total, independentemente de sua distribuição39. O livro de Piketty é um esforço inequívoco para retornar àquela tradição do século XIX, e a “contradição central”, explicitando o impacto do crescimento na distribuição (ao invés do impacto desta naquele), deixa isso claro.

A formulação teórica principal de Piketty e a base de seu diagnóstico do tempo presente consistem na combinação das duas “leis fundamentais do capitalismo” com essa “contradição central”. Ela permite que ele explique tanto a importância crescente da riqueza acumulada como a tendência à sua concentração. Mas, para dar conta do aumento da disparidade salarial, com a ascensão dos superexecutivos, ele a combina com outro argumento, que consiste em uma crítica à teoria da produtividade marginal como determinante de tais supersalários e a indicação de que eles são predominantemente determinados por um crescente poder de barganha dos próprios superexecutivos40.

ECONOMIA E POLÍTICA NO NOVO CAPITALISMO PATRIMONIAL

Uma das reações plausíveis a essa argumentação é pessimista: tanto o crescimento demográfico como a elasticidade de substituição entre trabalho e capital não são exatamente passíveis de intervenção e suas trajetórias atuais parecem condenar o século XXI a uma desigualdade crescente. No entanto, há no horizonte de Piketty uma alternativa, ainda que utópica. Trata-se da adoção de um imposto global sobre o capital41. Para entender o seu significado, é necessário observar que a taxa de retorno sobre o capital que aparece na “primeira lei fundamental do capitalismo” é a taxa de retorno bruta, isto é, a taxa de retorno obtida antes de se descontar os impostos devidos. Entretanto, a taxa de retorno que deve ser comparada à taxa de crescimento, isto é, a taxa de retorno que importa para a “contradição central do capitalismo” é aquela líquida de impostos, que pode de fato ser recapitalizada pelos proprietários. Assim, ainda que a taxa de retorno bruta permaneça elevada, devido ao aumento da elasticidade de substituição entre capital e trabalho, é possível atenuar ou até eliminar a “contradição central” por meio de impostos que reduzam a taxa líquida. Além disso, o próprio crescimento da desigualdade das rendas do trabalho, fruto da elevação do poder de barganha dos superexecutivos, pode ser parcialmente atribuído à redução da progressividade tributária desde a década de 1980. Desse modo, se se quiser resistir à realização de seu prognóstico sombrio, a saída é tributária.

Independentemente do potencial dessa alternativa, o que ela revela é uma tensão entre economia e política no pensamento de Piketty. Nas palavras de Suresh Naidu, ele “oscila entre prestar homenagem às forças fundamentais da tecnologia, das preferências e da oferta e da procura e retroceder para afirmar que a política e as instituições são importantes”42. Apesar de sua frequente defesa de uma abordagem interdisciplinar, em alguns momentos seu argumento ainda recorre a um economicismo excessivo. Não obstante afirmar que admira mais Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss e Pierre Bourdieu do que Robert Solow e Simon Kuznets, sua abordagem por vezes o aproxima destes últimos e o distancia dos primeiros43. É possível que isso se deva, ao menos em parte, à tentativa do autor de comunicar suas conclusões aos demais economistas, para isso ele recorre em alguns momentos a conceitos e teorias correntes. Mas o preço dessa opção é empobrecer sua compreensão da dinâmica capitalista e estreitar seu horizonte normativo.

Uma ilustração curiosa dessa tensão é sua interpretação sobre a história econômica recente. Ainda que ele considere que as políticas adotadas no pós-guerra e a sua reversão no rastro da “revolução conservadora” de Margaret Thatcher e Ronald Reagan (a expressão é de Piketty) tenham tido profundos impactos distributivos, ele atribui as taxas de crescimento observadas no período exclusivamente ao processo de catch-up tecnológico44. Nas suas palavras, “nem a liberalização econômica que começou em torno de 1980 nem o intervencionismo estatal que se iniciou em 1945 merecem tais elogios ou críticas. A França, a Alemanha e o Japão teriam muito provavelmente alcançado o Reino Unido e os Estados Unidos, depois do seu colapso entre 1914 e 1945, independentemente de que políticas tivessem adotado (afirmo isso apenas com leve exagero)”45. A admissão do exagero apenas confirma a tensão entre inscrever sua interpretação na dinâmica dos processos sociais e atribuir partes do seu raciocínio a determinantes técnicos apartados da estrutura social.

O caso mais relevante, contudo, é o da “primeira lei fundamental do capitalismo”. No que tange à remuneração dos superexecutivos, Piketty critica a teoria que visa a explicar a sua determinação pela produtividade marginal, afirmando que se trata de uma ilusão46. Já no que diz respeito à remuneração do capital, ele recorre à produtividade marginal, assentando seu argumento em uma função de produção agregada. Essa opção foi objeto de críticas de economistas heterodoxos que consideram a própria ideia de uma função de produção agregada insustentável teoricamente47. O que poucos notaram, no entanto, é que o argumento não é isento de ambiguidades, uma vez que o próprio Piketty fornece as bases de uma alternativa teórica. Afinal, segundo ele, “é importante enfatizar que o preço do capital [e, logo, o seu retorno] […] é sempre em parte uma construção social e política: ele reflete a noção de propriedade de cada sociedade e depende de muitas políticas e instituições que regulam as relações entre diferentes grupos sociais e, especialmente, entre aqueles que detêm e aqueles que não detêm capital”48.

Se essa afirmação for levada a sério, não faz sentido considerar que é um resultado inexorável da elasticidade de substituição entre capital e trabalho. Economistas críticos têm enfatizado há algum tempo que o aumento do percentual das rendas do capital na renda é resultado de um conflito político em que os trabalhadores têm sido derrotados49. E, assim, conseguem explicá-lo sem recorrer a uma função de produção agregada50. Para Piketty, dar o passo de inscrever a sua “primeira lei fundamental do capitalismo” no seio do conflito distributivo representa simplesmente levar às últimas consequências a sua compreensão política sobre o capital. Esse passo teria, contudo, implicações significativas. Uma concepção ampliada do conflito distributivo permitiria cogitar soluções à espiral da desigualdade que não se restringiriam a corrigir, via sistema tributário, uma realidade determinada tecnicamente. Significaria integrar, na dinâmica que ele identifica, um elemento surpreendentemente ausente: as lutas políticas e sociais. Não se trata de questionar a relevância do imposto global sobre o capital que ele defende, que sem dúvida tem um papel destacado a desempenhar. Mas, apenas, de apontar para a necessidade de alargar o horizonte normativo. Segundo ele, “se quisermos retomar o controle sobre o capitalismo, devemos apostar tudo na democracia”. Apostar tudo na democracia significa também compreender que o seu real alcance está menos sujeito a limites técnicos do que faz crer uma parte substancial da teoria econômica dominante.

Nos limites dessa resenha, não é possível fazer justiça ao livro de Piketty. A fim de privilegiar uma exposição resumida de seu diagnóstico do tempo presente, optou-se por não abordar muitas outras contribuições do livro: da metodologia inovadora para coletar dados sobre desigualdade aos comentários críticos a teorias econômicas variadas, do exame detalhado da história da progressividade tributária ao modo de apresentação erudito, entre muitas outras. Não é possível julgar com certeza, passados apenas alguns meses de sua publicação, se o argumento de Piketty resistirá à passagem do tempo. No entanto, não há dúvida de que, na grande disputa ideológica que está se travando sobre os rumos futuros da teoria econômica e sobre a própria natureza do debate público sobre desigualdade, O capital no século XXI desempenhará um papel de protagonista. Os jovens que ocuparam Wall Street e colocaram na pauta a distinção entre os 99% e o 1%, assim como vários outros movimentos sociais que combatem as desigualdades, têm um novo aliado.

Notas

1 PIKETTY, T. Capital in the Twenty-First Century. Trad. Arthur Goldhammer. Cambridge: Harvard Uni-versity Press, 2014. p. 274-275.

2 KONCZAL, M. “Studying the Rich“. Boston Review, jul.-ago. 2014.

3 MILANOVIC, B. “The Re-turn of ‘Patrimonial Capi-talism’: A Review of Tho-mas Piketty’s ‘Capital in the Twenty-First Century'”. Journal of Economic Literature, vol. 52, n. 2, 2014. p. 520.

4 NOBRE, M. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

5 Utiliza-se aqui a palavra “desigual-dade” para se refe-rir às desigualdades socioeconômicas, de renda e riqueza, que são investiga-das por Piketty. Há, é claro, muitas ou-tras desigualdades (de gênero, de po-der, de reconheci-mento social etc.) que não podem ser ignoradas em um diagnóstico do tempo presente que se pretenda abran-gente.

6 PIKETTY, T. op. cit., cap. 8.

7 Ibi-dem, p. 571.

8 Ibi-dem, p. 173.

9 Ibidem, p. 47-50, 119.

10 A renda nacio-nal é igual ao pro-duto interno bruto (PIB) menos a de-preciação mais a renda líquida rece-bida do exterior, segundo as defini-ções convencionais da contabilidade nacional, adotadas por Piketty.

11 PIKETTY, T., op. cit., cap. 3.

12 Ibidem, p. 140-146.

13 Ibidem, p. 146-150.

14 Ibidem, p. 148.

15 Ibidem, p. 149. Em outra passa-gem, Piketty afirma que não é necessá-rio concordar com todas as teses de Lênin para compar-tilhar sua conclusão de que “o acirra-mento da competi-ção entre as potên-cias europeias por ativos coloniais obviamente contri-buiu para o clima que, em última instância, levou à declaração de guerra no verão de 1914”. Piketty, T., op. cit., p. 142.

16 Ibi-dem, p. 154.

17 Ibidem, cap. 5.

18 Ibidem, p. 173.

19 Ibidem, p. 220-222, 255-260. Para uma exposi-ção formal da rela-ção entre a distri-buição funcional (isto é, entre salá-rios e rendas do capital) e a distri-buição pessoal da renda, ver: ATKINSON, A. “Factor Shares: The Principal Pro-blem of Political Economy?”. Oxford Review of Economic Policy, vol. 25, n. 1, 2009. p. 8-12.

20 Piketty, T., op. cit., p. 383-385.

21 Ibi-dem, p. 378.

22] ACEMOGLU, D. “Technical Change, Inequality, and the Labor Market”. Journal of Economic Literature, vol. 40, n. 1, 2002. p. 7-72.

23 PIKETTY, T., op. cit., p. 150-156.

24 Um dado rela-tado por Piketty ajuda a dar a di-mensão dessa diferença: enquanto a população da França dobrou entre a Revolução Fran-cesa e o momento atual (passando de cerca de 30 milhões de habitantes para 60 milhões), a po-pulação dos Esta-dos Unidos au-mentou cem vezes no mesmo período (de 3 milhões para 300 milhões). Pi-ketty, T., op. cit., p. 29.

25 PIKETTY, T., op. cit., pp. 315-321.

26 Ibidem, p. 254.

27 Ibidem, p. 249.

28 Como observa o autor, é muito difícil distinguir ambos na prática. Piketty, T., op. cit., p. 439-447.

29 PIKETTY, T., op. cit., p. 166-170.

30 Ibidem, cap. 2.

31 Ibidem, p. 196. Tal suposição para s foi objeto de críti-cas, mas o prog-nóstico pouco se altera se a taxa de poupança cair, desde que caia menos do que g. Krusel, P.; Smith, T. “Is Piketty’s ‘Second Law of Capitalism’ Fundamental?”. Mimeo, 2014. Para uma exposição mais detalhada do argumento de Pi-ketty, ver: Piketty, T.; Zucman, G. “Capital Is Back: Wealth-Income Ratios Is Rich Countries, 1700-2010”. Paris School of Economics, 2013. p. 9-18.

32 PIKETTY, T., op. cit., p. 52-55.

33 FOLEY, D.; Michl, T. Growth and Distribution. Cam-bridge: Harvard University Press, 1999. p. 146-149.

34 PIKETTY, T., op. cit., p. 217-223. A crítica conservadora ao livro de Piketty tem se focado es-pecialmente nesse ponto. Summers, L. “The Inequality Puzzle”. Democracy: A Journal of Ideas, n. 33, 2004. Pessôa, S. “Erros e acertos do fenômeno ‘O capital no século 21′”, Folha de S.Paulo, Ilustríssi-ma, 8 jun. 2014. Para uma análise mais cuidadosa da questão, relacio-nando o argumento de Piketty com seu conceito ampliado de capital, ver: Rowthorn R. “A Note on Thomas Piketty’s ‘Capital in the Twenty-First Centu-ry'”. Mimeo, 2014.

35 PIKETTY, T., op. cit., p. 571. Ver também Piketty, T., op. cit., p. 25-27, 350-358.

36 Ibi-dem, p. 351.

37 Ibidem, p. 353-358.

38 RICARDO, D. On the Principles of Political Economy and Taxation. 3. ed. Indianapolis: Liberty Fund, 2004. p. 5.

39 KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest, and Money. Nova York: Pro-metheus Books, 1997. p. 4-5.

40 PIKETTY, T., op. cit., p. 508-514.

41 Ibidem, cap. 15.

42 NAIDU, S. “Ca-pital Eats the World“. Jacobin, 2014.

43 PIKETTY, T., op. cit., p. 30-33.

44 Ibidem, p. 96-99.

45 Ibidem, p. 98-99.

46 Ibidem, p. 330-333.

47 GALBRAITH, J. “Kapital for the Twenty-First Centu-ry?”. Dissent, 2014. Ackerman, S. “Pi-ketty’s Fair-Weather Friends”. Jacobin, 2014. Nesse ponto, o isolamento da teoria econômica dominante, na qual Piketty foi formado, em relação a pers-pectivas alternativas cobrou o seu preço. Seus comentários sobre as chamadas controvérsias do capital, assim como seus comentários sobre Marx, de-monstram uma falta de familiaridade surpreendente, dado o cuidado com o qual o livro foi escrito. Ver Pi-ketty, T., op. cit., p. 7-11, 227-232.

48 PIKETTY, T., op. cit., p. 188.

49 STOCKHAMMER, E. “Why Have Wage Shares Fallen? A Panel Analysis of the Determinants of Functional Income Distribution“. ILO, n. 35, 2013. (Condi-tions of Work and Employment Seri-es).

50 Há uma vasta literatura que de-fende que a distri-buição funcional da renda é resultante de um conjunto de determinantes econômicos, políti-cos e sociais. Ver, por exemplo, Foley, D.; Michl, T. op. cit., p. 146-149. Um dos desdobramentos dessa literatura é a investigação da trajetória da taxa de lucro, por meio da sua decomposição no percentual dos lucros no produto multiplicado pela razão produ-to/capital, que é uma outra versão da “primeira lei fundamental do capitalismo” de Piketty. Um exem-plo recente dessa literatura é BASU, D.; R. Vasudevan. “Technology, Dis-tribution and the Rate of Profit in the US Economy: Un-derstanding the Current Crisis”. Cambridge Journal of Economics, vol. 37, n. 1, 2013. p. 57-89.

Fernando Rugitsky – Pesquisador do Núcleo de Direito e Democracia do Cebrap.

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La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal – VINCIGUERRA(CE)

VINCIGUERRA, Lucien. La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 2013. Resenha de: KONTIC, Sacha Zilber Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.31, jul./dez., 2014.

O estudo do estatuto da representação nos filósofos seiscentistas é um ponto recorrente em toda a fortuna crítica que aborda a filosofia da época e, deste ponto de vista, a obra de Lucien Vinciguerra retoma um tema clássico. Entretanto, ao invés de se colocar de partida no interior do discurso filosófico, o autor se propõe a analisar o problema da representação nos filósofos em questão a partir de operações e dispositivos que não são ele s mesmo s filosófico s. É o caso da s equações cartesianas das curvas e de seu regime de diferenças, de metáforas, como a do cego da dióptrica de Descartes, do sonho de Teodoro na Teodiceia de Leibniz, do espelho e da anamorfose como modelo das ideias confusas em Locke, da figura do hexagrama místico e da interpretação da bíblia em Pascal.

Por este procedimento, Vinciguerra visa estabelecer um debate direto com As palavras e as coisas de Foucault. Enquanto Foucault se propunha a fazer uma história filosófica das transformações da cultura na era clássica buscando o fundamental destas transformações no exterior da própria filosofia, ou seja, uma arqueologia do pensamento e não uma história da filosofia, Vinciguerra busca na arqueologia foucaltiana um ponto de partida para se voltar à história da filosofia.Ao romper as continuidades aparentes entre as filosofias clássicas e as modernas a partir de conhecimentos estrangeiros à própria filosofia, Foucault demonstra haver entre elas familiaridades enganosas, levantando problemas que a história da filosofia não possuía métodos para trazer à superfície. Ao mesmo tempo, a importância das diferenças entre as diversas filosofias são minimizadas em favor de um elemento que resta implicitamente comum a elas. A arqueologia do saber dissolve assim o trabalho do historiador da filosofia em favor de uma história mais ampla do pensamento.

A mudança do regime representativo dos signos, que é a marca da episteme clássica, leva Foucault a privilegiar a análise da linguagem no discurso filosófico e na produção do saber, mas, observa Vinciguerra, deixa de lado a relação deste regime dos signos com a matemática. É partindo da relação entre a matemática e a linguagem que o autor vai interrogar os filósofos em questão para tentar elaborar como, apesar das diferenças radicais em suas concepções representação, os quatro filósofos podem compartilhar de uma mesma episteme. Ela mostrará que o regime dos signos no saber clássico aponta – talvez contra a intenção dos pensadores em questão – para uma concepção de representação na qual o signo se anula enquanto signo e traz em si a presença mesma daquilo que é representado. Em outras palavras, a representação excede – se a si mesma.

Ordem de exposição escolhida por Vinciguerra já evidencia o tipo de história da filosofia que é proposto neste livro: não se trata de um estudo cronológico ou genético de um conceito, mas sim a tentativa de encontrar dispositivos que evidenciem um elemento comum na concepção de representação entre os quatro filósofos. O exame se inicia com a descrição do sonho de Teodoro, alegoria narrada por Leibniz nas últimas páginas da Teodiceia na qual, guiado por Palas, Teodoro é levado à pirâmide de infinitas salas, cada uma representando um mundo possível, e nas quais se encontram os livros, cujas páginas contém o destino de cada pessoa de cada mundo possível. Basta que ele passe as mãos sobre as letras deste s livros para que lhe seja representado visivelmente, como que em uma olhadela, o que é dito pelas palavras escritas, assim como o destino destas pessoas, tudo aquilo que elas fazem, percebem, pensam, suas posteridades. O mundo representado pelas letras de desdobra em um mundo visível, em uma presença ilimitada que é representada por aqueles caracteres presentes no livro.

O que interessa o autor nesta alegoria é menos a sua importância como parte da teoria leibniziana dos mundos possíveis ou de sua noção d e representação como expressão do que o caráter “exemplar” que o signo toma no seu interior. Ao ser lido, ele nos leva a uma presença que está além dele mesmo, uma presença que é em si ilimitada. É esse mote de um “signo excessivo” que guia a sua busca por uma episteme comum entre a filosofia da representação destes quatro filósofos. Mas aquilo que pode ser facilmente identificado em Leibniz como uma consequência de seu sistema filosófico, e principalmente de sua concepção de expressão, é visivelmente mais difícil encontrar nos demais, e principalmente no caso de Descartes.

Não é, portanto, por acaso que a análise da questão da representação em Descartes ocupe a maior parte do livro.

Ao mesmo tempo em que ela é fundamental para sua tese, considerando o papel evidentemente fundamental que Descartes possui na filosofia seiscentista, essa noção de uma representação excessiva não pode ser encontrada no local onde a questão da representação aparece de forma mais clara, a saber, na sua teoria da ideia. A ideia para Descartes é representativa justamente por ser como a coisa mesma no intelecto. Ela não é um signo, mas sim a realidade objetiva da coisa tal como se encontra em nossa mente.

Consciente desta limitação, Vinci guerra busca inicialmente na equação das curvas da Geometria e, em seguida, na descrição da linguagem e d a percepção sensível no Mundo, na Dióptrica e na regra XII das Regulae o mesmo princípio que regra a concepção de signo e de representação que encontra no sonho de Teodoro de Leibniz. Na equação da curva, a sua decomposição em curvas cada vez mais simples permite com que, no final da série, a curva mais complexa seja reencontrada e descrita de um modo claro e distinto. A série em sua totalidade de curvas mais simples representa a curva mais complexa sem, entretanto, contê – la em sua totalidade. É por este mesmo paradigma que o autor passa à interpretação do papel das diferenças nas impressões sensíveis tal como descritas por Descartes, para quem toda a representação sensível não é a representação de uma diversidade, mas que em si não possui relação com o objeto percebido.

É assim que na regra XII das Regulae as diversidades das cores podem ser comparadas às diversidades das figuras. O que percebemos é apenas a codificação desta diversidade, tal como ela se relaciona com nós, e não as coisas mesmas. O mesmo princípio é explorado pelo autor a partir da metáfora cartesiana do cego com sua bengala, presente no primeiro e quarto discurso da Dióptrica . O cego, ao tocar o solo com sua bengala, reconhece pela vibração transmitida pela bengala até a sua mão a diferença entre o solo duro, a terra e a areia. É de forma análoga, diz Descartes, que recebemos a diversidade de coisas que afetam nossos olhos, como simples vibrações que em nada de assemelham à coisa percebida. Para considerar as sensações na filosofia cartesiana como signos legíveis tais como as letras dos livros do sonho de Teodoro, Vinciguerra centra a sua análise na possibilidade de encontrar n essa diversidade a leitura de um signo que, decifrado, nos remeta à verdade das coisas, mesmo que confusamente. De fato, Descartes afirma que há uma instituição da natureza – que diz respeito sobretudo à vida prática – pela qual nos guiamos pelo mundo sensivelmente percebido. Face, nas palavras do autor, a essa “metalinguagem desconhecida”, cabe descobrir se há um espaço na filosofia cartesiana pelo qual possamos dizer que é possível reencontrar essa metalinguagem e descobrir na diversidade presente na impressão sensível uma transparência tal como no sonho de Teodoro. Segundo o autor, podemos afirmar isso partindo da descrição de Descartes, feita no início do Mundo, entre as sensações e as palavras, cuja relação com as coisas significadas se dá unicamente pela instituição humana. Por mais que não haja semelhança, ao ouvir uma frase ou ler um texto podemos compreender o seu sentido por mais que não haja semelhança alguma entre o discurso percebido sensivelmente (seja pelo som, seja pela vista) e o seu significado. É claro que no caso de Descartes não se pode falar de uma interpretação – dado que para ele o entendimento é sempre passivo – mas, sim, defende Vinciguerra, de um apagamento do signo que desaparece enquanto coisa ao nos representar seu objeto . Diversos comentadores já notaram o caráter contraditório desta comparação entre a linguagem e a sensação em relação ao restante da filosofia cartesiana, em geral explicado pelo caráter mais físico do que metafísico do tratado. Vinciguerra assume ser, ao lado de Pierre Guénancia, um dos únicos a atribuir uma relação estreita tão entre a linguagem e a sensação. Isto permite com que o autor considere tanto as diferenças entre as sensações da regra XII quanto a metáfora da bengala do cego ao mesmo nível da linguagem no interior da filosofia cartesiana. O seu método de história da filosofia parece desobrigá – lo de analisar a coerência desta tese com o restante da filosofia cartesiana, o que certamente o levaria a considerar obra de Descartes contraditória ou, ao menos, defender uma posição bastante heterodoxa sobre o problema do conhecimento sensível .

Essa omissão o permite passar facilmente da comparação da linguagem com o sensível no Mundo para a consideração da sensibilidade em toda a obra cartesiana como o decifrar de um signo, cujo conteúdo representativo reconduziria a coisa representada. É também no conhecimento confuso que o autor encontra esta noção de signo e de representação em Locke, mas agora na metáfora da anamorfose e do espelho contida no capítulo 29 do livro II do Ensaio sobre o entendimento humano . Nela, as figuras deformadas que dependem de um espelho especial para serem vistas correspondem às ideias que, ao serem relacionadas com uma linguagem inadequada a elas, são confusas até que essas palavras sejam corrigidas. Aqui Vinciguerra encontra novamente a figura da representação que excede o signo na imagem anamórfica que Locke compara à ideia confusa e a possibilidade de encontrar nela a imagem realmente representativa.

No caso de Pascal, apesar de não possuir propriamente um questionamento filosófico sobre a representação, é o mesmo dispositivo matemático da anamorfose que o autor encontra em jogo na análise das secções do cone, a saber, a geometria projetiva inspirada por Desargues. Ela permite com que Pascal postule uma identidade entre figuras diferentes (por exemplo, entre o círculo e a parábola) através das relações que se conservam a partir de sua produção como secção do mesmo cone. Assim, uma mesma figura pode conter representativamente, a partir das relações invariantes, uma infinidade de figuras relacionadas. É o mesmo regime de representação que, segundo o autor, se encontra na concepção de Pascal da exegese bíblica, pela qual o movimento interpretativo permite encontrar o sentido imanente no interior das escrituras. Ao se propor a pensar o problema da representação na filosofia seiscentista a partir de uma reflexão foucaultiana, Vinciguerra faz um louvável exercíc io de repensar o papel e os métodos da história da filosofia. Entretanto, suas análises, ao buscarem em cada um dos autores tratados apenas o suficiente para encontrar a episteme que propõe para a época, não fornecem um aprofundamento da questão, assim com o não pensam o seu papel no interior do pensamento de cada filósofo. Também, ao deixar de lado a influência que cada um dos filósofos teve sobre o demais, assim como as críticas aos seus antecessores, Vinciguerra perde a oportunidade de analisar as por vez es singelas continuidades e rupturas presentes nas teorias da representação em questão. Para as quais Leibniz, mais do que fornecedor de uma “fantasia exemplar”, seria pela natureza dialógica de sua filosofia um campo de análise privilegiado.

Referência

VINCIGUERRA, Lucien. La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 2013. Resenha de: KONTIC, Sacha Zilber Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.31, Jul – dez 2014.

Sacha Zilber Kontic – Doutorando, Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Marx e Habermas: teoria crítica e os sentidos da emancipação – MELO (C-FA)

MELO, Rúrion. Marx e Habermas: teoria crítica e os sentidos da emancipação. São Paulo: Saraiva, 2003. Resenha de: FLECK, Amaro. Marx ou Habermas? Comentário crítico ao livro Marx e Habermas: teoria crítica e os sentidos da emancipação de Rúrion Melo. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 19 n.2 Jul-Dez, 2014.

Há de se questionar se seria possível uma síntese entre os pensamentos de Karl Marx e de Jürgen Habermas, principalmente ao se levar em conta que a teoria do segundo é caracterizada por um progressivo distanciamento das teses defendidas pelo primeiro. Mas, salvo engano, não foi fornecer tal síntese o intuito de Melo ao longo de seu livro. E por isso o título pode soar ambíguo, ao menos na medida em que não fica claro o significado da conjunção “e”. Neste caso, como o autor não busca desenvolver uma teoria crítica que concilie aspectos de ambos os pensadores, mas muito mais afirmar a atualidade e pertinência do segundo frente a uma suposta obsolescência e esterilidade do primeiro (exceto, claro, pelo pouco da teoria marxiana que é preservada na habermasiana, que consiste mais em certo anseio emancipatório comum do que em qualquer convergência em termos de conteúdo ou de diagnóstico), penso que se deve entender tal conjunção antes no sentido pouco usado da contraposição do que naquele usual do complemento.

Na verdade, a obra aqui resenhada é um livro ambicioso, uma vez que pretende operar concomitantemente em distintos níveis. Por um lado, almeja mostrar os desenvolvimentos da teoria crítica – desde seus primórdios com a obra marxiana até os desdobramentos pós -habermasianos da autodenominada terceira geração –, por outro, tenta discutir as tarefas atuais desta corrente de pensamento cujo maior desafio é renovar os seus diagnósticos de época, como bem salienta Melo. Tal meta é buscada tanto no plano, por assim dizer, mais geral, no qual analisa o processo de modernização da sociedade capitalista, quanto em um plano paroquial, ao discutir nuances da recepção brasileira desta tradição crítica e presumidos impasses que caracterizariam seu estágio atual. Com isso, a obra tenta intervir na discussão nacional ao mostrar uma senda que seria, segundo Melo, profícua, mas que tem enfrentado certa resistência entre nós, a saber: aquela contida na teoria habermasiana e desenvolvida também por teóricos posteriores bastante influenciados por ele, tais como Jean Cohen, Axel Honneth e Seyla Benhabib. Neste comentário, gostaria de apresentar de forma sucinta a argumentação de Melo para, depois, tecer três críticas a ela.

  1. A resenha

O livro aqui tratado é composto por três partes. As duas primeiras tratam do dilema “reforma ou revolução”, a primeira apresentando a vertente revolucionária inspirada no pensamento marxiano e os impasses desta, e a segunda a corrente reformista, também inspirada no pensador socialista, e suas dificuldades. A terceira parte, que pode ser considerada propositiva, busca mostrar uma alternativa a este dilema paralisante que estaria, na visão do autor, solapando a capacidade crítica das teorias que não se conformam com o estado existente das coisas.

Antes de tratar das duas primeiras partes convém apresentar o ideal de sociedade emancipada que seria comum tanto à tradição revolucionária quanto à reformista, ideal este presente na obra de Marx. De acordo com Melo, a sociedade emancipada seria para Marx uma “República do trabalho”, uma “auto-organização holista dos trabalha dores” na qual o “trabalho heterônomo” seria transformado em “trabalho autônomo”. A fundamentação normativa deste ideal se encontraria subjacente ao próprio conceito de trabalho, de modo que tal concepção fica presa ao “paradigma produtivista” e ao “economicismo”, pois compreende todas as relações sociais pelo prisma das relações produtivas e vê a política como mero epifenômeno dos antagonismos econômicos. Melo critica o suposto reducionismo da concepção de práxis marxiana, restrita ao trabalho, e argumenta que isto fez com que Marx não entendesse a emancipação “como um processo intersubjetivo, aberto e reflexivo, de constante disputa e negociação” 2, de maneira que, citando Jean Cohen, a partir de tal modelo produtivista de autorrealização “a liberdade tende a ser sacrificada em nome da abundância” 3. O juízo mais positivo que Melo dirige ao autor de O Capital é que este, em sua obra juveníssima (i.e. na Crítica da filosofia do direito de Hegel e em Sobre a questão judaica ), teria ampliado o conceito do político de maneira que diga também respeito “aos processos sociais que residem na base econômica da sociedade” 4, embora no decorrer de sua obra ele tenha cedido à tendência de “reduzir a interação política à instrumentalidade das relações de classe” 5. Melo não apenas apresenta e critica a concepção de emancipação de Marx, mas também indica uma alternativa: com a distinção habermasiana de interação e trabalho, segundo ele, seria possível entender também a dimensão simbólica (e não somente a produtiva) da ação. Enquanto o trabalho se caracteriza por ser uma ação não linguística, estratégica (i.e. diz respeito a fins), a interação é uma ação linguística e comunicativa (sendo assim um processo reflexivo), dependendo da “cooperação e do assentimento livre de coerção” 6. Portanto, sempre segundo o autor, na dimensão simbólica poderia ser encontrado um ideal emancipatório que não seria caracterizado pelo reducionismo economicista típico da dimensão estratégica. Sem tal distinção não seria mais possível “uma compreensão da dinâmica política em que as condições da emancipação social se encontrem em disputa” 7.

O problema relativo ao próprio ideal emancipatório é comum às duas tradições que se inspiram em Marx, mas isto não as torna iguais. O paradigma revolucionário não só fracassou, uma vez que o proletariado não conseguiu realizar o ideal de uma sociedade emancipada (mesmo onde tenha conseguido fazer a revolução ou onde partidos supostamente defensores dele alcançaram as posições de comando), como tampouco conseguiu deixar um legado. O mesmo não ocorreu com o paradigma reformista. Este, ao abandonar “a perspectiva dogmática da luta de classes”, “a visão holista da sociedade” e “a falsa atitude diante do Estado democrático de direito” 8, contribuiu para a universalização dos direitos civis e para a implementação de políticas redistributivas. No entanto, a limitação da concepção emancipatória dos reformistas, cujo ideal seria tão só “a humanização do trabalho” 9, acaba por desconsiderar os “conflitos e potenciais emancipatórios não limitados à lógica redistributiva” 10 e, com isso, torna-se insensível para o crescimento da burocracia estatal, assim como do paternalismo inerente a ela, decorrentes da forma centralizadora do Estado de Bem-Estar social. Particularmente interessante, na reconstrução de Melo, é que ele nota que não só há um engessamento da democracia pelo fato da cidadania ser “meramente distribuída como benefícios garantidos pela burocracia do Estado” 11, como também que ficam cada vez mais claras as dificuldades da “manutenção do crescimento capitalista implementada por vias intervencionistas” 12, isto é, que o próprio custo econômico do Estado de Bem-Estar social torna-se um fardo demasia do pesado, um fardo que o próprio capitalismo, gerido em grande parte pela intervenção político-governamental, não consegue mais suportar.

A última parte da narrativa trata, justamente, da tentativa de superar aquilo que Melo identifica como o dilema paralisante das forças críticas, a saber, a alternativa entre reforma e revolução. Para tanto, segundo o autor, é preciso o abandono tanto da “utopia de uma sociedade do trabalho” quanto de seu correlato, o paradigma produtivista. Na verdade, os novos movimentos sociais (e o autor elenca: os movimentos dos direitos civis, dos pacifistas, dos estudantes, das feministas, dos gays, dentre outros) alargaram o escopo de reivindicações, trazendo ao âmbito do político diversas demandas que não mais se enquadravam nos limites estreitos de uma esquerda que se ocupava unicamente da luta pela “supressão completa do capitalismo” 13 ou, se resignada, que se engajava em sua reforma. Com a pluralidade das demandas e a nova realidade social do capitalismo tardio seria preciso, sempre conforme o autor – e quase sempre conforme Habermas também –, a substituição da própria orientação da crítica: ela não mais busca a sociedade emancipada, uma vez que “sociedades complexas e pluralistas (…) inviabilizariam a imagem de uma sociedade tomada em seu todo” 14, em vez disso elas almejariam formas de vida emancipadas. Mas a narrativa triunfante que conduz de Marx a Habermas e seus sucessores, em que os déficits de cada estágio da teoria crítica são sanados pela etapa posterior, encontra, tal como Hegel ao se deparar com a plebe, um obstáculo talvez intransponível: a própria democracia vem perdendo sua vitalidade, uma vez que engessou a participação democrática em canais institucionalizados e limitou “as possibilidades de formação espontânea da opinião pública e da vontade coletiva” 15. O autor, no entanto, parece não ver isto como algo que ponha em cheque o projeto da democracia deliberativa e insiste que é preciso um novo engajamento político que respeite as regras do jogo democrático e reconheça a legitimidade do poder existente uma vez que todos “consentiram com tal resolução uma vez que puderam formar a opinião, avaliar as questões envolvidas e contribuir na tomada de decisão” 16.

  1. A crítica

Antes das críticas, o elogio. O mínimo a ser dito é que a obra contém inúmeras virtudes. Apesar de não concordar, pelos motivos que exporei a seguir, com a argumentação geral de Melo, reconheço a grande pertinência do tema e a grande erudição com o qual é trata do. O autor apresenta uma literatura em grande parte desconhecida ao público brasileiro e trata com desenvoltura não somente o grande número de obras exegéticas sobre as teorias analisadas como também um amplo referencial histórico-sociológico que lida com as transformações da sociedade desde a época de Marx até os nossos dias. No entanto, a opção metodológica pela história dos efeitos (a), uma interpretação demasiado tradicional e restrita de Marx (b), e um otimismo exagerado em relação às potencialidades contidas na teoria habermasiana e de certo número de seus sucessores (c) faz com que, a meu ver, o livro aqui debatido não alcance plenamente o objetivo que ele mesmo propõe: o de renovar a teoria crítica e o de obter a “compreensão profunda do presente” do qual falava Horkheimer.

  1. a) História dos efeitos?

Melo defende a abordagem da história dos efeitos como a adequada para lidar com os problemas da história da filosofia, uma vez que ela permite “perceber nuances, potencialidades e limitações de uma teoria que só se explicitam a partir da história de seus efeitos” 17. Contudo, a história dos efeitos precisaria se defrontar com uma série de questões bem mais ampla do que aquela que efetivamente enfrenta, ao menos no caso desta obra. Para começar, é praticamente impossível fazer um panorama da totalidade dos efeitos de uma obra como a de Marx, uma vez que ela recebeu interpretações inteiramente díspares e motivou cursos de ação totalmente opostos. Basta lembrar que sua obra foi usada tanto para legitimar os regimes do socialismo real mente existente quanto para criticá-los e questioná-los; tanto para justificar as opções em geral autoritárias dos partidos comunistas oficiais como os modelos libertários dos movimentos autonomistas; houve quem a leu como um advogado da causa do trabalho e houve quem a leu como um defensor da preguiça (opção esta do próprio genro de Marx, Paul Lafargue). O autor, infelizmente, desconsidera tal pluralidade e dedica atenção apenas a duas tendências predominantes do movimento operário 18. Isto aponta para um segundo problema: a história dos efeitos precisa tratar de forma mais refinada a complexa relação que há entre teoria e prática. Se é certo que Marx escreveu sua obra sempre em contato próximo com os movimentos dos trabalhadores, é igualmente certo que esta não foi apenas a expressão teórica daqueles, mas sempre manteve uma tensão e mesmo uma distância crítica com relação a eles. Assim, seria necessário mostrar como se dá esta relação, reconstruindo as tendências predominantes do movimento operário e mostrando como Marx se relacionou com elas. Há, por assim dizer, um abismo entre a obra marxiana e doutrinas por ela inspiradas que não é transposto, tampouco se constrói os meios para fazê-lo. A história dos efeitos, assim, é transformada apenas num rótulo para legitimar uma interpretação que ignora boa parte das nuances e ambiguidades do texto original, pois nada disso importa, mas sim o modo como Marx foi supostamente lido. Ora, a teoria crítica tem pouco a ganhar escolhendo metodologias que apenas reforçam as tendências dominantes, seja na sociedade, seja na exegese de um autor. Antes, sua função deveria ser a de escovar a história a contrapelo, também no caso da história da filosofia.

Ademais, a opção pela história dos efeitos é deveras parcial, sendo aplicada a Marx, mas não a Habermas. Por quê? Não se encontra explicação, mas a exegese da obra habermasiana é feita em geral com a intenção de mostrar as melhores potencialidades nela contidas ou aquilo que seria a sua “verdadeira teoria”, em vez de explicá-la a partir dos efeitos que ela tem causado. E há de se lastimar isto, sobre tudo porque, salvo engano, Habermas parece um tanto descuidado em suas intervenções. Não é à toa que o Partido Popular espanhol, e mais especificamente o então presidente José Maria Aznar, mostrou grande entusiasmo pelo conceito de “patriotismo constitucional”, um conceito que lhe pareceu feito sob medida para sustentar políticas xenofóbicas sem ter que perder a pose liberal 19. Também as fortes críticas ao paternalismo inerente ao Estado de Bem-Estar socialdemocrata, por mais corretas que sejam na maioria das vezes (e reconstruídas com grande esmero no livro aqui comentado), ao olhar retrospectivo do presente parecem ter errado o alvo: num momento em que a teoria deveria ter defendido o legado do Estado de Bem-Estar social diante da ameaça iminente de seu desmonte retrógrado, ela se junta ao coro dos críticos buscando mostrar antes as deficiências daquele que está saindo de cena do que as daquele que está entrando: o Estado centauro neoliberal 20. Por fim, também no atual debate sobre a argumentação religiosa na política, as sugestões de Habermas costumam dar aval, ou ao menos assim têm sido interpretadas por grande parte de seus leitores (que é o único que importa na história dos efeitos), aos desmandos da maioria religiosa 21.

  1. b) Por uma outra interpretação de Marx

Em sua interpretação da obra marxiana, Melo, em geral, apenas avaliza a interpretação de Habermas, segundo a qual Marx teria fica do preso ao paradigma produtivista, ao âmbito do trabalho, à filosofia do sujeito ou da consciência. No entanto, a interpretação habermasiana da obra de Marx é claramente deficitária, e isto fica evidente a partir da análise das poucas passagens em que o teórico de Düsseldorf se aproxima do texto marxiano, em vez de comentá-lo à distância 22. Melo tenta, assim, corroborar textualmente uma crítica cuja condição de existência parece ser esta não familiaridade. Neste aspecto, ao menos, o resultado é pouco promissor, uma vez que o autor parece comprometido de antemão a ler Marx a partir da interpretação habermasiana e a não romper com esta de jeito algum. Um exemplo disso é o tratamento dado à categoria trabalho, categoria esta que, por sinal, desempenha uma função proeminente na leitura de Melo. Para ele, o conceito de “trabalho abstrato” significa, grosso modo, o trabalho remunerado, típico do capitalismo industrial, o qual é contraposto ao “trabalho concreto” que seria aquele típico dos artesãos ou da sociedade feudal 23. Ora, salvo engano, “trabalho abstrato” e “trabalho concreto” são duas dimensões do trabalho que produz mercadorias, o primeiro gerando valor e o segundo criando valor de uso (não sendo, portanto, dois tipos de trabalhos distintos, mas duas facetas de um mesmo trabalho, tal como se caracteriza na sociedade capitalista quando se generaliza a forma-mercadoria) 24. Melo defende a tese segundo a qual o trabalho seria, para o autor socialista, “a atividade humana mais essencial” 25. No entanto, é preciso perceber que em diversos casos isto não ocorre. Assim, por exemplo, ele diz na Introdução à Para a crítica da economia política que “o trabalho é uma categoria (…) moderna” 26, e em inúmeros textos a sociedade comunista é vista como uma na qual tal atividade é abolida (caso de A Ideologia alemã ) ou reduzida a uma quantia mínima (caso dos Grundrisse e de O Capital ). Ora, se o trabalho fosse realmente visto como a atividade humana essencial por Marx, não seria de se esperar que a sociedade emancipada se caracterizasse por fazer ao máximo tal atividade, e não por reduzi-la ao mínimo? Não seria um quid pro quo falar de uma “utopia da sociedade do trabalho” cujos partícipes não trabalham? Diversos autores têm apontado para ambiguidades da categoria trabalho no texto marxiano, e de fato algumas vezes é possível encontrar nele esta compreensão atemporal de trabalho, quase metafísica, à qual Melo se atém. Esta, por sinal, é a interpretação do marxismo tradicional e as críticas feitas por Melo seriam, a meu ver, plenamente pertinentes, caso se dirigissem tão somente a ela. Se tivesse por alvo ou interlocutor uma corrente exegética da obra de Marx como a da Escola de Budapeste (da “ontologia do ser social” do Lukács tardio), as deficiências que o autor elenca poderiam, acredito, ser facilmente corroboradas textualmente. Porém, na medida em que tem por interlocutores autores que rompem com o marxismo tradicional, como é o caso, no âmbito internacional, de Moishe Postone, de Helmut Reichelt, de Roman Rosdolsky, e no âmbito nacional de Ruy Fausto, de Jorge Grespan e de Paulo Arantes, Melo acaba por direcionar a crítica para teóricos cujo ideal de emancipação em nada se assemelha a esta religião do trabalho por ele reconstruída.

Ademais, quando Melo afirma que Marx fica preso ao paradigma da produção e à filosofia da consciência, ele está projetando em sua obra a distinção habermasiana de trabalho e interação e dizendo que o seu projeto de crítica da economia política está inserido no primeiro e que exclui o segundo. Mas esta é uma boa chave para pensar a obra marxiana? Acredito que não. A crítica da economia política inicia justamente pela análise da mercadoria, a forma elementar da riqueza nas sociedades capitalistas. Mas a mercadoria não é o produto criado na relação do homem isolado com a natureza, e sim, basicamente, uma forma de relação social, uma vez que ela é feita de antemão visando a troca. O intercâmbio mercantil, analisado à exaustão na obra marxiana, é uma forma de interação, intersubjetiva, linguística e simbólica, embora, como grande parte das interações intersubjetivas realmente existentes não seja realizada a partir da “cooperação e o assentimento livre de coerção dos participantes” 27 que caracteriza a interação habermasiana segundo Melo (uma vez que pressuporia o “entendimento que habita no interior do próprio medium linguístico” 28, pressuposto este só encontrado idealmente). Mesmo o processo de trabalho é analisado na crítica da economia política marxiana como um processo intersubjetivo, permeado pela linguagem, sujeito a acordos, conflitos e regulações, e não como uma relação de sujeito-objeto, como Melo afirma 29. O mesmo se passa com a acusação de “economicismo”. Melo discorre ao longo de várias páginas a tese de que Marx projeta as relações econômicas em todas as outras esferas, que ele compreende toda a sociedade a partir da perspectiva econômica e que é incapaz de perceber como se dá a ação comunicativa que supostamente seria determinante na esfera política. No entanto, Melo dedica pouca atenção para a questão do que significa o subtítulo da obra magna de Marx, “crítica da economia política” e, por conseguinte, ao próprio projeto teórico marxiano. Salvo engano, Marx não se propõe a fazer uma análise oniabarcante da sociedade ou oferecer um quadro ou gramática de todos os tipos de conflitos sociais (embora o marxismo tradicional, que se constitui como uma visão de mundo que pretende explicar tudo a partir da obra de Marx, por vezes faça isto), mas sim a analisar o modo de produção capitalista e criticá-lo de forma imanente 30. A tese de Marx é que o capitalismo cria uma nova forma de dominação na qual o processo econômico ganha vida própria e passa a sujeitar os indivíduos, transformando-os em meras engrenagens de seu mecanismo de autovalorização. Portanto, a crítica de Marx é que o modo de produção capitalista justamente transcende a esfera da economia, dissemina-se também em outros âmbitos, criando uma nova forma de dominação. Marx critica a sociedade capitalista precisamente por ela ser economicista, por ela estar presa ao paradigma da produção. Neste ponto parece haver uma confusão entre a dimensão normativa e a dimensão descritiva tanto da obra de Marx (de modo que aquilo que o autor de O Capital descreve como o estado existente das coisas, um mundo dominado pelo paradigma da produção e pela ótica da economia, é visto como a sociedade ideal socialista) quanto na exegese da sociedade atual (em que o mundo parece não mais se pautar por um ideal produtivista, já tendo saído da sociedade do trabalho, simplesmente porque gostaríamos que este fosse o caso), ou ao menos não vejo como alguém possa defender, na era do precariado, que a sociedade do trabalho chegou ao fim 31.

Por fim, por mais interessante que possa ser a concepção do âmbito político do juveníssimo Marx, uma teoria crítica adequada para lidar com os problemas contemporâneos certamente tem muito mais a ganhar com releituras de O Capital e do restante da obra tardia do autor. Postone, por exemplo, não tem sido discutido por ter consegui do oferecer uma “salvação” de Marx ou uma interpretação autêntica do mesmo (como Melo sugere 32 ), mas basicamente por conseguir esclarecer, a partir da obra marxiana, alguns aspectos da dinâmica do capitalismo atual, tal como a criação de uma população supérflua que não consegue mais ser inserida na esfera da produção. Nesse sentido, Melo, que justamente busca pensar uma teoria crítica adequada para o presente, não dá atenção ao fato de que nos últimos trinta ou quarenta anos as desigualdades materiais cresceram de forma abissal, de forma que é preciso urgentemente repensar a primazia das “demandas por reconhecimento de diferenças culturais” 33, e tampouco atribui importância à circunstância de que, no mundo pós-2008, os questionamentos acerca do capitalismo retornaram e, tão cedo, não deverão ser relegados a segundo plano 34.

  1. c) A construção de uma teoria crítica da sociedade adequada ao presente

Minha discordância com Melo, no entanto, não se limita à (pouca) importância dada ao pensamento marxiano na tentativa de atualizar a teoria crítica da sociedade e oferecer um diagnóstico de época adequado ao presente, mas diz respeito também ao quanto a teoria habermasiana pode fazê-lo. Melo praticamente aceita como pressuposto que a teoria de Habermas é apta para lidar com os problemas de nosso tempo. Ao contrário dele, acredito que, apesar de Habermas ainda estar vivo e produzindo freneticamente, sua teoria está baseada em um diagnóstico obsoleto (ao menos no que tange a mediação entre a esfera política e a econômica, tal como reconstruído no livro aqui comentado) e que só tomando grande distância deste diagnóstico poderemos ver o que em sua teoria não está totalmente ultrapassa do 35. Dito de forma muito direta, a teoria habermasiana foi forjada em uma situação social muito peculiar e excepcional, a do Estado de Bem-Estar social amplo e vigoroso que esteve vigente na Alemanha do pós-guerra em uma época de imensa prosperidade econômica que se refletiu em melhorias generalizadas no padrão de vida. Hobsbawn, na Era dos extremos, designa tal período como “a era de ouro” do de resto catastrófico “breve século XX”, embora ressalte que, se é certo que praticamente toda a população europeia (ocidental) gozou das benesses dessa época, nem todo o resto do mundo teve tal sorte 36. Na época, estava bem assentada a crença de que tais benesses seriam duradouras e se disseminariam aos poucos pelo mundo, e tal crença estava tão arraigada no pensamento habermasiano que no término do artigo “trabalho e interação” ele afirmava que “apesar da fome reinar ainda sobre dois terços da população mundial, a eliminação da fome já não é nenhuma utopia no sentido pejorativo” 37. Se lhe parecia que a fome e a miséria poderiam estar com os dias contados, o mesmo não ocorria a respeito da servidão e da humilhação, e por isso Habermas se dirige de forma cada vez mais enfática aos conflitos que não podem ser chamados de redistributivos ou, em seu linguajar, não dizem res peito à esfera do trabalho. É evidente que nem o mais otimista dos analistas sociais acredita hoje que a fome possa acabar num futuro próximo. Na verdade, a quantia de pessoas passando fome no mundo se estabilizou em um patamar altíssimo (870 milhões de pessoas, segundo os dados da FAO em 2013) e é muito provável que, em consequência da atual crise econômica e também por causa do aquecimento global, volte a aumentar. Quando o Estado de Bem-Estar social entra em crise, ao longo dos anos oitenta, Habermas endossa o coro liberal que vê no excesso de regulação sobre o mercado uma patologia. Na verdade, ele chega mesmo a afirmar coisas que se parecem muito mais com a pregação neoliberal do que com a teoria crítica, tal como a tese de que sociedades complexas como as nossas “não podem se reproduzir se não deixam intacta a lógica de auto-orientação de uma economia regulada pelos mercados” 38. É difícil pensar numa afirmação que pode ser considerada mais refutada do que essa pelos aconteci mentos dos últimos tempos. Uma teoria crítica hoje não pode deixar de lado o mercado capitalista e os malefícios dele decorrentes como se fossem danos necessários à autorreprodução material da sociedade. Isto nos afasta terminantemente do diagnóstico habermasiano. Melo, contudo, cita a frase recém referida de forma positiva, anuindo com seu conteúdo 39.

O fato de endossar sem mais o datado diagnóstico de Habermas se reflete em diversos âmbitos do livro de Melo. Assim, com toda razão, ele diz que os “novos movimentos sociais” fazem demandas que se diferenciam daquelas do movimento operário tradicional, mas parece considerar como novos movimentos apenas aqueles de meados do século passado cujas reivindicações básicas eram por direitos civis.

Mas será que não surgiu nada de novo neste ínterim? Os dias de ação global na década de noventa, assim como o Occupy Wall Street ou mesmo o Movimento Passe Livre têm demandas muito distintas daquelas. As demandas de tais movimentos não podem encontrar espaço na crença de que a emancipação diz respeito apenas a formas de vida, e não a própria esfera da sociedade, uma vez que ou todos vivemos numa cidade na qual o transporte público seja eficiente e voltado para as pessoas, não para o lucro, ou ninguém pode ver-se emancipado do trânsito caótico que inferniza a vida dos habitantes de qualquer cidade mediana ou maior do que isso, exceto talvez os riquíssimos que desfilam pelo céu em seus helicópteros (aliás, isto já era válido para então, pois também a emancipação do medo da possibilidade de eclosão de uma guerra nuclear só pode ser coletiva, ou melhor, universal) 40.

Ademais, diversas vezes ele afirma que o ideal socialista clássico perdeu seu referencial concreto, que as ideias precisam estar ancoradas de alguma forma na realidade. Mas isto não é válido, infelizmente, também para o ideal de democracia deliberativa de Habermas? A distância que separa nossas democracias realmente existentes da ver dadeira democracia deliberativa habermasiana não é tão gigantesca quanto aquela que os marxistas mais bem intencionados afirmavam haver entre o socialismo realmente existente e o verdadeiro ideal socialista? Melo acredita que não. Isto porque a democracia deliberativa não é apenas um experimento mental, mas algo latente nas nossas democracias de massa. Mas isto nos coloca num dilema em que é difícil decidir qual alternativa consegue ser pior: ou aceitamos o sistema político atual como legítimo, como democrático, e afirmamos assim que a democracia realmente existente já é a democracia deliberativa, mas aí temos de reconhecer que um sistema político incapaz de dar fim mesmo à fome (e outras formas extremas de sujeição) em meio a uma abundância material nunca antes vista em nada é emancipatório; ou, ao contrário, afirmamos que o sistema político atual é ilegítimo, uma pálida imitação da verdadeira democracia, mas com isso apelamos para um ideal de modo algum ancorado na realidade. Ora, o ideal habermasiano é sem dúvida bonito e digno de valor, mas tão idealiza do e abstrato quanto o projeto kantiano para a paz perpétua.

Por fim, voltando à questão da imbricação entre economia e política, Melo tenta, em seu livro, mostrar que o dilema reforma versus revolução não faz mais sentido nos dias de hoje, pois a esquerda cai em impasses insanáveis tanto ao tentar suprimir o capitalismo quanto ao tentar reformá-lo. A opção habermasiana, contudo, mostra impas se ainda maior, verdadeiro cul de sac : é preciso, ao mesmo tempo, controlar o sistema econômico e deixar intacta a sua lógica de autor regulação; impedir a colonização de outras esferas pelos imperativos econômicos sem, no entanto, colocar em risco a própria saúde do capitalismo. Ora, isto é uma miragem. Diante do dilema reforma/revolução não há terceira via, salvo sem deixar de ser esquerda, i.e., sem deixar de combater as desigualdades sociais, e resignar-se ao capita lismo atualmente existente como se este fosse o melhor dos mundos possíveis. Ao fim e ao cabo é o que parece fazer Habermas. Parece-me não haver escolha mais equivocada.

Notas

1 Agradeço os comentários e críticas de Alessandro Pinzani e Denílson Werle

2 MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação. São Paulo: Saraiva, 2013, p.137.

3 Idem, p. 126.

4 Idem, p. 140.

5 Idem, p. 141.

6 Idem, p. 179.

7 Idem, p. 186

8 Idem, p. 191.

9 Idem, p. 192.

10 Idem, p. 191.

11 Idem, p. 225.

12 Idem, p. 224.

13 Idem, p. 271.

14 Idem, p. 295.

15 Idem, p. 316.

16 Idem, p. 319.

17 Idem, p. 340.

18 Algo que vai contra a sua própria observação de que “a teoria crítica não pode reproduzir acriticamente a voz do movimento social. Marx não havia feito isso” (MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação, p. 268).

19 Cf. ZIZEK, S. O filósofo estatal. Folha de São Paulo, 24 de Março de 2002, disponível em:    < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2403200206. htm>.

20 O conceito de Estado centauro é desenvolvido por Loïc Wacquant em “Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente”. Wacquant afirma que o Estado centauro: “exibe rostos opostos nos dois extremos da estrutura de classes: ele é edificante e ‘libertador’ no topo, onde atua para alavancar os recursos e expandir as opções de vida dos detentores de capital econômico e cultural; mas é penalizador e restritivo na base, quando se trata de administrar as populações desestabilizadas pelo aprofundamento da desigualdade e pela difusão da insegurança do trabalho e da inquietação étnica. O neoliberalismo realmente existente exalta o ‘ laissez faire et laissez passer ’ para os dominantes, mas se mostra paternalista e intruso para com os subalternos” (WACQUANT L. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, v. 25, n. 66, 2012, p. 512).

21 Uma boa discussão sobre este assunto se encontra no debate entre Pinzani (2009) e Araújo (2009). In: PINZANI, A. et al. O Pensamento vivo de Habermas. Uma visão interdisciplinar. Florianópolis: Nefipo, 2009, p. 211-228.

22 Para citar apenas um exemplo: em Teoria do agir comunicativo Habermas fala, se referindo a O Capital, que “o valor de uso está para o valor de troca assim como a essência está para a aparência” (HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 614), provavelmente querendo dizer que “o valor está para o valor de troca assim como a essência está para a aparência”, correção que por si só já impede a rejeição em bloco por parte de Habermas das obras de Backhaus, Krahl, Reichelt e outros. É conveniente recordar que tais categorias (valor, valor de troca, valor de uso) são termos -chave da crítica da economia política de Marx.

23 MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação, pp. 34, 108-9, 182. Habermas também interpreta assim tais categorias em: HABERMAS, J. A Crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Novos Estudos CEBRAP, n. 18, 1987, pp. 105-6.

24 MARX, K. O Capital. Livro I, Volume I. São Paulo: Nova Cultural, 1985, pp. 49-53.

25 MELO, R. Marx e Habermas Teoria crítica e os sentidos da emancipação, p. 123.

26 MARX, K. Introdução à Para a crítica da economia política. In: Para a crítica da economia política; Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes; A economia vulgar. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 16.

27 MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação, p. 179.

28 Idem, ibidem.

29 Cf. Idem, p. 180.

30 Não deixa de ser curioso observar que Melo, seguindo Cohen, faz uma crí tica a Marx que o próprio Marx havia feito a outros críticos de sua época, a saber, a de achar que só os proletários sofriam nas condições atuais. Cito um trecho de Sobre o suicídio, de Marx: “A pretensão dos cidadãos filantropos está fundamentada na ideia de que se trata apenas de dar aos proletários um pouco de pão e de educação, como se somente os trabalhadores definhassem sob as atuais condições sociais, ao passo que, para o restante da sociedade, o mundo tal como existe fosse o melhor dos mundos” (MARX, K. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 22).

31 Cf. MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação, p. 263. Diversas outras afirmações ao longo do livro parecem um tanto descontextualizadas hoje em dia, como, por exemplo, esta: “Mesmo que uma crise econômica pudesse ocorrer algum dia, o argumento que defendia tanto a sua inevitabilidade quanto sua determinação econômica se enfraquece sensivelmente” (p. 222). Ora, a crise atual é antes econômica do que de legitimação.

32 Cf. Idem, p. 341.

33 Idem, p. 42. Não defendo, de forma alguma, que as demandas culturais não tenham muita importância ou mesmo que devam estar subordinadas a outras reivindicações. Apenas constato, seguindo Nancy Fraser, que uma nova esquerda precisa conciliar estes tipos de demandas em vez de seguir opondo uma à outra como ela tem feito, de forma infrutífera, nos últimos decênios. Aliás, penso que o verdadeiro “dilema paralisante” nas forças críticas é justamente este que opõe as demandas por redistribuição às demandas por reconhecimento.

34 Como observa Fraser: “a crítica da sociedade capitalista, crucial para as primeiras gerações, quase desapareceu da agenda da teoria crítica. A crítica centrada na crise capitalista, especialmente, foi declarada reducionista, determinista e ultrapassada. Hoje tais verdades estão em frangalhos” (FRASER, N. Marketization, social protection, emancipation: toward a neo-Polanyian conception of capitalist crisis. In: CALHOUN, C. e DERLUGUIAN, G. (ed.). Business as usual: The roots of the global financial meltdown. New York: New York University Press, 2011, p. 137).

35 A meu ver, o grande legado habermasiano foi a ênfase colocada nos procedimentos. Seria um grande retrocesso voltar a dar atenção somente aos re sultados das políticas sem levar em consideração também o modo como são tomadas as decisões e como elas são postas em prática.

36 Cf. HOBSBAWN, E. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das letras, 1995, pp.253-282.

37 HABERMAS, J. A Crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Novos Estudos CEBRAP, n. 18, 1987, p. 42.

38 HABERMAS, J. O que significa socialismo hoje? Novos Estudos CEBRAP, n. 30, 1991, p. 56. Esta afirmação é problemática não apenas enquanto prescrição, mas igualmente como descrição do que ocorre. O mercado neoliberal não é marcado por uma ausência do Estado, mas pela completa subordinação das sempre presentes intervenções estatais às finalidades mercantis (para uma análise mais adequada a respeito disso, cf. WACQUANT L. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, v. 25, n. 66, 2012).

39 MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação, p. 250.

40 A emancipação sempre se refere a algo de que é preciso libertar-se. Insistir em uma emancipação da sociedade significa, portanto, que há coações sociais que impossibilitam a independência e autonomia das pessoas em determina da sociedade. Tais coações podem ser econômicas (como o agente capital na crítica da economia política de Marx, que faz com que toda a sociedade se subordine ao imperativo do crescimento econômico), políticas, urbanas etc.

Referências

ARAÚJO, L. B L. Habermas e a religião na esfera pública: um breve ensaio de interpretação. In: PINZANI, A. et al. O Pensamento vivo de Habermas. Uma visão interdisciplinar. Florianópolis: Nefipo, 2009, p. 229-244.

FRASER, N. Marketization, social protection, emancipation: toward a neo-Polanyian conception of capitalist crisis. In: CALHOUN, C. e DERLUGUIAN, G. (ed.). Business as usual: The roots of the global financial meltdown. New York: New York University Press, 2011, pp. 137-157.

HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

_____________. A Crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Novos Estudos CEBRAP, n. 18, 1987, p. 103-114.

_____________. O que significa socialismo hoje? Novos Estudos CEBRAP, n. 30, 1991, p. 43-61.

_____________. Trabalho e interação. In: Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa: Edições 70, 1987.

HOBSBAWN, E. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das letras, 1995.

MARX, K. Introdução à Para a crítica da economia política. In: Para a crítica da economia política; Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes; A economia vulgar. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

_________. O Capital. Livro I, Volume I. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

_________. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo, 2006.

MELO, R. Marx e Habermas. Teoria crítica e os sentidos da emancipação. São Paulo: Saraiva, 2013.

PINZANI, A. Fé e saber? Sobre alguns mal-entendidos relativos a Habermas e à religião. In: PINZANI, A. et al. O Pensamento vivo de Habermas. Uma visão interdisciplinar. Florianópolis: Nefipo, 2009, p. 211-228.

WACQUANT L. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, v. 25, n. 66, 2012, p. 505-518.

ZIZEK, S. O filósofo estatal. Folha de São Paulo, 24 de Março de 2002, disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/ fs2403200206.htm>.

Amaro Fleck – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]

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Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 19311938) – HEIDEGGER (C-FA)

HEIDEGGER, Martin. Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 19311938) Vol. 94. Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014. Resenha de: HOEPFNER, Soraya Guimarães. Começo e fim da filosofia. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 19 n.2 Jul-Dez, 2014.

O primeiro volume dos Cadernos Pretos de Martin Heidegger, Überlegungen II-IV (Schwarze Hefte 1931-38), inaugura um último capítulo no processo de publicação das obras completas do filósofo, conforme cuidadosamente planejado por ele. Com o lançamento do presente livro, tornaram-se públicos os primeiros cinco cadernos da série, muito provavelmente organizados por Heidegger de modo a alinhá-los a uma determinada cronologia de eventos mundiais. Os anos cobertos pelo volume 94, do qual trata a presente resenha, coincidem justamente com aqueles decisivos, que antecedem a 2ª Guerra Mundial.

Por diferentes razões, a seguir explicitadas, a publicação dos Cadernos poderia ser vista como uma espécie de “o começo do fim”. Primeiramente, ela abre a possibilidade de pôr fim à pergunta fechada, não-filosófica, que há décadas se ocupa de buscar indícios concretos de uma postura comprovadamente antissemita de Heidegger. Visto que o presente volume e os subsequentes respondem categoricamente a essa questão com um sim, abre-se, por sua vez, a possibilidade de colocarmos um ponto final nessa pergunta, ou seja, a possibilidade de libertação para que nos voltemos a uma discussão eminentemente filosófica. Este “sim” como resposta à primeira pergunta, no entanto, não é fácil de ser assimilado, aceito, de modo que a publicação dos Cadernos também pode representar para os estudos heideggerianos um fim, duradouro, ocasionado pelo ofuscamento completo da discussão filosófica. Essa espécie de desvirtuamento é em parte alimentada pela hipótese de “contaminação” 1 do projeto filosófico de Heidegger por ideias fascistas e racistas, as quais, por razões óbvias, não queremos e não devemos nós mesmos jamais nos associar.

Para aqueles que se decidirem pela questão filosófica, considerando que seja possível para nós encontrarmos uma postura adequada diante do conteúdo polêmico das declarações, defendemos uma leitura dos Cadernos centrada na discussão de um outro tipo de começo e fim. Para quem tem familiaridade com a obra heideggeriana, esse tópico não é necessariamente novidade, trata-se mais precisamente do pensamento sobre o começo da filosofia – com os gregos – e sobre o fim da filosofia no Ocidente, no berço do nascimento da ciência e da técnica moderna. Desse modo, como pretendemos demonstrar, o primeiro volume dos Cadernos Pretos se apresenta como uma dramática narrativa filosófica sobre o começo e o fim da filosofia, enquanto também um começo e fim de mundo em tempos de guerra; uma discussão diante da qual, se compararmos o atual jogo de forças e atores nos bastidores da academia para salvar ou sepultar a filosofia de Heidegger, não passaria de mero prosaísmo.

Assim, os Cadernos Pretos, com seu “estilo único” 2, conforme observado pelo editor Peter Trawny em seu epílogo, colocam o leitor em contato com uma espécie de genealogia do pensamento heideggeriano; uma cuidadosa cartografia de suas inspirações, palavras-guia, intuições filosóficas de mundo, que parecem pontuar meticulosamente seus insights filosóficos ao longo dos anos de vida, ensino, filosofia. Em seu conjunto, as notas, que têm um tom extremamente pessoal, carregado de agressividade e inquietação com seu tempo, ilustram uma espécie de bastidores inéditos de uma filosofia que já tão bem conhecemos. No entanto, é importante observar que, nesses bastidores, o filósofo também está em atuação: as notas não foram escritas “no calor do momento”, mas, sim, devidamente revisadas, trabalhadas, meticulosamente organizadas pelo próprio filósofo. Nessa perspectiva, as Considerações se mostram como elucubrações, bem ao sentido da palavra latina lucubratione, “estudos noturnos, à luz da lamparina” 3, que mais tarde ganhou o sentido de referir-se a algo “penosamente trabalhado” (com grande esforço mental). Assim, enquanto elucubrações, as considerações do primeiro volume mostram se como notas escritas à sombra da razão que encobriu o mundo naqueles anos 30. Teriam esses tempos sombrios, de pouca claridade, também embaçado a visão do pensador de Ser e Tempo ? Para além de defesa ou acusação, podemos dizer, contudo, que foram tempos difíceis, que exigiram do filósofo uma resposta à qual ele não se furtou à tentativa de elaborar (isso basta?). Desse modo, quer sejam as notas delírios, estreitamento de visão, megalomania ou desespero, ou todos estes atributos juntos, elas são ainda assim um testemunho de uma filosofia lidando com o seu tempo – e que por isso de seu tempo, daquele hoje, não podem ser isolados, nem mais exatamente alcança dos. Todo olhar hoje resta uma aproximação

Nossa leitura dos Cadernos parte então da necessidade de se levar em conta o seu caráter de ser uma obra que dá conta de uma obra; um estilo que, embora ainda precise ser melhor compreendido, não deixa dúvidas de que não se trata de anotações de diários secretos que por alguma razão vieram à tona à revelia do seu autor. Além disso, não obstante o esoterismo, misticismo, devemos igualmente levar em conta que somos nós os principais destinatários dessa filosofia; justa mente nós (sociedade, acadêmicos, povo, senso comum), a quem o pensador impiedosamente se dirige com desprezo, ira, consternação. É nessa perspectiva filosófica, que todavia não pretende minimizar a delicada questão histórico-pessoal, que fazemos e propomos uma leitura dos Cadernos II-IV : como o registro do pensamento da filosofia sobre seu tempo, que nos atinge e nos diz respeito no hoje

Com relação a uma metodologia de leitura do primeiro volume, observamos a necessidade de ter em mente diferentes planos de relações lógico-filosóficas, necessárias para uma tentativa de compreensão do lugar dos Cadernos na obra de Heidegger. O primeiro plano é interno: diz respeito à interrelação dos cadernos, no contexto particular de seu estilo inédito de filosofar. O volume 94 foi imediatamente seguido pela publicação de outros nove cadernos, respectivamente organizados nos volumes 95 4 e 96 5. Juntos, os primeiros três livros reúnem dez anos de considerações filosóficas que, se não totalmente escritas naquele momento, foram definitivamente organizadas pelo próprio Heidegger para constarem entre os anos de 1931 a 1941. Mas isso não é tudo: esse conjunto inicial de 14 cadernos ainda será segui do por 20 outros, agrupados em diferentes volumes, intitulados respectivamente “Notas”, “Quatro Cadernos”, “Vigilliae”, “Notturno”, “Indícios” e “Considerações Preliminares”, a serem publicados nos próximos anos. Em suma, aquilo que chamamos de Cadernos Pretos é o registro de 40 anos de considerações filosóficas. Sugere-se, portanto, prudência, de modo que ao nos ocuparmos da leitura do primeiro volume, é preciso que mantenhamos essa visão do todo, para podermos assim dar a devida medida e proporção de representatividade esse volume, que é apenas o primeiro contato com uma obra dentro da obra de Heidegger.

Também é precisamente por esse caráter parentético dos Cadernos que sua leitura requer que estabeleçamos ainda um segundo plano de relação: o alinhamento externo entre o conteúdo dos Cadernos e os volumes publicados das Obras Completas que lhe são contemporâneos. Em nosso caso particular de leitura do Vol. 94, isso quer dizer deixar ecoar diversos outros escritos, a saber: os cursos ministrados naquele período, como o primeiro volume do curso sobre Nietzsche 6 e outros estudos nietzschianos dos quais Heidegger se ocupava na época; os cursos dedicados aos antigos e pré-socráticos no início dos anos 30 7 ; e os diversos cursos em torno da questão de Ser e verdade 8, linguagem e lógica 9 ; metafísica 10 ; além dos seminários sobre Hegel, Kant, Schelling 11 e, não menos importante para o contexto dos Cadernos II-IV, o curso sobre os poemas “Germânia” e “O Reno”, de Hölderlin 12. Vale ainda salientar que os cadernos desse período, 1931-38, além de con temporâneos dos diversos cursos resumidamente citados acima, estão diretamente ligados a duas importantes obras desse mesmo período: as Contribuições à Filosofia 13 e Meditação 14, ambas escritas entre os anos de 1936 e 38. Somam-se aos seminários, ainda, inúmeras conferências proferidas em diferentes ocasiões ao longo desses nove anos retratados no primeiro volume, todos extremamente conectados entre si – ainda que não possamos precisar exatamente de que forma, que não a óbvia relação cronológica

Os Cadernos têm ainda outra particularidade. Neles, como talvez em nenhuma outra obra publicada na filosofia, se encontram, de maneira exemplar, ainda mais fortemente borrados os limites entre a ideia que fazemos da figura do filósofo e do homem por trás da filosofia. Essa linha divisória imaginária, que estabelecemos ao entrar em contato com o pensamento filosófico (de um filósofo), aparece ainda mais tênue, por conta do estilo. Em proporção inversa, se torna ainda mais vivo o grifo de um conflito entre a ideia que fazemos de uma obra filosófica como “produto de seu autor” (no limite, produto editorial) e a ideia da filosofia como algo que reclama para si o pensamento do pensador. Esta última é a que mais se aproximaria do pensamento heideggeriano, se considerarmos o que significa para Heidegger o evento do que é, o misterioso jogo para além da causalidade na qual algo existe (como produzido). É precisamente a nossa dificuldade em lidar com as coisas fora do âmbito da produtividade, exequibilidade, que nos desafia na leitura dos Cadernos

Assim, eles são uma condensação icônica de vida e obra – homem e filósofo, de modo que, ou bem partimos de uma intepretação que toma ao pé da letra, e letra por letra, o dito de um pensador-autor e lemos essas notas em primeira pessoa como sendo a opinião de Heidegger. Ou bem procuramos entender como realmente possível que a linguagem da filosofia venha à sua fala, que deixe-ver por entre o que está escrito, o ato próprio do pensamento filosófico enquanto correspondência. Apesar da forte impressão causada pelo personalismo das notas, devemos nos esforçar para não perder de vista o seu caráter filosófico, qual seja, o de ser uma resposta do filósofo ao seu tempo, e isto somente na medida em que, sobretudo e primeiramente, este é um corresponder a um tempo de mundo. Nunca é demais frisar que, naquele momento, o tempo de mundo se anunciava em um contexto de revolução, dominação, guerra

Nessa perspectiva, abre-se então um terceiro plano de relação, igualmente crítico para uma metodologia adequada de leitura dos Cadernos. Trata-se de alinhar as notas à sua pertença de mundo. Esse terceiro plano não quer dizer somente estabelecer uma relação histórica com os eventos aos quais as notas, implícita ou explicitamente, se referem. Trata-se de observar um co-pertencimento que é característico do instante filosófico em seu espelhamento do presente, ou seja, de um momento de mundo. Devemos, portanto, para além da factualidade, perceber o caráter fatídico, destinal dos eventos que, no caso deste primeiro volume, representam os anos de triunfo do que começou como o Programa Nacional-Socialista, sua bandeira patriótica de unificação e expansão da Grande Alemanha, e que culminou com a chegada de Adolf Hitler ao poder em 1933. Os anos que se seguem dispensam apresentação, são cinco anos de tensão entre forças mundiais que têm como desfecho o início da 2ª Guerra Mundial. É nesse contexto, no olho do furacão, que se encontrava Heidegger: e também que se encontrava a tarefa da filosofia, enquanto correspondência direta ao apelo do que é – mundo. Desse modo, sugerimos uma leitura do Vol. 94 que, antes de tudo, tenha em perspectiva esses três planos, quais sejam, a sua interrelação com os outros 29 cadernos, observando-se que a grande maioria permanece inédita; sua relação com todo o conjunto de obras escritas em paralelo; sua relação lógica (histórica) e filosófica (historial) com o tempo de mundo no qual eles aparecem. Nessa perspectiva, os Cadernos ganham um outro contorno, mais distante da ideia de notas pessoais, e igualmente mais distante da ideia de um tratado filosófico convencional. Ambas as visões, nas quais somos inclinados a tentar apressadamente encaixar os Cadernos, não são fortuitas. Reconhecemos que este é o resultado da forte impressão deixada, por um lado, pelo tom íntimo, agressivo e direto das notas e, por outro, o tom aforístico e fragmentário das considerações filosóficas nelas contidas.

No tocante aos Cadernos II – IV 15 presentes neste volume, obser vamos inicialmente a peculiaridade do estilo, conforme já menciona do, sobretudo porque ele nos dá uma primeira – e provavelmente falsa – impressão de intimidade com o pensador; de estarmos, durante a experiência da leitura, mais diante do homem que diretamente nos fala do que da (sua) filosofia. Assim, ao lermos as Considerações, temos a impressão de estarmos finalmente diante do “verdadeiro” Heidegger, o homem desnudado do personagem. Nesse caso, entramos em contato com um homem visivelmente desiludido, perturbado, cheio de ira e de desprezo por uma determinada conjuntura de mundo representada pela “crítica cultural”, “visão de mundo”, “nova ciência”, “filosofia da cultura” 16, etc. É essa conjuntura que Heidegger representa categoricamente como começo de um longo fim da filosofia. Esse fim, no entanto, não é encarado de maneira derrotista, embora definitivamente de maneira apocalíptica. Trata-se de um fim conquistado. Com ele, se abre, paradoxalmente, um momento único de tudo ou nada, de possibilidade de um novo começo. Diante desse fim, o filósofo é “o filósofo como criatura solitária; porém, não sozinho com o seu pequeno ‘si mesmo’ – mas, sim com o mundo, e esse acima de tudo ‘um com o outro’” 17. O filósofo, portanto, atende a uma convocação destinal, repetidamente referida como um momento de “empodera mento de Ser” 18, de modo que vemos que não se trata, para Heidegger, de uma cruzada pessoal, mas de uma decisão historial

Assim, o destino da filosofia alinha-se, confunde-se com o destino do mundo. Trata-se de fins e começos que Heidegger parece jamais ver dissociados. Esse momento decisivo no contexto histórico-político, aparece nos Cadernos como um momento de decisão historial do Dasein. Aquilo que está em xeque, portanto, no seu ver, é muito maior que o jogo de forças de poder territorial e racial, de um povo (alemão) sobre outros povos. Trata-se da possibilidade de consagração de um modo de ser. Somente nesse modo de ser “ideal”, que curiosamente deveria ser almejado e desejado pelo povo alemão, a filosofia heideggeriana – obviamente, para Heidegger, a filosofia per si – é possível. Se abrirmos espaço para conjugar esse jogo de espelhos entre os planos ôntico e ontológico, sem contudo ignorar sua natureza problemática, podemos de certo modo compreender de antemão, guardadas todas as reservas, aquilo que explicitamente transparece, em especial no Caderno III : a esperança de Heidegger na promessa da Revolução Nacional-Socialista, sua crença no privilégio do povo alemão, sua quase fobia pela cientificização e tecnificação do mundo. Heidegger parece mergulhar em uma situação de extremos para tentar salvar a filosofia da nova forma dominante da ciência e institucionalização da vida que, na sua visão, promoviam a “escolarização” da universidade e, com isso “a perturbação de todo saber verdadeiro, o sufocamento de todo originário e contínuo desejo de saber, o impedimento de qualquer tentativa de abertura de Ser espiritual.” 19. O contra-ataque é então pensado como uma esperança na Revolução Nacional-Socialista, na forma de uma “metapolítica” 20 que, na prática, trata-se também de uma reforma universitária, que depende sobretudo de um pensamento profundo de transformação no seio do povo alemão. “O fim da ‘filosofia’. – Devemos por um fim nela e com isso preparar uma – Metapolítica – completamente diferente. E, de acordo com ela, igualmente a transformação da ciência.” 21.Esse crescendo dramático ilustra a vinculação clara do projeto filosófico de Heidegger aos acontecimentos de mundo naquele momento. Obviamente, a esperança é passageira, o Nacional-Socialismo não consegue manter a expectativa de Heidegger de ter outro objetivo maior por trás do seu “fazer e dizer” 22. Mais tarde, por ocasião da entrega de seu cargo de reitor da Universidade de Freiburg, o filósofo expressa: “Viva à mediocridade e à zoadaria!” 23, um dos muitos exemplos do tom particularmente ácido das notas dessa época.

A questão do triunfo dessa mediocridade, da “mera teoria”, da “ciência politizada” sobre a filosofia não surge, porém, do nada, no contexto iminente da revolução. Este é um inimigo anunciado, presente desde as primeiras notas e também em escritos mais antigos.

Ainda no Caderno II nos deparamos com esse cenário polarizado (típico de uma situação de guerra), no qual Heidegger articula um pensa mento de ataque à técnica e à ciência moderna, ao jornalismo, ao biologismo, aos colegas, ao senso comum. Por diversas vezes, ele se refere a “um mundo em reformas” 24 e descreve o homem em sua “estranheza e estranhamento da essência de Ser” (p. 43)” 25, entregue à “escrevinhação” 26, à falsa pergunta, que somente pode ser combatida por uma obstinada retomada da pergunta original, aquela do “grande começo”, interposta pelos gregos – antes da ciência moderna.

Especialmente com relação aos gregos, é necessário que façamos um parêntese: não obstante reconheçamos a força e autoridade do argumento defendido com propriedade pelo editor dos Cadernos, optamos por enfatizar um outro aspecto na questão chave da conexão entre alemães e gregos, que se apresenta insistentemente em todos os cinco cadernos deste primeiro volume, e também nos volumes posteriores. Para resumir brevemente o argumento de Trawny apresentado em seu livro 27, o autor elabora a forte hipótese de existência de um único projeto filosófico heideggeriano pós Ser e Tempo, esse aquele que consiste na tarefa de demonstrar o vínculo historial entre o pensamento principial dos gregos e aquele que, na visão de Heidegger, seria a sua continuação imediata: o pensamento alemão, mais precisamente o pensamento de Hölderlin e Nietzsche, culminando com o seu próprio pensamento heideggeriano, este conclamado a ser decisivo naquele momento histórico de revolução. Reconhecidamente, são muitas as passagens que descrevem os gregos como o “grande começo”, e que igualmente se referem à proposta heideggeriana como o “outro começo” ou “segundo começo”, como a que se segue: “A filosofia se tornou difícil, mais difícil talvez que seu grande primeiro começo – porque trata-se do segundo.” 28. Nesse contexto decisivo, está evidente como Heidegger atribui à filosofia – e ao povo alemão – a tarefa de conduzir o projeto de reinstauração da pergunta por Ser.

Não obstante a propriedade dessa interpretação, defendemos que também é possível dar uma outra ênfase à motivação para essa conexão greco-teutônica que seja diferente da questão racial (de povos) e sobretudo da questão racista. Assim, preferimos seguir a linha de raciocínio análogo àquela em que se investiga e até mesmo se legitima a autoria de um crime: é necessário um motivo. Desse modo, observamos como outro possível motivo nessa relação não necessariamente a questão dos gregos x alemães per si, mas a configuração de um fenômeno em particular, qual seja: o pensar, antes da ciência moderna, e o fim do pensar (na visão de Heidegger), advindo a consagração da ciência moderna. Tratar-se-ia, portanto, de uma vinculação desses dois momentos, uma tentativa de reencenar um modo de ser particularmente contra-científico, o qual a historicidade do Ser [Seinsgechichtlichkeit] demonstra ter sido certa vez possível – justamente com os gregos.Nesse sentido, defendemos que uma via de compreensão da vinculação desses dois momentos historiais pode também se dar através do foco na importância que tem a questão da nova ciência (técnica moderna) naquele momento de mundo e na filosofia de Heidegger. Assim, a ciência moderna, “o novo slogan” 29 ou a ciência política, a qual ele compara com um “botar o carro diante dos bois” 30, surge assim como o seu grande inimigo (da filosofia) de modo constante e insistente em todos os cinco cadernos. De modo geral, a ciência é descrita com desprezo, como transformada em algo ao qual seu nome não mais corresponde, como aquela que aniquila o pensamento, que impede toda e qualquer possibilidade de acesso ao pensamento do sentido de Ser, às coisas em si; um tempo onde “conhecemos tanto e sabemos tão pouco” 31. A pergunta “Por que agora nenhuma coisa pode mais descansar em si mesma e em sua essência?” 32 iconiza essa inquietação diante do aviltamento da possibilidades do pensar filosófico, assolado pelo avanço da nova configuração da ciência.

Tendo a conjuntura na qual se dá o fenômeno da ciência moderna um papel tão importante, parece então plausível pensar que Heidegger tenha buscado observar e compreender nos gregos como se dava o mundo pré-ciência e, a partir daí, pensar como seria possível um mundo pós-ciência – o fim da filosofia para o começo de um “novo saber” 33, e esse saber, engendrado como em oposição ao mero conhecer. O tempo dos gregos é, portanto, citado com admiração como um tempo de um mundo “inteiramente sem ‘ciência’” 34 e que fez nascer a filosofia. Como narrado nos Cadernos, os gregos ainda não haviam caído no “criticismo da ‘mera especulação’” da ciência, esse no qual a filosofia é “desencorajada e se torna constantemente suspeita” 35. Assim, torna-se clara uma motivação por ensejar e conduzir um novo momento pós-ciência, de “fim da universidade e começo do novo saber” 36, que anseia se espelhar em um momento parecido com aquele ocorrido no berço da filosofia. A questão, portanto, se dá circunstancialmente pelo povo (grego, alemão), tratando-se mais de uma questão de afirmação da filosofia diante de seu fim iminente; não de mera nostalgia ou mero racismo.

Essa linha de pensamento, no entanto, não diminui a gravidade ética de um pensamento que se articula com base nos privilégios entre determinados povos, tampouco torna menos espantosa a constatação de seu caráter problemático do ponto de vista filosófico. Aquele presente vivido por Heidegger não poderia jamais representar um marco divisório a partir do qual se consolidaria um hiato – com vistas a colocar entre parênteses quase dois mil anos de história. O instante filosófico que Heidegger ensejou inaugurar jamais poderia ser bem -sucedido em seu objetivo de demarcar, naquele presente, a instauração de um momento pós-ciência. Como bem sabemos, e isso de acordo com a própria filosofia heideggeriana, aquele tempo presente dos anos 30 é também um presente que herdamos dos gregos, talvez mais um “presente de grego”, mas de todo modo algo que o próprio Heidegger claramente aborda em pelo menos uma de suas obras contemporâneas a estes cadernos, aqui nos referimos ao curso sobre Aristóteles 37, de 1931.

Nele também está clara a constatação de uma condição especial de aproximação dos gregos com o que é, com as coisas, que também já se mostra como um lançar-se do Dasein, como o início de um estranhamento. A saber, essa condição, enquanto historial, desde sempre existiu, e Heidegger está todo o tempo, embora contraditoriamente, ciente dela, como nessa passagem onde expressa sua consternação: “Como, nos Antigos, o desdobramento de Ser morreu e paralisou tão rápida e completamente.” 38. Assim, de acordo com o próprio filósofo, também os gregos foram um povo ao modo de uma “queda”; aliás, com o próprio filósofo aprendemos que só é possível ser povo (em primeira instância, Dasein ) ao modo dessa queda, desse lançar-se. Portanto, é no mínimo curioso pensar como Heidegger poderia defender veementemente a possibilidade de uma outra – e nova – condição de aproximação com as coisas que comece onde deva acabar a ciência moderna. É possível e plausível um projeto como tal? Quereria Heidegger, sobretudo, negar o inevitável, qual seja, a transformação gradativa e a consumação da filosofia em um outro tipo de saber, esse que vivemos hoje? Aparentemente indiferente a essa impossibilidade existencial, ele insiste: “Nós devemos nos reposicionar no grande começo”39 Sobretudo, é ainda mais desconcertante pensar que esse projeto de recondução tenha sido gestado, naquele momento, em termos de uma relação de mútua dependência com a Revolução Nacional-Socialista.

Igualmente problemático é pensar o que de fato significa a sua ira contra o “homem que vai toda semana ao cinema” 40, o que significa propriamente, fora da perspectiva comportamental/cultural que, aliás, ele veementemente refuta, o seu advogar por um modo de ser no qual haja espaço – e que esse seja o único espaço – para as grandes questões da filosofia, sobretudo para a pergunta pelo sentido de Ser.

A depreciação da filosofia contra a qual Heidegger luta furiosamente é encarada como “uma guerra contra a desenssencialização da essência” 41, da qual o filósofo parece querer salvar o homem comum, que contraditoriamente parece ser ao mesmo tempo o principal agente desta desgraça.

Por essa e muitas outras razões, a questão do povo não se deixa elucidar facilmente. É preciso uma análise cuidadosa dos Cadernos III e IV, na qual, para entendermos como os alemães podem ser “os protetores e executores do empoderamento de Ser” 42, precisamos levar em conta as diferentes gradações entre as ideias de povo, do alemão, das diferentes instâncias de raça que o filósofo articula. Essa é, aliás, uma discussão que também não é inédita, mas extensivamente abordada de maneira mais didática em uma outra obra contemporânea a esses Cadernos, o curso sobre Lógica 43. Nele, há uma detalhada tentativa de responder à pergunta sobre quem somos “nós” conduzida a partir de uma reflexão sobre conceitos caros à antropologia, como “ser humano”, “si mesmo”, “comunidade” e, consequentemente, “raça” e “povo”. De modo geral, o que fica claro nos Cadernos é que a questão do povo para Heidegger não se dá primeiramente em um viés cultural, biológico, tão pouco meramente historiográfico – o que em princípio também pode ser usado como um argumento de refutação para o seu alegado racismo. A questão está atrelada, primeiramente, ao reconhecimento do caráter múltiplo da essência do povo, da qual se sobressai a ideia de povo como “incorporado no Ser” 44.

A essa altura, denotamos que, passada a euforia com o regime Nacional-Socialista, Heidegger intensifica e concentra suas observações sobre o caráter maquínico da técnica, em sua extrema relação inclusive com a própria concepção de povo, sendo por fim o Caderno VI uma busca pela compreensão desta destinação historial, que culmina na ainda mais extrema tecnificação, a “queda” (p. 485) do povo, da academia, na compreensão calculadora de mundo. Esse “acabamento” dos tempos modernos tem apenas como saída a possibilidade da filosofia de reencontrar sua essência, manifesta na retomada e sustentação do exercício da pergunta por Ser: “Começar o outro começo… Se voltar para o âmbito do que é digno de ser questionado.” (p. 514).Entra em cena um jogo de proporções: o “imenso”, “grande”, “pequeno”, de medidas contra a cultura, tida como “uma forma de barbarismo” (p.515), em favor do pensar o sentido [Besinnung], contra a “maquinação” e o pensamento “calculador”. Esse jogo de medidas e desmesuras encerra-se, curiosamente de maneira megalômana, em uma comparação de momentos chave na história do Pensamento Ocidental, marcados pelo aparecimento e desaparecimento de Hölderlin, Wagner, Nietzsche, e culminando com a chegada ao mundo do próprio Heidegger !).

A desmesura das Considerações é desconcertante, mas como tentamos denotar anteriormente, proporcional em intensidade àquele momento. A correspondência com aquele momento, como também tentamos evidenciar, se dá não apenas circunstancialmente, mas no âmbito de uma temporalidade especial que é a do instante filosófico.

Compreender ou julgar o teor dos Cadernos, nesse caso, é uma tarefa que precisa partir do conjugar diversas esferas superpostas, do político e do filosófico, do público e do privado. Sobretudo para um filósofo que naquele momento atribui especial importância ao “silenciar”.

A eloquência vociferante de Heidegger nos atinge em nosso hoje como algo fora de proporção, e é quase impossível equalizar seu tom.

Assim, na leitura dos Cadernos II-VI e provavelmente na leitura de todos os outros que se seguem, nos damos conta que nos cabe lidar ainda com uma última e quarta relação, essa que é extemporânea, e que trata de dar conta da significação daqueles escritos – se o considerarmos filosóficos – com o nosso presente. Como o próprio Heidegger parece ter antecipado: “Porque uma filosofia não se deixa jamais refutar ! Porque ela não contém nada de refutável, pois o que há nela é filosofia, ou seja, abertura de Ser…” 45. Se somos nós, do futuro e de hoje, os destinatários dessas Considerações, o desafio de encontrar uma perspectiva que não seja nem apologética nem persecutória talvez comece, justamente, pela compreensão temporal dos limites, de fim e de começo, do dizer da filosofia.

Agradecimentos

A autora torna público seu agradecimento à Prof. Dra. Marcia Cavalcante Sá Schuback, cujos diálogos contribuíram em muito para as impressões ensaiadas nesta resenha.

Notas

1 TRAWNY, P. Heidegger e o mito da conjuração judaica mundial. Rio de Janeiro: Mauad X (No Prelo).

2 TRAWNY, P. Nachwort des Herausgebers. In: HEIDEGGER, M. Überlegungen II-IV, p. 530. (Tradução nossa e em todas as passagens a seguir).

3 VARRO. On the Latin Language. Vol. I. Translated by Roland G. Kent. London: William Heinemann, 1938. p. 269.

4 HEIDEGGER, M. Überlegungen VII-XI (Schwarze Hefte 1938/39). Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014

5HEIDEGGER, M. Überlegungen XII-XV (Schwarze Hefte 1933/41). Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014

6 HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. I. Tradução de Marco A. Casanova. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2007. Também os inéditos Vol. 43 (vontade de poder como arte); o vol. 44 (eterno retorno do mesmo);

7 São, respectivamente, vol. 33 (Aristóteles); vol. 34 (Platão); Vol 35 (Anaximandro e Parmênides)

8 HEIDEGGER, M. Ser e Verdade. Tradução de Emmanuel C. Leão. Petrópolis: Vozes, 2007.

9 HEIDEGGER, M. Über Logik als Frage nach dem Wesen der Sprache. Ed. Günther Seubold. Frankfurt: V. Klostermann, 1998; IDEM. Grundfragen der Philosophie. Ausgewählte „Probleme“ der „Logik“ Ed. Friedrich-Wilhelm v. Herrmann. Frankfurt, 1992.

10 HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Tradução de Emmanuel C. Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999

11 Respectivamente, vol. 32 (Hegel); vol. 41 (Kant); vol. 42 (Schelling)

12 HEIDEGGER, M. Hölderlins Hymnen „Germanien“ und „Der Rhein“. Ed. Susanne Ziegler. Franfkurt: V. Klostermann, 1999

13 HEIDEGGER, M. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) Ed. Friedrich-Wilhelm v. Herrmann. Franfkurt: V. Klostermann, 2003

14 HEIDEGGER, M. Meditação. Tradução de Marco A. Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010.

15 Como esclarece o editor do volume em seu epílogo, cogita-se que um Caderno I jamais tenha existido (a série inicia-se com o número II) ou, se existiu, teria sido destruído por Heidegger. De acordo com Trawny, não há registros ou menção a um primeiro volume. Também não há uma explicação plausível para a sua inexistência. Especulativamente, cogito que tenha sido intenção de Heidegger iniciar com o número dois, fazendo assim uma alusão implícita ao ‘segundo começo’ em relação ao ‘primeiro começo’ com os gregos, questão tratada mais adiante nesta resenha. Ao final de janeiro deste ano, o professor emérito Silvio Vietta anunciou ter em sua posse um outro volume ausente da série, aquele que justamente registra os anos 1945/46 (ver. CAMMAN, A., SOBOCZYNSKI, A.; Eine grundlegende Entwurzelung. Gespräch mit Silvio Vietta. Die Zeit. 30 Jan. 2014).

16 HEIDEGGER, M Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-1938), p. 346.

17 Idem, p. 56 (grifo do autor)

18 Idem, p. 40-41

19 Idem, p. 183

20 Idem, p. 115

21.Idem, ibidem (grifo do autor).

22.Idem, p. 114.

23 Idem, p. 162.

24.Idem, p. 31.

25.Idem, p. 43.

26 Idem, p. 19.

27.TRAWNY, P.Heidegger e o mito da conjuração mundial.

  1. HEIDEGGER, M. Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-1938), p. 244.

29.Idem, p. 175

30.Idem, p. 191.

31.Idem, p. 232.

32.Idem, p. 340.

33.Idem, p. 128.

34.Idem, p. 41.

35.Idem, ibidem.

36.Idem, p.128.

37.HEIDEGGER, M.Metafísica de Aristóteles 1-3. S obre a essência e a realidade da força. Tradução de Enio P Giachini. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

38.HEIDEGGER, M. Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-1938), p. 29

39.Idem, p. 53.

40.Idem, p. 302.

41.Idem, p. 85.

42.Idem, p. 98.

43.HEIDEGGER, M.Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache. Ed. G. Seubold.

Franfkurt: V. Klostermann, 1998.

44.HEIDEGGER, M. Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-1938), p. 521

45.Idem, p. 239 (grifo do autor).

Referências

CAMMAN, A., SOBOCZYNSKI, A.; Eine grundlegende Entwurzelung. Gespräch mit Silvio Vietta Die Zeit. 30 Jan. 2014.

HEIDEGGER, M.Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Vol. 65. Ed. Friedrich-Wilhelm v. Herrmann. Franfkurt: V. Klostermann, 2003.

______.Der Anfang der abendländischen Philosophie. Vol. 35. Ed. Peter Trawny. Frankfurt: V. Klostermann, 2012.

______.Die Frage nach dem Ding. Vol. 41. Frankfurt: V. Klostermann. (no prelo) ______.Grundfragen der Philosophie. Ausgewählte „Probleme“ der „Logik“.  Vol.45. Ed. Friedrich-Wilhelm v. Herrmann. Frankfurt: V. Klostermann, 1992.

______.Hegels Phänomenologie des Geistes. Vol. 32. Ed. Ingtraud Görland. Frankfurt: V. Klostermann, 1997.

_ _____. Hölderlins Hymnen „Germanien“ und „Der Rhein“. Ed. Susanne Ziegler.Franfkurt: V. Klostermann, 1999.

______. Introdução à metafísica. Tradução de Emmanuel C. Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

___ ___.Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache. Vol. 38. Ed. G.Seubold. Franfkurt: V. Klostermann, 1998.

_ _____ Metafísica de Aristóteles 1-3. S obre a essência e a realidade da força. Tradução de Enio P. Giachini. Petrópolis: Editora Vozes, 2007.

______.Meditação. Tradução de Marco A. Casanova. Petrópolis: Vozes, 2010.

______.Nietzsche. Vol. I. Tradução de Marco A. Casanova. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2007.

_ _____.Nietzsche: Der Wille zur Macht als Kunst. Vol. 43. Frankfurt: V. Klostermann. (no prelo)

___ ___.Nietzsches metaphysische Grundstellung im abendländischen Denken. Vol.43. Frankfurt: V. Klostermann. (não publicado)

______.Ser e Verdade. Tradução de Emmanuel C. Leão. Petrópolis: Vozes, 2007.

____ __.Schelling: Vom Wesen der menschlichen Freiheit. Vol. 42. Frankfurt: V. Klostermann. (não publicado)

___ ___.Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-1938)Vol. 94. Ed. Peter Trawny. Franfkurt: Vittorio Klostermann, 2014.

___ ___.Überlegungen VII-XI (Schwarze Hefte 1938/39). Vol. 95. Ed. Peter Trawny. Franfkurt: Vittorio Klostermann, 2014.

__ ____ Überlegungen XII-XV (Schwarze Hefte 1933/41). Vol. 96. Ed. Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2014.

______.Vom Wesen der Wahrheit. Zu Platons Höhlengleichnis und Theätet. Vol.34. Ed. Hermann Mörchen. Frankfurt: V. Klostermann, 1997.

TRAWNY, P.Heidegger e o mito da conjuração judaica mundial. Trad. Soraya Guimarães Hoepfner. Rio de Janeiro: Mauad X, (No Prelo).

VARRO. On the Latin Language. Vol. I. Translated by Roland G. Kent.

London: William Heinemann, 1938. P. 269.

Soraya Guimarães Hoepfner – Doutora em Filosofia pela Universidade federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]

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Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania – REGO; PINZANI (C-FA)

REGO, Walquiria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania, São Paulo: Editora Unesp, 2013. Resenha de MELO, Rúrion. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.19, n.1 Jan./Jun., 2014.

Todos aqueles preocupados com o crescimento econômico, melhora nas condições de vida e diminuição das desigualdades no Brasil deveriam reconhecer os impactos decisivos de certos programas redistributivos sobre a sociedade brasileira, em particular os programas de transferência direta de renda iniciados como estratégia de combate à desigualdade nos anos do governo FHC, mas sensivelmente intensificados durante o governo Lula.1 O Programa Bolsa Família (BF), caracterizado como um programa de transferência direta de renda que procura beneficiar famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo país, certamente se destaca neste rol de políticas compensatórias.2 Porém, muita dúvida tem sido lançada quanto à eficácia e à justificação normativa deste programa. De que maneira podemos compreender o sentido de tal programa no âmbito de um projeto moderno de sociedade? E como medir suas consequências econômicas e sociais na vida de seus concernidos? Gostaria de refletir um pouco sobre tais questões tomando por base a interessante pesquisa publicada por Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani em seu recente livro Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania.

Assumo de início junto com os respectivos autores a ideia de que o BF precisa ser compreendido de um ponto de vista crítico amplo que diz respeito às pretensões próprias de desenvolvimento, modernização e democratização do país. O programa tem um alvo principal que é o combate à pobreza, mas seus efeitos e condicionalidades são imensos, revelando assim um potencial importante para uma série de transformações sem as quais a promessa de um país moderno e democrático não poderia ser cumprida nas condições atuais: seus impactos atingem não apenas a camada pobre e menos favorecida da população em geral, mas mais precisamente as relações de gênero e suas consequências, tais como a estrutura familiar, o escasso horizonte educacional dos filhos, os déficits nutricionais das crianças e a inclusão cívico-política dos beneficiários. Efeitos consideráveis, sem dúvida, em um país dito desenvolvido, moderno e democrático, mas que convive com extrema desigualdade econômica e social, exclusão política, preconceito regional, racial e de gênero, e violação sistemática de direitos humanos, ou seja, a realidade de milhões de brasileiros que ainda estão “completamente fora das heranças mais básicas da civilização” (p. 15).

Nesse sentido, Vozes do Bolsa Família parte de uma cobrança inerente à nossa própria história política. Não deveríamos avaliar os efeitos dos programas redistributivos com a ótica da experiência europeia e americana, por exemplo. Sabe-se que desde pelos menos 1970 foram levados a cabo diversos diagnósticos sobre as crises dos modelos keynesianos e de bem-estar social.3 No caso brasileiro, mais precisamente a partir de 1988 (isto é, após o período do “nacional-desenvolvimentismo”), vislumbramos, pelo contrário, a possibilidade de concretizar a esperança de um Estado social democrático, um projeto de desenvolvimento econômico que não fosse desprovido de um “projeto democrático substantivo” (p. 159).4 Na qualidade de marco determinante de nossa história política recente, a Constituição de 1988 “enuncia um projeto de país e de sociedade” (p. 162), sublinhando a gênese democrática representada pelas demandas das lutas sociais incorporadas à Constituição, sobretudo no que concerne ao tema da “justiça distributiva” assumida então como um “elemento vinculante de todo o sistema normativo” (p. 165).

Mas não é só isso. Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani dão um passo além na medida em que escolhem explicitar um ponto de referência normativo interno aos próprios processos que pretendem investigar e avaliar. Nosso desenvolvimento político permite ser questionado, ademais, do ponto de vista do “projeto da modernidade” por excelência. Tal projeto consiste na “promessa de autonomia (individual e coletiva)” (p. 55-56), uma promessa que a própria modernidade faz e não cumpre por razões que lhes são imanentes. Esse é um déficit específico, portanto, da sociedade capitalista contemporânea, a saber, “prometer autonomia para todos e não lhes oferecer as condições reais (e não meramente formais) para desenvolvê-la” (p. 56).

Um dos aspectos peculiares da abordagem teórica proposta no livro está voltado, assim, à investigação dos efeitos morais e políticos sobre os beneficiários do programa tendo em vista mais precisamente uma concepção de autonomia individual baseada, segundo os autores, no capability approach desenvolvido por Amartya Sen e Martha Nussbaum.5 Trata-se de entender antes de tudo de que maneira uma reflexão normativa sobre a autonomia individual dependeria crucialmente das oportunidades reais que a pessoas possuem para usufruir com liberdade de suas próprias vidas. E o BF, ao atender às dificuldades das pessoas em pior situação de pobreza, toca justamente nas capacidades e oportunidades reais de seus beneficiários.

Sendo assim, o BF poderia ajudar na realização do projeto moderno brasileiro concernente à promessa de autonomia? A resposta dos autores é sim, se entendermos o conceito de autonomia de determinada maneira: “Atribuímos autonomia a um sujeito quando ele é capaz de agir conforme um projeto pessoal de vida boa […] e de considerar a si e a outros sujeitos como capazes de estabelecer relações de direitos e deveres” (p. 57). Em outros termos, o BF pode “oferecer condições reais (e não meramente formais)” para que a modernidade cumpra sua promessa. “Somos da opinião”, afirmam os autores, “de que um programa como o BF se insere justamente nesse contexto e que seu efeito primário, além de garantir a subsistência imediata, é o de fornecer uma base material necessária para que os indivíduos possam desenvolver-se em direção a uma maior autonomia” (p. 69).

O interessante é que, ao falarmos da “autonomia” como categoria normativa, não estamos assumindo a centralidade desta categoria de fora dos contextos éticos, sociais e políticos correspondentes. Os efeitos colaterais provocados pela pobreza no Brasil não são avaliados apenas em termos objetivos e, principalmente, institucionais. Ao assumir um ponto de vista ético a partir do qual é possível ancorar uma teoria crítica da sociedade (p. 24-27), salta à vista o sofrimento, humilhação e desrespeito frequentes experimentados pelas pessoas em situação de injustiça.6 As condições objetivas da pobreza criam patologias diagnosticadas no quadro dos sentimentos pessoais, resultantes, entre outras coisas, da falta de acesso à renda regular, das dificuldades para a manutenção de uma vida minimamente saudável e da exclusão da cidadania. Assim, quando ouvimos as vozes dos excluídos e dos “invisíveis” (propósito da pesquisa, aliás), salta à vista a injustiça moral vivida pelas pessoas que carecem de um grau mínimo de autonomia.

Deste modo, identificada essa forma de patologia individual causada pela realidade objetiva do mundo econômico e social, é possível então avaliar as consequências positivas e/ou negativas do programa do BF sobre a constituição de elementos básicos da autonomia moral individual, ou seja, investigar até que ponto políticas redistributivas desse tipo são capazes de fornecer as bases materiais para a formação de um projeto independente de vida boa e de relações morais concernentes a direitos e deveres, com o propósito de possibilitar a dignidade e o autorrespeito dos membros da sociedade que se encontram vivendo sob condições de pobreza e miséria.

Para tanto, é preciso ainda mostrar que o BF pressupõe uma correlação fundamental entre “renda em dinheiro” e “autonomia individual”. Aliás, eu arriscaria dizer que essa é a tese central do livro, segundo a qual “a presença de uma renda monetária regular”, ainda que reconhecidamente insuficiente, “permite o desencadeamento de processos de autonomização individual em múltiplos níveis” (p. 38).

“Múltiplos níveis”, já que o recebimento da renda em dinheiro produz importantes efeitos na autorrealização e autodeterminação de seus beneficiários, criando as condições sociais reais básicas para os dois aspectos normativos da autonomia trabalhados pelos autores: a autonomia moral individual e a autonomia cidadã (o desenvolvimento de uma percepção de si como membro de uma comunidade política mais ampla). Em outros termos, a pesquisa mostra que o recebimento da renda monetária regular traz consigo transformações éticas, sociais e políticas imprescindíveis. Muito mais do que garantia mínima à manutenção da vida, o dinheiro, dessa perspectiva, tem antes um efeito desreificante, que, entre outras coisas, desnaturaliza as relações patriarcais dominantes e dá início a processos de libertação das mulheres diante do controle masculino familiar. “O recebimento da renda monetária”, afirmam os autores, “trouxe para muitas mulheres um elemento decisivo: a dignificação das suas pessoas como sentimento pessoal” (p. 200). O desencadeamento de processos múltiplos observado em termos de autonomia implica, na verdade, desde a capacidade individual do sujeito de fazer escolhas, passando pelo sentimento moral de governar sua própria vida, se responsabilizar pelas próprias ações e ser capaz de cuidar de si e da família, até a autopercepção de ser considerado pelo próprio Estado como membro de uma comunidade política, seu reconhecimento como cidadão.

Sem dúvida, não é uma tarefa fácil fundamentar tal tese, isto é, mostrar os múltiplos níveis da relação entre dinheiro e autonomia. Por essa razão, é digno de atenção o esforço empreendido por Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani para mobilizar tantos elementos, construindo de maneira criativa, por assim dizer, os referenciais metodológicos e normativos da pesquisa: o propósito interdisciplinar de realizar uma pesquisa social com pontos de vista crítico-normativos (fazendo dialogar filosofia e sociologia), mesclar dados empíricos com entrevistas (dando primazia às análises qualitativas), realizar um balanço bibliográfico extenso e atual. Embora reconheçam que a pesquisa não foi exaustiva, pode-se ver nela os indícios empíricos do papel libertador da renda em dinheiro, ancorados na interpretação complexa, delicada e, antes de tudo, experimental dos efeitos do programa sobre as subjetividades das mulheres.

O programa BF apresenta assim muitos ganhos. Não podemos menosprezar seu impacto real na vida das famílias. Mas de modo algum podemos negligenciar seus efeitos colaterais, pois é também certo que existem dificuldades. Algumas críticas internas ressaltam, com mais ou menos razão, a ambivalência presente ao longo de sua implementação. Para alguns, enquanto programa de transferência direta de renda, o BF poderia ser radicalizado.7 Deveríamos também atentar para o impacto local muito diferenciado.8 Pesquisas sobre evasão escolar, por exemplo, mesmo apontando sucesso, explicitam ainda uma grande desigualdade regional.9 Além disso, certas críticas mais contundentes ao programa são feitas por parte do próprio discurso feminista: embora o BF possua um recorte explícito de gênero, o programa estaria paradoxalmente cristalizando o papel da mulher no sistema reprodutivo e produziria efeitos adversos relacionados à participação no mercado de trabalho (já que o programa estimularia a mulher a continuar em casa cuidando dos filhos)10

Podemos aliar a tais aspectos internos o problema segundo o qual, em termos de diagnóstico mais geral, o reformismo, absolutamente necessário no Brasil, é ambíguo. Avançamos lentamente. Pois nosso “reformismo fraco”, para usar um termo empregado por André Singer, caracteriza-se basicamente pelo fato de que a redução das desigualdades no Brasil (impulsionada, vale dizer, não somente pela política redistributiva, mas pelo aumento do emprego e da renda durante o governo Lula), ocorre em doses homeopáticas.11 O horizonte verdadeiramente democrático de expectativas, potencialmente presente no BF, deveria antes ser ampliado: o “reformismo fraco” tem de ser empurrado até o ponto em que permita vincular de fato autonomia individual e política, pois o que queremos é ver realizada a ideia normativa de um enraizamento do Estado de direito na vontade dos cidadãos. Mas sem ampla redistribuição, sem medidas extremas de combate à pobreza, à desigualdade e à injustiça, só aumentamos os obstáculos que se impõem no caminho de consolidação de uma sociedade digna de ser considerada democrática.

Os autores de Vozes do Bolsa Família estão conscientes que a tese do “relativo empoderamento” das mulheres realizado pelo dispositivo de transferência direta de renda guarda dimensões ambíguas e paradoxais. Ainda assim, afastando nosso olhar de aspectos predominantemente econômicos (para não falar de preconceitos e estereótipos comuns assumidos por boa parte da opinião pública quando se trata de falar do BF ou de políticas redistributivas em geral), os autores nos deixam ver um entrelaçamento que não pode passar despercebido entre a pobreza e o sentimento pessoal ligado ao autorrespeito, às capabilitties e à autonomização. Daí a importância de uma pesquisa que nos debruce no cotidiano, subjetividades, hábitos e expectativas das mães de famílias beneficiadas, de modo a darmos ouvido às suas vozes.

A humilhação, o sofrimento e o desrespeito são vulnerabilidades objetivamente produzidas que precisam ser politicamente sanadas. Por isso, a promoção da justiça social exige a expansão das capacidades humanas, isto é, garantias reais urgentes para o exercício da liberdade e da autonomia.

Notas

1 Cf. MEDEIROS, M.; BRITTO, T.; SOARES, F. Transferência de renda no Brasil. Novos Estudos — CEBRAP, n. 79, 2007, pp. 5-21; MEDEIROS, M.; SOARES, F. V.; SOARES, S.; OSÓRIO, R. G. Programas de transferência de renda no Brasil: Impactos sobre a desigualdade. Brasília: IPEA, 2006.

2 Para uma visão abrangente em relação ao Programa Bolsa Família, cf. SILVA, M. O. S.; LIMA, V. F. S. A. (Orgs.).Avaliando o Bolsa Família: unificação, focalização e impactos. São Paulo: Cortez, 2011; CASTRO, J. A.; MODESTO, L.(Orgs.).Bolsa Família 2003-2010: Avanços e desafios.Brasília: IPEA, 2010.

3 Cf. O’CONNOR, J. The Fiscal Crisis of the State. New Brunswick/London: Transaction Publishers, 2002; HABERMAS, J.Legitimationskrise im Spätkapitalismus.Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973; CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário. Trad. de Iraci Poleti. Petrópolis: Vozes, 2009.

4 Marcos Nobre sugeriu recentemente o termo “social-desenvolvimentismo” para sublinhar um novo modelo de sociedade consolidado (mas não plenamente realizado) a partir do período de redemocratização do Brasil. “Segundo o novo modelo, só é desenvolvimento autêntico aquele que é politicamente disputado segundo o padrão e o metro do social, quer dizer, aquele em que a questão distributiva, em que as desigualdades — de renda, de poder, de recursos ambientais, de reconhecimento social — passam para o centro da arena política como o ponto de disputa fundamental” (NOBRE, M. Imobilismo em movimento: Da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 24).

5 Cf. NUSSBAUM, M. Women and Human Development: The Capabilities Approach.Cambridge, ma: Cambridge University Press, 2000; NUSSBAUM, M, Creating Capabilities. The Human Development Approach. Cambridge, ma: Belknap, 2011; SEN,A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; SEN, A A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

6 Cf. a abordagem sobre as bases sociais e morais da experiência de “injustiça” em MOORE Jr., B. Injustiça: As bases sociais da obediência e da revolta. Trad. de João Roberto M. Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987. De maneira semelhante, ver MILLER, D. Principles of Social Justice. Cambridge, ma: Harvard University Press, 2001. Cf. também HONNETH, A. Philosophie als Sozialforschung.Zur Gerechtigkeitstheorie von David Miller. In: ______.Das Ich im Wir. Berlin: Suhrkamp, 2010, e ANDERSON, J.; HONNETH, A., A. Autonomia, Vulnerabilidade, Reconhecimento e Justiça. Tradução de Nathalie Bressiani.Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo: Crítica e Modernidade, n. 17, 2011, pp. 81-112.

7 Cf. SUPLICY, E. M. O direito de participar da riqueza da nação: do Programa Bolsa Família à Renda Básica de Cidadania. Ciência & Saúde Coletiva, v. 12, n. 6, 2007, p. 1623-1628. Cf. ainda a nova edição de SUPLICY, E. M., Renda de cidadania : A saída é pela porta. São Paulo: Cortez, 2013.

8 Cf. ROCHA, S. O Programa Bolsa Família. Evolução e efeitos sobre a pobreza. Economia e sociedade, v. 20, n. 1, 2011, pp. 113-139.

9 Cf. AMARAL, E. F. L.; MONTEIRO, V. P. Avaliação de impacto das condicionalidades de educação do Programa Bolsa Família (2005-2009).Dados, v. 56, n. 3, 2013, pp. 531-570; CACCIAMALI, M. C.; TATEI, F.; BATISTA, N. F. Impactos do Programa Bolsa Família federal sobre o trabalho infantil e a frequência escolar. Revista de economia contemporânea, v. 14, n. 2, 2010, pp.269-301.

10 Cf. MARIANO, S. A.; CARLOTO, C. M. Gênero e Combate à Pobreza: Programa Bolsa Família. Revista Estudos Feministas, v. 17, n. 3, 2009, p. 901-8; GOMES, S. S. R. Notas preliminares de uma crítica feminista aos programas de transferência direta de renda: o caso do Bolsa Família no Brasil. Contextos. Porto Alegre, v. 10, n. 1, 2011, p. 69-81; TAVARES, P. A. Efeito do Programa Bolsa Família sobre a oferta de trabalho das mães. Economia e sociedade, v. 19, n. 3, 2010, p. 613-35.

11 “O que estamos vendo, portanto, é um ciclo reformista de redução da pobreza e da desigualdade, porém um ciclo lento, levando-se em consideração que a pobreza e a desigualdade eram e continuam sendo imensas no Brasil” (SINGER, A.Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 195).

Referências

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Rúrion Melo – Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

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Semântica formal: uma breve introdução – PIRES OLIVEIRA (D)

PIRES DE OLIVEIRA, Roberta. Semântica formal: uma breve introdução. Campinas: Mercado de Letras, 2012. Resenha de: SANTOS, César Schirmer dos. Semantics for philosophers. Dissertatio, Pelotas, v.39, 2014.

Semântica para filósofos

Quem trabalha com filosofia analítica na graduação e na pósgraduação já deve ter se deparado diversas vezes com a dificuldade dos alunos de entenderem as noções de significado, sentido, referência, extensão, intensão, dêixis, anáfora, quantificação e modalidades, além de muitas outras relacionadas. Estas são noções técnicas que precisam ser dominadas pelos alunos que exploram os textos de ou sobre Frege, Davidson, Putnam e muitos outros. Esse problema requer uma solução que capacite os estudantes sem ocupar muito tempo dos cursos, e isto pode ser feito através da semântica formal.

Semântica formal, de Roberta Pires de Oliveira, é uma ótima introdução às ferramentas típicas da abordagem verifuncional do significado.O capítulo 1 faz uma cuidadosa distinção entre aquilo que é pesquisa do significado (a semântica) e aquilo que é pesquisa do ser (a metafísica), detalhando as principais diferenças da semântica verifuncional em relação a outras abordagens, como por exemplo a semântica cognitiva de Lakoff.

Como é típico dos principais manuais de semântica formal – como Knowledge of meaning, de Richard K. Larson e Gabriel Segal (Cambridge, USA: The MIT Press, 1995); Semantics in generative grammar, de Irene Heim e Angelika Kratzer (Oxford: Blackwell, 1998) e a Semântica de Gennaro Chierchia (Campinas: Unicamp, 2003) –, o capítulo estabelece os vínculos entre as ferramentas da linguística gerativa de Chomsky com o cálculo de predicados da lógica do século 20, estabelecendo uma ponte entre as pesquisas filosóficas e as abordagens empíricas da linguagem através da teoria da verdade de Tarski.

O capítulo 2 trata do clássico problema da criatividade dos falantes. Somos capazes de proferir e de reconhecer frases inéditas, o que só pode ser © Dissertatio [39] 283 – 285 inverno de 2014 César Schirmer dos Santos 284 explicado economicamente pela hipótese de que empregamos um conjunto finito de regras recursivas na fala e na escuta, o que nos leva à imagem da linguagem como um conjunto de regras acompanhada de um léxico. Quanto à significação, isto abre espaço para a distinção entre a referencialidade a objetos dos elementos subsentenciais, como os sintagmas nominais e verbais, e a referencialidade a valores de verdade das sentenças. O capítulo também discute as visões holista e atomista do significado.

O capítulo 3 trata da distinção fregueana entre sentido e referência, a qual é fundamental para a análise semântica dos contextos intensionais ou opacos, nos quais não se pode trocar sinônimos sem correr o risco de mudar o valor de verdade das sentenças. Nos contextos extensionais, o significado está ancorado no mundo atual, mas o mesmo não se dá nos contextos intensionais, nos quais a “referencialidade” está ancorada em outros mundos.

No caso específico do pensamento, a distinção fregueana permite que se dê conta daquilo que um outro compreende a partir da sua perspectiva, o que é fundamental para que se possa tratar do significado sem sofrer os embaraços típicos de uma teoria referencialista muito crua.

Os capítulos 4 e 5 mostram, de maneira direta e concisa, pra não dizer exemplar, como as ferramentas do cálculo de predicados são úteis para a investigação do significado. Através desses capítulos, estudantes de filosofia da linguagem e filosofia da mente podem se capacitar para ler textos já clássicos da filosofia analítica dos últimos cinquenta anos. No capítulo 4 se mostra como lidar com predicados e com nomes próprios. No capítulo 5 se mostra como este modelo é incapaz de lidar com pronomes dêiticos ou anafóricos, os quais são usados para explicar o papel dos quantificadores.

Através dessas ferramentas, a autora apresenta os fundamentos da teoria das descrições definidas de Russell e alguns elementos da polêmica entre este autor e P. F. Strawson.

Por fim, o capítulo 6 apresenta os fundamentos da semântica dos mundos possíveis, mostrando como as ferramentas da semântica extensional pode ser usadas em semântica intensional para dar conta das noções modais de necessidade/possibilidade, dever/poder e saber/crer.

Além do conteúdo, cada capítulo traz um conjunto de exercícios. O ponto baixo do livro são os exemplos datados. “A presidente do Brasil” quiçá soasse esquisito em 2001, mas hoje é uma descrição definida com referência. Há também uma série de erros tipográficos que, apesar dos méritos da publicação, é ponto contra a editora Mercado de Letras, que deveria ter feito um trabalho mais cuidadoso de editoração. Mesmo assim, trata-se de um livro de primeira importância para a pesquisa e o ensino acadêmicos em filosofia analítica no Brasil.

César Schirmer dos Santos – Universidade Federal de Santa Maria.

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A Imaginação Crítica, Hume no século das Luzes – PIMENTA (C-FA)

PIMENTA, Pedro Paulo. A Imaginação Crítica, Hume no século das Luzes. Rio de Janeiro: Azougue/Pensamento Brasileiro, 2013. Resenha de LIMONGI, Maria Isabel. Hume Pintor. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v.19, n.1 Jan./Jun., 2014.

O livro A imaginação crítica, Hume no século das Luzes, de Pedro Paulo Pimenta, reúne uma série de ensaios, alguns inéditos, outros anterior mente publicados em coletânea, revista acadêmica ou jornal, acrescidos da tradução de trechos da correspondência de Hume e da resenha dos Poemas de Ossian, antes publicada na coletânea O Iluminismo Escocês.1 Trata-se, segundo os termos do autor, de apresentar “ aspectos menos conhecidos ” da obra de Hume, o que Hume pensou sobre certos “ tópicos ”, como “ a linguagem e suas relações com o pensamento e vida em sociedade; o lugar da filosofia entre as artes e as ciências; o papel das artes na formação das maneiras e do caráter dos homens; a possibilidade de conciliar, na prática das ciências, instrução e prazer ” (apresentação, p. 7). Mas o livro parece ter uma unidade ainda maior do que esta que aqui se propõe e que está em tratar desses tópicos com o foco na importância que Hume concedeu às questões de estilo e aos modos de expressão, aos diferentes gêneros de discurso e seus diversos efeitos sobre os homens.

Assim, o primeiro ensaio, A força das palavras, serve de introdução ao conjunto de ensaios ao reconstituir o conteúdo do ensaio Da Eloquência, de 1741, onde Hume se dedica a resgatar a arte da eloquência do descrédito e a refletir sobre as razões do seu declínio entre os modernos, em particular os ingleses. O ensaio oferece um excelente quadro da questão da eloquência, comparando as apreciações de Hume com a de seus contemporâneos e referindo-as aos clássicos que lhe serviram de exemplo.

Em boa parte dos ensaios é a questão dos gêneros de discurso e suas especificidades o que está em questão. É assim, como já diz seu título, no ensaio O Diálogo como gênero filosófico, em que se trata de explorar o uso que Hume faz do diálogo, um uso que, como mostra Pimenta, vai muito além de tomá-lo como um modo de expressão afeito a uma certa postura cética, mas que, na esteira da “ poética do diálogo como gênero filosófico ” de Shaftesbury (p. 57), vê nele uma forma de exercício moral, uma maneira de trabalhar as paixões, temperando seus excessos e submetendo-as ao entendimento, pela adoção do distanciamento crítico a que ele conduz. Assim, se Hume faz uso do gênero para tratar da questão da religião natural, não é apenas como um modo de evitar uma posição definitiva sobre o assunto, mas como uma forma de equilibrar os ânimos religiosos e conter o entusiasmo. Esse efeito torna importante ao filósofo o cultivo do gênero, em grande estilo.

No ensaio sobre a eloquência, trata-se ainda de evidenciar a preocupação de Hume com o modo adequado de se expressar em filosofia, isto é, com as particularidades da filosofia enquanto gênero discursivo, enquanto um “ saber que delicadamente se equilibra entre dois mundos, o da palavra escrita (erudição) e o da oralidade (conversação), e [que] tem, assim, uma eloquência própria ” (p. 37). A mesma preocupação se vê ainda nas observações de Hume, reconstruídas no ensaio Da maneira ao estilo, em condenação ao estilo pesado e abstruso do Tratado da Natureza Humana, preterido em favor das Investigações sobre o entendimento humano e sobre o princípio da moral, nas quais os mesmos conteúdos são retomados e expostos em estilo conciso e simples, mais apto a agradar ao público e por isso também ao autor. A busca de Hume por um estilo filosófico próprio é ainda tema no ensaio Rousseau e D’Alembert, ou o filósofo no espelho.

É da história enquanto gênero discursivo o que trata o ensaio A arte do retrato histórico, em que se aponta para a importância de Tácito para Gibbon, Blair e Hume, como um modelo na arte da composição de quadros históricos, um modelo ao qual, segundo Pimenta, Hume teria recorrido fartamente na História da Inglaterra. Aqui, mais uma vez, o foco parece ser a atenção dada por Hume e seus contemporâneos britânicos ao estilo e modos de expressão pertinentes ao gênero histórico.

É também a questão do gênero pastoral o fio condutor do ensaio A Ilusão Pastoral, onde se comenta a resenha de Adam Smith do Discurso sobre a Origem da Desigualdade de Rousseau, particularmente suas considerações acerca do modo como Rousseau se serve desse gênero em sua descrição da condição natural do homem. O comentário resgata também as posições de Hume sobre o gênero, e, com esse pano de fundo, trata das diferenças entre Rousseau e Smith quanto ao modo de pensar a função e os métodos da história natural, ela também visada enquanto um gênero discursivo.

O gênero da pintura é assunto no ensaio Da maneira ao estilo, pela referência à metáfora do anatomista e do pintor a que Hume recorre para tratar das diferenças entre os gêneros filosóficos. Ele está em questão também no ensaio A lógica do tableau, que explora os aspectos pictóricos ou plásticos da percepção em relação com as questões compositivas inerentes ao gênero da pintura, tratadas ainda em A arte do retrato histórico, onde se mostra como esta arte aproxima, justamente, os gêneros da história e da pintura. A atenção dada por Hume aos aspectos compositivos dos discursos faz do retrato pictórico e de sua força expressiva o horizonte de suas reflexões sobre o estilo e modos de expressão, tal como reconstituídas por Pedro Paulo Pimenta. O livro recolhe e documenta fartamente, com erudição e cuidado, o que Hume pensou sobre o tema.

Em relação com o Hume preocupado com as questões de estilo e com as particularidades compositivas dos gêneros discursivos  o Hume crítico -, o conjunto de ensaios traz à cena ainda, em segundo plano, outros Humes, particularmente o Hume historiador e o filósofo moral, dado que a crítica tem dimensões morais e históricas que não escapam às análises de Pimenta, sobretudo a segunda. Trata-se então de abordar o que Hume pensou acerca, não mais da forma, mas dos conteúdos da História e da Moral, para além das particularidades do gênero discursivo a que pertencem, mas como elementos de sustentação do trabalho crítico.

Assim, o ensaio sobre a eloquência mostra como as considerações sobre o declínio dessa arte entre os modernos conduz Hume a explorar as diferenças nas maneiras e costumes entre antigos e modernos e a apreciar a arte da eloquência no interior de um quadro histórico. É justamente em razão das diferenças entre as maneiras e os caracteres das épocas que Hume contesta, numa resenha crítica cuja tradução compõe o volume, a autenticidade dos poemas de Ossian, publicados em 1760 como a suposta tradução de poemas celtas do século III a.c., o que ensejou, como relata Pimenta, uma intensa polêmica em torno de sua autenticidade, da qual o texto traduzido é uma peça. É o problema da história da civilização e o de seu sentido, tão visitado e discutido ao longo do século XVIII, ligado à compreensão histórica das diferenças entre as maneiras e caracteres dos povos e à identificação das circunstâncias históricas que as condicionam, que se abre então.

Este problema é tema também no ensaio Refinamento e Civilização, ou como se colocar à altura do seu tempo, em que Pedro Paulo Pimenta reconstrói, tomando como ponto de partida um artigo de E. Benveniste, acerca da história da palavra “civilização”, incorporada ao vocabulário das línguas modernas em meados do século XVIII, toda a discussão em torno do significado do termo e do sentido da história da civilização, se o de progresso ou de declínio dos costumes. A mesma questão reaparece na resenha de Smith sobre o segundo Discurso de Rousseau, objeto de comentário em A Ilusão Pastoral.

A dimensão moral da crítica, por sua vez, é explorada no ensaio O Diálogo como Gênero Filosófico, em que está em questão, como já observamos, os efeitos morais do exercício do diálogo, na regulação das paixões. Ela é também tangenciada no ensaio Da Maneira ao Estilo, por ocasião do comentário à observação de Hutcheson ao Tratado da Natureza Humana, segundo a qual Hume deveria ter se engajado mais fortemente na defesa da virtude, no lugar de apenas apresentá-la por meio de uma investigação abstrata, como faz no Tratado. A essa observação Hume responde recorrendo à metáfora do anatomista e do pintor e esclarecendo que no Tratado optou por proceder à maneira do anatomista, procurando desvendar as “molas e princípios mais secretos” ( apud Pimenta, p. 42) do seu objeto, em vez de recompor sua graça e beleza, como faria o pintor. Isso equivale a proceder como o metafísico, que explica o que é a virtude, e não como o moralista, que a exorta. Há toda uma questão sobre a natureza da investigação moral no horizonte dessas observações.

Aqui, pode-se talvez lamentar que Pedro Paulo Pimenta reduza a distinção entre esses dois modos de fazer filosofia moral a uma dferença de estilo– a diferença entre o estilo seco do metafísico, que fala ao entendimento, e o estilo vivo e forte do moralista, que fala às paixões -, de maneira a concluir que a diferença entre os estilos do Tratado e da Investigação sobre os princípios da Moral, implique uma diferença no modo de fazer filosofia moral. De acordo com Pimenta, na passagem do Tratado para a Investigação, Hume deixou de considerar descabida a observação de Hutcheson de que deveria proceder ao modo do moralista, para então passar a aceitar fazer filosofia moral desse modo. No entanto, as diferenças compositivas e estilísticas entre as obras não implicam diferença no modo de fazer filosofia moral. Na Investigação, Hume permanece o mesmo anatomista do Tratado, expondo porém o resultado de sua dissecação de um modo mais conciso e agradável. Parece-me que aqui a foco nas questões de estilo acabou por obscurecer um aspecto da filosofia moral de Hume, o modo como Hume compreendeu a natureza e a função da filosofia moral, enquanto uma anatomia da virtude.

Pode-se dizer que é um retrato de Hume o que se trata de fazer em A Imaginação Crítica – o que é tão mais pertinente dizer em função da atenção particular que se dá ao modo como o próprio Hume pensou o tema da composição e do retrato. São facetas de Hume que aparecem na sequência dos ensaios, que aos poucos vão formando um quadro, completo e simples de um certo Hume. Além do Hume crítico, do historiador e do moralista, os ensaios mostram ainda o homem do seu tempo, preocupado com comentar e interferir nas questões e temas de sua contemporaneidade, em franco diálogo com a produção literária do século XVIII: o Hume da República das Letras e dos salões.

Por meio de intenso recurso à correspondência de Hume que tem muitas de suas passagens traduzidas e comentadas por Pimenta, que contribui assim, de maneira importante, pela excelência de suas traduções, para a divulgação do seu conteúdo -, o retrato de Hume assume um tom anedótico. À figura do filósofo e literato se acresce a figura do homem de carne e osso, pelo que ficamos sabendo de certos episódios da sua vida, como sua viagem a Alemanha a serviço da diplomacia britânica, no ensaio Hume e Tiepolo no Palácio de Würzburg, e das condições de sua morte em Os últimos dias de David Hume (a tradução das passagens da correspondência em que se faz menção às circunstâncias de sua morte), assim como pela referência às particularidades de sua compleição física, em Elogio da Obesidade (a tradução de passagens da correspondência em que Hume comenta, em tom jocoso, o seu excesso de peso).

O livro traz ainda muita informação acerca do que Hume pensou de seus contemporâneossobre o que disse, por exemplo, acerca do estilo de Fegunson a Robertson e Blair, em Refinamento e Civilização, ou sobre Rousseau e D’Alembert, em Hume, Rousseau e D’Alembert, ou o filósofo no espelho -, assim como sobre o que disseram dele, como Hutcheson, em Da maneira ou estilo, e sobre o que seus contemporâneos disseram uns dos outros, como Smith de Rousseau e Bouffon, em A Ilusão Pastoral.

Esse “diz-que-diz-que”, cuidadosamente pinçado da correspondência de Hume e outras fontes, retrata bem a intensa comunicação e correspondência entre os filósofos do XVIII e mostra o quanto as questões de estilo importavam não só a Hume como a seus contemporâneos.

Ocorre, porém, dessas referências cruzadas tomarem em alguns momentos um espaço excessivo nas análises de Pimenta, como no ensaio Refinamento e Civilização, em que terminam por se sobrepor à questão de saída o sentido do termo civilização, seus aspectos positivos e negativos a ponto de fazer perdê-la de vista.

Do mesmo modo, se as observações sobre a obesidade, ao lado da reconstituição dos últimos dias de Hume, tem um interesse intrínseco, pela disponibilização de textos preciosos, exemplos finos do bom humor e da leveza de estilo de nosso autor, o mesmo não se pode dizer da questão que anima o ensaio sobre os painéis de Tiepolo, em que o caráter anedótico e a pergunta pitoresca e um pouco forçada o que Hume teria a dizer acerca desses painéis se já estivessem instalados no momento em que visita o palácio de Würzburg? põem à sombra a questão política –as observações de Hume sobre a suntuosidade do palácio como signo da autoridade dos príncipes alemãesque faz o interesse da anedota.

Todo esse anedotário serve, porém, com maestria, ao estilo que Pedro Paulo Pimenta pretende ele próprio cultivar em suas análises.

Aplica-se a elas o que L. Jaffro escreveu acerca do livro Shaftesbury e a formação de um caráter moderno 2 de Luís Nascimento, quando diz que, se Luís Nascimento nos ajuda a compreender a filosofia de Shaftesbury, “ também precisamos da filosofia de Shaftesbury para compreender Luís Nascimento ” (p. 11). A referência aqui é ao modo como Nascimento mimetiza o estilo de Shaftesbury no comentário que faz de sua obra, o que se aplica igualmente à relação de Pedro Paulo Pimenta com Hume. É assim, como um elemento da composição do retrato de Hume, em compensação às análises mais pesadas, por assim dizer, que a mobilização de todo esse anedotário ganha sentido.

O esmero na arte de compor o retrato de Hume certamente compensa algum desconforto que um leitor de humor mais analítico e severo possa sentir diante do modo como Pedro Paulo Pimenta lida com certas questões metafísicas com as quais se depara. Por exemplo, no ensaio A lógica do Tableau, o autor aponta para uma interessante relação entre composição, no sentido em viemos falando dela até agora, e percepção. A percepção é para Hume, ele observa, como já para Locke, uma forma de composição, dado que envolve um processo de imitação na passagem das impressões às ideias, e que os efeitos dessa imitação, aos quais se condiciona a distinção epistêmica entre crença e ficção, dependem diretamente da unidade e simplicidade das relações entre os elementos perceptivos. Daí que, segundo Pimenta, o caráter de cópia da ideia deixe de ser um problema epistêmico para se tornar uma virtude – “ uma imitação bem feita (…) vale por muitas impressões ” (p. 87). De onde se passa, com certa rapidez, à conclusão: “ é na ‘crítica do gosto’ que se revelam a verdadeira natureza e dimensão do conhecimento, e resolvem-se, de uma vez por todas, os problemas da ‘lógica’ ” (p. 88). A formulação é de impacto: no gosto encontra-se a solução definitiva dos problemas da lógica! Mas, por mais sugestiva e promissora que seja, tal conclusão não se deixa derivar, sem mais, da analogia entre composição plástica e percepção.

Um desconforto semelhante pode acometer o leitor de A arte do retrato histórico. Ali, Pedro Paulo Pimenta mostra como certas questões de método em História, tal como pensadas por Hume e Gibbon, para os quais cabe ao historiador trazer à luz o encadeamento e a lógica dos eventos relatados a fim de identificar suas causas gerais, espelham, para esses autores, as questões de gosto, precisamente aquelas relativas à unidade compositiva do retrato, de forma que ao historiador, enfatiza Pimenta, é imprescindível o bom gosto. Porém, por mais rigorosa que seja essa observação, ela corre o risco de ser redutora se não for melhor explorada. Pois, não são apenas as questões de gosto e certas exigências compositivas que motivam Hume a compor, para usar o exemplo de Pimenta, o retrato de Carlos I na História da Inglaterra do modo como ele o faz, quando se trata de resgatar a dignidade de sua figura contra a detratação partidária de que teria sido vítima por uma certa historiografia. Aqui, não se trata apenas de bem retratar e de ser verdadeiro, segundo os bons princípios da composição. Tratase de entender os episódios da guerra civil inglesa a partir das causas gerais que se presume presidir este e outros acontecimentos históricos, a partir de um método e de uma lógica para se julgar sobre causa e efeito tomados de empréstimo das práticas cognitivas das ciências naturais e cujo alcance crítico não se deixa reduzir a uma questão compositiva. Seja como for, se o método histórico não se reduz a uma questão de gosto, as duas esferas não deixam de ter relação, como faz ver muito apropriadamente Pedro Paulo Pimenta.

Estas são pequenas objeções, a vontade de pensar para além do que se propõe a fazer Pedro Paulo Pimenta, instigada pela leitura de seu livro, cujo mérito está em pintar, de maneira deliberadamente recortada e fragmentada, um belo retrato do Hume pintor  não o anatomista, que é o mais conhecido.

Notas

1.PIMENTA, P. (org.) O iluminismo escocês. São Paulo: Alameda editorial, 2011.

2.NASCIMENTO, L.Shaftesbury e a formação de um caráter moderno.São Paulo: Alameda editorial, 2012

Referências

PIMENTA, P. A Imaginação Crítica, Hume no século das Luzes. Rio de Janeiro: Azougue & Pensamento Brasileiro, 2013.

_____ O iluminismo escocês. São Paulo: Alameda editorial, 2011.NASCIMENTO, L.Shaftesbury e a formação de um caráter moderno.São Paulo: Alameda editorial, 2012.

Maria Isabel Limongi – Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

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Teoria (literária) americana: uma introdução crítica – DURÃO (AF)

DURÃO, Fabio Akcelrud. Teoria (literária) americana: uma introdução crítica. Campinas/SP: Autores Associados, 2011.Resenha de: PASINI, Leandro. Para onde vai a teoria? Artefilosofia, Ouro Preto, n.15, dez., 2013.

O livro Teoria (literária) americana: uma introdução crítica, de Fabio Durão, se apresenta como obra didática não apenas pela palavra “introdução” do subtítulo como por sua dedicatória aos “alunos da Unicamp”. Contudo, não há no livro sequer vestígio da organização didática tradicional que se esperaria de uma introdução. As corrente s teóricas em voga nos Estados Unidos nos últimos trinta anos, agrupadas sob o nome de Teoria (Theory), não são explicadas uma a uma, segundo critério e hierarquia que revelasse as preferências e a posição do Autor. Seguindo a mais autorizada das antologia s de língua inglesa, a Norton Anthology of Criticism and Theory, em sua edição de 2001, Fabio Durão lista as correntes surgidas depois da Segunda Guerra e que ainda são referência no debate teórico estadunidense: Estudos Culturais, Desconstrução e Pós-estruturalismo, Teoria e Crítica Feminista, Formalismo, Crítica Gay e Lésbica e Teoria Queer, Marxismo, Novo Historicismo, Fenomenologia e Hermenêutica, Teoria e Crítica Pós-Colonial, Psicanálise, Estudos de Raça e Etnicidade, Teoria de Reação do Leitor, Estruturalismo e Semiótica. Mesmo sob uma denominação genérica, é mais de uma dezena de perspectivas teóricas, em que cada um dos nomes pode se desdobrar em outros tantos, a exemplo das vertentes que o item “Desconstrução e Pós-estruturalismo” abriu no ambiente brasileiro. Nesse sentido, Fabio Durão rejeita conscientemente a compartimentação teórica, por um lado, e a postura de divulgador de ideias internacionais, por outro. Com isso, e causando grande espanto no contexto brasileiro, ele recusa a posição de mediador, de alfandegário cultural entre o que se faz nos centros e nas periferias do mundo universitário. Como consequência, não se pode esperar do livro uma simplificação de saberes complexos, como se, depois de sua leitura, fosse mais fácil compreender, por exemplo, Derrida, Spivak, Barthes ou Jameson, ou que uma receita fosse dada para que esses teóricos pudessem caber em um conhecimento panorâmico e pacificado. O livro se propõe, antes, a pensar a teoria teoricamente, ou seja, “tornar a Teoria ela mesma um objeto de reflexão teórica e crítica” (p. 4), encarando-a como uma nova formação discursiva, que será abordada por meio de sua ascensão e do debate que formou em torno de si. Para tanto, não se deve concluir que o Autor se desvincula da Teoria para abordá-la imparcialmente a distância. Seu ponto de partida é a “primazia do objeto”, pensado em consonância com a Teoria Crítica, de Adorno e Benjamin, que nesse caso não trata de questões artísticas e/ou filosóficas, mas da própria Teoria, que passa então por uma autorreflexividade radical. Esse procedimento, de pensar o fenômeno teórico pela perspectiva da Teoria Crítica, se realiza por meio de uma escrita ágil e desabusada, na qual a erudição, que existe, cede passo à argumentação civil e democrática, unindo curiosidade e vontade de conhecer à ausência de jargão e apelos a figuras de autoridade. Fabio Durão não é a priori contra nem a favor da teoria americana, ele não está entre os seus “defensores” nem entre os seus “detratores”. A Teoria é vista como u m fato consumado, pois, como diz o Autor: “seria inútil reivindicar um retorno aos velhos tempos anteriores à febre teórica” (p. 112), mas essa constatação não é um sinônimo de legitimação positiva da Teoria, ao contrário, ela é vista como “um campo marcado por contradições, constituindo-se, por fim, como uma aporia, pois se mostra ao mesmo tempo como imprescindível e insustentável” (p. 3). Entre as várias críticas que o livro dirige a ela, que não são poucas, duas são mais drásticas quando se pensa na relação entre Teoria e literatura: 1. a Teoria, em seus piores momentos, parece ansiar por uma autossuficiência que acaba por destruir os objetos, tornando-se assim intransitiva e autorreferente; 2. a consequência natural dessa autorreferrência é um solipsismo a um tempo ultracomplexo e sem finalidade, dando margem a constantes corridas em busca de uma autoridade abstrata. Contudo, a mistura de disciplinas e saberes, que podem ser vários, além dos imprescindíveis (Linguística, Psicanálise, Sociologia e Antropologia), faz com que o método criado pela Teoria adquira uma flexibilidade capaz de apreender qualquer objeto e se redimensionar em função dele, além de ter produzido a expansão e a multiplicação dos objetos de leitura. Assim, tamanha liberdade faz com que os eles possam ser tanto anulados quanto recriados, como Fabio Durão defende: “O papel da Teoria é contraditório, pois se por um lado ele relativiza a importância do literário, que agora passa a existir lado a lado com os cartoons ou o YouTube, por outro fornece um novo fôlego para a leitura de textos que de outra forma poderiam perder em interesse” (p. 49-50). A matriz prática dessa contradição é descrita no livro como uma crise interna dos estudos literários, devida, entre outros motivos, à redução do es paço socialmente ocupado pela literatura, que foi gradualmente substituído pelos meios de comunicação de massa, bem como às críticas internas da própria arte, presentes nas vanguardas do começo do século XX, e cuja corrente mais radical em sentido antiartístico, foi o Dadaísmo.

Como consequência dessa armadura argumentativa, é preciso notar a estranheza ou a novidade, ao menos no Brasil, de a Teoria ser objeto da Teoria Crítica, tendo em mente que esta se constituiu enquanto tal justamente pela plataforma de dar primazia a uma alteridade, colocando os conceitos em movimento ao contato com as obras artísticas. O perigo de uma Teoria Crítica cujo objeto é a Teoria reside principalmente na possibilidade de perda dessa alteridade, daquela “consciência da não id entidade entre o modo de exposição e a coisa” (ADORNO, Theodor W. Notas de literatura. São Paulo: Ed. 34/Duas Cidades, 2011, p. 37). Resumindo, entre Teoria Crítica e Teoria insinua-se, como que por contágio, uma perda de diferenciação cujo custo seria o evolar-se do adjetivo “Crítica” e a subsunção de Teoria como apoteose, mesmo que a intenção seja (auto)crítica. Parte central desse problema está presente no modo como Fabio Durão se comporta em relação aos objetos artísticos em comparação com o ethos anteriormente consolidado pela Teoria Crítica. Em dado momento, ele alerta para o perigo de se ler “Bakhtin sem Dostoievski ou Rabelais, Walter Benjamin sem Goethe, Deleuze sem Proust ou Kafka, Lacan sem Freud, Freud sem Sófocles ou Shakespeare” (p. 111). Dentro ou fora da Teoria Crítica – mas posta como pressuposto sobretudo por esta –, o contato com os objetos como configuradores do teórico é fundamental. Daí a pergunta: quais são os objetos literários ou artísticos que, presentes a cada entrelinha de Teoria (literária) americana, constituiriam a força dessa alteridade como resistência ao universal da Teoria? Salvo engano, as leituras constitutivas do Autor, subjacentes à sua perspectiva, não são literárias, mas teóricas, mais especificamente Adorno e Fredric Jameson. Essa questão se repõe na própria escrita do livro, que percorre com vivacidade e rapidez muitos campos teóricos diversos. A presença configuradora de uma obra ou de um conjunto orgânico de obras afetaria, em primeiro lugar, o estilo. Cada obra literária possui um travejamento próprio e oferece resistência ao campo da Teoria (tomada como um todo abstrato), pois aceita, virtualmente, algumas ideias teóricas mas não outras. Implicitamente, Teoria (literária) americana, mesmo defendendo os objetos, pare ce recusar, por sua própria natureza, o contato com uma ou conjunto orgânico de obras, que, por especificar o horizonte especulativo, colocaria diante do crítico um sem número de determinações e atritos a serem configurados pela escrita que seria, de certa forma, contaminada por alguns elementos desse(s) objeto(s). Contudo, essa imersão completa no campo da Teoria permite ao Autor captar a sua especificidade, a contradição viva e o nervo crítico que ela contém. Ao ser capaz de fundir diversos saberes e de refletir sobre os próprios pressupostos dessa fusão, a Teoria erige, como diz o Autor, “a transdisciplinaridade como seu princípio mais interno de funcionamento” (p. 13-14). A “visão de mundo” subjacente a essa prática é a radical separação entre o pens amento e a coisa. Como todo saber é construído, a própria construção do conhecimento passa ser o objeto da Teoria. É esse tipo de “relativismo construtivista” que permite o “trânsito entre todos os saberes da humanidade”, e, posso acrescentar, os conhecimentos passam a ser concebidos sobretudo como linguagem, fazendo migrar para o centro da reflexão da Teoria a atenção à linguagem anteriormente restrita aos estudos literários. A Teoria monta um campo de forças próprio em cujo centro ela mesma habita. Fabio Durão fala de uma exacerbação dos metadicursos da teoria literária” que passa a “constitui um campo (semi)autônomo. Ocorre a emancipação da Teoria em relação aos objetos, aos quais os estudos literários anteriores se modelavam; e essa emancipação possui um a liberdade virtualmente ilimitada de construir objetos de leitura e conhecimento, pois não apenas tudo pode ser objeto da Teoria como as mais imprevisíveis relações entre as coisas do mundo podem ser erigidas em objeto. Entretanto, se as potencialidades são enormes, as realizações são geralmente solipsistas, hipersofisticadas e herméticas, desabrochando o obscurantismo e a intransitividade do seio da liberdade, da práxis e da pluralização almejadas.

A explicação desse paradoxo pode ser encontrada em um argumento constante ao longo do livro: a semelhança entre a natureza da Teoria e a lógica do capitalismo tardio estadunidense. O Autor julga possível “identificar na liberdade enunciativa do teórico algo da flexibidade que se exige do trabalhador no novo mercado e da produção pós-fordista” (p. 31). Essa relação não se dá de modo genérico, mas tem em seu “espaço enunciativo”, a universidade, o seu instrumento específico de realização, em que ocorre a transposição para a teoria americana do um modo de produção social, adequando seu funcionamento à universidade produtivista atual. A abundância, o múltiplo, a pluralidade e todo o discurso do “excesso” vinculado pela aliança entre a Teoria e a noção de “pós-modernidade” não se colocam no mundo sob a égide exclusiva da liberdade mas também da produção capitalista, da lógica da moda e da frenética produção e consumo de mercadorias. Eis a face de conformidade plena da Teoria com o mundo em relação ao qual ela se pretende radicalmente crítica. Desenvolvendo um pouco essa questão, pode-se explorar mais a relação entre a fusão de disciplinas e a lógica produtiva pós-fordista. Não me parece que essa relação aconteça somente no plano da produção. Há no próprio movimento abstrato de nivelamento de todos os conhecimentos, todas as linguagens e todos os objetos algo daquela lógica de mediação universal e abstrata que Marx viu na forma-mercadoria. Para dizer brevemente, a possibilidade de equalizar todos os produtos do homem foi conseguida pela abstração do valor de uso no valo r de troca. O teórico e seu texto, em seu grau máximo de flexibilidade, não se assemelham a essa forma de mediação universal e abstrata entre conteúdos e formas por vezes muito diferentes? Em outras palavras, não assume o seu trabalho e o resultado dele como uma mimese da forma-mercadoria ? Se essa dedução estiver certa, ela se coloca em outro nível em Teoria (literária) americana, pois se transforma em uma pergunta que deve ser feita em relação ao próprio Autor: ao analisar essa “formação discursiva”, ele mesmo se desidentificaria do processo de mediação universal e abstrata da natureza da mercadoria presente na prática contemporânea da Teoria? Porventura não faria Fabio Durão a mimese de seu próprio objeto, incorporando em sua capacidade de transitar entre tantas correntes críticas com tanta desenvoltura algo da abstração sem finalidade da forma-mercadoria? O livro corre esse risco, e ele nunca é de todo dissipado. Porém, mais importante do que constatar o perigo é ver como nele a exigência de recuperação dos objetos ganha novo sentido. Seguindo a linha mestra de raciocínio do livro, o aspecto positivo da contradição da Teoria, a sua demanda de liberdade, ao mesmo tempo que se adapta ao mercado neoliberal, possui uma dimensão utópica: “uma utopia do conhecimento, livre das amarras da tradição e da nacionalidade” (p. 29). Porém, como separar essa extrema liberdade autoproclamada da arbitrariedade advinda muitas vezes de instâncias de poder contrárias à mesma liberdade proposta pela Teoria? A resposta compõe o eixo mais importante da discussão proposta pelo livro: “a teoria americana é legítima quando permite o surgimento de um objeto que sem ela seria inconcebível” (p. 116). Nesse sentido, os objetos que precisam ser recuperados não são os antigos objetos da teoria literária, pois aqui não se trata de uma nostalgia ou de simples vinculação à Teoria Crítica. Não é o caso de voltar a ler os textos como Benjamin lia Kafka, Goethe ou Baudelaire, ou Adorno lia Eichendorff ou Beckett, embora esses ensaios de maneira alguma saiam do horizonte. Os objetos a serem recuperados, se entendo bem o sentido profundo do livro, ainda não existem ; eles não são “coisas” que foram abandonadas e podem ser simplesmente reencontradas. A demanda de Fabio Durão é por novos objetos que surgiriam somente quando a Teoria refletisse radicalmente sobre ela mesma, exasperando as suas insuficiências e fazendo surgir de uma severa autocrítica a possibilidade de emancipação real, uma emancipação que gerasse um “outro”. Assim, os objetos são uma espécie de alteridade utópica nascida da autorreflexão da Teoria sobre seus paradoxos, uma tentativa de sair de si mesma por uma dialética implacável, da qual decorreria no campo dos estudos literários, uma exigência de transformação social, uma práxis libertária. Alcançar a alteridade é também alcançar aquela limitação e particularização que definem uma personalidade – um nome –, e buscam retomar algo de humano, de realmente diferenciado, na lógica produtiva e mercantil atual. Recuperar os objetos, então, não é somente um conselho ou uma exigência, é igualmente uma promessa de felicidade e de superação da mercadoria no âmbito dos estudos literários.

Leandro Pasini.

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Martinha versus Lucrécia. Ensaios e entrevistas, de Schwarz, Roberto-Schwarz-(NE-C)

SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. Ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Resenha de: QUERIDO, Fabio Mascaro. Colapso da modernização. Roberto Schwarz e a atualização da dialética à brasileira. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.97, Nov, 2013.

A figura intelectual de Roberto Schwarz (1938) dispensa grandes apresentações. Filho de imigrantes vienenses, crítico e ensaísta bastante (re)conhecido, sua trajetória permite observar de um ângulo privilegiado – do ponto de vista dos vencidos de hoje e de ontem – as experiências da esquerda intelectual brasileira, desde a aposta algo otimista nos desdobramentos da radicalização política do início da década de 1960 até o atual estágio destrutivo do desenvolvimento capitalista, já num contexto de “colapso da modernização”. A abrangência temática, passando por diferentes esferas da vida cultural, assim como a originalidade de sua filiação dialética, fizeram da obra de Roberto Schwarz um testemunho ativo das transformações e reviravoltas do pensamento crítico brasileiro, em suas diversas tentativas de se reinventar à luz das condições de possibilidade de um presente determinado.

Por isso mesmo, seu mais recente livro, Martinha versus Lucrécia – que reúne quase duas dezenas de ensaios e entrevistas do autor no último decênio -, constitui uma bela amostra de uma crítica dialética afinada com seu “tempo-de-agora”, capaz de articular num só processo de reflexão as novas aparições de sua matéria básica (no caso, a matéria brasileira) e a meditação sobre as formas de abordagem teórica dessa matéria. Com efeito, se os ensaios retomam temas que há muito constavam no repertório do autor – sobretudo a interpretação de Machado de Assis e a presença teórica constante de Antonio Candido -, o fazem sob nova chave histórica, acompanhando, por assim dizer, os desdobramentos da ordem capitalista contemporânea. O método dialético afiado permanece, mas adquire novas tonalidades, à altura da ruptura de época, que altera significativamente os termos da oposição entre local e universal – o que já se pode notar no primeiro texto, “Leituras em competição”, no qual as divergências entre leituras nacionais e estrangeiras da obra de Machado de Assis são postas à prova das novas características do desajuste entre a particularidade brasileira e a pretensa universalidade da experiência europeia transformada em modelo histórico.

A compreensão deste verdadeiro “sentimento da dialética” que a experiência brasileira colocava em cena, e da qual Machado foi um “mestre” em sua capacidade de formalização literária, apresentava-se para Roberto Schwarz – desde os tempos de estudante de Ciências Sociais, quando participara ativamente das reuniões do Seminário d’O Capital – como oportunidade histórica para o desenvolvimento de um ensaísmo dialético estreitamente vinculado às transformações de sua matéria particular (o próprio Brasil), cujas características de atraso em relação à norma-padrão não significavam um simples desvio ou exceção, pronto a ser superado por uma “viravolta iluminada”, mas, sim, parte constituinte e indispensável à reprodução da ordem capitalista global. O “progresso” já estava em marcha, e a condição de subdesenvolvimento era já o próprio futuro no presente, reincorporando em novas formas aspectos aparentemente insuperáveis do passado. “Os meninos vendendo alho e flanela nos cruzamentos com semáforo não são a prova do atraso do país, mas de sua forma atroz de modernização.”1

Como já havia demonstrado em seus trabalhos anteriores, a função do narrador nos romances de Machado de Assis posteriores à “reviravolta machadiana” (título do penúltimo ensaio2), mais concretamente após a publicação do célebre Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1880, era justamente articular um novo dispositivo formal (não realista) capaz de forjar uma percepção realista das dissonâncias e ambivalências das classes dominantes no Brasil do século XIX, as quais “lideravam” a desagregação do progresso burguês na periferia do sistema, e “afastavam do padrão moderno – mas não da modernidade sem padrão – a nossa gente de bem”3. A acuidade dialética era inequívoca, pois, com esse arranjo formal, “o narrador machadiano realizava em grau superlativo as aspirações de elegância e cultura da classe alta brasileira, mas para comprometê-la e dá-la em espetáculo”, ridicularizando-a aos olhos do superego europeu4. No plano histórico-concreto, demonstrava-se então que “os proprietários [brasileiros] participa[va]m intensamente do progresso contemporâneo, mas isto graças às relações antiquadas em que se apoia[va]m, e não a despeito delas, e menos ainda por oposição a elas, como imaginaria o senso comum”5.

É por este motivo que, no fim das contas, as ideias liberais-burguesas estavam e não estavam no lugar na sociedade brasileira periférica do século XIX, conforme reafirma Roberto na conferência “Por que ‘ideias fora do lugar’?”6, proferida em Buenos Aires, em 2009, na qual o crítico sustenta – na contramão das críticas de Maria Sylvia de Carvalho Franco e de Alfredo Bosi – que o título aludia, à época, mais a uma sensação comum de desajuste e dissonância do que a uma opinião ou prognóstico do autor, uma vez que, no limite, as “ideias têm sempre alguma função, e nesse sentido sempre estão no seu lugar”7.

Para entender a realidade brasileira, em sua conexão com a ordem mundial, mas também em suas singularidades mais ou menos irredutíveis, era preciso, portanto, na ótica de Schwarz, restabelecer o primado do objeto (no dizer de Adorno, tema exclusivo de uma das entrevistas do livro8), configurando uma dialética aberta – avessa às formalizações sistemáticas – e que opera por meio de totalizações provisórias. Entre processos sociais globais e objetos estético-culturais não há, no pensamento de Roberto, qualquer forma de sociologismo, tampouco de determinismo causal. Há, isto sim, complexos de relações expressivas (como diria Walter Benjamin) entre domínios diversos, e às vezes opostos, da vida social e das mudanças culturais, que se “internalizam” reciprocamente e, assim, “ficam articulados por dentro”9. A sua própria forma de exposição sugere um olhar duplo: de “dentro” e de “fora”, como se cultura e relações capitalistas, ou, em outras palavras, civilização e barbárie, fossem uma só totalidade dialética em movimento.

Trata-se, no limite, de encontrar nos pequenos fragmentos da cultura – através dos artifícios da crítica imanente – indícios analíticos do processo social, num constante vaivém dialético entre mediações de diversos níveis. Daí o seu ensaísmo inconfundível, no qual os temas vão reaparecendo e sendo retomados com novas configurações no interior dos textos. A impressão de redundância representa, antes, uma escrita certeira, não linear, que, se não escapa às vezes a certo hermetismo, quase sempre flui como uma espécie de composição dialética em ato. Basta ver, por exemplo, suas análises da prosa ensaística de Gilda de Mello e Souza, em que – ao sustentar teoricamente a análise formalimanente da autora – compõe ele próprio uma prosa que é também uma amostra de tal método crítico, cujo papel ativo na determinação do objeto não anula – muito pelo contrário – o seu primado materialista.

A preocupação com as tensões entre a escrita e o objeto abordado, entre forma de exposição e conteúdo, preocupação que atravessa o ensaísmo de Schwarz, revela não apenas a precariedade do objeto, senão também a precariedade da própria escrita, motivo pelo qual o autor é impelido a realizar um significativo esforço de autorreflexão, num esplêndido exemplo daquilo que Fredric Jameson denominou “autoconsciência dialética”, dispositivo necessário para a manutenção do caráter crítico e atualizador do marxismo.

Mas “autoconsciência”, no caso, era nada mais nada menos do que a consciência permanente de que o ponto de vista do crítico, além de “universalmente” anticapitalista, está situado na periferia do sistema, impondo desafios extras, além dos materialmente já conhecidos, ao mesmo tempo que abre um novo leque de possibilidades no âmbito da reflexão crítica sobre a ordem burguesa moderna. Dos elos mais débeis da reprodução global do sistema capitalista, com todas as mazelas que lhes correspondem, aparecem com maior nitidez e agudeza as perversões e os limites do “progresso”. Não por acaso, e a obra de Roberto Schwarz (bem como a de seu mestre Machado) é uma prova concreta disso, a perspectiva da periferia estimulou respostas intelectuais e artísticas ousadas, difíceis de visualizar situando-se sob o ângulo da linha evolutiva do progresso dos países centrais. Uma pequena “vantagem do atraso”, meramente intelectual ou simbólica, mas que em certa medida serviu para antecipar alguns dos rumos assumidos pelo capitalismo contemporâneo, quando a fratura social não é mais privilégio da periferia.

Desde algumas décadas, com a terceira revolução industrial e o consequente esgotamento dos paradigmas da modernização e do desenvolvimentismo, novas dificuldades surgiram no espectro do pensamento crítico e da esquerda intelectual. (A propósito, ver o ensaio do próprio Roberto sobre a – não – atualidade de Brecht, baseado no argumento de que, no contexto contemporâneo, a “verdade” não aparece na vida social com a mesma nitidez dos tempos do poeta e dramaturgo alemão). Neste contexto, salta aos olhos a necessidade de um novo diagnóstico de época, cuja realização depende de uma “atualização” da reflexão teórica em função do presente, uma “atualização” que, cancelando todo compromisso com a modernização capitalista, encontra nas experiências da periferia um prelúdio trágico da nova ordem: a flexibilidade (leia-se: precariedade) e a informalidade não são uma novidade para nós.

Por isso, é como se o “presente [fizesse] ver no passado sobretudo o prenúncio do impasse atual, impugnando as evidências externas do progresso”10. Pois agora, de uma vez por todas, “o jogo entre informalidade e norma perdeu o vetor temporal, ligado às promessas da modernização. A informalidade não está vencida, a norma não está no futuro, ou, ainda, a norma é que pode ser coisa do passado, enquanto a informalidade se instalou a perder de vista”11 – como diz Schwarz ao comentar os poemas de Francisco Alvim (“Um minimalismo enorme”12). Bem entendido, desde a emergência dos tempos da assim chamada globalização, “para desconcerto geral da esquerda, a modernização agora se tornava e reiterava a marginalização e a desagregação social em grande escala”13, afirma o crítico numa das três entrevistas inseridas no livro (“Agregados antigos e modernos”14). Da dialética da malandragem com seus contornos de uma via alternativa de modernização chega-se, enfim, à marginalidade entranhada num “estado de exceção permanente”.

Como observa muito bem Roberto Schwarz no ensaio “Prefácio a Francisco de Oliveira, com perguntas”, a própria trajetória intelectual de Chico de Oliveira, da Crítica à razão dualista (1972) ao Ornitorrinco (2003), reflete os andamentos do congestionamento histórico do desenvolvimentismo como solução para os problemas estruturais do país, no espectro das brechas propiciadas pela modernização e pela segunda revolução industrial. Se, no primeiro trabalho, embora desmontasse criticamente o dualismo cepalino e, por conseguinte, os esquemas etapistas do marxismo oficial (pcb), ainda restava alguma esperança nas possibilidades da luta nacional contra o subdesenvolvimento, o segundo ensaio, em espírito de anticlímax, “reconhece o monstrengo social que, até segunda ordem, nos transformamos”15: o “ornitorrinco”, este “bicho que não é isto nem aquilo” que veio a se tornar o “país do futuro”. Neste contexto, “o subdesenvolvimento deixa de existir, mas não as suas calamidades”16.

O longo ensaio sobre o livro de Caetano Veloso (“Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo”17), previsivelmente o mais comentado nos âmbitos midiáticos, é peça-chave da composição desta argumentação, à medida que desvela um processo concreto de aceitação deliberada dos termos da “nova ordem mundial” em sua versão periférica, refletindo os ressentimentos subsequentes ao fracasso do “percurso democrático de modernização”18. Para Schwarz, o valor literário da obra de Caetano, publicada em 1997, encontra-se na capacidade de descrever, mais de três décadas depois, a atmosfera de esperança e de ebulição (e, claro, também de ilusões) da radicalização política e estética em Salvador (e no Brasil) nos anos que precederam 1964. Mas tal valor reside também, desde que o texto seja lido como uma “dramatização histórica” – o que inclui uma “boa dose de leitura a contrapelo” -, na análise da maneira como Caetano vai acertando os pontos com a normalização e o “horizonte rebaixado e inglório do capital vitorioso”19.

É no espectro deste “inconsciente político” – que vai da esquerda à direita – que sobressai a versão carnavalizada (tropicalista) de uma modernização que, sobretudo após o golpe de 64, seguiu o rumo dos imperativos do mercado (acrescida de boa dose de violência política), abandonando de vez as promessas que pareciam acompanhá-la. Se a nossa modernidade é isso que está aí, o caminho em direção ao mercado, assim como o abandono das esperanças políticas anticapitalistas, era quase inevitável, intensificando-se até chegar ao auge (neo)liberal a partir da década de 1990.

No caso de Caetano, o fracasso da esquerda ganhava ares de alívio, sendo antevisto como estímulo à libertação dos mitos dos revolucionários, com sua fé disciplinada na “energia libertadora do povo”. A sensação era de ruptura com uma prisão mental, algo um tanto análogo ao culto pós-modernista da falência dos grandes projetos intelectuais e artísticos mais ou menos engajados. E para facilitar o trabalho de “desconstrução”, Caetano generalizava “para a esquerda o nacionalismo superficial dos estudantes que o vaiavam, bem como a idealização atrasada da vida popular que o Partido Comunista propagava”20.

Com uma leitura bem particular (para dizer o mínimo) de Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, Caetano levou adiante um processo de reavaliação radical do passado recente, visualizando nas decepções do personagem intelectual Paulo Martins o clímax da desintegração definitiva da aliança entre intelectual e povo – argumento que lhe bastava para comprovar a necessidade de se abandonar o engajamento e as “ilusões” de outrora, inserindo-se nas questões de real importância, sediadas no mercado. Noutras palavras: “A desilusão de Paulo Martins transformara-se em desobrigação. Esta a ruptura, salvo engano, que está na origem da nova liberdade trazida pelo tropicalismo. Se o povo, como antípoda do privilégio, não é portador virtual de uma nova ordem, esta desaparece do horizonte, o qual se encurta notavelmente”21. O antagonismo cede lugar ao desejo de conciliação, que não recuou nem mesmo diante do desafio de legitimar a ditadura civil-militar implantada em 1964, “contra a ameaça do bloco comunista”, como diz o próprio Caetano22. Daí em diante, a adesão ao discurso dos vencedores transformava-se em fato consumado, adesão, aliás, que permanece dando o tom cada vez mais conservador das posições políticas do compositor.

Pois bem: destas análises contemporâneas de Roberto Schwarz, que mantêm e, de certa forma, ampliam o nível de acuidade crítica que sempre lhe foi característico, sobressalta a ideia-básica – que também pode ser encontrada nas reflexões mais recentes de Chico de Oliveira ou de Paulo Arantes – de que um novo diagnóstico de época pressupõe, acima de tudo, a atualização da tradição dialética à brasileira, dotando-a de condições teóricas, intelectuais e políticas para confrontar os novos dilemas que emergiram no atual estágio de reprodução social e cultural do sistema. Melhor dizendo: tratar-se-ia de se repassar os lugares-comuns da tradição crítica brasileira, como a ideia da construção nacional interrompida, por um prisma teórico e político à altura das inflexões do presente (mais uma vez, seria preciso questionar: “Que horas são?”).

Pois o “colapso da modernização” (Robert Kurz) e de suas brechas históricas significa, ao mesmo tempo, um esmaecimento de um padrão (e/ou norma) histórico que, de fato, nunca passou de uma “inspiração”, ou melhor, “aspiração” política, intelectual e cultural de nações de desenvolvimento capitalista tardio, da periferia da ordem global. Hoje em dia, quando o estado de exceção parece permanente até mesmo em alguns países ditos centrais, a periferia continua periferia (“Martinha [continua estando] para Lucrécia como o Brasil para os países adiantados”23, donde a filiação machadiana do título24). Porém, agora, também a periferia está completamente sitiada pelos preceitos da forma-mercadoria e dos seus paradoxais “sujeitos monetários sem dinheiro” (outra ideia de Robert Kurz retomada criticamente por Schwarz). Com efeito, o cenário se complica ainda devido ao caráter difuso e à aparente ausência de classes sociais potencialmente antagônicas, as quais se revelam como que emboladas na vala comum das “águas geladas do cálculo mercantil” (Marx).

O pensamento de Roberto Schwarz, que jamais se furtou a tomar como matéria decisiva os imbróglios do presente (“O crítico precisa ter a atualidade bem agarrada pelos chifres”, como disse Walter Benjamin, citado pelo autor25), constitui uma preciosa – se não indispensável – contribuição para a revitalização da teoria crítica e o alargamento do horizonte político das classes subalternas no Brasil e no mundo, que ainda aguardam, a partir dos múltiplos focos de lutas de resistência (como os mutirões e as lutas por moradia popular, abordadas nos dois textos sobre temas da arquitetura26), um novo despertar histórico. Este protagonismo do presente, que Roberto Schwarz visualiza na obra de seu amigo Michael Löwy (“Aos olhos de um velho amigo”27), caracteriza um pensamento em consonância com a realidade realmente existente, mas voltado também para a “imaginação” dialética das potencialidades emancipatórias imanentes dirigidas ao futuro.

 Notas

1 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 164.         [ Links ] 2 Ibidem, pp. 247-79.
3 Ibidem, p. 272.
4 Ibidem, pp. 271-3.
5 Ibidem, p. 275.
6 Ibidem, pp.165-72.
7 Ibidem, p. 170.
8 Ibidem, pp. 44-51.
9 Ibidem, p. 72.
10 Ibidem, p. 136.
11 Ibidem, p. 136.
12 Ibidem, pp. 111-42.
13 Ibidem, p. 178.
14 Ibidem, pp. 173-83.
15 Ibidem, p. 152.
16 Ibidem, p. 157.
17 Ibidem, pp. 52-110.
18 Ibidem, p. 75.
19 Ibidem, p. 110.
20 Ibidem, p. 90.
21 Ibidem, p. 79.
22 Cf. ibidem, p. 108.
23 Ibidem, p. 44.
24 A crônica “O punhal de Martinha”, publicada por Machado de Assis em 1894, e que serve de inspiração ao título dado por Schwarz, está reproduzida como apêndice no livro (pp. 307-10).
25 SCHWARZ, op. cit., p. 157.
26 “Saudação a Sergio Ferro” (pp. 215-22) e “Um jovem arquiteto se explica” (pp. 223-31).
27 Ibidem, pp. 207-14.

Fabio Mascaro Querido- Doutorando em Sociologia no IFCH-Unicamp e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

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São Paulo: Novos recursos e atores – Sociedade, cultura e política – KOWARICK; MARQUES (NE-C)

KOWARICK, Lúcio; MARQUES, Eduardo (Orgs.). São Paulo: Novos recursos e atores – Sociedade, cultura e política.  São Paulo: Editora 34/Centro de Estudos da Metrópole, 2011. Resenha de: Goulart, Jefferson. Novos percursos e atores em São Paulo: indicativos para uma agenda de pesquisa. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.97, Nov, 2013

É conhecido o enigma da esfinge: decifra-me ou te devoro. A ideia fundamental consiste em que o ignorado é capaz de nos tragar precisamente pela dificuldade de compreendê-lo. Provavelmente a mais radical efetivação do enunciado tenha se materializado por ocasião da ruptura com o Ancien Régime e na invenção da modernidade, quando Saturno revelou sua fúria e devorou os próprios filhos – os rebentos da revolução. A pergunta indigesta permanece: mesmo em um novo mundo pautado pela razão, estaríamos condenados à ignorância?

Particularmente no que respeita aos estudos urbanos, nossa trajetória intelectual é valiosíssima. As pesquisas de diferentes áreas do conhecimento e mesmo aquelas de abordagem interdisciplinar produziram um extenso mosaico sobre a realidade urbana brasileira, notadamente das grandes cidades. Não por acaso, a obra organizada por Kowarick e Marques se inicia no olhar panorâmico e retrospectivo sobre essa produção.

O legado desse conhecimento influenciou gerações de estudos, demarcando a indissociável relação entre segregação socioespacial e dinâmica capitalista, ou seja, o urbano tratado como objeto privilegiado de reprodução do capital sob o impulso do Estado mediante a existência de um exército industrial de reserva. Pobreza e desigualdade tematizaram a literatura correspondente para depois se fragmentarem teórica e metodologicamente.1

Mesmo assumindo-a como uma escolha arbitrária, a síntese dessa tradição de pesquisa pode ser identificada no achado seminal de que a percepção de caos e a aparente ausência de ordem tinham, sim, uma lógica: a da espoliação urbana.2 Mais ainda: a acumulação foi operada por meio de mecanismos de dilapidação da força de trabalho (e nas formas perversas de sua reprodução), da primazia do capital financeiro-imobiliário que se manifestou em grandes ações das incorporadoras e da interrupção de direitos de cidadania mediante uma ação estatal autoritária. Enfim, uma urbanização anômica3 que se traduziu em uma desordem ordenada.

A multiplicidade de influências teóricas e de escolhas metodológicas dessa rica tradição – dentre as quais se destaca o prestígio da matriz estruturalista da sociologia marxista francesa – ensejou um consenso genérico sobre o processo de urbanização em geral e particularmente sobre sua maior cidade: “cidade multifacetada, plena de contrastes, conjugando dinamismo, coração econômico do país marcado por vastas extensões de pobreza”.4 São Paulo é isso e muito mais.

São Paulo: novos percursos e atores se debruça precisamente sobre esse “muito mais”, e oferece um largo panorama das mudanças recentes, das permanências e das rupturas que fizeram dessa megalópole um lugar paradoxal que provoca amor e ódio, e cujo magnetismo já não é mais o mesmo a ponto de atrair e fascinar os incautos. Assim desmistificam-se as previsões demográficas do século XX5, constatação inseparável da tendência à sobreposição de funções de estruturas econômicas industriais e terciárias.6 Mais ainda: as desigualdades do mercado de trabalho têm determinações anteriores ao acesso à ocupação, relacionadas aos atributos desses candidatos ao emprego e aos contextos nos quais estão inseridos.7

A chave do enigma foi anunciada no título da obra, na adoção de um adjetivo temporal no plural: novos. É em torno dessa escolha (menos semântica e mais conceitual e analítica) e de sua subjacente aspiração ao postulado de que, com efeito, emergiram novos personagens e engrenagens, que o livro deve ser compreendido. E a referência cronológica não deve ser ignorada: embora nem todos os autores a adotem como recorte específico, as últimas quadro décadas alteraram substantivamente as configurações socioeconômica e político-institucional da cidade. Dessa perspectiva, organizadores e autores não só são convincentes como remetem a problemas cuja complexidade ainda precisa ser analisada contínua e detidamente.

Nesses termos, São Paulo: novos percursos e atores ingressa na galeria das leituras obrigatórias sobre o urbano porque sintetiza uma guinada sutil nos estudos sobre a grande megalópole. E as razões dessa distinção são diversas.

Primeiro, naturalmente, porque é convincente na pretensão de demonstrar a originalidade de alguns desses novos atores e percursos. Vista de um ângulo genérico ou aparente , evidente que São Paulo permanece segregadora, desigual e paradoxal: opulência e riqueza de um lado, vulnerabilidade e miséria de outro. Mas o tempo e os subterrâneos da cidade abrigaram mudanças importantes de quantidade e qualidade que a tornaram efetivamente diferente sob vários aspectos, a ponto de a oposição centro-periferia não ser mais suficiente como modelo explicativo das desigualdades urbanas.

Alguns exemplos simbolizam bem essas mudanças. O primeiro deles reside no plano da identidade cultural e particularmente na emergência do rap como expressão periférica de ressignificação da vida pública fundada em uma “ordem moralista, onde não existe lugar para diferença”.8 Outro é a dificuldade de discernir linhas divisórias precisas entre o “correto” e o “ilegal, o informal e o ilícito”, afinal essas dimensões (como o negócio do comércio de drogas) são socialmente legitimadas, assim como “nesses pontos de fricção que homens e mulheres negociam a vida e os sentidos da vida. No fio da navalha. O fato é que os indivíduos e suas famílias transitam nessas tênues fronteiras do legal e do ilegal…”.9

Além da presença de novos atores (caso emblemático do pcc), “o mapa da violência em São Paulo revela o confinamento da violência letal nas periferias: as franjas da cidade concentram o maior numero de homicídios”.10

Antes cidade de portugueses, italianos, espanhóis, orientais, sírio-libaneses, ex-escravos e judeus que imprimiram suas marcas a bairros, costumes e à materialidade da urbe, a São Paulo contemporânea acolhe novos estrangeiros, cujo ingresso é útil para também compreender processos complementares como a produção de serviços urbanos, as relações capital-trabalho ou as interações culturais.11

Cidade de favelização tardia comparativamente ao Rio de Janeiro, São Paulo vem registrando uma expansão desse tipo de habitação precária que sintetiza um fenômeno indissociável de sua dinâmica econômica, com destaque para a precarização do trabalho como sintoma de um estado de vulnerabilidade social mais amplo. Essa trajetória, contudo, não é linear. Tal heterogeneidade autoriza a formulação de uma “tipologia das favelas”, cuja “análise comparativa permite sustentar a existência de uma razoável variabilidade entre núcleos favelados da cidade”.12 Ainda mais surpreendente (e perturbador) é que “em termos relativos, as favelas não apenas melhoraram, como se aproximaram da situação de outros moradores da cidade, sugerindo um processo de convergência, incompleto e talvez excessivamente lento, mas mesmo assim existente entre os indicadores médios de favelados e não favelados”.13

Outros exemplos se situam no plano das relações políticas. De um lado, há que se reconhecer o processo de institucionalização da participação, mas essa trajetória não prescindiu da permanência dos movimentos sociais. Pelo contrário, estes ainda são vigorosos, sobretudo, nas temáticas mais sensíveis das políticas públicas, caso notável da centralidade da habitação.14 Claro que as práticas de clientela não desapareceram, mas os atores também não são apenas os tradicionais, aos quais se juntaram as articuladoras do associativismo, “novo tipo de ator criado na última década [que] ganhou centralidade e posicionou-se ao lado dos movimentos pela sua capacidade de agregação de demandas e de coordenação da atuação de outros atores”.15

Nessa senda, a violência organizada não se confunde com os movimentos sociais, mas não deixa de exprimir um novo e importante protagonista na cena urbana. Se em tempos não tão remotos a ascensão socioeconômica transcorria por meio das teias de integração social do trabalho, agora o cenário é bem diferente, pois “abriu-se espaço para que o ‘mundo do crime’ disputasse legitimidade com toda essa série de instituições e atores tradicionalmente legítimos nas periferias da cidade”.16 Tais mudanças foram percebidas inclusive pelo cinema, que as retratou de maneira ora caricata, ora mais realista, através de registros que às vezes selam o abismo entre distintos universos sociais e a impossibilidade de convívio entre esses mundos diferentes ou que exaltam marcas identitárias da periferia.17

No plano estritamente político, a análise de Limongi e Mesquita18 demonstra a polarização entre direita e esquerda no comportamento do eleitorado paulistano desde o restabelecimento das eleições diretas para prefeito da capital, em 1985. Os autores observam a estabilidade do eleitorado e enfatizam que as disputas têm nos eleitores de educação média (no quesito socioeconômico) e de centro (no quesito ideológico) seu núcleo decisivo. Se tais postulados estiverem corretos – e há fortes razões para aceitá-los -, os resultados de 2012 marcam uma importante guinada rumo à esquerda, cuja inclinação do centro ainda está por ser analisada.

Mas há pelo menos duas omissões importantes nas abordagens políticas do livro. A primeira diz respeito não às estratégias eleitorais e ao comportamento (relativamente flutuante) do eleitorado, mas ao desempenho desses diferentes governos de direita e de esquerda, ou seja, como estes têm se comportado na gestão de políticas públicas e quais teriam sido as razões para as oscilações do eleitorado centrista.

Outra ausência é a escassez de análises de gestão urbana, isto é, as políticas públicas e os instrumentos através dos quais os diferentes governos municipais têm enfrentado a agenda urbana: a gestão do território, a aplicação da função social da propriedade, o tratamento das agudas questões da mobilidade urbana e da habitação social (dentre outras), enfim uma avaliação político-institucional do modelo de produção do espaço urbano. Nesse sentido, um balanço – mesmo que preliminar – sobre a aplicação do Estatuto da Cidade seria indispensável, afinal, trata-se de bandeira histórica do movimento pela reforma urbana que vigora desde 2001, regulamentou o capítulo da Política Urbana da Constituição cidadã e que tem suas marcas institucionais no Plano Diretor Estratégico de São Paulo.

A segunda razão do caráter original do livro diz respeito à sua pluralidade teórica e metodológica, mérito que corrobora a correção de abordagens interdisciplinares e multidisciplinares sobre um mesmo objeto.

Definitivamente não há hierarquia entre escolhas de ferramentas sociológicas, urbanísticas, etnográficas, demográficas, políticas, comunicacionais e quaisquer outras. Pelo contrário, seus usos simultâneos produzem modelos explicativos mais sólidos e análises mais críveis. Essa diversidade de olhares revela descobertas e resultados complementares. Tal virtude contrasta com a tendência tão em voga de fragmentação excessiva do conhecimento, inclinação absorvida pelas instituições científicas e respectivas agências cujo maior risco é o confinamento do saber. São Paulo: novos percursos e atores ousa ir contra a maré, e o faz de forma persuasiva.

A terceira virtude da obra é que, mesmo não tendo a pretensão de ser conclusiva, remete a uma agenda de pesquisa que, embora já se manifestasse de forma mais ou menos difusa, ainda não fora objeto de um esforço de sistematização.

Em boa medida, essa agenda está anunciada nos temas e nas abordagens dos autores – e até poderíamos aceitar o agrupamento apresentado pelos organizadores: “viver e habitar na cidade”; “trabalho e produção”; “política e representação”; e “sociabilidade, cotidiano e violência” -, mas a proposta ainda se revela incompleta. E este é um ponto delicado, pois também envolve escolhas éticas e alguns tabus no universo acadêmico.

Um exemplo provocativo: conhecemos razoavelmente a precariedade da infraestrutura urbana das periferias, das favelas e dos cortiços, estudamos as diferentes expressões da violência e suas determinações e impactos ou ainda sabemos dimensionar minimamente os efeitos da informalidade nas relações de trabalho, todas essas dimensões relativas aos pobres e miseráveis, mas são escassos os estudos sobre os “de cima” da pirâmide social, como se sua posição socioeconômica privilegiada fosse justificativa moral para ignorá-los.

Essa lacuna é reconhecida pelos próprios organizadores quando advertem que [o livro] “não analisa centralmente um outro lado da cidade, que envolve parcela significativa da riqueza nacional”.19

A propensão a dar as costas a esses atores gera prejuízos cognitivos à medida que desconhecemos como vivem, como se organizam e como atuam tais personagens. Ou seja, como suas escolhas (e percursos) interferem na dinâmica urbana. Claro que a “desumanidade da Cracolândia”20, por exemplo, é um grande tema de pesquisa, porém, é inegável que a solução dessa chaga – em suas múltiplas dimensões: da marginalização social per se, da generalização do consumo de drogas, da saúde pública ou da violência – implica conhecer o “outro lado”, qual seja, a banda dos concertos da Sala São Paulo e os interesses imobiliários que operam no Projeto Nova Luz (e que são característicos de quaisquer processos de gentrification). Ou ainda: que o conhecimento sobre a expansão da favelização é inseparável da ação dos interesses do capital imobiliário e da conduta empresarial nas relações trabalhistas. Assim sucessivamente poderiam ser invocados exemplos ad nauseam. Fato é que ainda conhecemos pouco os “de cima”, e como estes efetivamente interferem na cena urbana e nas decisões públicas.

Em seu primeiro pronunciamento após vencer as eleições de 2012, o novo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, declarou que a cidade foi inventada para proteger e promover a integração social, e que era seu compromisso resgatar tais ideais. Bom presságio, em que pese o sabido abismo que separa o discurso normativo da realidade. O enigma da esfinge permanece nos desafiando: ou compreendemos São Paulo ou ela nos devora. Nesses termos, seria mais do que oportuno – na verdade um imperativo – absorver a advertência de J. Jacobs de que cidades vivas têm em suas próprias crises os germes da regeneração.21 O próximo período poderá responder se esse otimismo contido é justificável.

Novos personagens e seus respectivos caminhos foram enunciados em 16 textos por 26 autores – baliza paradigmática na agenda de pesquisa sobre o urbano em geral e São Paulo em particular -, restando agora continuar a decifrá-los. Este é, simultaneamente, o mérito e o desafio de São Paulo: novos percursos e atores.

Notas

1 MOYA, Maria Encarnación. “Os estudos sobre a cidade: quarenta anos de mudança nos olhares sobre a cidade e o social”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (Orgs.). São Paulo: novos percursos e atores – sociedade, cultura e política. São Paulo: Editora 34/Centro de Estudos da Metrópole, 2011, pp. 25-50.         [ Links ] 2 A esse respeito, ver: KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.         [ Links ] 3 KOWARICk e MARQUES (orgs.), op. cit., p. 15.
4 Ibidem, p. 9.
5 BAENINGER, Rosana. “Crescimento da população na Região Metropolitana de São Paulo: descontruindo mitos do século XX”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 53-78.         [ Links ] 6 COMIN, Alvaro. “Cidades-regiões ou hiperconcentração do desenvolvimento? O debate visto do Sul”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp.157-177.         [ Links ] 7 GUIMARÃES, Nadya; BRITO, Murillo de; SILVA, Paulo Henrique da. “Os mecanismos de acesso (desigual) ao trabalho em perspectiva comparada”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 179-204.         [ Links ] 8 CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. “O rap e a cidade: reconfigurando a desigualdade em São Paulo”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 318.         [ Links ] 9 TELLES, Vera da Silva; Hirata, Daniel. “Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 391.         [ Links ] 10 MIRAGLIA, Paula. “Homicídios: guias para a interpretação da violência na cidade”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 334.         [ Links ] 11 LEME, Maria Cristina da Silva; Feldman, Sarah. “A presença estrangeira: processos urbanos e escalas de atuação”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 131-154.         [ Links ] 12 SARAIVA, Camila; Marques, Eduardo. “Favelas e periferias nos anos 2000”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 119.
13 Ibidem, pp. 126-7.
14 TATAGIBA, Luciana. “Relação entre movimentos sociais e instituições políticas na cidade de São Paulo: o caso do movimento de moradia”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 233-252.         [ Links ] 15 LAVALLE, Adrian Gurza; CASTELLO, Graziela; BICHIR, Renata. “Movimentos sociais e articuladoras no associativismo do século XXI”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 260.         [ Links ] 16 FELTRAN, Gabriel. “Transformações sociais e políticas nas periferias de São Paulo”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p. 361.         [ Links ] 17 HAMBURGUER, Esther; STÜCKER, Ananda; CARVALHO, Laura; Ramos, MIGUEL. “Cinema contemporâneo e políticas de representação da e na urbe paulistana”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 279-299.         [ Links ] 18 LIMONGI, Fernando; Mesquita, Lara. “Estratégia partidária e clivagens eleitorais: as eleições municipais pós-redemocratização”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., pp. 207-232.         [ Links ] 19 KOWARICK e MARQUES, op. cit., p. 16.
20 KOWARICK, Lúcio. “O centro e seus cortiços: dinâmicas socioeconômicas, pobreza e política”. In: KOWARICK, Lúcio e MARQUES, Eduardo (orgs.), op. cit., p.88.         [ Links ] 21 JACOBS, Jane. Morte e Vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.         [ Links ]

Jefferson O Goulart – Professor do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec).

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Luto e Melancolia – FREUD (C-FA)

FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. Tradução de Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Resenha de BAZZO, Renata. O marco de uma tradução. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.22, Jul-Dez, 2013.

Publicada pela primeira vez na Revista Novos Estudos em 1992 1, a tradução de Luto e Melancolia, de Sigmund Freud, realizada pela psicanalista Marilene Carone, foi apresentada ao público, em 2011, na forma de livro pela Editora Cosac Naify. Nesta edição, encontram -se, além da tradução propriamente dita, um prefácio de Maria Rita Kehl, um pequeno texto de Modesto Carone, no qual se esboça o percurso de Marilene Carone como tradutora da obra de Freud e, finalmente, um posfácio de Urania Tourinho Peres, no qual a autora expõe um pequeno histórico da questão da melancolia na psiquiatria e na obra freudiana.

Poderíamos nos perguntar qual a importância e relevância de republicar uma tradução feita 20 anos atrás, principalmente se consideramos que essa publicação pode ser contada em uma série de traduções mais recentes do texto freudiano, que por ora saem em português, provavelmente estimuladas pelo do fim do domínio de direitos autorais, completados 70 anos da morte do autor. Cabe lembrar que atualmente existem dois projetos para tradução das obras completas de Freud em português pela Editora Companhia das Letras, desde 2010, conduzido por Paulo César de Souza, e também pela Editora Imago, desde 2004, sob a direção de Luiz Alberto Hanns. O leitor pode encontrar também disponível em português, desde 2010, algumas traduções do texto freudiano feitas por Renato Zwick para a Editora L&PM. Além disso, o mais recente projeto de tradução da Editora Autêntica, denominado “Obras Incompletas de Freud” e coordenado por Gilson Iannini, acaba de lançar seus dois primeiros volumes em edição bilíngue.

O texto de Luto e Melancolia foi escrito por Freud em 1915 e publicado em 1917, classificado como pertencente ao conjunto de textos que compõem a metapsicologia. Tendo como pano de fundo a primeira guerra mundial, é possível encontrar nessa e nas outras obras desse mesmo período (“ Introdução ao Narcisismo ”, “ Considerações atuais sobre a guerra e a morte ”, “ A transitoriedade ”) a constelação temática da morte, do luto, do sentimento de culpa, da perda e do trabalho psíquico que envolve a sua elaboração. Na tentativa empreendida por Freud de explicar a melancolia sob o paradigma do luto, o leitor poderá perceber em status nascendi as ideias sobre o super -eu e a pulsão de morte, que só seriam desenvolvidas alguns anos mais tarde pelo psicanalista.

Devido à centralidade desse texto, ele já se encontra traduzido por Hanns 2 (2006) e Souza 3 (2010) em seus projetos, portanto em versões mais recentes que o trabalho de Marilene Carone. Ainda assim, a nosso ver, há razões para sustentar que o trabalho de Carone continua atual, como mostraremos em seguida.

Junto às novas edições mencionadas acima e que vêm agora a público, os interessados também podem usufruir de apresentações importantes a respeito dos principais debates e problemas de tradução dos textos freudianos, solidificando assim a fortuna crítica concernente ao vocabulário teórico do psicanalista vienense no Brasil. Em 1996, Luiz Alberto Hanns apresentou o Dicionário Comentado do Alemão de Freud, composto por 40 vocábulos selecionados como os mais controversos e para os quais faz um estudo vertical profícuo. Além disso, Paulo César de Souza (1999) e Paulo Heliodoro Tavares (2011) apresentam o panorama dos problemas e das críticas que cercam os principais projetos de tradução da obra de Freud no Ocidente, inserindo nesse quadro as considerações sobre as condições brasileiras. Além dessas obras de referência, há atualmente importantes debates sobre o tema em artigos de periódicos. Neste Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, por exemplo, consta recentemente o texto de Ivan Estevão 4 (2012), o qual discute acerca de Trieb, um dos conceitos fundamentais da metapsicologia freudiana que é sabidamente elemento de discórdia entre tradutores e escolas de psicanálise.

No entanto, ainda que tenha ganhado maior densidade nos últimos anos com as novas publicações citadas, o debate sobre a tradução dos textos freudianos já ocorre no Brasil desde os anos 80.

É nesse cenário que podemos reencontrar o nome de Marilene Carone, cujos textos publicados no caderno Folhetim do jornal Folha de São Paulo foram precursores e decisivos para a tradição de debate sobre a qualidade das traduções brasileiras. Nesses textos, Marilene Carone dedicou todos os esforços para evidenciar as mazelas da tradução publicada da Editora Imago, uma versão pouco criteriosa feita a partir de uma tradução inglesa, mais requintada, mas também não menos polêmica.

A primeira versão brasileira de Freud havia sido realizada nos anos 40 pela Editora Delta, também uma tradução que tivera como texto de origem as versões existentes em francês e em espanhol e não o texto fonte em alemão. Por sua vez, a Editora Imago iria lançar nos anos 1970 a versão das obras completas de Freud em português, uma “tradução da tradução” inglesa de James Strachey. O mérito dessa versão inglesa das obras freudianas, denominada Standard Edition, foi organizar os textos cronologicamente, inserir notas e bons prefácios, além da tentativa de estabelecer a unicidade do vocabulário conceitual. No entanto, em 1983, o psicanalista Bruno Bettelheim tornou -se uma voz decisiva no crescente coro das críticas a essa edição, as quais acusavam a versão inglesa de tentar inserir a psicanálise em uma linguagem cientificista e médica, deixando de lado a qualidade literária do texto de Freud, que, como se sabe, recebeu o prêmio Goethe em 1930 5.

No entanto, as críticas que Carone direciona à tradução brasileira de Freud vão muito mais longe do que estas. Em seu primeiro artigo para o Folhetim, intitulado Freud em português: uma tradução selvagem6, a autora elenca os principais problemas, que vão desde a linguagem rebuscada (“ Peço vênia, para fazer um relato ” que poderia ser traduzido por “ Permitam -me fazer um relato ”), ao uso das opções utilizadas em inglês e que soam artificiais para o português (“ mutual relationships ” que poderia ser traduzido por “ relações recíprocas ” mas foi traduzido por “ relações mutuais ”), além dos erros crassos de tradução (“ he was pretending to widdle ” para “ ele estava pretendendo fazer pipi ”) e das metáforas que foram traduzi das ao pé da letra (“ newly -fledged man of Science” traduzido como “ um cientista recém -emplumado ”).

Na continuação de sua crítica, publicada em outubro do mesmo ano 7, Carone assinalou a existência da falta de unidade terminológica no que se refere a alguns dos principais conceitos freudianos na tradução brasileira, possibilitando que em cada volume do conjunto das obras completas estivesse presente uma tradução diferente para o vocábulo. Ela sublinha, além disso, o aparente paradoxo desse fato ao demonstrar como outros vocábulos que não são conceitos fundamentais da obra freudiana receberam bastante atenção nesta versão em português, conferindo a eles um status até então inexistente. Esse paradoxo revela que, se por um lado houve desleixo na tradução, houve também uma decisão ideológica que norteou seu percurso. Desse modo, as escolhas da tradução apontadas por ela no artigo anterior são fruto não apenas do descaso com o texto fonte, mas principalmente uma opção de leitura da teoria e da clínica em psicanálise, transformando conceitos fundamentais em termos corriqueiros e atribuindo dignidade de conceito aos vocábulos menores.

Essas críticas ressoam ainda na tradução de Luto e Melancolia. Na versão publicada pela Editora Cosac Naify, o leitor pode encontrar um quadro em que a tradutora apresenta, compara e comenta as versões de tradução para passagens e expressões importantes do texto freudiano. Assim, ela compara a versão original em alemão, a versão in glesa de James Strachey, a tradução brasileira da Standard Edition e a sua própria versão, seguida de seus comentários e considerações.

Nesse quadro, é possível reencontrar alguns dos apontamentos da autora que estavam presentes no primeiro artigo de Folhetim publicado 1985. De modo geral, a crítica de Carone não incide sobre as opções de Strachey para a versão inglesa, mas sim continua a enfrentar as opções da versão Standard Brasileira. Para além dos absurdos como traduzir “ Abusing it ” por “ abusando ”, também há a tradução de “ Alternation ” por “ Alteração ”. Diante dessa solução, o comentário de Carone limita -se a uma pequena frase na qual questiona se seria esse um “Erro ou cochilo de revisão?” (pp. 94 -95).

Em termos de estilo, Carone destaca a tradução da frase “ The consciousness is aware ” por “ A consciência está cônscia ” e afirma: “Um grande escritor como Freud certamente jamais se permitiria um pleonasmo tão grosseiro como esse…” (pp. 96 -97). Ainda assim, talvez o erro mais grave da tradução brasileira apontado nesse quadro síntese seja a tradução de “ Substitution of identification for object -love ” por “ Substituição da identificação pelo amor objetal ”. Como o leitor poderá notar ao seguir as hipóteses de Freud no texto, essa opção inverte totalmente o sentido da argumentação a respeito dos destinos do investimento libidinal na melancolia.

No entanto, a publicação da versão de Carone não se limita a ser apenas uma reedição das críticas outrora realizadas. A pertinência de publicar o seu trabalho vinte anos depois de sua primeira publicação deve -se à condição de seu texto que, embora antigo, não se tornou datado. Além de representar certamente um grande avanço em relação à tradução disponível à época, para qual ela dirigiu tantas críticas, o trabalho de Carone também se mostra à altura das traduções que foram realizadas anos depois. Um indício disso é que até hoje é possível encontrar nos trabalhos posteriores de tradução de Luto e Melancolia as soluções elegantes dadas por Carone. Talvez a mais conhecida tenha sido a expressão que está presente no parágrafo 12 do texto “ Ihre Klage sind Anklagen ” que Carone traduz por “ Para eles, queixar -se é dar queixa ”. Na versão brasileira anterior, essa frase encontrava -se traduzida por “ Suas queixas são realmente ‘queixumes ’”. Segundo a versão recente de Hanns: “ Seus lamentos e queixas [Klagen] são acusações [Anklagen] ”, mantendo -se os termos originais do alemão entre colchetes. Paulo César de Souza, por sua vez, acata a solução de Carone. O tradutor, em nota de rodapé, afirma que Carone conseguiu encontrar uma proposta capaz de conservar o jogo de palavras presente no texto original (p.180).

Comparando a tradução de Carone com as duas novas traduções, podemos perceber como a sua versão mantém -se atual.

Além disso, pode -se dizer até mesmo que a psicanalista representa um marco nas traduções de Freud para o português no Brasil, uma vez que, ao criticar a edição anterior, ela estabeleceu uma exigência de qualidade para as futuras tentativas de lidar com o texto freudiano.

Por outro lado, cabe discordar da opção da autora em manter a solução inglesa de tradução de Ego, Superego e Id para designar as instâncias Ich, Überich e Es. A justificativa da tradutora consiste em afirmar que esses termos já estariam suficientemente incorporados à nossa cultura e ao vocabulário corrente da língua portuguesa, constando inclusive nos dicionários. Esses termos latinos, segundo Souza 8 (1999), teriam sido sugeridos por Ernest Jones, um dos principais responsáveis pelas decisões de tradução da edição inglesa. Para Jones, a nomenclatura clássica teria a vantagem de garantir a compreensão dos conceitos em qualquer idioma, além de ser frequentemente utilizada no vocabulário médico cientifico internacional.

Porém, ao manter a opção latina para designar as instâncias, a tradutora desconsiderou um aspecto importante, que é aquele da importação e utilização de uma linguagem excessivamente academicista, estranha ao texto freudiano. Quanto a isso, pode -se lembrar que a versão da Imago para a Standard Edition havia preservado o termo latino catexia para traduzir Besetzung e que Carone se livrara dessa solução, adotando, mais simples e corretamente, o termo investimento. Se foi assim, por que não abandonar de vez os termos latinos exteriores à escrita freudiana?

O próprio Freud, em seu texto A questão da análise leiga 9 (1926), após apresentar para seu interlocutor imaginário as instâncias Eu e Isso, explica a razão de sua opção por pronomes usuais em detrimento do vocabulário clássico:

Você objetará, provavelmente, que para indicar essas duas instâncias ou províncias nós tenhamos escolhido pronomes simples, em vez de introduzir estrondosos nomes gregos. É que na psicanálise gostamos de permanecer em contato com o modo popular de pensar, e nós preferimos tornar utilizáveis para a ciência seus conceitos, ao invés de rejeitá -los. Não é mérito algum: nós temos que proceder assim porque nossas teorias devem ser compreendidas por nossos pacientes, que muitas vezes são muito inteligentes, mas nem sempre são eruditos. O Isso impessoal está ligado diretamente a determina das formas expressivas do homem normal. “Isso [ Es ] me abalou”, se diz, “havia algo em mim [ es war etwas in mir ] que naquele momento era mais forte que eu”. “ C’était plus fort que moi ”. (p. 183) Contudo, essa ressalva não deve comprometer a principal imagem que se tem ao ler a tradução de Carone: Freud com rigor e estilo.

Notas

1.FREUD, S. Luto e melancolia. Tradução de Marilene Carone. Novos Estudos – CEBRAP, 1992, n. 32, pp. 128 -142.

2.FREUD, S. Luto e melancolia. In: ______.Obras psicológicas de Sigmund Freud.

  1. A. Hanns (Coord.), vol. II. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2006.

3.FREUD, S. Luto e melancolia. In: ______.Sigmund Freud Obras Completas. Vol.12. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

4.ESTÊVÃO, I. Retorno à querela do Trieb : por uma tradução freudiana. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 19, 2012, pp. 79 -106.

5.TAVARES, P. H. Versões de Freud: breve panorama crítico das traduções de sua obra. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.

6.CARONE, M. Freud em português: uma tradução selvagem. Folhetim, Folha de São Paulo, 21 de Abril de 1985.

7.CARONE, M. Freud em português (capítulo II).Folhetim, Folha de São Paulo, 20 de Outubro 1985.

8.SOUZA, P. C. de. As palavras de Freud – O vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo: Ática, 1999.

9.FREUD, S. ¿Pueden los legos ejercer el análisis? Diálogos con un juez im parcial. In: ______.Obras Completas. Vol. XX. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1992.

Referências

CARONE, M. Freud em português: uma tradução selvagem.

Folhetim, Folha de São Paulo, 21 de Abril 1985.

_______. Freud em português (capítulo II). Folhetim, Folha de São Paulo, 20 de Outubro 1985.

CHAVES, E. A Pulsão: de Freud a Benjamin. Cult, São Paulo, v. 181, pp.36 41, 2013.

ESTÊVÃO, I. Retorno à querela do Trieb : por uma tradução freudiana. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo: Crítica e Modernidade, n. 19, 2012, pp. 79 -106.

FREUD, S. Luto e melancolia. In: ______.Sigmund Freud Obras Completas.Vol. 12.Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Trabalho original publicado em 1917).

_______. Luto e melancolia. In: ______.Obras psicológicas de Sigmund Freud. Vol. II. L. A. Hanns (Coord.). Rio de Janeiro: Imago Ed., 2006.

_______. Luto e melancolia. Tradução de Marilene Carone.Novos Estudos – CEBRAP, 1992, n. 32, pp. 128 -142.

_______. ¿Pueden los legos ejercer el análisis? Diálogos con un juez im parcial. In: ______.Obras Completas. Vol.XX. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1992. (Trabalho original publicado em 1926).

SOUZA, P. C. de.As palavras de Freud – O vocabulário freudiano e suas versões.São Paulo: Ática, 1999.

TAVARES, P. H.Versões de Freud: breve panorama crítico das traduções de sua obra.Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.

_______. ‘Esperando Freud’ ou ‘Psicanalistas à procura de um autor’.Cult (São Paulo), v. 181, 2013, pp. 26 -29.

Renata Bazzo – Mestre em Psicologia pela PUC -SP

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Breve Tratado – ESPINOZA (AF)

ESPINOSA, B. Breve Tratado. Resenha de: ROCHA, André Menezes. Sobre a primeira tradução do Breve Tratado de Espinosa. Artefilosofia, Ouro Preto, n.14, julho, 2013.

As translucidas mãos do judeu

Lavoram na penumbra os cristais

E a tarde que morre é medo e frio.

(…)

Trabalha em um árduo cristal: o infinito.

Mapa de todas as estrelas.

Espinosa.

Poema de Jorge Luís Borges.

Borges gostava de nos lançar no universo dos livros mágicos. Como um bom bibliotecário, nos conduzia por estantes infindas como quem tem em mãos os fios que atravessam entradas e saídas de um imenso labirinto. Lembro-me deum destes livros, o infinito.

O livro infinito é aquele cuja leitura jamais se esgota, que sempre exprime um novo sentido desde que o leitor abra suas páginas. Este Breve Tratado de Espinosa, inédito em língua portuguesa, consiste no mais novo exemplar destes livros com que os leitores de Borges tanto se encantam. Um livro infinito sobre o amor infinito, em síntese, eis do que se trata. Este Breve Tratado de Espinosa é uma obra juvenil, escrita bem antes da Ética e, para alguns intérpretes, antes mesmo do Tratado da Emenda do Intelecto. Talvez por isso seja a melhor maneira de introduzir-se no pensar com os conceitos de Espinosa. Inicia-se com a intuição da essência absolutamente infinita de Deus e, após passar pelo conhecimento da essência das paixões e ações do s homens, trata dos bons desejos que nascem do uso da razão, do amor intelectual que é imanente à intuição e culmina com a demonstração do que é eterno na essência humana. Mas todas estas demonstrações só fazem sentido, no texto de Espinosa, se não se distingue a inteligência do afeto. Uma leitura tecnocrata dos textos filosóficos e, em especial, do texto de Espinosa, não passaria de um mísero avatar daquela velha vã filosofia de que falava Shakespeare. Como o olho da medusa, o entendimento do tecnocrata petrifica o sentido dos textos. Borges é quem nos diz o que perdeu o aprendiz impaciente do conto A Rosa de Paracelso.

A curiosidade, o prazer da leitura e o amor da inteligência são os guias mais seguros para os leitores e leitor a s que desejam iniciar-se na leitura dos clássicos e na reflexão filosófica. E no caminho da leitura surgirão muitas questões que em vez de barreiras constituir-se-ão como trampolins a elevação da reflexão.

Gostaria aqui de apresentar algumas questões que me ajudaram a prosseguir na leitura do Breve Tratado. Literatura e arte na composição do Breve Tratado. Os dois diálogos da primeira parte do Breve Tratado tratam de temas candentes da ontologia de Espinosa, mas também caros à tradição neoplatônica do Renascimento, seja na vertente de Marsilio Ficino que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela criação de mágicas obras de arte, seja na vertente de Leão Hebreu que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela sabedoria ética na conduta cotidiana e nas ações da vida. A questão da diferença entre amor concupiscente e amor intelectual, que é o mote da erotiké no primeiro diálogo, tinha sido intensamente tratada pelos artistas e pensadores do Renascimento. A partir de Panofsky, podemos acompanhar como a questão da diferença entre amor divinus e amor profanus foi tratada sob a forma artística, por exemplo, nas telas de Botticelli e nos diálogos do próprio Marsilio Ficino. Como sabemos, o jovem Espinosa viveu em Amsterdã na casa-escola do tutor Francisco van den Ende, um franciscano que, como Petrarca, abraçou o humanismo. Ele ensinava literatura latina e filosofia através de leituras coletivas encenadas que muitas vezes se transformavam em peças teatrais. Espinosa, que obteve uma bolsa de estudos como ajudante do mestre-escola, interpretou no Teatro Municipal de Amsterdã peças de Terêncio, o dramaturgo comediante que participou do círculo estoico de Cipião com o historiador Políbio no século II a.C em Roma. Na Escola de Van den Ende, Espinosa conheceu seus melhores amigos, entre os quais o próprio Jarig Jelles, a quem dedicou a versão holandesa do Breve Tratado. Seria demais imaginar que Espinosa tenha elaborado os diálogos a partir da experiência artística com o círculo de amigos na trupe de teatro de Amsterdã? No segundo diálogo, por exemplo, Erasmo e Teófilo encetam animada conversa sobre a diferença entre a causalidade eficiente imanente através das relações internas entre todo-partes e causa-efeitos. Conversações agradáveis podem se tornar profundas tanto na vida cotidiana como nas ações dramáticas. Os dois diálogos da primeira parte são redigidos com engenho retórico e arte dialética para significar que os conceitos filosóficos do Breve Tratado não precisam ser pensados no solipsismo, à maneira cartesiana, mas podem ser pensados em agradáveis conversas em que todos nutrem amizade pela inteligência e gosto pelas arte s ? Razão e Intuição. Espinosa escreve, na segunda parte do Breve Tratado [II, 4], que a razão é a crença verdadeira, pois é o modo de conhecimento que nos leva a ver claramente o que convém que a s coisa s seja m fora de nós, porém não o que são verdadeiramente. E, no entanto, o conhecimento racional desperta os bons desejos que nos conduzem à intuição e ao verdadeiro amor. Podemos dizer que o Breve Tratado foi escrito antes da descoberta das noções comuns como conhecimento racional das propriedades comuns necessárias dos modos in finitos e finitos? Ora, após distinguir a Natureza Naturante da Natureza Naturada [I,8], Espinosa deduz os modos infinitos, quais sejam, o movimento-repouso na matéria e o intelecto infinito na coisa pensante [II,9]. Se os modos infinitos são os fundamentos das propriedades comuns na Ética, isto é, se são o todo de que os modos finitos são as partes, não é preciso convir que são demonstrados por sua gênese no Breve Tratado ? Em que sentido se pode dizer que não há teoria das noções comuns do Breve Tratado ? Sabemos, pela nota complementar 5 redigida por Marilena Chauí em A Nervura do Real, que há diferenças entre a concepção de intuição no Breve Tratado e a concepção de ciência intuitiva na Ética. Afinal, que significa a afirmação, no Breve Tratado, de que o conhecimento intuitivo e o amor intelectual de Deus são paixões do intelecto humano? Nesta obra juvenil, Espinosa pensava o amor intelectual como uma revelação religiosa, ou seja, como a palavra silenciosa que a inteligência de Deus pronuncia sob a forma de intuições no intelecto humano? Quais as diferenças entre a concepção do amor intelectual no Breve Tratado e a concepção do amor intelectual na Ética ? A demonstração de que o diabo não existe. Em várias cartas, Espinosa conversa com amigos sobre o tema da superstição, da crença em fantasmas, espectros e, pior que tudo, da crença no capiroto, coisa ruim ou tranqueira que, como diz Guimarães Rosa, para o prascóvio encontra-se no olho esgueirado de bezerro doente, gato preto, sombração ou redemoinho n o meio da rua.

Nas cartas trocadas com o amigo Boxel, podemos perceber como Espinosa achava graça nestes assuntos. E talvez o espírito de graça destas cartas encontre-se neste Breve Tratado com a demonstração matemática da impossibilidade da existência do diabo. A demonstração segue como consequência da prova ontológica da existência de Deus, desde que esta existência seja pensada a partir da essência como realização da onipotência. Vale lembrar que esta demonstração para nós é engraçada, mas para o contexto das guerras de religião era grave.

Espinosa demonstra, por A + B, como quem demonstra que 2+2=4, que o diabo é uma impossibilidade ontológica: dado que a essência de Deus é absolutamente infinita e que é idêntica à sua potência, um diabo, um gênio maligno ou outro ser malfadado qualquer que tivesse poder para contrariar a essência de Deus só pode ser uma ficção literária ou lógica. O que contraria a onipotência de Deus pode até existir, como existem peixes que nadam contra a corrente do rio, mas não pode influenciar em nada a potência absolutamente infinita de Deus, assim como um peixe não pode mudar o curso do rio ainda que nade contra a corrente. O diabo não pode existir na realidade, não pode ser um ente real, só pode existir como ficção, só pode ser um ente de razão ou ente de imaginação. E como Ferreira Gullar que diz saber como 2 e 2 são 4 que a vida vale a pena, Espinosa demonstra, como 2 e 2 são 4, que o amor intelectual de Deus é o sumo da vida humana e que por ele se encontra tanto a virtude para agir nesta vida como a eternidade de que podemos participar desde que experimentemos um verdadeiro amor.

Ode à leitura. Esta novíssima edição do Breve Tratado de Espinosa tem muitos méritos e o menor deles talvez seja o fato de ser a primeira tradução em português. Os méritos encontram-se mais no uso da língua portuguesa que os tradutores e a revisora fizeram para apresentar este inédito de Espinosa.

A tradução de Luís César Oliva e Emanuel Rocha Fragoso é clara e elegante, o que torna o texto muito agradável para os leitores da língua portuguesa. A revisão técnica de Ericka Itokazu, como sabemos todos os que acompanhamos o processo, lapidou o texto com muito carinho, cuidado e generosidade, para assegurar a precisão dos conceitos e dos argumentos que constituem a arquitetônica do Breve Tratado ; deu polimento, como no ofício de fazer lentes, para que permitissem ver a luz com a máxima nitidez. Certa vez uma amiga me disse, diante do Memorial da América Latina, que as curvas do desenho concreto de Niemeyer impressionavam sua imaginação de tal maneira que ela se punha a pensar, com Einstein e Espinosa, se aquela arte arquitetônica não exprimiria à sua maneira as curvas concretas de um universo infinito e densamente invisível que se reflete na luz das estrelas.

Este Breve Tratado, brilhante qual um crista l e denso como um diamante, ergue-se no tempo como o memorial de Niemeyer ergue-se no espaço. Um livro mágico como aqueles que encantavam Borges, mágico como um mapa não de espaços, mas de tempos que se escandem de uma fonte eterna. Que as frases deste exemplar de livro infinito, semelhantes a curvas geométricas, façam o seu glorioso mister e conduzam leitores e leitoras às veredas concretas do infinito.

André Menezes Rocha-Doutor em filosofia pela FFLCH/USP. Leciona da Facamp/Campinas. Atualmente, realiza seu pós-doutorado sobre Espinosa na FFLCH/USP.

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O inconsciente estético – RANCIÈRE (AF)

RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Ed.34, 2009. Resenha de: SOARES, Ednei. Artefilosofia, Ouro Preto, n.14, julho, 2013.

É sabido que Freud recorreu à arte para encontrar nela algo que lhe fornecesse material analítico a fim de expor e discutir suas descobertas.

Ora, a obra de Freud é repleta de referências às obras de arte advindas ora da literatura, ora da pintura e da escultura. Os textos das primeiras décadas do século XX o com provam: “ Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen ” (1907), “ Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância ” (19 10), “ O Moisés de Michelangelo ” (1913), “O Estranho” (1919) e “ Dostoievski e o parricídio ” (1928).

Sabe-se também que existem outras maneiras de reconhecer o recurso psicanalítico às artes.

Desde Lacan, vimos a produção de uma inversão em relação àquela primeira perspectiva freudiana. Ao invés de aplicar a psicanálise à leitura das obras de arte, veremos psicanalistas e estudiosos d o campo aplicar a arte à psicanálise, isto é, a arte enquanto aquela que permite avançar a teoria psicanalítica.

É por meio deste debate que o filósofo Jacques Rancière, em “ O Inconsciente Estético” (2009), trata das relações entre a teoria freudiana e o domínio da estética.

Filósofo, Jacques Rancière é Professor Emérito de Estética e Política na Universidade de Paris VIII, onde lecionou de 1969 a 2000. Apesar de seu lançamento em 2009, o texto de “O Inconsciente Estético” foi extraído das conferências que Jacques Rancière realizou nove anos antes na École de Psychanalyse em Bruxelas durante janeiro de 2000. Entre os campos da E sté tica e da Política, Jacques Rancière ainda não tem toda sua obra publicada em língua portuguesa. Desde a década de 1970 temos “Sobre a Teoria da Ideologia” (1971) e mais adiante, por editoras brasileiras, “A Noite dos Proletários” (1988), “Os Nomes da História” (1994), “Políticas da escrita” (1995), “O desentendimento” (1996), “O Mestre Ignorante” (2004) e “A Partilha do Sensível” (2005), “O espectador emancipado”, “O destino das imagens”, “As distâncias do cinema” (2012).

Debatendo o tema do Inconsciente Estético para além da visada psicanálise da arte e fora do continente analítico, o filósofo vivifica ainda mais a discussão em jogo, pois fala a partir do domínio da estética, sua especialidade: “Não tenho nenhuma competência para falar do ponto de vista da teoria psicanalítica”. (RANCIÈRE, 2009, p.9).

Vemos que o autor parece colocar em tensão esses dois regimes de uso da arte pela psicanálise. Se por um lado, a interpretação das obras “ocupam um lugar estratégico na demonstração da pertinência dos conceito s e das formas de interpretação analíticas” (RANCIÈRE, 2009, p.9), por outro lado, Rancière resguarda a tradição, a autonomia e a potencialidade do pensamento estético nas obras de arte:

“Elas são os testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante”. (RANCIÈRE, 2009, p.10-11).

Isto é, este domínio do pensamento que não pensa não é um território e m que Freud busca apenas companheiros e aliados. Para o esteta, “É um território já ocupado” (RANCIÈRE, 2009, p. 45).

É então, a partir da “ revolução silenciosa denominada estética” (RANCIÈRE, 2009, p.33-34) que o questionamento principal do filósofo se constrói.

Segundo ele mesmo foi no terreno da estética que a teoria freudiana se ancorou, quer dizer, “ nessa configuração já existente do ‘pensamento inconsciente’, nessa idéia da relação do pensamento e do não-pensamento ”. (RANCIÈRE, 2009, p.11) “O Inconsciente Estético” (2009) propõe, portanto, pensar o campo estético como um dos fundamentos de inscrição do pensamento analítico (RANCIÈRE, 2009). Assim, a hipótese de Rancière é de que “o pensamento freudiano do inconsciente só é possível com base nesse regime do pensamento da arte e da idéia do pensamento que lhe é imanente”. (RANCIÈRE, 2009, p.13-14.) Para sustentar tal empreitada, são diversas as referências artísticas utilizadas por Rancière. De “Os Miseráveis” de Victor Hugo, a Balzac com suas “La Maison d u chat qui pelote” e “A pele de onagro”, passando pelo belga Maurice Maeterlinck, até chegar às referências propriamente freudianas: Leonardo, Michelangelo, Jensen, Hoffmann, Ibsen, entre outros.

Para Rancière, a revolução estética não se dá, por exemplo, via a rebeldia britânica de Lord Byron contra a moral civilizada ou denunciando a s desordens da alma.

Trata-se antes de uma nova idéia de artista. Daquele que sabe freqüentar os subsolos, como o geólogo e naturalista francês, Georges Cuvier. De um artista que saiba encontrar a palavra muda através dos diversos usos do detalhe.

Diante disso, Rancière irá aliar a revolução estética ao advento da psicanálise: “O novo poeta, o poeta geólogo ou arqueólogo, num certo sentido, faz o que fará o cientista de A interpretação dos sonhos ”.

(RANCIÈRE, 2009, p. 37). Isto é, “A grande regra freudiana de que não existem ‘ detalhes ’ desprezíveis, de que, ao contrário, são esses detalhes que nos colocam no caminho da verdade, se inscreve na continuidade direta da revolução estética”. (RANCIÈRE, 2009, p.36).

Se nosso autor põe em relação pensamento estético e psicanálise, ele o faz preservando um cuidado histórico e epistemológico. A o estabelecer tal relação, Rancière não se esquece d o contexto médico-cientifico no qual a psicanálise foi criada e nem corre o risco de dissolve r o conceito de inconsciente freudiano. O filósofo não está inclinado em afirmar que o inconsciente freudiano depende da literatura e da arte, cujos segredos ele pretende desvendar (RANCIÈRE, 2009).

Segundo el e, “ Trata-se, antes de mais nada, de assinalar as relações de cumplicidade e de conflito que se estabelecem entre o inconsciente estético e o inconsciente freudiano ” (RANCIÈRE, 2009, p. 43-44).

Mais do que contrapor à autoridade da ciência a dos grandes no mes da cultura – os quais lhe servem de guias na viagem pelo Aqueronte explorada por seu método de tratamento-, Freud o faz porque essa lacuna entre ciência positiva e acervo cultural não está vazia (RANCIÈRE, 2009).

É justamente nesta brecha que o filósofo situa o Inconsciente Estético: Tal espaço é o domínio desse inconsciente estético que redefiniu as coisas da arte como modos específicos de união entre o pensamento que pensa e o pensamento que não pensa. Ele é ocupado pela literatura da viagem pelas profundezas, da explicitação dos signos mudos e da transcrição das palavras surdas (RANCIÈRE, 2009, p. 44).

Conforme nos lembra o autor, em Freud não há o insignificante, e os detalhes prosaicos que o positivismo desprezou e lançou à racionalidade fisiológica são signos que cifram uma história (RANCIÈRE, 2009).

Dito de outro modo: “Não existe episódio, descrição ou frase que não carregue em si a potência da obra”. (RANCIÈRE, 2009, p.37). A literatura de geólogos e arqueólogos como Balzac e Freud mostram que entre pensamento e não pensamento, cifragem e decifragem, tal escrita se conecta à pura dor de existir e à pura reprodução do sem-sentido da vida, “(…) aquela que não fala a ninguém e não diz nada, a não ser as condições impessoais, inconscientes, da própria palavra”. (RANCIÈRE, 2009, p.39).

Freud, o psicanalista, é um hermeneuta, mas é também um médico, um sintomatologista, diz Rancière:

A sintomatologia literária mudará então de estatuto nessa literatura das patologias do pensamento, centrada na histeria, no “nervosismo” ou no peso do passado, nessas novas dramaturgias do segredo velado, em que se revela, através de histórias individuais, o segredo mais profundo da hereditariedade e da raça e, em última instância, do fato bruto e insensato da vida”. (RANCIÈRE, 2009, p.39).

Não somente através da doutrina freudiana, mas também através de Kant, S c helling e Hegel, o filósofo nos apresenta um pensamento daquilo que não pensa. Em “O Inconsciente Estético ”, a arte circunscreve um território de reunião dos contraditórios, de um pensamento presente e fora de si mesmo, idêntico ao não pensamento. Ou seja, há pensamento operando no elemento estranho do não-pensamento, e este não-pensamento que o habita lhe dá uma potência específica (RANCIÈRE, 2009).

As sim, as duas faces da palavra muda manifestam o inconsciente estético: a palavra muda escrita nos corpos que é decifrada e reescrita, e uma “ palavra surda de uma potência sem nome que permanece por trás de toda consciência e de todo significado, e à qual é preciso dar uma voz e um corpo,” (RANCIÈRE, 2009, p.41). Enfim, e m “O Inconsciente Estético”, vemos que a descoberta de Freud abriu uma lacuna entre ciência e arte produzindo uma racionalidade capaz de formalizar este campo de fronteira entre estética e teoria psicanalíticas:

“(…) a abordagem freudiana da arte em nada é motivada pela vontade de desmistificar as sublimidades da poesia e da arte, direcionando-as à economia sexual das pulsões. Não responde ao desejo de exibir o segredinho — bobo ou sujo — por trás do grande mito da criação. Antes, Freud solicita à arte e à poesia que testemunhem positivamente em favor da racionalidade profunda da “fantasia”, que apoiem uma ciência que pretende, de certa forma, repor a poesia e a mitologia no âmago da racionalidade científica” (RANCIÈRE, 2009, p.45).

Ednei Soares-Psicanalista, mestre em Psicologia. Professor do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras de Ipatinga-MG

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Marking samba: A new History of race and music in Brazil – HERTZMAN (NE-C)

HERTZMAN, Marc. A. Marking samba: A new History of race and music in Brazil Durhcham: University Press, 2015. Trad. Livre  Dmitri Cerbonicine Fernandes. Resenha de: FERNANDEZ, Dmitri Cerbonicine. De “pelo telefone” a “internet”: tensões entre raça, direitos, gênero e nação. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.102, Jul, 2013.

Nos últimos quinze anos, os chamados brasilianistas norte-americanos e britânicos voltaram seus olhos a temas anteriormente circunscritos aos nativos – caso geral da música popular brasileira e, em específico, do samba e do choro1. Se, por um lado, nossas obras musicais populares desde há tempos são bastante apreciadas e (re) conhecidas, chamando a atenção de vasto público, o mesmo não se poderia dizer das reflexões acadêmicas tecidas sobre essas obras e seus criadores.Os trabalhos da nova geração de brasilianistas são,por isso mesmo,um alento em diversos sentidos.A mera existência de um interesse estrangeiro por objetos de pesquisa tradicionalmente relegados a segundo plano nas ciências humanas auxilia a modificação do panorama de certo desapreço pelo assunto, forçando a universidade e demais instituições a reverem suas posições.A lastimável ausência de tradução dessas pesquisas para o português e a falta de interlocução dos estudiosos brasileiros – muitas vezes encerrados apenas na discussão em língua pátria e,quando não,em sua própria área ou subárea-talvez estejam com os dias contados; prenúncio de uma possível maturação de um campo de estudos que, embora secundário se comparado com o dos “grandes temas” – políticos, históricos, sociais -, não se iniciou ontem2.

Conquanto os resultados das análises empreendidas por esse novo grupo de brasilianistas variem bastante em termos de metodologia empregada, escopo, materiais coletados e ineditismo, são evidentes o impacto e a qualidade, se não de todas, pelo menos de algumas delas, o que as equipara ao que de melhor já foi escrito por aqui sobre a música popular em seus diversos aspectos. Dentre os livros que se destacam, um deles, sem dúvida, é Making samba: a new history of race and music in Brazil, do professor da Universidade de Illinois, Estados Unidos, Marc A. Hertzman. Originalmente uma tese de doutorado em História da América Latina defendida na Universidade de Wisconsin-Madison, em 2008, o livro recebeu dois prestigiosos prêmios nos Estados Unidos3, o que o gabaritaria, por si só, à tradução imediata.

Logo de início, Marc Hertzman propõe um novo mergulho em águas passadas, quer dizer, ele se dispõe a revisitar pelo menos três eixos estruturantes de nossa música que já foram, em separado, alvos da bibliografia específica: 1) o lugar do negro e as possibilidades de ação, repressão e reconhecimento no nascente universo artístico4; 2) o aparecimento das instituições comerciais em meio ao fazer musical popular e as resistências e colaborações que essas instituições passaram a alimentar da parte de artistas, intelectuais, jornalistas, políticos, folcloristas etc.5; 3) os sentidos do entrelaçamento da ascendente forma musical popular brasileira no início do século XX com a ideia emergente de nação e a instauração da República6. No entanto, há em sua problematização um entrelaçamento entre esses três eixos, algo que nunca havia sido tentado antes. O resultado é um livro que traz inúmeros dados, situações, fotos e declarações que recebem nova luz interpretativa, fornecendo no conjunto um panorama inédito de questões que se pensavam solucionadas.Os que,mesmo assim,ainda imaginarem que se trata de mero exercício desnecessário e repetitivo de diletantismo rapidamente se convencerão do contrário por conta de outro motivo: a presença de um elemento que confere o tom central à obra e que, sozinho, já a justificaria de imediato. Falamos aqui da postura epistemológica adotada por Hertzman, que o diferencia do viés que predominou durante largo espaço de tempo na academia brasileira: o do ensaísmo.

Por um lado, é bem verdade, tal pendor ao ensaio conformou uma maneira toda especial, muito criativa e prolífica de interpretação em um ambiente científico inóspito e incipiente,momento em que financiamentos para a realização de surveys e a disposição de arquivos e materiais minimamente organizados eram escassos em nosso país. Em tal conjuntura, onde sobravam erudição e capacidade de síntese aos nossos intelectuais “heroicos”, a necessidade teve de se fazer virtude, e os clássicos pioneiros demarcaram o início de uma profunda autocompreensão que ensejou, por linhas tortuosas, trabalhos como os do próprio Marc Hertzman. Por outro lado, há até hoje resquícios desse modo de fazer que, desacompanhados das antigas virtudes, mais servem para escamotear resultados duvidosos, destilar arrogância, falta de empenho e de energia em vasculhar bibliotecas, museus e arquivos do que em iluminar o que quer que seja. Atêm-se ou a materiais recauchutados, apropriando-se de modo acrítico de “verdades” jornalísticas que rondam os mais diversos estudos sobre música no Brasil há tempos, ou a letras de canções e células musicais, como se a partir delas, e só delas, fosse possível, sem um objetivo claro ou um problema teoricamente orientado, reconstruir toda a história de um gênero musical ou de uma época.

Nesse sentido, Hertzman desdobrou-se como poucos haviam feito nos estudos históricos sobre o samba; correu atrás de comprovações documentais, muitas delas localizadas em acervos pessoais de difícil acesso ou em museus que, geralmente, sofrem e sofreram durante décadas com o descaso governamental, a falta de verbas, incêndios, desfalques, perdas, desorganização. O resultado dessa tarefa árdua e minuciosa de levantamento de informações não o tornou mero coletor nem fez de seu trabalho uma descrição insossa de materiais repertoriados,o que costuma ocorrer quando tamanha energia tem de ser gasta tão somente no serviço de garimpagem. Pelo contrário, ele logrou conectar a criatividade intelectual e a audácia interpretativa de nossos antigos ensaístas com o emprego de uma empiria embasada em recolhimento e análise de dados, descortinando de maneira surpreendente, aos nativos e aos gringos, um novo universo em torno de um domínio que, à primeira vista, nada mais ou muito pouco ainda tinha a render. Dito isso, não se trata, assim, de qualquer “revisita” às três questões apontadas; antes, de uma pesquisa de fôlego que tenta fornecer, se não a última palavra sobre o assunto, ao menos uma palavra muito mais balizada, material e metodologicamente bem orientada do que as que tínhamos à mão até o presente momento.

O livro percorre um largo período cronológico ao longo de seus nove capítulos: passa-se desde a abolição da escravidão no Brasil, em 1888,até meados da década de 1970,quando se dá a instauração definitiva das modernas leis de proteção aos direitos autorais – embora as análises mais consistentes do livro, com fartura de materiais inéditos, estejam concentradas nas quatro primeiras décadas do século XX. Apenas o último capítulo se dedica ao escrutínio da conjuntura musical da década de 1960 em diante, o que, no conjunto da obra, representa mais elemento de verificação das teses defendidas sobre a “época de ouro” do que uma parte autônoma. O acompanhamento da noção de autoria, em termos legais e materiais, e seu correlato simbólico, qual seja, a individuação dos artistas, bem como o desenvolvimento das instituições que lidavam com essas questões e a legislação pertinente serviram como o fio de Ariadne de toda a estruturação do argumento de Hertzman; ele empregou uma embocadura até então menosprezada pelos demais estudiosos no intento de penetrar, de modo inovador, por veredas já caminhadas: “Embora estudiosos de muitas disciplinas venham se fascinando com a construção da autoria, poucos se interessaram pela relação entre propriedade intelectual e constituição nacional pós-colonial – sobretudo nas Américas – ou as histórias imbricadas entre raça, propriedade intelectual e nação” (p. 3)7.Em outras palavras,os marcos legislativos e as instituições que regulamentavam o fazer musical, a distribuição monetária e o papel desempenhado pelo Estado na garantia,manutenção e modernização de todo o engenho assomado no espaço de tempo compreendido pela pesquisa fizeram render uma nova visão sobre processos há muito mal compreendidos, pois faltavam materiais pertinentes ao demais autores,conforme argumentado,a fim de que pudessem chegar a conclusões mais robustas e precisas, que ultrapassassem o acolhimento acrítico dos depoimentos de quem viveu os acontecimentos em tela – referenciais fartamente empregados até então por alguns estudiosos.E é justamente a esta tarefa que Marc Hertzman se propõe:buscar no emaranhado que se formou entre as questões que envolvem raça, propriedade intelectual e nação o sentido da constituição do samba e, em uma via de mão dupla, a partir da problematização que parte da constituição do samba enquanto gênero musical negro, comercial e nacional, enxergar de modo mais exato e minucioso a imbricação de todo o processo cultural,econômico e político que conformou o Brasil.

No primeiro capítulo, Hertzman procura traçar uma espécie de pré-história das formas musicais populares que desaguariam no samba, bem como dos condicionantes sociais que assomavam ao final do século XIX com elas, isto é, os lugares de raça, de autoria e do vínculo possível dessas formas artísticas e seus produtores correspondentes com a ideia de nação em uma sociedade escravocrata. Hertzman, no entanto, passa longe de um denuncismo vazio ou de tomar um parti pris tão comum nos estudos atuais sobre raça e nação. O autor deixa claro desde o início que não guarda o propósito de esposar asserções como as que essencializam o samba como puro produto de uma “resistência negra” em abstrato nem as que retiram a agência dos negros, outorgando aos intelectuais brancos ou ao Estado varguista a proeminência na conformação dos traços das expressões culturais brasileiras. Hertzman tampouco se vincula seja à visão que adula a intermediação efetuada pelos meios de reprodução comercial da música popular,seja à que a rechaça apriori,pois considerada maléfica ou deturpadora de uma imagem “pura” e “autêntica”.Pelo contrário,colocar todas essas cosmovisões nativas abraçadas pela academia em perspectiva, fazê-las confrontarem-se umas com as outras para que, ao fim e ao cabo, venha à tona um panorama mais complexo do que aquele com o qual a literatura específica se habituou: este sim é um dos propósitos centrais de Hertzman, alcançado justamente por meio do que anunciamos como o grande feito de seu trabalho, quer dizer, a confrontação com materiais inéditos, que auxiliam a desvendar mitos até então inquestionáveis e uma visão que não se detém em fronteiras específicas do saber.

Um desses mitos que fundamentaram o memorialismo da música popular brasileira é o do que o autor denomina de “paradigma da punição” (p. 31). A ação supostamente praticada por parte do Estado de maneira sistemática,que penalizava os praticantes do samba com a prisão, de acordo com declarações à imprensa de sambistas que viveram a “época gloriosa dos primórdios”,é posta em suspenso no segundo capítulo. Hertzman, por meio de pioneiro mergulho nos arquivos penais das primeiras décadas do século XX,descobre que jamais houve uma única punição estatal por conta da prática do samba,ao contrário do que é alardeado em quase todos os trabalhos acadêmicos que lidam com a época. Tal relato mais servia como estratégia discursiva – um tanto exagerada para antigos sambistas firmarem-se como mártires de uma época ou para construírem a autenticidade requerida do gênero samba e, de lambujem, de si mesmos, dentro do circuito de valores que aos poucos foi se estabelecendo naquele gênero – do que refletia fielmente os processos históricos, entremeados na realidade de alianças e colaborações entre a polícia, o Departamento de Imprensa e Propaganda de Vargas e os órgãos representativos dos músicos.Isso não quer dizer, por outro lado, que Hertzman pinte um ambiente de igualdade e liberalidade generalizados para a prática musical popular no início do século XX, conforme veremos a seguir.

O olhar atento do historiador,que busca em uma miríade de eventos nem sempre vinculados imediatamente ao fenômeno a ser explicado os desenvolvimentos possíveis dos caminhos da história, evidencia-se no terceiro capítulo, em meio à interpretação de uma ilustração de um jornal da década de 1910 trazida à baila por Hertzman. O desenho tentava retratar uma tragédia: um dos primeiros artistas populares de relativo sucesso à época, um negro de apelido “Moreno”, havia sido supostamente traído por sua esposa,uma branca portuguesa.Ele resolveu matá-la a facadas e, em seguida, se matar. A representação da situação congregava todas as chaves necessárias para o desvendamento da figuração que ascendia na primeira década do século XX, para os temores que suscitava, para as apreensões que fazia refulgir: um novo universo estava se abrindo,com possibilidade de fama e sucesso àqueles que sempre foram apartados da ribalta da vida nacional, embora prenhe de todas as contradições que tão bem expressam a nossa formação. Que se atentasse para o “perigo” de permitir que essas figuras tão fascinantes quanto temerárias, aos olhos dos brancos, prosseguissem por uma via de acesso a patamares que já tinham dono: as mulheres brancas, o dinheiro, a fama. Isso é o que argumentavam os jornalistas que comentaram a mencionada cena de “Moreno”:o negro não tinha estruturas psicológicas nem sociais para angariar sucesso, para se manter na independência econômica, para se casar com uma mulher branca, em suma, para deixar de ser negro naquela sociedade dominada pelos brancos (p. 87). A igualdade democrática, o reino do direito abstrato e universal, a possibilidade de uma vida econômica e socialmente digna em seu próprio país não passavam de quimeras. Afinal, “quem eles pensavam que eram?”. Em contrapartida, alguns conseguiam escalar parcialmente as trilhas abertas pelo desenrolar da individuação artística e pelo novo comércio, por mais que tivessem que forjar por meio de suas mãos,do sangue de “Moreno”,ou de oportunidades ímpares, por um lado, ou apoiados em trajetórias distintas e caminhos compartilhados com os dominantes, por outro.

O que importa até aqui é que não cabem mais,de acordo com a proposta do autor,a aceitação pura e simples de quaisquer generalizações de categorias, como as de “o samba”, “a raça”, “a nação”, “a autoria” ou “o comércio”: há nas entrelinhas dos processos constitutivos de cada um dos fatores assinalados minúcias geralmente ignoradas, tensões e conflitos constitutivos dos próprios conceitos e processos que, se vistos desvinculados dos artífices que lhes deram viço,de seus tempos históricos, das funções que cumpriram e das atuações concretas dos atores que as encarnavam, mais borram a compreensão historiográfica do que a auxiliam em sua missão de reconstituição da figuração em pauta. Assim, Hertzman dá à mostra que existiram projetos autorais, intelectuais mesmo, por trás de cada grupo e personagens distintos que ocupavam posições díspares na sociedade brasileira das primeiras décadas do século XX. Figuras que, ao mesmo tempo que se confrontavam, teciam por vezes alianças e podiam ainda manter certo grau de cumplicidade, de animosidade, de distanciamento ou de proximidade, a depender de coordenadas e de conjunturas específicas.

Uma das mais expressivas comprovações diz respeito ao escrutínio dos que rodeavam a famosa casa de Tia Ciata, figuras centrais que participaram do que se convencionou denominar de “a nossa música” (p. 95): Hertzman demonstra no quarto e no quinto capítulos que jamais eles poderiam ser equiparados sem mediação a outros artistas que não tivessem nem a inserção socioeconômica deles, nem o conhecimento formal de música, nem o trânsito com jornalistas, industriais da arte e figurões da política e da intelectualidade nacional, nem a decorrente capacidade de mediação, seja artística ou intelectual. Igualar um Pixinguinha a um Baiaco ou a um Brancura, ou até mesmo a um Ismael Silva, pelo simples fato de serem negros esconde um abismo muito revelador do próprio modo pelo qual o racismo à brasileira se constituiu: por meio de reentrâncias e sutilezas, ou, mais especificamente, por meio de um engenhoso dégradé. Se é verdade que em determinado momento de suas trajetórias artísticas todos os citados enfrentaram alguma face do racismo, não se pode dizer que tenha sido da mesma maneira: as margens de manobra variavam muito, bem como o grau de sofrimento que os acometia,a depender da posição social que ocupavam. No caso de Pixinguinha e dos seus, tratou-se de notícias jornalísticas denominando-os de “negroides pardavascos”, incapazes de representar o Brasil,ou de pretendentes a um patamar mais elevado, como Catulo da Paixão Cearense, a desatiná-los (p. 113); no caso de Brancura, Baiaco e Ismael, tratou-se de uma vida tortuosa e de pobreza, de marginalidade, eivada de prisões, brigas e outros eventos manifestos de violência. Embora todos eles, de alguma forma, tenham contribuído para a criação e sustentação de símbolos guindados à condição de “nacional”, Hertzman chama a atenção para o fato de que cumpre visualizar com cuidado os modos pelos quais quando e cada um deles pôde – e se pôde – e por meio de quais contextos e estratégias ser alçado e se alçar ao panteão do samba e, por que não e por consequência, ao panteão nacional. A luta que envolveu a imposição de certa visão que concedia às suas criações a imagem de autêntica, única, sofisticada e respeitável toma, assim, lugar de destaque na análise (p. 115).

Transparecem, destarte, por meio de diversos exemplos, elementos intrínsecos à formação da nação, caracterizada sobretudo pelo tipo de estrutura social herdada da escravidão. Pela primeira vez tal situação é sistematicamente levada em consideração em conjunto com os efeitos simbólicos e econômicos que incidiram nas atividades artísticas populares. Hertzman demonstra no capítulo sexto como até mesmo intelectuais e artistas do porte de Villa-Lobos,Mário de Andrade e Luciano Gallet compartilhavam com maior ou menor ênfase de visões de época, segundo as quais se deveriam abrir alas à construção de um desejado Brasil “civilizado” e seu pressuposto, as correntes da modernidade, o que incorria em algum tipo de rebaixamento do que era apreendido como hierarquicamente inferior em uma escala artística de sensibilidade e racionalidade. Nesses casos, iniciavam-se discussões sobre o que podia ser aproveitável ou não para se entabular o concerto da nação,e aquilo que identificassem como “africano” era posto na berlinda.O mesmo se passava entre os intelectuais nativos do samba, como Tio Faustino, Vagalume ou China, irmão de Pixinguinha,que buscavam enfatizar a autenticidade de certa herança da África contra o que viria a ser uma África corrompida (p.156).Nesse cenário, alguns podiam tanto desempenhar o papel de dominantes em meio aos dominados como podiam ser defenestrados e ter as portas fechadas em diversos âmbitos. Em outros momentos, conforme frisado por Hertzman no capítulo sétimo, alguns podiam até mesmo se reportar diretamente ao presidente da República, como ocorreu em 1930 com os mencionados Pixinguinha e Donga, que clamavam a Getúlio Vargas,em meio a uma procissão de músicos,o auxílio do “pai dos pobres” à música nacional (p. 170). Já dentre os diversos artistas negros, sobretudo os semidesconhecidos resgatados pelo autor na intenção de iluminar comparativamente as possíveis trajetórias artísticas e seus liames com suas posições sociais, a situação era distinta: torna-se claro como os empecilhos enfrentados por eles dificultavam não só suas condições simbólicas naquelas instituições como ainda a simples manutenção econômica de suas vidas. A vinculação desses e de vários estorvos com outros fatores, como o de gênero, foi realizada no trabalho também de modo pioneiro.

A ascensão do samba em sua concretude pôde ser vislumbrada por meio de representações monetárias de quanto ganhava um grande artista – um cantor branco como Francisco Alves, por exemplo – em comparação com um compositor negro à margem dos estabelecimentos comerciais da música, como Ismael Silva (p. 129); de outro lado,a partir da constatação de uma tal pista micro,quer dizer, da assimetria econômica existente entre figuras de um mesmo universo, passa-se ao escrutínio do modo pelo qual se organizavam as instituições políticas e culturais, e como os elementos “raça”, “classe” e “gênero” se vinculavam de forma intrínseca ao funcionamento dessas instituições. É o que se vê com nitidez nos capítulos sétimo e oitavo. No caso das que lidavam com a música popular, como a Sociedade Brasileira de Autores (SBAT, fundada em 1917), a primeira que tomou para si a função de arrecadação e distribuição monetária dos proventos das atividades artísticas em geral no Brasil, percebia-se em suas entranhas a reprodução de todas as desigualdades de nossa sociedade em termos econômicos e simbólicos. O mesmo ocorrendo com os produtos de seus cismas ao longo do tempo,casos da União Brasileira dos Compositores (UBC),a Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (SBACEM) etc., todas as que deram origem ao moderno sistema de arrecadação e distribuição de direitos ainda hoje vigente.Seus dirigentes,em maioria homens brancos vinculados a atividades consideradas “nobres” à época – como o teatro ou a “grande” música, em meados dos anos 1910 e 1920,ou os mais bem-sucedidos em termos econômicos com a ascensão do universo musical popular, a partir dos anos 1930 -, não se fizeram de rogados para eternizar a posição subalterna que os artífices negros, sobretudo os socialmente mais desprivilegiados, ocupavam em meio às estruturas das instituições à primeira vista “universais” que dirigiam, o que sublinha o caráter racial e economicamente assimétrico que perpassou a constituição de todas as nossas instituições democráticas, quando vistas de mais perto.

Emerge, assim, uma verdadeira história “materialista” do samba – e, por que não, do choro -, na melhor acepção do termo: em primeiro lugar, pelo fato de Hertzman lidar com estimativas sistematizadas de vendas de discos, com cifras relativas aos direitos autorais de canções, de lucros de gravadoras e de estações de rádio, de execuções de canções e de várias operações econômicas que dão à mostra a real dimensão das transformações estruturais ocorridas em meio à atividade musical popular. Em segundo lugar, o aspecto eminentemente “materialista” de sua proposta também se revela por conta do método: a visada totalizante, que pressupõe uma aguçada capacidade comparativa entre fatos, personagens e momentos aparentemente despidos de qualquer relação ou pertinência a fim de iluminar, a partir de distintos vieses, uma mesma questão específica. Hertzman arrisca, destarte, uma espécie de história total, onde condicionantes institucionais, geográficos, raciais, econômicos e culturais são movimentados para dar vida à agência dos atores (p. 11). Modificando seu foco a todo instante,passando de uma interpretação de um fato micro a uma correlação estrutural macro,e vice-versa,um verdadeiro mosaico das relações que davam viço àquela figuração nascente vem à tona. Embora a incursão na justificativa teórica de seu trabalho seja deveras enxuta,haja vista Hertzman nomear,e muito de relance,apenas Homi Bhabha, Michel Foucault e Peter Wade como inspiradores da empreitada (p. 10), é notória a contribuição tácita de autores como Norbert Elias, Pierre Bourdieu, Fernand Braudel, E. P. Thompson, Raymond Williams,dentre outros grandes nomes das ciências humanas,em seu modo de reconstituir a urdidura da história em voga. Mas essa explicitação, enfim, é o que menos importa, pois o primordial foi efetuado, quer dizer, o manejo teoricamente orientado do material levantado para além das fronteiras disciplinares artificialmente demarcadas.

Notas

1 Ver, por exemplo, DAVIS, DARIÉN J. White face, black mask: Africaneity and the early social history of popular music in Brazil. East Lansing: Michigan State University Press, 2009; Livinsgton-Isenhour, Tamara E. e Garcia, Thomas G. C. Choro: a social history of a Brazilian popular music. Bloomington: Indiana University Press, 2005; McCann, Bryan. Hello, hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil. Durham: Duke University Press,2004;Stroud,Sean.The defence of tradition in Brazilian popular music: politics, culture and creation of Música Popular Brasileira. Aldershot: Ashgate, 2008; Shaw, Lisa. The social history of the Brazilian samba. Aldershot: Ashgate, 1999.

2 Ressalte-se a ausência de obras dedicadas à reflexão sobre música popular nos principais centros brasileiros produtores de conhecimento até meados da década de 1970, que vê, muito timidamente em sua segunda metade, o início de estudos regulares e sistematizados sobre o assunto. Balanços críticos de publicações na área podem ser encontrados em Béhague, Gerard. “Perspectivas atuais na pesquisa musical e estratégias analíticas da Música Popular Brasileira”. Latin American Music Review. Austin: University of Texas Press, v. 27, no 1, 2006; Napolitano, Marcos. “A Música Popular Brasileira (MPB) dos anos 70: resistência política e consumo cultural”. In: IV Congreso de la Rama Latinoamericana del IASPM, 2002, Nicarágua. Atas del IV Congreso de la Rama Latinoamericana del IASPM, 2002, mimeo; Naves, Santuza C. et alli. “Levantamento e comentário crítico de estudos acadêmicos sobre música popular no Brasil”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais — BIB. São Paulo: ANPOCS, no 51, 2001.

3 Trata-se do prêmio de melhor tese de doutorado da New England Council of Latin American Studies (NECLAS) e de uma menção honrosa do Bryce Wood Book Award pelo livro, comenda concedida anualmente pela Latin American Studies Association ao melhor livro que verse sobre a América Latina.

4 Como, por exemplo, RODRIGUES, Ana Maria. Samba negro, espoliação branca. São Paulo: Hucitec, 1984.

5 Como, por exemplo, FROTA, Wander Nunes. Auxílio luxuoso: samba símbolo nacional, geração Noel Rosa e indústria cultural. São Paulo: Annablume, 2003.

6 Como, por exemplo, WISNIK, José Miguel e SQUEFF, Enio. Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo:Brasiliense,2a ed.,1983.

7 Tradução livre realizada pelo autor da resenha.

Dmitri Cerboncini – Fernandes– Professor de Sociologia na Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School – ABROMEIT (NE-C)

ABROMEIT, John. Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. Resenha de: NOBRE, Marcos; JANUÁRIO, Adriano; CONCLI, Raphael; YAMAWAKE, Paulo. Os modelos críticos de Max Horkheimer. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.96, Jul,  2013.

Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School, de John Abromeit, vem somar-se a uma dupla já estabelecida de estudos de referência sobre o nascimento e o desenvolvimento da Teoria Crítica (que, em alguns lugares, como nos Estados Unidos e na França, ainda é conhecida pelo equívoco rótulo “Escola de Frankfurt”): A imaginação dialética, de Martin Jay1, e A Escola de Frankfurt, de Rolf Wiggershaus2. O livro de Abromeit não tem a abrangência desses dois. Dedica-se apenas ao exame aprofundado de parte da trajetória intelectual de Horkheimer, de seu nascimento, em 1895, até o ano de 1941, que marca uma redução ao mínimo das atividades do Instituto de Pesquisa Social em Nova York e uma virada no pensamento do teórico social. Mas é de Horkheimer que se trata: as fases de sua produção examinadas no livro são não apenas altamente profícuas como também inaugurais, o que é sugerido pela ambição teórica bem mais ampla estampada no subtítulo: apresentar nada menos do que “as fundações da Escola de Frankfurt”.

Nessa comparação com os dois outros estudos de referência sobre a Teoria Crítica, importa também não apenas a distância temporal que os separa, mas a diferença de fontes. John Abromeit pesquisou em um momento em que já se encontrava em pleno funcionamento o Arquivo Max Horkheimer e em que já tinha sido completada a publicação dos Escritos reunidos pela editora Fischer. Além disso, o livro pretende não apenas reconsiderar as “fundações” da Teoria Crítica, mas recuperar o modelo crítico formulado por Horkheimer para levar adiante essa tradição intelectual. Para isso, parte de um diagnóstico do campo crítico marcado por duas balizas fundamentais. De um lado, quer abrir caminhos que não se fechem na conhecida “aporia” da Dialética do Esclarecimento3. De outro lado, aceita implicitamente o desafio colocado pela teoria crítica de Habermas, ao indicar que é possível construir uma alternativa a essa aporia a partir do movimento teórico fundamental realizado por Horkheimer nos anos 1925-1931, que teria significado nada menos do que uma “ruptura com a filosofia da consciência”. Com isso, torna-se possível reconstruir de outro modo o próprio desenvolvimento da Teoria Crítica, de maneira a fugir à interpretação de conjunto consolidada por Habermas4:

Uma biografia intelectual que aspire a se manter fiel ao espírito crítico de Horkheimer — como esta pretende — deve não apenas tentar apresentar suas ideias em toda sua complexidade e radicalidade para assim salvá-las da onda de amnésia e conformismo que ameaçam devastar o presente. Tal obra deve também procurar identificar os fatores sociais e históricos que condicionaram sua teoria crítica nos vários estágios de seu desenvolvimento. Só assim será possível o direcionamento para a importante tarefa final de determinar quais aspectos da teoria crítica de Horkheimer ainda são relevantes no presente e quais devem ser revisados ou abandonados5.

Se a explicitação desse engajamento e dessa tomada de posição já distingue de saída o livro de John Abromeit dos livros de referência de Martin Jay e de Rolf Wiggershaus, a sua escolha de objeto aprofunda as diferenças. A grande sacada do livro pioneiro de Martin Jay –orientador de John Abromeit, cuja tese de doutorado foi a base para a redação do livro — esteve em realizar a “biografia” intelectual de uma instituição (o Instituto de Pesquisa Social) entre as décadas de 1920 e 1940, o que lhe permitiu escapar à ideia confusa (e redutora, como mostrou o próprio Jay em seu livro) de uma “Escola”. Essa abordagem lhe permitiu ainda mostrar em ato a ideia-força do “materialismo interdisciplinar”, que guiou o trabalho coletivo a partir dos anos 1930.

A escolha de Abromeit não é menos engenhosa: reconstruir o momento inaugural dessa vertente intelectual permite abrir o campo das possibilidades de desenvolvimento teórico, trilhadas ou não, tanto em relação ao passado como em relação ao presente, concretizadas em uma direção determinada, abandonadas ou retomadas. Não é outra a razão pela qual o livro se encerra em 1941, com a Dialética do Esclarecimento já a caminho, momento em que Horkheimer decide por tomar um dos muitos possíveis caminhos que ele mesmo havia aberto. A consolidação dessa virada está no artigo “The end of reason”, de 19426, cuja versão em alemão tem por título “Razão e autopreservação”. A partir daí, segundo John Abromeit, o “abandono por Horkheimer do modelo de uma dialética da sociedade burguesa levou ao desaparecimento de distinções-chave que tinham estruturado seu trabalho anterior tanto em nível sincrônico como diacrônico”7.

A reconstrução do projeto de uma “antropologia da época burguesa”, conjugado a uma determinada apropriação do “materialismo” e à ideia de um livro sobre “lógica dialética”, surge como configuração por excelência do trabalho de Horkheimer nos anos 1930. O livro de John Abromeit está armado de maneira a mostrar como esse projeto tinha várias possibilidades de desenvolvimento, sendo o resultado dos anos 1940 (que gira em torno da Dialética do Esclarecimento) apenas uma das suas possíveis realizações. Com isso, Abromeit aponta também, implicitamente, que seria possível continuar esse projeto em sentido diverso da Dialética do Esclarecimento no momento presente.

Esse sentido diverso pode ser relacionado a uma tendência atual no campo crítico de tematizar o afastamento da Teoria Crítica de certa concepção de pesquisa empírica. Pois retomar e pôr em relevo os trabalhos de Horkheimer anteriores a 1941 possui também essa intenção, embora não explicitamente declarada, de mostrar os vínculos desse período de sua produção com um determinado modo de realizar pesquisa empírica desenvolvida então no Instituto de Pesquisa Social. O livro de Abromeit pode ser lido também como uma defesa de uma maneira possível de articular teoria social e pesquisa empírica, da qual os trabalhos de Horkheimer da década de 1930 seriam exemplares.

Se, após a leitura do livro, a estatura intelectual atribuída a Horkheimer parece mais do que justificada, por outro, a reconstrução do seu modelo crítico dos anos 1930 nesses termos é, por exigir ênfase na originalidade das formulações, pouco convincente. Pode ser que John Abromeit tenha razão em seu diagnóstico de que houve “uma forte tendência na literatura secundária a subsumir a obra de Horkheimer e de Adorno a um conceito mais geral de ‘marxismo ocidental’, que tem como ponto de partida a ênfase metodológica de Lukács no conceito de totalidade, no de forma-mercadoria e no de reificação”. Mas combater essa tendência — vale dizer, em boa medida, combater a versão de Habermas do desenvolvimento da Teoria Crítica — não exige necessariamente se colocar a tarefa nos termos em que pôs o livro: “Um dos principais objetivos deste estudo como um todo foi o de demonstrar que o caminho de Horkheimer para a Teoria Crítica foi independente daquele de Lukács e de Adorno”8.

Afirmar, por exemplo, que as formulações de Horkheimer dos anos 1930 têm por pano de fundo conceitual as formulações de História e consciência de classe9, de Lukács, em nada diminui a originalidade do então diretor do Instituto de Pesquisa Social. Pelo contrário, apenas torna mais precisa essa originalidade, dando-lhe maior substância. Isso se exprime até mesmo em oscilações argumentativas sintomáticas: “Como mostraram Michiel Korthals e Ferio Cerruti, Horkheimer não se apropriou do conceito de totalidade de Lukács seja nesse período, seja posteriormente”, o que contrasta com uma afirmação poucas linhas adiante: “Depois de sua ruptura com Hans Cornelius, Horkheimer usaria o conceito de totalidade tanto em termos metodológicos como substantivos em sua teoria social, mas permaneceram importantes diferenças em relação a Lukács”10.

De um lado, John Abromeit propõe uma mudança de foco extremamente fecunda: retirar os escritos de Horkheimer da rubrica abstrata da “metodologia” de maneira a mostrar o vínculo indissolúvel, no campo da Teoria Crítica, entre a sistematização teórica e a investigação empírica. Com isso, consegue não apenas dar ao projeto de uma “Antropologia da época burguesa” (e, em especial, ao artigo “Egoísmo e movimento de libertação”11) o destaque e a centralidade que merece, mas consegue despertar o interesse com respeito às possíveis linhas de continuidade desse projeto no momento atual. De outro lado, entretanto, esse movimento muitas vezes acaba por reduzir a importância de outros textos do período que merecem pelo menos igual destaque, como é o caso de “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”12. Assim como teria sido necessário atribuir pesos diferentes a diferentes influências teóricas, seria necessário também distinguir as diferentes estaturas de textos que possuem temas tão variados; uma análise mais de perto desses textos apontam que não são todos de mesma densidade e fecundidade.

Seja como for, é já muito impressionante a segurança e o interesse no manejo simultâneo de tantas fontes de alta densidade. A estratégia adotada por John Abromeit suplanta largamente essas possíveis objeções pelas possibilidades de leitura e de caminhos para a renovação da Teoria Crítica que seu livro oferece. Não por último porque o livro, no seu conjunto, é um plaidoyer pelo pluralismo e pelo diálogo no interior do campo crítico, sem em nenhum momento abdicar dos necessários embates teóricos que marcam a vitalidade dessa tradição.

De maneira consequente, o objetivo de abrir um leque muito mais amplo de possíveis caminhos para a Teoria Crítica determina também a estrutura do livro. A ênfase na fase decisiva de formação de Horkheimer (1925-1931) prepara a apresentação das muitas linhas de desenvolvimento que marcaram o período seguinte (1932-1941). E, no entanto, a periodização foi estabelecida a partir da articulação conceitual da trajetória de Horkheimer, e não a partir de eventos histórico-mundiais como a crise de 1929, a ascensão do nazismo ao poder, em 1933, ou a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939. A falta dessa referência a eventos histórico-mundiais é de grande importância, tanto pela centralidade da noção de “diagnóstico de tempo” no campo da Teoria Crítica quanto pelo próprio gênero do livro, uma “biografia intelectual”: não são os sucessivos diagnósticos de tempo de Horkheimer nesse período especialmente conturbado que estruturam o livro.

Desde a introdução, Abromeit levanta, mediante a leitura e a organização dos textos de Horkheimer do período, pelo menos cinco temas que contribuem para jogar uma nova luz na Teoria Crítica hoje: “história intelectual materialista”, “história sociopsicológica”, “antropologia da época burguesa”, uma “abordagem verdadeiramente interdisciplinar para a Teoria Crítica” e “pensamento pós-metafísico”. Mais do que uma enumeração de temas, é uma tese de leitura que procura mostrar que a obra de Horkheimer extrapola os ensaios metodológicos — nos quais se concentram a maioria dos comentadores. Ao dar ênfase a esses novos temas, Abromeit introduz uma nova organização na obra de Horkheimer.

Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School possui nove capítulos e dois excursos, além de uma introdução e um epílogo. A primeira seção (capítulos 1 e 2) pretende reconstruir o período que vai desde a infância de Horkheimer até 1925, ano em que escreve sua tese de livre-docência [Habilitationsschrift], intitulada Zur Antinomie der teleo­logischen Urteilskraft [Sobre a antinomia do juízo teleológico]13, apresentada na Universidade de Frankfurt. O primeiro capítulo se concentra na infância e adolescência, destacando suas primeiras experiências emocionais, políticas e intelectuais, período em que Horkheimer escreve uma série de textos literários. Já o segundo capítulo — centro dessa primeira seção — trata dos anos como estudante em Frankfurt, nos quais Horkheimer entra em contato com as principais correntes teóricas que estavam em seu estágio “mais avançado”, mais especificamente, com os avanços na filosofia, na psicologia e na sociologia. A exposição em maior detalhe desse período de estudos iniciais de Horkheimer tem, para Abromeit, o objetivo de primeiramente se contrapor aos comentadores que não atribuem qualquer importância teórica a essa fase. Embora Horkheimer não tenha produzido nesse período seu modelo crítico mais acabado, Abromeit sustenta que é nesse momento — entre 1920 e 1925 — que surgem alguns elementos importantes do modelo da década de 1930.

Segundo Abromeit, esse período da formação acadêmica fornece a Horkheimer três elementos centrais que acabaram por reverberar na fase madura do desenvolvimento de sua “Teoria Crítica primeira” (early Critical Theory) na década de 1930. O primeiro desses elementos é a aproximação e o interesse de Horkheimer pela pesquisa empírica, utilizando-se dessas últimas — desenvolvidas pela Gestalt — para se contrapor aos neokantianos do início do século. Essa contraposição crítica, segundo Abromeit, é justamente o escopo de sua tese de livre-docência. O segundo elemento que Horkheimer desenvolve é o conceito de “totalidade”, esboçado a partir de seu contato mais direto com a psicologia de modo geral. O último elemento destacado nesse perío­do é a ideia de unidade entre “razão prática e teórica”, que será crucial para seu modelo crítico dos anos 1930. Nesse quadro geral surge pela primeira vez a ideia de “interdisciplinaridade”, que será um dos elementos principais da Teoria Crítica de Horkheimer na década de 1930.

A segunda seção do livro (capítulos 3, 4 e 5) cobre o período 1925 a 1931, culminando com o momento em que Horkheimer assume a direção do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. A principal tese desse bloco de capítulos é a de que a Teoria Crítica primeira de Horkheimer teria se constituído, ainda que em linhas gerais, em meados dos anos 1920, e não apenas quando assume a direção do instituto, como defende a grande maioria dos comentadores.

No capítulo 3, Abromeit apresenta a intenção de Horkheimer de construir uma “interpretação materialista da filosofia moderna”. O início desse projeto marca seu afastamento de Hans Cornelius e da “filosofia da consciência” no momento em que Horkheimer se torna Privatdozent em Frankfurt. Para Horkheimer, um dos principais problemas da “filosofia da consciência” é seu afastamento das condições históricas nas quais seus conceitos surgem. Com o intuito de evitar esse problema, ele desenvolve suas teses sobre a “interpretação materialista da história da filosofia moderna”, tomando o seu surgimento como vinculado ao surgimento da “época burguesa”. Abromeit ressalta que Horkheimer tentava superar a “filosofia da consciência” através do “materialismo”, isto é, vincular a “filosofia da consciência” ao surgimento da “época burguesa”. Nesse momento, Horkheimer dá os primeiros passos para constituir uma teoria social própria, o que o faz iniciar seus estudos do pensamento de Marx com o objetivo de construir uma “teoria sociológica adequada”14.

Nesse sentido, para Abromeit, a obra Dämmerung: Notizen in Deutschland [Crepúsculo: notas na Alemanha]15 serve como importante fio condutor de seu argumento mais geral para essa fase da produção de Horkheimer. Publicada somente em 1934, mas cujos excertos são datados do período de 1926 a 1931, e sob o pseudônimo de Heinrich Regius, Dämmerung representaria uma tentativa de atualizar a teoria de Marx a partir da ideia de “subjetividade”, sendo esta vinculada ao modo como a sociedade capitalista produz e reproduz seus próprios meios. Para Abromeit, Dämmerung se utiliza de aforismos, anedotas, metáforas e exemplos concretos para expressar as tendências sociais mais gerais da sociedade capitalista, assim como expressa também os mecanismos próprios desse modo de produção, os quais estão incrustados na sociedade. Em Dämmerung surge a ideia de que a “epistemologia” daquele momento não seria “consciente de suas determinações sociais” e, nesse sentido, ela acaba por reforçar e justificar as condições injustas da sociedade capitalista. Horkheimer pretende com esse escrito defender uma “individualidade concreta” contraposta ao “capitalismo monopolista”. É nessa obra que ele teria começado a esboçar uma vinculação entre a pesquisa empírica e uma possível renovação do marxismo.

Essa necessidade de renovação do marxismo vinculado à pesquisa empírica fez com que Horkheimer levasse adiante a integração da psicanálise à teoria contemporânea da sociedade, objeto de discussão no capítulo 5. Para Abromeit, as investigações empíricas de Erich Fromm realizadas no final da década de 1920 foram cruciais para o desenvolvimento da Teoria Crítica. Após relatar como Horkheimer e Fromm se conheceram, assim como as aproximações teóricas de ambos, Abromeit passa a apresentar o “lugar teórico da psicanálise no pensamento de Horkheimer”, “uma teoria materialista da subjetividade que pode ajudar a explicar melhor a consciência das ações individuais e dos grupos sob determinadas condições”16. Evitando a categoria de “inconsciente coletivo”, Fromm direciona suas análises para as “experiências individuais” e de “grupos que sofrem a mesma pressão”17, isto é, seu intuito é observar o indivíduo concreto num contexto histórico determinado. Essa perspectiva foi incorporada pelo primeiro modelo crítico de Horkheimer. No contexto dessa colaboração surgiu o trabalho A classe trabalhadora na Alemanha de Weimar. Abromeit considera esse o “primeiro trabalho da Teoria Crítica”, tomando esse período como aquele em que Horkheimer começa a traçar as linhas de seu primeiro modelo crítico.

Não obstante, Abromeit registra uma mudança no pensamento de Horkheimer a partir do momento em que assume a direção do instituto. Essa mudança teria se dado justamente porque Horkheimer disporia então de um aparato institucional para implementar seu projeto de Teoria Crítica. Cada capítulo do “coração” do livro, a sua terceira seção (capítulos 6, 7 e 8), pretende expor um dos três conceitos mais importantes para a Teoria Crítica “durante este momento particular”18, uma espécie de convergência e concentração de temáticas ainda mais amplas do período anterior: “materialismo” (cap. 6), “antropologia da época burguesa” (cap. 7) e, por fim, “lógica dialética” (cap. 8).

No curto capítulo 6, Abromeit apresenta o conceito de materialismo em Horkheimer a partir de dois temas — que se referem a dois textos da primeira metade da década de 1930 — nos quais seus escritos incidem: “Materialismo e metafísica”19 e “Materialismo e moral”20. O materialismo, segundo Abromeit, surge primeiramente como uma espécie de “negação determinada” do “idealismo”. Ele aponta que, para Horkheimer, os princípios universais de certas teorias expressam, na verdade, interesses particulares de “grupos” em momentos históricos determinados. Nessa expressão de interesses particulares em princípios universais, Horkheimer entende que “os conceitos”, de modo geral, vinculam-se às classes sociais bem como à posição que estas ocupam na estrutura histórica e social. É nesse sentido que o “materialismo” surge nesse período também como tentativa de compreender a “moralidade”, na medida em que tenta compreender como “a moralidade moderna se tornou a moralidade burguesa”. Registre-se aqui, de passagem, uma dificuldade de leitura específica: não se sabe ao certo o que distinguiria fundamentalmente esse tema e esse capítulo daquele dedicado à “lógica dialética” (cap. 8).

Os conceitos de “antropologia da época burguesa” e “época burguesa” são o tema do capítulo 7. Aqui, Abromeit aponta que Horkheimer se contrapõe a um conceito tradicional de “antropologia” que acaba por hipostasiar uma essência humana a-histórica, assim como hipostasia também um “indivíduo abstrato”. A noção de antropologia de Horkheimer incorpora uma “teoria dialética da história” que leva em conta um período histórico específico — tal como a “época burguesa” — e admite a existência de grupos particulares que compartilham a mesma experiên­cia social. A influência de Fromm no pensamento de Horkheimer é marcante nesse período, fazendo com que este último levasse em conta em seus escritos a relação não somente entre indivíduo, história, sociedade e grupo, como também a constituição psicológica dos indivíduos em determinada sociedade e em determinada época — destaca-se aqui a distância dos trabalhos de Peter Stirk e Helmut Dubiel sobre Horkheimer. A noção de época histórica em Horkheimer se aproximaria da noção de Marx, mas iria além, na medida em que pressuporia uma independência da “cultura” frente ao “mundo físico”.

É nesse sentido que “Egoísmo e movimento de libertação”21 de Horkheimer é apontado como principal escrito do período. Segundo Abromeit, esse ensaio foi o mais influente entre os teóricos críticos do período. Tanto é assim que ele surge citado nos textos de Marcuse, Adorno e Benjamin. Horkheimer teria levado adiante seu conceito de “antropologia da época burguesa” nesse ensaio justamente porque vinculou a análise histórica dos movimentos de libertação com o surgimento do “egoísmo”, apresentando ambos como tendências presentes no nascimento da sociedade burguesa. Nessas análises históricas estão presentes também, de forma marcante, os conceitos advindos da psicanálise. É principalmente com o conceito psicanalítico de “introversão” que Horkheimer compreende o discurso para as massas, em momentos revolucionários, como um “movimento de manipulação”. Disso surge a noção de “nova barbárie”, que possui sua historicidade no decorrer da “época burguesa” e que se encontra na tendência histórica tanto da “integração das massas”, quanto da institucionalização da “crueldade racionalizada”. Essas condições permitem a Horkheimer compreender que na “época burguesa primeira” se desenvolve o “fascismo no século XX”.

Outro trabalho importante que também se insere nessa perspectiva da “antropologia da época burguesa” é Estudos sobre autoridade e família22. Ao examinar mais de perto essa obra, levando a sério a reivindicação de Horkheimer de que ela visa a uma articulação efetiva entre o arcabouço teórico que apresenta e a pesquisa empírica — assim como as relações destas com a noção mesma de “interdisciplinaridade” —, Abromeit novamente destaca-se de leituras tradicionais, como a de Rolf Wiggershaus. Contudo, a importância decisiva de Estudos reside no fato de a obra servir como fonte de um conjunto relevante de categorias da psicologia social para a elaboração da ideia de antropologia da época burguesa: as contribuições de Erich Fromm, especialmente suas teses psicanalíticas sobre o caráter masoquista ou autoritário como tipo dominante na Europa contemporânea, permitirão a Horkheimer uma melhor compreensão do desenvolvimento histórico de seus conceitos centrais desta primeira Teoria Crítica23.

A conexão com a série de “reflexões sobre a lógica dialética”, tema do capítulo 8, é explicitada desde o início: Horkheimer considerava o conceito de antropologia burguesa também como parte do projeto mais amplo sobre a lógica dialética24. Mas, devido aos percalços ocorridos no período — as várias mudanças do instituto, em fuga do nazismo e da guerra —, esse projeto acabou se transformando substancialmente. É nesse sentido que, para Abromeit, os escritos reunidos sobre a lógica dialética possuem um duplo caráter: por um lado, eles fazem parte dos desenvolvimentos da Teoria Crítica primeira de Horkheimer nos anos 1930; por outro, constituem também as bases para a composição da Dialética do Esclarecimento, obra publicada em 1947. As reflexões sobre lógica dialética, segundo Abromeit, partem da crítica à filosofia cartesiana e ao empirismo, retomando assim o tema da “crítica à filosofia da consciência” presente na segunda metade da década de 1920. E é com o estudo de Hegel que Horkheimer aprofunda sua concepção de lógica dialética, movimento que termina com a “reformulação da Teoria Crítica de Marx” numa tentativa de juntar tanto a lógica categórica quanto a própria história. Essa reformulação é sintetizada no notório ensaio “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”. Para Abromeit, esse ensaio faz parte das reflexões sobre lógica dialética, o que acaba por diminuir o peso da psicanálise e da pesquisa empírica presentes em outros ensaios da década de 1930.

Finalmente, a última seção do livro trata do gradual afastamento do modelo primeiro de Teoria Crítica de Horkheimer. A tese de Abromeit é a de que uma separação de Fromm (Excurso I) e uma aproximação de Adorno (Excurso II), somadas à tese do capitalismo de Estado desenvolvida por Friedrich Pollock, passaram a influenciar decisivamente a teoria de Horkheimer, distanciando-o da Teoria Crítica primeira dos anos 1930. A tese defendida por Abromeit é que o conceito de “capitalismo de Estado” acabou ocupando um espaço cada vez maior nos escritos de Horkheimer, culminando esse movimento de distanciamento em O fim da razão25, ensaio que seria o limite entre a Teoria Crítica primeira e as primeiras reflexões que levariam à Dialética do Esclarecimento.

A centralidade que o conceito de capitalismo de Estado acabou ocupando teve consequências: Horkheimer acaba por abandonar o modelo da “dialética da sociedade burguesa” e desaparecem as distinções-chave que estruturavam seu pensamento inicial26. Mais que isso, Horkheimer abandona as análises dos “potenciais revolucionários” que pautaram o início da era burguesa de tal modo que o conceito de capitalismo de Estado e “sua lógica imanente” permite a ele igualar as diferenças entre “pensadores opostos do mesmo período”, assim como as diferenças de “pensadores e conceitos de diferentes períodos”. Perde-se assim a característica fundamental de sua primeira Teoria Crítica: a dialética da sociedade burguesa e sua historicidade. Abromeit destaca também que essa mudança está diretamente relacionada à grande influência das “Teses sobre História”27 de Walter Benjamin tanto em Horkheimer quanto em Adorno. A influência desse texto levou os autores a interpretarem o passado a partir do presente, acabando por levá-los a um processo de “des-historicização” de seu pensamento.

Por isso, com o modelo da Dialética do Esclarecimento, segundo Abromeit, perde-se o que há de mais rico para contribuir com a teoria social contemporânea. É nesse sentido que a Teoria Crítica primeira de Horkheimer da década de 1930 pode “contribuir para uma renovação da Teoria Crítica”. Com isso, o posicionamento de Abromeit a respeito da interpretação da obra de Horkheimer surge de modo marcante: a crítica à Dialética do Esclarecimento é acertada quando se refere somente a essa obra. Essa crítica, como mostra Abromeit, não se estende aos escritos anteriores a O fim da razão. Daí que ele afirme que o mais interessante da obra da primeira geração da Teoria Crítica está no projeto da década de 1930.

O gênero “biografia intelectual” permite a John Abromeit resolver, pela primeira vez e de maneira convincente, intrincados problemas teó­ricos dos estudos sobre Horkheimer, como é o caso do famoso “juízo existencial” que ocupa posição de destaque no ensaio “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”28. Mostra-se igualmente capaz de dar explicação convincente e coerente em aspectos para os quais as fontes são escassas, como é o caso do capítulo 5 do livro, que trata da integração da psicanálise na teoria social de Horkheimer (mesmo se aqui fica a impressão de que a importância de Reich foi subestimada, por exemplo). Não por acaso, portanto, John Abromeit encerra o livro apontando para um modelo de renovação da Teoria Crítica que é aguardado com expectativa: “Um novo modelo de Teoria Crítica necessitaria preservar as tradições do materialismo histórico e da psicanálise junto com os melhores aspectos da tradição política democrática liberal”29. Mas, antes de exigir do autor que continue a trilha que ele próprio abriu, cabe antes recomendar à leitora e ao leitor que aproveite a leitura deste livro excepcional.

Notas

1 The dialectical imagination: a history of the Frankfurt School and the Institute of Social Research 1923-50. Boston: Little, Brown and Co., 1973.         [ Links ] [Ed. bras.: A imaginação dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008].
2 Die Frankfurt Schule. Geschichte, Theoretische Entwicklung, Politische Bedeutung. Munique: Hanser,         [ Links ] 1986. [Ed. bras.: A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Trad. Vera de Azambuja Harvey. São Paulo: Difel, 2002].
3 ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar,         [ Links ] 1985.
4 HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns, Band 1. Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung. Frankfurt am Main: Suhrkamp,         [ Links ] 1995.
5 ABROMEIT, J. Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 170.         [ Links ] 6 HORKHEIMER, M. “The end of reason”. Studies in Philosophy and Social Sciences, vol. IX, Nova York,         [ Links ] 1942.
7 ABROMEIT, op. cit., p. 395.
8 ABROMEIT, op. cit., p. 392.
9 LUKÁCS, G. História e consciência de classeEstudos sobre a dialética marxista. Trad. de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
10 ABROMEIT, op. cit., p. 82.
11 HORKHEIMER, M. “Egoismus und Freiheitsbewegung”. In: Gesammelte Schriften. Band 4: Schriften 1936-1941. Org. A. Schmidt. Frankfurt: Fischer, 1988, pp. 9-88.         [ Links ] 12 Idem, “Traditionelle und kritische Theorie”. In Gesammelte Schriften. Band 4: Schriften 1936-1941, op. cit., pp. 162-216.         [ Links ] 13 HORKHEIMER, M. “Zur Antinomie der teleologischen Urteilskraft”. In: Gesammelte Schriften. Band 2: Schriften 1922-1932. Org. A. Schmidt. Frankfurt: Fischer, 19885, pp. 15-         [ Links ]72.
14 ABROMEIT, op. cit., p. 141.
15 HORKHEIMER, M. “Dämmerung. Notizen in Deutschland”. In: Gesammelte Schriften. Band 2: Schriften 1922-1932, op. cit., pp. 312-         [ Links ]452.
16 ABROMEIT, op. cit., p. 200.
17 Ibidem, p. 207.
18 Ibidem, p. 227.
19 HORKHEIMER, M. “Materialismus und Metaphysik”. In: Gesammelte Schriften. Band 3: Schriften 1931-1936. Org. A. Schmidt. Frankfurt: Fischer, 1988, pp. 70-         [ Links ]105. [Trad. bras. “Materialismo e metafísica”. In: Horkheimer, M. Teoria crítica I: uma documentação. Trad. de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva/ edusp, 1990.] 20 Idem, “Materialismus und Moral”. In: Gesammelte Schriften. Band 3: Schriften 1931-1936, op. cit., pp. 111-         [ Links ]149. [Trad. bras. “Materialismo e moral”. In: Horkheimer, Teoria crítica I, op. cit.] 21 HORKHEIMER, “Egoismus und Freiheitsbewegung”, op. cit.
22 HORKHEIMER, M; Marcuse, H.; Fromm, E.; et al. Studien über Autorität und Familie. Forschungsberichte aus dem Institut für Sozialforschung. Mit einem Vorwort von Ludwig von Friedeburg. Reprint der Ausgabe Paris 1936. Klampen, Lüneburg 2005.         [ Links ] 23 Sobre este ponto, registre-se o aparecimento, em 2013, do interessante livro de Katia Genel, Autorité et emancipation. Horkheimer et la Théo­rie critique (Paris: Payot & Rivages). Como no caso de John Abromeit, a visada mais ampla da autora é a de uma reconstrução não apenas da trajetória intelectual de Horkheimer, mas do conjunto da Teoria Crítica. Katia Genel, no entanto, o faz a partir da noção de “autoridade”. O que a leva a sustentar a tese de que, nessa vertente intelectual, a noção fundamental é antes a de “autoridade” do que a de “dominação”, por exemplo. O livro de John Abromeit se posiciona claramente contra tal possibilidade de reconstrução (ver, por exemplo, a nota 13, p. 303).
24 ABROMEIT, op. cit., p. 302.
25 HORKHEIMER, M. “The end of reason”. Studies in Philosophy and Social Sciences, vol. IX, Nova York,         [ Links ] 1942
26 ABROMEIT, op. cit., p. 395.
27 BENJAMIN, W. Obras Escolhidas; vol.1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,         [ Links ] 1994.
28 ABROMEIT, op. cit., p. 330.
[29] Ibidem, p. 430.

Marcos Nobre – Professor no Departamento de Filosofia do IFCH da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

Adriano Januário – Doutorando no programa de pós-graduação em Filosofia da Unicamp.

Raphael Concli – Mestrando no programa de pós-graduação em Filosofia da Unicamp.

Paulo Yamawake – Mestrando no programa de pós-graduação em Filosofia da Unicamp.

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Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura – FURTADO (NE-C)

FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. Resenha de: KORNIS, George. A cultura no pensamento (e na ação) de Celso Furtado: desenvolvimento, criatividade, tradição e inovação. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.96, Jul, .2013.

Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura, organizado por Rosa Freire d’Aguiar Furtado, é o quinto volume da série Arquivos Celso Furtado e contém muitas informações sobre o pensamento de Celso Furtado (1920-2004), um intelectual que teve a ousadia de ultrapassar os limites disciplinares em favor da construção de uma dicção autoral. Furtado foi um homem de pensamento e ação que circulou por distintos territórios, da vida universitária a órgãos de governo, além de transitar por organismos internacionais e nacionais. Essa publicação, que reúne um conjunto bastante diversificado e pouco conhecido de textos (documentos, artigos e entrevistas), apresenta o autor como intelectual, homem público e um brasileiro de projeção internacional.

O foco do livro é (in)formar os leitores sobre o pensamento de Celso Furtado no campo da cultura — campo sobre o qual ele se debruçou ao longo de várias décadas. No entanto, essa reflexão ainda não é percebida, sobretudo no meio acadêmico, como um vetor importante de sua obra.

O pensamento desse intelectual tem hoje uma presença ainda limitada na universidade brasileira. De modo geral, restringe-se às (boas) faculdades de economia, que, do amplo espectro da obra do autor, utilizam pouco além do clássico Formação econômica do Brasil, publicado originalmente em 1959. Assim, para ter uma maior presença na universidade brasileira, o pensamento de Furtado — que está ainda muito circunscrito ao campo da história econômica e do desenvolvimento econômico — depende diretamente da percepção do seu caráter multidisciplinar.

Na introdução do livro aqui resenhado, Rosa Freire d’Aguiar Furtado delimita os quatro momentos da extensa reflexão de Furtado no campo da cultura. O primeiro deles data dos anos 1970 e sua obra síntese é o livro Criatividade e dependência na civilização industrial, publicado originalmente em 1978. O segundo momento situa-se no período compreendido entre 1986 e 1988, quando Furtado foi ministro da Cultura no governo Sarney. O terceiro diz respeito ao período compreendido entre os anos de 1992 e 1995, quando a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento (CMCD) da onu/Unesco reuniu, além de Furtado, um conjunto de intelectuais do porte de Amartya Sen (Prêmio Nobel de Economia/1998) e Elie Wiesel (Prêmio Nobel da Paz/1986). O quarto e último momento se dá em 1997, quando Furtado ingressa na Academia Brasileira de Letras, instituição na qual profere um conjunto de conferências cujos textos integram a coletânea em análise.

O bloco “Documentos de Celso Furtado” é, sem dúvida, a parte mais consistente da publicação. Ele contém 23 textos subdivididos em quatro tópicos intitulados “Primeiras reflexões”, “O Ministério da Cultura”, “A Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento” e “Páginas acadêmicas”. Esse conjunto central é sucedido por dois outros blocos que lhe são complementares. O primeiro, intitulado “Artigos”, consiste em dois textos de autoria de dois importantes dirigentes culturais durante a gestão de Furtado do Ministério da Cultura (MinC): Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, chefe de gabinete do MinC, e Fábio Magalhães, secretário de Apoio à Produção Cultural do MinC e presidente da Funarte. Ambos são textos de caráter documental que podem legitimamente ser considerados complementares aos textos do tópico específico “O Ministério da Cultura”.

O bloco seguinte é composto de duas entrevistas com Celso Furtado: a primeira, realizada em 1987, foi conduzida por duas pesquisadoras francesas — Hélène Rivière d’Arc e Hélène Le Doaré — do Comité National de la Recherche Scientifique (CNRS) e do Centre de Recherche et Documentation sur L’Amérique Latine (CREDAL/Paris); a segunda, realizada no ano anterior, coube a Gabriela Marinho e foi publicada na revista Arquitetura e Urbanismo. Na primeira entrevista Celso Furtado retomou elementos centrais de seu pensamento tais como as categorias de desenvolvimento, de criatividade, de cultura (em especial de política cultural e de economia da cultura) e de identidade cultural e, nessa perspectiva, ela é ainda hoje um documento importante.

O bloco “Documentos de Celso Furtado” inicia-se com o tópico “Primeiras reflexões”, que reúne dois textos: o interessante “Que somos?” — no qual o autor aborda os temas da identidade e da cultura brasileira e ainda tangencia Schumpeter ao relacionar crise a criatividade — e o vigoroso “Criatividade cultural e desenvolvimento dependente” — um trabalho exploratório que, segundo a organizadora, é a “primeira versão de um dos ensaios de Criatividade e dependência na civilização industrial“, livro-chave da obra de Furtado.

O primeiro texto é a conferência proferida no I Encontro Nacional de Política Cultural, ocorrido em Belo Horizonte em abril de 1984. Nesse momento, o Brasil estava próximo de operar a passagem da mais longa ditadura militar da história do país (1964-1985) para uma restauração da ordem democrática sem a presença de eleições diretas para a presidência da República. A dificuldade dessa transição política ampliava-se no quadro de uma desaceleração do crescimento econômico em paralelo a uma intensificação inédita do processo inflacionário. Nesse contexto os secretários estaduais de Cultura, somados a vários dirigentes de instituições culturais das três esferas de governo e a um grande número de artistas e intelectuais, acreditavam que a criação do Ministério da Cultura — em substituição a uma Secretaria de Cultura vinculada ao Ministério da Educação e Cultura — seria um importante vetor da reconstrução democrática do país. Nessa pers­pectiva destaca-se a relevância da afirmação de Celso Furtado — proferida por um intelectual nacional-desenvolvimentista e ex-ministro do governo Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964 — segundo a qual “uma reflexão sobre a nossa própria identidade terá de ser o ponto de partida do processo de reconstrução que temos pela frente, se desejamos que o desenvolvimento futuro se alimente da criatividade do nosso povo e contribua para a satisfação dos anseios mais legítimos desse”. O mesmo texto trouxe uma contribuição igualmente importante ao apresentar sete teses sobre a cultura brasileira, que consistem, na verdade, numa visão panorâmica e histórica do processo cultural brasileiro do século XVI até o final do século XX, quando a indústria da cultura passava a atuar como instrumento da modernização dependente do país. E não menos importante é a referência, ao final, de breve e precisa reflexão sobre política cultural, cujo centro é a afirmação de que “o objetivo central de uma política cultural deveria ser a liberação das forças criativas da sociedade”, as quais deveriam interagir com as forças produtivas. Furtado apontava assim para a necessária interação entre cultura enquanto sistema de valores (que definem os fins) e o desenvolvimento das forças produtivas (que definem os meios), ou, noutros termos, a necessária interação entre identidade (cultural) e potência (produtiva).

O segundo artigo, datado da segunda metade dos anos 1970, como foi dito, é uma versão preliminar de um ensaio que integra o livro Criatividade e dependência na civilização industrial, no qual Furtado demonstra sua singularidade como economista, ao introduzir, de modo inovador, a dimensão cultural na questão do desenvolvimento. Segundo Rosa Freire d’Aguiar Furtado, o desenvolvimento, para esse autor, “seria menos o resultado da acumulação material do que um processo de invenção de valores, comportamentos, estilos de vida, em suma, de criatividade”.

O tópico subsequente, “O Ministério da Cultura”, apresenta nove textos escritos entre fevereiro de 1986 e julho de 1988, período no qual Celso Furtado foi o titular da pasta da Cultura, sucedendo a José Aparecido de Oliveira — o primeiro ministro da Cultura, que permaneceu no cargo somente por dois meses, em 1985 — e a Aluísio Pimenta — que passou apenas pouco mais de oito meses no exercício da função. Sua permanência à frente do ministério, com duração de dois anos e cinco meses, foi das mais longevas da história dessa pasta, tendo sido superada apenas por Francisco Weffort (1995-2002) e Gilberto Gil (2003-2008). A alta rotatividade dos titulares de um Ministério da Cultura recém-criado é um dado contextual que não pode ser desconsiderado quando da leitura dos textos de Furtado, escritos quase sempre com brevidade e urgência para expressar seu pensamento e ação.

Um desses textos foi seu discurso de posse. Afirmava naquele momento que o desafio não era apenas preservar o passado, mas transformá-lo em fonte de criatividade no presente e no futuro. O então ministro se apresentava como consciente de que “a revolução nas tecnologias de comunicação está modificando profundamente a problemática da cultura” e que ela conduz à massificação e à hipertrofia do mercado. Assim, para ele e seus colaboradores, “a política cultural, em face da revolução das tecnologias de comunicação, terá de preocupar-se não apenas em democratizar o acesso aos bens culturais, mas também em defender a criatividade”.

No texto “Economia da cultura”, Furtado tratou brevemente de um tema tão importante quanto até hoje relativamente pouco elaborado no Brasil, apesar de objeto de reflexão de importantes economistas norte-americanos e europeus desde os anos 1960. Furtado, na década de 1980, estava consciente desse atraso bem como da necessidade de sua superação. Nesse sentido, é importante destacar que seu texto é uma breve introdução ao estudo “Economia e cultura: reflexões sobre as indústrias culturais no Brasil”, realizado pela Fundação João Pinheiro, em 1988. A despeito de todos os seus limites, “Economia da cultura” e o estudo acima citado foram iniciativas pioneiras na abordagem do processo de produção, distribuição e consumo de bens e serviços culturais no país.

Os vínculos existentes entre desenvolvimento econômico e social e política cultural são apontados no texto “Pressupostos da política cultural”. Aqui o pensamento de Furtado revela-se com clareza ao afirmar que “o que chamamos de política cultural não é senão um desdobramento e um aprofundamento da política social”. Demonstra aqui a preocupação em articular as políticas econômica (cuja tônica é a acumulação), social (cujo foco é a inserção) e cultural (cujo essencial é a criatividade e a consequente transformação), ou seja, estabelece os elos entre os meios e os fins do processo de desenvolvimento. Ao privilegiar as articulações políticas e institucionais, seu pensamento também destaca a ação do Estado que “longe de se substituir à sociedade aplica-se em criar as condições que propiciem a plenitude das iniciativas surgidas dessa sociedade […] concentrando esforços [na] preservação do patrimônio e da memória culturais, [no] estímulo à criatividade de nosso povo, [na] defesa da identidade cultural do país e [na] democratização do acesso aos valores culturais”.

Em outro texto intitulado “O IPC, cultura e desenvolvimento tecnológico”, Furtado revelava sua preocupação com a estruturação do próprio ministério. Trata-se de discurso proferido em 1986, na abertura de seminário interno do Instituto de Promoção Cultural, órgão criado com a missão de desenvolver um pensamento no campo da economia da cultura e com função estratégica durante sua gestão. Faz-se aqui presente o estrategista político, que centra seu pensamento de curto e longo prazo no Estado e na cultura enquanto um processo produtivo. Como expressão de um pensamento atento para o desenvolvimento tecnológico — e Furtado chega a mencionar a necessária articulação política com o Ministério da Ciência e Tecnologia —, o mercado e a indústria cultural assumem centralidade.

Um balanço das realizações da gestão Furtado à frente do ministério até fins de 1987 encontra-se no texto “A ação do Ministério da Cultura”. Estão ali apresentadas as quatro diretrizes que nortearam sua gestão: a preservação e o desenvolvimento do patrimônio cultural; o estímulo à produção cultural preservando a criatividade; o apoio à atividade cultural onde ela se apresenta como ruptura com respeito às correntes dominantes; e, finalmente, o estímulo à difusão e ao intercâmbio culturais visando democratizar o acesso ao nosso patrimônio e aos bens culturais no país e no exterior. Furtado expõe ainda as realizações de sua pasta, segundo cada uma dessas diretrizes, além das opções feitas por sua gestão. Destaca os programas constituídos por setor de atividade; os compromissos socioculturais são mencionados de modo sistemático; demonstra o empenho em redesenhar instituições com ênfase nas fundações e, finalmente, a Lei Sarney (Lei 7.505, de 2 de julho de 1986) é apresentada grandiosamente como “a grande contribuição prestada pelo atual governo ao desenvolvimento cultural do país”. Dedica-se especialmente a esse tema, ao destacar o pioneirismo da criação de uma legislação de incentivos fiscais à cultura, por acreditar que, a partir desse momento, a sociedade civil e, em particular, os empreendedores brasileiros assumiriam iniciativas no campo da produção cultural tendo em vista as limitações de recursos do Estado. Caberia ao Estado gerir tanto o cadastro das entidades às quais é conferido o incentivo, quanto o Fundo de Promoção Cultural. O foco dessa estratégia era “o fortalecimento das atividades empresariais de interesse cultural de origem e controle nacionais”. Ao supor adesões, Furtado possivelmente minimizou a oposição que conduziria à substituição da referida lei, já no governo Fernando Collor, pela Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, conhecida como Lei Rouanet.

No texto intitulado “Política cultural e criatividade”, fruto de pronunciamento na abertura do Fórum de Secretários de Cultura, realizado em abril de 1987, no qual reiterou a importância da preservação da força criativa do povo brasileiro como fator de identidade cultural, Furtado buscou — talvez com alguma ingenuidade — adesões das Secretarias de Cultura à Lei Sarney, “que tem sido interpretada apenas como um mecenato tradicional embora sua essência seja um convite para que a sociedade participe mais amplamente das iniciativas culturais”. No entanto, passado menos de um ano de existência da Lei Sarney, Furtado já identificava de modo arguto “um forte declínio na participação dos recursos destinados à cultura nos orçamentos de muitos estados da federação”.

Uma reflexão mais apurada é apresentada em “Política cultural e o Estado”, texto datado de fins de 1986, no qual Furtado articula a preservação do patrimônio com inovação e a identidade com democratização do acesso aos valores culturais. Com clareza, há ali uma síntese de seu pensamento: os papéis do Estado e da sociedade civil estão definidos, e temas tais como a descentralização e o desenvolvimento foram devidamente abordados. Trata-se de um documento que foge ao padrão dos discursos comemorativos e dos balanços de gestão para afirmar-se como um arcabouço de um projeto para o desenvolvimento fundado na cultura.

O terceiro tópico do bloco “Documentos de Celso Furtado”, denominado “A Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento”, compõe-se de dois textos que ajudam na compreensão de seu pensamento no campo da cultura, além de serem bastante consistentes e politicamente relevantes. O primeiro deles, datado de 1994, intitula-se “Economia e cultura” e foi preparado para o projeto preliminar do relatório da CMCD. Trata-se de um texto no qual o pensamento de Celso Furtado é apresentado a partir das seguintes proposições: “a cultura tem que ser observada a um só tempo como processo cumulativo e como sistema”; “se o objetivo fundamental da política de desenvolvimento é melhorar a vida dos homens e das mulheres, seu ponto de partida terá de ser a percepção dos fins, dos objetivos que se propõem alcançar os indivíduos e as coletividades”; “nas sociedades economicamente dependentes a política cultural se faz particularmente necessária [pois] é nela que se manifesta a importância do conceito de identidade cultural que traduz a ideia de manter com o nosso passado uma relação capaz de enriquecer o nosso presente”. O segundo texto, intitulado “Cultura e desenvolvimento” (1995), parte da necessidade de aprofundar as análises e discussões centradas na relação entre cultura e desenvolvimento, avança pela proposição de direitos culturais no desenvolvimento dos direitos humanos e, ao concluir, destaca a importância de princípios éticos e democráticos no curso desse processo.

Já o último tópico desse mesmo bloco, intitulado “Páginas acadêmicas”, apresenta um conjunto de dez pequenos textos sobre autores brasileiros que, no entanto, não expressam um vínculo maior com a obra de Furtado nem com as ideias contidas no seu projeto de desenvolvimento centrado na cultura. Uma exceção é o texto de seu discurso de posse, em 1997, na Academia Brasileira de Letras, no qual ele homenageia Darci Ribeiro, homem de pensamento e ação que, como ele próprio, tanto marcou o país. Ambos pertenceram à mesma geração de intelectuais brasileiros, e tiveram em comum o desejo de transformar o país com base em um projeto nacional de desenvolvimento autônomo. Com suas singularidades, Celso Furtado e Darci Ribeiro ocuparam a mesma cadeira na Academia Brasileira de Letras, e suas obras, através do ensino e da pesquisa, podem alimentar novos processos de transformação fundados em projetos de desenvolvimento nacionais e autônomos.

Longe de ser uma compilação voltada para o passado, o livro Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura é uma fonte contemporânea para reflexão e debate sobre cultura e desenvolvimento. Ademais, ele torna evidente a diversidade e a originalidade do pensamento de Furtado e seu compromisso com uma ação orientada para a mudança social.

George Kornis – Doutor em Economia, professor associado do ims/Uerj e autor de diversos trabalhos e pesquisas no campo da economia da cultura.

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A História das Constituições brasileiras: 200 anos de luta contra o arbítrio – VILLA (NE-C)

VILLA, Marco Antonio. A História das Constituições brasileiras: 200 anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: Leya, 2011. Resenha de: SILVA, Virgílio Afonso da. Historinhas (Irrelevantes) sobre as Constituições brasileiras. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.96, Jul,.2013.

Em alguns âmbitos, e certamente no campo do direito, a academia brasileira escreve muito pouco para o grande público. Em sua História das constituições brasileiras, Marco Antonio Villa avisa, logo no início, que não se trata de um livro de direito constitucional, tampouco de uma obra acadêmica1 , o que certamente chama a atenção para o livro. O autor conseguiu mostrar que é possível escrever sobre um tema árido sem que a linguagem seja necessariamente árida. Infelizmente, contudo, talvez esse seja o único mérito do livro.

Villa não conta uma história das constituições brasileiras; simplesmente compila anedotas e lugares-comuns ao lado de equívocos conceituais e falta de informação. No livro, quase tudo é classificado como “bizarro”, “curioso”, “inusitado” ou “exótico”, e o Brasil como um país sem “seriedade legal”2 .

O livro carece, também, de fio condutor identificável. Quando muito, baseia-se em duas premissas que, se não necessariamente equivocadas, demandam alguma fundamentação. O simples fato de ser um livro não acadêmico, não jurídico, feito para o grande público, não isenta o seu autor de expor suas premissas e justificá-las. Essas duas premissas, ainda que não explícitas, são: (1) as constituições brasileiras, com raríssimas exceções, sempre foram muito detalhadas e tratam, frequentemente, de assuntos não constitucionais; (2) as constituições brasileiras são muito longas, têm muitos artigos (uma consequência quase natural, aparentemente, da primeira premissa)3. Essas premissas não são necessariamente equivocadas, mas demandam fundamentação. Quando o autor afirma que as constituições brasileiras com frequência trataram de assuntos que não são tipicamente constitucionais4 , parece ele supor que existe um critério claro que permita, em todos os casos, distinguir o que é assunto constitucional do que não é. Mas Villa parece não ser capaz de definir esse critério. Não basta citar aqui e ali artigos, incisos ou parágrafos anedóticos dessa ou daquela constituição, que, por razões que não importam neste momento, conseguiram chegar ao texto constitucional. Infelizmente, contudo, esse é o argumento-padrão de Villa ao longo do livro: ao invés de buscar critérios ou parâmetros para as suas afirmações, ele recorre ao anedótico.

A obsessão pelo número de artigos das nossas constituições segue a mesma linha: elas seriam muito longas porque tratam de muitos assuntos. Mas, da mesma forma que Villa não explica o que deve e o que não deve ser tratado em uma constituição, também não explica o que é uma constituição longa, tampouco qual é a relação do tamanho de uma constituição com sua qualidade e capacidade de produzir os efeitos desejados.

Com essas deficiências no pano de fundo, pretendo, nos próximos tópicos desta resenha, analisar as principais ideias e problemas do livro de Villa: a questão do tamanho de nossas constituições; o recurso a anedotas como estratégia argumentativa; o uso questionável de comparações com outros países (apenas quando isso interessa aos objetivos do autor); o grande número de equívocos conceituais e a frequente referência a situações fora de contexto, com o intuito de apresentá-las, para usar o vocabulário de Villa, como “bizarras”, “exóticas” ou “curiosas”.

O TAMANHO DE NOSSAS CONSTITUIÇÕES

Villa está convencido de que nossas constituições sempre foram muito longas, com muitos artigos, muitos dos quais tratam de “assuntos não constitucionais” ou são, para usar o termo preferido do autor, simplesmente bizarros. Villa compra um dos maiores lugares-comuns a respeito da extensão das constituições: boa é aquela com poucos artigos5. De brinde, leva também outra história da carochinha: a Constituição dos Estados Unidos é boa e longeva porque tem poucos artigos6.

Duas questões, no entanto, não são respondidas: (1) por que uma constituição com poucos artigos é melhor do que uma com muitos? (2) O que exatamente significa “poucos artigos” (ou “muitos artigos”)? Villa faz uma discutível contraposição entre países “com seriedade legal” e países “sem seriedade legal”. Aqui tampouco diz o que significam esses dois conceitos. Apenas ficamos sabendo que, para ele, o Brasil se inclui na segunda categoria. Mas não parece ser difícil supor que Estados Unidos e alguns países europeus seriam incluídos na primeira. A Constituição brasileira de 1988 tinha, em seu texto original, 245 artigos. Já a Constituição dos Estados Unidos, que parece ser o ideal de constituição para Villa, tem apenas sete artigos no seu texto original e 27 artigos extras, inseridos por emendas. Mas o que dizer então das constituições da Alemanha, com 146 artigos, dos Países Baixos, com 142, ou da Suíça, com 197 artigos? Se a qualidade de uma constituição é medida pelo número de artigos, Brasil e Suíça parecem ter muito em comum. Pelo menos essa deveria ser a conclusão de Villa.

O que Villa não quer ver é o óbvio: ter poucos ou muitos artigos, em si, não significa absolutamente nada. Em primeiro lugar, por uma razão trivial: o conceito de artigo não é algo estanque e igual para todas as constituições. Aquilo que a Constituição dos Estados Unidos chama de artigo é uma unidade dividida em diversas seções que, por sua vez, estão divididas em diversos parágrafos. Ou seja: o conceito de artigo na Constituição dos Estados Unidos equivale a uma divisão interna do texto que teria função mais próxima dos títulos e capítulos da Constituição brasileira, não do nosso conceito de artigo. Tendo isso em mente, a comparação muda bastante. Os sete artigos originais da Constituição dos Estados Unidos não seriam, na verdade, sete artigos para os padrões legislativos brasileiros (e de diversos outros países). Mas, mesmo com esses ajustes, a comparação continua não tendo nenhuma relevância.

A quantidade de artigos ou, o que é muito mais relevante, a quantidade de temas tratados em uma constituição não são questões definíveis a priori, com base em padrões imutáveis. Quem afirma que determinados artigos não deveriam estar na constituição tem que expor o seu conceito de constituição. O leitor que procurar esse tipo de informação no livro de Villa sairá frustrado. A tentativa de demonstrar que há coisas fora de lugar é feita apenas por meio de exemplos anedóticos escolhidos a dedo, ignorando tradições jurídicas, conjunturas históricas ou aspectos políticos.

Villa não pretende, por exemplo, contextualizar sua análise e afirmar que a Constituição dos Estados Unidos é mais enxuta do que a de outros países simplesmente porque foi feita em uma época distinta da maioria das constituições ainda em vigor. O que se almejava com uma constituição no século XVIII não é o mesmo que se costuma pretender atualmente. Tendo esse contexto em mente, a Constituição brasileira, ainda que possa ser mais pródiga em temas do que outras, destoa menos do padrão contemporâneo do que Villa quer fazer crer.

Além da recorrente crítica ao suposto tamanho exagerado de nossas constituições, o livro é também um desfile de “causos” que nada provam e não têm, de fato, qualquer relação com a história de nossas constituições. Villa dedica páginas e mais páginas a expor informações absolutamente irrelevantes, como se interessasse a alguém que quer conhecer a história de nossas constituições saber que Olavo Bilac, no exercício da função pública, escrevia despachos em forma de versos7 , ou que o Visconde de Taunay impediu José do Patrocínio de fazer um discurso no primeiro casamento civil celebrado no Brasil8 , ou ainda que, na década de 1930, um açougueiro foi preso por uma diferença de 50 gramas na venda de carne9. Informações como essas, que nada dizem sobre as constituições brasileiras, recheiam o livro de Villa.

Nas suas críticas às constituições brasileiras, Villa usa as experiências internacionais apenas e tão somente na medida em que sirvam aos seus objetivos. Em diversos momentos, ele finge estar diante de artigos que só poderiam fazer parte de constituições de “repúblicas bananeiras”, para usar outra expressão do próprio Villa10 . A leitura de constituições de outros países, no entanto, mostraria um cenário diverso.

Villa afirma, por exemplo, que o artigo que define a língua portuguesa como idioma oficial do Brasil (art. 13) é muito “estranho”, “pois ninguém estava pretendendo adotar outra língua”11. Do ponto de vista jurídico, essa afirmação não faz sentido, pois supõe que só deve fazer parte de uma constituição aquilo que está em risco. Além disso, no plano do direito comparado, teríamos que supor, por exemplo, que o art. 2 º da Constituição da França, que declara o francês idioma oficial do país, deve ter sido uma reação a alguma revolta desconhecida que pretendia forçar a adoção de outra língua na terra de Molière. O mesmo vale para o art. 8 º da Constituição da Áustria, que diz que o alemão é o idioma oficial do país, e para o art. 27 da Constituição polonesa, que declara que o polonês é o idioma oficial da Polônia.

O art. 4º da Constituição de 1988 é chamado de “latino-americanismo” (em sentido irônico e pejorativo, claro), por fomentar a integração latino-americana12. Talvez fosse o caso de perguntar se Villa diria o mesmo sobre o art. 23 da Constituição alemã acerca da consolidação da União Europeia.

Para Villa, é “incrível” o fato de que a Constituição de 1824 tivesse um artigo que declarava que “a pessoa do imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma”13. Se a “rigorosa pesquisa” a que faz menção a orelha do livro tivesse de fato ocorrido, teria sido fácil descobrir que outras constituições da época tinham artigos idênticos. Uma sugestão de leitura seria o art. 5º da Constituição da Noruega (ainda hoje em vigor), segundo o qual “a pessoa do rei é sagrada; ele não pode ser censurado ou acusado”.

O tamanho da Câmara dos Deputados também é alvo da estratégia de mostrar dados de maneira enviesada. Na aritmética de Villa, se a Câmara brasileira tem 513 e a dos Estados Unidos tem 435 membros, algo está errado, porque a população americana é maior do que a nossa. Villa afirma: “A Câmara chegou ao número total de 513 deputados, uma das maiores do mundo (nos Estados Unidos, a Câmara dos Representantes tem 435 membros e a população é superior à brasileira)”14. Mas o que dizer, então, da Assembleia Nacional francesa, com 577 membros, ou do Parlamento alemão, com 620, ou da Câmara dos Comuns na Inglaterra, com, pasmem, 650 membros? Aqui, de novo, esses exemplos atrapalhariam o esquisito argumento de Villa. Melhor então escondê-los (já que, se Villa afirma que a Câmara brasileira é “uma das maiores do mundo”, é possível supor que ele tenha pesquisado o tamanho de outras casas legislativas e, portanto, sabia desses números).

Além de não fazer comparações internacionais quando não interessa, Villa baseia parte da sua análise de casos supostamente “bizarros” em noções jurídicas bastante equivocadas. Ele confunde impedimento do presidente com impeachment, para depois chamar de “exótico” o sistema de substituições e sucessões da atual Constituição brasileira15. O exotismo, contudo, só surge por causa dessa confusão conceitual.

Outro equívoco recorrente, especialmente na análise da Constituição de 1988, é forçar incompatibilidades entre dispositivos constitucionais com o propósito de mostrar que nossas constituições são feitas sem cuidado, que aceitam qualquer coisa e que nelas haveria diversas previsões mutuamente excludentes. Villa afirma: “É evidente que são excludentes a democracia direta e a representativa. A dubiedade constitucional foi um meio de aparar as arestas entre os diferentes grupos políticos”16. A afirmação está fora de qualquer contexto e é difícil saber o que Villa quer dizer com ela. É possível supor que ele esteja mencionando o parágrafo único do art. 1º da Constituição, que prevê que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Embora Villa afirme que há uma contradição “evidente”, ele não diz a razão. O certo é que há inúmeras constituições pelo mundo afora que se apoiam em ideias semelhantes: a democracia representativa é matizada por instrumentos de democracia direta como plebiscitos, referendos ou leis de iniciativa popular. Não há aqui qualquer exotismo.

Pelo contrário, é absolutamente comum que constituições contenham regras gerais que sejam excepcionadas pela própria constituição. É tarefa básica do jurista harmonizar esse tipo de relação entre normas. Villa engana-se, portanto, quando afirma que a contradição que ele aponta como evidente “vai se repetir várias vezes” ao longo da Constituição17. Seu segundo exemplo de normas “evidentemente excludentes” é igualmente equivocado: segundo ele, não é compatível garantir a propriedade (art. 5º, XXII ) e, ao mesmo tempo, exigir que ela cumpra sua função social (art. 5º, XXIII). Qualquer estudante de primeiro ano de direito aprende a resolver essas relações entre regra geral e regra especial.

Quando Villa comenta o art. 4º , parágrafo único, da Constituição de 1988, já mencionado acima, segundo o qual a “República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”, além de pejorativamente classificar o artigo de “latino-americanismo”, Villa afirma:

O despropósito está explícito. Não é somente um princípio. Muito mais do que isso, trata-se da determinação para iniciar o processo de formação de uma comunidade de nações, tal qual a europeia. Como se bastasse simplesmente externar um desejo, como se a palavra substituísse a ação e todas as contradições na organização de uma comunidade tão díspar18.

O que está explícito, contudo, não é o despropósito do texto constitucional, mas o despropósito da interpretação de Villa, que, de novo, tenta forçar a impressão de algo exótico e incrível. É claro que a palavra não substitui a ação. Mas a palavra — no caso uma previsão constitucional — tem uma força normativa que não pode ser ignorada, pois aponta para uma direção a ser seguida. Normas constitucionais não garantem apenas direitos ou definem a organização do Estado, elas também podem definir — e com frequência definem — objetivos a serem perseguidos. O art. 4º , parágrafo único, faz exatamente isso.

Há diversos outros equívocos conceituais ao longo do livro de Villa. Embora isso possa indicar menos cuidado na elaboração do livro do que a orelha e a apresentação do livro sugerem, alguns desses equívocos conceituais não seriam necessariamente um problema digno de muita atenção, especialmente em um livro não jurídico e não acadêmico. A menção a alguns deles acima não tem, portanto, o objetivo de apontar o erro pelo erro. O problema é que cada um dos incontáveis equívocos serve de trampolim para que Villa invente mais uma de suas situações aparentemente “exóticas”, “bizarras” ou “inusitadas”. Tendo esse objetivo em mente, Villa deveria ter se preparado melhor. É claro que, se o tivesse feito, teria encontrado menos historinhas para contar, mas certamente haveria menos razões para corrigi-lo.

Outra forma de forçar exotismos é por meio da referência a situações descontextualizadas. Assim, o leitor incauto poderá imaginar que o voto censitário (baseado na renda ou propriedade) durante o império era mais uma invenção brasileira19 , embora qualquer estudioso saiba (Villa inclusive) que o voto censitário era a regra geral no século XIX , no mundo inteiro.

No capítulo sobre o STF , Villa cita a frase, supostamente dita por um de seus ministros no passado: “Estamos aqui para aplicar a lei e não para fazer justiça”20. O objetivo de Villa parece ser o de sugerir aos leitores que o STF sempre foi formado por pessoas de caráter duvidoso. O problema é que a frase não tem nada de peculiarmente brasileira e nada diz sobre o caráter de um juiz. Ela expressa, ainda que de forma simplificada, um dos pontos centrais de uma corrente jurídico-filosófica dominante por muito tempo (e ainda influente) — o positivismo jurídico — que defende, entre outras coisas, que não cabe ao juiz fazer juízos morais21. Mas revelar esse decisivo detalhe atrapalharia os objetivos de Villa. E não se trata de mero desconhecimento do autor. A frase acima citada teria sido dita pelo ministro Hahnemann Guimarães a Lêda Boechat Rodrigues, autora de um extenso trabalho sobre a história do STF , que Villa cita. É possível supor, então, que ele o tenha lido. No entanto, ao contrário de Villa, Lêda Boechat Rodrigues não cita o episódio de forma descontextua­lizada e faz questão de explicar o que há por trás da frase do ministro: “A convicção do Ministro Hahnemann Guimarães era a de um ardente positivista jurídico”22. E, embora de forma bastante simplificada, não deixa dúvidas de que se trata de um embate de correntes jurídico-filosóficas, não de questões de caráter: “Mais próximas do meu sentir ressoavam as palavras do admirável Benjamin N. Cardozo […]. A Escola Sociológica do Direito americana parecia-me levar a sentenças de muito maior valia que as inspiradas pelo Positivismo Jurídico”23. Se Villa tivesse exposto o contexto, teria perdido a oportunidade de tripudiar às custas de um possível desconhecimento de seus leitores do que está por trás dos fatos que narra. Mais uma vez, preferiu esconder os detalhes.

O livro de Villa, em suma, além de não ser uma história das constituições brasileiras (tampouco do STF), mas uma mera coleção de anedotas pouco relevantes sobre temas marginais, é todo baseado em estratégias argumentativas duvidosas, por não mostrar contextos, por esconder a experiência internacional com o intuito de fazer crer que nossa experiência é sempre singular e, por fim, por basear-se em interpretações equivocadas dos textos constitucionais.

Villa parece se divertir com um suposto exotismo brasileiro. Uma pena que não o demonstre por meio de uma análise mais bem informada. Com isso, perdeu a oportunidade de escrever um livro interessante, que analisasse por que, em determinados momentos, as constituições brasileiras não conseguiram produzir os efeitos esperados. Poderia, até mesmo, tentar entender por que nossas constituições foram aumentando de tamanho, já que esse parece ser um tema que o interessa. Poderia, por que não, também mostrar o que funcionou nos últimos quase duzentos anos. Isso não significaria fazer uma análise ufanista de nossas constituições. Tampouco deixaria o livro mais árido. Mas Villa preferiu o caminho fácil, o anedótico. Para quem está atrás de anedotas irrelevantes, pode ser um passatempo indolor. Já para quem procura uma história das constituições brasileiras, ler o livro de Villa é definitivamente pura perda de tempo.

Notas

1 VILLA, Marco Antonio. A história das constituições brasileiras: 200 anos de luta contra o arbítrio, pp. 9-10.         [ Links ] 2 Ibidem, p. 126.
3 Não quero com isso dizer que essas são as duas únicas premissas do livro de Villa. Com certeza deve haver outras, tão pouco explícitas quanto essas que menciono. Se há alguma premissa explícita, talvez sejam as duas definidas na apresentação do livro: a predominância do arbítrio estatal em nossas constituições e a dissociação dos textos constitucionais com o Brasil real (p. 10). Essas duas premissas, contudo, não são de fato desenvolvidas ao longo do livro (ainda que, no caso da primeira, ela seja o pano de fundo das constituições dos períodos autoritários de nossa história).
4 Por exemplo, Villa, op. cit., pp. 40, 48, 56, 90, 126.
5 Ao longo de quase 150 páginas, Villa consegue encontrar apenas um único ponto positivo em todas as constituições da história do Brasil: a de 1891 foi uma constituição concisa (p. 32). O número de artigos das nossas constituições é quase um fetiche para Villa e é tema recorrente no livro (além da p. 32, cf. também as pp. 48 e 115, por exemplo).
6 Ibidem, p. 116.
7 Ibidem, p. 28.
8 Ibidem, p. 39.
9 Ibidem, p. 64.
10 Ibidem, p. 90.
11 Ibidem, p. 127.
12 Ibidem, p. 117.
13 Ibidem, p. 19.
14 Ibidem, p. 119, grifos meus.
15 Ibidem, pp. 121-122, 125.
16 Ibidem, p. 118.
17 Ibidem, p. 118.
18 Ibidem, pp. 117-118.
19 Ibidem, p. 17.
20 Ibidem, p. 131.
21 Apenas para ficar nos autores clássicos dessa corrente jusfilosófica, cf. KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. 2. ed. Viena: Deuticke,         [ Links ] 1960; HART, H. L. A. The concept of law. Oxford: Clarendon Press,         [ Links ] 1961. Há traduções brasileiras de ambos os livros.
22 RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, t. III,         [ Links ] p. 39.
23 Ibidem.

Virgílio Afonso da Silva – Professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP.

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Sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador – SINGER (NE-C)

SINGER, André. Sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Resenha de: MIGUEL, Luis Felipe Limites da transformação social no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.95, Mar 2013.

No primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), o cientista político e jornalista André Singer ocupou a função de porta-voz da presidência da República. No segundo mandato, de volta ao mundo acadêmico, colocou-se na posição de intérprete do “lulismo”, buscando entender algo que, para ele, é mais do que a simples adesão a um líder carismático: é um projeto político complexo, baseado no apoio da massa de excluídos e voltado para a superação da miséria sem o enfrentamento dos privilégios. Apresentado em artigos que causaram razoável polêmica, o argumento está agora consolidado no livro Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador, que reúne os três textos antes publicados e acrescenta a eles uma introdução e um capítulo inéditos. Como posfácio, o autor inclui uma versão modificada do memorial que apresentou ao concurso para livre-docência na Universidade de São Paulo, mas que – à parte desvelar sua relação afetiva com o ideário original do Partido dos Trabalhadores – pouco soma ao livro.

Essa vinculação, no entanto, não é irrelevante. No início do livro, Singer faz o elogio ritual da “objetividade científica”, garantindo que o trabalho não é contaminado por suas preferências e afetos políticos. Evidentemente, não é assim – e não há nenhum demérito nisso. Os sentidos do lulismo tem a ambição de mostrar que, no PT de hoje, que abraça Paulo Maluf e se entrega gostosamente às práticas da política tradicional brasileira, ainda sobrevive o compromisso popular e mesmo socialista dos primeiros anos. Não se trata de negar as mudanças sofridas pelo partido, nem o caráter conservador delas, mas de enquadrá-las numa narrativa em que aquilo que, à primeira vista, parecia ser oportunismo ou capitulação se torna peça de um projeto, muito moderado, é verdade, mas orientado decididamente na direção da mudança do país.

A tese principal do livro é que o “reformismo fraco” do lulismo não é o abandono, muito menos a traição, e sim a “diluição” do “reformismo forte” do petismo de antes. O reformismo diluído lulista evita a todo custo o confronto com a burguesia, optando por políticas que, na aparência, não afetam quaisquer interesses estabelecidos. Tal opção não se deve, ou não se deve principalmente, ao jeito matreiro e ao pendor acomodatício do ex-presidente, como a imprensa gosta de afirmar. É fruto, por um lado, da chantagem que os proprietários fizeram nas campanhas presidenciais do pt, desde a ameaça aberta de desinvestimento em 1989 até a elevação exagerada do câmbio em 2002. Lula aprendeu que não deve mexer com o capital. Por outro lado, a diluição do reformismo reflete a compreensão de que o maior contingente do eleitorado brasileiro – o “subproletariado”, segundo o conceito que o livro busca na obra de Paul Singer – deseja um Estado ativo no combate à pobreza, mas que não ponha em risco a manutenção da “ordem”.

O subproletariado reúne aqueles que não conseguem vender sua força de trabalho pelo valor necessário para sua própria reprodução e que formariam cerca de metade da população economicamente ativa do Brasil. Singer discute, com algum cuidado, a opção pelo conceito, em vez de falar em “excluídos” ou mesmo na “ralé” dos livros de Jessé Souza. É o gancho para sua defesa de uma análise das disputas políticas focada nas classes sociais, que parte da observação – correta – de que, ao deixar esse eixo de lado, a ciência política se torna insensível a elementos centrais do conflito de interesses na sociedade. A ambição é mostrar que as decisões eleitorais acompanham as clivagens de classes. No entanto, o argumento é enfraquecido pelo fato de que, em boa parte da análise, voto classista é tratado como equivalente de voto econômico.

O ponto é intrincado porque, na percepção de Singer, o subproletariado tem como único projeto deixar de existir, isto é, transformar-se em proletariado. Ele deseja ser incorporado ao mercado formal de trabalho, receber salários que garantam um padrão mínimo de consumo e gozar das garantias que o Estado concede a esses trabalhadores. O livro observa, com razão, que a “nova classe média”, tão badalada, é na verdade formada por neoproletários, sejam eles operários tradicionais da indústria ou empregados dos escalões inferiores do crescente setor de serviços. São setores intermediários, sim, porque abaixo deles permanece o subproletariado, mas estão longe de possuir as características associadas às classes médias propriamente ditas.

No meio disso tudo, as classes, protagonistas da narrativa do livro, não se caracterizam por quaisquer antagonismos – que é o que permite a mágica do lulismo, de dar aos pobres sem tirar dos ricos. Como se fosse o avesso da percepção de E. P. Thompson, de que as classes sociais se formam como efeito das lutas que ocorrem no interior da sociedade, aqui a classe surge pela identificação que algum outro agente político faz dos desejos e necessidades de um aglomerado de pessoas. Essa visão explica porque Singer problematiza tão pouco o apego à “ordem” por parte do subproletariado. A ojeriza à desordem, que significa na verdade qualquer política de enfrentamento do capital, explica por que o subproletariado foi historicamente a base eleitoral da direita, por que ele se converteu ao lulismo ao longo do primeiro mandato de Lula e por que tentativas de mobilizá-lo de outra forma, como a buscada pelo MST, não obtiveram êxito mais do que parcial. Mas permanece, ela mesma, inexplicada.

Seja como for, foi a sensibilidade de Lula para o programa dessa camada (um Estado atuando em favor dos mais pobres, sem confrontar a ordem) que permitiu o realinhamento eleitoral de 2006, quando o presidente trocou parte do eleitorado petista tradicional, baseado nas classes médias urbanas mais escolarizadas, pela massa de subproletários. A tese do realinhamento é polêmica, como Singer mesmo indica no livro, mas os dados são eloquentes quando mostram a mudança na base eleitoral dos candidatos presidenciais do PT em 2006 e 2010, em comparação com as disputas anteriores.

A necessidade de manter a ação governamental dentro dos limites da “ordem” tem consequências quanto ao ajuste do foco das políticas. Singer observa, com razão, que o reformismo fraco tem como meta a superação da pobreza, ao passo que o reformismo forte buscava a superação da desigualdade – e que as duas coisas não confluem necessariamente. É essa observação que permite colocar em sUSPeita a tese, central ao livro, da continuidade do programa petista, apesar da diluição de seu componente reformista. A diluição implicou a substituição do horizonte almejado, que deixa de ser um país sem desigualdade para ser um país sem pobreza, como diz o slogan do governo Dilma Rousseff.

Muito mais do que a convivência e o amálgama entre as duas “almas” do pt, como diz Singer, a socialista aguerrida dos primórdios e a moderada de agora, é possível ver a consolidação de uma hegemonia interna, com a marginalização dos setores mais principistas do partido – por mais que, como aponta o livro, muitas de suas teses permaneçam brilhando nas resoluções dos congressos petistas. É uma mudança que se refere ao abandono do projeto não só de transformação socialista das relações de produção, mas também de renovação das práticas políticas, com o aprofundamento da democracia e a revalorização da experiência popular. Quanto a esse quesito, o autor evoca a realização das conferências nacionais de políticas públicas, embora se veja constrangido a reconhecer que seus resultados práticos são “discutíveis”1. Mas é indiscutível a adesão do PT ao “toma lá, dá cá” que caracteriza o jogo político brasileiro.

O questionamento da tese da continuidade entre o petismo inicial e o lulismo não significa que a obra de Singer não faça uma análise competente da gestão do Estado brasileiro desde 2002. A redução da miséria e da pobreza, fruto de uma ação política que a priorizou, por meio de medidas como Bolsa Família, aumentos reais do salário mínimo e ampliação do crédito consignado, além de programas que evitaram ativamente o desaquecimento da economia, como o Minha Casa, Minha Vida, é um fato de enorme relevância política e social, valioso por si só. Mas Os sentidos do lulismo não avança na investigação sobre o impacto da diminuição da pobreza nos padrões de distribuição da riqueza.

De fato, os dados têm mostrado uma redução significativa da desigualdade de renda no Brasil desde o início do governo Lula. Mas os números dizem respeito apenas aos rendimentos do trabalho; dito de outra forma, as disparidades salariais estão diminuindo, sobretudo pela redução do contingente dos que são severamente sub-remunerados – o que já é uma vitória em si, já que a discrepância entre maiores e menores salários, no Brasil, sempre foi obscena. Para críticos das administrações petistas, entre os quais Francisco de Oliveira, o dado esconde o fato de que, ao mesmo tempo, a parcela abocanhada pelo capital, na riqueza nacional, estaria crescendo. Ou seja, os mais pobres seriam beneficiados por políticas compensatórias, ao mesmo tempo que a burguesia auferiria lucros recordes. Singer cita brevemente dados que contradizem essa interpretação e mostram que, na verdade, a participação do trabalho na renda nacional estaria aumentando. Em nota de rodapé, admite que os dados são controversos e que é possível que esteja ocorrendo o contrário. Uma interpretação razoável, baseada nas contas nacionais, parece ficar no meio termo: a repartição da renda entre capital e trabalho tem ficado estável desde o início do século XXI, com o rendimento do capital correspondendo a cerca de três quintos do total.

Se é mesmo assim, os limites da política lulista são bem mais claros do que a narrativa de Singer acaba por indicar. Fato que ecoa uma das ausências importantes do livro, que é a plataforma política do capital. O subproletariado é, evidentemente, personagem importante, tendo encontrado quem realize por ele seu programa. O proletariado seria beneficiado objetivamente com a redução do exército industrial de reserva, o que lhe colocaria em condições mais vantajosas nas disputas salariais. E as classes médias aparecem como as antagonistas, perdendo tanto o sentimento subjetivo de distinção social, que a distância em relação aos mais pobres concedia, quanto as vantagens objetivas advindas do acesso a uma multidão de pessoas dispostas ao subemprego, uma realidade apreendida pela infeliz boutade do ex-ministro Delfim Netto sobre a empregada doméstica como “animal em extinção”. Pouco se fala, porém, de como os interesses da burguesia se expressam. Seguramente porque, no jogo político brasileiro de hoje, que o lulismo não questiona, os interesses do capital são intocáveis.

As vantagens do operariado sob o lulismo também merecem uma atenção maior. André Singer concentra toda a interpretação no efeito que a redução do subemprego tem na correlação de forças dos embates por melhores salários e condições de trabalho. Cita, como sustentação, a elevada proporção de greves que têm obtido reajustes reais para suas categorias profissionais. Mas não leva em conta o fato de que o perfil das categorias paradas mudou, com uma concentração no setor público, bem como o alcance de suas reivindicações. Embora a mudança do perfil da economia brasileira seja apontada, com o peso crescente das commodities e decrescente da produção industrial, o reflexo desse fato na ação política da classe operária não é discutido.

Ao tratar dos governos anteriores, é lembrado o esforço de Fernando Henrique Cardoso para quebrar a espinha do sindicalismo, com sua atuação na greve dos petroleiros de 1995, que seguiu a melhor cartilha thatcherista. Mas o PT também trabalhou na direção do esvaziamento do movimento sindical – e dos movimentos sociais em geral – com políticas de cooptação de suas lideranças, engessamento de suas agendas e sufocamento de suas demandas. Conforme o célebre conselho de François Andrieux a Napoleão, “on ne s’appuie que sur ce qui résiste“: só nos apoiamos sobre o que resiste. Ao dobrar a resistência dos movimentos sociais no Brasil, o PT enfraqueceu sua própria base de apoio. Sua atual incapacidade de mobilização ficou patente no recente julgamento do chamado “mensalão”. Mas não se trata de um efeito colateral ou inesperado. O enfraquecimento dos movimentos sociais que alimentaram a experiência do PT em sua fase heroica representou a garantia dada ao capital de que a inflexão moderada, pragmática ou conservadora, expressa em documentos como a “Carta aos brasileiros” da campanha de Lula em 2002, não seria letra morta. Minando a possibilidade de ação efetiva dos setores que sustentariam um projeto de transformação mais radical, garantiu-se a credibilidade das promessas feitas de manutenção das linhas gerais do modelo de acumulação vigente. Por isso, a afirmação de que o lulismo é vantajoso para a classe operária precisa ser matizada com outros elementos.

Da mesma forma, o entendimento de que os programas de inclusão social do período lulista se tornaram um componente inarredável do consenso político no Brasil parece ter muito de wishful thinking. É verdade que o lulismo avançou sobre as bases eleitorais tradicionais dos partidos de direita e os obriga a uma reorganização do próprio discurso. Nem por isso é preciso aceitar ao pé da letra as afirmações – anódinas e inconvincentes – dos candidatos do psdb, de que vão ampliar os benefícios do Programa Bolsa Família. A verdade efetiva por trás delas só será verificada quando retornarem ao poder. É mais significativa sua guinada para um discurso moralista, que, quando voltado para as classes médias urbanas, ganha um matiz udenista e foco na probidade administrativa, e, quando voltado para os mais pobres, assume a forma do fundamentalismo cristão, voltando-se contra os direitos das mulheres e dos homossexuais. As campanhas de José Serra em 2010 e 2012 são exemplos eloquentes.

A mobilização eleitoral desse tipo de discurso ainda não rendeu os frutos esperados e restam dúvidas sobre o êxito da “americanização” da disputa política no Brasil. Mas é um elemento importante para entender os processos em curso, na redefinição das posições dos principais partidos. Da forma que Singer coloca, o lulismo também teria promovido uma elevação do patamar do consenso político, incluindo o compromisso com a superação da pobreza, o que de alguma maneira até poderia compensar a perda da promessa de uma nova forma de fazer política, que o PT representava. Levando em conta a guinada reacionária no discurso do psdb, os termos da equação se alteram. E nada disso é incompatível com uma proposta de fazer a análise dando centralidade à clivagem de classes: a disputa ideológica faz parte da luta de classes, que não se resume ao aspecto econômico.

Ao final do livro, o leitor não fica inteiramente convencido de que o lulismo é um projeto, realmente, e não a expressão apenas de sensibilidade política e senso de oportunidade. A noção de cesarismo ou bonapartismo, que Singer mobiliza mais de uma vez ao longo da obra, encontra dificuldades para se adaptar a uma democracia eleitoral moderna, mas apresenta vias de interpretação interessantes, sobretudo se lembramos que são soluções conservadoras para impasses na reprodução da dominação.

Escrito com clareza – e justamente por isso se abrindo de maneira franca ao debate -, Os sentidos do lulismo é uma contribuição valiosa para o entendimento da política atual no Brasil. Trata-se de um processo complexo, eivado de ambiguidades e ainda em curso. André Singer ajuda a pensá-lo para além das oposições esquemáticas e dicotomias grosseiras que se apresentam em muitas das análises mais correntes. Entre ganhos sociais que não podem ser negados e o abandono, também inegável, de ideais mais exigentes de sociedade, permanece em aberto o saldo do experimento lulista.

Nota

1 SINGER, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 122.         [ Links ]

Luis Felipe Miguel – Professor titular de ciência política na Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).

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Patópolis – COELHO (NE-C)

COELHO, Marcelo. Patópolis. São Paulo: Iluminuras, 2010. Resenha de: FIGUEIREDO, Priscila. A duras pens caráter e Mitologia em “Patópolis”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.91, Mar, 2013.

A bidimensionalidade de Patópolis, de Marcelo Coelho, sua falta de profundidade e subjetividade é um dos aspectos que poderiam identificá-la como obra pós-moderna. Mas talvez esse aspecto se deva antes à cidade fictícia dos gibis de Walt Disney que fornece o nome e o tema mais manifesto do livro:

Em Patópolis só se vive em duas dimensões; a profundidade não existe, e cada esmagamento, menos que a morte, é indicação daquilo que cada bicho desenhado – coiote, mosca, pato, cachorro – no fundo sempre foi, e será. Mas não há fundo1.

Em princípio o leitor nada com dificuldade na piscina rasa da superfície pop da obra, descobrindo no entanto que debaixo dela há outra, e ainda outra, e assim por diante. Trata-se antes de uma profundidade de superfícies, não reduzida à intertextualidade, à qual o autor no entanto presta sua homenagem. Essa sobreposição de planos bem pode ser uma sobreposição de rostos, cada um dos rostos-superfície que uma pessoa teve destruídos por sucessivas decepções: “O menino que se olha no espelho sabe perfeitamente disso”, afirma-se em certa altura2. Ele pode compreender a conclusão a que chega Foucault na página final de As palavras e as coisas, referida no livro e conforme a qual o homem seria uma invenção com data recente. Também é nova no tempo a criança, passado de quem narra, recordada, como em outros momentos, tão sem ênfase que quase não reparamos que se trata de nota autobiográfica (ou pseudoautobiográfica).

Esse garoto é uma invenção recente, fresca, porque ainda não é adulto, e vir a sê-lo depende muito menos de uma maturação organicamente motivada – na verdade ela não existe – que da envergadura de uma máscara, ou sequência de máscaras, quase tão míticas e iniciatórias quanto as das sociedades ditas primitivas: a do homem-morcego Batman, às voltas com a Mulher-Gato, a do homem-aranha etc. “Para humanizar-se, o menino segue todas as transições da escala evolutiva: de aranha a morcego, daí a super-homem, eis o minúsculo Zaratustra entoando seus acordes de ‘2001’”3. A saída da infância, “desse mal-entendido, dessa desproporção entre cabeça e corpo”4, é arbitrária e lembra um pouco a passagem de Macunaíma criança para Macunaíma adulto, no qual é jogado um caldo mágico de mandioca – mas porque ele desviasse a cabeça, ficou para sempre, diz-nos Mário de Andrade, com uma “carinha enjoativa de piá”, isto é, de criança, sobre o corpo desenvolvido abruptamente. O “herói de nossa gente” nunca deixará de ser um tanto infantil, como Pato Donald jamais tirará do corpo a roupa de marinheiro, que usa desde a infância. Talvez seja por isso, por uma vaga familiaridade com algo que nos concerne (familiaridade nova para o leitor), que, entre as recordações infantis, tenha se fixado mais a imagem do destrambelhado e bocejante pato, pouco afeito ao trabalho, que a do industrioso Mickey.

Mas o menino é também uma invenção recente porque os estilhaços de seu rosto, desfeito por algum choque, uma “noite atônita e destruída”, alguma desilusão ou indiferença cortante, o recompõem de novo, “como num desenho animado”. Pois, sabemos, num desenho animado os personagens podem se partir em mil pedacinhos e depois se reconstituir como se nada tivesse acontecido, sobrevoados pelos “alegres passarinhos da catástrofe”5 – alegres talvez porque, nascidos do choque, não têm memória ou ainda porque o show, ou o bate-estaca, não pode parar. Também Macunaíma morre algumas vezes e, numa delas, vira milhares de torresminhos. Depois é ressoldado e reanimado com guaraná, e tudo continua como antes. Nas histórias de Disney essa destruição seguida de imediata ressurreição, sem marca visível na rotina que lhe segue, é também frequente e delas se nutre esse livro de memórias hipermediadas. Num outro passo comenta-se a explosão de dinamite de que os personagens às vezes são vítimas: “depois de aceso o isqueiro-bomba o rosto do animal ficará negro por segundos; mas, na esportividade incansável desse mundo, a pele, ou melhor, o pelo logo renasce incólume”6. Ou ainda:

A recusa amorosa – não por acaso chamada “tábua” – surpreendeu-me várias vezes igual a mim mesmo, repassando no espelho o fracasso da véspera, sem notar no rosto a pressão do rolo compressor, a humilhação de dinamite pronunciada calmamente pela mulher amada, na indiferença, na inocência também, de uma pessoa que simplesmente obedecesse ao aviso invisível – “xute-me” – que tantas vezes portamos sem saber7.

Não fossem o rolo compressor, a dinamite, o “xute-me”, com a grafia insólita que o narrador vira reproduzido no bolso traseiro de algum personagem, ou pelo fato de que todo o comentário fora inspirado pela lembrança do pato tentando abater uma mosca, elementos todos que não nos deixam esquecer o universo do vulgar gibi, não fosse por isso sentiríamos melhor a cadência e a motivação proustiana do trecho citado. Decerto alguma modificação se produz em quem recebe a notícia de um infortúnio, ou em quem cujo amor não é correspondido e se sente fender, mas ela “produziu-se por dentro, não por fora”. A insistência com que se volta a essa devastação sem consequências aparentes, como se a superfície em que ela ocorreu ou refletiu não conseguisse ou estivesse impedida de reproduzir em toda sua dimensão o estrago que causou, chama a atenção para o que permaneceu inexpresso, como uma tosse para dentro. Ou para o fato de que o homem é uma invenção recente também em sua própria vida, a qual é a soma das muitas mortes que teve e por certo terá. Mas o autor precisa temperar essa reflexão, a qual poderia ter saído de Em busca do tempo perdido, com “a esportividade incansável desse mundo”, ou um “cada novo dia é um novo quadrinho”. Porque se o romance de Proust já realçava o aspecto fantasioso, mitológico, da individuação, a campanha de psicólogos atuais pelo desenvolvimento, no indivíduo, do que chamam de resiliência, que na Física indica a “propriedade que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica”8, atesta o quanto aquela fantasia, que incluía a de liberdade, simplesmente não é mais projetada.

O mito atual é o da personalidade invulnerável, pois, como recomenda um psiquiatra famoso, solicitado por empresas e com MBA em gestão de negócios: “Algumas pessoas já nascem com essa capacidade, recebem um choque e voltam mais rapidamente ao normal. As outras, porém, precisam de treino”9. Treino militar, diríamos, cujas técnicas as corporações empresariais não se intimidam mais de alardear. Só esse tipo de treino, qualquer que seja o nome que receba, tem a ambição de que um rosto e um corpo não manifestem o ricto de uma afronta ou violência, da vida ou da autoridade. A extrema dureza alcançada é, porém, a extrema doçura de um exército a postos. A palavra resiliência, que lembra lataria de carro, passa perto de resistência, mas esta ainda evocaria um material demasiado humano. Fala-se em taxa de resiliência: no atual estágio do capitalismo o que de melhor se pode desejar da pessoa é que ela seja um empregado ideal, aquele que, esmagado por um rolo compressor, ou estilhaçado por sucessivos choques, pode, no menor tempo possível, voltar à antiga forma. Essa pessoa resiliente (que, como o indivíduo autônomo, também é uma fantasia, mas provavelmente com menos potencial formativo) parece de fato mais próxima dos desenhos animados.

Parece ser ainda de Proust que o autor retira a disposição de ver “o mundo em estado de semelhança” (W. Benjamin), entretecido por correspondências, analogias. Com a diferença, que muda tudo, de que esse mundo é o da indústria cultural, aqui convertida em primeira natureza. E em presente ininterrupto, razão por que o tom pode imitar, entre outros, o da locução esportiva, com o que ganha agilidade, ou o de um relato etnológico – com os patopolenses surpreendidos em seus hábitos peculiares e na sua organização social e política, apesar da ressalva de que seu Estado parece existir antes na forma de agentes de polícia10. Voltando às correspondências: a abertura de cada capítulo apresenta uma breve notícia do que se seguirá, composta por uma pequena lista de nomes. Estes são como coágulos no fluxo das associações do narrador. Assim, por exemplo, o capítulo 7 abre com a seguinte enumeração, aparentemente caótica: “Presuntos. O cisne de Tuonela. Onomatopeias. Congestionamentos. O Diário de Bedrock. Nádia Comaneci”11. Como ele vai de presuntos, os avós dos Três Porquinhos, a Nádia Comaneci, passando por Reader’s Digest, Patinho Feio, uma cartilha anticomunista, Richard Strauss, Madame Min, não apenas indica, quase parodiando, o ecletismo pós-moderno, que trafega desenvolto entre dimensões diferentes da cultura (erudita, popular, popularesca), desierarquizando-as, como também mostra o quanto tal desierarquização é efeito do sujeito, daquele que se dispõe a ver semelhanças entre as coisas (ou o mundo como “floresta de signos”, como se diz em certa altura, em alusão ao poema famoso de Baudelaire12). As conjunções e intercalações comparativas são o padrão do livro e por elas subitamente deslizamos de uma ordem a outra. Mas a floresta nesse caso é muito mais a floresta do espetáculo e pode acontecer de, perdendo-se nela, o sujeito deparar até mesmo com imagens da sua vida na copa de uma árvore. Penso que é por aqui que se tem acesso ao realismo do livro. Submetendo Patópolis, Pato Donald e toda a parafernália visual de distração infantil a uma hermenêutica rigorosa, mas muito imaginativa, o memorialista-ensaísta fala de si mesmo, mas esse “si mesmo”, assim redescoberto, surge um tanto desbastado, um tanto raso, ou arrasado, como as imagens da cultura de massa pelas quais se filtra. No entanto é como se ele nos dissesse (aprisionando-nos um pouco): “Tudo isso sou eu, assim é que me fiz homem, com todo tipo de material que achei disponível, pois esse era meu mundo”. É o nosso também.

“O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural”, escreveram Adorno e Horkheimer nos anos 194013, acrescentando que, quanto mais esta se esmera em duplicar a realidade, como no cinema, mais parece fácil se iludir de que o mundo exterior prolonga o mundo da imagem, estando a serviço desta, e não o contrário. É algo covarde citar tais autores ou outros, como Debord, que continuariam a análise desse fenômeno novo na cultura e das novas formas que veio a tomar com o avanço do capitalismo tardio. Covardia porque é evidente que o livro em questão (o livro, e não apenas o autor) é bastante consciente dessas análises críticas, como também das teorias pós-estruturalistas. Poderíamos perguntar se essa consciência não sobredetermina em demasia a disposição e seleção da matéria, fazendo o conceito se impor às imagens. Mas quais imagens? Não são as da Natureza, totalmente fora do horizonte aqui, e muito pouco as da vida social, que, quando surgem, é porque foram devolvidas pela mitologia da cultura comercial. Assim, uma imagem do adolescente, já homenzinho forçado, inteirando-se dos negócios do pai e chegando do escritório, é traduzida pela forma equivalente de Fred Flintstone chegando em casa,

o jornal de pedra na mão esquerda, a mão direita usando para afagar o animal doméstico que pretende me derrubar com as patas de lagarto afetivo, gritando festivamente o nome de Wilma enquanto o apetite de leão mal se contém diante da fumaça das panelas, que com dedos de fada me puxam pelo nariz, me enleiam com danças de Salomé, até o T-Bone brontossauro14.

Essa equivalência foi feita a posteriori, no processo de autocompreensão biográfica do presente, ou se dera já no passado? Provavelmente esta última hipótese: imitando um pouco os trejeitos de Flintstone, o menino-homem se virava melhor com os apuros da individuação. Espontaneamente ele se valeu do que Debord chamou “humanismo da mercadoria [que] se encarrega dos ‘lazeres e da humanidade do trabalhador'”15 – e da formação das crianças também.

De maneira análoga, quando se refere ao modo como aprendeu o conto do Patinho Feio, o narrador não se lembra de rapsodo, ama, tia, avó ou livro. Ou ainda apenas da história, sem carne, soprada como brisa ao ouvido infantil. A contingência do suporte de plástico azul e reprodução magnética paira no espírito tanto quanto seu conteúdo arquetípico:

[…] O disquinho que contava a história – um compacto de plástico transparente azul – terminava com um grande coral de júbilo no galinheiro: a mãe desnaturada (ou seria desnaturado o próprio filho putativo?) prosternava-se diante do rapaz a quem rejeitara quando bebê; o peru, oportunista e bajulador, espécie de Polônio frente ao pequeno Hamlet palmípede, sente-se honrado com a visita de um “cisne rial” (o sotaque do locutor era português), e o bom patinho não guarda rancores de sua expulsão, não traz mágoas do seu exílio. A voz ainda impúbere do herói pronuncia palavras de perdão: “O que passou, passou!”

Difícil obedecer neste caso, diga-se entre parênteses, a regra que proíbe separar com vírgula o sujeito do predicado. Eis um caso, o do patinho feio, em que precisamente o sujeito se separou do predicado: o que passou, passou16.

Embora a especificação “entre parênteses” venha no fim, introduzindo um comentário aparentemente de outra ordem, o trecho todo já compõe uma longa intercalação dentro da especulação mais manifesta do livro. A imagem do disco, mas também o acento do locutor português se contrabandeiam para a imagem do conto de Andersen, que, puxado pela memória do adulto, agora é em parte revisto à luz de outra espécie de personagens, vindos da alta literatura. A proximidade os deixa não apenas mais encorpados como cômicos pela equivalência inesperada (o pato é um Hamlet palmípede, o peru é um oportunista Polônio), e a aliteração em P advoga ainda mais pela aproximação ora descoberta entre o mundo de animais bicudos, de andar reboleante e plebeu, e o de aristocratas mais longilíneos de uma tragédia clássica.

A observação sobre a regra conforme a qual seria preciso dispensar a vírgula entre sujeito e predicado mesmo num caso em que o primeiro fosse uma oração (o que passou = sujeito, passou = predicado) já diz respeito à fixação escrita e posterior dos diálogos da historinha que lhe fora transmitida oralmente, mas é apenas em aparência uma observação metalinguística. De fato, contrariando a regra, o narrador não dispensa a vírgula. Esta tem função aqui menos de pausa irresistível ou quebra infratora de uma articulação lógico-sintática essencial (sujeito-predicado) do que de baliza, ou tabuleta fincada no meio da frase, avisando que depois de “o que passou” a paisagem é outra, muito diferente, ou ainda que o tempo é outro. O que nos é dito é que, considerando-se o contexto da fábula, o sujeito está tão separado do predicado como o passado fora superado pelo presente, ou o filhote feio e desajeitado pelo cisne “rial”. Após tais cogitações, essa vírgula, emissária de uma nova época (e épica), revela tanto mais sua natureza hieroglífica quanto menos ela de fato separa conteúdos opostos. Pois “O que passou passou” diz tão somente respeito ao tempo passado, afirmado com ênfase. Mas é como se o narrador afetasse um estranhamento ou desentendimento do conteúdo da sentença, que passa a importar mais pelo seu aspecto gráfico e construtivo, de dois membros:

– – – – , ——-

Entre o passou do primeiro e o do segundo haveria mais diferença que identidade. Um é interpretado como “antes”, outro como “depois”. Entre as simétricas partes, contraditórias no entanto como duas faces de Jano, a alegórica – e não mais sintática – vírgula, sacerdote que preside o ritual de passagem, ou metamorfose radical. A vírgula separaria, como um verdadeiro marco histórico, o passado de opressão mítica de um presente aberto de possibilidades.

Por coerência mimética, digamos, o fato é que a narrativa do Patinho Feio tem lugar subordinado no livro, assim como, em determinadas configurações, na mitologia grega ou no romance balzaquiano, por exemplo, há certos personagens, potências ou divindades que sabemos representar etapas evolutivas anteriores ou esboço de uma perspectiva que não pôde ir adiante. Esse modo de produção mitológico, ou ainda figural, projetado por Marcelo Coelho no conjunto de imagens e significantes da indústria cultural, sobretudo a de determinado período, fim dos anos 1960 e década de 1970, coincidente no Brasil com a ditadura militar e a formação da Rede Globo, por sua vez tão ambiciosa em forjar totalidade e identidade como o são as mitologias e as ditaduras, é uma das coisas, aliás, mais interessantes e inventivas em Patópolis. Por ela passamos a compreender, por exemplo, os sujos e malvados Irmãos Metralha, cachorrões escuros, cuja faina se resume a roubar a fortuna de Patinhas, como figura, antecipação, ainda que rude e pouco concisa (também “seu nome é legião”), da enxuta e única Maga Patológica17. Às vezes ambos podem aparecer na mesma história, mas o fato é que a última já é representação mais refinada da mesma compulsão que move os Metralhas. Mas não é só isso: a bruxa de cabelo Chanel é também mais sofisticada por não almejar se apropriar da fortuna líquida de Patinhas, que os bandidos broncos carregam em trabalhosos sacos. Ela quer a sintética moedinha mágica, o fundamento de toda a riqueza. O que o nosso comentador realça é a crescente abstração dessa riqueza – e dos bandidos também. Não é por acaso que se menciona em certa altura, como parte da conjuntura histórica de juventude, o fim do acordo de Bretton Woods, datado do início dos anos 1970 e com o qual se pôs fim à conversibilidade do dólar em ouro. Sabe-se o quanto a criação do “dólar flexível” favoreceu a carreira que o capital financeiro veio a ter nas últimas décadas, carreira desastrosa para o mundo, como se tornou evidente com as reformas neoliberais e a crise de 2008.

Esse plot de Metralhas, Maga e Patinhas pode sustentar projeções desse tipo? As histórias de Donald não seriam criação dos anos 1930, ainda que, conforme um mecanismo comum nessa indústria do seriado, continuem a ser lidas nas décadas seguintes, com os personagens eternamente fixados, sob pequenas variações de traço, costume e indumentária, no momento que os viu nascer? Por uma superposição curiosa, algo do parasitismo e do aventureirismo do capital rentista parece aludir mais de uma vez a aspectos da formação social e econômica brasileira. “O trabalho gasto na produção não existe em Donald”, já tinham observado há mais de quarenta anos Ariel Dorfman e Armand Mattelart, em Para ler o Pato Donald, ensaio cuja ênfase estava na sociedade de consumo e na indústria norte-americana do lazer18. Não é difícil sentir o quanto o tédio de Donald, pato branco em geral desocupado e consumista, evoca, pelo deliberado destaque dado a ele, glosado de muitas formas, o tédio de Brás Cubas e mesmo o de Macunaíma, figuras-chave de nossa autocompreensão intelectual (leia-se Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz). Por seu turno, o nome “Patópolis” é homenagem à classe dos brancos emplumados e quase sempre improdutivos, e não à dos cachorros pretos e mais visivelmente às voltas com a luta pela sobrevivência, ainda que na forma do banditismo19. Eles moram nas franjas dessa cidade organizada e asfixiosamente ensolarada (a frase “Faz calor em Patópolis” é um marca-passo do livro), que é como um plano-piloto erguido sobre o nada, sobre a não-História. Como os personagens mencionados da literatura brasileira, também Donald, adulto mimado e ranheta, que deixa perplexos os sobrinhos ainda crianças que o cercam, leva uma existência sem projeto, e sua agitação frequentemente dá em nada. Suas peripécias inevitavelmente o recolocam no lugar de sempre, como se ele nunca o tivesse deixado.

A respeito da fábula do Patinho Feio, arrematada com a transformação do filhote desengonçado em cisne real, o narrador observa, porém, que tal mudança de estado ocorre “só nos contos de fadas. Pois nada passa. Nada se passa, e por isso mesmo Donald não larga as páginas tediosas de seu livro inesquecível, o livro, afinal, de sua vida: Contos Chatos. Não há mágicas nem princesas ali”20. O Patinho Feio é a narrativa da transformação imprevista e redentora, que acena com a promessa de beleza e integração social a cada adolescente desconjuntado. Mas o “herói” do livro é de fato Pato Donald e seu mundo desencantado e chato, embora muito encantado em outro aspecto, com dinheiro correndo, às vezes do céu, e artefatos que dão em árvore. Um pouco como em Macunaíma, para voltar à comparação já feita. Desse mundo achatado, bidimensional, sedimenta-se a imagem de Donald confortavelmente instalado em sua poltrona ergonômica (alusão à poltrona de Hans Castorp e a todos os prazeres mortíferos da Montanha mágica, reservados aos que desafiam a experiência burguesa do tempo?), lendo um livro cuja capa naturalmente está virada para nós e em que lemos Contos chatos21. Essa é, digamos, a imagem que propriamente “desencadeia” a obra, seu motivo inicial e na verdade condutor, cujo enigma causara impressão à mente infantil e o adulto agora se impõe a tarefa de decifrar – como pode Donald ler um livro assim intitulado? Esse título está escrito para nós e consiste numa graça do desenhista, um momento de tédio dele mesmo e profundo distanciamento em relação ao seu trabalho? Ou o próprio livro se assume como conto chato, em todas as acepções desse qualificativo? O que apenas sabemos, como foi dito, é que ele não é o conto da transformação radical.

Notas

1 COELHO, Marcelo. Patópolis. São Paulo, Iluminuras, 2010, p. 33.         [ Links ] 2 Ibidem, p. 106.
3 Ibidem, p. 107.
4 Ibidem, p. 12.
5 Ibidem, p. 42.
6 Ibidem, p. 29.
7 Ibidem, p. 30.
8 Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.         [ Links ] 9 Roberto Shinyashiki, em entrevista para a Folha de São Paulo, 15/06/2003.         [ Links ] 10 Ibidem, p. 53.
11 Ibidem, p. 103.
12 Ibidem, p. 47.
13 ADORNO, T. W. e Horkheimer, M. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 104.         [ Links ] 14 COELHO, op. cit., p. 111.
15 DEBORD, G. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992, p. 41.         [ Links ] 16 COELHO, op. cit., pp. 113-4.
17 Ibidem, pp. 91-2.
18  Para ler o Pato Donald. Trad. Alvaro de Moya. São Paulo: Paz e Terra, 1977, p. 92.         [ Links ] [19] COELHO, op. cit., p. 40.
[20] Ibidem, p. 114.
[21] Ibidem, p. 12.

Priscila Figueiredo- Poeta e ensaísta. Publicou Mateus – poemas (Bem-te-vi, 2011), Navios negreiros (Edições SM, 2009) e Em busca do inespecífico (Nankin, 2001), sobre Mário de Andrade

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Hobbes e a liberdade Republicana – SKINNER (NE-C)

SKINNER, Quentin. Hobbes e a liberdade Republicana. Trad. Modesto Florenzano. São Paulo: Editora da Unesp, 2010. Resenha de: SILVA, Ricardo. Skinner e a liberdade Hobbesiana. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.95, Mar., 2013.

A mais recente incursão de Skinner no pensamento político de Hobbes é algo mais do que uma elegante contribuição à reconstituição histórica da concepção de liberdade do filósofo inglês. Trata-se também de um “lance” (move) – para usar uma expressão cara ao próprio Skinner – nos embates atuais entre teóricos liberais e republicanos. Crítico da hegemonia do pensamento liberal na política contemporânea, Skinner oferece um suporte historiográfico importante às pretensões normativas do neorrepublicanismo. Sua genealogia do conceito de liberdade é o melhor exemplo desse tipo de suporte, e Hobbes e a liberdade republicana ocupa um lugar de destaque nessa genealogia. Focalizando a turbulenta década inglesa de 1640, o livro documenta os momentos em que Hobbes elabora uma alternativa de grande consistência teórica à então convencional concepção republicana de liberdade, desenvolvendo uma concepção negativa de liberdade que será mais tarde apropriada pela tradição liberal. Hobbes e a liberdade republicana é produto do encontro entre a historiografia do pensamento político e o debate analítico e normativo na teoria política contemporânea.

A LIBERDADE NEORROMANA

O ponto de partida para a compreensão da narrativa de Skinner sobre a evolução do conceito hobbesiano de liberdade é a apresentação das características básicas da concepção republicana que Hobbes teria combatido e derrotado. Skinner remonta à legislação compilada no Digesto do direito romano para revelar as origens da concepção republicana de liberdade, que acabou inspirando os ataques à Coroa no período mais agudo dos conflitos na Inglaterra de meados do século XVII. Na seção relativa ao direito das pessoas (De statu hominum), já surge a “distinção primordial no seio das associações civis”, aquela entre os que “gozam do status de liberi hominus ou ‘homens livres’ e aqueles que vivem na servidão”1.

Conforme vem defendendo Skinner, em sintonia com o filósofo Philip Pettit, a concepção republicana (ou neorromana) de liberdade é irredutível a qualquer um dos polos da dicotomia entre liberdade negativa e liberdade positiva. Ou seja, ela não se define nem pela simples ausência de oposição externa às ações individuais, nem pela pura presença da participação dos cidadãos no autogoverno da cidade2. Embora a liberdade republicana seja também um tipo de liberdade negativa, uma vez que ela decorre da ausência, e não da presença de algo, o que se encontra ausente não é a indiscriminada interferência externa nas escolhas e ações dos indivíduos, como na concepção liberal, mas sim um tipo particular de interferência, resultado da dependência e da dominação derivadas da existência do “poder arbitrário” de determinados agentes sobre outros3. Na fórmula consagrada por Pettit, a liberdade republicana é a liberdade como não dominação4.

Uma das características centrais da relação de dominação é que ela permanece em vigor mesmo quando o agente dominante abstém-se de interferir efetivamente nas escolhas e ações do agente dominado. Tome-se o caso extremo e paradigmático da relação de dominação entre senhor e escravo. O fato de um escravo viver sob o domínio de um senhor benevolente não faz dele menos escravo, ou seja, não o torna mais livre. A ausência atual de impedimentos às suas escolhas e ações é apenas um corolário de um dos estados possíveis dos desejos de seu senhor, e ele, escravo, sabe disso. A consciência desse estado de sujeição pesa inevitavelmente sobre suas atitudes, que tendem a antecipar a vontade do senhor. O ponto decisivo é que não se pode considerar livre um agente cujas escolhas e atitudes realizam-se sob a influência da ansiedade decorrente da sua consciente dependência da vontade de outrem. Segundo Skinner, este ensinamento, que se encontra no núcleo da concepção de liberdade reivindicada pelos teóricos atuais do republicanismo, era corrente na época de Hobbes:

Como James Harrington afirmaria, em 1656, na sua exposição clássica da teoria republicana, Oceana, a desgraça dos escravos é que eles não têm o controle de sua vida, estando consequentemente forçados a viver em um estado de incessante ansiedade com relação ao que lhes pode ou não acontecer5.

MÉTODO E HISTÓRIA

Ao narrar a “batalha” de Hobbes contra a teoria neorromana, Skinner faz duas asserções interdependentes, ambas inovadoras em relação aos estudos sobre a teoria hobbesiana da liberdade. A primeira é de caráter metodológico, a segunda, de caráter histórico. A inovação metodológica consiste em compreender o desenvolvimento das ideias de Hobbes sobre o conceito de liberdade como “lances” em uma disputa simultaneamente intelectual, política e constitucional. O propósito de tal metodologia é abordar “a teoria de Hobbes não simplesmente como um sistema geral de ideias, mas também como uma intervenção polêmica nos conflitos ideológicos de seu tempo”6. Skinner reafirma os princípios interpretativos do contextualismo linguístico da Escola de Cambridge. Conforme postulou originalmente há mais de quatro décadas, todo pensador político, por mais sistemático e abstrato que seja, no ato de criação de um texto, encontra-se irremediavelmente envolvido em um processo comunicativo com seus contemporâneos. Mais do que simplesmente constatar ou descrever certo estado de coisas, os textos dos escritores políticos são invariavelmente destinados a realizações práticas. Os autores cujos textos pretendemos interpretar estão sempre “fazendo coisas com palavras”7. A questão norteadora de qualquer interpretação de textos que se pretenda “genuinamente histórica” deveria assumir a seguinte forma: o que determinado autor “estava fazendo” ao escrever ou publicar seus textos8?

No caso de Hobbes, a resposta oferecida por Skinner é direta: Hobbes estava combatendo os defensores da concepção republicana de liberdade. Na verdade, o filósofo inglês “era o mais formidável inimigo da teoria republicana da liberdade”9. A crítica de Hobbes à liberdade republicana aparece já em seu primeiro esforço sistemático de teorização política, presente em Elementos da lei natural e política (1640), e uma nova tentativa acontece logo em seguida, com a publicação de Do Cidadão em 1642. No entanto, uma alternativa capaz de destronar a concepção neorromana de liberdade só seria definitivamente alcançada no Leviatã (1651).

A demonstração da ocorrência de mudanças significativas no pensamento de Hobbes sobre o conceito de liberdade nos leva à inovação histórico-substantiva de Skinner, que vai de encontro à visão quase consensual sobre a suposta imutabilidade do conceito nas sucessivas versões da teoria política hobbesiana. Para a ampla maioria dos intérpretes, nenhuma diferença marcante haveria no modo como a liberdade é apresentada nos Elementos da lei, em Do Cidadão e no Leviatã. Mesmo Philip Pettit, cuja reconstrução analítica da liberdade republicana é fortemente tributária de Skinner, acredita jamais ter ocorrido qualquer “alteração maior no pensamento de Hobbes sobre a liberdade”10. Skinner oferece uma vigorosa contraposição a tal consenso interpretativo, sugerindo que Hobbes não apenas modificou sua concepção de liberdade, mas que o fez de maneira particularmente radical. Assim, “a análise de Hobbes da liberdade no Leviatã representa não uma revisão, mas um repúdio ao que ele havia anteriormente argumentado”11.

A BATALHA DE HOBBES

Em Elementos da lei natural e política, Hobbes volta-se contra diversas correntes teóricas de algum modo comprometidas com a tese de que a liberdade dos súditos é uma espécie de função da forma de governo. Skinner refere-se a três dessas correntes de pensamento, em relação às quais Hobbes teria “manifestado consciência aguda”12. A primeira é a dos monarquistas moderados ou constitucionais, cujas manifestações iniciais remontam às primeiras décadas do século XVII. O núcleo normativo dessa corrente reside na ideia de que “não é necessariamente incompatível viver como homens livres e submetidos ao governo de reis”13. A publicação da tradução inglesa da República de Bodin forneceu argumentos úteis à corrente em questão. Bodin admitia a incompatibilidade entre liberdade e monarquia quando esta fosse do tipo “senhorial”, em que o príncipe é o “senhor dos bens e das pessoas de seus súditos”. Nesse caso, os súditos são governados como “o senhor de uma família governa seus escravos”. No entanto, se a monarquia em questão é do tipo legal (ou régia) os súditos permanecem livres, protegidos da vontade arbitrária do rei, pois “o monarca régio ou rei, instalado na soberania, sujeita a si mesmo às leis da natureza”14.

A segunda corrente do pensamento constitucional a chamar a atenção de Hobbes defendia um “Estado misto”, combinando os princípios monárquico, aristocrático e democrático. Apenas essa forma de Estado teria a virtude de conciliar a ordem política com a liberdade. Segundo Skinner, Hobbes dá inúmeras mostras de que está atento à existência dessa corrente de pensamento, mas não se detém com especial interesse em sua crítica. Uma das razões para isso é que ele estava muito mais preocupado com uma terceira corrente, representativa de um desenvolvimento ainda mais radical da ideia de que a liberdade está associada a uma forma particular de governo.

O núcleo normativo dessa terceira corrente reside na proposição de que só é possível viver como homem livre no âmbito de um “Estado livre”. Conforme esclarece Skinner, os defensores dessa perspectiva tinham em mente um Estado no qual

somente as leis imperam, e no qual todos dão seu consentimento ativo às leis que a todos obrigam. Em outras palavras, sustentava-se ser essencial viver em uma democracia ou em uma república que se autogoverna, em oposição a qualquer forma de regime monárquico ou mesmo misto15.

Nos Elementos da lei, Hobbes dirige ataques específicos a cada uma dessas correntes, mas empenha-se sobretudo em refutar o que há em comum entre elas: a ideia de que a liberdade é uma função de forma de governo. O ataque de Hobbes parte da premissa de que a liberdade está associada à condição natural dos indivíduos. Ou seja, só há liberdade no Estado de natureza, e no momento em que os indivíduos pactuam para a instituição do Soberano, eles abandonam sua liberdade natural para ingressar na condição de súditos. Hobbes chega a definir a liberdade como “o estado de quem não é súdito”16. Os indivíduos, na condição de súditos de um poder soberano, seriam tão destituídos de liberdade numa democracia como numa monarquia, não fazendo qualquer diferença se a monarquia é régia ou senhorial, como queria Bodin.

Embora a impressão dos Elementos da lei tenha ocorrido apenas em 1650, o manuscrito começou a circular já em 1640. Neste mesmo ano, intensificou-se a tensão entre o Parlamento e a Coroa resultante da tentativa de Carlos I de reabilitar o ship-money17. A criação de um imposto sem a aprovação do Parlamento fez com que muitos parlamentares se pronunciassem nos termos da teoria neorromana da liberdade. Os adversários das pretensões absolutistas do rei consideraram a iniciativa uma afronta à liberdade e um caminho certo para reduzi-los da condição de homens livres à de escravos. Por outro lado, partidários de Carlos I defendiam-no esgrimindo os recursos retóricos do absolutismo, mormente da teoria do direito divino dos reis. Roger Maynwaring, ex-capelão de Carlos I, era uma dessas vozes em favor do poder absoluto do rei, que deveria incluir o poder de criar impostos. Ele já havia sido submetido a processo de impeachment e aprisionado pelo Parlamento em 1629, mas acabou beneficiado pelo perdão do rei, que ainda o faria bispo de St. Davis em 1636. Em 1640 ele não teve a mesma sorte. As duas Câmaras voltaram-se contra o bispo, preparando um ato para a anulação do perdão real. Maynwaring preferiu não permanecer na Inglaterra para conferir o desfecho dos acontecimentos, e partiu em busca de esconderijo na Irlanda. É certo que o absolutismo de Maynwaring diferia filosoficamente daquele articulado por Hobbes, que dispensava a tradicional teoria do direito divino dos reis. Seja como for, como sugere Skinner, Hobbes percebeu que, para fins práticos, a posição defendida por Maynwaring poderia ser plenamente justificada pela teoria contida nos Elementos da lei. John Aubrey, em seu perfil de Hobbes, relata que este lhe teria confidenciado que “o bispo Maynwaring pregara sua doutrina, daí a razão, dentre outras, de ele estar aprisionado na Torre”18. Em novembro de 1640, prevendo possíveis situações de perigo a que ele próprio estaria exposto, Hobbes segue para seu exílio de onze anos em terras estrangeiras.

Assim que Hobbes instalou-se em Paris, passou imediatamente a revisar os Elementos da lei, ao mesmo tempo em que vertia a obra para o latim. O trabalho foi concluído em novembro de 1641 e publicado em abril de 1642, com o título latino De Cive (Do Cidadão). De acordo com Skinner, no que se refere ao tema da liberdade, a par de uma série de modificações menores, ao menos duas importantes inovações são introduzidas nessa obra.

A primeira decorre da nova postulação de Hobbes de que “a única coisa verdadeira no mundo é o movimento”19. A liberdade passa então a ser definida como a ausência de todo e qualquer impedimento ao movimento dos corpos. Não há dúvida de que uma compreensão adequada de tal definição requer que se esclareça o que de fato conta como impedimento ao movimento. Hobbes refere-se a duas modalidades de impedimentos capazes de subtrair-nos a liberdade: os impedimentos externos e os impedimentos arbitrários. Os impedimentos externos são aqueles causados por obstáculos surgidos de causas exteriores ao corpo em movimento. É possível afirmar, por exemplo, que as águas de um rio sofrem um impedimento absoluto para mover-se livremente além dos limites das margens do rio. Analogamente, no que se aplica à liberdade humana, diz-se, por exemplo, que uma pessoa encerrada numa prisão está privada da liberdade de mover-se além dos limites das grades da prisão. Já a noção de impedimento arbitrário indica que a causa que impede o movimento não é mais exterior ao corpo, porém interna a ele. Se os impedimentos externos criam obstáculos absolutos ao movimento dos corpos, os impedimentos arbitrários, conforme os define Hobbes, “não impedem absolutamente o movimento, mas o fazem per accidens, isto é, por nossa própria escolha”20. O fato de esse tipo de impedimento derivar de uma “escolha” indica que seu âmbito de aplicação é a liberdade humana. O impedimento arbitrário à liberdade surge quando uma pessoa se abstém de realizar determinada ação mesmo quando tem a capacidade e o desejo de agir. Neste ponto, como observa Skinner, a questão que emerge é a seguinte: que “tipo de força” pode ser considerada “capaz de nos impedir de querer executar uma ação que está em nosso poder”. Hobbes responde que a força em questão “procede de nossas paixões, e acima de tudo a paixão do medo”21.

A segunda inovação introduzida em Do Cidadão é a ideia de liberdade civil. Nada semelhante pode ser encontrado nos Elementos da lei. Na verdade, a lógica argumentativa que animava essa primeira sistematização da teoria política de Hobbes não somente ignorava, mas também vetava a concepção de qualquer forma de liberdade além da liberdade natural. Skinner argumenta que Hobbes, influenciado pelo clima político e ideológico que o levou à decisão de exilar-se, procede à revisão dos Elementos da lei de modo a apresentar sua “defesa da soberania absoluta em um estilo mais conciliador e menos inflamado”22. A admissão da possibilidade de os indivíduos preservarem alguma forma de liberdade mesmo depois da efetuação do pacto que os retira do estado de natureza requer claramente a renúncia à tese de que a liberdade “é o estado de quem não é súdito”. Contudo, se não se pode mais afirmar que qualquer forma de governo suprime a liberdade, também não se sustenta a crença de que apenas determinadas formas de governo favorecem a liberdade, ao passo que outras levam necessariamente à escravidão. Com base na ideia de liberdade como ausência de impedimento externo ao movimento, Hobbes passa a afirmar que “todos os servidores e súditos que não estão acorrentados nem encarcerados são livres”23. Ademais, independentemente da forma de governo, haverá sempre um “número quase infinito de ações que não são nem prescritas nem proibidas”, constituindo a “liberdade inofensiva” dos súditos. Por outro lado, com base em sua concepção de impedimento arbitrário ao movimento dos corpos, ele reconhece que as leis civis constituem uma limitação à liberdade, uma vez que o medo das consequências previsivelmente advindas de sua infração levaria os indivíduos ao refreamento de ações que eles têm vontade e capacidade para realizar. Em suma, medo e liberdade seriam incompatíveis.

Porém, conforme o historiador inglês, a formulação definitiva do conceito hobbesiano de liberdade só viria a acontecer no Leviatã. Hobbes tinha consciência “de que precisava enfrentar os teóricos da liberdade republicana em seu próprio terreno”24. Tal enfrentamento traduziu-se na disputa pelo sentido da expressão “homem livre”. O discurso republicano contra a monarquia absolutista (e em grande medida contra a monarquia tout court) fazia da ideia de “homen livre” sua principal arma de luta ideológica. Tradução da expressão latina liber homo, o termo freeman circulava amplamente entre os republicanos ingleses contemporâneos de Hobbes. Viver sob o domínio absoluto de um monarca seria incompatível com a manutenção do status de homem livre. É nesses termos que se expressam, por exemplo, John Milton e John Hall, dois dos mais notáveis escritores republicanos da época. Segundo Milton, se não podemos ter a expectativa de alcançar nossos objetivos “sem o dom e o favor de uma única pessoa” não somos “nem República, nem livres”, somos “vassalos de posse e domínio de um senhor absoluto”. John Hall é ainda mais categórico ao afirmar que “viver sob uma monarquia é viver como um escravo”25.

Skinner procura mostrar como a revisão do conceito de liberdade no Leviatã decorre do esforço de Hobbes para desacreditar a noção de “homem livre” dos republicanos. Consolidando desenvolvimentos anteriores de sua reflexão sobre o tema, Hobbes parte da definição do que ele considera a “liberdade em sentido próprio”, aplicável tanto a criaturas irracionais e inanimadas como a racionais. Em seu “sentido próprio”, a liberdade define-se exclusivamente pela ausência de oposição ao movimento. Esta fórmula já aparecia em Do Cidadão. Agora, porém, a ideia de oposição (ou impedimento) é restringida para referir-se apenas a barreiras externas ao movimento dos corpos. Hobbes faz desaparecer o conceito de impedimento arbitrário como uma possível causa da redução da liberdade, uma alteração que traz profundas consequências em sua argumentação. Agora medo e liberdade não são mais incompatíveis, pois resta evidente que o medo não pode ser tomado como um obstáculo externo às nossas escolhas. Ao eliminar a possibilidade de tratar constrangimentos internos como restrição à liberdade, Hobbes prepara o terreno para o assalto definitivo à noção republicana de homem livre. A ansiedade, o medo ou qualquer outro freio de ordem psicológica capaz de interferir nas escolhas e nos movimentos de um indivíduo em situação de dependência não constituem o tipo de impedimento que Hobbes considera contrário à liberdade. Neste caso, bem como quando se trata de um impedimento interno de ordem física, a exemplo do enfermo imobilizado em seu leito, não é de ausência de liberdade que se trata, mas da ausência de poder.

E o que dizer da lei civil? Em que medida ela pode ser tomada como um impedimento à liberdade? Em Do Cidadão, Hobbes já havia chamado a atenção para o fato de que sob qualquer sistema de leis há um sem-número de ações não proibidas nem prescritas pelo soberano. Ele repete esse argumento no Leviatã, com a máxima de que a liberdade reside no “silêncio da lei”. Mas agora Hobbes vai adiante, realizando uma operação decisiva para seu propósito de desvincular a liberdade da lei. Anteriormente ele havia apresentado o medo de infringir a lei como impedimento arbitrário à ação livre. Com o subsequente abandono da noção de impedimento arbitrário, o medo perde sua função de impedimento da ação e a lei deixa de significar restrição à liberdade. Hobbes oferece como prova o fato de que mesmo diante de uma lei proibitiva ou prescritiva extremamente rigorosa restará sempre aos súditos a alternativa da desobediência. Como sintetiza Hobbes, “o medo e a liberdade são compatíveis […]. E de maneira geral todos os atos praticados pelos homens no interior de repúblicas, por medo da lei, são ações que os seus autores têm a liberdade de não praticar”26. Ora, se não há qualquer conexão necessária entre a liberdade dos cidadãos e a forma jurídica do Estado, deixa de fazer sentido a questão sobre qual seria a forma de Estado mais afeita à liberdade. Deixa de fazer sentido também a resposta republicana segundo a qual somente numa república autogovernada, num “Estado livre”, a liberdade humana poderia ser assegurada. Hobbes encerra a questão afirmando que “quer a república seja monárquica, quer seja popular, a liberdade é sempre a mesma”27.

PASSADO E PRESENTE

Skinner conclui sua narrativa com a sugestão de que a fórmula definida no Leviatã resultou em uma mudança conceitual revolucionária e em poderosa arma de luta ideológica contra o republicanismo. Hobbes “venceu a batalha”28, deixando como herança uma concepção de liberdade que, na atualidade, tem sido “amplamente tratada como um artigo de fé”29.

A esta altura, um crítico familiarizado com a metodologia contextualista de Skinner poderia legitimamente perguntar: a afirmação de que a concepção de liberdade desenvolvida por Hobbes no longínquo século XVII grassa hoje como um “artigo de fé” não levaria ao tipo de “anacronismo” tão estigmatizado nos ensaios metodológicos do próprio Skinner? Há quem acredite que sim, considerando “estranho encontrar um escritor que começou pela insistência na especificidade histórica de cada período agora vindo a defender o tipo de categoria meta-histórica maniqueísta que ele tanto deplorou”30. Há também os que julgam “desconcertante que grande parte dos escritos de Quentin Skinner nos estágios mais adiantados de sua carreira seja informada por seus compromissos políticos e filosóficos fortemente assumidos”31.

No entanto, quando se observa a trajetória recente de Skinner, seu afastamento de alguns de seus postulados metodológicos originais não surpreende32. Há pelo menos uma década, Skinner já afirmava que passara a encontrar “mais coisas na perspectiva de uma tradição e, consequentemente, de uma continuidade intelectual do que costumava encontrar”, e que isso o fez ver “mais promissoramente do que costumava ver” o valor atual do engajamento crítico “com nossos antepassados e grandes pensadores, ao menos quanto a alguns conceitos-chave que continuam a estruturar nossa vida em comum”33. Mais do que qualquer outro livro de Skinner, Hobbes e a liberdade republicana reflete essa alteração na perspectiva do autor sobre a relação entre o passado e o presente da teoria política.

Notas

1 SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana. São Paulo: Ed. da Unesp, 2010, p. 10.         [ Links ] 2 A distinção entre as concepções negativa e positiva de liberdade é fortemente tributária de um ensaio de Isaiah Berlin, publicado originalmente em 1958. Cf. BERLIN, Isaiah. “Dois conceitos de liberdade”. In: HARDY, Henry e HAUSHEER, Roger (orgs.). Isaiah Berlin: estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 226-72.         [ Links ] 3 SKINNER, Q. “Freedom as the absence of arbitrary power”. In: LABORDE, Cécile e MAYNOR, John (eds.). Republicanism and political theory. Londres: Blackwell, 2008.         [ Links ] 4 PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press, 2007.         [ Links ] 5 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 12.
6 Ibidem, p. 14.
7 Conforme o título de um dos livros que mais influenciaram o método skinneriano: Austin, J. L. How to do things with words. 2.ed. Massachusetts: Harvard University Press, 1975.         [ Links ] 8 Cf. SKINNER, Q. “Meaning and understanding in the history of ideas“. History and Theory, vol. 8, no 3, 1969, pp. 3-53.         [ Links ] 9 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 13.
10 PETTIT, Philip. “Liberty and Leviathan“. Politics, Philosophy and Economics, vol. 4, no 1, 2005, p. 150.         [ Links ] 11 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 14.
12 Ibidem, p. 70.
13 Ibidem, p. 70.
14 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 71.
15 Ibidem, p. 75.
16 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 83.
17 Tradicionalmente, os reis da Inglaterra contavam com a prerrogativa de requisitar às cidades costeiras embarcações (ou o dinheiro equivalente à construção dessas embarcações) para a defesa naval em situações em que o reino via-se na iminência de sofrer invasões inimigas. Em 1635, em meio a uma crise financeira, Carlos I, alertando para a possibilidade de invasão, passa a requerer o recolhimento do ship-money para fazer frente às dificuldades. A prática repetiu-se nos anos seguintes, mesmo na ausência de qualquer ameaça externa, o que levou a uma crescente insatisfação no Parlamento. Não tardaram a aparecer discursos protestando contra o caráter abusivo e arbitrário do tributo, o que culminou, em 1641, na decretação da sua ilegalidade.
18 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 93.
19 Citado em Skinner, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 111.
20 Ibidem, p. 112.
21 Ibidem, p. 113.
22 Ibidem, p. 116.
23 Citado em SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 117.
24 Ibidem, p. 143.
25 Citados em SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 141.
26 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 180.         [ Links ] 27 Ibidem, p. 184.
28 SKINNER, Hobbes e a liberdade republicana, op. cit., p. 197.
29 Ibidem, p. 194.
30 DIENSTAG, Joshua. “Man of peace: Hobbes between politics and science”. Political Theory, vol. 37, no 5, 2009, p. 703.         [ Links ] 31 COLLINS, Jeffrey. “Quentin Skinner’s Hobbes and the neo-republican project”. Modern Intellectual History, vol. 6, no 2, 2009, p. 365.         [ Links ] 32 SILVA, Ricardo. “O contextualismo linguístico na história do pensamento político: Quentin Skinner e o debate metodológico contemporâneo”. Dados, vol. 53, no 2, 2010.         [ Links ] 33 SKINNER, Quentin. “Quentin Skinner on encountering the past (interview)”. Finnish Yearbook of Political Thought, vol. 6, 2002, p. 55.         [ Links ]

Ricardo Silva – Professor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina.

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O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna – NEUMANN (C-FA)

NEUMANN, Franz. O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo: Quartier Latin, 2013. Resenha de: PROL, Marques Flavio. O Império do Direito e a liberdade: uma teoria crítica do direito e do Estado. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.21 Jan./Jun., 2013.

Foi publicada em português a tradução do livro O Império do Direito, de Franz Neumann. Escrito em 1936, na Inglaterra, para obtenção do segundo doutorado do autor, sob orientação de Harold Laski, a versão em livro foi publicada cinquenta anos depois, em 1986.

Alemão, Neumann foi advogado trabalhista e do Partido Social Democrata. Ao longo da década de 1920, ainda na Alemanha, escreveu sobre direito do trabalho e direito econômico, e os principais textos do período estão reunidos em duas coletâneas publicadas em italiano.1 Diante da ascensão do nazismo ao poder, em 1933, foi obrigado a se exilar.

Após a estadia na Inglaterra, dirigiu-se aos Estados Unidos, onde iria escrever o livro pelo qual é mais conhecido: Behemoth2, que apresenta um estudo do regime nazista. Nele, Neumann critica o conceito de capitalismo de estado, controvérsia estabelecida com Friedrich Pollock. Foi também nessa época que ele se tornou colaborador do Instituto de Pesquisas Sociais, estabelecido no exílio.3

A publicação de O Império do Direito ilumina uma parte relevante da obra de Neumann.4 Nesse texto, o autor apresenta uma interpretação específica a respeito do direito moderno, do Estado e da sua relação com a liberdade humana. Em termos críticos, essa preocupação com a liberdade talvez possa ser traduzida como interesse pela emancipação, embora Neumann não tenha afirmado isso explicitamente.

O livro apresenta quatro teses distintas a respeito do desenvolvimento do direito moderno. Ele se insere nos principais debates a respeito da natureza do direito, tanto da perspectiva filosófica, com críticas a Schmitt, Kelsen e Austin, como da perspectiva sociológica, com a referência central sendo Max Weber.

Para apresentar a relação estabelecida entre direito moderno e a realização da liberdade, este texto está organizado da seguinte forma: (i) inicialmente, apresento a estrutura geral do livro e suas principais teses; (ii) na sequência, ressalto como o vínculo que o autor estabelece entre direito e democracia permitiria a realização, ainda que parcial, da liberdade. Ainda nessa parte, demonstrarei como Neumann desenvolveu posteriormente sua concepção de liberdade.

1.Estrutura geral do texto e suas principais teses

Neumann divide o seu texto em três partes: ( i ) “introdução e a base teórica”; ( ii ) “soberania e império do direito em algumas teorias políticas racionais (o desencantamento do direito)”; ( iii ) “a verificação da teoria: o império do direito nos séculos XIX e XX”.

Na sequência dessa seção, apresentarei inicialmente o ponto de partida teórico do texto de Neumann, para só então apresentar as quatro teses que o autor defende ao longo do livro.

1.1 Sociologia do direito. Elementos contraditórios do Estado e do direito

O livro discute a relação entre direito, ciência política e economia, razão pela qual a sociologia do direito é o principal ponto de partida para análise. Por sociologia do direito, Neumann entende a compreensão das relações entre direito e a “subestrutura social”5

Afastando concepções meramente econômicas das instituições jurídicas, que reduziriam a subestrutura social do direito a uma análise economicista, Neumann entende que a tarefa central da sociologia do direito é demonstrar como o direito e o Estado possuem tanto um desenvolvimento histórico autônomo enquanto forma específica de ordenação das relações sociais, como um desenvolvi mento condicionado a determinações sociais oriundas da religião, da economia e da política.

Por Estado moderno, Neumann entende “toda instituição socio logicamente soberana” (p. 64). A soberania, por sua vez, corresponde ao poder jurídico mais elevado de determinar normas que valem coercitivamente para todas e todos em um determinado território. Ao afirmar que a soberania é, em última instância, um poder jurídico, Neumann tenta escapar tanto de um reducionismo jurídico, que equacione soberania e direito, como de um reducionismo político-sociológico, que identifique soberania e poder.

Ainda falta, contudo, esclarecer melhor o que o autor entende por direito e por poder. Para ele, o elemento de direito e o elemento de poder contidos em sua definição de soberania e de Estado moderno são contraditórios. Esta é a primeira tese do texto. A soberania absoluta, no sentido do poder irrestrito do Estado para emitir normas de qualquer conteúdo, não se reconcilia com a afirmação histórica de âmbitos de liberdade diante do Estado na forma jurídica (“Império do Direito”).

Para Neumann, a definição de direito deriva da contradição entre esses dois elementos. É por isso que teórica e historicamente percebe-se uma dupla noção de direito: uma política e outra material.

Segundo a noção política, qualquer decisão do Estado seria direito, fosse ela justa ou injusta. O direito e a lei seriam apenas voluntas.

Por outro lado, de acordo com a noção material, “as normas do Esta do são compatíveis com os postulados éticos definidos, sejam postulados de justiça, liberdade ou igualdade, ou qualquer outro” (p. 98).

Ou seja, deve haver identidade entre as normas emitidas pela autoridade estatal e certo conjunto de valores externo ao direito para afirmar que as normas emitidas pelo Estado são “direito”.

A segunda tese do texto deriva dessa primeira. Para Neumann, a justificação secular e racional do Estado e do direito pode ter um aspecto revolucionário sob certas circunstâncias históricas. A superação histórica de justificações do Estado e do direito que se baseavam na religião ou no direito natural fortalece concepções de mudanças do status quo. Essa justificação secular e racional implica que o Estado e o direito “são simplesmente instituições humanas originadas da vontade ou da carência dos homens” (p. 73). Assim, a exigência da noção material de direito de uma justificação independente do direito e do Estado não pode depender senão de argumentos que se referem e são construídos pela própria sociedade.

Neumann então apresenta sua terceira e principal tese: a afirmação histórica e teórica de um Império do Direito garantidor da liberdade tem um efeito desintegrador em uma sociedade baseada na desigualdade (p. 40). A terceira tese é uma especificação da segunda: a justificação secular e racional do Estado e do direito, na modernidade, assume a forma da defesa de um Império do Direito geral. Este Império do Direito expressa o estabelecimento de certas esferas de liberdade em face do Estado. E essas esferas de liberdade permitem que os grupos minoritários ou desprivilegiados de uma sociedade desigual reivindiquem direitos por meio do próprio Império do Direito e de acordo com uma justificação secular e racional. Mas esse processo ameaça as posições de poder estabelecidas e, consequentemente, ou o poder aceita essas demandas ou ele abandona a justificação secular e racional. O exemplo da República de Weimar, mais abaixo, ilustra esse fenômeno.6

1.2 “Desencantamento do direito” e instituições jurídicas

As três teses são desenvolvidas ao longo de todo o texto. A segunda parte do livro apresenta o desenvolvimento da contradição entre soberania absoluta e Império do Direito na obra dos principais pensadores racionais do Ocidente – de Cícero a Hegel. Neumann analisa suas distintas teorias do Estado e do direito para demonstrar como a contradição está invariavelmente presente. Paralelamente, Neumann apresenta como progressivamente ocorre a superação teórica de justificações transcendentais do direito em favor de concepções que se baseiam nas vontades e nas carências dos homens – processo que ele chama de “desencantamento do direito”.

É também nessa parte do texto que Neumann apresenta sua quarta tese: “o reconhecimento da liberdade e igualdade em uma es fera leva ao postulado da liberdade e igualdade nas outras” (p. 118).

Para ele, a justificação secular e racional do Estado e do direito per mite e estimula o reconhecimento jurídico progressivo da liberdade e da igualdade, embora o risco de regresso seja constante.

Essa tese, junto às demais, será novamente objeto de estudo na terceira e última parte do livro, quando Neumann analisa a evolução histórica das instituições jurídicas na Alemanha e na Inglaterra dos séculos XIX e XX. Nesse ponto, Neumann estuda a relação entre direito, política e capitalismo.

Ele defende que a sociedade liberal e competitiva do século XIX, ao compartilhar uma concepção individual de liberdade política e econômica, determinava que o direito só fosse válido se exercido por meio de leis gerais aplicadas por juízes independentes por meio de um processo de subsunção lógico-formal.

Essa ideia formal de direito, por outro lado, pressupunha uma determinada estrutura econômica, social e política: uma economia não monopolizada, a inexistência de uma classe trabalhadora enquanto movimento independente que apresentava demandas ao Estado e ao direito e uma separação de poderes, no qual o direito era aplicado por um órgão independente do órgão de criação, sendo que um ou outro deveria ser dominado pela burguesia.

Contudo, quando o capitalismo se monopolizou e o proletariado passou a exigir o reconhecimento formal de direitos, ocupando lugar no Parlamento, essa estrutura jurídica formal entrou em xeque.

Neumann afirma que a justificação secular e racional do direito passou a ser reivindicada por uma nova classe social, organizada politicamente. E a possibilidade dessa classe exigir direitos formais democraticamente (a afirmação progressiva do Império do Direito por uma justificação secular e racional), entrou em contradição com o desenvolvi mento do sistema produtivo. A sociedade burguesa ficou ameaçada.

A solução encontrada na década de 1930, na Alemanha, foi o completo abandono de qualquer pretensão de racionalidade na justificação do Estado e do direito: a contradição entre soberania e Império do Direito foi resolvida em favor do primeiro elemento. Para Neumann, o direito da Alemanha nazista era uma simples técnica de transformação da vontade do líder em realidade constitucional. A característica própria do direito e do Estado, a contradição entre um momento de soberania e um momento de justificação racional e secular, foi deixada de lado em favor de uma justificação irracional e carismática do poder absoluto do Estado.

2.Vínculo entre direito e democracia.

Contudo, é possível defender, a partir de Neumann, que a “solução nazista” não era a única alternativa historicamente possível. Aqui talvez resida a maior contribuição do autor para o pensamento jurídico e político contemporâneo. Estabelecendo um vínculo entre democracia e direito, tanto da perspectiva teórica, a partir da análise de Rousseau, como da perspectiva histórico-institucional, a partir de sua análise sobre a República de Weimar, Neumann parece postular que seria possível garantir o contínuo reconhecimento de esferas de liberdade e igualdade por meio de um direito democrático, ainda que o risco de regressão estivesse presente.

Não há espaço para reconstruir o que interpreto como as duas linhas de análise sobre o vínculo de direito e democracia realizadas por Neumann. Por isso, apresentarei somente o que considero a sua compreensão sobre as transformações ocorridas na República de Weimar.

Neumann entende que a típica sociedade liberal do século XIX transformou-se radicalmente na Alemanha do início do século XX.

Além da transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista, o autor afirma que a estrutura política também foi substancialmente alterada, sendo que a Constituição de Weimar tentou equilibrar o conflito de classe entre proletariado consciente e burguesia com base na ideia de paridade e com o sufrágio universal. As instituições políticas democráticas permitiram que todas as forças sociais participassem ativamente da criação do direito e do exercício do poder político.

Nesse contexto, a estrutura formal do direito do século XIX também foi transformada. A estrutura econômica de monopólios, o proletariado se constituindo enquanto classe social ativa e a participação de diversas forças sociais na criação do direito fizeram com que começassem a surgir inúmeras normas mais abertas que o padrão tradicional. O conflito social não permitia que o legislador decidisse de antemão qual a solução a ser adotada em um caso concreto. Cláusulas jurídicas gerais passaram a dominar o ordenamento jurídico, como as exigências da “função social da propriedade”, “interesse público” e “boa-fé”, que permitiam uma decisão diferente para cada caso concreto.

Para Neumann, essas cláusulas gerais só garantiram o equilíbrio de forças sociais enquanto todas puderam participar do processo de justificação. Enquanto existiu esse equilíbrio em Weimar, as forças sociais puderam participar ativamente da formação do poder político, porque a elas também eram reconhecidas esferas de liberdade em face do poder do Estado. Contudo, a partir de 1930, as cláusulas gerais passaram simplesmente a ser utilizadas como justificativa para proteção dos interesses monopolistas e da vontade política do Führer. As esferas de liberdade foram sacrificadas em favor da soberania estatal7

2.1 O elemento jurídico da liberdade e a realização da liberdade humana.

A consequência desse diagnóstico, para Neumann, é a de que o reconhecimento formal e jurídico de âmbitos de liberdade em face do poder do Estado é essencial para garantir a realização da liberdade humana, ainda que não a garantam definitivamente.

Neumann entende que a liberdade jurídica se diferencia da liberdade sociológica e filosófica. Enquanto a primeira é a ausência de restrição, a liberdade sociológica seria a possibilidade individual de livre escolha entre duas alternativas iguais. Neumann entende que a liberdade jurídica, conectada a instituições democráticas e a uma justificação secular e racional, permite a progressiva realização da liberdade sociológica, ao dar atenção crescente às diferenças sociais entre os homens. A liberdade jurídica, contudo, não garante a liberdade sociológica.

Finalmente, a liberdade jurídica e a liberdade sociológica simples mente tornam possível a “autoafirmação humana, o fim da alienação de si do homem” (p. 83), inspirando-se na filosofia do direito hegeliana.

A tentativa de formular uma “teoria da liberdade humana” nunca foi abandonada por Neumann. Em texto posterior, de 1953, Neumann retornará à questão.8 Nesse texto, ele afirma que o conceito de liberdade política possui três elementos constitutivos: jurídico, cognitivo e volitivo. O elemento jurídico é o reconhecimento de uma esfera de liberdade do cidadão e de organizações privadas em face do Estado.

Neumann diferencia sociedade civil e Estado e afirma que a primeira deve ser independente do Estado para permitir que as demandas sociais se formem autonomamente.

Desenvolvendo a afirmação realizada antes, Neumann afirma mais uma vez que o elemento jurídico é insuficiente. Dessa vez, contudo, apresenta dois novos motivos: a liberdade concebida enquanto ausência de restrições não permite explicar porque a democracia é o sistema político que maximiza a liberdade; a fórmula da independência da sociedade civil em relação ao Estado ignora que a liberdade pode ser ameaçada no interior da própria sociedade civil.

Assim, ele desenvolve o elemento cognitivo e o elemento volitivo da liberdade política, que complementam o elemento jurídico. O elemento cognitivo reconhece que a sociedade humana acumula progressivamente conhecimento a respeito da natureza e do próprio homem. Nesse sentido, ele permite a realização efetiva da liberdade, ao possibilitar ao homem a compreensão das relações naturais e sociais nas quais está inserido. Ao mesmo tempo, também permite que o homem reforme a estrutura institucional para adequá-la ao conheci mento adquirido.

Por fim, o elemento volitivo (ou ativista) da liberdade é a vontade humana de ser livre. É por meio dele que se defende a superioridade da democracia enquanto forma histórica de realização da liberdade. O vínculo entre direito e democracia fica ainda mais evidente no texto de 1953, porque Neumann defende que somente a democracia institucionaliza a oportunidade do homem escolher livremente entre oportunidades iguais. E o cidadão – individualmente ou em grupo – só pode escolher livremente se tem esferas de liberdade reconhecidas juridicamente.

Em The concept of political freedom, portanto, Neumann desenvolve a teoria apresentada inicialmente em O Império do Direito. Os três ele mentos da liberdade – jurídico, cognitivo e volitivo – conformariam um desenho institucional e social mínimo para que uma sociedade moderna possa ser livre, ainda que o risco de regressão esteja presente. A análise da República de Weimar realizada nos últimos capítulos de O Império do Direito demonstra o risco do abandono do Império do Direito.

Nesse contexto, acredito que os estudos de Franz Neumann podem contribuir significativamente com a reflexão contemporânea a respeito do direito e da democracia. Sua análise sobre o desenvolvimento da racionalidade jurídica apontou para a superação da dicotomia direito formal-material, no sentido de um direito procedimental democrático.9 Por outro lado, Neumann também apontava para a necessidade de congregar outros elementos, além do jurídico, para a sociedade moderna realmente permitir a efetivação da liberdade.

Notas

1.FRAENKEL, E.; KAHN-FREUND, O.; KORSCH, K.; NEUMANN, F.; SINZHEIMER, H. Laboratorio Weimar: conflitti e diritto del lavoro nella Germania prenazista. Roma: Edizione Lavoro, 1982, NEUMANN, F.Il diritto del lavoro fra democracia e dittadura. Bologna: Il Mulino,1983.

2.NEUMANN, F.Behemoth : the structure and practice of national socialism 1933 1944 (1942). New York: Harper Torchbooks, 1966. Versão atualizada do livro publicado originalmente em 1942.

3 A relação entre Neumann e o Instituto não é contínua. Sobre o assunto, ver JAY, M.The dialectical imagination : a history of the Frankfurt School and the Institute of Social Research. Boston: Little Brown, 1987.

4 A preocupação de Neumann com o direito foi analisada nos seguintes textos: RODRIGUEZ, J.Fuga do Direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann, São Paulo: Editora Saraiva, 2009; PROL, F. e RODRIGUEZ, J. Franz L. Neumann: direito e luta de classes. In: RODRIGUEZ, J. e SILVA, F., Manual de Sociologia Jurídica, São Paulo: Editora Saraiva, 2013, pp. 61-79.RODRIGUEZ, J. Franz Neumann, o direito e a teoria crítica.Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo: CEDEC, v. 61, 2004. RODRIGUEZ, J.Franz Neumann: o direito liberal para além de si mesmo.In: NOBRE, M., Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008. KELLY, D.The State of the political: conceptions of politics and the state in the thought of Max Weber, Carl Schmitt and Franz Neumann. New York: Oxford, 2003. SCHEUERMAN, W.Between Norm and Exception: the Frankfurt school and the rule of law. Cambridge: MIT Press, 1997.

5.Neumann se baseia nos estudos de Karl Renner. Ver: RENNER, K.The institutions of private Law and their social functions. Londres: Routledge & K. Paul, 1949.

6.Acredito que é a partir desta tese que Rodriguez afirma a atualidade do diagnóstico de Neumann, por meio da expressão “fuga do direito”. A afirmação histórica do Império do Direito e do reconhecimento de diversas esferas de liberdade jurídicas faz com que as forças produtivas e o exercício puro do poder assumam outra roupagem social, não jurídica. O direito moderno democrático impõe restrições ao exercício do poder. Para mais, ver RODRIGUEZ, J.Fuga do Direito.

7.Rodriguez diferencia a “forma direito” dos “modelos de juridificação”. A ideia de “forma direito” ele retira da própria tensão entre soberania e direito que Neumann afirma ser característica das sociedades modernas. Por “modelos de juridificação”, Rodriguez diferencia como cada sociedade concretiza essa tensão em sua organização específica. A “forma direito” ganha potencial emancipatório quando está conectada a um procedimento democrático.Justamente o que foi abandonado na Alemanha nazista. Para mais, ver: RODRIGUEZ, J. Fuga do Direito, pp. 69-85; p. 95-120; pp. 129-135.

8.NEUMANN, F. The concept of political freedom.Columbia Law Review, vol.53, n. 7, 1953, pp. 901-935.

9.Algo que Habermas, por exemplo, realiza em seus textos sobre direito e democracia. HABERMAS, J.Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 vols.Tradução de Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

Referências

FRAENKEL, E.; KAHN-FREUND, O.; KORSCH, K.; NEUMANN, F.; SINZHEIMER, H. Laboratorio Weimar: conflitti e diritto del lavoro nella Germania prenazista. Roma: Edizione Lavoro, 1982.

HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade.2 vols. Tradução de Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

JAY, M.The dialectical imagination: a history of the Frankfurt School and the Institute of Social Research. Boston: Little Brown, 1987.

KELLY, D.The State of the political: conceptions of politics and the state in the thought of Max Weber, Carl Schmitt and Franz Neumann New York: Oxford, 2003.

NEUMANN, F.Il diritto del lavoro fra democracia e dittadura. Bologna: Il Mulino,1983.

_______.Behemoth: the structure and practice of national socialism 1933-1944 (1942). New York: Harper Torchbooks, 1966. Versão atualizada do livro publicado originalmente em 1942.

_______.O Império do Direito: teoria política e sistema jurídico na sociedade moderna. Tradução de Rúrion Melo. São Paulo: Quartier Latin, 2013.

_______. “The concept of political freedom”.Columbia Law Review, vol.53, n. 7, 1953.

PROL, F.; RODRIGUEZ, J. Franz L. Neumann: direito e luta de classes.

In: RODRIGUEZ, J.; SILVA, F. (orgs.).Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.

RENNER, K.The institutions of private Law and their social functions. Londres: Routledge & K. Paul, 1949.

RODRIGUEZ, J.Fuga do Direito: um estudo sobre o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

_______. Franz Neumann, o direito e a teoria crítica.Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo: CEDEC, v. 61, 2004.

_______. Franz Neumann: o direito liberal para além de si mesmo. In: NOBRE, M., Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008.

SCHEUERMAN, W.Between Norm and Exception: the Frankfurt school and the rule of law. Cambridge: MIT Press, 1997.

Flávio Marques Prol – Doutorando na Faculdade de Direito da USP e pesquisador do NDD-CEBRAP.

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Razão e Emoção em Kant – BORGES (D)

BORGES, M. de L. Razão e Emoção em Kant. Coleção Dissertatio de Filosofia. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária, 2012. Resenha de: SANTOS, Robinson dos. Dissertatio, Pelotas, v.38, 2013.

Qual é o lugar das emoções e dos sentimentos na filosofia prática kantiana? Sentimentos, afetos, paixões e emoções são uma e mesma coisa? Podem ser cultivados enquanto tais? De que modo podem obstruir ou facilitar o aperfeiçoamento moral do homem? Para estas e outras questões em torno da relação entre razão e emoção, o livro de Maria de Lourdes Borges, professora e pesquisadora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, oferece algumas respostas e perspectivas que merecem ser consideradas quando se pretende analisar o tema.

Quanto à estrutura, o livro está dividido em duas partes. A primeira parte, intitulada razão, é composta por três capítulos, a saber, I. A obtenção e validade do princípio moral; II. Teoria da ação em Kant e III. Psicologia empírica, antropologia e metafísica dos costumes em Kant. A segunda parte, intitula-se emoções e moralidade e reúne os outros cinco capítulos do livro: IV. Simpatia e móbeis morais; V. Simpatia e outras formas de amor; VI. A estetização da moralidade; VII. As emoções no mapa kantiano da alma; VIII.

Fisiologia e controle dos afetos. Além destes capítulos, um texto breve fecha o livro, a título de conclusão. Embora a quantidade de tópicos ou capítulos da segunda parte possa sugerir um desequilíbrio no tratamento dado à primeira e segunda partes, tal impressão é desfeita quando se comparam as partes pelo respectivo número de páginas a elas dedicadas.

A autora trata, na primeira parte, de questões relacionadas à fundamentação da filosofia prática kantiana, abordando particularmente no primeiro texto o tema da fundamentação do princípio supremo da moralidade. As etapas mais importantes e os respectivos conceitos fundamentais da Fundamentação da Metafísica dos Costumes são revisitados e a análise culmina com uma abordagem de alguns problemas relacionados com a terceira Seção da Fundamentação e com a doutrina do fato da razão apresentada por Kant na segunda crítica. Borges, para além das polêmicas em torno do problema da dedução na Fundamentação e sua relação com a segunda crítica, parece inclinada a uma leitura que não privilegia a suposta contradição entre as obras.

A teoria kantiana da ação é o tema abordado no segundo capítulo. A pertinência da análise da mesma reside, segundo a autora, no fato de que sua compreensão é fundamental para entendermos a relação entre a razão prática e os sentimentos e emoções. Partindo da caracterização e respectiva distinção entre espontaneidade, liberdade prática e liberdade transcendental, bem como da definição de termos como arbitrium brutum e arbitrium liberum, Borges aproxima-se progressivamente do seu tema fundamental (as emoções) na parte central deste capítulo, que trata dos motivos e móbeis e do tema da fraqueza da vontade. Trata-se aí de estabelecer a relação das inclinações (móbeis sensíveis) com o valor moral da ação. Kant é enfático tanto na Fundamentação, quanto na segunda Crítica sobre as ações motivadas por inclinações. De fato, na KpV1 afirma ele que “O essencial de todo o valor moral das ações depende de que a lei determine a vontade imediatamente” (p.114). Destaca-se, outrossim, neste contexto, a apreciação da chamada “tese da incorporação” estabelecida por Henry Allison e as objeções levantadas a ele por Marcia Baron. A autora finaliza este capítulo com a análise do conceito de máximas considerando as interpretações de Onora O’Neill e Henry Allison. As interpretações de Christine Korsgaard e Barbara Hermann são retomadas para fazer frente às críticas quanto ao aspecto da universalização/contradição de máximas por um lado e, por outro, para rejeitar a crítica de cegueira moral da ética de Kant e sua suposta incapacidade para o julgamento de situações particulares.

A passagem da filosofia prática ancorada em princípios a priori para a Metafísica dos Costumes e para a Antropologia prática é a questão debatida no terceiro capítulo. Borges quer mostrar nesta parte do trabalho três momentos da relação entre psicologia empírica, antropologia e metafísica dos costumes na obra de Kant. O primeiro momento destaca a posição de Kant seguindo Baumgarten quando admite a psicologia empírica como parte da metafísica. O segundo momento diz respeito ao total isolamento da psicologia empírica e da antropologia no caso da Fundamentação. No terceiro momento é destacado que, a partir da Antropologia de um ponto de vista pragmático e da Metafísica dos Costumes, uma concepção de natureza humana faz parte da metafísica da moral. O fito de tal abordagem consiste em demonstrar que a despeito de Kant separar claramente o âmbito empírico do racional, o plano da fundamentação do plano da aplicação, ele não ignora e tampouco exclui de suas considerações os problemas e peculiaridades postos pela antropologia. Com efeito, nota a autora que “uma teoria moral, ainda que possa obter seu princípio moral supremo sem considerações sobre a natureza humana, não pode deixar de indagar sobre a aplicabilidade destes princípios aos seres racionais sensíveis” (p. 69). Assumindo a tese, postulada de modo mais explícito por Robert Louden em Kant’s Impure Ethics (2000) de que a teoria moral de Kant está assentada sobre uma parte pura e uma parte impura, Borges procura identificar as obras em que sobretudo a parte impura é apresentada, na qual os elementos particulares da natureza humana são tematizados e relacionados por Kant. Esta análise visa colher informações que possam lançar luz sobre a questão das emoções e dos sentimentos. “Na parte impura da ética, portanto, alguns sentimentos que não possuíam valor moral na Fundamentação, passam a tê-lo” (p. 86). Ainda neste contexto, a autora considera que, “A parte pura da ética deve, portanto, ser complementada pelas condições de validade desta para seres humanos, as quais só podem ser encontradas numa doutrina da sensibilidade moral” (p.90). Isso não significa aceitar que Kant estaria mais próximo dos empiristas do que gostaria. Pelo contrário, observa a autora, mesmo reconhecendo a pertinência do sensível, a instância que permite identificar o moralmente correto é a razão e não o sentimento.

A segunda parte é dedicada à análise da relação entre as emoções e a parte pura da filosofia prática de Kant. Os sentimentos são objeto de investigação, assim como a questão de se eles desempenham algum papel no âmbito da moralidade. Na abertura do capítulo IV a autora lança a pergunta: “Pode a simpatia cumprir algum papel na moralidade kantiana?” (p. 93). Para responder a esta questão ela analisa o percurso de Kant desde a Fundamentação até a Doutrina da Virtude e, na verdade, este tema é tratado também no capítulo V. Sentimentos como a simpatia podem auxiliar na realização de fins de virtudes. Incluem-se nesta análise também as definições que Kant apresentou sobre o amor. Na Doutrina da Virtude Kant refere-se ao dever de amor aos seres humanos quando aborda, nos deveres de virtude,  nossos deveres em relação aos outros. Beneficência, gratidão e simpatia são deveres que concorrem para a efetivação da virtude e são sentimentos que devem ser cultivados. A simpatia é tomada como exemplo para explicitar a possibilidade de tal cultivo. “A simpatia, que não é um afeto, mas um sentimento que pode ser modificado e cultivado pela razão, relaciona-se com o amor que pode ser um efeito da prática de boas ações. Ela será, assim, efetiva e útil na realização de beneficência, ao invés de ser uma mera condição de prazer ou dor, que afeta as pessoas cegamente, como uma doença contagiosa” (p. 120).

Os sentimentos são analisados em seguida, na perspectiva de condições estéticas para a receptividade do dever (cap. VI). Para tal, Borges toma o sentimento de prazer e desprazer em sua relação com a moralidade, considerando o §59 da terceira crítica (Crítica da Faculdade do Juízo) e a relação entre bondade e beleza. Em seguida, examina o sentimento moral na Metafísica dos Costumes e as considerações feitas por Kant acerca da relação entre o domínio do gosto e o domínio da virtude na Antropologia. A autora visa, com isso, demonstrar que existem aspectos estéticos na moralidade que efetivamente contrastam com o suposto formalismo da Fundamentação e da segunda crítica. Teria Kant mudado de rota nos seus textos tardios ou trata-se apenas de considerações diferentes de acordo com o conteúdo das respectivas obras? Para esta pergunta uma resposta definitiva ou categórica não é possível, admite a autora. No entanto, é digno de nota que se nos escritos dos anos oitenta havia uma espécie de rejeição ou condenação dos sentimentos de prazer e desprazer no campo moral, o quadro se modifica nos escritos dos anos noventa, na medida em que a autora observa que para Kant, se não os tivéssemos “estaríamos mortos moralmente” (p. 138).

No capítulo VII a autora apresenta o que considera um modelo para as emoções em Kant. Na medida em que um controle absoluto por parte da razão sobre as inclinações não é concebível, “as paixões e afetos são considerados doenças da mente (Krankheit des Gemüts)(…), excluem a soberania da razão; os afetos tornam a reflexão impossível, enquanto as paixões são ditas tumores malignos para a razão pura prática” (p. 139).

Tomando posição diante de outros intérpretes do tema das emoções na filosofia de Kant, Borges advoga que “o erro dos comentadores (…) é considerar que a emoção em Kant possui apenas um modelo e um fenômeno referente, quando de fato refere-se a uma multiplicidade de diferentes fenômenos, que devem ser explicados de formas diversas” (p. 153).

O capítulo VIII tem como objeto a possibilidade de controle dos afetos, dentro da teoria kantiana das emoções. A autora pretende demonstrar que o objetivo kantiano assemelha-se fundamentalmente ao dos estoicos no sentido de extirpar as paixões em busca da apathia. Este ideal, todavia, está diretamente relacionado com o dom natural das paixões moderadas e não é possível meramente por meio de uma decisão racional. Sua hipótese é de que “a teoria kantiana dos afetos está relacionada com a ideia de estados excitados presentes na fisiologia dos séculos XVII e XVIII, os quais tornariam os afetos difíceis de serem controlados pelo poder da vontade” (p. 156). A simpatia parece desempenhar neste contexto também um papel. No entanto Borges admite que a possibilidade de cultivo da simpatia não pode ser superestimada como possibilidade de controle das emoções em geral. “Ainda que seja verdade que Kant, na Religião, afirme que por si só as inclinações não sejam ruins, a Antropologia nos fornece uma visão negativa dos afetos e paixões, como doenças da mente, o que torna temerário afirmar que devemos celebrálas” (p. 167).

O tema das emoções em Kant inspira cuidados. Se, por um lado, a simpatia é destacada como elemento importante da vida moral, é preciso lembrar que isso é feito por Kant na Doutrina da Virtude, especificamente com vistas ao processo de aperfeiçoamento moral do homem sensível. Isso não pode ser considerado ou aplicado ao mesmo tempo para todo e qualquer tipo de afeto. As emoções não são uma fonte de conhecimento moral e não servem de critério para a tomada de decisões sobre o que é o correto a ser feito. Isso se aplica inclusive à própria simpatia. Borges reconhece que não se pode negar que “o aspecto fisiológico dos afetos e os efeitos perniciosos das paixões realmente instalam um abismo entre a razão prática e as emoções” (p.

169). Isso não elimina, todavia, a permanente tensão que ambos exercem um sobre o outro. Ao fim e ao cabo, um controle das emoções meramente por meio da razão, embora também seja útil e necessário, não é, contudo, suficiente. Cabe ressaltar que devem ser tomadas outras precauções, corporais e fisiológicas para o abrandamento dos afetos intensos. Como a autora lembra, o próprio Kant era mais favorável a um emprego de “altas doses” de um poderoso calmante “do que confiar no poder da razão” (p. 170).

O texto que Borges traz ao público permite uma incursão qualificada sobre o tema em Kant e mostra todas as credenciais de uma investigação que foi desenvolvida ao longo de mais de uma década de estudos e por meio de conferências, de debates e interlocuções com os pares. Isso evidencia a relevância e a pertinência de uma obra que explora um tema, em suas diversas facetas, que sem dúvida colabora para o preenchimento de uma lacuna significativa nas pesquisas sobre Kant no cenário brasileiro.

Notas

1 Sigo aqui a tradução da Kritik der praktischen Vernunft (KpV) de Valério Rohden, publicada pela Martins Fontes (3ª edição), de 2011.

Referências

BORGES, M. de L. Razão e Emoção em Kant. Coleção Dissertatio de Filosofia. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária, 2012. (184 p.)

KANT, I. Crítica da razão prática. Tradução de Valério Rohden. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

Robinson dos Santos – Universidade Federal de Pelotas.

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The infamous boundary: seven decades of heresy in quantum physics – WICK (D)

WICK, D. The infamous boundary: seven decades of heresy in quantum physics. New York: Copernicus, 1996. Resenha de: ARENHART, Jonas Rafael Becker; SCHINAIDER, Jaison. Dissertatio, Pelotas, v.37, 2013.

Talvez um dos únicos pontos não controversos acerca da mecânica quântica seja o fato de que a teoria é um sucesso em matéria de predições. Por outro lado, a interpretação desta teoria, juntamente com uma explicação coerente sobre como ela ‘descreve’ a realidade, é questão de pura controvérsia.

Com efeito, um dos principais aspectos desta disputa se refere ao modo como devemos entender (ou seja, interpretar) aquilo de que a teoria trata. Esta é uma querela que começa com o próprio nascimento da chamada “nova” mecânica quântica nos anos de 1925 e 1926 e se alonga até os dias de hoje. O livro de que tratamos aqui, The Infamous Boundary: Seven Decades of Heresy in Quantum Mechanics, de autoria de David Wick, é mais uma testemunha de que a questão sobre a interpretação que pode ser considerada a mais adequada para a mecânica quântica (se alguma houver) ainda é um problema que desperta o interesse tanto de cientistas quanto de filósofos e que, com certeza, não se esgotou no tempo dos criadores desta teoria (que inclui figuras como Heisenberg, Schrödinger, Bohr, Einstein, Dirac entre outros).

Trata-se de um livro destinado ao grande público, mas também a especialistas que desejam uma abordagem que abranja quase todos os aspectos que são comuns à discussão em torno do desenvolvimento e interpretação da mecânica quântica. A exposição de Wick é em geral clara e precisa, entremeando história, exemplos ilustrativos, muitas anedotas (algumas vezes beirando o exagero) e divulgação científica de qualidade. Apesar de deixar a desejar no que se refere a uma explicação mais detalhada de algumas passagens mais obscuras de algumas das propostas tratadas, pode-se dizer que o resultado final é, como dito, um livro de interesse geral que não pede ao leitor o domínio de muitos pré-requisitos e que também não se utiliza de uma sofisticação matemática comum em exposições padrão desta teoria. Para os que desejam tal sofisticação, o livro inclui um apêndice matemático de cerca de cinqüenta páginas, escrito por W. Farris, trazendo uma formulação geral da mecânica quântica em bases um pouco mais matemáticas e abordando temas como o tratamento da probabilidade no contexto quântico e as desigualdades (ou teoremas) de Bell (primeiro e segundo). Trata-se assim de um excelente livro para filósofos da ciência que estão começando a tomar contato com a teoria quântica e suas controvérsias, um livro que aponta diretamente para as dificuldades da teoria. No entanto deve ficar claro desde o início: não se trata de um livro de caráter meramente expositivo, pois, como mencionaremos adiante, Wick pretende defender uma posição realista, contra posições positivistas e anti-realistas. Parte de sua argumentação, deste modo, se volta contra a ortodoxia de Copenhague e sua aparentemente injustificada divisão do mundo em dois domínios, um clássico e um quântico, regidos por leis distintas e entendidos de modo completamente distintos. Wick busca argumentar que esta divisão (a Infamous Boundary – termo que dá título à obra e que foi, diga-se de passagem, retirado de um artigo de J. S. Bell – BELL, 1987, p. 35) não se justifica de modo algum e que podemos ter sim uma compreensão realista da mecânica quântica.

Interessante notar que, neste contexto, os realistas tornam-se os céticos que assumem a posição de duvidar da ortodoxia (principalmente da chamada interpretação de Copenhague), enquanto os positivistas são rotulados como dogmáticos defensores do status quo.

Assim, a proposta de Wick é clara desde o início de seu livro: pretende questionar a ortodoxia da interpretação de Copenhague e defender (ou pelo menos argumentar a favor da plausibilidade de) uma interpretação realista da mecânica quântica, na qual os objetos tratados pela teoria possuem propriedades independentes do observador. Admite-se, porém, que, em alguns casos, uma mensuração possa sim afetar o objeto mensurado (por exemplo, no caso da medição da temperatura de uma pequena quantidade de água com um termômetro: a temperatura do termômetro irá interferir na temperatura dessa pequena quantidade de água e resultar em um valor ‘incorreto’. Todavia, essa diferença pode ser explicada e/ou compensada – cf.p. 172). Uma das perguntas que Wick coloca é que, já que existem alternativas realistas à interpretação de Copenhague, como, por exemplo, a interpretação de David Bohm (apresentada em um capítulo de seu livro), por que ainda se trata este tipo de opção como uma heresia? Segundo Wick, as propostas de tipo realista também merecem ser levadas a sério, e um dos objetivos deste autor é exatamente mostrar que este tipo de interpretação consegue resistir às principais objeções levantadas contra ela. Para tanto, o autor argumenta que será preciso primeiramente separar teoria e ideologia e mostrar o que a teoria implica e o que a autoridade de figuras como Niels Bohr (um dos pais da mecânica quântica e um dos principais proponentes da interpretação de  Copenhague, segundo Wick) introduziu – muitas vezes sem justificações adequadas – no imaginário coletivo. De fato, um tema recorrente no livro é a afirmação de que a ortodoxia da interpretação de Copenhague, com seu tom altamente positivista está fundamentada, segundo o autor, muito mais em dogmas, obscuridades e em uma sutil ideologia, do que em argumentos aceitáveis (cf. p. xiii). Desse modo, será preciso abrir caminho por estas vias para mostrar que, ao contrário do que se argumenta usualmente, uma interpretação realista, longe de ser apenas uma curiosidade ou uma mera possibilidade conceitual, é altamente recomendável.

A partir de agora, trataremos mais detidamente de alguns pontos específicos discutidos no livro. Nos primeiros capítulos, Wick apresenta uma breve história do início dos desenvolvimentos da teoria quântica desde o final do século XIX e começo do XX. Esta recapitulação se inicia com o positivismo de Mach, que duvidava da existência de átomos e restringia o que podemos conhecer àquilo que fosse observável (um princípio metodológico que será retomado por Heisenberg no desenvolvimento da mecânica de matrizes), passando pelas contribuições de Einstein com sua teoria sobre o efeito fotoelétrico e pelo átomo de Bohr até os desenvolvimentos da mecânica de matrizes de Heisenberg, da mecânica ondulatória de Schrödinger e do Princípio de Complementaridade de Bohr. A exposição de Wick segue a ordem cronológica dos eventos, reservando grande espaço para anedotas e aspectos centrais da biografia dos protagonistas do desenvolvimento da teoria quântica (o que é, diga-se de passagem, um grande atrativo para leitores que não estão acostumados com a carga teórica do assunto). Wick chama a atenção principalmente para o papel de Bohr nesta etapa do desenvolvimento da teoria. Segundo ele, foi Bohr o responsável por se criar uma espécie de hegemonia positivista no que diz respeito à interpretação da teoria quântica.

Um dos conceitos-chave na interpretação proposta por Bohr, posteriormente adotada por vários dentre os principais físicos envolvidos no desenvolvimento da teoria quântica (com as notáveis exceções de Broglie, Einstein e Schrödinger), foi a noção de complementaridade. Este, como Wick enfatiza (até demais), é um dos conceitos mais vagos e difíceis de serem compreendidos na literatura sobre a mecânica quântica. A prosa de Bohr, em geral confusa e por vezes ambígua, dificulta ainda mais a compreensão desta noção-chave da interpretação de Copenhague. Eventos complementares, falando por alto, são aqueles que são mutuamente excludentes e conjuntamente exaustivos, ou seja, não ocorrem simultaneamente, mas são ambos imprescindíveis para se explicar completamente o fenômeno. Deste modo, por exemplo, a famosa dualidade onda-partícula é um exemplo paradigmático em que a noção de complementaridade deve ser empregada.

Realmente, nada pode ser onda e partícula ao mesmo tempo. Porém, se tomarmos o famoso experimento das duas fendas e tentarmos explicar o padrão de interferência registrado em um anteparo quando as duas fendas estão abertas, só podemos fazê-lo se utilizarmos a noção de onda e os conceitos de interferência construtiva e destrutiva; por outro lado, quando apenas uma das fendas está aberta, o padrão formado pela chegada dos ‘objetos’ no anteparo atrás da fenda é outro, o qual só pode agora ser explicado se passarmos a utilizar a noção de partícula (e com isso também podemos assumir o fato de que aparentemente, neste caso, podemos falar de uma trajetória bem definida para essas partículas – cf. p. 45-46). Assim, um elétron, por exemplo, é onda e é partícula, mas isto não significa que possua as duas características ao mesmo tempo: estes dois conceitos, com relação ao elétron, são complementares. Outra versão do princípio da complementaridade (que Wick simplesmente rejeita como muito confusa) diz respeito aos modos de descrição dos sistemas quânticos. Por um lado, um sistema quântico quando considerado apenas em si mesmo, não perturbado por aparatos de mensuração, não poderá ser conhecido. Por outro lado, se quisermos conhecer algo desse sistema devemos efetuar uma medição sobre ele. Podemos então conhecer os valores de determinadas grandezas (aquelas sendo medidas), mas não podemos atribuir os valores assim obtidos ao sistema físico em si (como acontece na mecânica clássica), haja vista que ao realizarmos esta medição interferimos de modo essencial com o sistema quântico. De certo modo, em uma medição quântica, é impossível dissociar o sistema do aparato de medição para podermos distinguir o que é realmente uma propriedade do sistema e o que é na verdade resultado de interferência do aparato: aparato e sistema tornam-se um só e são complementares.

A complementaridade também é utilizada para se interpretar as relações de incerteza de Heisenberg. Estas relações, derivadas por Heisenberg para pares de observáveis que não comutam, sendo os mais famosos deles os pares posição-momento e energia-tempo (tempo não é, estritamente falando, um observável), despertam muita controvérsia sobre o modo como devem ser entendidas, tendo sido responsáveis até mesmo por um pequeno atrito entre Heisenberg e Bohr com respeito a isto. Como Wick argumenta (p. 73-74), a leitura das relações como nos dizendo que não podemos conhecer os valores para estas duas grandezas simultaneamente não se justifica, pois, permitindo a possibilidade de retrodição, em muitos casos podemos conhecer sim os dois valores (como o momento e posição, por exemplo) com bastante precisão; só não podemos é prever estes valores, com um grau se precisão arbitrária, antes do experimento ser feito (de qualquer forma para Heisenberg era, na verdade, “matéria de crença pessoal se um cálculo desse tipo, concernindo a história passada [da partícula], pode designar qualquer realidade física ou não [ao ‘caminho’ da partícula]” – p. 74). Heisenberg também havia proposto que podemos ilustrar as relações de incerteza através da famosa experiência mental do microscópio, na qual observamos um elétron com um microscópio. Para determinarmos, por exemplo, a posição do elétron com grande precisão, devemos iluminá-lo com bastante luz, o que resulta que os fótons do feixe luminoso ao, atingirem o elétron, perturbam seu momento.

Para determinarmos, por sua vez, seu momento com alta precisão, devemos fazer o elétron colidir com outra partícula, de modo que sua posição se alterará e não poderemos mais determiná-la precisamente. Segundo Bohr, esta forma de se motivar as relações de incerteza gera grandes dificuldades, e o modo correto de as entendermos, na verdade, consiste em percebermos que elas expressam o fato de que para medir grandezas como momento e posição, que figuram na formulação mais famosa das relações de incerteza, precisamos de aparatos de medição complementares que não podem ser utilizados simultaneamente (p. 43-44).

Mas a utilização mais importante da complementaridade, e que ocupa um papel central no livro de Wick, consiste em seu uso para mostrar que o famoso argumento de Einstein-Podolski-Rosen contra a alegada completude da mecânica quântica estava equivocado. Este é, segundo o autor, um dos principais golpes que deslanchou o crescente sucesso da interpretação de Copenhague e a crença de que interpretações realistas não teriam sucesso.

Einstein, desde os primórdios da teoria quântica, não escondia que estava insatisfeito com o seu caráter eminentemente probabilístico. Segundo ele, a mecânica quântica deveria ser parte de uma teoria mais completa da realidade, na qual a probabilidade representasse no máximo o grau de ignorância acerca das informações que temos disponíveis em determinado momento e não uma característica intrínseca da realidade. Sustentou esta crença até o fim de sua vida, tentando construir uma teoria de campo unificado em que os postulados quânticos se tornassem ‘casos particulares’ dos axiomas desta teoria unificada. Sua busca foi infrutífera, mas muitos dos princípios filosóficos que o motivaram despertam interesse até hoje.

O primeiro grande encontro de Einstein e Bohr e o consequente debate que daí resultou (que ficou famoso como sendo um dos maiores debates intelectuais da história), iniciou nas Conferências Solvay de 1927, na qual os grande nomes da mecânica quântica (que acabara de aparecer) discutiam seu significado e sua interpretação. Entre eles estavam Heisenberg e Born (que propunham, seguindo uma linha positivista, que a teoria era completa e não admitia extensões), e Einstein, que concordava que de Broglie estava no caminho certo ao propor uma interpretação dualista, aceitando tanto ondas quanto partículas em seu quadro conceitual, mas buscando uma interpretação mais próxima da física clássica para os fenômenos quânticos (cf. p. xi). O próprio de Broglie, no entanto, foi depois temporariamente persuadido de que sua posição não se sustentava (devido essencialmente à críticas feitas a ele neste mesmo congresso, principalmente aquelas apresentadas por Wolfgang Pauli, que era outro simpatizante das idéias de Bohr). Foi também nesse congresso que Bohr apresentou seu Princípio de Complementaridade pela segunda vez; a primeira com Einstein na platéia (Bohr já havia apresentado o seu Princípio de Complementaridade meses antes em um congresso em Como, na Itália, mas Einstein estava ausente).

Segundo Bohr, a complementaridade engloba um dos principais aspectos da nova teoria, a chave para se resolver muitas das dificuldades apresentadas por ela. Em seus vários textos tratando do assunto, diversas formulações são propostas com o objetivo de se atingir uma versão rigorosa deste princípio, aparentemente, sem muito sucesso (muitas vezes devido, como dito, à própria obscuridade da prosa de Bohr). Com efeito, Wick, em sua exposição, enfatiza a vagueza e falta de precisão desse cientista ao formular este princípio, e levanta a questão sobre como um princípio tão vagamente enunciado possa ter tido tanto sucesso e agregado tantos partidários.

A princípio, o alvo das críticas de Einstein nessas conferências são as relações de incerteza de Heisenberg. A famosa disputa com Bohr, que começava geralmente pela manhã durante o café, com Einstein propondo alguma experiência mental (as famosas Gedankenexperimente), e terminavam no final da tarde, com Bohr apontando algum equívoco ou dificuldade na experiência, entraram para a história (vale a pena enfatizar que todas as críticas ou experimentos mentais propostos por Einstein durante as conferências, no intuito de mostrar que a mecânica quântica estava errada ou era incompleta, foram respondidas ou mostradas que estavam equivocadas por Bohr, como se costuma aceitar). Posteriormente, em 1935, Einstein, com seus colegas Boris Podolski e Nathan Rosen, passou a atacar não mais o princípio de incerteza, mas a própria ideia de que a teoria realmente nos fornece uma descrição completa da realidade, entendida grosso modo como uma descrição que não admite extensões adicionais, ou seja, que captaria todos os aspectos relevantes da realidade. Seu argumento – que ficou conhecido pela sigla dos nomes de seus autores, EPR – propunha que existiam “elementos da realidade” que não eram captados pela teoria quântica e, logo, esta seria incompleta. O argumento começa com uma caracterização do que conta como um elemento da realidade (p. 70): “Se, sem perturbar o sistema de qualquer modo, podemos predizer com certeza (i.e., com probabilidade igual à unidade), o valor de uma quantidade física, então existe um elemento da realidade física correspondendo a esta quantidade física”.

Em linhas gerais, o argumento começa propondo que tomemos um sistema composto de dois subsistemas a e b que interagiram previamente, e estão localizados em laboratórios bastante afastados. O argumento começa deixando claro que a mecânica quântica, apesar de limitar nosso conhecimento de grandezas que não comutam, como posição e momento, nos permite definir a partir delas duas grandezas que podem ser medidas simultaneamente: a distância entre a e b, denotada d(a,b) = qa – qb, e a soma dos momentos de a e b, denotada s(a,b) = pa + pb. Estas duas grandezas podem ser medidas com certeza, ou seja, com probabilidade igual a 1. Com uma medição da posição qa podemos atribuir com certeza um valor para a posição de b a partir da relação qb = qa – d(a,b), sem para isso perturbar a partícula b. Além disso, podemos arranjar as coisas de modo que a soma dos momentos seja 0, e assim, atribuir um valor preciso para o momento de b.

Deste modo, b terá tanto uma posição quanto um momento bem determinado, e ambos são elementos da realidade. Isto contraria o que diz a mecânica quântica, a saber, que esta partícula estaria sujeita às limitações impostas pelas relações de incerteza e, portanto, não seria possível conhecer a sua posição e o seu momento ao mesmo tempo. Se há algo na realidade que não possui nenhum correspondente na teoria e mesmo assim é um elemento da realidade então, conclui o argumento EPR, a teoria é incompleta.

Devemos notar que, mesmo fazendo uso das relações de incerteza, este não é um argumento contra elas, mas antes contra a completude da teoria.

Bohr resolve esta dificuldade apelando para a complementaridade: medir cada uma das distintas grandezas envolveria a utilização de diferentes aparatos que são complementares (ou seja, estão numa mesma descrição teórica) e que não podem ser utilizados simultaneamente. No momento em que medimos uma das grandezas, utilizamos um aparato, e isto impede que se possa medir a outra grandeza. Assim, não faz sentido atribuir valores a posição e momento ao mesmo tempo, pois a medição de um deles exclui a medição da outra. Esta explicação sucinta, escrita no confuso estilo de Bohr, segundo Wick, deveria ter levantado suspeitas pelo menos entre os físicos (p.

72-74). Além disso, o argumento foi formulado precisamente para evitar este tipo de objeção, de modo que, segundo Wick, Bohr não acertou no alvo (“and he begged the question”, p. 75). No entanto, a maioria dos físicos não pensou assim. A história que se conta geralmente é a de que Bohr ‘derrotou’ Einstein e que mostrou assim que a interpretação de Copenhague parecia estar no rumo certo. Mas, como esta pretensa vitória pode se basear em fundamentos tão frágeis? A princípio, tratava-se de uma disputa epistemológica (p. 74), que não parecia ter nenhuma possibilidade de ser travada no campo experimental. Porém, a situação começou a mudar depois que os dois principais protagonistas do grande debate já estavam mortos.

Durante o período em que viveram Einstein e Bohr, as tentativas de se completar a mecânica quântica com novas variáveis, e assim obter uma formulação mais adequada para os gostos realistas, foram praticamente banidas por alguns teoremas proibitivos, os no-go theorems. Estes teoremas são resultados matemáticos que limitam certas versões da teoria, como, por exemplo, aquelas que admitem variáveis ocultas (que é o caso das teorias realistas). Seguindo o tom geral do livro de Wick, qual seja, de desmistificar afirmações que se sustentam principalmente no peso da autoridade de quem as propôs, grande importância é atribuída ao fato de que o primeiro destes teoremas (demonstrado por John von Neumann, em 1932), que supostamente demonstrava a impossibilidade de se ‘completar’ a mecânica quântica com variáveis ocultas, continha hipóteses demasiado restritivas.

Durante muito tempo este assunto foi considerado como tendo sido encerrado por von Neumann, baseando-se principalmente em sua autoridade como matemático. No entanto, com a percepção de que este teorema proibia somente uma classe muito limitada de teorias de variáveis ocultas (classes essas que se percebeu não valerem em um contexto quântico que interpreta fenômenos da realidade física, mas apenas em um contexto matemático abstrato), uma nova onda de interesse no assunto teve impulso.

O próximo passo nessa controvérsia foi dado por John Bell, um físico irlandês, em 1964. Bell, além de ser um dos que contribuíram para apontar o equívoco de Von Neumann, ainda derivou um conjunto de desigualdades que deveriam ser respeitadas por qualquer teoria realista local, e sugeriu que estas desigualdades poderiam ser testadas experimentalmente. Falando por alto, uma teoria é realista local se assume que um sistema físico possui valores determinados para todos os observáveis antes de efetuarmos uma medição (realismo), e se a medição em um sistema A afastado espacialmente de um sistema B não afeta B instantaneamente. Com o advento das desigualdades de Bell surgia uma possibilidade de se por à prova o cerne da disputa entre Bohr e Einstein; algo impensado talvez até mesmo para estes dois grandes físicos que ficaram sempre restritos ao campo das experiências de pensamento. A possibilidade de se realizar esses testes era a chance que se tinha de mostrar se a possibilidade vislumbrada por Einstein era ou não exeqüível. Wick discute com vagar as preparações para esses testes, detalhando os bastidores dos experimentos e como os primeiros resultados colaborativos foram alcançados. Desde que os testes começaram a ser realizados, os resultados se mostraram favoráveis à mecânica quântica (e à interpretação de Copenhagen), violando as desigualdades. Isso mostra que uma teoria realista não é possível? Não, segundo Wick. Os próprios experimentos envolvem hipóteses às quais não se prestou a devida atenção, mas que podem ser questionadas se desejamos fornecer uma interpretação realista da teoria (cf. p.135-136) e é, segundo Wick, este o caminho que devemos trilhar se quisermos obter uma teoria realista. Além disso, as dificuldades técnicas inerentes a estes experimentos não podem deixar de ser mencionadas. Fica em aberto como esta interpretação deve ser formulada, mas, pelo menos existem razões para se pensar que não estão completamente descartadas.

O livro de Wick ainda contém discussões interessantes, mesmo que breves, de alguns dos principais ‘paradoxos’ da mecânica quântica, como o efeito Zenão quântico, o gato de Schrödinger, o problema da medição, entre outros. Encontramos também uma concisa discussão acerca de algumas interpretações alternativas da mecânica quântica, como a interpretação dos muitos mundos, a lógica quântica e a probabilidade quântica. Como estas propostas não atraem Wick, são discutidas de modo resumido. Em particular, a teoria dos muitos mundos é descartada por ser difícil de aceitar, filosoficamente, que uma pluralidade de mundos que não interagem entre si existe realmente (trata-se de “ficção científica”, segundo Wick, p. 196). As lógicas quânticas, por sua vez, são abandonadas por desistirem de se entender que a validade dos argumentos deve ser independente das circunstâncias e do assunto tratado, e ainda por não prestarem a devida atenção ao aparato de medição (cf. p. 196).

Apesar de tratar de modo bastante claro e acessível vários temas já clássicos na literatura sobre os fundamentos da mecânica quântica e filosofia da física, achamos que o livro de Wick possui alguns pontos fracos. O debate entre Einstein e Bohr, por exemplo, é um tema amplamente estudado, sendo muito discutido entre filósofos da ciência. Sentimos falta, na exposição de Wick, de uma aproximação dos estudos mais recentes que estão sendo feitos sobre o assunto, tanto por especialistas em Einstein quanto em Bohr, que resgatam o debate trazendo-o a uma nova luz. A velha imagem de um Einstein derrotado, levado a trabalhar no isolamento em uma teoria unificadora, e de um Bohr triunfante, dogmático, que impunha seu ponto de vista aos físicos mais jovens que o visitavam no seu Instituto em Copenhague, já foi revista, e não é mais levada tão a sério: há bons argumentos para se mostrar que se trata, na verdade, de uma caricatura.

Assim, por exemplo, o fato de o Princípio de Complementaridade apresentarse tão vago dá margem a diversas interpretações e formulações, várias delas já explorados pelos estudiosos da filosofia de Bohr, algumas mais plausíveis no corpo de sua obra, outras nem tanto. Claro, isto não significa que o princípio em questão tenha deixado de ser controverso ou que deva ser aceito ‘por definição’, mas Wick sequer discute ou menciona o fato de que existem diversas formulações diferentes deste princípio, limitando-se simplesmente a desqualificá-lo como vago e não compreensível. A alegação de Bohr de que somente podemos comunicar resultados de experimentos com a linguagem da física clássica (idéia conhecida como Princípio da Correspondência), e de que este é um requisito para a objetividade dos mesmos, é rapidamente discutida e rejeitada por Wick sem nem ao menos relacioná-la com a complementaridade.

Do mesmo modo, no que diz respeito a Einstein e seu papel no debate, também há uma enorme literatura que surge para fazer justiça à plausibilidade de sua posição e mostrar que há uma interessante filosofia por trás dela. Wick se esquece de mencionar, por exemplo, que o próprio Einstein não ficou satisfeito com o argumento apresentado no artigo EPR (que fora escrito por Podolski) e posteriormente reformulou sua objeção, deixando claro, sem utilizar critérios de realidade e nada deste tipo, qual era seu principal ponto. Todavia, as idéias de Einstein apresentadas nesses artigos não afetaram os desenvolvimentos subseqüentes da mecânica quântica e é duvidoso que alguma vez possam fazê-lo (PAIS, 1995, p. 542). Como enfatiza Howard (HOWARD, 2010), Einstein estava interessado em argumentar a favor da separabilidade de sistemas físicos, ou seja, sistemas físicos separados espaço-temporalmente deveriam contar como sistemas distintos, como distintos indivíduos que podem ser estudados separadamente. Ele continuava trabalhando no assunto ainda depois de 1935. No entanto, ambos, Einstein e Bohr, perceberam que no centro dessas discussões estava o emaranhamento (entanglement), fenômeno que perpassa a mecânica quântica e dá a ela grande parte de seu mistério. Este ponto é pouco explorado por Wick, e renderia mais justiça ao debate conforme ele é entendido atualmente.

Outro ponto que poderia ter sido explorado com mais afinco diz respeito à própria interpretação de Copenhague. Muito se argumenta de que se trata da ortodoxia corrente e de que Bohr é o principal responsável por sua formulação e defesa (e o livro de Wick, como dito, contribui para reforçar esta imagem). Todavia, como foi enfatizado anteriormente, dificilmente encontramos uma formulação precisa do que afinal de contas consiste a interpretação de Copenhagen, de seus princípios e teses fundamentais. Em geral, além do Princípio de Complementaridade de Bohr, ainda está envolvida em sua formulação alguma forma de interpretação do postulado do colapso, na qual os resultados de uma medição passam do reino das probabilidades para um resultado efetivo, ou porque a “natureza faz uma escolha” (como defendia Dirac), ou ainda por força de um observador (como queria Heisenberg). No entanto, o próprio Bohr não aceitava essas interpretações. É claro que Bohr e os físicos que são comumente associados com a interpretação de Copenhague partilhavam de muitos pressupostos e pontos de vista, mas de modo algum podemos dizer que havia uma única interpretação de Copenhagen e que esta fosse defendida por todos aqueles que são usualmente vistos como seus aderentes. Seria interessante que este tipo de discussão fosse apresentada e que Bohr e Heisenberg, apesar de todas suas semelhanças, tivessem seus pontos de vista mais nitidamente distinguidos no que diz respeito à interpretação da mecânica quântica (ver, por exemplo, HOWARD, 2010a e as referências ali contidas).

Em resumo, pode-se dizer que se trata de um livro interessante, útil para se tomar contato com algumas das principais ‘heresias’ no campo da mecânica quântica sem entrar em detalhes técnicos. Algumas vezes, o interesse do autor em defender essas heresias e denegrir a ortodoxia acabam por prejudicar a clareza da exposição (como, por exemplo, no caso da derivação das desigualdades de Bell), principalmente quando se trata de trazer ao leitor do modo mais claro o possível a doutrina de seus adversários, soando um pouco preconceituoso em alguns pontos. Em alguns momentos do livro, as próprias heresias recebem apenas um tratamento superficial, que poderia ser mais aprofundado em um livro como este. Um exemplo desta situação diz respeito à interpretação de Bohm que, apesar de receber bastante destaque no livro, ainda assim não é apresentada com o grau de detalhes suficiente para se propiciar ao leitor uma impressão nítida daquilo que está por trás de seus principais aspectos. Estes, no entanto, são defeitos que podemos relevar, já que existem outros lugares nos quais podemos procurar este tipo de informação e haja visto que, não obstante, o resultado da leitura do livro como um todo é positivo.

Referências

BELL, J. S. “Introduction to the Hidden-variable Question”. In: BELL, J. S., Speakable and Unspeakable in Quantum Mechanics. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 29-39.

HOWARD, D. “Revisiting the Einstein-Bohr Dialogue.” Disponível em http://www.nd.edu/~dhoward1/Revisiting%20the%20Einstein- Bohr%20Dialogue.pdf _________. Who Invented the “Copenhagen Interpretation? A Study in Mythology. Disponível em http://www.nd.edu/~dhoward1/Copenhagen%20 Myth%20A.pdf Jonas Rafael Becker Arenhart – Jaison Schinaider 210 PAIS, A. “Sútil é o senhor…”: a ciência e a vida de Albert Einstein. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

WICK, D. The infamous boundary: seven decades of heresy in quantum physics. New York: Copernicus, 1996.

Jonas Rafael Becker Arenhart – Universidade Federal da Fronteira Sul.

Jaison Schinaider – Universidade Federal de Santa Catarina.

Acessar publicação original

Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness – NOË (D)

NOË, A. Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness. Nova York: Hill and Wang, 2010.Resenha de: HOLLANDA, Gabriel Jucá de. Dissertatio, Pelotas, v.37, 2013.

Cognitive neuroscience is the discipline that merges two influential ideas: 1) The mind is an information-processing engine that builds representations of the world and 2) The brain is the locus of all mental activity. Scientists in this field expect to obtain a comprehensive account of our cognitive capacities through the use of imaging techniques such as PET (positron emission tomography) and fMRI (functional magnetic resonance imaging). The idea is to take advantage of such resources in order to understand how the brain implements mental functions. It is thought that each cognitive ability, understood abstractly or psychologically, has a correlate in neurophysiology. Philosophers of mind tend to be especially interested in the so-called NCCs (neural correlates of consciousness) and their potential to shed light on the nature of conscious phenomena, such as sensory perception and voluntary action. Fortunately for its proponents, among whom one finds many scientifically-minded philosophers, the search for NCCs has led to testable and predictive theories of phenomena such as visual perception, and this seems to vindicate the framework within which the issues are defined and dealt with.

Philosopher Alva Noë, a professor at UC Berkeley, says the whole conception described above is, despite all its apparent success, overhyped. Indeed, he says it is overhyped to the point of being presented to audiences worldwide as a stunning novelty, when it has in fact held educated people in thrall for decades.

In his latest book, Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness, Noë claims mainstream cognitive neuroscience has not and cannot achieve its goals, for it rests on false assumptions, some of which are philosophical in nature (p. 5-7; 98-99). He argues firstly that it is misleading to see biological minds as information processors; secondly (and most importantly), that our minds are not located within our bodies, as the search for NCCs implies. Mental activity is rather a holistic process that extends to the organism’s environment. Higher animals are not intelligent due to the possession of a map that passively and intellectually represents the world. Their consciousness, like most of their mental faculties, interacts dynamically with the world. This brings us to Noë’s main point: People cannot be identified with their brains (p. 24). Brain activity can only give rise to a mind when situated in a biological and cultural context of action and skills. It is high time we gave up the idea that neurological activity per se is sufficient for consciousness, which seems to imply the absurdity of consciousness in a petri dish (p. 12).

So let us look first at the negative arguments Noë advances. Those whose sympathies lie with mainstream cognitive neuroscience might think brain scan technology gives us a clear-cut picture of cognitive activities in the brain. Not quite, says Noë. The definition of a baseline relative to which one can detect neural correlates of cognition is problematic. For starters, the brain is never at rest, and comparing the baseline with the target activity involves the assumption that there are no feedback mechanisms from the latter to the former. Given the fact that there are indeed such loops in certain brain systems, one must not jump to conclusions about brain imaging data (p. 20-22). Furthermore, brain scans cannot at present tell us how metabolic activity relates to the mental goings-on of patients in persistent vegetative state. One might think that reduced brain metabolism explains impaired mental functions in vegetative patients; astonishingly, though, “it would appear that global metabolic levels remain low even after full recovery” (p.18). The upshot is that we ought not to get carried away with alleged discoveries of NCCs by cognitive neuroscientists. It is just not about looking and observing what is going on.

Another point against the identification of conscious phenomena with NCCs has to do with neural plasticity. The view that the mind is a set of dedicated information-processing modules predicts the existence of specialized systems for each sensory modality, and is supported by the apparent discovery of an area that represents faces specifically (p. 110-117).

Nonetheless, Noë mentions (p. 53-56) experiments with ferrets where the animals’ eyes are wired up to brain structures normally used in hearing. If there were something in the visual cortex that made experiences visual, and something else in the auditory parts making experiences auditory, the ferrets would “hear with their eyes” (p. 55). But this is not the case. The ferrets see with their supposed auditory brains. This implies a malleable connection between brain structures and the qualitative character of experiences. For this reason, it is ill-advised to equate a given conscious phenomenon with activity in this or that part of the brain. The structure of the “auditory brain” is not the key here; what explains its role in the experience is its connection to a certain source of information. Moreover, it has been shown that depriving cats of sight during a given period in their infancy destroys their ability to see. Experimental data strongly suggests, then, that “sensory stimulation produces the very connectedness and function that in turn make normal consciousness possible” (p. 49). Here is a good reason for considering the possibility that the visual character of experience is determined by interaction with the environment, and not just by activity in this or that brain structure.

So how does Noë convert the insights above into a theory that actually explains the data? In a nutshell, he claims that perceptual experience happens when organisms apply their mastery of the laws of sensorimotor contingencies (p.47-65). Put another way, conscious beings have subjectivity in virtue of their use of special skills which constitute a kind of non-propositional knowledge. They can skillfully exploit certain potentialities to get information from the environment. Creatures that are capable of seeing, for example, have mastered the lawful dependence relation between their actions and visual input, a relation determined by the character of their visual apparatus. As Noë says, “how things look depends, in subtle and fine-grained ways, on what you do. Approach an object and it looms in your visual field. Now turn away: it leaves your field of view” (p. 60). Furthermore, conscious animals tacitly understand the sensorimotor contingencies determined by visible objects and attributes such as shape, color and size. The visual character of a shape, for example, is the set of all potential distortions that occur when a given object is moved relative to the subject, and vice-versa. Similarly, the sensation of color is determined by the way a surface changes the light when it moves relative to the observer or light sources.

The structure of such changes is lawful, and integrating the activities that rely on knowledge of the relevant laws in planning, reasoning and speech is experiencing color. The remaining sensory modalities are individuated by sets of laws that are unique to each of them. Consider auditory sensorimotor contingencies: eye movements or blinks make no difference to them, whereas head rotations do (when we move our heads towards a sound source, we change the amplitude of the input)1. By the same token, tactile information is not obtained from a viewpoint, and is not dependent on light sources. The relevant transformations depend on contact with the objects, that is, a particular use of our bodies.

Touching allows us to perceive an object’s shape when we have a sense of the movements “allowed by the object’s contours” (p. 61).

What is the brain’s role in all this? According to Noë, the brain is a key element in consciousness because it “coordinates our dealings with the environment” (p. 65). Without an environment to ground such dealings, though, there is no interaction and therefore no experience. Perception is like dancing with a partner; when dancing, one moves this or that way because the partner has made a given movement. Brains are analogously connected to their environment. This implies the falsity of the neuroscientific account of a brain that generates consciousness through representational activity alone.

Indeed, it is misleading to see the mind as a set of representations. The world is its own model; we do not need a map of it inside our heads because the environment is accessible to those that have the sensory motor skills described above (p. 141). This claim is supported by change blindness data.

The relevant experiments show that we fail to perceive major changes in our visual environment when not attending to the fleeting elements themselves.

Noë concludes that “it is untrue that we enjoy detailed, stable internal depictions of the external world” (p. 142). Consequently, the search for NCCs pursued by cognitive neuroscientists is futile. The target representations are simply not there! It is about time we realized that instead of neural representations doing the job on their own, “it is the world itself, all around, that fixes the character of conscious experience” (p. 142).

Unfortunately, there are some gaps in Noë’s case on Out of our heads.

Those familiar with his earlier work2 will probably notice Noë fails to mention how his view can unify a range of phenomena from blindsight to visual agnosia to color vision (although prosthetic perception and perceptual stability are mentioned). This is a rather curious omission, since discussing the phenomena above would considerably strengthen the case for a sensorimotor approach.

Further weaknesses can be found in the negative arguments against the mainstream view. It is certainly interesting to learn about the shortcomings of brain scanning techniques, but is it not premature to criticize neuroscience for not being able to see directly what is going on? Science, after all, does not necessarily depend on direct observations. Cognitive neuroscientists can complement brain imaging evidence with new predictions, and this has been done3. Another weakness on the book is Noë’s portrayal of neuroscience as a science of picture-like representations (p. 140). The mainstream view does not need mental snapshots. It can use vector coding, for example, to explain representation in a more abstract way4. Some philosophers sympathetic to the mainstream view are also aware that mental activity needs a wider environment that provides a context. Christopher Hill’s account, for example, claims that representational content is determined by interaction with the environment in an evolutionary context.5 This means he is quite ready to concede that it is impossible to have consciousness in a petri dish (there is no straightforward supervenience of mental properties on neurological goings-on), while holding a view where internal representations are key.

What is the main lesson to be drawn here? The main point in favor of Noë’s view (as expressed in Out of our heads) is its concern with problems that are internal to the relevant science, but relevant to philosophy at the same time.

Notions such as qualia and zombies have often been used in a way that is hardly constructive; it is arguably futile to look for a positive role they can play in formulating theories. Noë manages to present an intriguing alternative to the mainstream theory that is built with materials outside the box of metaphysical thought experiments, qualia and zombies. The coming battle between mainstream neuroscience and the sensorimotor approach will be a rather interesting one.

Notas

1 See A sensorimotor account of vision and visual consciousness (O’REGAN e NOË 2001), p. 941.

2 See, for example, O’REGAN & NOË, 2001.

3 DEHAENE & NACACCHE, 2001, p. 18-22.

4 CHURCHLAND 2002, p. 290-302.

5 HILL, 2009, p. 148-153.

Referências

CHURCHLAND, P. S. Brain-wise: studies in neurophilosophy. Cambridge, MA: MIT Press, 2002.

DEHAENE, S. & NACCACHE, L. “Towards a cognitive science of consciousness: basic evidence and a workspace framework”. In: DEHAENE, S. The cognitive neuroscience of consciousness. Cambridge, MA: MIT Press, 2001.

HILL, C. S. Consciousness. Nova York: Cambridge University Press, 2009.

NOË, A. Out of our heads: why you are not your brain, and other lessons from the biology of consciousness. Nova York: Hill and Wang, 2010.

O’REGAN, K. & NOË, A. “A sensorimotor account of vision and visual consciousness”. In: Behavioral and Brain Sciences (2001) 24:5, p. 939-1031

Gabriel Jucá de Hollanda – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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Stufen des Wir Gemeinschaft als Basis personalen Handelns – SEDDONE (D)

SEDDONE, G. Stufen des Wir – Gemeinschaft als Basis personalen Handelns. Frankfurt am Main, Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Oxford, Wien: Ed. Peter Lang, 2011. Resenha de:  COSTA, Danilo Vaz- Curado R. M. Níveis de nós- a comunidade como base da ação pessoal. Dissertatio, Pelotas, v.37, 2013.

No livro Níveis do Nós, Guido Seddone estabelece uma intrigante pesquisa para descortinar as diversas etapas de constituição da problemática da ação centrada na prioridade da perspectiva social e não no reducionismo do eu agente, já assumindo de entrada que é o social e não a estrutura transcendental do eu a base e o pressuposto da compreensão da cognição humana e da ação1.

Para Seddone (p. 9) a proposta de um projeto que vise reconstruir os níveis ou etapas do nós fincado na comunidade como base da ação pessoal, deve primeiramente levar em consideração as já diversas tentativas levadas a cabo por autores como Hegel e a perspectiva, por ele desenvolvida, do “eu que é um nós e do nós que é um eu” (Ich, das Wir, und Wir, das Ich ist), Heidegger e seu “nós despedaçado” (das zerbrochene Wir), assim como filósofos contemporâneos tais como Robert Brandom e sua postura do “Dizer Nós” (das Wir sagen), Sellars, Searle, Tomasello e Tuomela e suas distintas perspectivas acerca da função normativa do nós, como a “intencionalidade do nós” (Wir-Intentionalität), a “autoridade do nós” (Autorität des Wir), entre outras.

Em última instância a introdução da obra nos lega a tese de que a proposta de Sedonne é a afirmação de que a natureza social do homem e da irredutibilidade da ação social tem de ser respondida em consonância com a pergunta, de corte kantiano, sobre o que é o homem? No seio da tentativa reconstrutiva proposta por Guido Seddone o leitor deve estar atento para assumir a importante advertência de Sedonne que tanto a ação social como a pergunta pelo homem, não resultam de uma justaposição mecânica ou de tipo numérico-quantitativo, pois, para o autor2, o indivíduo deve tanto ser considerado no contexto das relações interpessoais, como é preciso reconhecer que há uma autoridade do social na qual o eu se determina.

Nesta perspectiva, o Nós não é reduzido a uma mera soma de indivíduos ou ao grupo no qual um agente se insere, mas sim é algo do qual o eu não pode fugir totalmente. Claro que uma tese tal como a defendida no presente livro que se resenha tem de deparar-se com a crítica das teorias mentalistas e a perspectiva cartesiana e se colocar para além delas no nível de uma base prática capaz de relacionar cognição, linguagem e conhecimento3.

Para a consecução do seu desiderato, Sedonne divide sua obra em uma introdução e 04 (quatro) capítulos respectivamente intitulados, numa tradução livre, de: 1. Linguagem, contexto e intersubjetividade; 2. Hegel e a filosofia do nós; 3. A Ação do Nós no agente já formado; e 4. Formação das competências pessoais desde uma estrutura profunda do nós.

Seguiremos a tessitura da obra de modo a buscar apresentar as linhas gerais que guiam os capítulos oportunizando ao leitor o percurso descritivo e reflexivo desenvolvido pelo autor.

1 – Linguagem, contexto e intersubjetividade

No primeiro capítulo4, Seddone busca demonstrar as bases para como uma Filosofia do nós pode tornar-se capaz de conquistar as competências cognitivas e lingüísticas hábeis aos contextos intersubjetivos. Neste intento, o primeiro ponto a ser superado é a tendência moderna de constituição do mental que ancora numa perspectiva individualista.

A proposta é mostrar os índices já presentes na contemporaneidade que apontam para a superação tanto do individualismo cognitivo como o que lhe é pressuposto, o individualismo metodológico.

Para a reconstrução e crítica da perspectiva metodológica e cognitiva centrado no indivíduo o autor remonta do empirismo lógico até o segundo Wittgenstein, apoiando-se na virada lingüística como prenúncio de que as competências lingüísticas esgotam uma ancoragem da compreensão do mental desde uma perspectiva individual.

Na continuidade do primeiro capítulo o autor serve-se das contribuições de Richard Rorty, especialmente as desenvolvidas em Filosofia e o espelho da natureza, e Robert Brandom, em seu monumental, Making it Explicit, para alicerçar sua tese da prioridade do Nós sobre o eu e a inconsistência5 de uma teoria do mental ancorada na perspectiva metodológica do eu.

2 – Hegel e a filosofia do nós

No segundo capítulo intitulado Hegel e a filosofia do nós (Hegel und die Philosophie des Wir)6, toda a problemática de apresentação da filosofia hegeliana7, enquanto percussora da socialidade como base das competências explicitadoras da ação, assenta-se na perspectiva de tomar o sujeito como estando sempre referido em relações reciprocamente universais, logo, intersubjetivas.

Um tal ponto de partida implica assumir que o nós é a atividade da unidade intencional do indivíduo no seio mesmo dos seus contextos de efetivação e em tensão com a tradição, formas de vida e a práxis.

Seddone (p. 45) em defesa de sua tese de uma socialidade do nós afirma que a proposição especulativa de Hegel é a retomada e desenvolvimento do juízo reflexivo kantiano e que esta assunção de Kant por Hegel é a base da compreensão de sua tese acerca do Espírito (Geist).

O eu como Espírito8 é a tese forte de partida de Seddone neste capítulo. Segundo o autor, a constituição do espírito dá-se na irredutibilidade do movimento histórico do Selbst, da relação entre pluralidade e unidade, eu e nós, e que sem a experiência da pluralidade o eu não pode se constituir.

O projeto da Fenomenologia do Espírito de assumir a totalidade das configurações históricas como médium capaz de explicitação do eu sempre em contextos práticos de interação suprassubjetivos é segundo Seddone9 a afirmação de que o eu apenas pode se reconhecer enquanto tal como parte do todo, em outros termos, para Seddone, Hegel afirma a irredutibilidade do eu a processos monológicos de constituição.

Para a explicitação da irredutibilidade do Selbst a processos de constituição monológica, Seddone (p. 55 e segs) desenvolve em toda a sua potencialidade a teoria do reconhecimento presente na Fenomenologia hegeliana e a amplia à Filosofia do Direito, colocando-se como problema central o processo de estranhamento (Entfremdung) e sua relação com a reconciliação (Versöhnung).

Neste percurso emerge a tese central da filosofia hegeliana do eu que é um nós e do nós que é um eu, em outros termos e na perspectiva da reconciliação, tal como desenvolvida por Hegel de que o eu apenas pode reconhecer-se como parte do Todo.

Neste contexto de interpretação, a filosofia hegeliana desenvolve a exposição do desenvolvimento da subjetividade no seio mesmo da pergunta pelo Nós, colocando assim as condições reais de tematização da intersubjetividade10 como pré-condição da subjetividade, da anterioridade do Nós sobre o Eu.

Na perspectiva aqui desenvolvida, Hegel já desenvolve as bases do que se pode designar pela comunidade da ação enquanto base para explicitação do sujeito cognoscente.

E é desde esta perspectiva hegeliana da compreensão especulativa da relação entre o eu e o nós, o indivíduo e a comunidade, capaz de esclarecer os pressupostos que orientam lógicas institucionais nas quais o sujeito é coerentemente compreendido à luz de uma identidade autônoma, mas não dualista ou solipsista, que Hegel se coloca como fonte perene na reflexão de Seddone11.

3A ação do Nós no agente já formado

O núcleo duro do capítulo concentra-se na tese de Robert Brandom, tal como exposta no primeiro capítulo de Making it Explicit e que pode se resumir na expressão Saying We, na tradução do autor para o alemão Das Wir-Sagen, que em português optamos por traduzir em o Dizer o Nós, que se caracteriza por demarcar o ato especificamente humano de expressão afirmativa do eu não na perspectiva da afirmação do mental por oposição ao não-mental, mas da primalidade do nexo comunitário como fonte das enunciações que explicitam o eu.

Afirmar e Dizer o nós implica delimitar o especificamente humano daquilo que não é humano, por uma distinção de primeira pessoa que tem por nota específica as várias comunidades nas quais os agentes são reciprocamente não delimitados pela individualidade epistemologicamente deslocada.

Este modo de compreensão assentado na primeira pessoa do plural, o nós, permite a conjugação dos aspectos pragmáticos12 e semânticos, pois as ações devem ser tomadas tanto como práticas sociais, assim como enquanto práticas lingüísticas.

A força da tese de Seddone é que ele prioriza um discurso centrado na primeira pessoa, todavia, a do plural como condição de expressão daquela do singular, por oposição a grande parte da tradição filosófica que partindo da primeira pessoa do singular atingia a primeira pessoa do plural.

O nexo desta relação se condensa na perspectiva de que o pragmatismo se interessa pelas regras que se estruturam no seio mesmo das práticas comunitárias e o aspecto semântico se foca no potencial normativo dos conceitos em explicitar estas mesmas práticas no jogo mesmo de dar e pedir razões.

Esta união entre pragmatismo e semântica autoriza no seio das práticas comunitárias a que cada membro seja obrigado a justificar as suas reivindicações e as suas ações, as quais por sua vez, determinam a natureza do pensamento, cuja validade se faz verificar no espaço da práxis intersubjetiva13.

Seddone neste capítulo esforça-se e com êxito na empreitada de exprimir a novidade do Wir-Sagen que é a articulação da pragmática normativa, da semântica inferencial e dos empenhos discursivos, momentos os quais são centrais para a compreensão do projeto de Brandom em Making it Explicit de  um Saying We, onde o Dizer o Nós rompe a barreira do prescritivo, inaugurando uma tensão na qual um estado intencional se identifica com um normativo, ou seja, o propósito se expressa na e mediante a ação.

No conjunto da filosofia de Brandom, Seddone acentua um aspecto importante e que lhe é fundamental na sua tese da delimitação das etapas do nós, que é a conclusão de que não é de uma propriedade natural do pensamento, uma espécie de a priori, que permite as normas explicitarem o sentido da ação, mas é do próprio caráter institucional da práxis14.

Importa ainda o acentuar que esta ideia não é um privilégio de Brandom mas a retomada de uma antiga tematização de Sellars em Empirismo e filosofia da mente no seio de uma perspectiva intersubjetiva do pensamento.

A proposta de Sedonne15 assume que o nós tal como desenvolvido no texto implica que os membros estejam reciprocamente obrigados a realizarem determinadas ações para atingir certos fins e determinados objetivos.

Uma tal obrigação ou dever posto pela perspectiva da primeira pessoa do plural – o nós – não resulta de um acordo ou união, mas do reconhecimento a autoridade dos grupos e da comunidade sobre a perspectiva particular.

O grupo e ou a comunidade é a modo através do qual e mediante a cooperação dos membros, as tarefas, deveres e direitos são institucionalizados, onde a prioridade do nós demarca o campo do eu.

Seddone assume o ponto de vista de que sempre os indivíduos estão em perspectiva relacional, sejam dos indivíduos entre si, sejam de suas intenções ou mesmo de seus usos. Tal ponto de vista já pode ser visualizado em Wittgenstein, mas é através de Raimo Tuomela que tal tese ganha força e é através dele que Seddone se nutre.

Em Raimo Tuomela16 ocorre uma extensão da tese de Sellars acerca da prioridade da comunidade sobre o indivíduo que ancorava na perspectiva da linguagem e agora se amplifica no sentido de que também as intenções são co-participadas antes de serem capazes de explicitação.

A posição do Wir-Sagen não se estrutura na perspectiva de um modo de dizer o nós que tem por substrato um sujeito ontológico, mas um sujeito intencional17. Ao modo de uma simples atitude que pode descrever os sujeitos particulares, mas não pode esclarecer de que modo o Nós é constitutiva para o eu18.

E é tal limitação da perspectiva do We-intentionality que incita a Guido Sedonne à passagem ao próximo capítulo da obra, através de uma reconstrução ontológica do nós19.

4 – Formação das competências pessoais desde uma estrutura profunda do nós.

O presente capítulo inicia com a pergunta pela originariedade do nós e de sua natureza pré-reflexiva. E para tanto, Sedonne aduz que a harmonia não é a condição nem necessária, nem suficiente para uma análise do nós. Se o nós é tratado como a estrutura profunda da ação, por exemplo, como unidade original e intencionalmente constitutiva, é necessário, compreender a complexidade da ação partilhada.

Para se atingir a compreensão de uma estrutura pré-reflexiva do nós Sedonne aglutina à sua pesquisa a postura fenomenológica heideggeriana de Ser e Tempo ancorada no Miteinanderseins, ou, ser-com-o-outro.

O ingresso do Miteinanderseins se dá na medida em que tal conceito é pré-flexivo, pois não se configura nem como uma autorreferência cognitiva e, nem tampouco reflexiva, além de não ser ou estar desde já pré-determinada.

Interessante é que no intento de delimitar a estrutura profunda do nós, Seddone após se utilizar do conceito fenomenológico do Miteinanderseins de Heidegger, retoma a pesquisa de Hegel e se pergunta pelos conteúdos práticos e a problema da formação em Hegel .

O pensador idealista alemão é retomado, pois, para Seddone, é deveras importante a posição assumida por Hegel de que a verdade repousa no todo. Tal asserção é interpretada por ele no contexto de que toda a filosofia hegeliana é um projeto de explicação da multiplicidade dos fenômenos assumindo que a compreensão do todo (Das Ganze) é o único modo da compreensão da parte.

Tal postura repropõe a questão da normatividade fazendo a mesma sair da perspectiva kantiana de uma espontaneidade da razão, deslocando-se para o reconhecimento do jogo de dar e pedir razões, lingüístico, intencional e por isto social.

De Hegel à Wittgenstein, eis o percurso que Seddone constitui. Tal mudança de rumo se põe na medida mesmo em que Wittgenstein permite reconstruir a comunidade a partir dos jogos de linguagem e numa perspectiva prática e intersubjetivista.

Com Wittgenstein, Seddone transita de uma perspectiva meramente semântica, na qual o sujeito e sua interação com a linguagem se davam desde a perspectiva de um sujeito observado que era capaz de descrever o mundo, para uma outra, na qual o sujeito é parte dos jogos lingüísticos, que o mesmo já os encontrou operante por trabalho da tradição, e na qual o indivíduo enquanto membro é obrigado a interagir como sujeito que dá e pede razões, responsabilizando-se, gerando compromissos e assumindo responsabilidades.

Para Seddone, após as contribuições de Heidegger20, Hegel21 e Wittgenstein22 é fácil concluir que é a ontologia social o último nível de uma filosofia do Nós. Poder dizer e saber como membro de uma comunidade, ou “a pertença a um Nós é, por conseguinte o resultado de fenômenos complexos que não podem ser explicados pela mera aplicação do princípio da concordância e pelas teorias da promessa ou das obrigações”23.

A ontologia social como último nível do nós se pauta, para Seddone, ante o fato de que esta capacidade que nós temos de designar a Wir- Intentionalität realiza-se como pertença ontológica a determinadas formas da práxis que constituem a matriz de nossas razões subjacentes, por exemplo, de nossa exposição enquanto ser-com-os-outros24.

À guisa de conclusão

O livro de Guido Seddone coloca-se numa perspectiva inovadora e extremamente ousada, pois tem como alvo de sua pesquisa a busca das capacidades humanas para a compreensão da ação desde a perspectiva da anterioridade de uma pertença centrada no nós.

O nós enquanto estrutura profunda da práxis demonstra, na obra de Seddone, que a experiência, a eticidade e a relação cognitiva são coisas que não se reduzem a perspectivas ou padrões conceituais ancorados em noções individualísticas, pois o indivíduo apenas o é por lhe ser antes dado desde formas de ações comunitárias, intencionais e práticas.

A obra que se resenha com certeza se colocará ao lado dos textos obrigatórios para a compreensão da ação humana em contextos complexos.

Notas

1 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. No original “Diese Arbeit versucht, das Soziale als Voraussetzung der menschlichen Kognition und daher allen Handelns zu erläutern”.

2 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 10. “Dieser Arbeit verteidigt nicht nur de Idee, dass das Individuum im Kontext seiner zwischenmenschlichen Umgebung zu betrachten ist, sondern auch jene, dass es einer primitive Autorität des Sozialen gibt, durch dia das Ich bestimmt wird. In dieser Weise ist das Wir keine blosse Summe von Individuen und auch nicht die Gruppe der Mitmenschen zusammen mit mir, sondern es ist eher etwas, dem sich das Ich nicht völlig entziehen kann”.

3 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. “Eine solche Rekonstruktion erfordert, über die typischen individualistischen Aspekte der Theorien des Mentalen Hinauszugehen. Der cartesianische Ansatz versucht, die Erfahrung auf angeborene und individuelle Fähigkeiten zurück zu beziehen. Aber damit vernachlässigt er, dass sich Kognition, Sprache und Erkenntnis auf eine praktische Basis stützen.”

4 SPRACHE, Kontext und Intersubjektivität, p. 21-42.

5 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 15. No original: “Eine Philosophie des Wir erkennt hingegen, dass der Erwerb kognitiver und sprachlicher Fähigkeiten nur durch die Teilnahme an praktischen und intersubjektiven Kontexten möglich ist. Deswegen ist die Idee, dass der mensch angeborene kognitive Fähigkeiten besitz, durch eine Revision der individualistischen Auffassungen der Kognition zu überwinden”.

6 O capítulo estende-se da página 43 até a página 82.

7 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46. No original: “In unserem Projekt einer Philosophie des Wir spielt die Philosophie Hegels eine wichtige Rolle, da er die Vernunft und das Normative als Tatsachen erklärt, die auf Interaktion basieren”.

8 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46. No original: “Er beschreibt daher die Auseinendersetzung unter Subjekten, deren Verhältnisse eine Wir-Struktur der Erfahrung und des Handelns darstellen”.

9 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 46, defende esta tese através de todo o subcapítulo “Fenomenologia do Espírito e a formação prática do Conceito através da interação” (Phänomenologie des Geistes und die praktische Bildung des Begriffs durch die Interaktion).

10 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 80: “Hegels Philosophie im Rahmen der Frage nach dem Wir stellt eine interessante Analyse der Entwicklung der Subjektivität in Richtung der Intersubjektivität durch den Erwerb sowohl der Sitten als auch der Pflichten dar”.

11 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 81: “Dennoch bleibt Hegel für unser Thema zentral, da sein spekulativer Ansatz zum Verhältnis zwischen Ich und Wir bzw. Individuum und Gemeinschaft vieles über die Logik der Gruppen erklärt und weil er als Erster dem allgemeinen Willen eine kohärente und selbständige Identität gibt”.

12 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Für eine Philosophie des Wir ist daher die Idee der Pragmatisten wichtig, nach der die Wahrheit eine gerechfertige Überzeugung und due Rechtfertigung nur in einer öffentlichen und normativen Dimension möglich sei”.

13 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Jedes mitglied ist verpflichtet, seine Behauptungen und seine Handlungen zu rechtfertigen, und dies wiederum bestimmt die Natur des Denkes, dessen Gültigkeit im Bereich der intersubjetiven Praxen überprüft wird”.

14 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 87: “Die Normen bekommen ihren Status nicht von einer natürlichen Eigenschaft des Überlegens, sondern vom institutionellen Charakter der Praxen, welche seitens der Teilnehmer bestimmte Pflichten forden”.

15 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 101: “Im Wir-Modus sind die Mitglieder gegenseitig verpflichtet, bestimmte Handlungen auszuführen und bestimmte Ziele zu erreichen. Diese Verpflichtung ist nicht das Ergebnis einer Vereinbarung, sondern der Anerkennung der Autorität, die Gruppe gegenüber den Einzeln ausübt”.

16 Sedonne cita abundantemente Raimo Tuomela, The philosophy of sociality, 2002.

17 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 103: “Es ist eher ein intentionales und nicht ontologisches Subjekt, das durch den Wir-Modus entsteht”.

18 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 103: “Aber der Wir-Modus, der eine Blosses Haltung ist, die den einzelnen Subjekten zugeschrieben werden kann, kann nicht erklären, auf welche Weise das Wir konstitutiv gegenüber dem Ich ist”.

19 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 106: “Deswegen erfordert das Wir eine ontologische Rekonstruktion, die das Thema des nächsten und letzten Kapitels ist”.

20 Com estrutura pré-reflexiva do Miteinanderseins e sua teoria das formas de vida contra a perspectiva solipsista.

21 E sua tese da verdade como o todo e a prioridade da reciprocidade do social sobre o individual.

22 E os avanços postos pelas perspectivas do pragmatismo lógico do seguir um regra, da reconstrução da comunidade e do significado de regra.

23 SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 148: “Die Zugehörigkeit zu einem Wir ist folglich das Ergebnis von komplexen Phänomenen, welche nicht durch die blosse Anwendung des Prinzips des Einklangs und in den Theorien des Versprechens oder der Verpflichtung erläutert werden können”.

24 Cf. SEDONNE, G., Stufen des Wir, p. 149.

Referências

SEDDONE, G. Stufen des Wir – Gemeinschaft als Basis personalen Handelns. Frankfurt am Main: Ed. Peter Lang, 2011. (Philosophie und Geschichte der Wissenschaften – Studien und Quellen)

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – Universidade Católica de Pernambuco

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Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar – SPINOZA (CE)

SPINOZA, B. de. Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. Resenha de: ROCHA, Mauricio. Notícia da edição brasileira do Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar, de B. de Spinoza. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 28, 2013.

Esta tradução do Breve Tratado é a primeira em “português- brasileiro” e a primeira em português tout court do Korte Verhandeling van God, de Mensch en deszelfs Welstand. É outro feito editorial que assinala o impulso crescente das atividades de estudos sobre Spinoza no Brasil, e que se fortaleceu após a tradução da Ética por Tomaz Tadeu, em 2007 e das versões brasileiras das traduções de Diogo Pires Aurélio feitas em Portugal (Tratado Teológico-Político, 2003 e Tratado Político, 2009). Cabe assinalar a necessidade de “versões” do português para o “brasileiro”, pois ainda que ambas sejam as “últimas flores do Lácio”, por vezes são notáveis as diferenças entre a matriz ibérica e as transformações impostas pelo esplendor tropical ao idioma de Camões e Fernando Pessoa.

A presente edição é mais um volume da Série Espinosana, que integra a coleção de Filosofia da Editora Autêntica (que já publicou a obra de Chantal Jaquet, A unidade do corpo e da mente – Afetos, ações e paixões em Espinosa, e lançará outros títulos sobre o filósofo). Esta versão do Breve Tratado é de responsabilidade de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Luis César Guimarães Oliva (tradução e notas) e Ericka Itokazu (que escreve a introdução com Emanuel Fragoso), e conta ainda com um prefácio de Marilena Chaui. E não por acaso. O primeiro é editor da revista Conatus, que desde 2007 reúne estudos sobre o filósofo, e os dois últimos constituem o Grupo de Estudos Espinosanos da USP, coordenado por M. Chaui, que dispensa apresentações.

Esta última brinda o leitor com o relato das aventuras do célebre “manuscrito da Ética em holandês”, como teria sido apresentado pelo filho do livreiro Rieuwertsz aos viajantes germânicos Stolle e Halmann em 1703, naquele episódio que dá início a uma trama que em tudo se assemelha à ficção, não fosse verdadeira. Como se sabe, a trama enreda vários  personagens  (Rieuwertsz-Stolle-Halmann;  Boehmer-Muller- Monnikhoff; Van Vloten-Bogaers; Monnikhoff-Van der Linden-Deurhoff etc.) durante um século e meio (1703-1865), sempre em torno do primeiro manuscrito – e de um segundo manuscrito, encontrado em 1851, também em holandês, que acrescentará mais enigmas ao enredo: as duas caligrafias dos manuscritos holandeses, as notas à margem, a indagação sobre um manuscrito original em latim extraviado, a autoria da tradução do original latino para o holandês.

Enigmas que o trabalho de Filippo Mignini ajudou a desfazer em parte, com sua edição crítica do KV em 1986. Conforme Mignini, o Breve Tratado expõe as ideias do jovem filósofo (por volta de 1660) sobre metafísica e ética, por solicitação de amigos e discípulos. Ele teria sido composto em latim e traduzido para o holandês (por tradutor ainda incerto) e teria recebido acréscimos posteriores à primeira redação (os diálogos, as notas, as referências internas etc.). E a edição brasileira segue de perto o trabalho incontornável de Mignini, um dos responsáveis pelo estabelecimento do texto, traduzido por Joël Ganault, que consta do volume Premiers écrits das Oeuvres editadas sob a direção de Pierre-François Moreau a partir de 1999.

Na introdução, os tradutores e editores brasileiros retomam o histórico da obra, sua descoberta, a polêmica sobre seu estatuto e lugar na evolução do pensamento de Spinoza e as conclusões, atualmente estabelecidas, sobre a autenticidade do KV e a autoria pelo filósofo polidor de lentes. A tradução acompanha a edição crítica de Mignini, mas recorreu à versão de Paul Janet (1878) e à inglesa de A. Wolf (de 1910, baseada em Sigwart, 1870). Além dessas, da outra versão em língua neolatina disponível, a espanhola de Atilano Dominguez (1990), são extraídas algumas lições sobre o estabelecimento e a divisão do texto em parágrafos (em particular no Capítulo XIX da Parte II do KV) – opções justificadas pela clareza e menor redundância.

Consta ainda da edição o Breve Compêndio (Korte Schetz) elaborado por Monnikhoff, a partir do original holandês encontrado por Boehmer tal como publicado na edição de Mignini em 1986, confrontado com a edição de Carl Gebhardt e cotejado com as versões de Atilano Domingues, Charles Appuhn, Madeleine Francês, e a mais recente de Mignini-Ganault. A edição brasileira contém uma extensa bibliografia e um glossário português-holandês da tradução.

Referências

SPINOZA, B. de. Breve tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva.

Mauricio Rocha – Professor do Departamento de Direito da PUC Rio. Coordenador do círculo de leitura Spinoza & a filosofia (Rio de Janeiro).

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Das recht der freiheit – HONNETH (NE-C)

HONNETH, Axel. Das recht der freiheit. Berlim: Suhrkamp, 2011. Resenha de: PINZANI, Alessandro. O valor da liberdade na sociedade contemporânea. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.94, Nov, 2012.

Das Recht der Freiheit [O direito da liberdade], o livro mais recente de Axel Honneth representa, por um lado, a tentativa mais sistemática de organizar sua teoria, que – como se sabe – tem seu centro no conceito de reconhecimento, e, por outro, a tentativa de atualizar o pensamento hegeliano1. É necessário considerar este último objetivo para melhor entender os alcances e os limites do primeiro. Em geral, tem-se a impressão de que o autor, ao seguir de perto a estrutura da Filosofia do direito de Hegel, coloca sua própria teoria em um corpete rígido e justo demais. A proximidade com Hegel parece mais evidente na segunda parte do livro, a mais propriamente sistemática, que é estruturada de forma tripartida e segue de perto a estrutura da seção “Eticidade” da Filosofia do direito. À parte sobre família do texto hegeliano corresponde, no texto de Honneth, a parte sobre relações pessoais; àquela sobre sociedade civil corresponde a parte sobre o mercado; finalmente, à parte sobre o Estado corresponde a parte sobre o Estado democrático. Não se trata de meras analogias formais, já que a pretensão é atualizar o pensamento hegeliano, livrando-o da sobrecarga metafísica2.

Contra a perspectiva normativa que busca seu ponto de partida em normas, princípios ou procedimentos ideais, e não na empiria e na descrição de sociedades concretas – perspectiva que caracteriza a maioria das teorias da justiça contemporâneas (John Rawls, Ronald Dworkin, etc.) -, Honneth defende uma perspectiva “hegeliana”, que dê relevância central aos acontecimentos históricos e à interpretação deles nos termos do que o autor chama de reconstrução normativa, ou seja

[…] um procedimento que tenta traduzir para o plano da teoria social as intenções normativas de uma teoria da justiça, tomando como fio condutor, para selecionar e elaborar o material empírico, valores justificados de forma imanente [à própria sociedade]: as instituições e práticas existentes são analisadas e apresentadas em relação às suas prestações normativas e na ordem pela qual se tornam significativas para a encarnação e realização dos valores socialmente legitimados3.

A análise das instituições e práticas sociais existentes é, portanto, ao mesmo tempo, uma avaliação com base em sua capacidade de realizar os valores próprios da sua sociedade (e não de outra). Ora, isso levanta um problema metodológico importante, já que a análise histórica de Honneth não é acompanhada, como acontece em Hegel, por uma visão metafísico-racionalista que vê na história das instituições o caminho do Espírito, isto é, um progresso constante, ainda que descontínuo. A renúncia a tal visão abre a possibilidade de que a história não consista em um progresso, mas possa resultar em regressos e recaídas na irracionalidade e na barbárie.

Honneth, contudo, não parece disposto a aceitar completamente essa conclusão, que tornaria questionável a própria noção de uma reconstrução normativa. Portanto, ao longo do livro, descreve os fenômenos históricos, que lhe servem como base para sua reconstrução normativa, como se constituíssem um caminho fundamentalmente progressivo e positivo. Embora reconheça a existência de patologias sociais e de desenvolvimentos errados [Fehlentwicklungen], termina seu livro expressando a esperança (ainda que não a certeza, como o faria Hegel) de que é possível que surja uma “cultura europeia de cuidados compartilhados e de solidariedades ampliadas”4.

Na leitura de Honneth, os valores legítimos característicos das sociedades liberal-democráticas modernas “se fundiram em um único, a saber, na liberdade individual nos seus sentidos plurais que conhecemos”5, não porque a liberdade represente em si um valor superior aos outros, mas porque a própria sociedade moderna ocidental lhe atribui esse valor superior. Neste sentido, Honneth se serve do conceito de justiça a partir de uma perspectiva sociológica e não abstratamente normativa: trata-se de considerar o que uma determinada sociedade considera justo. Portanto, é possível analisar as diferentes esferas que formam nossa sociedade (relações íntimas, mercado e Estado democrático) com base em como e quanto realizam a liberdade individual6. Na leitura de Honneth, todas as lutas por reconhecimento social “escreveram em seus estandartes o lema da liberdade individual”. Mais do que isso: na modernidade “a exigência de justiça pode ser legitimada publicamente somente se faz referência, de uma maneira ou de outra, à liberdade individual”7.

A centralidade da liberdade individual não implica, contudo, a assunção de um paradigma, tipicamente liberal, de individualismo ontológico ou metodológico: Honneth não parte da ideia de que os indivíduos representam um prius ontológico, isto é, que existem anterior e independentemente do seu contexto social; tampouco faz do indivíduo o juiz último da legitimidade das instituições sociais, como na tradição liberal8. Seu conceito de liberdade individual não desconsidera o fato de que o indivíduo está desde sempre inserido em um contexto social caracterizado pela existência de instituições e práticas sociais legítimas.

Hegel tinha dividido sua Filosofia do direito em três partes, dedicadas respectivamente ao direito abstrato, à moralidade e à eticidade. Honneth identifica três diferentes sentidos de liberdade que, grosso modo, correspondem à tripartição hegeliana: a liberdade negativa ou jurídica, a liberdade reflexiva ou moral e a liberdade social9.

A liberdade jurídica está ligada à existência de um sistema de direitos subjetivos, surgido na modernidade por um processo paulatino. Honneth reconhece que inicialmente os direitos subjetivos tiveram primariamente caráter econômico, com o primado do direito à propriedade – primado não somente prático, mas também teórico (de Locke ao próprio Hegel tal direito recebe um lugar de primazia nas relações dos indivíduos entre si e com a comunidade). Contudo, ao longo do tempo, os direitos subjetivos acabaram criando um espaço de proteção do indivíduo, que lhe permite desenvolver autonomamente seu plano de vida independentemente das concepções e dos valores socialmente dominantes. Os direitos subjetivos constituem uma esfera privada, à qual o indivíduo pode retirar-se, subtraindo-se às obrigações comunicativas ligadas à exigência de justificar escolhas de vida e valores individuais10.

Mas na liberdade jurídica estaria presente o risco de uma patologia social: a total identificação, pelos indivíduos, de sua liberdade com a liberdade jurídica, isto é, com seus direitos negativos e que, portanto, tais direitos acabem sendo os elementos constitutivos do plano de vida de seus titulares. Assim, os sujeitos tendem a “retirar-se na gaiola de seus direitos subjetivos e a pôr-se perante os outros exclusivamente como pessoas jurídicas”, demandando a resolução de todos os seus conflitos unicamente aos tribunais. A pessoa se reduz assim à “soma de suas pretensões jurídicas”11, fechando-se ao fluxo comunicativo que a une às outras pessoas12. Os direitos são usados, portanto, como uma barreira às exigências de justificação que provêm dos outros indivíduos.

O segundo tipo de liberdade, a liberdade moral, coincide com aquilo que na tradição filosófica foi definido como “autonomia moral”, e consiste basicamente na capacidade de pôr em questão normas, exigências ou instituições socialmente válidas com base em razões universais, isto é, com base em argumentos que poderiam encontrar o consenso de todos os envolvidos (manifesta-se aqui a influência da teoria do discurso de Habermas). Em outras palavras, cada indivíduo é livre para questionar as exigências morais que a sociedade lhe impõe, contanto que desde um ponto de vista universal. Neste sentido (como salientava Hegel em sua crítica a Kant), essa liberdade toma uma forma negativa: é a liberdade de rechaçar normas ou instituições sociais que não superem o teste de universalização (isto é, que se fundam sobre argumentos que não podem encontrar o consenso dos envolvidos). Isso implica que – contrariamente ao que acontece no caso da liberdade jurídica – os sujeitos estão dispostos, se necessário, a justificar suas ações e suas escolhas recorrendo a argumentos universalizáveis13. A liberdade moral exige, para ser exercida, não somente que os indivíduos possuam a capacidade de distinguir entre razões corretas ou falsas, mas também que sejam capazes de colocar-se no lugar dos outros.

Justamente essa capacidade, contudo, abre o risco de outras duas patologias sociais: o indivíduo tornar-se um moralista incapaz de situar-se no próprio contexto social, agindo como se tal contexto não existisse, isolando-se socialmente e tendendo a considerar-se como um “legislador” moral todo-poderoso, ou chegar a uma postura de verdadeiro terrorismo com motivações morais, a partir da qual a ordem social é considerada injusta e imoral na sua totalidade, exigindo a sua destruição14.

Ao terceiro tipo de liberdade, à liberdade social, são dedicados quase dois terços do livro, já que nela se realizaria, para Honneth, a liberdade do indivíduo. Em relação às outras duas, Honneth afirma que elas se comportam de forma “parasitária perante uma práxis de vida social que não somente as precede sempre, mas à qual devem também seu direito de existir”15. A liberdade jurídica e a moral permitem que o indivíduo distancie-se ou feche-se perante as exigências ligadas a relações sociais preexistentes, mas são incapazes de criar elas mesmas “esta realidade intersubjetivamente compartilhada no interior do mundo social”16. A tese central de Honneth, nesse sentido, é a de que

a liberdade individual alcança uma realidade socialmente experimentável e socialmente vivida somente em construtos institucionais que dispõem de obrigações complementares ligadas a papéis [sociais], enquanto nas esferas do direito e da moral, previstas “oficialmente” para ela, possui somente o caráter de um mero distanciamento ou de uma revisão reflexiva17.

Isto é, experimentamos nossa liberdade individual somente no contexto de obrigações sociais que surgem do fato de desempenharmos certos papéis sociais (por exemplo, enquanto parceiros, pais, amigos, agentes econômicos, produtores, consumidores, cidadãos, etc.). Essa liberdade é social, pois, longe de isolar o indivíduo do contexto social no qual se encontra, só é vivida em tal contexto, isto é, na interação com outros indivíduos. Isso leva Honneth a não identificar patologias sociais ligadas ao seu exercício, já que tais patologias remetem a um mal-entendido sistemático que leva o indivíduo a atribuir um sentido errado à sua liberdade jurídica ou moral – mal-entendido que, contudo, tem suas causas nas próprias formas de liberdade em questão; no caso da liberdade social, estamos perante desenvolvimentos errados que, segundo Honneth, não seriam provocados pelo próprio sistema da liberdade social. Ora, com isso, o autor abre espaço para uma ambiguidade, pois aparentemente as causas de tais desenvolvimentos não seriam imanentes ao sistema descrito, por exemplo à esfera do mercado ou do Estado democrático. Na realidade, como o próprio Honneth explicou em ocasião de uma discussão sobre seu livro realizada em Berlim em fevereiro de 2012, no caso da liberdade social, os fenômenos negativos se dão quando um certo patamar de desenvolvimento de tal liberdade é atingido e, em seguida, novamente abandonado. Trata-se, em suma, de regressões históricas, que levam a sociedade a perder um nível de liberdade social que já tinha alcançado, e não de patologias individuais. Por isso, contrariamente ao que acontece nos capítulos dedicados à liberdade jurídica e moral, o objeto principal de Honneth nessa parte é uma leitura do desenvolvimento histórico das três esferas nas quais se realiza a liberdade social: as relações pessoais, o mercado e o Estado democrático. Trata-se, nesse caso, de ver qual é a contribuição das três esferas à realização daquela liberdade, na qual se concentram os valores considerados legítimos na sociedade dos países industrializados e democráticos da Europa ocidental. Como acontece com Hegel, contudo, o leitor suspeita que a reconstrução normativa em pauta tenha como objeto uma sociedade específica, a saber, a do autor: a Alemanha, já que boa parte do material empírico apresentado refere-se evidentemente, ainda que não explicitamente, à sociedade alemã e só em parte pode ser visto como uma descrição fiel de outras sociedades, inclusive as de outros países industrializados.

Assim, na reconstrução da evolução das maneiras de viver as relações pessoais, que compreendem amizade, relações íntimas (quer no sentido de relações amorosas, quer no sentido de relações sexuais) e família, Honneth mostra como se passa da visão clássica de amizade masculina a formas de amizade entre pessoas de diferentes gêneros, ou como se passa do amor romântico ao amor “livre” dos anos 1970 e a uma maior abertura em relação a tais questões, ou como a família patriarcal ampliada dá lugar à família nuclear tradicional, na qual os pais ficam presos a seus papéis (o homem trabalha e sustenta a família, a mulher fica em casa cuidando dos filhos), à família moderna, na qual a divisão dos papéis entre os gêneros não é tão rígida, e, finalmente, às novas famílias, não mais compostas por dois pais de gênero diverso e pelos filhos, mas, eventualmente, por pais do mesmo gênero ou por diferentes casais de pais, consequências de divórcios, etc. Essa “história”, embora incompleta (faltam, por exemplo, formas de relações pessoais importantes como clubes, associações, camaradagem, etc.), é, provavelmente, a menos problemática para efetuar uma reconstrução normativa que aponte para um progresso. É significativo que o único risco de um desenvolvimento errado mencionado diga respeito à família e se refira à ausência eventual de políticas públicas de apoio às famílias (portanto, seja atribuível à esfera da política).

A tarefa mais árdua talvez seja mostrar como a esfera do mercado pode ser o lugar onde se realiza a liberdade social dos indivíduos. O próprio Honneth reconhece as dificuldades ligadas a essa tarefa, uma vez que o sistema da economia de mercado capitalista não parece minimamente orientado à construção de uma relação de reconhecimento recíproco, na qual os indivíduos possam ver na liberdade dos outros a condição para o exercício da sua própria liberdade, como exige o conceito de liberdade social que deveria ser realizado pela esfera do mercado18. Destarte, parece difícil ver como “a esfera do mercado organizado de forma capitalista” possa ser considerada uma “instituição ‘relacional’ de liberdade social”19. É verdade que tal esfera pressupõe a institucionalização de direitos individuais que correspondem à criação da liberdade jurídica; e que, portanto, nela os indivíduos possuem um mínimo de liberdade. Contudo, prevalece a concentração no interesse particular e uma visão pela qual cada um vê no outro meramente um meio para alcançar seus fins particulares. O atual mercado capitalista (quer o mercado de trabalho, quer o mercado “tradicional” onde se trocam mercadorias) tende a isolar os indivíduos uns dos outros e a convencê-los de que a única coisa que conta é a maximização dos lucros individuais, não a satisfação das carências sociais. Isso leva os indivíduos a não assumir aquela atitude de confiança e benevolência que, já segundo Adam Smith, representa a condição necessária para o correto funcionamento do sistema20. Em harmonia com essa visão, Honneth pensa, então, que as relações contratuais no mercado de trabalho deveriam obedecer não somente a imperativos econômicos (a “lei” da oferta e da procura, por exemplo), mas também a normas e princípios normativos independentes e, sobretudo, deveriam ser expressão de relações de reconhecimento recíproco: “os atores econômicos devem ter se reconhecido de antemão como membros de uma comunidade cooperativa antes de poderem atribuir-se reciprocamente o direito de maximizar seu lucro no mercado”21.

Na sua reconstrução normativa do desenvolvimento histórico do mercado capitalista, Honneth vê a “realização paulatina dos princípios de liberdade social, que lhe servem de fundamento e asseguram sua legitimação”. Em particular, menciona os mecanismos institucionais que visam garantir um “procedimento discursivo de acordo de interesses” e ancorar juridicamente “a igualdade de oportunidades”22. Na realidade, aqui como em outros momentos, Honneth parece referir-se à realidade alemã, na qual, como se sabe, existe (melhor seria dizer: existia – em consideração das profundas transformações pelas quais passou o modelo de mercado social alemão) um mecanismo de cogestão das empresas e de harmonização dos interesses por meio de contratos nacionais e da mediação do governo. Em outros países, contudo, os mecanismos institucionais mencionados por Honneth permanecem uma utopia, e o mercado de trabalho não obedece a regras estabelecidas discursivamente, nem ao princípio da igualdade de oportunidades. Portanto, a reconstrução normativa, neste caso, parece questionável não somente com base na interpretação do dado empírico (isto é, não somente questionando se até no modelo social de mercado alemão de fato os mecanismos mencionados por Honneth funcionaram da maneira descrita pelo autor), mas também com base nos próprios dados empíricos apresentados.

Além disso, chamam a atenção os fatos de Honneth não tratar o mercado financeiro, hoje tão dramaticamente importante, e não mencionar em momento nenhum a grande cisão histórica marcada pela queda do Muro e pelo fim do socialismo real – o que admira, em uma obra que pretende oferecer uma reconstrução normativa baseada na história das sociedades ocidentais modernas. A situação atual, caracterizada pelo aumento vertiginoso do desemprego na maioria dos países industrializados, pelo desmantelamento do modelo social de mercado alemão, pela progressiva mas constante redução dos direitos trabalhistas, pela concorrência entre países, que querem oferecer às empresas condições mais vantajosas à custa dos empregados, etc., é considerada por Honneth um mero desenvolvimento errado de um processo que, de outra forma, poderia ter levado a uma sociedade mais justa e não, como acham outros autores23, como a consequência inevitável de certa lógica imperante nas últimas décadas de privatizações e desregulamentações.

A última parte do livro é dedicada à reconstrução normativa do processo que levou do Estado liberal de direito ao atual Estado democrático constitucional e social. Em particular, o autor analisa “a instituição da esfera pública democrática como um espaço social intermédio, no qual cidadãs e cidadãos devem formar aquelas convicções passíveis de um consenso geral, que deveriam ser respeitadas pelo processo de legislação parlamentar por meio de procedimentos próprios do Estado de direito”24. Contrariamente ao que acontece com as relações pessoais e o mercado, a realização da liberdade social nessa esfera depende da sua realização nas outras duas. A reconstrução normativa da formação da esfera pública democrática oferecida por Honneth segue em geral a operação análoga realizada por Habermas em 196225. Honneth salienta a importância do Estado-nação nesse processo e fala da necessidade – para o desenvolvimento de uma esfera pública democrática – de “uma certa medida de ‘patriotismo'”, que, contudo, deve assumir hoje o aspecto de um “patriotismo constitucional”, para que se estabeleçam “pontes de comunicação” entre órgãos de governo e população26.

Falando dos desenvolvimentos errados nessa esfera, Honneth menciona o fato de que a mídia deixou de gerar informação para comercializar-se e tornar-se um mecanismo de produção de riqueza através da venda de de espaço publicitário, e lamenta a apatia presente entre os cidadãos, que parecem não ter interesse em participar ativamente do processo de formação da vontade política (que não se limita somente à participação nas eleições, mas compreende a participação nas discussões que acontecem no contexto da esfera pública). Honneth apresenta cinco condições que deveriam permitir um melhor exercício da liberdade social, embora em princípio não possam ser preenchidas todas e completamente27, mas sem as quais não seria possível pensar a esfera pública como esfera de liberdade social. As menos problemáticas dizem respeito à existência de garantias jurídicas para a participação política dos indivíduos e à presença de um espaço comunicativo comum, já a terceira, relativa à existência de um sistema diferenciado de mídia, é mais difícil de ser realizada; extremamente complicada é a realização das duas últimas: a disponibilidade dos cidadãos a se engajarem nas discussões públicas e o desenvolvimento de um sentimento de solidariedade cívica mantido por uma correspondente cultura política da solidariedade.

As convicções elaboradas nos debates públicos devem transformar-se em estratégias concretas de ação ou em normas jurídicas através da atividade legislativa dos parlamentos, isto é, através da ação do Estado. Honneth define o Estado como “o ‘órgão reflexivo’ ou a rede de instâncias políticas com a ajuda da qual os indivíduos, que se comunicam entre si, tentam transpor na realidade suas visões, alcançadas ‘experimental ou deliberativamente’ relativamente às soluções moral e pragmaticamente adequadas de problemas sociais”28. Nessa visão, o Estado é o instrumento através do qual os cidadãos ativos politicamente realizam suas convicções e, portanto, sua liberdade social. Contudo, os desenvolvimentos errados são particularmente numerosos e concernem à incapacidade concreta do Estado em lidar com os problemas ligados à economia, com a influência dos lobbies, com a burocratização dos partidos políticos, etc. Uma saída possível é identificada por Honneth na capacidade de pressionar os parlamentos demonstrada pelos movimentos sociais e as associações civis29.

Apesar dos diagnósticos negativos sobre os inúmeros desenvolvimentos errados que assombram as esferas do mercado e do Estado, o livro termina com uma nota otimista: a esperança no surgimento de uma cultura política democrática e participativa capaz de retomar o caminho fundamentalmente progressivo registrado por Honneth na sua reconstrução normativa da maneira em que a liberdade social veio afirmando-se como o valor principal da sociedade ocidental moderna. O otimismo de Honneth não é, portanto, crença dogmática no progresso de tal liberdade (como em Hegel), mas um otimismo cauteloso e consciente das dificuldades com as quais ela ainda tem que lidar.

Notas

1 Tarefa que já animava obras anteriores, como Sofrimento de indeterminação (São Paulo: Esfera Pública, 2007) e o próprio Luta por reconhecimento (São Paulo: Editora 34, 2003), até agora seu livro mais conhecido e teoricamente mais denso.
2 Operações análogas foram praticadas nos últimos anos por alguns pensadores norte-americanos. Ver PINKARD, T. Hegel’s Phenomenology. The Sociality of Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 1994; NEUHOUSER, FrederickFoundations of Hegel’s Social Theory. Actualizing Freedom. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2000. Pippin, Robert. Hegel’s Practical Philosophy. Rational Agency as Ethical Life. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
3 HONNETH, A. Das Recht der Freiheit. Berlim: Suhrkamp, 2011, p. 23. [Citações traduzidas pelo autor.] 4 Ibidem, p. 624.
5 Ibidem, p. 9.
6 Em nota, o autor faz uma afirmação bastante relevante do ponto de vista teórico: “Em seguida não considerarei a ideia de ‘igualdade’, por mais influente e rica de consequências que seja, como um valor independente,” já que pode ser entendida somente em relação à igualdade individual (p. 35, nota 1). Essa breve observação é o único espaço que Honneth reserva em seu livro ao conceito de igualdade, tradicionalmente central nas teorias da justiça (o termo nem sequer aparece no índice analítico).
7 HONNETH, op. cit., p. 38.
8 Como veremos, Honneth considera até certo ponto estas perspectivas patologias sociais.
9 Na primeira parte do livro o autor realiza uma reconstrução histórica dos diferentes conceitos de liberdade, servindo-se da obra de pensadores bastante diversos entre si: Hobbes, Sartre, Nozick, Rousseau, Kant, Rawls, Habermas, os românticos alemães, Herder, Mill, Arendt, Hegel, Marx e Gehlen. Neste contexto não temos espaço para dedicar-nos à análise da leitura que Honneth faz desses autores e que, de qualquer maneira, é funcional à parte mais sistemática do livro, dedicada à exposição teórica dos três conceitos de liberdade.
10 Trata-se, portanto, de direitos meramente negativos, já que os direitos políticos pertencem, segundo Honneth, à esfera da liberdade social.
11 HONNETH, op. cit., pp. 161 e 164.
12 Analogamente, na seção da Filosofia do direito de Hegel dedicada ao direito abstrato, o autor criticava a tendência, típica de muitos juristas e filósofos, a reduzir o indivíduo à mera pessoa jurídica detentora de direitos formais.
13 HONNETH, op. cit., p. 193.
14 Aqui também há um eco da crítica à posição da subjetividade moral efetuada por Hegel na seção “Moralidade” da sua Filosofia do direito.
15 HONNETH, op. cit., p. 221.
16 Ibidem, p. 222.
17 Ibidem, p. 229.
18 Ibidem, p. 318.
19 Ibidem, p. 302.
20 Idem, 330 e ss.
21 Ibidem, p. 349.
22 Ibidem, p. 358.
23 Por exemplo: ROSA, H. Beschleunigung. Die Veränderung der Zeitstrukturen in der Moderne. 2. ed. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2005; Foster, J. B. e Magdoff, F. The Great Financial Crisis. Causes and Consequences. Nova York: Monthly Review Press, 2009; Stieglitz, J. Freefall. Free Markets and the Sinking of the Global Economy. Londres: Penguin, 2009; Dörre, K., Lessenich, S. e Rosa, H. Soziologie – Kapitalismus – Kritik. Eine Debatte. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2009; Chang, H.-J. 23 Things They Don’t Tell You About Capitalism. Londres: Allen Lane, 2010; Harcourt, B. E. The Illusion of Free Markets. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2011.
24 HONNETH, op. cit., p. 471.
25 HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
26 HONNETH, op. cit., pp. 495-9.
27 Ibidem, p. 540, nota 505.
28 Ibidem, p. 570.
29 Ibidem, p. 608.

Alessandro Pinzani – Professor da Universidade Federal de Santa Catarina.

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Raúl Prebisch (1901-1986): A Construção da América Latina e do Terceiro Mundo – DOSMAN (NE-C)

DOSMAN, Edgar JUNIOR. Raúl Prebisch (1901-1986): A Construção da América Latina e do Terceiro Mundo. Trad. Teresa Dias Carneiro; César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2011. Resenha de: BARBOSA, Alexandre de Freitas. O anti-herói desenvolvimentista. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.94, Nov, 2012.

Raúl Prebisch e Ernesto Che Guevara, antípodas em quase tudo, foram as duas maiores contribuições argentinas para a política internacional do século XX. A tal ponto se tornaram cidadãos do mundo que o apodo argentino vem apenas como local de origem. Mas enquanto Che possui várias biografias, figura como símbolo pop e é perseguido por estudiosos em cada uma de suas facetas, don Raúl parecia relegado ao esquecimento.

O leitor latino-americano tem agora acesso à bela e rigorosa biografia escrita por Edgar Dosman – professor de ciência política da Universidade de York, no Canadá – publicada em inglês em 2009, lançada em espanhol em 2010 e em português em 2011. Sim, um autor canadense produziu a obra que nenhum latino-americano se dispôs a escrever como forma de erguer trincheiras contra a avalanche livre-cambista que tomou a região no último quarto do século XX.

PREBISCH, O OUTSIDER

Prebisch foi o primeiro grande pensador econômico latino-americano, tendo iluminado as trilhas próprias percorridas por Celso Furtado e Aníbal Pinto, “formados” na escola da CEPAL , e que o superariam em vários aspectos.

Seu papel foi o de um ousado abridor de caminhos, não o de um economista acadêmico. Interpretou a realidade argentina e, depois, latino-americana, porque a conhecia a partir da perspectiva privilegiada de servidor público e de construtor de instituições nacionais (Banco Central argentino), regionais (cepal e ilpes) e globais (UNCTAD ). Antidogmático por essência, o escrutínio do real lhe permitira romper os diques das teorias consagradas, avançando a sua reflexão à medida que propunha novas políticas e instrumentos de ação.

Economista que possuía tão somente um diploma de contador, Prebisch revolucionaria a forma de pensar a economia latino-americana e seria o primeiro a cunhar teórica e politicamente a ideia de uma “nova ordem econômica internacional”1. De livre-cambista com ressalvas nos anos 1920, se tornaria nos anos 1930 defensor de um papel ativo do Estado na vida social e econômica. Nos anos 1940, ainda de maneira solitária, e nos anos 1950 e 1960 com maior contundência, formularia com rigor teórico os conceitos de “centro” e “periferia”, “desenvolvimento para dentro”, “insuficiência dinâmica”, ao mesmo tempo que apostava na integração latino-americana e na “alteração das relações de dependência” entre os países do Sul e do Norte.

Ao contrário da versão tão difundida de que fora um conservador, um financista e um funcionário pró-eua, Prebisch acionou políticas anticíclicas nos anos 1930, fez a reforma do imposto de renda na Argentina, tornando-o mais progressivo, e defendeu a industrialização latino-americana com reforma agrária. Se não relutava em negociar com os Estados Unidos – no governo argentino, durante a CEPAL e a UNCTAD – era porque este país aparecia como a principal, e talvez única, potência efetiva de sua época; por outro lado, talvez tenha sido quem mais sofreu na pele o poder do império norte-americano, que sempre podou seus esforços por uma distribuição mais justa do poder econômico em escala regional e global. Muito do que se escreveu sobre Prebisch em artigos acadêmicos nas revistas da economia convencional ou foi publicado na imprensa dos países latino-americanos pelos novos policy-makers dos anos 1980 e 1990 não resiste à pesquisa cuidadosa realizada por Dosman.

Prebisch era um outsider em todos os aspectos. Filho de imigrante alemão, nascido em Tucumán, longe do brilho de Buenos Aires, o funcionário acusado de “entreguista” na sua terra natal criou uma burocracia econômica com sentimento de dever ao Estado e à nação. O poder curvara-se a ele, não o contrário. Depois daria fôlego inusitado às duas instituições rebeldes do sistema internacional – CEPAL e UNCTAD – não para estilhaçá-lo, mas na pretensão de corrigi-lo.

Dosman procura revelar a personalidade por trás do mito, de modo a desmontá-lo. Em vez de autoritário, pretensioso e europeizado, vemos um homem reservado, sem arroubos, dedicado ao serviço público e contemporizador. Orgulhava-se dos “quatrocentos anos de história argentina que correm nas suas veias”2 e da tarefa que se impôs numa quadra histórica que permitiu a ascensão de um pensamento latino-americano original. Enfim, um anti-herói, pois jamais posou de mártir.

O livro nos conta de maneira romanceada a trajetória quixotesca desse homem abnegado, “movido por uma busca de momentos históricos”3, mas que encontraria sempre, a cada esquina, a história – ou as artimanhas do poder, do qual se aproximara como a única forma de mudar o mundo – pregando-lhe peças, impedindo que a sua missão fosse concluída. De derrota em derrota, ele mudaria a história da América Latina, embora não no sentido que almejara.

A CONSTRUÇÃO DO ESTADO ARGENTINO E O EXÍLIO FORÇADO

O jovem Prebisch chega a Buenos Aires em 1918, aos dezessete anos. A capital exibia o fausto da prosperidade econômica gerada pelas exportações de cereais e de carne. Os sistemas de ensino, de transportes e eleitoral estavam anos-luz à frente dos demais países da região. Parecia uma nova Europa gerada pela pampa humeda.

Estudaria economia na primeira universidade a criar este curso na região. Logo se desanima, entretanto, com a retórica fastidiosa de seus professores, que repetiam os tratados ingleses sem qualquer originalidade. Em 1920, antes de se formar, já trava debate com Alejandro Bunge, o Roberto Simonsen argentino. Discorda então o jovem de dezenove anos da industrialização como alternativa para o desenvolvimento de seu país. Chega a tentar uma filiação ao Partido Socialista argentino, mas desiste depois que um artigo seu contra a volta da Argentina ao padrão-ouro rende-lhe uma censura por parte de nada menos que Juan Justo, o famoso líder socialista.

Influenciado pela leitura de Vilfredo Pareto, decepcionado com a tradição bacharelesca da vida acadêmica, avessa à pesquisa empírica, e sentindo-se não contemplado por nenhuma das facções políticas argentinas, decide servir ao seu país, dotando-o de uma nova elite administrativa. Trabalha para a poderosa Sociedade Rural argentina por duas vezes, nos anos 1920, sendo em ambas demitido pela independência dos seus relatórios. Como consultor do Ministério da Fazenda visita a Austrália e o Canadá, onde percebe as vastas diferenças com sua terra natal, que sofria os efeitos da concentração da propriedade fundiária e a da lenta modernização do Estado. Vira assessor do Ministério da Agricultura e depois se torna diretor-adjunto do Departamento Nacional de Estatísticas.

Em 1927, dá o primeiro salto de sua carreira. É nomeado, aos 26 anos, para o cargo de diretor do Banco de la Nación, tornando-se responsável pelo novo departamento de pesquisas econômicas. Procura trazer para o Sul a experiência do fed norte-americano, que tanto o impressionara. Em 1930, logo após o golpe de Uriburu, é convidado para assumir a subsecretaria da Fazenda. Prebisch toma então as rédeas da economia argentina. Procura inovar, abandonando as teorias sem serventia num momento de crise.

A saída do presidente leva à sua queda. Faltavam então as bases institucionais para uma gestão econômica eficiente. Do contrário, pensava, teria que depender sempre do beneplácito dos poderosos de ocasião. Ao final de 1932, é escolhido como membro da Comissão Preparatória da Conferência Econômica Mundial da Liga das Nações. É então que percebe a irrelevância dos países periféricos: tratava-se de “uma briga de cachorro grande”. No início do ano seguinte, é convocado para fazer parte das negociações do famigerado Pacto Roca-Runciman, quando a Argentina é forçada a aceitar as concessões exigidas pelos ingleses. Estava morta a teoria neoclássica e, junto com ela, o multilateralismo. É então que lê entusiasmado, na Inglaterra, o artigo “Road to prosperity”, de Keynes.

Na volta à Argentina, a sorte – ou a mudança na administração – lhe presenteia com a dupla assessoria dos ministérios da Fazenda e da Agricultura, acumulando tais cargos com o que ainda ocupava no Banco de la Nación. Formula o Plano de Recuperação Econômica, que tira a Argentina da crise antes dos países industrializados. Acusado de participar de um governo autoritário, Prebisch aproveita as brechas do poder para modernizar o Estado. Acredita-se um “economista nacionalista e profissional que escolhera participar em vez de ficar de fora”4. No íntimo, percebe a mediocridade dos militares e das elites tradicionais que dão sustentação aos governos da Concordancia.

O próximo salto se daria quando assume o cargo de gerente-geral do Banco Central argentino, criado em 1935. Ele e seu “cartel de cérebros” implantam um novo estilo de gestão na máquina pública, caracterizado pela sobriedade, dedicação abnegada e capacidade técnica. Prebisch redige de próprio punho os relatórios anuais da instituição. O Banco Central exerce o papel de garantidor da estabilidade ao mesmo tempo em que apoia a expansão econômica, modulando os ciclos.

Em 1940, Prebisch elabora o Plan Pinedo, não aprovado em virtude da crescente oposição ao governo, enfraquecido e sem base de sustentação. Procura reduzir a dependência da Inglaterra, aproximando-se dos Estados Unidos – para quem quer vender produtos industrializados – e da América do Sul. Em 1943, é demitido com a ascensão de Perón à estrutura de poder. Passa a sofrer vigilância policial e tem que fugir para Mar del Plata. Tem seu salário suspenso, o que faz com que volte a ministrar aulas na Faculdade de Ciências Econômicas.

Entretanto, convites não lhe faltam. Assessora o Banco Central mexicano e os governos da Venezuela, Paraguai, República Dominicana e Guatemala, dentre outros. Rejeita todos os convites para ensinar em universidades norte-americanas. Prepara-se para voltar ao governo, na expectativa de que “o peronismo acabaria um dia”5.

O homem que ditara os rumos da economia argentina por quinze anos entra em depressão, o que faz com que se lance numa tentativa árdua de processar teoricamente a sua experiência. Não consegue publicar o que escreve – à exceção de Introducción a Keynes, de 1947, lançado pela Fondo de Cultura Económica -, apesar da recepção que seu trabalho tem nos Estados Unidos e na América Latina, inclusive no Brasil, onde tem em Eugenio Gudin um grande admirador, embora este conhecesse tão somente o gerente financeiro. O teórico iconoclasta estava, àquela altura, ainda lapidando seu novo sistema de ideias.

A CEPAL E A INVENÇÃO DA AMÉRICA LATINA

Pouca gente sabe que, ao fim de 1948, Prebisch parte para Washington para assumir o cargo de assessor do diretor-geral do FMI. E que graças às vicissitudes da política norte-americana – bem como à oposição dos governos brasileiro e argentino – lhe sobra como última opção a de consultor da CEPAL , recém-criada, e que ele imaginara como uma instituição de fachada. Depara-se desde logo com o desafio de torná-la efetiva: a depender dos Estados Unidos, a CEPAL nasceria moribunda.

Santiago era a última opção para o obstinado construtor de instituições econômicas. Tinha um desafio: elaborar em três meses o documento Investigación Económica de América Latina para a sessão da CEPAL , a se realizar em maio de 1949, em Havana. Além de tecer um panorama geral da região, deveria oferecer uma direção para a instituição, que contava com a oposição cerrada dos Estados Unidos, que pareciam determinados a extingui-la em 1951. Com uma equipe pequena, enfrentando o ceticismo dos norte-americanos, do Banco Mundial e do FMI, e contando apenas com algum apoio da onu, o documento é elaborado.

Mas Prebisch queria também apresentar algo menos técnico, que refletisse o seu acúmulo teórico nos tempos de exílio do governo argentino – já em 1945, os conceitos centro e periferia aparecem nos seus textos e correspondências – e apontasse para uma nova estratégia de desenvolvimento na região. Algo que juntasse teoria, política e utopia.

A primeira versão do que viria a ser o “manifesto latino-americano”, de abril de 1949, era bastante rebuscada. Celso Furtado, já então na CEPAL , a lera, tendo achado o texto muito acadêmico e defensivo. Prebisch, também insatisfeito, reescreve-o completamente, em três dias e três noites, tornando-o mais acessível. Introduzia assim um novo vocabulário no debate sobre desenvolvimento em escala internacional, partindo da especificidade latino-americana. E o diagnóstico convidava à ação.

A apresentação em Havana foi acontecimento inesquecível para os que ali estavam. O documento recebeu o apoio dos governos latino-americanos e foi recebido com frieza pela delegação de baixo perfil do governo norte-americano. Acadêmicos do mainstream da época, como o professor Jacob Viner, de Princeton, sentiram calafrios. O documento continha no seu entender “fantasias desvairadas, conjecturas históricas distorcidas e hipóteses simplistas”6. Não era para menos: o texto batia de frente com a ortodoxia das vantagens comparativas. Ainda pior para os seus detratores, não era comunista nem protecionista. Defendia o comércio, apostava na industrialização, sem menosprezo pela agricultura, e propugnava uma ação reformadora e inteligente do Estado.

Inventava-se assim a América Latina, uma região com especificidade histórica, decorrente da sua inserção no sistema internacional, mas agora dotada de ferramentas de reflexão próprias e de um conjunto de novos instrumentos de política econômica adequados à sua realidade. Ao voltar-se sobre si mesma, a América Latina oferecia uma nova interpretação sobre o universal. O véu que protegia o mundo ocidental era descoberto pelo olhar periférico. As ideias encontravam, nesta quadra histórica, o seu lugar7. Para Prebisch, não se tratava de separar a periferia do centro, ou de negar os aportes científicos da teoria econômica – o próprio manifesto não continha uma teoria acabada, antes prometia mais pesquisa e reflexão -, mas de destacar a dinâmica e estrutura da desigualdade global. Diferenciava-se, inclusive, do marxismo dominante, refutando as análises acerca do imperialismo como simples manifestação do capitalismo monopolista.

De regresso ao Chile, Prebisch possuía agora um novo “cartel de cérebros”, que contava com economistas de vários países da região e formações teóricas bem diversas, como Celso Furtado, o cubano Regino Boti, o mexicano Juan Noyola (que chegaria apenas em 1951) e o chileno Jorge Ahumada. Este último, de Harvard, chefiava a Divisão de Treinamento, enquanto Furtado ficara com a de Desenvolvimento, chamada de “divisão vermelha”.

A ameaça contínua à própria existência da CEPAL criava um vínculo especial entre os seus “combatentes”. Prebisch estimulava o debate entre os quadros, exigindo-lhes maior rigor na exposição dos argumentos. Chamava para si a responsabilidade política e dava autonomia para os seus jovens tocarem o barco, inclusive resistindo às perseguições ideológicas durante a maré montante do macartismo norte-americano.

A segunda grande batalha foi a Conferência do México de 1951. A CEPAL passava agora a ter um mandato por tempo indeterminado, com plena independência, e novas funções além da produção de relatórios de pesquisa. Na sua nova fase, a organização latino-americana atuaria como centro de treinamento para quadros governamentais da região e de assistência técnica para as políticas de desenvolvimento de cada país.

As expectativas eram elevadas. A CEPAL assumia o papel de “usina de ideias” para a América Latina. Aproveitando o cenário positivo, Prebisch, secretário-executivo da CEPAL desde 1950, amplia e reestrutura a equipe da organização, que contaria ao final de 1953 com um corpo técnico de 130 funcionários em regime de tempo integral. É quando clama por cooperação internacional, reforço do planejamento econômico, estabilidade de preços para as exportações de matérias-primas, necessidade de um banco regional de desenvolvimento, mudança tributária e reforma agrária.

Entretanto, na segunda metade dos anos 1950, Prebisch vê o seu raio de manobra se estreitar. O cenário internacional não é favorável. A instituição, agora consolidada, está atolada de projetos. A reflexão teórica fica em segundo plano, contra os anseios de Furtado e Noyola, que passam inclusive a se ressentir da visão mais “ortodoxa” de Prebisch, que vira uma espécie de representante político de alto nível, priorizando as relações com os governos da região.

Na sua nova fase, a CEPAL concentra-se na defesa da integração latino-americana. Seria a solução para a expansão do comércio e para o prosseguimento da industrialização, rumo aos setores intensivos em capital nos países maiores, e abrindo novas possibilidades de especialização para os menores. Mas o projeto de mercado comum transforma-se na proposta tímida da alalc, lançada em 1960. Os Estados Unidos recusam qualquer perspectiva de colaboração mais ativa com a região.

O quadro aparentemente mudaria com a Revolução Cubana e a eleição de Kennedy. Em março de 1961, os Estados Unidos lançam de maneira retumbante a Aliança para o Progresso, com a presença aclamada de Prebisch, seu arquiteto intelectual. O Império assimila todo o vocabulário cepalino e o oferece de volta para a região: capitalismo progressista, reformas estruturais, cooperação para o desenvolvimento.

Prebisch sente-se desnorteado. Desconfia da adesão dos governos da região às reformas (fiscal e agrária) e do compromisso estadunidense com o desenvolvimento. A liberação de recursos da Aliança para o Progresso deveria estar subordinada, no seu entender, a uma comissão de sete especialistas, com a responsabilidade de aprovar os planos nacionais. A comissão de sete transforma-se no painel dos nove, de perfil apenas consultivo, facilitando a vida dos governos latino-americanos e dos Estados Unidos, que poderiam distribuir os recursos de acordo com suas prioridades políticas. Nosso anti-herói entrega os pontos. O triunfo dos Estados Unidos na guerra dos mísseis joga a penúltima pá de cal, justamente no momento em que a ala econômica mais conservadora do governo Kennedy assume a dianteira. A última seria o desembarque das ditaduras militares no Cone Sul.

Prebisch volta a Santiago em 1962, e enquanto espera a transição na secretaria-executiva, cria, com apoio do Fundo Especial da onu e do bid, o ilpes (Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social). Quer voltar à reflexão teórica, deixando à CEPAL o trabalho mais aplicado.

O DESPERTAR DO TERCEIRO MUNDO

Se os ventos cepalinos se haviam abrandado na América Latina, eles voltariam a soprar pelos mares revoltos do Terceiro Mundo com a descolonização africana e asiática. Na Conferência do Cairo, de 1962, com a participação de 36 países não alinhados, Prebisch percebe que um novo mundo podia emergir, ou seja, que as ideias cepalinas podiam ser “globalizadas”. O G-77 seria criado, naquele ano, com a aprovação, na Assembleia Geral da onu, da realização da Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento, a futura UNCTAD , em 1964. Prebisch, com seu prestígio junto aos países do Terceiro Mundo, assume o cargo de secretário-geral até a conferência. A oposição dos países desenvolvidos, especialmente dos Estados Unidos, mostrava-se forte. E o gatt, composto majoritariamente pelo “clube dos ricos”, não queria concorrente. Trabalhando em Nova York, Prebisch organizaria mais uma vez uma equipe só de craques, provenientes de todas as partes do mundo, para viabilizar o maior evento internacional da história das Nações Unidas até o momento.

Diferentemente de hoje, quando dispomos de voos diretos para a Europa de todas as partes, acesso a internet e blackberries, os representantes dos 119 países ficariam “isolados” em Genebra durante três meses. Tratava-se de uma nova aventura para Prebisch: o mesmo script da CEPAL , mas em escala ampliada. O documento por ele produzido lançava o conceito de desequilíbrio comercial. Se este se mantivesse entre países do Norte e do Sul, fluxos financeiros equivalentes a US$ 20 bilhões anuais teriam que ser acionados pelos primeiros para manter as contas externas dos últimos em ordem, caso estes lograssem um ritmo de crescimento anual de 5%.

A solução seria uma “nova ordem econômica internacional”, que estabilizasse os preços dos produtos primários, criasse um sistema de preferências para os manufaturados dos países do Sul e ampliasse o financiamento para o desenvolvimento. O burocrata global viajaria o mundo inteiro antes da UNCTAD I, desembarcando em várias capitais do mundo rico e pobre para apresentar seu novo evangelho.

Prebisch seria aplaudido de pé após seu discurso inaugural em Genebra. Nele, afirmara que a cooperação internacional não poderia ser vista como substituta do desenvolvimento. Cada país deveria fazer sua parte. Ele sabia da oposição que encontraria da parte dos Estados Unidos e das demais potências.

O desastre era iminente. Para impedi-lo, nosso anti-herói reúne em seu apartamento, em Genebra, representantes de oito países. A pauta não avança na direção das ações concretas reivindicadas pelo G-77. Prebisch, entretanto, consegue parir a UNCTAD , garantindo sua autonomia e independência. A entidade atuaria como espaço de pesquisa e fórum de negociação não neutro, ou seja, a serviço dos países em desenvolvimento, mas sem oposição aberta ao Norte, essencial para que qualquer acordo vingasse. Apesar da recepção hostil da plateia do G-77, que lamentava os ganhos retóricos, Prebisch vencera, e a UNCTAD está aí até hoje8, com menos poder do que ele gostaria, mas assumindo o papel que ele imaginara.

Durante a UNCTAD II, realizada em Nova Delhi, os mesmos choques de posições se sucederiam. O prazo para o término da conferência seria prorrogado duas vezes. Os países desenvolvidos comemoravam o sucesso da inércia, enquanto o G-77 via o novo vocabulário do desenvolvimento em escala ampliada ser soterrado. Prebisch aparecia como algoz dos países desenvolvidos e traidor do Terceiro Mundo. Mas o sgp9 seria aprovado, novos conceitos introduzidos, propostas concretas elaboradas (mesmo que engavetadas), com relatórios de qualidade produzidos a serviço dos países mais pobres.

Acertada a sua demissão da UNCTAD para março de 1969, Prebisch iria para Washington trabalhar no novo relatório sobre o desenvolvimento latino-americano a convite do bid. Nele, apontaria para a “crise do desenvolvimentismo”, contrapondo a região aos países do Sudeste Asiático, capazes de realizar reforma agrária, transformações institucionais e em sua estrutura econômica. Com o golpe de Pinochet, a CEPAL torna-se uma organização sitiada. Apenas com a crise do petróleo, Prebisch voltaria a ser saudado, por ricos e pobres, como um “visionário global”10.

Prebisch ainda teria tempo para criticar o endividamento excessivo dos países latino-americanos no final dos anos 1970, contra os prognósticos das entidades tradicionais que o louvava; e participar do governo Alfonsín na Argentina, defendendo o Consenso de Cartagena, em prol de uma posição comum para os países devedores, trazendo calafrios para o FMI, o Banco Mundial e o governo norte-americano. Não obstante, mais uma vez seria visto em casa como “entreguista”. Os peronistas já se encontravam na antessala do poder, como se a história dos anos 1940 tivesse que se repetir, mas dessa vez como farsa.

PREBISCH, FURTADO E O ESTRUTURALISMO

Seguimos acima a trajetória de Prebisch a partir da câmera lenta de nosso cineasta-biógrafo. Por mais que procure integrar as ideias de Prebisch e o seu estilo de liderança, iluminando as restrições e potencialidades das organizações em que nosso anti-herói trabalhara em cada momento histórico, nem sempre Dosman abarca essas várias dimensões em toda a sua complexidade.

Joseph Hodara11 ressalta a importância de um paradigma triangular entre ideias, estilo de liderança e entorno organizacional para entender a contribuição de Prebisch. No seu entender, a CEPAL alçou voo em virtude da “ética de seita” instaurada pelo argentino. Depois ela teria se enrijecido, alcançando o “estágio eclesiástico”, na qual a rotina burocrática acaba por vencer, inclusive se amoldando às novas modas do pensamento econômico, no máximo temperadas por adjetivos desenvolvimentistas.

Em vez de um típico tecnocrata, o economista argentino destacava-se pelo estilo argumentativo, nada neutro, brindando novas mensagens políticas e uma clara preocupação pedagógica. Adicionalmente, se o vocabulário prebischiano caracterizava-se pela polissemia, de modo a permitir-lhe maior margem de negociação, ele encontrava pouca receptividade nos ambientes acadêmicos, onde neoclássicos e marxistas ressentiam-se ao ver seus conceitos sofrer interpretações por demais arejadas12. Não à toa, Furtado o descrevera como o “grande heresiarca”13.

Outro aspecto digno de menção refere-se à história do estruturalismo. Prebisch aparece na biografia de Dosman como o primeiro praticante de um novo método de reflexão sobre as economias e sociedades latino-americanas. O próprio Dosman afirma que, depois da Conferência da CEPAL de Cuba, em 1949, Prebisch “teria criado o estruturalismo”14. Os estudos clássicos apontam para a mesma interpretação. É o caso de Rodríguez15, para quem, nos anos 1950, o estruturalismo parte do enfoque econômico, para depois, nos anos 1960, incorporar as dimensões social e política. Ou de Bielschowsky16, que percebe uma “teoria ‘estruturalista’ do subdesenvolvimento periférico” já no manifesto de Prebisch.

A origem está em Prebisch, é certo. No entanto, ele não era nem “estruturalista” nem havia formulado nenhuma “teoria do subdesenvolvimento” nos anos 1950. O “manifesto latino-americano”17 sequer continha a palavra “subdesenvolvimento”. Prebisch refere-se quando muito aos países da América Latina como “novos”, que não seguem – e nem há por que imaginar que devessem fazê-lo – os mesmos estágios e dinâmicas dos países centrais, até porque não contam com as mesmas premissas.

A segunda ruptura que levaria ao que se convencionou chamar de “teoria do subdesenvolvimento” é furtadiana até a medula. Não se trata aqui de discutir paternidade teórica, mas de ressaltar que a primeira CEPAL apenas lançara a semente do que seria chamado de pensamento econômico estruturalista latino-americano. Depois de um esforço inaudito durante a segunda metade dos anos 1950, Furtado vai explicitar as características do método histórico-estruturalista, conferindo-lhe um enfoque teórico específico, tal como apresentado em Desenvolvimento e subdesenvolvimento18. Essa hipótese é lançada por Mallorquín19.

Para além de se comportarem de maneira distinta nos ciclos, em Furtado, centro e periferia fazem parte de uma mesma totalidade histórica, que se manifesta com dinâmicas estruturais distintas que extravasam o econômico. O mais interessante é que o mestre Prebisch se transforma em discípulo, com O capitalismo periférico, publicado em 1981, mas escrito ao final da década de 1970, quando não se encontra mais preso às artimanhas organizacionais e ao peso da ação política.

O próprio Prebish o admite nos agradecimentos ao livro: “ante todo, Celso Furtado”, “nadie ha penetrado com más profundidad en la interpretación del desarrollo”20 – antes de entrar de cheio na dinâmica do “capitalismo periférico”, da sua estrutura social e de suas travas políticas. Prebisch não deixa de assinalar as mudanças do “capitalismo central” – até porque ambos fazem parte de um todo integrado – mas concentra o seu olhar na assincronia das estruturas latino-americanas.

A heterogeneidade estrutural – o mestre também aprendeu com Aníbal Pinto21 – é antes reforçada pela industrialização, pois este capitalismo, por ser imitativo, está baseado fundamentalmente na desigualdade. Isto porque parcela expressiva do excedente é esterilizada internamente ou drenada para fora, desperdiçando o potencial de acumulação de capital, que poderia atender às demandas sociais e revigorar os processos de democratização22.

Nesse último exercício teórico, Prebisch argumenta que o esquema centro-periferia pode e deve ser enriquecido, de acordo com as mudanças históricas, mas desde que tenha como objetivo a elaboração de uma teoria global do desenvolvimento23, que capte as dinâmicas internas e articulações externas entre os “capitalismos” central e periférico.

PREBISCH REDIVIVO

O Prebisch que podemos herdar, mantendo a sua embocadura analítica, é este que fala do “meu pensamento cepalino”, como se um mar metodológico desaguasse em vários rios interpretativos; bem diverso da CEPAL no seu estágio “pós-eclesiástico”, que inclusive endossou o credo neoliberal, antepondo-lhe algumas vírgulas nos anos 1990. Um Prebish em diálogo profundo com Celso Furtado e Aníbal Pinto e com outras correntes de interpretação, como a “teoria da dependência”, o pensamento histórico-institucionalista e as contribuições neo-schumpeterianas, dentre outras. Mas também um autor que casa embasamento empírico com generalizações teóricas e formulações políticas de longo prazo – o que só é possível quando se assume uma perspectiva metodológica que associa o “intervencionismo decidido do Estado”, num contexto social e histórico específico, onde o “não reducionismo econômico deriva de um não determinismo definido”, nos termos de Rodríguez24, sempre levando em consideração os impactos das conformações cambiantes da totalidade capitalista.

Nesse sentido, a compreensão da realidade histórica latino-americana, ontem, hoje e amanhã, pode ser feita a partir dessa metodologia de análise que parte de tendências gerais, como, por exemplo, a dinâmica do sistema centro-periferia, sempre reciclada de modo a concentrar os frutos do progresso técnico em áreas privilegiadas da economia-mundo capitalista, reforçando por sua vez a heterogeneidade estrutural que permite a recriação do subdesenvolvimento sob novas formas.

A pergunta que se coloca então é sobre o papel da ciência econômica e das ciências sociais em geral. Tal como no passado, a marca da cepal está no ecletismo em assimilar e reprocessar as contribuições do pensamento clássico, marxista e keynesiano, a partir de uma experiência histórica peculiar. Neste sentido, o vigor de um programa científico do estruturalismo estriba justamente na capacidade de acompanhar os avanços teóricos das várias formulações heterodoxas, de modo a fornecer os “fundamentos” para uma “teoria especial” do acontecer econômico25 nos diversos países latino-americanos no contexto histórico atual. A própria evolução do pensamento cepalino propriamente dito esteve sempre relacionada não somente à história real do objeto de análise, como com o próprio contexto ideológico, relacionando inserção internacional, tendências e contradições internas do crescimento da periferia e ação do Estado26.

Dessa forma, associar o estruturalismo, a teoria do subdesenvolvimento ou a economia política cepalina à “teoria da deterioração dos termos de troca”, atitude hoje muito em voga, é tomar a parte pelo todo. Ora, aquela tendência apenas indicava que, num contexto específico, o do novo centro global protagonizado pela economia norte-americana nos albores do pós-Segunda Guerra Mundial, levaria inexoravelmente ao processo de industrialização, que deveria ser planejado, de modo a não internalizar as características concentradoras da dinâmica do sistema capitalista, as quais encontravam solo fértil em virtude das peculiaridades estruturais da região.

Num contexto de ascensão chinesa, crise das economias ditas centrais e reorganização da divisão internacional do trabalho, ou seja, em que mais uma vez o centro de gravidade da economia-mundo capitalista passa por deslocamentos que alteram de maneira sistêmica a sua dinâmica de funcionamento 27, Prebisch e seus “companheiros de seita” parecem mais bem aparelhados com suas categorias28 para enfrentar o real do que os economistas com instrumental estático ou os catastrofistas de plantão.

Notas

1 DOSMAN, Edgar JUNIOR. Raúl Prebisch (1901-1986): a construção da América Latina e do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro: Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado, 2011, p. 489.
2 Ibid., p. 246.
3 Ibid., p. 27.
4 Ibid., p. 121.
5 Ibid., p. 261.
6 Ibid., p. 285.
7 CARDOSO, F. H. As ideias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1993, pp. 29, 59, 70-4. Nesse texto, dialogando com os conceitos de Roberto Schwarz, o sociólogo aponta para a “originalidade da cópia cepalina”.
8 Ver a reedição dos “mesmos conflitos” na recente UNCTAD XIII, realizada na cidade de Doha em 2012. “UNCTAD expõe racha entre ricos e emergentes”. Valor Econômico, 27, 28 e 29 de abril de 2012, p. A13.
9 Trata-se da sigla de Sistema Geral de Preferências (gps, em inglês), que até hoje responde por parcela importante das exportações de manufaturados da periferia capitalista para os países do Norte.
10 Edgar Dosman, op. cit., pp. 537-8.
11 HODARA, J. Prebisch y la CEPAL : sustancia, trayectoria y contexto institucional. Mexico: El Colegio de Mexico, 1987, pp. 12-4, 16-23, 38-9.
12 O’HIRSCHMAN, A. A economia como ciência moral e política. São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 66-7, 75. O autor menciona a “estranha coalizão entre marxismo e monoeconomismo”.
13 FURTADO, C. A fantasia organizada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, 5. ed., cap. vii.
14 DOSMAN, op. cit., p. 314.
15 RODRÍGUEZ, O. O estruturalismo latino-americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, pp. 27 e 41.
16 BIELSCHOWSKY, R. “Cincuenta años del pensamiento de la CEPAL : una reseña”. InCincuenta años de pensamiento en la CEPAL : textos seleccionados. vol. 1. Santiago: Fondo de Cultura Económica/cepal, 1998, pp. 14 e 17.
17 PREBISCH, Raúl. “El desarrollo econômico de la América Latina y algunos de sus principales problemas”. In: Cincuenta años de pensamiento en la CEPAL , op. cit. Trata-se do texto original de 1949.
18 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1965. A primeira edição é de 1961.
19 MALLORQUÍN, Carlos. Celso Furtado: um retrato intelectual. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Xamã, 2005, pp. 16, 122-31, 261 e 328.
20 PREBISCH, Raúl. Capitalismo periférico: crisis y transformación. México: Fondo de Cultura Económica, 1981, p. 9.
21 PINTO, A. “Naturaleza e implicaciones de la ‘heterogeneidad estructural’ de la América Latina”. In: Cincuenta años de pensamiento en la CEPAL : textos seleccionados, vol. 2, op. cit. Esse texto foi publicado pela primeira vez em 1970 e significou uma ruptura com as teses dualistas.
22 PREBISCH, R., Capitalismo periférico, op. cit., pp. 14-15, 37-45.
23 Ibid., pp. 26 e 30.
24 RODRÍGUEZ, op. cit., pp. 46-8.
25 Ibid., pp. 42-4 e 61.
26 BIELSCHOWSKY, op. cit., pp. 11 e 17.
27 CASTRO, Antonio Barros de. No espelho da China, 2009 (mimeo).
28 Para um intento de aplicar as categorias cepalinas de modo a compreender os impactos da ascensão chinesa sobre a América Latina, ver Barbosa, Alexandre de Freitas. “China e América Latina na Nova Divisão Internacional do Trabalho”. In: Leão, Rodrigo Pimentel Ferreira, Pinto, Eduardo Costa e Acioly, Luciana (orgs.). A China na nova configuração global: impactos políticos e econômicos. Brasília: ipea, 2011.

Alexandre de Freitas Barbosa – Professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) e pesquisador associado do Cebrap.

Acessar publicação original

Luto e Melancolia-FREUD et al (NE-C)

FREUD, Sigmund; KEHL, Maria Rita; PERES, Urania T.; CARONE, Modesto; CARONE, Marilene, Luto e Melancolia. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Resenha de: RIVERA, Tania. Entre dor e deleite. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.94, Nov, 2012.

A leva de novas traduções surgida recentemente e disseminada graças à passagem da obra de Freud para o domínio público tem, finalmente, fornecido ao leitor brasileiro versões condizentes com a envergadura intelectual e literária desse grande pensador. Além de permitir um contato mais direto com o próprio texto do pai da psicanálise, essa nova situação abre caminho para a diversificação dos modos de acesso a escritos quase sempre reunidos em volumes organizados cronologicamente. Destaca-se nesse conjunto a bela edição da Cosac Naify para “Luto e melancolia”, um grande clássico escrito em 1915 (e publicado em 1917) cujo interesse só se renova, especialmente em tempos marcados por uma aparente profusão de quadros depressivos.

Acompanhada de textos de duas importantes psicanalistas brasileiras, Maria Rita Kehl e Urania Tourinho Peres, a edição traz uma tradução – de Marilene Carone – que fez história e permanecia inédita em livro, tendo sido publicada pela Novos Estudos Cebrap em 1992. Ela conta, ainda, com uma introdução e comentários da tradutora, além de uma curta nota do escritor e tradutor Modesto Carone, que foi seu marido. Como salienta o professor e tradutor André Medina Carone, estudioso, como a mãe, da prosa científica de Freud (sobre a qual fez sua tese de doutorado em filosofia), “Luto e melancolia” jamais foi publicado como livro pelo próprio autor, e seu aparecimento ao lado da contribuição de outros autores reproduz, de maneira pertinente, a condição polifônica que era aquela das primeiras publicações de seus textos na época, em geral em revistas reunindo textos de seus discípulos.

A psicanalista e tradutora Marilene Carone fez seus estudos de psicologia na Universidade de São Paulo e na Universidade de Viena. Foi na Áustria que ela iniciou o estudo da psicanálise, que mais tarde, já de volta à capital paulista, a levou a empreender uma formação no Instituto Sedes Sapientiae, no qual depois viria a atuar como professora. Marilene em primeiro lugar dedicou-se à tradução de Memórias de um doente dos nervos (Graal, 1984), o livro de Daniel Paul Schreber cuidadosamente estudado por Freud em seu “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia” (1911). Com a intenção de verter para nossa língua a totalidade da obra freudiana, ela voltou-se em seguida para outro forte texto, “A negação”, de 1925, antes de realizar a tradução de “Luto e melancolia”, seguida daquela das “Conferências introdutórias à psicanálise” (1916-1917), concluída pouco antes de seu precoce falecimento por um tumor cerebral, em 1987. A Cosac Naify já trabalha na edição de “A negação”, que também trará a contribuição de outros autores, e pretende em seguida publicar o mais longo e último texto traduzido por Marilene Carone.

A entrada dessa editora no campo da psicanálise é, sem dúvida, motivo de contentamento e expectativa por parte dos leitores, até hoje apenas parcialmente atendidos pelas versões brasileiras. Parte da obra freudiana foi traduzida no Brasil já nos anos 1940 pela editora Delta, tendo como base versões francesas e espanholas. Na versão completa e oficial da Imago, dos anos 1970, realizada a partir da tradução inglesa de James Strachey, seria questionável a ausência de confronto imediato com o original alemão, mas isso ficava em segundo plano diante do amadorismo da tradução promovida pela editora, que deteve os direitos de publicação até 2010. Na cena internacional, Bruno Bettelheim e outros autores chamavam a atenção, no início da década de 1980, para o enviesamento cientificista da tradução inglesa, que buscava tornar o revolucionário e perturbador pensamento freudiano mais palatável para os meios científicos anglo-saxões. Nesse mesmo momento, começa a ganhar espaço no Brasil o retorno a Freud empreendido por Jacques Lacan, impondo respeito à literalidade da obra freudiana, o que não era propriamente a tônica na cena psicanalítica dominada pela ipa, a International Psychoanalytical Association, fundada pelo próprio Freud em 1910.

Nesse contexto inscreve-se um artigo de Marilene Carone, publicado na Folha de S.Paulo em 1985, que denuncia a aterradora qualidade da tradução na Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Freud. A psicanalista mostrava que essa versão nem sequer merecia o tipo de análise inaugurado por Bettelheim, pois comprometia a recepção e o estudo do texto freudiano com erros muito mais primários e grosseiros. “Trata-se pura e simplesmente de falta de competência e responsabilidade no trabalho intelectual”, julgava Marilene, para acrescentar, jocosa, que para o leitor brasileiro Freud falaria “como um personagem dublado de filme de televisão”1. Não apenas a fluidez e estilo do texto freudiano seriam massacrados, mas também sua coerência conceitual. Tratava-se, definitivamente, de uma “tradução selvagem”, cheia de barbarismos e deturpações e que chegaria a criar noções estapafúrdias, ausentes no pensamento do autor.

Em sua introdução a “Luto e melancolia”, Marilene Carone compara a tarefa de tradução àquela do psicanalista, na medida em que ambas envolveriam um “trabalho de interpretação de texto” e buscariam manter uma certa neutralidade (p. 38). A tradutora afirma que é inevitável que transpareça, contudo, em tradução como em análise, a formação e os posicionamentos teóricos e técnicos do tradutor ou do analista. Se a neutralidade absoluta não é mais que uma quimera, isso não alarga a liberdade do intérprete, antes pelo contrário: ao tradutor, assim como ao analista, cabe identificar as balizas e os limites que o “texto” em questão impõe por si mesmo, e ser fiel a eles. Imbricada à experiência clínica da psicanalista, tal concepção de tradução precipita-se em uma versão em português que é duplamente rigorosa: fiel tanto à conceitualização freudiana quanto à prosa ensaística que a torna fluida e literariamente “tocante”. Ela representa, portanto, o feliz encontro de duas posturas habitualmente tomadas como opostas no tratamento dado à obra do mestre: aquela que privilegia a literalidade do texto e aquela que se preocupa com a qualidade literária de sua transposição para outra língua.

“Luto e melancolia” é, sem dúvida, um texto privilegiado para o desdobramento dessa sofisticada proposta. Trata-se do último dos textos metapsicológicos escritos por Freud em 1914-1915, dos quais a metade foi destruída pelo autor. Seu embasamento clínico é evidente e seu alcance teórico não deixa por menos. O mais importante, contudo, é que ele mostra como poucos a força e a beleza do ensaio freudiano. Apesar da reflexão contundente e da consistência teórica, o texto em nenhum momento torna-se hermético ou árduo para o leitor, mesmo que este não possua conhecimento prévio em psicanálise. A genialidade freudiana está no difícil equilíbrio entre ousadia na teoria e generosidade na exposição, e para isso contribui o fato, sublinhado por Marilene Carone e tomado como a base de sua tradução, de que Freud “preenche de conteúdos novos palavras antigas, reconhecíveis no ‘modo popular’ de dar nome às coisas”, como lembra em sua nota Modesto Carone (p. 34-5). Hoje, é corrente entre os estudiosos a ideia de que “em Freud, a fronteira entre uma linguagem científica especial e a linguagem comum, não específica, é sempre móvel”, nas palavras do tradutor Paulo César de Souza2. Mas isso não garante que as traduções mais recentes dos textos fundamentais da psicanálise façam jus a essa mobilidade, nem tampouco que o uso desse vocabulário nas atuais investigações psicanalíticas seja leal à flexibilidade da linguagem freudiana. Ambos tendem a se aproximar mais da rigidez do conceito que da força (literária, mas ao mesmo tempo conceitual) do texto.

Assumindo tal extraordinária mobilidade da linguagem, Freud nega-se a apresentar uma explicação teórica inteiramente pronta e bem acabada, e é justamente na medida em que se arrisca no pensamento, mostrando seus percalços, que constrói um texto que não se endereça apenas a psicanalistas ou filósofos, mas a cada um de nós. E como bem aponta Maria Rita Kehl em sua apresentação, “o mérito de um texto bem escrito é, sobretudo, ético: liberta o leitor” (p. 9).

TRABALHO DO LUTO E REBELIÃO MELANCÓLICA

Mais do que um estudo sobre as manifestações de luto e, em cotejamento com elas, sobre o quadro clínico da melancolia, trata-se em “Luto e melancolia” de um escrito fundamental sobre o eu (ou ego, como prefere a tradutora, alinhando-se à proposta do tradutor inglês James Strachey para das Ich). Freud faz uso do recurso metodológico conhecido como “princípio do cristal”, por ele exposto nas “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise” (1933): a psique, como um cristal, só mostra suas linhas de estrutura quando se quebra. Não existe, portanto, uma clara oposição entre normal e patológico. Enquanto não se quebrar, o cristal parecerá “normal” – entretanto, ele é composto de fraturas que, no momento em que alguma circunstância desencadeadora o fizer “cair”, guiarão o modo como ele se partirá.

Um ano após introduzir o conceito de narcisismo, que localiza o eu como objeto de amor para si mesmo e o delineia como reservatório do qual a libido pode ser enviada – e retirada – aos demais objetos, Freud nos mostra, com a melancolia, a face noturna desse jogo entre sujeito e objeto que pode chegar ao suicídio. Com isso, não se trata apenas de explicar o fenômeno do luto e o quadro clínico da melancolia e da depressão, mas de romper definitivamente com qualquer postulação empírica do indivíduo como idêntico a si mesmo e distinto do objeto (com o qual ele entreteria uma relação de complementariedade). O eu só se constitui ao preço de sua divisão: ele deve fazer-se objeto para si mesmo. E deve se amar, ou seja, a libido deverá tomá-lo como objeto. Mas Narciso também pode se odiar e chegar a abandonar ou aniquilar a si mesmo. Se seu apaixonamento é perigoso por sua exclusividade, como aponta a lenda grega, a escolha de objeto não basta para salvá-lo, pois o objeto deve ser perdido. Trata-se, fundamentalmente, em “Luto e melancolia”, de conceber o eu como um trabalho de perda do objeto.

De fato, uma das principais lições desse texto é a de que não basta que o objeto desapareça para que dele nos separemos. É necessário um verdadeiro trabalho psíquico de perda, chamado por Freud “trabalho do luto” – tarefa lenta e dolorosa através da qual o eu não só renuncia ao objeto, dele se desligando pulsionalmente, como se transforma, se refaz no jogo com o objeto.

Nesse sentido, “Luto e melancolia” traz uma estranheza fundamental que a leitura “diagnóstica” tende a esconder. Longe de consistir em uma unidade narcísica irredutível e capaz de assegurar alguma identidade, o eu não é mais do que um mosaico de traços de objetos perdidos, como uma mulher na qual seria possível reconhecer as características dos homens com os quais já se relacionou, na curiosa observação de Freud3. Tributário da perda do objeto, o eu se constitui apartado de si mesmo, e pode mais ou menos facilmente voltar a se “situar” no outro, exercitando suas identificacões plurais. Em “O Ego e o Id”, de 1923, o autor reconhece que no momento em que se debruçou sobre a melancolia não pôde perceber “a significação plena” da substituição de um investimento objetal por uma identificação, nem “quão comum e típico” é esse processo conformador do eu4.

A tristeza ou a depressão não são, portanto, quadros distintos de uma pretensa “normalidade” que se deva buscar restituir a todo custo. Elas podem ser o sinal de que um importante trabalho subjetivo está em marcha, operando a perda do objeto e implicando uma remodelagem do eu, à maneira do trabalho de luto. Esse é um ponto a ser sublinhado na atualidade, de modo a trazer modulações e nuances à crescente medicalização da tristeza, impulsionada pelo desenvolvimento dos antidepressivos nos últimos vinte e cinco anos e o interesse comercial dos laboratórios que os produzem.

O eu trata a si mesmo como um objeto, e é isso que lhe permite matar a si mesmo, fazendo talvez de todo suicídio um autoassassinato (Selbstmord, em alemão, traz esse significado literal). Na melancolia mostra-se em toda a sua radicalidade algo estrutural, mas habitualmente encoberto: o eu se toma como objeto de crítica e mortificação, graças a uma identificação com o objeto perdido, e assim, ao queixar-se de si mesmo, “dá queixa” do objeto (“queixar-se é dar queixa” (p. 59), na engenhosa tradução de Carone para o jogo de palavras freudiano “ihre Klage sind Anklagen“). Freud já havia, com o narcisismo, delimitado duas partições no campo do eu: um ideal, imagem de uma perfeição que lhe teria sido subtraída, e uma instância crítica que compararia constantemente o eu “real” a tal ideal, exigindo que ele deste se aproxime. Na atividade de tal instância crítica, a melancolia desenrola uma força destrutiva que, alguns anos mais tarde, Freud nomeará pulsão de morte. Em 1923, ela será ligada à crueldade da instância rebatizada como supereu (ou superego), e um ano mais tarde o psicanalista poderá rever sua concepção do masoquismo de modo a mostrar que o eu pode, sim, apresentar de saída impulsos destrutivos contra si mesmo, sem passar necessariamente pelo sadismo (dirigido ao objeto) como um estágio preliminar.

Na melancolia, o eu se revolta contra a perda, em vez de engatar um trabalho de luto através do qual possa a ela se con-formar, identifica-se maciçamente ao objeto perdido, a ponto de se deixar perder junto com ele. Tal rebelião é o cerne da melancolia e pode se instalar como uma “ferida aberta” (p. 71) que suga a libido e dolorosamente empobrece o eu. Se essa atitude se opõe ao trabalho de luto, ela não deixa, porém, de consistir também em um “trabalho” que “consome” o eu, nos termos de Freud (p. 53). A suspensão da perda por uma radical entrega do eu ao objeto também é uma tarefa psíquica dinâmica, e em consequência dela o quadro melancólico pode se reverter em um episódio de mania, caracterizado por exaltação e agitação extremas. Tal alternância, conhecida pela expressão psicose maníaco-depressiva – ou pelos termos, atualmente mais usados, distúrbio bipolar -, mostra que se pode passar de um estado no qual o eu está quase inteiramente subjugado pelo objeto para uma situação na qual o eu teria “superado a perda do objeto (ou o luto pela perda, ou talvez o próprio objeto)” (p. 77). Talvez o eu possa até, nesse momento, reconhecer-se como melhor, “como superior ao objeto”, diz Freud (p. 85).

PERDA E DELEITE

Seja como for, o menor contato com pacientes em quadro maníaco mostra-nos quão longe ele está de ser positivo e invejável. O triunfo maníaco tem, assim como a apatia melancólica, algo de mortífero e intratável. Ambos deixam a porta aberta ao gozo, tão bem expresso por Freud ao falar do “autotormento indubitavelmente deleitável” da melancolia (p. 67). Na tradução desta expressão-chave, Marilene declina toda a sua maestria. O termo usado pelo autor, Genuss, que pode ser traduzido como gozo na esteira da jouissance em Lacan, não indica propriamente “prazer”, mas algo que está além – ou aquém – da distinção entre prazer e desprazer, algo que, sendo um sofrimento, é ao mesmo tempo um deleite. As novas traduções de Paulo César de Souza (pela Companhia das Letras) e da equipe de Luiz Hanns (pela Imago) optam por “prazeroso” e com isso perdem a oportunidade de distinguir o termo de Lust, muito mais frequente no texto freudiano e claramente referenciado a Lustprinzip (princípio de prazer). Carone acerta em cheio ao se valer das nuances semânticas que fazem de deleite algo muito mais complexo, digamos, menos imediata e diretamente sentido como prazer, ao mesmo tempo em que dão à palavra uma conotação vagamente erótica. A etimologia confirma nossas suspeitas por uma via surpreendente, confirmando a sabedoria da língua: o termo latino delectare vem de lactare, “embalar, seduzir, induzir”, que por sua vez deriva de lacere, que significa “atrair, seduzir” e se relaciona com lax lacis: “astúcia, fraude, sedução” 5. O deleite de que se trata, e que a melancolia tão bem explicita, tem a ver com o momento em que o bebê é um objeto inteiramente submetido a quem dele cuida (embala, digamos), e assim se inscreve no campo conceitual que Freud desde o início aponta com a noção de trauma e de sedução: aquele da pulsão de morte.

A melancolia, portanto, muito além de um quadro clínico bem definido e a ser diferenciado dos episódios depressivos variados que dão notícias de nosso trabalho de luto cotidiano, é uma noção que traz à tona algo fundamental ao humano, às suas paixões. E à Cultura. Disso já dava notícias a concepção de melancolia surgida na Grécia antiga e suas derivações ao longo da história ocidental até as vésperas, digamos, do surgimento da psicanálise. Como apresenta Urania Tourinho Peres em seu posfácio, no Renascimento a melancolia começou a ser associada à criação artística. Freud também a associará com a arte em um pequeno texto escrito poucos meses depois de “Luto e melancolia” e que talvez seja seu mais belo ensaio: “Sobre a transitoriedade”. Em um passeio primaveril com Lou Andreas-Salomé e o jovem Rainer-Maria Rilke, Freud se espanta que o poeta esteja impedido de fruir a beleza da paisagem pelo melancólico pensamento de que tudo isso em breve seria destruído com a chegada do inverno. Ora, afirma o psicanalista, o fato de a beleza ser passageira só aumenta seu valor! O deleite que ela nos proporciona é mesclado de luto, de renúncia, da expectativa de uma perda iminente. “O doloroso também pode ser verdadeiro”, retruca Freud diante da revolta contra a perda6.

A arte não nos poupa as impressões mais dolorosas, e no entanto pode ser vivida como um deleite superior, como nota Freud falando especialmente da tragédia, em “Além do princípio de prazer”. Tal gozo talvez seja o sinal inconteste de que houve transmissão de algo tão doloroso quanto “verdadeiro”. Entre dor e deleite, de fato – entre luto e melancolia, se quisermos – se trama em nossa vida alguma “verdade” e alguma beleza.

Notas

1 CARONE, Marilene. “Freud em português: uma tradução selvagem”. Folha de S.Paulo, caderno “Folhetim”, 21/04/1985, p. 3-4. (Posteriormente reproduzido em Souza, Paulo César de (org.). Sigmund Freud e o gabinete do dr. Lacan. São Paulo: Brasiliense, 1989.)
2 SOUZA, Paulo César de. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo: Ática, 1999, p. 77.
3 FREUD, Sigmund. “O Ego e o Id”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
4 Ibidem, p. 41.
5 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
6 FREUD, Sigmund. “Vergänglichkeit”. Gesammelte Werke, p. 359.

Tania Rivera – Psicanalista, ensaísta e professora da Universidade Federal Fluminense.

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Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis – SANCHEZ; ROELANTS (NE-C)

SANCHEZ, Claudia; ROELANTS, Bruno. Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2011. Resenha de: SINGER, Paul. O capital e a armadilha da dívida. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.93, Jul, 2012.

Em Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis, Claudia Sanchez e Bruno Roelants analisam a transformação que o capitalismo sofreu pela globalização da economia mundial que coincidiu com o triunfo da contrarrevolução neoliberal no chamado Mundo Livre, num momento em que a Guerra Fria se aproximava de seu auge e também do seu fim, no final dos anos 1970. Os autores também oferecem uma análise da presente crise econômica internacional à luz das mudanças trazidas pela Terceira Revolução Industrial – a da informática e da internet -, que tornaram possível a hegemonia do capital financeiro em plano mundial, matriz de crises sucessivas que lhe são inerentes. O que aparece às classes dominantes como “sociedade do conhecimento” se torna exclusão, principalmente pelo desemprego, para os trabalhadores.

Enquanto a série de crises iniciada em 2007 tem atraído todas as atenções, um capitalismo de novo tipo surge da penumbra, produto da desregulação do capital financeiro e de nova onda de privatização dos principais serviços públicos que, por sua essencialidade para a sobre vivência dos mais pobres, serviços sociais porque deveriam ser acessí veis a todos. A sua privatização, agora justamente nos países mais afetados pela crise e, portanto, pelo desemprego, exclui do uso desses serviços os menos aquinhoados, aprofundando a desigualdade e, por tanto, a injustiça social o que explica a expansão mundial dos “indignados”, em sua maioria jovens que percebem que o capital financeiro, simbolizado por Wall Street, e suas crises lhes roubam um futuro que as conquistas democráticas das gerações anteriores deve riam ter-lhes assegurado.

A redução dos controles nacionais das trocas comerciais e da movi mentação dos capitais especulativos entre os países afiliados à omc e ao fmi removeu os obstáculos à centralização global dos capitais. Atualmente, cadeias internacionais de produção e distribuição de bens e serviços, interligadas por conglomerados financeiros, dominam segmentos inteiros da economia mundial, o que explica a subserviência de governos nacionais democraticamente eleitos às exigências do capital financeiro global, representado por agências intergovernamentais como o fmi e o Banco Central Europeu.

O livro procura descrever a trajetória que está sendo construída pelas crises sucessivas, implicando maior destruição do que geração de riqueza. Essa trajetória é composta por três armadilhas que se fecham sequencialmente, aprisionando os que se endividaram porque acreditaram que a oferta de crédito pelos bancos jamais seria interrompida.

A primeira armadilha é a do consumo. Nos EUA, a renda da população trabalhadora estagnou, sem interrupção, no entanto, do crescimento do consumo. Entre 1992 e 2000, o crescimento do pib se baseou principalmente no aumento das compras a crédito de moradias e automóveis. Em 1990, a soma das dívidas das famílias nos EUA era igual a 85% de sua renda;dez anos depois a soma das dívidas já era igual a 101% de sua renda. Em 2007, quando estourou a crise, as dívidas das famílias comprometiam 139% de suas rendas. A desregulamentação financeira permitiu que o povo “prosperasse” enquanto o país se desindustrializava. Quando a demanda por imóveis e automóveis naturalmente se esgotou, a armadilha do consumo aprisionou milhões de famílias, muitas das quais foram duplamente punidas: perderam o trabalho e os bens adquiridos.

A segunda armadilha é a da liquidez. Quando a crise se desencadeia, os empréstimos cessam, inclusive entre os bancos, porque ninguém mais confia em que eles serão pagos no vencimento. A quase bancarrota dos maiores bancos acarreta a paralisação do crédito, ou seja, quase todas as compras têm de ser pagas imediatamente com dinheiro. Ora, como ninguém tem dinheiro porque a crise acarreta forte queda das atividades com as quais os consumidores ganham seu dinheiro, o volume de compras se contrai. Os que ainda ganham tratam de guardar o seu dinheiro em casa, embora lá ele não renda:o pânico sobrepuja a cobiça. O meio circulante é entesourado, portanto deixa de circular, exceto o pouco dinheiro gasto com compras de bens e serviços indispensáveis.

Os efeitos conjugados das armadilhas do consumo e da liquidez compõem a terceira armadilha: a da dívida. São suas vítimas não só os consumidores que se endividaram, mas todos os outros que tomaram empréstimos para investir. Nos EUA, a hegemonia financeira fez com que o recurso às dívidas se generalizasse:a informática tornou a participação nas operações da Bolsa muito fácil, de modo que a especulação financeira virou um esporte de massas. “Pela primeira vez na história da humanidade”, afirmam os autores, “a especulação é a principal fonte de geração de renda. As firmas de Wall Street haviam assumido dívidas num total equivalente a 32 vezes o seu capital próprio. ”

A financeirização (isto é, o crescimento não só do volume de dinheiro manipulado pelo setor financeiro como também da influência e, sobretudo, do poder econômico e político dos bancos e fundos de investimento) deslocou o controle das empresas dos diretamente interessados – acionistas, assalariados, gerentes, fornecedores e clientes – para os credores, que frequentemente assumem o papel de controladores do capital acionário da empresa. Os credores, no entanto, não participam diretamente da vida da firma e tampouco têm interesse em sua continuidade. Quando se tornam controladores, o seu único objetivo é recuperar o que emprestaram e o máximo de ganhos adicionais. Por causa disso, o controle de empresas da economia real – industriais, agropecuárias, comerciais e prestadoras de serviços à população – pelo capital financeiro acarreta muitas vezes o seu fechamento prematuro.

O processo se acentuou em 1992, quando o governo dos EUA pediu aos fundos de pensão (que estavam subcapitalizados) que tratassem de reestruturar e extrair o máximo de lucro de qualquer empresa no exterior em que haviam investido. A ocasião era propícia, pois a crise do endividamento externo nos países em desenvolvimento, particularmente nos da América Latina, os havia forçado a abrir suas economias e suas empresas recém-privatizadas à aquisição por estrangeiros. Os bancos da tríade EUA, Europa e Japão participaram ativamente dessa globalização, engajando-se em fusões e aquisições. Os bancos que não se lançaram nessas empreitadas logo foram adquiridos por outros1.

Criou-se assim uma nova contradição:a concentração do capital, frequentemente por iniciativa do capital financeiro, fez com que surgisse uma nova classe de firmas consideradas grandes demais para falir. São firmas de tal forma interligadas financeiramente que se alguma das maiores falir leva consigo todas as demais. Isso se verificou na prática em setembro de 2008: a quebra do banco Lehman Brothers contagiou os maiores bancos de investimento, fazendo com que a crise financeira, até aquele momento restrita aos EUA, se alastrasse pelo resto do mundo. A epidemia de falências só não ocorreu porque os governos nacionais injetaram trilhões de dólares nos bancos para salvá-los.

A submissão de uma parte cada vez maior das empresas a capitais financeiros, para os quais elas não passam de veículos para a obtenção de ganhos especulativos de curto prazo, as torna mais vulneráveis às crises produzidas pelo fechamento das armadilhas do endividamento. Para o bem comum, no entanto, toda empresa deveria ser controlada

por aqueles diretamente interessados em sua continuidade e em sua robustez produtiva, comercial e financeira. Um indício dessa mudança de opinião é a recente concessão do Prêmio Nobel de Economia a Elinor Ostrom, notória defensora da tese de que a administração dos recursos que são propriedades comuns da coletividade deve ser confiada a quem está realmente interessado em sua preservação, ou seja, à própria coletividade. Ela constata que “falta uma teoria adequadamente especificada da ação coletiva pela qual um grupo de interessados pode se organizar voluntariamente para reter os resultados de seus esforços”.

Sanchez e Roelants oferecem elementos para a construção dessa teoria mediante o estudo de quatro cooperativas, que são exemplos representativos de ações coletivas voluntariamente organizadas e que obtêm êxito em se resguardar das crises engendradas pelos excessos especulativos dos capitais financeiros. Embora distintos, os quatro casos são bastante representativos de diferentes facetas do cooperativismo contemporâneo.

O primeiro é o de uma cooperativa de mergulhadores e pescadores localizada em Natividad, uma pequena ilha na costa do México, em que moram cerca de oitenta famílias, que vivem da captura de abalones, um marisco muito raro e valioso. Criada em 1942, a cooperativa explora áreas marítimas por concessão do governo. Nos anos 1980, a corrente marítima El Niño aqueceu as águas nessas áreas, o que reduziu o estoque de mariscos, levando à superexploração das reservas de abalones tanto pela cooperativa como pela pesca ilegal de gente de fora. No fim da década a cooperativa conseguiu controlar as práticas predatórias e evitar se envolver numa corrida por ganhos em curto prazo. Adotou uma abordagem científica ambiental e contratou um biólogo. Durante a crise, a assembleia de sócios da cooperativa decidiu fechar uma zona marítima à pesca por quatro anos. Graças à cessação da pesca, os abalones se reproduziram. Quando a pesca nessa zona foi retomada, a cooperativa obteve mais benefícios do que havia sido esperado.

O biólogo da cooperativa propôs que ela investisse em reservas marítimas, tendo em vista assegurar que no futuro houvesse disponibilidade de abalones, pepinos-do-mar e caracóis marítimos. A proposta foi aprovada e a cessação da pesca em determinado espaço reduziu a receita anual da cooperativa em 300 mil dólares, mas os membros esperam que o sacrifício seja compensado no futuro. As concessões de pesca deverão ser renovadas em 2012, e os membros da cooperativa têm bons motivos para esperar que consigam a renovação, o que lhes permite planejar a longo prazo a preservação das áreas de pesca e o desenvolvimento da cooperativa.

O segundo caso estudado é o da Ceralep, uma empresa francesa de pequeno porte fundada em 1921 que produz isoladores de cerâmica. Em 1973 ela se fundiu com outro importante produtor e desde então se tornou a única companhia na França que produz isoladores cerâmicos muito grandes. Em 1989, a Ceralep foi adquirida pela firma suíça Laufen, que a revendeu em 1993 à austríaca Ceram. Essas transações sucessivas fizeram a Ceralep passar por três controladores de diferentes nacionalidades no espaço de vinte anos. Tanto os suíços como os austríacos tentaram debalde se apoderar da tecnologia dos isoladores cerâmicos.

Em 2001, a Ceralep passou a ser controlada pela firma estadunidense ppc Insulators, que começou a agir de forma estranha:demitiu o diretor, mas atendia sem hesitação os pedidos de aumentos salariais dos empregados. A produção caiu muito e os trabalhadores não tinham o que fazer, o que os envolveu num clima extremamente desmoralizante, que se agravou quando os empregados descobriram que a ppc Insulators planejava fechar a Ceralep. É preciso compreender que o fechamento de uma firma que funcionava com êxito há oitenta anos deve ter sido um evento trágico para seus empregados, muitos dos quais passaram grande parte de suas vidas nela e certamente não viam qualquer perspectiva de emprego em outra firma2.

Os operários decidiram resistir à liquidação da empresa. Impediram diversas tentativas de remoção de máquinas bloqueando a entrada de caminhões na fábrica. Estas ações impediram efetivamente os controladores de fechar a firma, levando-os a entregar, em 2003, uma petição de falência, o que possibilitou mais tarde a compra da massa falida pelos empregados. Estes imediatamente escreveram uma carta aberta ao promotor distrital, ao síndico da falência e ao prefeito do departamento de Drôme denunciando que a administração e os acionistas tencionavam quebrar a empresa e condenar os 150 operários e o tecido econômico e social do distrito de Saint-Vallier.

Começou então uma batalha para evitar a destruição da Ceralep. Os trabalhadores se mantiveram unidos e contaram com a ajuda da União Regional de Cooperativas Operárias e da gente simples da comunidade: 802 pessoas doaram um total de 50 mil euros para integrar o capital de giro da futura cooperativa; o fundo francês Socoden de solidariedade das cooperativas operárias emprestou 100 mil euros; o banco cooperativo Crédit Cooperatif também contribuiu até que o milhão e meio de euros necessário para estabelecer a cooperativa fosse reunido.

Os apoios obtidos que ajudaram a impedir o fechamento da Ceralep e asseguraram sua continuidade na forma de um empreendimento cooperativo autogestionário confirmam a veracidade das afirmações contidas na carta aberta dos trabalhadores: a ameaça do fechamento da Ceralep de fato condenaria não só os 150 operários da empresa como também o tecido econômico e social da região.

Todas as autoridades públicas da região, da municipalidade e a associação de municipalidades apoiaram o projeto dos operários, dando-lhe uma ajuda substancial. A racionalidade da Ceralep foi distorcida por investidores absenteístas em ininterrupta sucessão, que se tornaram controladores à distância e trataram a firma como uma ficha trocável numa cadeia global de suprimentos. Esta racionalidade levou a firma à bancarrota. Uma vez removida a causa, a companhia na forma de cooperativa está indo bem, pois o controle foi entregue aos diretamente interessados.

O terceiro caso estudado no livro em exame é o do Grupo de Cooperativas de Crédito Desjardins, que é a mais importante instituição financeira da província canadense de Québec e a sexta maior do Canadá. Com ativos no valor de us$ 155,5 bilhões, é um dos principais atores financeiros e econômicos da nona maior economia do mundo. Desjardins é também o maior empregador privado de Québec com 39 mil empregados e está entre os maiores empregadores do Canadá, com um total de 42 mil empregados no país. Apesar de todo esse poderio econômico, financeiro e empresarial, Desjardins não procura maximizar o retorno sobre o investimento dos acionistas, mas assegurar serviços satisfatórios para os seus 5,8 milhões de membros proprietários, dos quais 5,4 milhões em Québec, que constituem 70% da população da província.

O Grupo Cooperativo Desjardins, criado há 110 anos para atender às necessidades financeiras de pequenos agricultores, produtores e assalariados, é formado por 481 cooperativas de crédito locais autônomas, que em conjunto o possuem e controlam. Os autores se detêm na história do Grupo Desjardins porque se trata de um dos maiores conglomerados financeiros do mundo que, num período em que o capital financeiro se globaliza e conquista incontrastável hegemonia na economia capitalista mundial, se mantém fiel à sua missão cooperativa e a seus membros-clientes pertencentes às classes trabalhadoras, sem com isso perder a competitividade.

O Grupo Desjardins conseguiu democratizar e descentralizar os serviços financeiros, tornando-os acessíveis a todas as classes e os difundindo pelas comunidades locais de Québec. Fez com que várias gerações de quebequenses aprendessem a agir coletivamente para desenvolver suas economias locais e adquirissem através de suas caisses scolaires os conhecimentos básicos de como poupar. Atualmente, 6 258 presidentes e membros de diretorias das cooperativas de crédito locais aprenderam como um banco funciona e são responsáveis pela sua supervisão.

O grupo desenvolve uma oferta integrada de crédito a meio milhão de negócios, que são seus clientes. Para alcançar tais resultados, teve de construir delicado equilíbrio entre as imposições da concorrência financeira e os seus objetivos sociais e entre a segurança financeira de longo prazo de seus membros e as aspirações de curto prazo de seus membros dos mesmos. Ao fazer isso, Desjardins se opõe às armadilhas do consumo e da dívida analisadas acima. Na realidade, não gera risco sistêmico, mas apoia o desenvolvimento econômico e social de longo prazo e promove a igualdade e a confiança.

A estruturação das caisses num agrupamento horizontal desencadeou um forte potencial econômico e social; em vez de permanecerem estruturas isoladas, como eram no começo e poderiam ter permanecido, as cooperativas de crédito locais do Grupo Desjardins conseguiram criar um dos maiores grupos financeiros da América do Norte, sem perder sua capilaridade e continuando totalmente dedicadas à prestação de serviços ao cidadão local e aos negócios locais. A tendência a um excesso de fusões foi controlada, o perigo de que as subsidiárias – seguradoras, fundos de capitalização e fundos de investimentos regionais – pudessem aumentar sua influência em termos de gestão tecnocrática foi igualmente evitado por uma série de reformas de governança sucessivas que incrementou o controle sobre as subsidiárias.

Ao expandir a lógica cooperativa de priorizar a base das cooperativas locais para um sistema tão amplo como a província de Québec, com seus quase 8 milhões de habitantes, Desjardins foi o promotor de uma mesoeconomia, tendo sido por mais de um século um dos principais atores no desenvolvimento de comunidades locais em Québec, além de ter desempenhado um papel-chave na estabilidade financeira do Canadá. Além disso, contra as assimetrias de informação, que muitos interessados sofrem, como é o caso de clientes de grandes instituições financeiras, onde a confiança dos clientes está sendo superada por arranjos opacos e segmentados de contrapartes, Desjardins não apenas nutre a noção de um movimento de proprietários-clientes ao qual se dedica, mas fornece aos últimos informações sobre o grupo de negócios, textos de discussão para ajudá-los a formar opinião na tomada de decisões e lhes oferece treinamento para ajudá-los a administrar suas cooperativas locais. A história de Desjardins também demonstra que crises sucessivas, como a Grande Depressão de 1929, várias crises nos anos 1980 e 1990, e a atual crise global, em vez de ameaçar a existência do grupo de fato a reforçaram, além de lhe dar oportunidade de realizar inovações institucionais e melhorar sua missão fundamental: a de servir seus membros.

O quarto e último caso teve por objeto o Grupo Corporativo Mondragon. Trata-se de um grupo horizontalmente integrado por mais de 110 cooperativas industriais, de serviços, finanças, distribuição, educação e pesquisa, centrado na cidade de Mondragon, na região basca da Espanha. Em 2010, era um grande conglomerado produzindo eletrodomésticos, máquinas-ferramentas, componentes de computadores, mobília, instalações de escritório, materiais de construção, transformadores, componentes de automóveis, moldes para ferro fundido, sistemas de resfriamento, equipamento médico, alimentos e outras manufaturas. Desenvolve uma série de atividades de serviços como engenharia, urbanismo, pesquisas em setores industriais, nanotecnologia, e compreende uma grande cadeia de supermercados, um banco e uma universidade. É considerado o maior complexo cooperativo do mundo, sendo a maior organização empresarial do País Basco e a sétima da Espanha.

A criação do Grupo Corporativo Mondragon foi inspirada pelo padre José Maria Arizmendiarreta, que em 1941, aos 26 anos, tornou-se pároco de Mondragon, dois anos após a guerra civil que havia ensanguentado a Espanha, na qual combateu ao lado dos republicanos. A pobreza reinava em Mondragon, cuja única grande empresa era uma metalúrgica que oferecia uma escola profissional para os filhos de seus operários. O jovem pároco tentou convencer a família proprietária da empresa a abrir a escola aos demais jovens da cidade, mas não teve êxito. Partiu então para a fundação de outra escola profissional, aberta a todos os moradores de Mondragon. Para obter os recursos necessários o padre promoveu uma campanha bem-sucedida de contribuições entre a população, recebendo apoio de 15% de seus moradores.

A nova Escola Politécnica foi a matriz do complexo cooperativo: cinco ex-alunos adquiriram – também com a ajuda da população – uma empresa falida, que se tornou a cooperativa ulgor, fundada em 1956. O padre ajudou na empreitada e desde então passou a ser uma espécie de orientador espiritual da cooperativa. Um dos princípios adotados foi limitar o tamanho da cooperativa para que a autogestão da mesma pudesse contar com a participação consciente de todos os sócios. Quando a ulgor passou a crescer, estimulada pela demanda por seus produtos, partes dela se separaram e foram transformadas em novas cooperativas: a Arrasate, fundada em 1958, fabrica máquinas-ferramentas; fundadas em 1963, a Copreci produz componentes de fogões domésticos e industriais e a Ederlan produz peças fundidas. As três eram parte da ulgor e continuaram vendendo quase toda sua produção para esta última.

As cooperativas desmembradas foram unidas à cooperativa matriz, formando todas uma cooperativa de segundo grau; nesta os excedentes das cooperativas singulares são somados e redistribuídos por igual a cada uma, o que facilita a formação dos preços que as cooperativas fornecedoras cobram da cooperativa matriz pelos produtos que lhe fornecem. Quarenta e cinco por cento dos excedentes são colocados em um fundo de reserva destinado principalmente a financiar novos investimentos3.

Essas regras colocam os interesses da coletividade claramente acima dos interesses individuais, tanto das cooperativas singulares como dos sócios. A elas deve ser atribuída a notável coesão que permitiu ao grupo se desenvolver notavelmente ao longo dos últimos 55 anos. Com o aumento do número de cooperativas, o grupo criou instituições de apoio, na forma de cooperativas de segundo grau cujos sócios são as cooperativas singulares. Em 1959, por insistência do padre Arizmendi, foi criada a Caja Laboral Popular – uma cooperativa de crédito que hoje é o grande banco do grupo, cuja divisão empresarial incuba as novas cooperativas4.

Os órgãos de direção de cada cooperativa de segundo grau são formados por representantes dos trabalhadores da própria cooperativa e dos trabalhadores das cooperativas singulares, geralmente em proporções iguais. Em 1969, a Caja promoveu a fusão de nove pequenas cooperativas de consumo, dando origem à Eroski, hoje a maior empregadora do grupo e uma das maiores redes de supermercados da Espanha. Enquanto cooperativa de consumo, sua direção é partilhada por igual por representantes dos consumidores associados a ela e dos trabalhadores que nela atuam.

O tema central do estudo de Mondragon é o efeito das crises sobre o grupo cooperativo e de que modo este as enfrentou. Em 1986, a Espanha aderiu ao Mercado Comum Europeu, abrindo o seu mercado interno às importações dos outros integrantes do Mercado Comum. A entrada dessas mercadorias no país captou boa parte da clientela que antes comprava os produtos da indústria nacional, inclusive das cooperativas do grupo de Mondragon. A crise se manifestou na forma de aguda queda das vendas, obrigando as cooperativas atingidas a reduzir a produção, deixando parte dos seus sócios sem trabalho.

O grupo cooperativo enfrentou a crise priorizando a preservação dos empregos. O caso de cada cooperativa atingida pela crise era estudado pela Caja em conjunto com a Lagun Aro, a cujo cargo estava o pagamento de seguro-desemprego aos associados. O salvamento dessas cooperativas geralmente exigia mudanças da linha de produção ou da estrutura de marketing, corte dos salários e/ou reforço do capital da cooperativa mediante contribuições dos trabalhadores. Apenas em casos extremos exigia-se redução de postos de trabalho. As propostas de medidas para o enfrentamento da crise eram submetidas a extensas consultas aos membros das cooperativas ameaçadas e naturalmente surgiam contrapropostas, o que exigia votações sucessivas até a formação de um consenso.

O êxito econômico inegável de cooperativas de modestos ceramistas, como no caso da Ceralep, ou de não menos modestos pescadores e mergulhadores, como os da cooperativa de Natividad, combina perfeitamente com a pujança de extensos complexos ou corporações, como demonstram os casos de Desjardins e de Mondragon. Em pequena ou grande escala, as cooperativas são viáveis mesmo quando enfrentam circunstâncias inóspitas das crises provocadas pelo capital financeiro desregulado. Sua capacidade de resistir a quedas inesperadas da demanda é notável, resistência que é fruto sobretudo da solidariedade entre membros das cooperativas e das comunidades em que as cooperativas se localizam, como evidenciam os casos de Ceralep e Mondragon. É difícil exagerar a oportunidade e a importância desta obra. Ela merece a leitura atenta e o debate engajado de todos que se preocupam com os perigos e as oportunidades que a presente crise apresenta.

Notas

1 “Só em 1997 houve 599 fusões bancárias nos EUA, reduzindo o número total de bancos de cerca de 14000 para 9143.”
2 Um deles se suicidou na fábrica, deixando uma carta em que revelou que não suportava mais a pressão, muito provavelmente decorrente da espera inerte pelo fim de tudo que dava sentido a sua vida.
3 Esse fundo é indivisível, ou seja, jamais poderá ser dividido entre os sócios. Fundos indivisíveis são criados para garantir a sobrevivência da cooperativa, nos casos em que sócios resolvam se retirar dela. Estes têm direito a receber sua parte do patrimônio não indivisível. O dinheiro depositado no fundo indivisível continuará pertencendo aos sócios que permanecem na cooperativa. Os outros 55% dos excedentes são dos sócios, mas só lhes será entregue anos depois que deixar em a cooperativa.
4 Ainda em 1959, foi criada a Lagun Aro, a entidade de previdência do grupo. Na época as cooperativas estavam excluídas do sistema previdenciário oficial.

Paul Singer – Professor titular da fea-usp e titular da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES).

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Liberdade | Jonathan Franzen

Mesmo antes de sair nos EUA, em setembro de 2010, Liberdade já era objeto de atenção. O livro anterior de Franzen, As correções, de 2001, fizera bastante barulho: ganhou, entre outros, o National Book Award, principal prêmio literário do país, e transformou Franzen numa das promessas mais auspiciosas da literatura americana. Mal começaram a sair as primeiras resenhas elogiosas de Liberdade, Oprah Winfrey incluiu-o em seu clube de leitura, o Guardian pespegou-lhe o epíteto de “livro do século” e a revista Time estampou na capa uma foto do escritor acompanhada da legenda: “O grande romancista americano”.

Parte do frisson em torno de Franzen tem a ver com essa obsessão pelo “Grande Romance Americano”. É um fetiche entre os autores de lá e uma espécie de santo graal da literatura: o grande autor é aquele que consegue transferir para o romance os pontos nevrálgicos da experiência do país. A trinca sagrada da prosa americana da segunda metade do século fez isso: John Updike, Phillip Roth e Saul Bellow devem boa parte de sua reputação ao modo como plasmaram a experiência dos EUA num determinado recorte de sua obra. Em As aventuras de Augie March (1953), de Saul Bellow, por exemplo, lê-se na primeira linha: “Sou americano, nascido em Chicago…” .De saída estamos diante da tentativa de responder a essa pergunta:o que é ser americano?

Essa é uma tradição francesa do século XIX, a do homem de letras empenhado em responder às grandes perguntas do seu tempo. Com a transformação dos EUA em grande potência no século XX, a função se torna estratégica em face de uma experiência cuja ressonância assume escala mundial.

Franzen disputa o posto de herdeiro dessa tradição. O barulho da mídia é também reflexo da expectativa de que ele possa assumir o bastão dessa linhagem nobre em nome da nova geração. É importante lembrar que nessa transição ocorreram os atentados de 11 de Setembro.

Não é, portanto, apenas o lugar do novo grande romancista americano que está vago, mas o lugar do grande romancista capaz de dar sentido a uma experiência traumática. Em certa medida, um evento como esse contribui para injetar vitalidade à atividade de escritor, de pronto convocado ao papel de intérprete de seu tempo.

É uma ideia complicada. O que se pode esperar da literatura como forma capaz de plasmar essa experiência? Como a competição com as humanidades e a indústria do cinema, da internet e da televisão interfere na capacidade da literatura em dar sentido a esse debate? Esse livro aspira à condição de grande romance, mas o frisson em seu redor, para ser compreendido, deve ser visto ao lado do prestígio alcançado pelo romance no século XIX e início do XX e da nostalgia em relação à centralidade de que já desfrutou um dia.

É simples identificar o que em Liberdade permite situá-lo como herdeiro dessa tradição. São setecentas páginas que procuram tocar os nervos da experiência americana dos últimos trinta anos. Os governos Reagan, Clinton e Bush, o terrorismo, a questão palestina, o crescimento econômico desgovernado, o aquecimento global, o conflito entre gerações, a mercantilização da cultura, a explosão do mercado financeiro, o sistema de saúde, o politicamente correto nas universidades. O cardápio é tão variado que por vezes lembra uma lista de tarefas a cumprir.

O que o salva da condição de manual é a habilidade de Franzen em atar esses temas às funções que desempenham na trama, que é bem urdida e evolui com naturalidade.

O fio é a transformação do casal Walter e Patty Berglund em ruína sentimental e moral. Ela vem de uma família liberal endinheirada de Nova York em que jamais se integrou. Não se interessava por livros ou política:era jogadora de basquete e se dedicava com ardor a isso, apesar do desprezo da mãe. Foi por ser jogadora que obteve uma vaga numa faculdade de segunda linha, em Minnesota, no início dos anos 1980.

Walter, seu colega na faculdade, era filho de pai alcoólatra e mãe trabalhadora, dona de motel de beira de estrada numa cidade do interior. Mas era o esforçado da família, o primeiro a fazer curso superior, o moço abstêmio, inábil com as mulheres e não particularmente bonito. Mas ele vence pelo cansaço, e eles se casam no fim dos anos 1980, têm um casal de filhos e adotam uma vida de família burguesa em Minnesota.

O fator de tensão entre os dois, desde a faculdade, é Richard Katz. Richard era o melhor amigo de Walter e ao mesmo tempo seu antípoda. Era bonito, sexy e inconsequente. Walter, por outro lado, era um exemplo de lealdade e um esteio para o desregramento do colega. Desde aqueles anos, Patty cultivava uma paixão por Richard que não se concretizava em razão da lealdade entre os amigos. Resignada, Patty cedeu aos apelos de Walter menos por amor do que por falta de opção.

Ao longo de todo o livro, Richard permanece uma sombra para o casal. Muitos anos depois, numa casa de campo, Patty e Richard passam dois dias juntos e transam, por insistência de Patty. Um pouco depois, ao cabo de anos tocando para pouca gente e amargando fracasso atrás de fracasso, Richard grava um disco de sucesso e se torna uma figura hype no mundo da música.

Os dias que Patty passa com Richard e o sucesso dele mudam tudo na vida dos Berglund. Walter, com ciúme, torna-se competitivo. Ressentido com o silêncio do amigo, que parecia se afastar dele nesse período de bonança, muda de emprego e se aproxima de políticos de má índole. Patty, depois do caso com o amigo do marido, cai em depressão.

Há ainda a relação conturbada com os filhos. Joey, o mais velho, sai de casa na adolescência para morar com a namorada, a vizinha Connie Monaghan. Isso para desespero de Patty, que odeia a mãe de Connie e sobretudo o namorado dela. O sujeito é um machão truculento, vidrado em carros, armas, e simboliza o protótipo do americano tosco, da direita mais empedernida. É essa figura que vira influência para Joey: depois de dois anos na casa do vizinho, ele vai cursar economia, sonha trabalhar em Wall Street, resgata suas raízes judaicas e vira um republicano envolvido com interesses de Bush na invasão do Iraque.

O que prende a atenção é essa espiral em direção à desintegração, ao fracasso da relação, à sucessão de passos em falso em que a vida do casal vai se transformando. A estrutura romanesca é essa. E o que Franzen consegue construir em redor dela constitui o espírito de época que o romance, de modo mais abrangente, tenta capturar em sua busca pela vaga de herdeiro da linhagem mais nobre da tradição literária americana.

A parte mais substancial é dedicada à era Bush: são os dilemas pós-11 de Setembro que aparecem com mais força e que Franzen procura examinar de modo detido. A trajetória de Joey é exemplar disso: a descoberta do judaísmo e a vontade de explorar essa identidade vêm num contexto de reação ao terrorismo, num movimento que parece acompanhar o renascimento da direita conservadora americana logo após 2001. Sujeito oportunista, frio e incapaz de afetividade, Joey é um retrato pouco lisonjeiro dos quadros que a causa republicana é capaz de cativar.

Vale o mesmo para a onipresença do discurso ambientalista. O sarcasmo é grande e ocupa boa parte da trajetória de Walter Berglund. Desafiado pelo sucesso de Richard, Walter deixa o emprego numa unidade de conservação em Minnesota para encarar uma enrascada em Washington. Ele assume o Fundo de Conservação da Mariquita-Azul, na verdade uma grande piada. O fundo é invenção de um bilionário do Texas, amigo de Bush e Dick Cheney, interessado em vender reservas para empresas que exploram a extração de carvão, nocivas e poluentes. O tal fundo é uma cortina de fumaça, uma licença para destruir tendo como álibi a preservação da espécie. Ingênuo e bem-intencionado, Walter cai na arapuca – e é o nome dele que vai parar no New York Times quando fica claro o que está por trás do fundo da mariquita-azul.

Franzen é ornitólogo e adora observar pássaros, mas o ambientalismo do século XXI aparece em seu livro como tolice de gente bem-intencionada. Há acidez no modo como ele trata o discurso em defesa do controle de carbono, contra o aquecimento global e o crescimento demográfico. A crítica aos republicanos e à direita é evidente, mas também o discurso politicamente correto é alvo de sarcasmo.

A Nova York dos círculos letrados e progressistas que ele retrata, da mesma maneira, está longe de ser ambiente estimulante. Estão todos munidos de smartphones e ipods, prontos para consumir as novidades do mercado cultural sob a forma de “autenticidade” ou “atitude”. O personagem de Richard Katz é o veículo das críticas disparadas ao intelectualismo bem-intencionado e ao cinismo dos liberais endinheirados nos rooftops de Tribeca e do Chelsea. Não há autenticidade possível. A decisão de Katz de voltar a ser trabalhador braçal mesmo depois do sucesso de seu disco aponta nessa direção.

Nova York é também a síntese do que Patty odeia em sua família. Democratas, judeus heterodoxos e de cabeça aberta, seus pais aparecem, logo no início do livro, a cometer uma enormidade: adolescente, Patty foi estuprada numa festa por um colega de escola. Mas o garoto era filho de doadores importantes da campanha eleitoral de sua mãe, de modo que os pais se reconciliam com a família do agressor.

Liberdade ganhou pecha de ingênuo, como se a crítica aos republicanos fizesse de Franzen um autor a serviço do bom-mocismo da era Obama. O livro não pende para um lado só do espectro político nem faz proselitismo fácil, com uma ou outra exceção, como o modo esquemático com que retrata o sistema público de saúde, pauta evidente demais nos editoriais da imprensa democrata para não esbarrar no artificialismo. Mas não é ao acusar Franzen de esquerdista ingênuo que se fará boa crítica de seu trabalho.

O ponto em discussão diz respeito à forma do livro. Desse ponto de vista, é uma obra convencional. Da mesma maneira que a imagem de “homem de letras” em nome da qual a revista Time elogiava o autor é do século XIX, também do ponto de vista formal Franzen se movimenta num registro antigo. Ele dialoga pouco com a tradição do romance do século XX. Esse é um repertório que a ele não interessou incorporar e que pode ser visto como fraqueza de certo ponto de vista crítico. Está claro, contudo, que não teria obtido essa ressonância se fosse autor de um livro experimental, e aí pode haver boa dose de cálculo.

Há dois exemplos a esse propósito. Um é o primeiro parágrafo, cartão de visitas para qualquer obra de ficção. Outro é a maneira quase imperceptível com que tenta variar a voz narrativa em situações que a estrutura parece pedir isso. As primeiras linhas do livro dizem o seguinte:

A notícia sobre Walter Berglund não circulou localmente – ele e Patty tinham se mudado para Washington dois anos antes e já não significavam nada mais para St. Paul -, mas o povo de Ramsey Hill não era leal à sua cidade a ponto de deixar de ler o New York Times. […] Seus ex-vizinhos tiveram dificuldade em conciliar os adjetivos com que o Times o qualificava (“arrogante”, “presunçoso”, “eticamente comprometido”) com o vizinho generoso, sorridente e corado que viam pedalando até a condução para o trabalho todo dia […] Se bem que sempre tinha havido algo estranho na família Berglund.

Esse primeiro parágrafo é poderoso. Todas as setecentas páginas seguintes são dedicadas a mostrar como se deu essa queda que levou a família exemplar até as páginas de escândalo do Times, coisa que só acontece ao fim do livro, quando Walter atua como laranja dos republicanos interessados na extração de carvão. Mas é também um truque romanesco dos mais convencionais: o autor puxa um elemento decisivo do fim da história para as primeiras linhas, de modo a prender a atenção do leitor até que essa isca, lançada logo de início, se mostre em sua totalidade.

Vale comparar com uma abertura célebre, a de Anna Karenina, de Tolstói:

Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.

Na segunda linha, já se sabe que o narrador vai passar as páginas seguintes a contar uma desgraça familiar. Mais que isso:uma desgraça particular, que só poderia ter sido vivida daquela maneira.

Não é casual a comparação com Tolstói. Algumas páginas de Liberdade são dedicadas a paráfrases de Guerra e paz, que Patty lê em seu retiro na casa de campo. Como nos grandes livros de Tolstói, em Franzen o centro é também o drama familiar. Assim como na obra do escritor russo, há uma capacidade de conferir humanidade aos personagens que por vezes parece suspender a mediação do autor, como se a própria realidade se escrevesse de forma espontânea diante de nossos olhos.

As variações da voz narrativa são uma fragilidade mais evidente. Franzen sabe bem que o romance contemporâneo não pode prescindir de questionamento sobre a forma de narrar. Compõe seu livro, assim, a partir de dois narradores: um é onisciente, em terceira pessoa, bem aos moldes do romance do XIX. Outros trechos, contudo, são narrados por Patty Berglund. Por sugestão de seu terapeuta, ela escreve uma autobiografia, que faz as vezes de segundo capítulo e ocupa cento e tantas páginas.

É de estranhar a pequena variação entre os trechos do narrador convencional e aqueles narrados por Patty. Ela também escreve em terceira pessoa, com raras referências à “autobiógrafa”. E escreve com brilho, com passagens que funcionam nas mãos de um escritor de talento como Franzen, mas que não convencem quando se tem em mente que a voz é de uma dona de casa deprimida e ex-jogadora de basquete. Franzen tenta marcar a diferença: assim que acaba a autobiografia, entram parágrafos imensos, sem ponto final, como a indicar essa mudança. Mas são ocorrências episódicas, que não marcam o andamento do texto e deixam essa incompletude no ar.

Franzen não é um romancista acabado e é saudável desconfiar da histeria em torno de seu livro. Mas isso não é o mesmo que lhe negar os méritos. Há um lugar vago para o grande intérprete literário da alma americana pós-11 de Setembro. O escritor que der sentido a ela por meio de uma imagem forte como a da família Berglund terá decerto destaque merecido.

É cedo para dizer se Franzen é essa figura, mas está sem dúvida entre aqueles capazes de aspirar a essa condição. Suas ambições de ser o Tolstói do século XXI podem suscitar desconfiança quanto à capacidade de renovar a forma do romance e também sugerem pouca disposição para uma discussão necessária sobre o papel que cabe hoje à ficção literária. Mas a intensidade com que essas ambições são praticadas em seus livros é rara e digna de nota. E elas só podem fazer bem para a literatura num momento em que sua morte é decretada a cada dia.

Flavio Moura – sociólogo.


FRANZEN, Jonathan. Liberdade. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: MOURA, Flavio. Ambição e Nostalgia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.93, Jul, 2012. Acessar publicação original

Sobre a Constituição da Europa – HABERMAS (C-FA)

HABERMAS, Jürgen. Sobre a Constituição da Europa.Tradução de Denilson Luis Werle; Luiz Repa e Rúrion Melo. São Paulo: Editora da UNESP, 2012. Resenha de: BRESSIANI, Nathalie. Habermas em português. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.20, Jun./Dez., 2012.

Os leitores de Jürgen Habermas em português contam, desde o segundo semestre de 2012, com uma tradução brasileira do mais recente livro do autor, Sobre a Constituição da Europa. A boa notícia não se restringe, contudo, ao importante fato de que, com isso, o público brasileiro passa a ter acesso a um livro de Habermas logo após sua publicação original, em alemão. A cuidadosa tradução de Sobre a Constituição da Europa, feita por Denilson Luis Werle, Luiz Repa e Rúrion Melo é também a primeira de uma série e marca o início da mais nova coleção da Editora UNESP, que publicará quase que integralmente as obras de Habermas em português.

Coordenada pelos três tradutores e por Antonio Ianni Seggato, a coleção representa o início de um longo trabalho de tradução que disponibilizará, nos próximos anos, tanto textos inéditos como livros de Habermas já vertidos para o português, dando sempre prioridade a seus trabalhos mais recentes e aos que não possuem tradução, bem como àqueles cuja tradução seja de difícil acesso ou não satisfaça os padrões já alcançados pela pesquisa acadêmica no Brasil (p. IX).

Dentre os próximos títulos a serem publicados pela coleção, estão Teoria e Prática e Fé e Saber, até hoje inéditos em português, e novas traduções de Conhecimento e Interesse e Mudança Estrutural da Esfera Pública, com o novo prefácio escrito pelo autor na ocasião dos 30 anos da publicação do livro.

Reconhecendo a importância de Habermas para diversos campos do conhecimento e a consolidação de seus estudos no Brasil, a coleção da Editora UNESP certamente permitirá que a recepção de suas obras seja ainda mais ampliada, bem como contribuirá para a sedimentação – já em curso – de um vocabulário habermasiano em português, indispensável para que o trabalho do autor seja melhor compreendido em seus diversos momentos e para que suas influências e ressonâncias no debate atual sejam percebidas com maior clareza.

Tendo isso em vista, a escolha de Sobre a Constituição da Europa como primeira publicação da coleção é bastante feliz. Composto por dois ensaios e um adendo, no qual constam dois breves artigos e uma entrevista, este é um livro heterogêneo, em que Habermas discute várias questões de perspectivas distintas. Sem se limitar a uma análise especialista de viés jurídico, econômico ou político do processo de constituição da União Europeia ou de abrir mão da postura crítica fundamentada que caracteriza seu trabalho, neste livro Habermas lança mão do conhecimento sedimentado em diversas áreas para fazer um diagnóstico crítico do tempo atual.

No primeiro ensaio, intitulado “O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos”, o autor se debruça sobre questões mais propriamente filosóficas, relativas à fundamentação dos direitos humanos e sua relação com a moral, ressaltando o vínculo estrutural existente entre a violação da dignidade humana e a gênese dos direitos humanos. No segundo ensaio, por sua vez, Habermas se volta a questões de diagnóstico de época e apresenta uma interessante compreensão sobre a atual crise econômica, política e democrática pela qual passa a Europa. Tema que constitui também o objeto dos dois artigos e da entrevista que compõem o adendo. Assumindo, nesses textos, um tom visivelmente mais otimista face aos potenciais democráticos da União Europeia depois da ratificação do Tratado de Lisboa, 1 Habermas ressalta a possibilidade de que os novos desenvolvimentos dessa instituição permitam a ampliação e a garantia dos direitos humanos para além do Estado-nação e façam frente às forças econômicas sistêmicas, que até então haviam ditado as prioridades e os rumos da UE.

O vínculo entre as duas partes do livro, de resto bastante distintas, parece estar exatamente na importância que o autor confere, em ambas, aos direitos humanos. Afinal, se, no primeiro ensaio, Habermas procura reconstruir a origem moral dos direitos humanos, com o objetivo de fundamentar a tendência à sua efetivação universal, na segunda, ele passa a discutir essa mesma efetivação de um outro ponto de vista, isto é, a partir do caso europeu. Retomando, nesse momento, diversos elementos de sua teoria social dualista, Habermas desenvolve um diagnóstico dos processos de unificação da Europa, por meio do qual explicita os diferentes projetos de Europa em jogo atualmente e identifica as tendências e os bloqueios existentes para sua realização.

Mesmo sem lançar mão textualmente da distinção entre sistema e mundo da vida, Habermas a retoma implicitamente ao identificar a tendência do sistema econômico globalizado em escapar das regulações estatais e ao problematizar o déficit de legitimação decorrente da dificuldade dos Estados nacionais em lidar com tal tendência.2 Segundo Habermas, tendo desencadeado a atual crise, o processo de globalização econômica em curso representa a volta de uma forma de neoliberalismo que afasta a economia da regulação democrática dos Es tados nacionais, ao mesmo tempo que aprofunda as desigualdades econômicas, tanto entre os países quanto em seu interior. Como afirma ele, “os mercados financeiros, principalmente os sistemas funcionais que perpassam as fronteiras nacionais, criam situações problemáticas na sociedade mundial que os Estados individuais – ou as coalizões de Estados – não conseguem mais dominar” (p. 5).

O objetivo de Habermas na segunda parte de Sobre a Constituição da Europa não é, contudo, apenas mostrar os resultados recentes dos desenvolvimentos de uma economia que se autonomizou, mas também o de apontar para as forças que se opõem a esse processo. Uma dessas formas de oposição, descartada por ele rapidamente, é a proposta daqueles que, céticos frente à possibilidade da consolidação de instituições democráticas transnacionais, continuam a insistir nos Estados nacionais como os principais atores políticos. Ressaltando o caráter irreversível do processo de globalização da economia mundial, Habermas recusa essa posição e defende que hoje não é mais possível se esquivar da necessidade de criar instituições democráticas cosmopolitas para lidar com o novos desafios gerados pela economia globalizada.

Tomando tal irreversibilidade como ponto de partida, o que está em causa na análise de Habermas é, na verdade, o caráter e os funda mentos das instituições transnacionais. Segundo o autor, estamos hoje diante de dois projetos distintos de Europa (cf. p. 49). O primeiro deles, problematizado por Habermas, equivale à tentativa de fazer da UE um Conselho Europeu, no qual os 17 chefes de Estado dos países membros decidiriam sobre os mais diversos assuntos e, esvaziando de importância os parlamentos nacionais, criariam um sistema de federa lismo executivo que corresponderia a “um modelo de exercício de dominação pós-democrática” (p. 2). Habermas entende que, escondendo-se atrás de um discurso supostamente não político, tal projeto prevê que as principais decisões políticas fiquem na mão de burocratas ou especialistas, fazendo com que a formação política da vontade se torne supérflua. Se, para o autor, esse projeto perdeu parte de sua força, isso não o impediu de fazer com que os cidadãos europeus tenham ainda hoje a sensação de impotência frente a um sistema político e econômico que parece ter descolado da democracia.

Em Sobre a Constituição da Europa, no entanto, Habermas não aposta na tendência de consolidação da UE como um sistema pós -democrático de dominação política, pelo contrário. De acordo com ele, “o sonho de ter ‘mecanismos’ que tornariam supérflua a formação da vontade política comum e que manteriam a democracia sob controle se estilhaçou” (p. 1). O Tratado de Lisboa, a pressão pela efetivação dos direitos humanos e pela institucionalização de uma democracia cosmopolita e o projeto de uma constituição europeia (ainda que congelado), fazem com que Habermas defenda que a UE não se encontra hoje “tão longe da configuração de uma democracia trans nacional” (p. 3). Para ele, portanto, o potencial democrático da UE não apenas não está bloqueado, como também se opõe às tendências funcionais que o ameaçam.

Os conflitos entre sistema e mundo da vida, bem como a disputa entre eles em torno do direito permitem então a Habermas desenvolver um interessante diagnóstico da situação atual da Europa de acordo com o qual, de um lado, temos a ameaça de que os sistemas econômico e político se descolem das instituições democráticas e, de outro, a tendência de institucionalização de uma democracia cosmopolita, que pode não só regular os sistemas, como também garantir a efetivação dos direitos humanos para além das fronteiras nacionais.

3 Partindo do caso europeu, Habermas diagnostica então as tendências emancipatórias que apontam na direção da consolidação de instituições democráticas transnacionais, bem como seus obstáculos, ligados à possibilidade de que essas instituições se tornem formas pós-democráticas de dominação política. A importância dada por Habermas aqui ao caso europeu não é, contudo, fortuita. Se a UE é central na análise do autor é porque ela permite a explicitação dos conflitos próprios ao atual contexto de globalização e, além disso, porque ela “pode ser concebida como um passo decisivo no caminho para uma sociedade mundial constituída politicamente” (p. 40).

Se o agravamento da crise na zona do euro em dezembro de 2011 faz com que o otimismo de Habermas nesse livro pareça hoje exagerado, seu claro posicionamento em defesa de uma democracia cosmopolita mundial permanece, contudo, atual. Dentre outros motivos, porque, com ele, Habermas parece resolver uma importante ambiguidade em seu trabalho, problematizada por diversos críticos até então, 4 para os quais, apesar de destacar a incapacidade dos Estados nacionais em regular a economia globalizada e de denunciar o déficit democrático das instituições transnacionais existentes, Habermas permaneceria tomando o Estado-nação como o único âmbito adequa do para o exercício da democracia.5 Ao defender agora a importância de uma constituição europeia e afirmar que a legitimidade de instituições transnacionais reside em sua capacidade de garantir a participação e a influência dos indivíduos – tanto enquanto cidadãos de seus países como enquanto cidadãos europeus (ou ainda como cidadãos do mundo) –, Habermas dissolve essa ambiguidade e apresenta, de modo mais claro, sua posição em prol da institucionalização de uma democracia mundial.

Dessa forma, mesmo que retome, em Sobre a Constituição da Europa, questões já abordadas em trabalhos anteriores – como o processo de unificação da Europa, a possibilidade e os obstáculos existentes à consolidação da democracia e de instituições jurídicas transnacionais e, em particular, ao estatuto e gênese dos direitos humanos –, Habermas o faz explicitando e até alterando algumas das posições que havia defendido. E, isso, não só no que diz respeito ao seu otimismo frente aos rumos da UE ou mesmo à possibilidade de uma democracia cosmopolita. Como ressalta Alessandro Pinzani em sua “Apresentação à edição brasileira”, Habermas parece também mudar sua posição no que se refere à forma de justificar os direito humanos. Para Pinzani, em Sobre a Constituição da Europa, “haveria uma aproximação entre direito e moral bem mais forte do que na obra anterior de Habermas” (p. XV), na qual este recusa o estatuto moral normalmente atribuído aos direitos humanos e defende a separação entre moral e direito.6

Defendida por Habermas pelo menos a partir de Direito e Democracia, a separação entre direito e moral é central em sua compreensão do direito moderno. De acordo com ele, em sociedades modernas, já diferenciadas, os direitos fundamentais não devem ser vistos como o resultado da positivação de algo previamente dado e anterior à deliberação, tais como direitos naturais de caráter moral. Embora sejam condições necessárias para o exercício da autonomia pública, os direitos fundamentais que os cidadãos se atribuem mutuamente seriam o resultado da prática política de autodeterminação.7 Para Pinzani, se essa é de fato a tese defendida por Habermas até então, ao vincular a gênese dos direitos humanos à noção moral de dignidade humana, ele teria mudado de posição e reestabelecido uma relação de subordinação dos direitos humanos à moral.

Antecipando essa possível leitura, Habermas chega a afirmar, em nota, que a nova justificação dada ali aos direitos humanos não tem como consequência uma modificação de sua posição no que se refere “à introdução originária do sistema de direitos” (nota 19, p. 19). Segundo ele, o vínculo estabelecido entre a violação da dignidade humana e a gênese dos direitos fundamentais não significa que estes sejam morais. Os direitos fundamentais, afirma ele, permanecem distintos dos direitos morais pois, ao contrário destes, estão voltados a uma institucionalização. Apesar dessa ressalva, a carga moral atribuída por Habermas à dignidade humana e a importância assumida por ela em sua reconstrução da gênese dos direitos humanos têm suscita do diversas discussões.

Para autores kantianos, como Rainer Forst, 8 que defendem que o direito não pode ser compreendido sem ser remetido à moral, a suposta aproximação empreendida por Habermas pode ser vista como um ganho frente a seus escritos anteriores. Para autores 9 que, ao contrário, defendem que a forma do direito moderno já implica direitos de liberdade que não precisariam, portanto, de uma fundamentação moral, o novo texto de Habermas pode ser interpretado como um retrocesso em direção à pré-modernidade. Embora divirjam frontalmente em suas posições, poucos parecem ser os leitores de Habermas que poderão se manter indiferentes perante às várias passagens do livro em que ele reforça a origem moral dos direitos humanos, nas quais afirma, por exemplo, que:

em contraposição à suposição de que foi atribuída retrospectivamente uma carga moral ao conceito de direitos humanos por meio do conceito de dignidade humana, pretendo defender a tese de que, desde o início, mesmo que ainda primeiro de modo implícito, havia um vínculo conceitual entre ambos os conceitos. (pp. 10-1)

Ou ainda, logo em seguida, que:

a dignidade humana… é a ‘fonte’ moral da qual os direitos fundamentais extraem seu conteúdo. (pp. 10-1)

O fortalecimento do vínculo entre moral e direitos fundamentais, como atestam essas passagens, parece inegável. De qualquer forma, a divergência na interpretação de seus interlocutores e a própria ressalva de Habermas explicitam que cabe ainda discutir quais são exatamente as consequências desse vínculo e se ele, de fato, implica uma relação de subordinação ou de identidade entre direitos morais e direitos humanos. As primeiras reações ao livro já indicam assim que, embora não seja problematizado pelo próprio autor, o estatuto da relação entre moral e direito nos diferentes escritos de Habermas permanece em questão e, certamente, ainda será objeto de muitos e interessantes debates.

A importância (ou não) da moral na fundamentação habermasiana dos direitos humanos é, certamente, um dos pontos mais controversos do livro. Contudo, a ênfase dada nele à dignidade humana, cujas violações constituiriam o impulso para a efetivação dos direitos humanos em todo o mundo, aponta ainda para um segundo elemento que consideramos importante ressaltar. Afinal, ao sustentar que “o apelo aos direitos humanos alimenta-se da indignação dos humilhados pela violação de sua dignidade humana” (p. 11), Habermas se volta mais diretamente à motivação dos conflitos sociais do que em trabalhos anteriores. A ênfase no sentimento de humilhação frente à violação da dignidade humana como o motor dos conflitos sociais e impulso do processo de ampliação e garantia dos direitos humanos parece corresponder a uma tentativa de Habermas de lidar com um problema colocado a ele por Axel Honneth em Crítica do Poder, a saber, o déficit motivacional de seu trabalho.10

Além disso, é o vínculo entre a violação da dignidade humana e a gênese dos direitos humanos aquilo que parece permitir a Habermas afirmar, sem recair em uma postura meramente transcendente, que estes mesmos direitos são uma utopia realista. A presença do primeiro ensaio cumpriria, nesse sentido, o papel de mostrar que a defesa da ampliação e da garantia dos direitos humanos não é meramente transcendente, mas se ancora em uma tendência inscrita na dinâmica dos próprios conflitos sociais. É exatamente isso o que parece estar em causa quando Habermas afirma, ainda no prefácio, que “as experiências de dignidade humana violada promovem uma dinâmica conflituosa de indignação que dá um impulso renovado à esperança de uma institucionalização global dos direitos humanos, ainda tão improvável”(p.5). Se a suposta aproximação entre moral e direito, abordada anterior mente, parece indicar uma aproximação de Habermas a uma posição kantiana, sua ênfase na origem conflituosa dos direitos e em sua motivação moral parece aproximá-lo também de uma posição hegeliana e, em particular, das contribuições de Axel Honneth.11 Aproximações e deslocamentos que, como as outras questões apontadas aqui, fazem do novo livro de Habermas uma das mais interessantes publicações dos últimos anos.

Fruto de um confronto atento com novos acontecimentos, críticas e autores, Sobre a Constituição da Europa mostra como o trabalho Habermas, longe de ter parado no tempo, continua apresentando um complexo e crítico diagnóstico das sociedades contemporâneas. Mesmo que parte das críticas dirigidas a Habermas apontem para limites em sua teoria, a força de sua compreensão das recentes crises na Europa e em grande parte do mundo, bem como o potencial dos processos de democratização destacados por ele fazem com que o trabalho de Habermas permaneça sendo a principal referência, mesmo para aqueles que visam desenvolver teorias sociais críticas distintas da dele.

A tradução de Sobre a Constituição da Europa e a coleção da UNESP são, nesse sentido, muito bem-vindas não só para aqueles que buscam compreender o pensamento de Habermas em toda sua complexidade, mas também para aqueles que, em confronto com ele, procuram dar continuidade à crítica social em português.

Notas

1 Em Ach, Europa, publicado após a recusa da França e da Holanda de ratificarem o “Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa”, depois deste ter sido recusado pela população em plebiscitos, Habermas se posiciona mais criticamente frente à UE e seus potenciais de democratização. Cf. HABER MAS, J. Ach, Europa.Frankfurt am Main, Suhrkamp, 2008.

2 No contexto atual, afirma Repa sobre o diagnóstico habermasiano, “ocorre uma nova sobreposição de imperativos sistêmicos sobre o mundo da vida sem que nem ao menos os mecanismos sistêmicos tenham uma base de legitimidade no mundo da vida”. REPA, L. O direito cosmopolita entre a moral e o direito. Texto inédito.

3 Se as críticas ao dualismo habermasiano, mesmo em sua forma mitigada, fi zeram com que muitos autores recusassem como um todo o diagnóstico de patologias sociais desenvolvido por Habermas, a compreensão apurada feita por ele da situação atual e do que está em jogo na UE parece mostrar que ele talvez tenha sido descartado apressadamente. Cf. BRESSIANI, N. Redistri buição e Reconhecimento. Nancy Fraser entre Jürgen Habermas e Axel Honneth. In: Cadernos CRH, v. 24, 2011.

4 Cf. FINE, R; SMITH, W, Jürgen Habermas’s Theory of Cosmopolitanism.In: Constellations.Vol. 10, Nº 4, 2003.

5 HABERMAS, J. Die postnationale Konstellation und die Zukunft der Demokratie. In: Die postnationale Konstellation. Frankurt am Main: Suhrkamp, 1998

6 Cf. HABERMAS, J. Faktizität und Geltung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.Sobre isso, cf. também: MELO, R. HULSHOF, M. KEINERT, M. Diferen ciação e complementaridade entre direito e moral. In: NOBRE, M.; TERRA, R. (Orgs.).Direito e democracia. Um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros editores, 2008, pp. 73-90. MELO, R.O uso público da razão. Pluralismo e democracia em Jürgen Habermas.São Paulo: Edições Loyola, 2011, caps. 2 e 3.

7.Sobre a relação entre direitos fundamentais e direitos políticos ou autonomia privada e autonomia pública em Habermas, cf. SILVA, F. G.Liberdades em disputa: a reconstrução da autonomia privada na teoria crítica de Jürgen Habermas. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da UNICAMP, 2010

8 Cf. FORST, R.Das Recht auf Rechtfertigung. Elemente einer konstruktivistischen Theorie der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2007.

9 MAUS, I. Verfassung oder Vertrag. Zur Verrechtlichung globaler Politik. In: NIESEN, P.; HERBORTH, B. (Orgs.).Anarchie der kommunikativen Freiheit.Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2007, p. 350 e ss

10 HONNETH, A. Kritik der Macht. Reflexionsstufe einer kritischen Gesellschaftstheorie. Frankfurt am Main: Surkamp, 1989.Cf. também: NOBRE, M. Luta por Re conhecimento: Axel Honneth e a Teoria Crítica. In: HONNETH, A.Luta por Reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.

11 Ao afirmar que as lutas por direitos possuem uma motivação moral, a saber, o sentimento de humilhação resultante da violação da dignidade humana, Habermas se aproxima da posição defendida por Honneth em Luta por Reconhecimento. Apesar disso, ele não parece aqui assumir a distinção entre três esferas de reconhecimento, restringindo-se talvez, como Rainer Forst, a ressaltar a importância da segunda delas, regida pelo princípio do respeito igual, que Honneth atrela ao direito.

Referências

BRESSIANI, N. Redistribuição e Reconhecimento – Nancy Fraser entre Jürgen Habermas e Axel Honneth. In: Cadernos CRH, v. 24, p. 331352, 2011.

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MELO, R. O uso público da razão. Pluralismo e democracia em Jürgen Habermas.São Paulo: Edições Loyola, 2011.

NOBRE, M. Luta por Reconhecimento: Axel Honneth e a Teoria Crítica. In: HONNETH, A. Luta por Reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.

PINZANI, A. Apresentação à edição brasileira. In: HABERMAS. J.Sobre a Constituição da Europa. São Paulo: UNESP, 2012, pp. XI-XXI.

REPA, L. O direito cosmopolita entre a moral e o direito. Texto inédito.

SILVA, F. G. Liberdades em disputa: a reconstrução da autonomia privada na teoria crítica de Jürgen Habermas.Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia da UNICAMP, 2010.

Nathalie Bressiani – Doutoranda em Filosofia pela USP.

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Oeuvres Complètes – TRACY (C-FA)

TRACY, Destutt de. Oeuvres Complètes. Ed. Claude Jolly. Volume I Premiers écrits. Sur l’éducation publique. Paris: Vrin, 2011. Volume III Élements d’idéologie, 1L’idéologie proprement dite. Paris: Vrin, 2012. Resenha de: PIMENTA, Pedro Paulo. Os antípodas franceses de Kant. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.19 Jan./Jun., 2012.

A publicação na França pela editora Vrin dos primeiros volumes de uma edição das obras completas de Destutt de Tracy 1, promete preencher uma lacuna importante nos estudos de história da filosofia moderna, ao tornar acessível a obra do principal representante da corrente filosófica autodenominada “Ideologia”, que vicejou durante os turbulentos anos da Revolução Francesa e prosperou sob a égide das instituições republicanas – primeiro a Escola Normal, posterior mente o Instituto – que substituíram as antigas academias e escolas reais. Entre 1794 e 1815 a Ideologia (“ciência das ideias”, ou da “análise das ideias”) dominou inconteste a paisagem intelectual francesa, que logo a seguir seria conquistada por outra espécie de ideologia – a dos alemães. A hostilidade do Idealismo (e do Materialismo) frente à escola francesa pode ser medida pela condenação da Ideologia por Engels: a exemplo do Iluminismo, a nova filosofia burguesa apenas reifica, ao querer criticá-la, a realidade 2. Em que medida uma afirmação como essa se aplicaria, por exemplo, a uma obra como o monumental Tratado de economia política (1804), de Jean-Baptiste Say, ligado à Ideologia, responsável pela libertação do pensamento econômico francês em relação aos dogmas dos fisiocratas, não nos cabe aqui examinar 3. Certo é que o ataque de Engels passa ao largo do mais importante, pois o grande legado na Ideologia não é teórico, mas institucional. Graças ao empenho dos idéologistes (que Napoleão jocosamente apelidará de idéologues ), o projeto de uma educação nacional pública e universal, formulado pelos deputados da Convenção (divisado por Condorcet), começa a se tornar realidade na época do Diretório (sob os auspícios de Garat e Lakanal); e sem o empenho dos Ideólogos não teríamos visto a “reorganização institucional da medicina” 4 que marca a França do período revolucionário e define as feições modernas da clínica.

O projeto de uma ciência analítica das ideias não chega a ser original. Como reconhecem os seus principais adeptos (Tracy, Cabanis), a nova filosofia é inaugurada por Condillac, que, a partir de 1746, com a publicação do Ensaio sobre as origens do conhecimento humano, se projetara, nas palavras de Voltaire, como “o grande metafísico” da França do século XVIII. A essa obra inicial, Condillac acrescentaria, notadamente, o Tratado das sensações (1754), a Lógica (1780) e, por fim, A língua dos cálculos, que, publicada postumamente em 1798, representa a suma dos esforços do filósofo para forjar uma liga entre a ciência dos signos (gramática geral) e a ciência das ideias (lógica geral). A enorme influência de Condillac se faz sentir já nos artigos sobre linguagem e gramática que Dumarsais, e, posteriormente, Beauzée, redigem para a Encyclopédie, e torna-se decisiva quando, em 1794, após o golpe do Termidor, a Convenção institui em Paris a École Normale, academia de ensino destinada à formação de professores para os liceus nas províncias. Os pilares da educação pública são o ensino da língua francesa (em detrimento dos dialetos locais) e o da matemática (geometria, álgebra). Programa perfeitamente conveniente à filosofia de Condillac, que concebe a análise e a invenção como os métodos (complementares) de todo pensamento como forma, que se constitui, articula-se e se expande por meio do recurso a signos – sejam eles verbais, sejam algébricos. Na base dessa ciência dos signos encontra-se uma crítica da metafísica e do conhecimento em geral, que, como mostra Condillac ( Tratado dos sistemas, 1742), muitas vezes não passa de uma deturpação metódica, mas falsa, dessa espécie de instinto natural dos homens que os leva, no conhecimento das coisas, do mais simples ao mais complexo. Educar nada mais é do que reconstituir os passos que os homens dão quando seguem a natureza – o que está ao alcance de todos, desde que devidamente orientados pelo filósofo (que conhece os caminhos que conduzem, no interior da cultura, ao encontro da natureza).

No curtíssimo período de sua existência (janeiro a maio de 1795), a Escola Normal, situada em Paris, mais exatamente no Jardin des plantes (no prédio que atualmente abriga a Galeria da Evolução), ofereceu cursos de matemática, física, química, história natural, geografia, história, moral, economia política, literatura, arte de falar e análise do entendimento, alguns deles ministrados por grandes nomes, como Laplace, Monge ou Daubenton. Transcritos por inspetores nomeados pela Convenção, tais cursos foram parcialmente publicados no século XIX, e, a partir desse material, encontram-se atualmente disponíveis em cuidadosas edições críticas 5. A partir deles, podemos ter uma ideia da efervescência intelectual da França revolucionária. Embora a presença da filosofia de Condillac se encontre inequivocamente em outros cursos, em especial nos de geometria (Laplace), história (Volney) e economia política (Vandermonde), é nas classes de arte da fala (Sicard) e de análise do entendimento (Garat) que o seu legado é mais presente.

O paralelismo entre arte da fala e gramática, de um lado, análise do entendimento e lógica, de outro, simplifica um arranjo na verdade mais interessante. Como explica Garat em sua segunda lição, “à teoria das ideias está unida, de maneira imediata e íntima, a teoria da linguagem ou das línguas”, que examina “os meios de exprimir as nossas ideias”, ou seja, que determina o modo como o pensamento se articula, adquire precisão e acabamento 6. Já Sicard, desde a primeira lição de seu curso, adverte que

Falar é uma arte, mas nem todos os povos, mesmo os civilizados, falam com a mesma pureza, com a mesma exatidão, com a mesma riqueza de expressões e de formas de frases. Os que mais avançaram nas artes são também os mais ricos em nomenclatura; os que desenvolveram mais o entendimento e tiveram oportunidade de receber mais impressões, e têm, por conseguinte, mais ideias, têm também mais signos para exprimi-las e mais variedade na maneira de expô-las e de comunicá-las 7.

O repertório de ideias enriquece a língua, que, por meio de analogias, forma termos e aumenta o vocabulário e as maneiras de expressão, tornando-se apta para abarcar cada vez mais fenômenos. Sem os signos, como advertira Condillac, não há progresso do conhecimento.

O curso de Sicard tem, porém, uma peculiaridade, que o destaca daquele de Garat, que é bastante convencional quanto à abordagem da questão. Para ensinar a arte da fala, ele ministra aulas dedicadas à formação de uma língua dos surdos-mudos. Maneira engenhosa de ensinar uma ciência que, por definição, parece estar ligada ao signo verbal, emitido pela voz (assim compreendem a gramática os grandes acadêmicos dos séculos XVII e XVIII). Para Sicard, na esteira de Condillac e dos gramáticos da Encyclopédie, o essencial da arte de falar não é a voz, mas os signos e o modo como eles ordenam e exprimem o pensamento 8. Constitui-se, ao longo de suas lições (preservadas quase que integralmente), uma doutrina original, de caráter pragmático e finalidade republicana, cujo intuito é a educação dos surdos-mudos, visando a inclusão destes na esfera política ou na vida pública nacional francesa. Ao mesmo tempo, Sicard toma posição num debate que agita os estudiosos da linguagem na virada do século. Trata-se de saber se uma possível língua dos surdos-mudos seria feita a partir das línguas faladas ou se teria uma gramática própria 9. Ora, para Condillac e os seus, uma língua nada mais é que um sistema de signos; que ela seja falada ou não, é uma contingência, que não tem força suficiente para alterar o encadeamento necessário dos signos, encontre-se ele nas línguas verbais ou na língua dos cálculos.

O ambicioso projeto a que tais doutrinas estavam vinculadas foi abortado com o fechamento da Escola Normal após poucos meses de atividade. Com a criação do Instituto Nacional, que funciona entre 1796 e 1803 (quando é dissolvido pelo Consulado), a tarefa da filosofia é outra, menos pragmática, trata-se agora de produzir “trabalhos científicos e literários que tenham por objetivo a utilidade geral e a glória da república” 10. Apesar da mudança, permanece a marca da nova filosofia, que reclama para si a herança de Condillac ao mesmo tempo em que se vincula a instituições republicanas. No Instituto, encontraremos em atividade Sicard, Garat e Volney, ao lado de Destutt de Tracy e Cabanis, que se conheceram no salão de madame Helvétius (que atravessa incólume a Revolução), e aos quais caberá renovar o pensamento de Condillac e reinventar a ciência dos signos como “Ideologia propriamente dita”. A denominação – ausente em Garat ou em Sicard – representa uma virada importante, como explica Laurent Clauzade em seu estudo magistral, L’idéologie ou la révolution de l’analyse :

A palavra Ideologia, por implicar uma oposição à metafísica e postular uma identidade entre pensamento e percepção, inscreve diretamente a ciência que ela designa no paradigma inaugurado por Condillac. No entanto, contrariamente ao que acontece com Garat, esse enquadramento não representa uma restrição. Além das modificações significativas que Tracy introduzirá na concepção de análise de Condillac, a Ideologia dará a essa doutrina um sentido radicalmente diferente, ao abrir um horizonte de pesquisa que não se limita à análise racional. (…) A Ideologia pretende realizar a doutrina de Condillac. Isso significa que ela não é mais, como em Garat, uma ciência cujo único fim é estabelecer um método universal (a análise), mas deve também se inscrever, segundo as palavras de Cabanis, numa “ciência do homem”, numa “antropologia” 11. O que se entende em Paris, no ano IV da República, por “antropologia” ou “ciência do homem” é algo bem diferente do que Hume chamara de “ciência da natureza humana” e não tem nada a ver com o que Kant chama de “antropologia”. Para Cabanis como para Tracy, o homem é, antes de tudo, um ser natural, que age por instinto antes de ter o conhecimento de regras. Condillac, Garat e Sicard haviam dito o mesmo, sem, contudo, dar o passo seguinte. Mantendo-se prudentemente dentro das fronteiras da filosofia como discurso que versa a condição de possibilidade do conhecimento, Condillac jamais ousara afirmar a pertença integral do homem ao mundo natural a ponto de considerar, como faz Cabanis, que o estudo do homem é um ramo da filosofia experimental (ligado ao tronco da fisiologia), ou, como Tracy, de concluir que a Ideologia é “uma parte da zoologia”. Essa última afirmação, feita no “Extrato ponderado dos Elementos de ideologia ” (1804), prenuncia a Philosophie zoologique de Lamarck (1809)

O engate da Ideologia na zoologia nos põe bem distantes da semiótica projetada por Condillac a partir das indicações de Locke na conclusão do Ensaio sobre o entendimento humano. Com efeito, em Tracy a ciência dos signos é subordinada a uma teoria da sensação, em que o pensamento, que Condillac deduzira da sensação mesma, desponta agora como potencialidade independente da afecção sensível, e que se exerce, portanto, em algum grau, anteriormente à aquisição de signos (dado que esta resulta da interação entre imaginação e sensação) 12. Uma tese similar a essa fora sugerida por Condillac no Tratado das sensações, mas não fora desenvolvida nas obras que se seguiram. Na versão proposta por Tracy, encontra-se o germe de certo dualismo, que o filósofo se empenhará em resolver nos Elementos e que está na origem do espiritualismo de antigos adeptos da Ideologia, em especial Degérando e Maine de Biran. Ora, como mostra Élisabeth Schwarz em estudo definitivo a respeito 13, esse aparente retrocesso no campo da teoria dos signos consagra, ao mesmo tempo, o fim da gramática geral, de que Condillac fora o derradeiro representante, e anuncia uma ruptura com o saber clássico, ou mais precisamente com uma de suas vertentes, o empirismo, que, desde Locke, andava de mãos dadas com uma ciência dos signos. A elaborada reflexão de Tracy, nos Elementos de ideologia, sobre a natureza dos signos e da linguagem, está ancorada não numa teoria da sensação, mas sim no postulado – esboçado por Condillac – de que toda atividade humana se explica, em última instância, pelo “feitio” ( organisation ) natural do homem. A afecção de objetos exteriores não incita a utilização de signos; esta decorre de capacidades fisiológicas, de uma configuração natural que o homem amplia e desenvolve, num movimento do qual nasce o mundo da cultura.

A tese de que haveria uma ruptura entre Ideologia e saber clássico não é, porém, consensual entre os estudiosos. Foucault, numa das poucas passagens de As palavras e as coisas que está ao abrigo da pecha de imprecisão histórica, traçou um vivo painel do contraste entre “a última das filosofias clássicas” e a filosofia que inaugura a modernidade:

A coexistência, no final do século XVIII, da Ideologia e da Filosofia Crítica – de Destutt de Tracy e de Kant – partilha, sob a forma de dois pensamentos exteriores um ao outro mas simultâneos, o que as reflexões científicas mantêm numa unidade destinada a dissociar-se dentro em breve. Em Tracy ou Degérando, a Ideologia se apresenta ao mesmo tempo como a única forma racional e científica que a filosofia possa revestir e como o único fundamento filosófico que possa ser proposto às ciências em geral e a cada domínio singular do conhecimento. Ciência das ideias, a Ideologia deve ser um conhecimento do mesmo tipo que aqueles que se dão por objeto os seres da natureza, ou as palavras da linguagem, ou as leis da sociedade. Mas, na medida mesma em que tem por objeto as ideias, a maneira de exprimi-las em palavras e de ligá-las em raciocínios, ela vale como gramática e lógica de toda ciência possível. A Ideologia não interroga o fundamento, os limites ou a raiz da representação; percorre o domínio das representações em geral; fixa as sucessões necessárias que aí aparecem; define os liames que aí se travam; manifesta as leis de composição e decomposição que aí podem reinar. Aloja todo o saber no espaço das representações e, percorrendo esse espaço, formula o saber das leis que o organizam. É, em certo sentido, o saber de todos os saberes. (…) A análise da representação, no momento em que atinge sua maior extensão, toca, em sua orla mais exterior, um domínio que seria mais ou menos – ou antes, que será, pois não existe ainda – o de uma ciência natural do homem. Por diferentes que sejam pela forma, pelo estilo e pelo intento, a questão kantiana e a dos ideólogos têm o mesmo ponto de aplicação: a relação das representações entre si. Mas essa relação – o que a funda e a justifica –, Kant não a requer ao nível da representação, interroga-a na direção do que a torna possível em geral.

Ao invés de fundar o liame entre as representações por uma escavação interna que o esvaziasse pouco a pouco até a pura impressão, estabelece-o sobre as condições que definem a sua forma universalmente válida. Dirigindo assim sua questão, Kant contorna a representação e o que nela é dado, para endereçar-se àquilo mesmo a partir do qual toda representação, seja qual for, pode ser dada 14.

Concorde-se ou não com a tese geral defendida por Foucault nessa passagem, permanece válido o contraste proposto entre Ideologia e Crítica. Além de instrutivo, o quadro desenhado fornece o programa de uma investigação, de cunho histórico-filosófico, sobre eventuais documentos que pudessem atestar, de fato, a rivalidade entre os dois projetos filosóficos que rivalizam no ocaso do Século das Luzes. Pois, em certa medida, é da herança das Luzes que se trata em ambos. Infelizmente, Kant nunca disse palavra acerca dos idéologues, nem mesmo de Condillac (muito lido na Alemanha de seu tempo).

Em compensação, a crescente reputação do filósofo alemão não tardou a chegar a Paris, onde a Crítica foi examinada justamente por aqueles que mais razão tinham de recear a sua influência.

O fato de a Alemanha ser um país periférico no mapa das Luzes talvez explique porque os franceses não tenham se dado ao trabalho de ler Kant no original. Com pouquíssimas exceções, contentaram-se com exposições de segunda mão. Será preciso esperar por Madame de Stäel para advertir os franceses de que Kant, por ser um grande estilista da língua alemã, só pode ser compreendido adequadamente pelos conhecedores desse idioma 15. Para os idéologues, porém, o ato da leitura não deixa de ser um embaraço. Como diz Tracy, “os signos, por mais vantajosos que sejam, têm inconvenientes”, o principal deles sendo a opacidade desses meios de representação, que não têm nada em comum com as ideias 16. Mais vale, portanto, na leitura de uma obra de filosofia, guiar-se por certo tino conceitual do que se deter na forma da exposição. Um abregée competente da Crítica da razão pura pode valer mais do que a obra mesma, principalmente se o objetivo de quem o lê for não refutar uma doutrina e sim marcar posição em relação a ela. Por isso, Tracy, autor de um “Extrait raisonée” dos Elementos de ideologia (a título de “tableau analytique” da obra) não hesita em recorrer, em sua comunicação “De la métaphysique de Kant” (1802), ao livro de J. Kinker, “Essai d’une exposition succinte de la Critique de la raison pure ” (Amsterdam, 1801) 17, em busca de um tableau analytique que Kant não ofereceu (os Prolegômenos são outro livro, não um apanhado da Crítica da razão pura ).

Tracy, endereçando-se aos “cidadãos da república” (estamos no sétimo floreal do ano 10 da Revolução), começa elogiando as virtudes de Kant, que além de “célebre por um grande número de obras, justamente estimadas, de muitos gêneros”, contribuiu “para o progresso das luzes e para a propagação de ideias saudáveis e liberais”. Os alemães, contudo, parecem não ter compreendido esse espírito, pois “professam a doutrina de Kant como se estivessem professando a doutrina teoló gica de Jesus, de Maomé ou de Brama”. Confundem assim a qualidade do pensamento com a “autoridade do homem”, e na virada do século estão na mesma situação que os franceses de outrora, embasbacados com o pensamento de Descartes, cegos para a ciência de Newton 18.

Por essa mesma razão, os alemães condenam em bloco os franceses como “discípulos de Condillac”, ignorando, todavia, que “não são as decisões de Condillac que nós respeitamos, é o seu método que mais nos importa (…), por mostrar, melhor que qualquer outro, no que consistem a clareza das ideias e a justeza do raciocínio”. Essas considerações justificam que se submeta, como fará Tracy ao longo de sua conferência, “o sistema alemão” ao crivo do “método francês” 19.

O exame da filosofia de Kant empreendido por Tracy é marcado por numerosas imprecisões e erros, que poderiam ter sido facilmente evitados com a leitura, mesmo que superficial, da Crítica da razão pura (que Tracy alega ter consultado, na versão em latim). O mais flagrante é a declaração de que Kant nada diz acerca da faculdade que Tracy considera a mais importante na formação dos conhecimentos: o juízo 20.

Mesmo supondo que Tracy tivesse lido a “Analítica dos princípios”, não encontraria ali motivos para rever substancialmente essa posição, dado que aquilo que Kant chama de juízo não é bem “a faculdade elementar e radical (…) de sentir a conveniência ou inconveniência ou, numa palavra, as relações entre uma representação e outra” 21. Em vista de um “erro” tão acertado como esse, não surpreende encontrar, no cerne da conferência de Tracy, uma afirmação que mostra, de maneira incontestável, que o filósofo francês estava perfeitamente ciente do que opõe a Ideologia à Crítica. Foucault está certo: a rivalidade entre esses dois projetos filosóficos é explicada pela aspiração, compartilhada por ambos, de se elevar à condição de árbitro supremo nas decisões referentes à natureza, à origem e aos limites do conhecimento humano. Tracy reconhece que Kant faz contribuições valiosas para a filosofia. Não é o conteúdo da Crítica que o incomoda; é a pretensão de examinar o conhecimento a partir de uma instância exterior à experiência.

O que se entende por esse conhecimento puro que possuímos em nós mesmos antes que a experiência tenha ativado a nossa faculdade de conhecer ? Seria o conhecimento dessa faculdade em si mesma, tomada no exame de seus próprios atos? Mas então seria o resultado da ação de nossas faculdades intelectuais, empregadas na descoberta de seus procedimentos, de suas leis, de seus limites, por meio do estudo de seus efeitos. Esse conhecimento pretensamente puro constituiria, e na verdade constitui, a ciência ideológica. Pode-se, se assim se preferir, classificar sob o nome de conhecimentos de experiência todas as outras partes da física, vale dizer, o conhecimento de todos os seres que afetam a nossa inteligência. Mas o primeiro desses conhecimentos é um conhecimento experimental, uma ciência de fatos, assim como o segundo: e, portanto, a crítica (ou exame) da razão pura é um tratado de ideologia, e isso, efetivamente, é o que ela deve ser 22.

É óbvio que Tracy reduz assim a Crítica da razão pura a um livro de epistemologia, ou melhor, a uma lógica dos princípios do conhecimento, ignorando por completo a importância da Dialética transcendental na arquitetura da obra. Sem mencionar a banalização do significado do termo crítica, que Tracy emprega em acepção cartesiana de exame, que não é senão uma das significações inscritas no uso de Kant, muito mais sofisticado. Não se deve esquecer, porém, que Tracy, além de escrever no calor da hora, utiliza uma fonte de segunda mão – atenuantes que não podem ser alegados em defesa dos inúmeros comentadores de Kant que, muitos anos depois, e até os dias de hoje, cometeram equívocos muito similares, sem, no entanto, apresentar, como contraparte, um sistema filosófico coerente e original. Em todo caso, a redução da Crítica da razão pura a um “tratado de ideologia” é muito astuciosa: esvazia a obra de suas pretensões hegemônicas, ao desautorizar a instauração da instância transcendental.

A perspicácia de Tracy se mostra ainda na compreensão – que escapa a muitos comentadores de Kant – da importância da “Estética transcendental” para a constituição de uma “teoria da experiência” (e, consequentemente, para uma crítica da metafísica clássica). É aqui, no plano de uma investigação sobre a natureza da afecção sensível, que deve se decidir o embate entre Ideologia e Crítica. Não por acaso, nesse mesmo ano de 1802, Degérando, ainda perfilado à Ideologia, dedica um capítulo inteiro de seu tratado De la génération des connaissances humaines a uma crítica da doutrina exposta por Kant na “Estética transcendental”, intitulado “Exame do sistema de Kant sobre a geração das ideias” (e não da intuição sensível, como prefere Kant) 23. Para Tracy e Degérando, o equívoco de Kant e dos seus discípulos é ignorar “a maneira como formamos as ideias de extensão e de duração, e por conseguinte, também aquelas, mais compostas, de espaço e de tempo, que se formam a partir delas”. Bastaria, para “desfazer esse embaraço, decompor essas ideias gerais, examinar as ideias elementares de que elas são extraídas, e chegar aos primeiros fatos, às percepções simples, às sensações de que elas emanam”, ou então, na falta disso, “suspender o juízo e renunciar à explicação de algo que não se pode conhecer claramente” 24. Para Tracy, termos como “forma”, “puro” e “transcendental” não significam nada, são “abstrações”, ou puro jargão, que os alemães utilizam movidos por um preconceito contra “o método simples” da análise. A acusação não é nova. Fora feita por Condillac, em 1746, contra Wolff. Embora compartilhe com este a concepção de que os signos são essenciais ao pensamento, Condillac o censura pelo método sintético com que demonstrar essa doutrina, que exigiria, ao contrário, para ser confirmada, uma paciente gênese das faculdades do pensamento a partir da sensação 25. Vem de longe, portanto, a incompatibilidade entre os dois grandes projetos filosóficos que aspiram à hegemonia no ocaso do Século das Luzes.

No mesmo ano em que Tracy pronuncia a sua conferência e Degérando publica o seu tratado, Charles de Villiers se apresenta como adepto da filosofia kantiana, em La philosophie de Kant. Resenhando esse compêndio poucos meses após a sua aparição, Friedrich Schlegel dirá – não sem alguma ironia – que A oposição [entre Crítica e Ideologia] não existe (…). É óbvio que na Ideologia francesa dificilmente se encontra algo que o idealismo não possa aceitar, especialmente quando é tratado com a precisão e o espírito verdadeiramente científico que se observam no Projeto de Elementos de ideologia, de Destutt de Tracy (…) A Ideologia seria, na verdade, uma excelente introdução aos princípios da filosofia transcendental, tarefa que os autores alemães negligenciaram 26.

A ideia um pouco inusitada de que um sistema de filosofia pudesse ser introdução a outro vai muito além do ecletismo (a Ideologia prepararia o leitor para a Crítica). Schlegel se refere, entretanto, ao projeto de Tracy, não ao livro mesmo, Elementos de ideologia, obra volumosa que, na concepção do autor, teria nove ou dez partes (cinco foram escritas, e publicadas entre 1801 e 1815).

No judicioso plano das obras completas de Tracy, organizadas e editadas por Claude Jolly, os Elementos ocupam os volumes 03 (“A ideologia propriamente dita”), 04 (“Gramática”), 05 (“Lógica”) e 06 (“Economia”, “Moral”). O volume 01 contém os primeiros escritos (incluindo uma resposta a Burke) e o relatório sobre a educação e a instrução pública, o volume 02 reunirá os ensaios (dentre eles o discurso sobre a metafísica de Kant), o volume 07 trará o comentário sobre o Espírito das leis de Montesquieu, e o volume 08 será dedicado à correspondência. Como não há, no primeiro volume, uma exposição do plano geral da edição, ficamos sem saber se terão ou não lugar, nessa edição que se autodenomina “completa”, importantes documen

Notas

1.DESTUTT de TRACY.Oeuvres complètes. Ed. Claude Jolly. Volume I: Premiers écrits; Sur l’éducation publique. Paris: Vrin, 2011; Volume III: Élements d’idéologie,.L’idéologie proprement dite. Paris: Vrin, 2012.

2.Ver EAGLETON, T. Ideologia. Trad. Luis Carlos Borges e Silvana Vieira. São Paulo: Boitempo/Unesp, 1997, pp. 66 – 69. Desnecessário acrescentar que Eagleton toma o partido de Engels

3.O leitor pode decidir por si mesmo, consultando a impecável tradução do tratado realizada por Balthazar Barbosa Filho em SAY, J.-B.Tratado de economia política, São Paulo: Abril Cultural, 1983.

4.As palavras são de FOUCAULT, M. Naissance de la clinique, cap. 04. Paris: PUF, 1963

5.Publicadas a partir da década de 1990, em quatro grossos volumes, pelas edições Rue d’Ulm, ligadas à atual École Normale Supérieure.

6.GARAT, D. J. Leçons de l’analyse de l’entendement, 2ª lição, ed. Gérard Gengembre: L’école normale de l’an III. Leçons d’analyse de l’entendement, art de la parole, littérature, morale. Paris: Éditions rue d’Ulm, 1999, p. 86

7.SICARD, R.-A. C. “Leçons d’art de la parole”, 1ª. lição. In: DHOMBRES, J.et DIDIER, B. Leçons d’art de la parole, 1ª lição, ed. Élisabeth Schwarz. L’école normale de l’an III. Leçons d’analyse de l’entendement, art de la parole, littérature, morale.Paris: Éditions rue d’Ulm, 1999, p. 235.

8.Ver a respeito AUROUX, S.La sémiotique des encyclopédistes. Paris: Payot, 1979.

  1. Para os desdobramentos da discussão na Alemanha, ver o estudo de FORMIGARI, L. La sémiotique empiriste face au kantisme. Liège: Mardaga, 1994
  2. Ver JOLLY, C. Introdução a Destutt de Tracy, “Élements d’idéologie”. In: Oeuvres complètes III, p. 09
  3. CLAUZADE, L. L’idéologie ou la révolution de l’analyse. Paris: Gallimard, 1998, pp. 28 – 29.
  4. Ver CLAUZADE, L. L’idéologie ou la révolution de l’analyse, pp. 143 ss

13 SCHWARZ, E. Les Idéologues et la fin de la grammaire générale. Lille: Service de réproduction de thèses, 1978

14.FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, “Os limites da representação”. Trad.

Salma Tanus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1990, pp. 256 – 57.

15.STÄEL, M. de. De l’allemagne, cap. XIX: “Kant”. Paris: Gallimard Poche, 1990.

16.DESTUTT de TRACY, “Elementos de ideologia”, I. In: Oeuvres completes, III, p. 260

17.Kinker é um dentre os muitos estudiosos da filosofia de Kant na Holanda à época; ver a respeito Le ROY, A.Jean Kinker. Sa vie et ses travaux. Paris: 1867.

  1. DESTUTT de TRACY. Mémoire sur la faculte de penser/De la métaphysique de Kant, ed. Anne e Henry Deneys. Paris: Fayard, 1978, pp. 244-45; 247-48.

19.Idem, pp. 246-47.

20.Idem, pp. 257-58.

21.Idem, p. 257.

22.Idem, p. 263.

23.Ver a respeito AZOUVI, F. e BOUREL, D. De Königsberg a Paris. La réception de Kant en France. Paris: Vrin, 1991.

24.DESTUTT de TRACY. Mémoire sur la faculté de penser/De la métaphysique de Kant, pp. 270 – 71.

25.CONDILLAC, E. B. Condillac, Essai sur l’origine des connaissances humaines, I, 04, 02, parágrafo 27. Paris: Galilée, 1973.

26.Citado por AARSLEFF, H.From Locke to Saussure. Essays on the study of language and intellectual history. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1971, p.351

Pedro Paulo Pimenta – Professor de Filosofia Moderna na USP.

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Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na pintura – HORNÄK (CE)

HORNÄK, Sara. Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na pintura. São Paulo: Paulus, 2010. Resenha de: PAULA, Marcos Ferreira de. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.

Sobre arte, Espinosa nos fala muito pouco. O termo, com o sentido estético que costumamos lhe atribuir, ocorre poucas vezes em toda a sua obra. Não é por acaso. No século XVII arte ainda conserva o sentido de um ofício específico, embora, como se sabe, o conceito de já arte estivesse em transformação desde o Renascimento, quando então ela tornou-se definitivamente inseparável das noções de beleza, estilo e originalidade, caminhando cada vez mais, sobretudo a partir do século XVIII, em direção ao sentido estético contemporâneo que hoje conhecemos. A arte no tempo de Espinosa não está longe, portanto, dos valores da contemplação e dos prazeres estéticos, mas é certamente menos importante a presença seja do artista ou do expectador que se situam num campo artístico sem pretender avançar para além de seus limites propriamente estéticos. Espinosa, por exemplo, situa as ciências e as artes no rol de todas as atividades humanas (e coletivas) que são necessárias ao aperfeiçoamento da “natureza humana” e à conquista da “beatitude”. A arte não se separa, para ele, de sua utilidade ética, sem a qual ela talvez nem faça sentido. É o que parece nos indicar esta passagem do Tratado teológico-político :

[…] ninguém teria a força e o tempo necessário se fosse obrigado a lavrar, semear, ceifar, cozer, tecer, costurar e fazer sozinho tudo o mais que é preciso para o sustento, não falando já nas artes e ciências, que são também sumamente necessárias à perfeição da natureza humana e à sua beatitude (Espinosa 2, p. 85, grifos nossos) .

Fazer arte não é o mesmo que tecer e cozer, certamente, mas deve servir, em última análise, aos mesmos propósitos éticos. Se é assim, a arte, enquanto tal, não poderia servir à própria tarefa de compreensão filosófica do mundo, de si e da Natureza? De fato, sabemos que quando Espinosa fala em “perfeição da natureza humana” e “beatitude” devemos entender o exercício de uma mente humana na compreensão de si, da essência singular de seu corpo, das coisas singulares e da Natureza inteira, da qual mente e corpo são expressões modais imanentes; e se a arte pode ser útil nessa tarefa, é porque deve conservar algum poder de compreensão. Haveria, assim, entre arte e filosofia, uma ligação talvez mais íntima do que alguns comentadores ou leitores de Espinosa gostariam de ver – justamente aqueles leitores ou comentadores para os quais a arte, pertencendo ao campo do primeiro gênero de conhecimento, a imaginatio, não teria nenhuma importância na obra do filósofo holandês, não podendo sequer poderia ser tomada como via de compreensão de sua filosofia.

Não é este o caso, felizmente, de Sara Hornäk, autora de Espinosa e Vermeer: imanência na filosofia e na pintura, livro publicado na Alemanha em 2004 e que chegou até nós no final de 2010 pela editora Paulus. Trata- se de uma obra em que a arte é iluminada pela filosofia e a filosofia, pela arte; uma obra na qual vemos que um artista pode ser também filósofo, e um filósofo, artista. É que – Hornäk não hesitaria em afirmar – artista e filósofo habitam um mesmo mundo, um mesmo Universo, no sentido metafísico da palavra, de tal maneira que compartilham um mesmo “plano de imanência”, para utilizar, em sentido menos sério, a expressão deleuziana. A relação que Hornäk estabelece entre Espinosa e Vermeer (consequentemente, entre filosofia e arte), é de tal ordem que a noção de imanência ganha um destaque e uma relevância que escapam muitas vezes até mesmo aos leitores de Espinosa. A imanência, como sugere o título da obra, é o elemento pelo qual a autora constrói sua argumentação que une a arte de Vermeer à filosofia de Espinosa; mas é também o alvo do livro, cujo objetivo principal parece ser o de mostrar que uma experiência estética da imanência realizaria por outros meios o mesmo que uma filosofia da imanência proporcionaria por meio do trabalho do pensamento.

Para chegar a esse resultado, contudo, a autora seguiu um caminho um tanto longo, mas muito acertado e talvez quase inevitável. Ela primeiro expôs toda a filosofia de Espinosa contida na Ética . Essa exposição, que ocupa a primeira parte do livro, tem antes de tudo o mérito de oferecer ao leitor um verdadeiro trabalho de introdução ao pensamento de Espinosa. Aí estão presentes os principais conceitos espinosanos. Substância, atributos, modos, conatus, afetos, afecções, liberdade e eternidade, entre outros, são apresentados ao leitor com o cuidado de quem deseja introduzi-lo no universo dessa difícil filosofia da imanência.

Nesta primeira parte, que ocupa mais da metade do livro, o pensamento de Espinosa é apresentado com certa fidelidade e clareza. Há contudo um momento de sua exposição em que a autora parece trair tanto o “espírito” quanto a “letra” do texto espinosano. Ela traduz amor Dei intellectualis por “amor espiritual a Deus” (Hornäk 3, p. 246). E devemos frisar que não há erro na tradução para o português, realizada por Saulo Krieger e revisada por Rachel Gazolla: no original alemão, a expressão da autora é die geistige Liebe zu Gott (“amor espiritual a Deus”, grifo nosso). Trata-se sem dúvida de uma opção por “espiritual”, uma vez que uma das edições alemãs da Ética consultadas por Hornäk (elencadas no “Índice Bilbiográfico”) é justamente a Ethik de W. Bartschat, que traduziu corretamente o amor Dei intellectualis por Die intellektuelle Liebe zu Gott . Caberia, então, uma nota de rodapé da autora explicando tal opção, assim como seria útil ao leitor brasileiro uma nota explicativa por parte do tradutor ou da revisora. É que não estamos aqui diante de uma questão menor: “amor espiritual a Deus” é uma tradução inaceitável para todos aqueles que sabem o quanto o “amor intelecutal de Deus” de Espinosa está longe de receber o sentido espiritualista do “amor a Deus” das tradições religiosas e teológicas judaico-cristãs. Ademais, tal opção seria menos problemática, não fosse o fato de estarmos, aí, num momento conclusivo do percurso filosófico realizado por Espinosa e que Hornäk reproduz em seu livro: precisamente no ponto de chegada do caminho filosófico espinosano, no ápice da tarefa da Ética, o leitor desprevinido pode ser levado a confundir Espinosa justamente com aqueles aos quais ele se contrapôs ética e filosoficamente. Afora esse deslize – que pode ser pequeno ou grande, a depender de se o leitor de Hornäk é ou não também um leitor de Espinosa – não há problemas na exposição da autora, embora tampouco haja aí novidades interpretativas.

Realizando esse longo percurso pelo pensamento espinosano, na primeira parte do livro, a autora pôde se desincumbir, na terceira parte, de explicar cada conceito espinosano, ao tratar da relação entre a arte de Vermeer e a filosofia de Espinosa. Mas antes de chegar a ela, a autora também nos oferece uma segunda parte, espécie de intermezzo histórico no qual o leitor se vê às voltas com os problemas da imanência e da transcendência, num percurso que vai de Platão a Giordano Bruno, passando pelos neoplatônicos e Nicolau de Cusa, sem deixar de nos oferecer ainda, ao final, algumas considerações sobre o “plano de imanência” de Gilles Deleuze. Mas é sem dúvida a terceira parte do livro que concentra o que ele tem de melhor. Aí encontramos as teses principais da autora; aí vemos a filosofia juntar-se à crítica e à história da arte para se chegar a bons resultados, seja no que concerne à compreensão do pensamento espinosano, seja no que toca à interpretação das obras de Vermeer.

A ideia central de Sara Hornäk é que a imanência pode ser não apenas pensada, mas também mostrada . A imanência, para além de sua expressão recebida no trabalho de pensamento filosófico, se exprimiria também em outros campos do fazer humano – na arte, por exemplo, e Vermeer seria aqui exemplo privilegiado, particularmente A leiteira, obra sobre a qual se centram as interpretações da autora.

Na forma, na tecedura e combinação das cores, assim como no uso da luz, Vermeer deixaria ver ou daria visibilidade à mesma imanência de que nos fala Espinosa. Hornäk vê no tratamento de temas cotidianos precisamente uma recusa da transcendência em Vermeer. Não se trata de que nas obras do pintor encontraríamos a representação da imanência: dá- se antes que a própria imanência estaria aí presente, visível, expressa na tela mesma. Em Vermeer, assim como na teoria da mente da Ética, não haveria então a representação de ideias, motivos ou objetos; a própria imagem produziria seu sentido, assim como um sentido emerge no próprio texto da Ética – e Hornäk fala aqui em “autorreferencialidade”, em “estrutura de expressão horizontal”, para dar conta dessa potência expressiva imanente ao texto e à imagem (Hornäk 3, p. 329).

Arte e filosofia, entretanto, conservam esta potência expressiva de maneiras diferentes, cada uma a seu modo, em seu próprio campo e com seus próprios recursos. Hornäk não sonha estabelecer qualquer relação causal entre Vermeer e Espinosa. Ao mesmo tempo, ela vê no “conhecimento da imanência, que, segundo Espinosa, se dá intuitivamente” (Hornäk 3, p. 331), o elemento comum que os une. A intuição, que a autora corretamente vê, não como uma superação mística do racionalismo, mas como uma ampliação da própria razão, seria assim o meio pelo qual a imanência é inteligida e vivida, tanto em Espinosa quanto em Vermeer. Essa experiência intelectual e afetiva da imanência, que Espinosa exprime no conceito de amor intelectual de Deus, em Vermeer estaria presente na “quietude profunda” que Hornäk vê “expressa” em seus quadros, os quais permitiria uma certa “contemplação da eternidade”… (Hornäk 3, p. 331-333).

Mas de que forma, do ponto de vista da filosofia de Espinosa, tudo isso seria possível? A arte não é de fato uma atividade que se dá antes de tudo no campo da imaginação e portanto da ideia inadequada? Contudo, segundo Hornäk devemos superar a ideia de imaginatio como mero conhecimento inadequado. Lembremos que a imaginação, enquanto tal, está inscrita no rol das atividades dos modos finitos, o que significa que ela mesma é algo, é modo e constitui um modo de ser. Sabemos, ao mesmo tempo, onde está o problema teórico e prático da imaginatio : caímos no inadequado ao afirmarmos de um conteúdo imaginativo que ele é verdadeiro ou falso, bom ou mau, quando o próprio conteúdo não nos oferece tanto. Como estamos sempre no exercício do nosso conatus, é quase inevitável que a imaginação não venha acompanhada dessas afirmações ou negações. No entanto, o próprio conatus pode exercer-se de tal forma que a imaginação não seja um obstáculo, mas um reforço. A imaginação, muitas vezes, é antes uma potência, em vez de impotência e passividade. Flaubert e Machado de Assis nos dão a ver certas paixões humanas. Mas no ato mesmo em que escrevem, não são dominados por elas.

A imaginação no artista é, em casos como esses, um potente instrumento de criação, não de dominação daquele que imagina. Hornäk nos lembra que, na abertura do Breve Tratado, a forma de exposição é já artística; ademais, a própria forma de exposição geométrica da Ética é, para a autora, igualmente artística, pois faria emergir uma “estrutura complexa” em que definições, axiomas, proposições e demonstrações se mostrariam de tal forma interligados que, ao fim do texto, seríamos capazes de vê-lo todo, seríamos capazes de ver a simultaneidade da forma, assim como seríamos capazes de apreender a nossa essência singular inseparavelmente do Universo (o todo), da mesma maneira que a autorreferencialidade presente nos quadros de Vermeer nos dariam a ver o próprio real em sua simultaneidade.

Hornäk vê nos quadros de Vermeer a expressão do que ela chama de “força substancial” em meio às próprias coisas cotidianas. Os elementos cotidianos do pintor realizam a imanência pictoricamente. A arte pode tornar a imanência visível. Em Vermeer, mais do que em qualquer outro pintor do XVII, segundo Hornäk, dá-se justamente essa visibilidade da imanência. Para a autora, a imanência não é uma ideia puramente conceitual, e portanto não se trata de buscar na arte o sentido da imanência, mas sim de entender como ela se exprime na arte.

Vermeer retrata o cotidiano de tal forma que o que se exprime na tela é o singular (não o geral, isto é, não uma casa, um quarto, um vaso ou uma mulher, mas esta casa, este quarto, este vaso, esta mulher). Tomando sempre como referência A leiteira, Hornäk considera que o humano e o mundo estão igualmente presentes na tela de Vermeer, através da figuração plástica de uma mulher, um lugar e uma ação singulares. A singularidade do gesto da leiteira exprime-se em sua total concentração na realização do ato cotidiano de despejar o leite que sai de uma recipiente e entra em outro. Concentração e movimento, aqui, encerram a “quietude” que se exprime no gesto da leiteira. Para Hornäk, a apreensão intuitiva do “verter do leite” equivale a uma experiência da eternidade, uma vez que a Natureza se exprime nos modos e portanto também nos gestos mais cotidianos.

Para chegar a essas conclusões, Hornäk analisa o uso das cores, da luz e do que ela chama de “superfície de imagem e espaço de imagem”, em Vermeer. O trabalho de composição e combinação das cores mostra o quanto elas formam uma trama, uma tessitura, pela qual Vermeer “escreve” o “texto” da tela, de tal maneira que a imanência se faria presente no próprio ato criativo do pintor. Para Hornäk, entretanto, sem o uso específico que Vermeer faz da luz essa trama das cores seria impossível. Aqui, como muitos historiadores lembraram, o procedimento estético é o chiaroscuro . Hornäk lembra, porém, que o uso desse procedimento é de tal ordem que o chiaro não se opõe ao oscuro . Claro e escuro não são oposições irredutíveis. Em vez disso, eles formariam uma “unidade harmônica”. O homem não se opõe ao mundo; é dele um elemento discernível mas inseparável, componente intrínseco do todo. Mas de onde vem a luz, em A leiteira ? Segundo Hornäk, a luz intensa da parede não pode advir dos vidros da janela à esquerda da tela, porque eles estão demasiados embaçados para produzir uma tal luminosidade 1 . A luz da parede, intensa e profunda, seria produzida ali mesma, por ela mesma: ela seria, assim, figuração pictórica da causa imanens, da causa que não se separa do efeito após causá-lo. Certamente a importância que a autora dá ao papel da luz não é casual. Ela mesma nos lembra que para uma longa tradição de religiosos e pensadores a luz sempre foi considerada “símbolo do divino”. Mas a luz, em Vermeer, não seria o que remete a outra coisa, a algo fora da tela, ao transcendente: ela se dá e se constitui no cotidiano mesmo, alia onde as coisas estão, em meio a elas e por meio delas.

É contudo no momento em que analisa o problema da superfície e do espaço da imagem que a interpretação de Hornäk fica ao mesmo tempo mais interessante e mais controversa. Mais interessante porque aprofunda a interpretação da obra de Vermeer pela ótica da imanência espinosana; mais controversa porque, nesse aprofundamento, parece realizar uma leitura “piedosa”, “espiritualista” e um tanto mística da filosofia de Espinosa. E, realmente, a partir da análise de elementos formais de A leiteira, Hornäk identifica a figuração pictórica de temas como a “concentração” e a “quietude”. A mulher que no centro da tela faz jorrar o leite na vasilha sobre a mesa realiza esse ato com toda a atenção, compenetrada em seu gesto, a ponto de ela, sua ação, os objetos que a cercam, o próprio lugar, enfim, comporem uma “cena hermética” que exprime “concentração” plena e, por isso mesmo, certa “quietude”.

Nesta “cena hermética” encontra-se, porém, a abertura para todo o Universo, afirma Hornäk. A autora fala no “mundo sumamente próprio” e na “interiorização absoluta” que as telas de Vermeer deixariam ver. E, no entanto, precisamente aí encontraríamos “o atrelamento, tão difícil de apreender, entre finitude e infinitude” (Hornäk 3, p. 378). Haveria, então, uma espécie de “filosofia da imanência”, não dita, não escrita, mas figurada nas telas de Vermeer, particularmente em A leiteira ? As análises e interpretações de Hornäk parecem querer levar o leitor a essa conclusão. E de fato uma tal conclusão em Vermeer seria tanto mais possível quanto, segundo Hornäk, “o pintor suprime dualismos em teoria do conhecimento, como o que se tem entre imaginatio e ratio, corpo e alma, percepção e conhecimento” (Hornäk 3, idem).

Não é que autora desconheça o lugar da imaginatio na Ética de Espinosa. Sabe que na imaginação estamos sempre às voltas com o inadequado. Mas ela lembra que a conquista do adequado, em Espinosa, não se faz pela defesa “de um ponto de vista puramente racionalista”, já que Espinosa vai além da razão sem dispensá-la: a ciência intuitiva, o terceiro gênero de conhecimento, faz de Espinosa um racionalista sui generis no século XVII, pois com ela a própria razão se vê ampliada – não porque seja agora capaz de apreender mais generalidades, mas, ao contrário, porque capaz de captar singularidades, antes de tudo da essência singular do corpo de que esta mente intuitiva é a ideia. Contudo, precisamente a ciência intuitiva dá à imaginatio um outro estatuto: à imaginação não é mais dado o valor de verdade que era fonte de todo o erro (lembremos que a imaginação em si não é nem falsa nem verdadeira), mas antes um lugar na contemplação adequada de si que envolve uma outra imagem de si mesmo, das coisas e da Natureza (ou Deus), assim como da ligação necessária (eternidade) entre nós, as coisas e a Natureza.

A ciência intituitiva, portanto, envolve razão e imaginação, mas agora sob o aspecto da eternidade. Ora, precisamente esse conhecimento intuitivo corresponde, na arte, segundo Hornäk, à “uma atitude contemplativa, na qual o homem, mergulhado em si mesmo, assume um estado de interiorização”. Essa “interiorização” intuitiva estaria presente em A leiteira : “A criada parece espreitar a si mesma” (Hornäk 3, p. 382). Evidentemente, não estamos aqui diante de uma interiorização que nos faria cair num sopsismo sem saída de si, precisamente porque, realizando- se no campo da ciência intuitiva, ela é por isso a expressão da ligação que mente tem com a Natureza inteira, e, portanto, em vez de nos fechar em nós mesmos, ela é capaz de nos abrir a todas as coisas, ou, o que é o mesmo, de realizar uma abertura ao “múltiplo simultâneo”, para utilizar uma expressão de Marilena Chaui (Chaui 1, p. 103). É aqui que, para Hornäk, somos capazes de apreender o eterno no temporal, o infinito no finito, a Substância nos modos.

O que, entretanto, em A leiteira de Vermeer, revela-nos esse poder de apreensão intuitiva do real e de nós mesmo na Natureza? Aqui aparece com mais clareza aquele ponto controverso a que nos referimos acima. Para Hornäk, pode-se ver na ação da criada, em sua expressão, em seu gesto, uma atitude de “concentração”, “paciência” e “quietude”. E a autora chega mesmo a falar em “humildade”, dando-lhe outro sentido, que não é o de Espinosa: se para este a humildade é contemplação da própria impotência, para a autora ela é “dedicação plena de devoção”, que o gesto da criada deixaria entrever. Se, agora, reunirmos estes termos e expressões àquele “amor espiritual a Deus”, não poderíamos ver aí uma interpretação um tanto “piedosa”, isto é, religiosa, e espiritualista da filosofia de Espinosa, mas também das obras de Vermeer? Mas deixamos ao leitor um julgamento mais apurado e justo do livro. Em todo caso, é verdade que, por outro lado, o texto de Hornäk deixa entrever que humildade, paciência, quietude e concentração querem exprimir apenas um estado de alegria ativa, em que se fundem atividade e passividade, ação e contemplação, obra e expectador, texto e leitor. Para Hornäk, Vermeer desfaz de tal forma a oposição entre interioridade e exterioridade, que o observador pode tomar parte na atitude contemplativa da personagem figurada na tela.

Mas a conclusão talvez mais importante de Hornäk, nesse momento de seu percurso interpretativo, é a de que as figuras retratadas nos quadros de Vermeer não narram acontecimentos, mas exprimem a eternidade. Na concentração tem-se o elemento da atenção – e Hornäk não deixa de lembrar pelo menos um intérprete de Vermeer que tenha destacado o fato de que na arte holandesa do XVII ocorreu a representação do mais alto grau de atenção envolvido na atividade doméstica (Hornäk 3, p. 384). Concentração, atenção, presente. Para os zen-budistas, a beatitude não se faz fora do tempo presente, esse tempo que é o mais difícil de ser vivido, como dizia Jorge Luis Borges. E se não narra acontecimentos, nem por isso Vermeer figura naturezas mortas congeladas no tempo (como se tal fosse possível). Em vez disso, o pintor “dilata o passo temporalmente mensurado para uma duração que nos possibilita a eternidade” (Hornäk 3, p. 394), escreve Hornäk. E então compreendemos que o leite jorrado da leiteira “flui eternamente” (Hornäk 3, p. 396). O leite sendo derramado é um “transcurso”, é duração eterna ou um “demorado agora” no todo da eternidade.

Muitos intérpretes falaram do “enigma” na obra de Vermeer. Para Hornäk este enigma consiste em tornar visível o que é da ordem do invisível: a eternidade e a imanência. Mas não é isso o que precisamente Espinosa nos faz ver, sobretudo com sua Ética ? A diferença é que enquanto aí os “olhos da alma” são as demonstrações geométricas da mente, em Vermeer os “olhos da mente” são os próprios olhos do corpo diante da visibilidade de uma obra que mostra a imanência e eternidade dos gestos, das coisas, do homem. Hornäk não hesita em afirmar que “na obra de Vermeer se realiza a imanência”. E poderia ser diferente? Não seria correto dizer que, se todos os modos são modificações da Substância única que lhes é imanente, como eles a ela, a própria Substância está de algum modo em todas as coisas, em todos os gestos, em todos os homens, em todas as obras? Correto, mas, precisamente, ela se faz presente de maneiras diferentes. Há maneiras e maneiras de exprimir o Ser. Podemos fazê-los mais ou menos. Às vezes se está mais próximo de si mesmo; às vezes se está tão longe de si que é então a quase pura passividade o que impera. Neste último caso, um gesto, uma obra, uma ação exprimem apenas a exterioridade das relações e já não dizem quase nada, ou fazem muito pouco pela perfeição de nossa natureza e por nossa beatiude.

Sara Hornäk relembra uma passagem de O Olho e o espírito, na qual Merleau-Ponty afirma que na obra de Cézanne se “produz um cintilar do ser […] em todos os modos do espaço e também na forma” (Hornäk 3, p. 415-416). O mesmo, segundo Hornäk, se passa em Vermeer. Há nele a criação de uma “outra” realidade, sua obra remete a um “para além” do que se vê e se sente, mas ele o faz justamente no que se vê e se sente . “A segurança e capacidade com que a figura representada”, escreve Hornäk ainda sobre A leiteira, “realiza sua atividade permite que a cena apareça à luz da necessidade”. Eis, em Vermeer, a potência intrínseca da própria obra, a figuração do instante que se inscreve numa ontologia do necessário e que por isso mesmo torna visível a eternidade e imanência dos gestos, dos modos, dos acontecimentos. E, assim, por caminhos diferentes encontraríamos, em Vermeer como em Espinosa, uma mesma unidade de ser e agir, uma mesma afirmação da vida no presente, uma mesma potência de agir que se inscreve no seio da atividade eterna (sempre presente) dos atributos divinos que constituem a essência da Substância absolutamente infinita.

Deleuze amava dizer que a alegria espinosana realiza-se no mesmo ato de um bom encontro. Não se sabe se algum dia Espinosa encontrou-se com Vermeer, apesar de terem morado próximos um do outro, pelo menos durante os 17 anos em que Espinosa, mesmo tendo habitado diferentes cidades, não se afastou muito de Delft, a cidade de Vermeer. Mas Hornäk consegue realizar agora, para nós, esse bom encontro entre o filósofo e o pintor, entre a filosofia e arte, percorrendo o mesmo fio imanente que une um e outro, uma e outra, e todos nós. .

Notas

  1. Há um pequeno buraco, num dos vidros, que deixa ver o quanto eles estão embaçados, provavelmente pelo calor do ambiente interno em oposição ao frio do exterior

Referencias

  1. CHAUI, Marilena de S. “Ser Parte e Ter Parte: Servidão e na Ética IV”. In: Discurso, no. 22, 1993.
  2. ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  3. HORNÄK, Sara. Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na píntura. São Paulo: Paulus, 2010.

Marcos Ferreira de Paula – Professor de filosofia do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa – JAQUET (CE)

JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: D ’AMBROS, Bruno. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.

Lançado na França em 2004, o livro de Chantal Jaquet chega ao Brasil em 2011, publicado pela editora Autêntica. A tese da união entre mente e corpo de Espinosa tem despertado o interesse de neurobiologistas e psicomotricistas pelo filósofo holandês. Porém, como toda popularização implica quase sempre numa simplificação, surge o receio de que possa haver tal simplificação de Espinosa. É neste intuito que surge o livro de Chantal Jaquet, como precaução de eventuais abusos e simplificações extremas da filosofia de Espinosa e também como um estudo aprofundado das relações entre a mente e o corpo “sob o prisma dos afetos.” (JAQUET 1, p.17)

O livro se divide em cinco capítulos, cujos títulos são: “A natureza da união do corpo e da mente”, “A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”, “A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico-político e na Ética”, “A definição do afeto na Ética III”, “As variações do discurso misto.”

“A natureza da união do corpo e da mente”

Há muito tempo, desde Leibniz, os comentaristas de Espinosa sempre falaram na união psicofísica em termos de paralelismo entre o corpo e a mente. No entanto Chantal Jaquet sustenta que a doutrina do paralelismo não é adequada para compreender Espinosa.

A doutrina do paralelismo é nociva à compreensão da unidade psicofísica e não conduz à uma compreensão adequada do monismo de Espinosa porque “conduz a pensar a realidade com o modelo de uma série de linhas similares e concordantes que, por definição, não se encontram.” (JAQUET 1, p.25). A doutrina do paralelismo, ainda, supõe “homologias e correspondências biunívocas entre as ideias e as coisas, a mente e o corpo”; supõe que a natureza está “condenada à uma ecolalia sem fim, a uma perpétua repetição do mesmo em cada atributo”; supõe que a unidade é uniformidade; supõe  também “uma tradução sistemática dos estados corporais em estados mentais”; e, assim, que o paralelismo “mascára tanto a unidade quanto a diferença” da união psicofísica. (JAQUET 1, p.29 – 30).

Mais adequado do que a doutrina do paralelismo, para pensar Espinosa, é a doutrina da igualdade. O próprio Espinosa sustenta que há uma igualdade entre potência de pensar e de agir, tanto em Deus como no homem, usando o mesmo adjetivo latino æqualis, tanto para a potência de pensar e agir de Deus como para a do homem. Quando Espinosa diz ordo idearum ordo rerum ele quer dizer que a ideia de um sujeito é a expressão igual de alguma coisa externa, extensa, a este sujeito pensante. Portanto “a teoria da expressão em Espinosa é regida inteiramente pelo princípio da igualdade.” (JAQUET 1, p.32)

“A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”

Chantal Jaquet sustenta que Espinosa e Descartes não estariam tão distantes no que tange aos afetos, ambos têm alguns pontos de convergências. Podemos resumir as convergências entre Descartes e Espinosa em alguns pontos básicos, principalmente nas obras As paixões da alma e na Ética : em ambos há um esforço para superar o dualismo mente/ corpo, em ambos há uma abordagem física e mental dos afetos, ambos fazem uma abordagem dos afetos por um método físico-geométrico, em ambos há uma naturalização e racionalização dos afetos, para ambos as paixões são inerentes ao ser humano, para ambos há uma ordem causal por detrás da desordem das paixões, para os dois a mente tem poder sobre as ações e ambos fundam uma “ciência” dos afetos.

Mas, quanto às divergências sobre os afetos, elas se resumem a dois pontos: um concerne à causa das paixões; o outro, à “natureza do poder da mente sobre elas” (JAQUET 1, p.57). Descartes sustenta que a causa das paixões são as ações do corpo sobre a alma e da alma sobre o corpo, ou seja, para ele as paixões são movimentos ativos. Espinosa sustenta que a causa das paixões não está de forma alguma nas ações do corpo ou da alma, ou seja, para ele as paixões são movimentos passivos tanto do corpo quanto da alma, já que ambos são igualmente ativos ou passivos, conforme aquele “princípio de igualdade” das potências que nos fala Chantal. A proximidade entre Descartes e Espinosa, segundo Chantal, está em que ambos concebem corpo e mente em termos de relação psicofísica; mas a distância que os separa está em que Descartes, em última análise, atribui a causa das paixões a uma ação corpo (JAQUET 1, p.58), enquanto Espinosa a atribui à relação do corpo e da mente com a exterioridade, na qual as ideias na mente são determinados pelo exterior (ideias inadequadas). Mas, como lembra Chantal, esse diferente entre os dois filósofos acarreta uma outra, que concerne ao poder da alma sobre os afetos (JAQUET 1, p.60): Descartes acreditava num poder absoluto da alma sobre o corpo, já que ela era a detentora de uma vontade livre capaz de controlá-lo; Espinosa fala em moderação dos afetos a partir de seu conhecimento, isto é, a partir da formação de uma “ideia clara e distinta”, ou adequada, sobre o próprio afeto passivo que, então, deixa de ser passivo (JAQUET 1, p.63).

“A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico- político e na Ética”

Chantal Jaquet trata de uma diferença significativa em duas obras de Espinosa, uma da juventude, o Breve Tratado (1660), e a Ética (1677) . No primeiro, a percepção do corpo pela mente é um efeito do corpo ainda; assim, há uma “ação recíproca da alma sobre o corpo” e vice- versa que configuraria um parentesco com Descartes. Na última, a percepção do corpo pela mente é um efeito das ideias das afecções do corpo; aqui ele “exclui toda causalidade recíproca e toma a forma de uma equivalência e de uma correspondência entre modos e atributos diferentes” estabelecendo uma ruptura completa com Descartes.

A questão, portanto, para Jaquet, é “saber se as diferenças são o índice de uma simples mudança de pontos de vista compatíveis entre si ou se elas revelam divergências que atestam uma mutação do pensamento de Espinosa.” (JAQUET 1, p.73).

Para compreender esta questão Chantal Jaquet vai para uma obra intermediária de Espinosa, que fica entre o Breve Tratado e a Ética, o Tratado teológico-político (1670), que, por sua localização intermediária entre as duas obras iniciais mostra a evolução do pensamento de Espinosa em direção à Ética.

O Tratado teológico-político tem muitas diferenças em relação à Ética; as principais tangem aos afetos, que são diferentes dos apresentados na Ética. Uma distinção importante é que no Tratado teológico-político não há, ainda, a distinção entre afetos ativos e passivos. Ali os afetos são vistos como passivos sempre. Aquilo que mais tarde a Ética vai chamar de afetos ativos estão agrupados sob a categoria de fortitudo, subdivididos em animositas e generositas.

Outro ponto que é ressaltado por Jaquet é que no Tratado teológico-político o apetite e o desejo são opostos à razão. O Tratado teológico-político não tem a intenção de fazer uma teoria dos afetos, seu objeto é outro, por isso ele não contém explicitamente uma teoria dos afetos e quando cita os afetos, cita-os sempre como paixões, não mencionando que há afetos ativos. Já na Ética há uma virada em Espinosa. Nela o afeto é definido como fruto de uma causalidade adequada ou como fruto de uma causalidade inadequada: no primeiro caso o afeto é ativo, no segundo é passivo; ou seja, os afetos ativos são ações e os afetos passivos são paixões. Os três afetos básicos – desejo, alegria e tristeza – são decorrentes desta definição. A distinção entre afetos ativos e passivos é uma inovação da Ética. Na Ética há uma “razão apetitiva e um apetite racional.” (JAQUET 1, p.93). A Ética oferece assim “uma visão mais unificada do homem, o qual não é dotado senão de uma única natureza apetitiva que se declina seja sob um modo passivo, seja sob um modo ativo.” (JAQUET 1, p.93). Na Ética “a razão torna-se essa potência ativa capaz de engendrar afetos que coíbem as paixões tristes.” (JAQUET 1, p.94).

Portanto, há uma evolução do pensamento de Espinosa, em direção à Ética, que “confirma essa orientação do sistema rumo a uma concepção mais e mais dinâmica do potência de agir.” (JAQUET 1, p.96).

“A definição do afeto na Ética III”

Uma primeira questão que aparece na Ética é referente à palavra affectus. Chantal Jaquet aponta que, dentre as várias palavras latinas à disposição – emotio, passio, commotio – Espinosa utiliza a palavra affectus e que dentre as várias traduções – emoção, paixão ou sentimento – a mais adequada é afeto.

Quanto à definição de afeto, na parte III da Ética há duas definições, uma no início (SPINOZA 2, III, def.3) e outra no final (SPINOZA 2, III, def. geral). Na primeira o afeto é ativo e passivo. Na segunda o afeto é somente passivo. Esta segunda definição é a mais problemática, porque ela é uma definição geral dos afetos e, no entanto, restringe o afeto ao seu aspecto de passividade e mental.

O problema da segunda definição do afeto é que ela é uma definição geral (generalis) e está no final da parte III, o que induz a pensar que ela é uma definição genérica que tenta abranger todos os afetos. Porém ela foca só o aspecto mental e passivo dos afetos, excluindo os ativos. Chantal Jaquet diz que ela é uma definição generalis no sentido de gênero e não de genérico, por isso ela enfatiza o aspecto passivo e mental do afeto porque desta forma, prestando atenção às características genéricas das paixões, pode-se determinar sua força, sua utilidade, sua nocividade e a potência da mente para contrariá-las: “ela é dita geral pois remete todas as paixões a um só gênero, a ideia confusa, e permite em seguida compará-las em função de sua aptidão a aumentar ou diminuir a potência de agir do homem.” (JAQUET 1, p.115)

Espinosa diz que os afetos são afecções corporais que aumentam e ajudam ou  diminuem e contrariam a potência de ação deste corpo e também que os afetos são as ideias destas afecções do corpo (SPINOZA 2, III, Def.3, p.98). Nesta definição, o afeto é definido primeiro em relação ao corpo e depois em relação à mente.

A primeira questão que o aspecto corporal do afeto implica é sobre a distinção entre afeto e afecção. Todo afeto é uma afecção corporal mas nem toda afeção corporal é um afeto, portanto, o que distingue afetos de afecções? O critério de diferenciação é a potentia agendi do corpo, ou seja, “uma afecção é um afeto se e somente se tem um impacto sobre a potência de agir do corpo.” (JAQUET 1, p.129). Desta forma os afetos se diferenciam das afecções porque eles tem a capacidade de fazer variar a potentia agendi.

Tudo tem uma potentia agendi porque a potentia agendi é uma vis existendi. Portanto, devemos entender a potência de agir como força de existir e a verdadeira potência de agir é a que tem a ver com as ações, pois repousa sobre um conhecimento adequado, porque aumenta a potência como força de existência. As ações, isto é, aquilo que um sujeito ativo faz, é causa adequada dos efeitos corporais, aumentando a potentia agendi como vis existendi.

Há quatro tipos de afetos que impactam a potentia agendi : os que aumentam ou diminuem e os que ajudam ou coíbem. Chantal Jaquet sustenta que há uma diferença entre os que aumentam/diminuem e os que ajudam/coíbem, dizendo que o segundo grupo não é somente um recurso de insistência, mas que há uma diferença de grau e natureza entre eles. O segundo grupo, que ajuda/coíbe a potência, são afecções que não aumentam nem diminuem a potência de agir do corpo, mas que “só fazem neutralizar as forças contrárias ou favoráveis.” (JAQUET 1, p.142).

Então, Chantal Jaquet elenca cinco tipos de afecções que ajudam ou coíbem a potentia agendi: 1) ajuda ou coíbe o que se opõe à destruição do que se ama ou à conservação do que se execra; 2) ajuda ou coíbe que a imagem da alegria do que se ama seja vista como causada por nós; 3) ajuda ou coíbe sentimentos que mudam de hostis à amigáveis ou de amigáveis a hostis; 4) ajuda ou coíbe alguém que faz o bem ao outro ou não; 5) ajuda ou coíbe a concepção adequada ou inadequada da impotência humana.

O afeto também é definido em relação ao atributo pensamento, à mente. Os afetos são as afecções corporais, mas também são ao mesmo tempo (et simul) as ideias destas afecções corporais, e estas ideias são modos certos e determinados da atividade eterna e infinita do atributo pensamento.

Chantal Jaquet diz que há três maneiras de compreender o advérbio et simul, que se refere à simultaneidade das afecções corporais e mentais. Primeiro, et simul significa que os afetos são psicofísicos. Segundo, et simul significa que os afetos são psíquicos. Terceiro, que eles são físicos. Desta forma há três categorias de afetos, os psíquicos, os físicos e os psicofísicos.

“As variações do discurso misto”

Espinosa faz três divisões concernentes aos afetos: ações e paixões, primitivos e compostos e bons e maus. Desta forma ele não visa uma enumeração exaustiva dos afetos porque os afetos, de um modo geral, se reduzem à três, o desejo, a alegria e a tristeza. Os outros afetos compostos são decorrentes destes afetos primitivos.

Mas Chantal Jaquet estabelece três categorias de afetos, segundo a referência seja mais o corpo, a mente ou ambos, embora todo afeto conserve uma natureza psicofísica. Primeiro há os afetos que se referem ao corpo e à mente, simultaneamente: são os propriamente psicofísicos, que têm “uma realidade psicofísica, sendo objeto de um discurso misto exprimindo a mente e o corpo em paridade.” (JAQUET 1, p.168). Dentro dos psicofísicos, estão os três afetos originários – desejo, tristeza e alegria – e alguns derivados, como o orgulho, a humildade e o amor a Deus. Depois, há os afetos propriamente corporais e Espinosa põe a carícia, a hilaridade, a dor e melancolia como afetos corporais também porque eles “têm um impacto sobre a potência de agir e a fazem variar” (JAQUET 1, p.172). Além destes há também o fastio e o tédio. Por fim, há os afetos mentais. Chantal Jaquet elenca o amor intelectual de Deus, a glória, o arrependimento e a saudade como afetos propriamente mentais.

Diz Espinosa que “Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente.” (SPINOZA 2, III, prop.11). Desta forma, todo discurso sobre os afetos, sejam eles mentais ou corporais, é “de essência psicofísica.” (JAQUET 1, p.176). Apesar de a ordem das ideias ser a mesma que a ordem das coisas, nem todo afeto concerne à mente e ao corpo da mesma maneira. Isso remete à tese de Chantal Jaquet de que o monismo espinosano deve ser concebido como igualdade de potência e não paralelismo. “O corpo e a mente são apreendidos ao mesmo tempo sem ter necessariamente o mesmo tempo” (JAQUET 1, p.181, grifo da autora). Por isso o discurso sobre os afetos é sempre misto, nunca é só corporal nem só mental.

Desta forma Espinosa “convida a romper com uma concepção simplista da igualdade entre a potência de pensar e de agir que faria dela a resultante de uma atividade análoga no corpo e na mente ou o reflexo idêntico do que se passa em cada um dos objetos.” (JAQUET 1, p.183). Isto quer dizer, a título de conclusão, que a doutrina da expressão de Espinosa  não supõe paralelismo nem causalidade recíprocas, mas, sim, igualdade, que é antes de tudo uma igualdade de potência; e esta é a tese central de Chantal Jaquet. A mente tenta sempre ver paralelismo e causalidade recíproca entre o corpo e a mente, mas, na verdade, eles não existem, a não ser como pensamentos. A igualdade da potência de pensar e de agir não elimina, contudo, as desigualdades de expressão da mente e do corpo, porque eles exprimem atributos que são diferentes (pensamento e extensão, donde a desigualdade expressiva), mas que constituem a essência de uma mesma Substância (donde a igualdade de potência).

“Conclusão”

É importante ressaltar que o livro da filósofa francesa Chantal Jacquet está em diálogo com o livro do neurocientista português António Damásio Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos . Nesta sua obra, o neurocientista resgata o filósofo holandês para justificar a atualidade de seu monismo sobre o dualismo cartesiano dentro da neurociência contemporânea.

No entanto, ao ver de Chantal Jaquet, o neurocientista português “não está sempre à altura de seu modelo e carece às vezes de rigor, porque continua a falar de emergência da mente a partir do corpo, de passagem do neural ao mental.” (JAQUET 1, p.188). Esta crítica da filósofa francesa se confirma no trecho onde o próprio Damásio diz que “é preciso compreender que a mente emerge de um cérebro ou de um cérebro situado no corpo propriamente dito com o qual ela interage; que, devido à mediação do cérebro, a mente tem por fundamento o corpo propriamente dito.” (DAMÁSIO 3, p.91). Para Jaquet, Damásio tende a pensar a mente em termos de emergência a partir do corpo, quer dizer, do cérebro. Para Damásio o cérebro causaria a mente – a alma, a consciência, o pensamento – porque ele pensa a relação psicofísica em termos de paralelismo. António Damásio erra ao apresentar a unidade do corpo e da mente “sob a forma de um paralelismo.” (JAQUET 1, p.189). Do estudo dos afetos em Espinosa, Chantal Jaquet extrai duas lições. A primeira lição é “banir toda busca de interação, de influência ou de causalidade recíproca entre a mente e o corpo para pensar unicamente em termos de correspondência e de correlação.” (JAQUET 1, p.187). A segunda lição é que “o modelo espinosista da união psicofísica não repousa sobre um paralelismo, mas sobre uma igualdade.” (JAQUET 1, p.188). Dessas duas lições sobre o estudo dos afetos conclui-se que há uma identidade entre a ordem e a conexão das ideias e das coisas; mas que tal identidade não “deve mascarar a diferença de expressão própria aos modos de cada atributo.” (JAQUET 1, p.190).

Referências

  1. JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
  2. SPINOZA, Benedictus de. Ética . Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
  3. DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das letras, 2004.

Bruno D ’Ambros – Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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Nova História em Perspectiva – NOVAIS; SILVA (NE-C)

NOVAIS, Fernando A; SILVA, Rogerio Forastieri da (orgs.). Nova História em Perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Resenha de: FLORENTINO, Manolo. História, Sentido e Totalidade. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.91, Nov, 2011.

Certa vez, em meio a uma reunião científica, foi sugerida a um alto gestor público a extinção dos cursos de mestrado no Brasil. A ideia partiu de um colega da área tecnológica, físico ou químico, não recordo bem. “Para que mestrados? É pura perda de tempo! Deveríamos selecionar nossos alunos diretamente para o doutorado!”, argumentou incisivo o colega. A resposta não tardou. O alto funcionário contestou na lata que, com as devidas exceções, as graduações brasileiras são muito ruins. Ao que, acrescentou, as pós-graduações do país eram legalmente soberanas para tornar obrigatórios ou não os mestrados como etapas da formação de seus alunos.

Ponto para o burocrata!

Pois a verdade é que, ao menos para o caso de História, os mestrados representam momentos de intenso exercício prévio à obra que se supõe resultará do doutorado. O motivo? A mais antiga dentre as chamadas ciências sociais, a História é, sobretudo, uma disciplina argumentativa — aspecto em que se sobressai dentre a chamada área de humanidades —, mas fundada na correta escolha e utilização de fontes de tipos diversos. Mais que isso, sua abrangência é enorme, seu objeto é, ao fim e ao cabo, indelimitável, o que por certo lhe imprime um caráter altamente artesanal e subjetivo. Mais claramente: argumentação aplicada ao tempo, à mudança, a partir do manejo de corpos documentais cujo escopo vem aumentando nas últimas décadas em função da imensa diversidade temática que cada vez mais caracteriza o ofício de historiador. É, pois, saudável que, ao menos no campo do saber historiográfico, nossos alunos passem por essa etapa preparatória fundamental encarnada nos cursos de mestrado.

Quando menos por isso é de grande importância para estudantes e especialistas em teorias da História a publicação do primeiro tomo da antologia de fôlego (três volumes no projeto original) organizada pelos professores Fernando Antonio Novais e Rogério Forastieri da Silva. Trata-se de trabalho cujo objetivo explícito é inserir a chamada Nova História na história geral da historiografia, enquadrando-a analiticamente em um tempo, em uma conjuntura. Afinal, como alertam Novais e Forastieri na longa e densa introdução à antologia, lenta e imperceptivelmente também a Nova História vai se tornando história.

A estrutura do primeiro volume de Nova História em perspectiva está centrada na apresentação de propostas e desdobramentos. Por propostas entenda-se trazer ao público novas traduções dos manifestos axiais dos nomes mais importantes de cada uma das três fases dos Annales. Daí os textos clássicos de Lucien Febvre, expoente da primeira fase, caracterizada pelo diálogo mais intenso entre a História e, sobretudo, a Sociologia; de Fernand Braudel, catalisador da segunda etapa, quando a interação entre a História e a Economia predominava; e, por fim, os lineamentos apresentados por Jacques Le Goff e Pierre Nora, que na década de 1970 impuseram novos rumos, marcados sobretudo pela maior abertura dos historiadores à Antropologia (ou, como querem Novais e Forastieri, sobretudo com a Etnografia) — a fase da Nova História propriamente dita.

Seguem-se os desdobramentos da avassaladora velocidade com que a Nova História se impôs nos meios acadêmicos ocidentais, contemplados neste primeiro volume da antologia pelas análises de André Burguière, Carlo Ginzburg, Emmanuel Le Roy Ladurie, Hayden White, Joyce Appleby, Lynn Hunt, Margaret Jacob, Massimo Mastrogregori, Maurice Aymard, Michel Vovelle, Natalie Zemon Davis, Philippe Ariès, Pierre Chaunu e Stuart Clark. Fecha o volume o texto de James Harvey Robinson, verdadeiro achado arqueológico, publicado originalmente em 1912 sob o sugestivo e antecipatório título de “A nova história”.

O que está em jogo aqui é, a partir de textos seminais, contribuir para o entendimento de como, na perspectiva dos organizadores da antologia, em pouco mais de quatro décadas os sucessivos grupos de profissionais agregados ao redor dos Annales acabaram, não sem profundas descontinuidades, por contribuir para instaurar um cenário historiográfico marcado pela extrema pulverização temática e — com as devidas exceções — por uma “pobreza teórica verdadeiramente capuchinha”, nas palavras de Novais e Forastieri.

É evidente, pois, a natureza crítica da longa introdução escrita pelos organizadores à Nova História inaugurada por Le Goff e Nora a partir do lançamento dos três volumes do hoje clássico Faire de l’histoire1. Os argumentos apresentados são eruditos, elegantes e fundados em uma lógica ferrenha.

De início nos é mostrado didaticamente o que vem a ser o fundamento da história-discurso, que corresponde à necessidade da criação da memória social. É estabelecida então a diferença entre a narrativa mítica, própria da constituição da memória coletiva entre os primitivos, e a narrativa histórica propriamente dita, ancorada, ao contrário da primeira, na temporalidade. Como diria certo filósofo, a história-discurso da civilização funda-se na necessária simbolização do homem no tempo.

A anterioridade da História em relação às Ciências Sociais demanda, logicamente, levar em conta o impacto do surgimento destas últimas sobre a História, e não o contrário. Nesse sentido, o século xix é muito bem localizado pelos organizadores como representando o ponto de inflexão na história do discurso historiográfico, instaurando a forma propriamente moderna de fazer História a partir do diálogo com as Ciências Sociais nascentes. Com uma importante diferença: enquanto as Ciências Sociais sacrificam a totalidade pela conceitualização, a História faz o inverso, sacrifica a conceitualização pela totalidade. Pela simples razão de que o historiador visa explicar para reconstituir um passado necessariamente total — ainda que se foque tal ou qual de seus aspectos —, enquanto o cientista social visa reconstituir para explicar.

É a partir desses pressupostos que Novais e Forastieri se posicionam criticamente em relação à terceira fase dos Annales, a da chamada Nova História. Em primeiro lugar, reconhecem que ela conforma um desdobramento das fases anteriores, na medida em que mantém, em termos gerais, o princípio básico de interlocução com as Ciências Sociais. A ruptura, entretanto, a caracteriza quando se detecta a diminuição desse diálogo e a afirmação de certa tendência à desconceitualização — dialoga-se muito mais com a Etnologia do que com a Antropologia, segundo os organizadores. À desconceitualização sucede uma imensa pulverização temática (a “História em migalhas” da qual fala François Dosse) e, pior, a descaracterização da natureza necessariamente total da história, dado que nenhum acontecimento pertence exclusivamente a uma única esfera do existir. Detalhe, bem explicitado por Novais e Forastieri: não se deve confundir esferas da existência (economia, política etc.) com níveis de realidade (estrutura, conjuntura etc.) — toda esfera da existência comporta necessariamente os vários níveis de realidade.

Em termos gerais, estou de pleno acordo com os organizadores deste primeiro volume de Nova História em perspectiva. Observando melhor o perfil de grande parte da produção historiográfica recente, é fácil capturar nele uma enorme gama de ceticismo — corolário do relativismo —, e mesmo de cinismo e niilismo. Mas lembro aqui ser necessário nunca deixar de duvidar. Da importância política da dúvida e do ceticismo que sempre marcaram a civilização ocidental contemporânea discorrem muito bem Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margareth Jacob, na “Introdução a Telling the Truth about History“, presente na antologia de Novais e Forastieri.

Mesmo reconhecendo os traços gerais desenhados por Novais e Forastieri, no entanto, insisto no que há de extremamente positivo na crítica ao consagrado, seja ele estabelecido pela tradição ou pelo mercado. No mínimo porque a iconoclastia ou o simples exercício legitimado do espírito de porco abrem campo para todas as formas de expressões artísticas, historiográficas ou teóricas possíveis, inclusive para a apaixonada defesa que Novais e Forastieri fazem do marxismo, na segunda parte de sua introdução. Da importância criadora dos momentos de maior peso do ceticismo na cultura ocidental falam, por exemplo, no campo da literatura, os grandes nomes da ficção norte-americana entre 1920 e 1945 — Scott Fitzgerald, John Dos Passos e Ernest Hemingway, apenas para ficar em alguns dos mais conhecidos.

Por que os cito em um contexto no qual a discussão sobre a natureza na Nova História é o centro? Pelo simples fato de que, com todos os seus problemas, consigo capturar nesse movimento historiográfico a expressão da radicalização do conflito entre a sociedade e o indivíduo, este definitivamente sufocado pelas teorias totalizantes em todos os campos das Humanidades até as décadas de 1970 e 1980 (a longa censura não declarada à obra de Norbert Elias é disso apenas um exemplo). Há no movimento, pois, mais do que desvios em relação às modernas regras que definem o ofício do historiador. Há nele um grito pela localização do sujeito individual na História e a firme decisão de resgatar a tolerância e a diversidade como traços constitutivos da moderna civilização.

Notas

[1Faire de l’histoire. Paris: Gallimard, 1974.         [ Links ]

Manolo Florentino – Professor do Instituto de História da UFRJ

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Autobiografia – KELSEN (NE-C)

KELSEN, Hans. Autobiografia. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. Resenha de: BATALHA, Carlos Eduardo. O jurista como verdadeiro teórico do Estado. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.91, Nov, 2011.

Não parece datada a afirmação de que “ocupa-se uma posição no espaço jurídico conforme se está mais perto ou mais longe de Hans Kelsen”1. Ainda hoje diversos juristas referem-se ao autor da Teoria pura do Direito como uma espécie de símbolo, ao mesmo tempo central e superior, para a compreensão do Direito.

Contemporâneo de uma geração de intelectuais austríacos que se destacaram para além do contexto europeu, Kelsen estudou e lecionou na Universidade de Viena no começo do século XX. Dirigiu-se à Alemanha em 1930, mas sua origem judaica e sua imagem pública como redator e guardião judicial da primeira Constituição democrática da Áustria o tornaram vulnerável à perseguição nazista. Após buscar refúgio em outros países, chegou aos Estados Unidos em 1940, onde se estabeleceu e se aposentou como professor da Universidade da Califórnia, vindo a falecer em 1973. No Brasil, sua obra tornou-se referência a partir da elaboração da Constituição de 19342, e, por volta de 1950, foi aqui consolidada no campo da Filosofia do Direito, ganhando lugar cativo em manuais e monografias dedicados às questões da justiça, da ciência do Direito e da estrutura do ordenamento jurídico3.

Tão ampla foi a recepção das concepções kelsenianas que ela própria acabou por se tornar objeto de discussão. Ao menos desde 1970, tanto herdeiros quanto críticos de Kelsen têm se preocupado com a reavaliação da apropriação de sua teoria. De modo geral, é possível dizer que esse reexame tem sido marcado por três atitudes distintas. Por um lado, tem-se a revisão dos fundamentos da Teoria pura do Direito, seja reconsiderando os vínculos de Kelsen com o neokantismo, seja promovendo sua aproximação com o neopositivismo lógico e a filosofia analítica. Por outro lado, há a atualização do horizonte de inserção da obra de Kelsen, na busca por sua integração ao debate contemporâneo sobre a jurisdição e o papel da interpretação na determinação do direito. Há também, por fim, a denúncia da trivialização do pensamento kelseniano, decorrente da simplificação e da distorção de suas ideias para fazê-las circular no dia a dia dos juristas como uma espécie de “senso comum teórico”4.

Como resultado desse reexame, várias sutilezas do pensamento de Kelsen obtiveram reconhecimento. Vê-se agora com maior clareza o equívoco de atribuir a ele “a redução do direito à lei”, “a existência de um direito sem moral”, “a desconsideração da dimensão humana e seus valores”, ou de acusá-lo de “ter colocado no mesmo nível as normas de um Estado totalitário e as de um Estado democrático”. Contudo, ainda há muitos outros aspectos de sua obra a serem revistos, atualizados e descobertos.

A recente publicação da tradução brasileira da autobiografia escrita por Kelsen em 1947 coloca em evidência alguns desses aspectos. Acompanhada de uma “autoapresentação” — elaborada em 1927 como explicação da gênese intelectual da Teoria pura do Direito —, a autobiografia ultrapassa tanto o testemunho pessoal quanto a condição de museu dos conceitos kelsenianos. Por meio de rigorosa seleção de episódios, Kelsen enfatiza elementos que o debate filosófico-jurídico no Brasil muitas vezes considerou secundários. Nesse sentido, ainda que por contraste, sua autobiografia nos auxilia a traçar os caminhos pelos quais sua teoria foi aqui incorporada à Filosofia do Direito. Ao mesmo tempo, ela também nos ajuda a entender melhor os limites de nossa apropriação da Teoria pura do Direito.

Como se sabe, o ambiente que recepcionou a obra de Kelsen no Brasil começou a se configurar antes mesmo da criação dos primeiros cursos jurídicos nacionais. Ao longo do século XVIII, um pequeno grupo da sociedade brasileira já se dirigia à metrópole portuguesa para realizar estudos superiores em Direito. E o debate intelectual que ali se encontrava não era exatamente o moderno confronto entre a tradição romano-canônica e a nova orientação do direito racional. Enquanto as concepções jusnaturalistas assumiram pela Europa uma função crítica e revolucionária, as reformas pombalinas incorporaram o discurso jusnaturalista para articular ortodoxia religiosa e manutenção do poder real em Portugal. Difundia-se um jusnaturalismo pela via do catolicismo, a serviço do Estado nacional, da centralização administrativa e das prerrogativas da monarquia. Essa perspectiva encontra-se claramente delineada no Tratado de Direito Natural escrito pelo futuro inconfidente Tomás Antônio Gonzaga5. Elaborado como tese para concurso na Faculdade de Leis de Coimbra, esse tratado examinava as concepções propostas por Grotius, Pufendorf e Thomasius para submetê-las à crítica, assentando, em primeiro lugar, a origem divina de imutáveis princípios necessários para o Direito natural e civil. Tal associação entre jusnaturalismo e filosofia católica nunca deixou de compor o quadro da Filosofia do Direito no Brasil, seja no século XIX, por meio de obras marcadas por certo ecletismo espiritualista, seja no século XX, com o empenho de diversos juristas na restauração da tradição escolástica6.

No entanto, com a criação dos cursos jurídicos em São Paulo e Olinda, após a Independência, surgiram condições para que trabalhos doutrinários introduzissem elementos característicos da modernidade na determinação do Direito. A defesa de limitações constitucionais ao poder governamental, assegurando áreas de autonomia à vida privada, fez com que instituições e princípios próprios do Estado liberal começassem a ser empregados na compreensão da estrutura legal do país. A divulgação do liberalismo veio acompanhada da importação de teorias ligadas ao iluminismo francês e ao idealismo alemão, com especial atenção para a filosofia de Immanuel Kant, lida por intermédio das obras de Karl Krause e Ludwig Noiré. O que se assimilou do kantismo, porém, não foi suficiente para apreender seu projeto de filosofia crítica. Fala-se em “filosofia transcendental”, “apriorismo” e “coisa em si mesma”, menciona-se a combinação de liberdade e coerção no domínio do Direito, mas o criticismo não é mais que um “ponto intermediário” entre as atitudes dogmáticas e céticas, de modo a conciliar a tradição escolástica com os valores emergentes das revoluções burguesas. Também havia dificuldades práticas para consolidar a compreensão liberal da ordem jurídica como um sistema impessoal, fundamentado em princípios gerais e aplicado segundo critérios objetivos. O aparato jurídico então existente não deixava de ser considerado, em sua aplicação, como um instrumento manipulável, a serviço de arranjos pessoais, trocas de favores e relações orientadas por critérios de lealdade. O que se desenvolve a partir da criação das academias de Direito é, portanto, a percepção da distância — quando não do desencontro e da contraposição — entre as “diretrizes básicas” da formação jurídica nacional e as “necessidades reais” da vida social, gerando um debate, que se torna recorrente no ensino jurídico do país, sobre a relação entre “as leis abstratas e formais” e “a prática concreta e material” do Direito7.

Nesse contexto, a referência a Kant acabou por adquirir novos contornos a partir da segunda metade do século XIX. Os ensaios e estudos do germanista Tobias Barreto articularam a inserção do Direito no âmbito da cultura e essa perspectiva o levou a negar a universalidade do fenômeno jurídico, em face da historicidade do ser humano. Influenciado pela obra de Rudolf von Ihering, Barreto acabou por atribuir maior peso às noções de finalidade e valor, como elementos definidores do próprio homem. Com isso, encaminhou-se para a substituição do jusnaturalismo por um humanismo (que depois repercutirá no culturalismo de Miguel Reale). Além disso, o que se destaca na filosofia do direito de Barreto é sua vinculação às teorias evolucionistas de Ernest Haeckel. Graças a essas teorias, sua recepção do pensamento de Kant e Ihering resultou em um naturalismo evolucionista, que não só abriu os estudos jurídicos brasileiros para o campo sociológico, como também propagou por aqui a definição do Direito em função da coação.

Esse naturalismo evolucionista ainda não correspondia, porém, à afirmação do método positivo como base para o conhecimento jurídico. Tobias Barreto chega a mencionar Augusto Comte em alguns ensaios, mas ao longo do século XIX as obras jurídicas nacionais ainda se inseriam no domínio das belles-lettres. O desenvolvimento dos estudos científicos no Brasil ocorreu inicialmente entre engenheiros, médicos e militares. E o movimento positivista obteve maior repercussão quando essas categorias profissionais alcançaram a posição de “nova burguesia” do país, a partir de 18708. Para os juristas, essa situação somente começou a se alterar com o debate entre Pedro Lessa (inclinado ao positivismo e ao naturalismo spenceriano) e João Mendes Júnior (herdeiro da tradição escolástica), que colocou a questão da Ciência no centro da Filosofia do Direito. Depois, já na primeira metade do século XX, o problema recebeu atenção particular (e orientação assumidamente positivista) de Pontes de Miranda, que manteve alguns elementos do pensamento de Ihering, mas os incorporou em uma concepção de ciência jurídica como ciência causal, não finalista, para assim aproximar o “processo de revelação científica da norma” à metodologia das ciências naturais e comprovar valores “com os números das estatísticas e com as realidades da vida”9. Foi nesse contexto que as diferentes linhas do debate filosófico-jurídico no Brasil acabaram por articular uma versão peculiar da contraposição entre compreensões jusnaturalistas (ainda orientadas pela tradição escolástica) e enfoques positivistas (aqui vinculados a um naturalismo evolucionista).

A recepção brasileira da teoria kelseniana ocorreu a partir dessa contraposição. Enquanto Kelsen era identificado como “niilista político” na edição de 1939 da Meyers Konversations-Lexikon, uma das principais enciclopédias alemãs (que expressava então o discurso nacional-socialista)10, sua obra era caracterizada entre nós como “apogeu da corrente do positivismo jurídico” e “ponto culminante da escola técnico-jurídica”11. A Teoria pura do Direito foi situada, antes de tudo, como oposição ao jusnaturalismo. Uma vez inserida na polêmica com a tradição do Direito natural, a preocupação kelseniana de delimitar, com exatidão, o objeto da ciência jurídica transformou-se em um programa de “reducionismo”. Devido à sua recusa sistemática a ultrapassar o Direito positivo na construção do conhecimento jurídico, Kelsen seria o mais típico defensor da redução simplificadora do Direito à norma jurídica, afirmando que “não há outro Direito além do Direito positivo” e que este “não é mais do que seriação gradativa de normas”12.

Na condição primordial de positivista reducionista, Kelsen não chega a ser igualado a outros teóricos então presentes no cenário nacional. Nota-se, por exemplo, que sua teoria diverge da proposta de Pontes de Miranda quanto à utilização da causalidade como nexo necessário para formulação da ciência jurídica. A importância atribuída à categoria da imputação nunca deixou de ser reconhecida. Contudo, a peculiaridade kelseniana que impressiona os juristas brasileiros de imediato parece ser a oposição entre ser e dever ser. Essa oposição os leva muitas vezes a entender que o estudo do Direito estaria todo no domínio do dever ser, “não existindo ponto de contato” com o “ser”. O neokantismo em Kelsen deixaria o jurista “desconectado do direito enquanto ser”, no plano da pura normatividade lógica, separando de modo tão radical realidade natural e norma jurídica que isso o levaria a “separar não menos radicalmente o social e o jurídico”. A identificação do elemento formal do Direito (sua normatividade) implicaria “sacrifício ou esquecimento” pelos juristas da própria realidade do Direito, deixada para o estudo exclusivo dos cientistas sociais. O positivismo reducionista seria, na verdade, puro normativismo.

O “purismo”, porém, não se esgota nesse “desligamento” da realidade. Ele também é entendido desde o início como “ausência de juízos de valor”, tendo em vista a criação de condições para descrição “objetiva” da realidade jurídica. Essa leitura da pureza metodológica de Kelsen pode ser vinculada ao célebre debate alemão, ocorrido no início do século XX, sobre a importância de distinguir conhecimento e valor no âmbito das ciências sociais13. Mas o que dela se retira na recepção brasileira é a defesa de uma completa subjetividade de todos os juízos de valor. Por meio de uma confusão entre “relativização dos conteúdos normativos”, “relativismo moral” e “ceticismo”, entende-se que Kelsen teria introduzido na ciência jurídica “o desprezo pela concepção do Direito como realização da ideia de justiça”, relegando a moral e a política ao “plano da ideologia”. Desse modo, o positivismo teria como fruto o relativismo dos valores, a começar pelo valor da justiça.

No lugar dos valores, o fundamento do fenômeno jurídico estaria deslocado na teoria de Kelsen para uma norma hipotética, de caráter lógico-transcendental e validade pressuposta, que obrigaria o pensador do Direito a tomar como o primeiro de uma série hierárquica um enunciado prescritivo posto, tornando possível pensar um conjunto de normas juridicamente válidas como um ordenamento (uma unidade sistêmica) sem recorrer a elementos “metajurídicos”, “extrapositivos” ou “não científicos”. Não é estranho, pois, que o debate em torno do positivismo de Kelsen sempre acabe por dedicar muitas páginas à teoria da norma fundamental. Também não deve espantar que, entre diversas questões levantadas por essa teoria, o problema da relação entre validade e eficácia receba grande destaque entre os juristas brasileiros. Trata-se, pois, de um recorte que assume o puro normativismo e o relativismo para colocar Kelsen em oposição direta ao discurso jusnaturalista, que, por meio de uma teoria da justiça, dedicava-se à identificação absoluta dos pressupostos éticos e políticos do Direito positivo.

A leitura das memórias de Kelsen nos permite, todavia, ir além dos limites desse recorte. A começar pela curiosa carência de menções aos temas mais discutidos entre nós. Não há nenhum destaque para a formulação da concepção de norma fundamental ou mesmo para a discussão da relação entre validade e eficácia. A respeito da discussão do papel dos juízos de valor ocorrida entre os sociólogos alemães, também não há indicação alguma. Kelsen apenas cita de passagem um contato tardio com Max Weber, reconhecendo que demorou a se familiarizar com seus escritos, pois, mesmo no período em que estudou em Heidelberg, não frequentou o círculo mais próximo do sociólogo14. Na autobiografia, o enfoque empírico-relativista surge tão somente como pressuposto da compreensão da contraposição entre formas autocráticas e democráticas de governo15. E a elaboração de uma teoria sistemática do positivismo jurídico, ligada à crítica do Direito natural, não aparece como ponto de partida. Tal teoria teve como marco a publicação de As bases filosóficas da doutrina do Direito natural e do positivismo jurídico em 1928 e somente foi desenvolvida após a mudança para a Alemanha em 193016. Foi nesse período que a preocupação com a ideia de justiça tornou-se parte das investigações científicas de Kelsen, que passou a se dedicar à redação de uma história da teoria do Direito natural sob a forma de uma “sociologia da crença na alma” como “crítica fundamental de toda a metafísica”17. Em seu autorretrato, Kelsen explicita que sua “estrela-guia desde o início” foi a filosofia de Kant18. Por isso, encontra-se já em suas primeiras obras o recurso à oposição entre ser e dever ser. A pureza não se reduz à defesa de um “puro normativismo”. Ela está ligada a outras questões.

Para que se tenha uma boa medida dessas questões, merece atenção a narrativa feita por Kelsen das dificuldades enfrentadas durante o período em que atuou na Corte Constitucional que ele mesmo projetara19. Ocupando mais de dez páginas no centro da autobiografia, essa narrativa jamais caracteriza a atividade de magistrado como simples função técnica. Diante das dúvidas interpretativas decorrentes de um Código Civil com princípios contraditórios sobre a possibilidade de dissolução do vínculo matrimonial20 e dos problemas sociais decorrentes dos tribunais que começaram a declarar de ofício a invalidade dos mesmos casamentos cuja celebração tinha sido autorizada por órgãos administrativos do Estado21, a atuação dos magistrados da Corte tinha em vista tanto a preservação do direito existente quanto a manutenção da autoridade do Estado baseada nesse direito. Sua decisão, assim, foi

determinada não apenas por sua prática em adotada em casos de conflito de competência, mas também pelo esforço de restaurar a autoridade do Estado ameaçada pelo conflito aberto entre os tribunais e as autoridades administrativas.22

Esse e outros episódios reforçam a percepção de que o significado da obra de Kelsen não se deixa apreender por meio da contraposição esquemática entre jusnaturalismo e positivismo jurídico. Por toda a autobiografia (e também na “autoapresentação”) parece claro que a reflexão kelseniana está enraizada em outro debate, relativo à unidade política e à crise da teoria geral do Estado23. Antes da Primeira Guerra Mundial, ela se dedica a ressaltar que a “vontade do Estado” não poderia ser uma entidade fisicamente real como a vontade dos indivíduos, mas apenas uma expressão antropomórfica do dever ser do ordenamento estatal24. De modo próximo a Windelband, que tomou a filosofia kantiana como base para atribuir aos valores uma existência própria, não psicológica, estruturada como a dimensão de “validade do dever ser”, Kelsen opera a transição da teoria geral do Estado para o plano da “validade objetiva”, apartado da esfera subjetivista do psicologismo. Com isso, alcança um duplo resultado: por um lado, identifica o significado não psicológico e exclusivamente normativo do conceito de vontade específico para a teoria do Direito; por outro lado, compreende que os problemas da teoria geral do Estado “mostravam ser problemas de validade e produção de um ordenamento normativo coercitivo”25. Formula, então, sua tese da identidade do Estado com o direito positivo, que é a verdadeira base tanto para a proposição da unidade entre Estado e Direito quanto para a defesa de que Direito é somente Direito positivo26. Em suas palavras,

A questão decisiva com relação à essência do Estado me parecia ser o que constitui a unidade na multiplicidade dos indivíduos que compõem essa comunidade. E não pude encontrar outra resposta cientificamente fundamentada a essa questão senão a de que é um ordenamento jurídico específico que constitui essa unidade, e de que todas as tentativas de fundamentar essa unidade de modo metajurídico, ou seja, sociológico, devem ser consideradas fracassadas.27

Após a Primeira Guerra, quando a crise prática e téorica da unidade política se agrava, a reflexão kelseniana encaminha-se para a discussão das tendências anarquistas da teoria marxista do Estado, a defesa do parlamentarismo ante quaisquer ditaduras e a compreensão da ideologia libertária da democracia por meio de um duplo contraste: por um lado, o confronto entre essa ideologia e a realidade social, entendida esta como o sentido efetivo dos ordenamentos jurídicos positivos tidos como democráticos; por outro lado, o confronto entre ideologia democrática e a situação psicológica dos indivíduos submetidos aos ordenamentos jurídico-democráticos28. Não abandona, porém, a tese fundamental de que o Estado, do ponto de vista de sua essência, é um ordenamento jurídico relativamente centralizado. Com essa tese, o poder deixa de ser um fenômeno quase natural para se tornar um fenômeno jurídico. A coerção jurídica é vista agora como um poder autorizado e as prescrições somente possuem significado jurídico se emanam de uma instância que foi autorizada dentro de uma ordem escalonada de normas produzidas juridicamente. A criação legislativa é aplicação do direito, da mesma forma que uma decisão judicial é continuação (ainda que formal) do processo jurídico de produção do direito. Isso permite a Kelsen algo mais do que se opor à tradição jusnaturalista: com a concepção de autorização, torna-se possível também rejeitar influentes teorias imperativistas do Direito (por exemplo, as teorias de Hobbes e Austin), que associavam o fenômeno jurídico aos comandos de um soberano juridicamente ilimitado29.

No que diz respeito ao “purismo” proposto por Kelsen, sua autobiografia deixa claro que essa proposta foi se constituindo aos poucos, por meio de diferentes atitudes metodológicas30. Inicialmente, a teoria pura se caracterizava pelo objetivo central de determinar a relação precisa (e não a desconexão) entre o dever ser (da norma jurídica) e o ser (da realidade natural) no conceito de Direito31. A purificação das doutrinas jurídicas correspondia basicamente à tarefa de encontrar, entre os dois extremos dessa relação, “o meio-termo correto”. Assim sendo, ela operava por meio da substituição de postulados metafísicos por categorias transcendentais como condições da experiência, acompanhada pela transformação das oposições entre direito objetivo/direito subjetivo, direito público/direito privado, Estado/Direito, antes consideradas absolutas (por serem “qualitativas e transistemáticas”), em diferenças relativas (de caráter “quantitativo e intrasistemático”). Somente mais tarde, Kelsen se dirigiu à crítica da tendência ideológica de dar aparência de justiça ao Direito positivo32. A pureza revelou-se então como exigência de despolitização33. Foi assim que a Teoria pura do Direito acabou por desenvolver seu caráter “radicalmente realista”, que se manifesta na recusa à valoração do Direito positivo34.

A autobiografia também indica que o projeto de purificação se adequa à preocupação de Kelsen com o desencontro entre conhecimento e ação, ou seja, com a difícil relação entre teoria e prática. Essa preocupação aparece em tantos momentos que se tem a impressão de que ela é a legítima constante de todas as fases da Teoria pura do Direito. Ela aparece, por exemplo, de modo discreto, na lembrança dos episódios ligados à questão do equilíbrio europeu. Ao final da Primeira Guerra, Kelsen se vê envolvido nas negociações entre o governo austríaco e o movimento nacionalista tcheco, quando ainda pretendia-se conciliar a formação de novos Estados nacionais, fundados no direito de autodeterminação dos povos, com a manutenção do bloco austro-húngaro no centro da Europa35. Em outro contexto, às vésperas da Segunda Guerra, acompanha a resistência do governo tchecoslovaco em admitir que os movimentos separatistas dos sudetos e dos eslovacos ampliavam suas forças em face do progressivo desmoronamento do sistema internacional estruturado em Versalhes. Kelsen foi consultado oficialmente em ambas as situações. E sugeriu diretamente aos dirigentes políticos que as dificuldades decorrentes das demandas por autonomia nacional fossem contornadas com a formação de um Estado federado. Suas propostas, porém, não tiveram condições de passar para o plano da ação: quando foram levadas em consideração, “era tarde demais” — repete o jurista — e acabaram por perecer diante de outros eventos históricos36.

Em outros momentos, a preocupação com a relação entre conhecimento e ação é enunciada diretamente. Na narrativa dos fatos que conduziram à sua nomeação para o cargo de professor ordinário em Viena37, bem como nos episódios da promoção de Leo Strisower à posição de professor catedrático38 e da aprovação da livre-docência do marxista Max Adler39, Kelsen expressa com clareza sua orientação geral de que o conhecimento científico deve permanecer independente da ação política. Por um lado, entende que “um professor e pesquisador não deve se filiar a partido nenhum”. Por outro lado, defende que a filiação a um partido político não poderia ser um motivo para excluir pessoas da carreira acadêmica, “à condição de que seus trabalhos tivessem a qualidade científica necessária”. A expressão dessas diretrizes é também a oportunidade para que Kelsen assinale:

pessoalmente, tenho toda simpatia por um partido socialista e ao mesmo tempo democrático, e nunca dissimulei essa simpatia. Porém, mais forte do que essa simpatia era e é minha necessidade de independência partidária na minha profissão. O que eu não concedo ao Estado — o direito de limitar a liberdade da pesquisa e da expressão do pensamento — eu não posso conceder a um partido político por meio da submissão voluntária à sua disciplina.40

Ao final de suas memórias, Kelsen retoma mais uma vez sua preocupação, ao registrar as peculiaridades da formação jurídica norte-americana. Nesse contexto, destaca que as faculdades de Direito estadunidenses, com seus cursos profissionalizantes, não apresentam interesse por uma teoria científica do Direito. Chega a pensar que talvez o Direito como objeto de conhecimento científico estaria mais bem localizado no âmbito de uma faculdade de Filosofia, História ou Ciências Sociais. Entretanto, também assinala que em Viena seus professores de Direito público (Edmund Bernatzik e Adolf Menzel) lhe pareciam pouco ou nada interessados em problemas téorico-jurídicos41. E afirma: durante todos os anos como professor no departamento de Ciência Política na Universidade da Califórnia, em Berkeley, não encontrou um único aluno que quisesse se especializar em teoria do Direito ou mesmo em Direito internacional42. Nesses termos, Kelsen parece concluir que no Direito não há interesse por Ciência, da mesma forma que na Ciência não há interesse por Direito.

Todas as preocupações, porém, não fazem com que a conclusão geral trazida por estas memórias seja qualquer espécie de “derradeira negativa”. Ainda que Kelsen tenha afirmado que “a relatividade dos valores experimentei em minha própria carne”43, sua autobiografia não se apresenta, ao final, como um conjunto de lições de relativismo. Se é certo que o lugar da justiça não é preenchido no interior da Teoria pura do Direito, não é adequado, porém, esquecer que seu autor aproveita todas as oportunidades para assumir e defender o valor da independência. Não apenas sob a forma de liberdade científica ou política, mas também, na autobiografia, como independência dos magistrados e das instituições jurídicas. O episódio que levou a seu afastamento da Corte Constitucional austríaca serve para registro e reafirmação da importância desse valor44. Relembrando situações nas quais o problema da relação entre teoria e prática se tornou evidente, Kelsen não se abstém de expressar sua convicção de que a verdade e as formas jurídicas constituem o campo apropriado para a construção de uma teoria do Estado. Em meio às artes de governar, o jurista é revelado como o mais apropriado teórico do Estado, não apenas por formular o discurso da soberania, mas principalmente por manifestá-lo como supremacia do ordenamento jurídico e, em especial, da Constituição. E, se o jurista é o verdadeiro teórico do Estado, seu positivismo jurídico transforma-se, socialmente, em um projeto de Estado de Direito. Conclusão menos niilista não poderia existir. Resta à Filosofia do Direito no Brasil dar a esse projeto a devida atenção.

Notas

1 Cf. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5. ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 118.         [ Links ] 2 Cf. ALENCAR, Ana Valderez A. N. “A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos declarados constitucionais”. Revista de Informação Legislativa, v. 15, n. 57, jan.-mar.1978, pp. 239-         [ Links ]43; Prutsch, Ursula. “Instrumentalisierung deutschsprachiger Wissenschafter zur Modernisierung Brasiliens in den dreißiger und vierziger Jahren”. In: Lechner, Manfred; Seiler, Dietmar (orgs.). Zeitgeschichte.at. 4. österreichischer Zeitgeschichtetag’ 99. Innsbruck: Studienverlag, 1999, pp. 361-         [ Links ]69.
3 Cf., em particular, ABREU, João Leitão de. A validade da ordem jurídica. Porto Alegre: Globo, 1964, pp. 49-71 e 125-         [ Links ]71.
4 Para a primeira atitude, temos como exemplo obras de Sônia Broglia Mendes, Fernando Pavan Baptista e Henrique Smidt Simon. Para a segunda atitude, consideramos os trabalhos de Gilmar Ferreira Mendes e Lenio Luiz Streck. Já a atitude de denúncia foi aqui caracterizada segundo a obra de Luís Alberto Warat.
5 Cf. MACHADO, Lourival Gomes. Tomás Antônio Gonzaga e o direito natural. Rio de Janeiro: mec,         [ Links ] 1953; Grinberg, Keila. “Interpretação e Direito natural”. In: Gonzaga, Tomás Antônio. Tratado de Direito natural. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. VII-         [ Links ]XXXV.
6 Cf. PAUPÉRIO, A. Machado. A Filosofia do Direito e do Estado e suas maiores correntes. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980, pp. 153-         [ Links ]6.
7 Cf. FERRAZ Jr., Tercio S. “A Filosofia do Direito no Brasil”. Revista Brasileira de Filosofia, v. 45, n. 197, 2000, pp. 14-         [ Links ]6.
8 Cf. COSTA, João CruzContribuição à história das ideias no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, pp. 138-         [ Links ]46.
9 Cf. FERRAZ Jr., “A Filosofia do Direito no Brasil”, op. cit., p. 24; NADEr, Paulo. Filosofia do Direito. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 278-         [ Links ]81.
10 ENGLARD, Izhak. “Nazi criticism against the normativist theory of Hans Kelsen: its intellectual basis and post-modern tendencies“. Israel Law Review, n. 32, 1998, p.         [ Links ] 183.
11 A expressão aparece na tese escrita por Miguel Reale entre 1939 e 1940, para concurso à cátedra da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Cf. Reale, Miguel. Fundamentos do Direito. 3. ed. fac-símile. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pp. 151 e 157.         [ Links ] 12 A ênfase na caracterização de Kelsen como positivista estrito ou pleno pode ser encontrada em vários autores. Aqui tomamos por base, além da tese de Miguel Reale, obras de Alysson Leandro Mascaro, Aurélio Wander Bastos, Eduardo C. B. Bittar, Fábio Ulhoa Coelho, Paulo Dourado de Gusmão e Paulo Nader.
13 Cf. LOSANO, Mario. Introdução. In: KELSEN, Hans. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. x-         [ Links ]xv.
14 Idem, ibidem, p. 49.
15 Idem, ibidem, p. 32.
16 Kelsen, Hans. Autobiografia, p. 97.         [ Links ] 17 Idem, ibidem, p. 98.
18 Idem, ibidem, p. 25.
19 Idem, ibidem, pp. 81-93.
20 Idem, ibidem, p. 84.
21 Idem, ibidem, p. 87.
22 Idem, ibidem, p. 90.
23 BERCOVICI, Gilberto. “Carl Schmitt e a tentativa de uma revolução conservadora”. In: ALMEIDA, Jorge; Bader, Wolfgang. Pensamento alemão no século XX — Grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. Vol. I. São Paulo: Cosac Naify, 2009, pp. 69-         [ Links ]72. Nesse sentido, as origens da obra de Kelsen estão ligadas à sua crítica à teoria do Estado de Georg Jellinek. Cf. Dias, Gabriel Nogueira. Positivismo jurídico e Teoria geral do Direito na obra de Hans Kelsen. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pp. 116-23 e 137-         [ Links ]40.
24 Kelsen, Autobiografia, op. cit., p. 25.
25 Idem, ibidem, p. 31.
26 Idem, ibidem, p. 28.
27 Idem, ibidem, p. 72.
28 Idem, ibidem, pp. 32-33.
29 Cf. HÖFFE, Ofried. Justiça política — Fundamentação de uma filosofia crítica do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 127-         [ Links ]31.
30 KELSEN, Autobiografia, op. cit., p. 43.
31 Idem, ibidem, p. 29.
32 Idem, ibidem, p. 25.
33 Idem, ibidem, p. 27.
34 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1984, pp. 161 e 292;         [ Links ] Kelsen, Hans. O problema da justiça. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.         [ Links ] 70.
35 KELSEN, Autobiografia, op. cit., pp. 60-4.
36 Idem, ibidem, pp. 104-5.
37 Idem, ibidem, p. 69-70.
38 Idem, ibidem, p. 73.
39 Idem, ibidem, p. 74.
40 Idem, ibidem, p. 71.
41 Idem, ibidem, p. 51.
42 Idem, ibidem, p. 108.
43 Cf. KELSEN, Hans. Testimonio radiofônico — Radio Bremen, 1958. Revista de investigaciones juridicas, México, n. 27, 2003, p.         [ Links ] 142.
[44] KELSEN, Autobiografia, op. cit., p. 92.

 Carlos Eduardo Batalha – Professor titular de Filosofia Jurídica da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e membro do núcleo Direito e Democracia do Cebrap.

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A cidade nas fronteiras do legal e ilegal – TELLES (NE-C)

TELLES, Vera da Silva. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010. As dobraduras da cidade. Resenha de: LUCCA, Daniel de. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.90, Jul, 2011.

Em seus escritos sobre Michel Foucault e Gottfried Leibniz, Gilles Deleuze forjou e utilizou-se do conceito de dobra (plis)1. Segundo Deleuze, tudo no mundo existe dobrado. A vida, ela mesma, seria uma dobra aberta, permanentemente inacabada e cuja flexão ao fora e ao dentro remeteria a um tipo de movimento que implica e multiplica, conecta e separa, dividindo-se infinitesimalmente em outras dobras menores e maiores, mas conservando sempre uma coesão que é própria de sua articulação. De Leibniz, Deleuze também tira a metáfora da cidade como um labirinto do contínuo: passagens e bloqueios, pedaços daqui que se encontram acolá, contornamentos, reviravoltas, mil dobras. Se essa cidade-labirinto pode ser de fato imaginada como o evento do origami, cuja arte dobra, desdobra e redobra infinitamente a superfície de sua trama, então a São Paulo que emerge do trabalho de Vera da Silva Telles parece ser uma espécie de experimentação radical desse pensamento.

Resultado de dez anos de diálogos, reflexões e inflexões de pesquisa, A cidade nas fronteiras do legal e ilegal apresenta e descreve de perto uma São Paulo em certos aspectos inusitada. O mundo urbano aparece ali precisamente no cruzamento cerrado de inúmeros vetores de transformações: no mundo do trabalho e suas relações; nos novos circuitos da economia informal urbana; na globalização e no ultraliberalismo dos mercados metropolitanos; na reconfiguração do Estado e dos serviços públicos; na proliferação das ONGs, associações e outros dispositivos gestionários diante da “nova questão social”; no surgimento de micromecanismos de regulação local dos conflitos cotidianos e nas implicações e figurações do crime e da violência. A articulação entre os problemas empíricos, a multiplicidade de conceitos e referenciais teóricos e as inúmeras questões de ordem metodológica impressionam o leitor desavisado e traduzem a densidade e a pluralidade do pensamento de uma autora que tem sido referência obrigatória nos estudos sobre a dinâmica urbana paulistana.

O livro, produto de sua livre-docência defendida no departamento de sociologia da Universidade de São Paulo no final de 2010, é fruto de um intercâmbio mais amplo com pesquisadores estrangeiros e brasileiros, destacando-se aí o papel fundamental da equipe de jovens pesquisadores que, sob sua orientação, se voltaram para as diversas facetas na qual as mutações da cidade poderiam ser flagradas, descritas e analisadas. Dividida em duas partes, a organização da obra reflete um duplo momento de reflexão da pesquisa. A primeira parte, intitulada “Experimentações”, expressa uma fase inicial das investigações que contou com a parceria de Robert Cabanes e resultou na publicação, em 2006, de um livro organizado por ambos os autores2, a partir de um conjunto de pesquisas coletivas do qual originam os três primeiros capítulos da obra aqui discutida. Já a segunda parte, “Deslocando o ponto da crítica”, aponta para o esforço de colocar a situação urbana paulistana num jogo mais ampliado de referências, nacionais e internacionais, e para um aprofundamento maior das implicações empíricas, políticas e teóricas dos ilegalismos urbanos.

De fato, o trabalho enfrenta um dos maiores desafios colocados para os estudos urbanos hoje: articular coerentemente conceitos que capturem processos, mecanismos, agências e diversas mediações capazes de apreender a heterogeneidade, a fragmentação e a polarização social da metrópole contemporânea. Diferente dos estudos que tomam a cidade apenas como paisagem ou pano de fundo dos processos analisados, ou mesmo daquelas pesquisas que a focam como principal realidade a ser interrogada, há um empenho geral em cruzar diferentes instâncias de análise e distintos setores de atividade urbana em prol de um diagrama de inteligibilidade transversal, mas sempre situado no tempo e no espaço. Com isso, aquilo que é lançado ao primeiro plano é justamente o trabalho instersticial dos conectores, mediadores, tradutores, passadores, em suma, os operadores das dobras que permitem jogar com o mundo urbano e seus múltiplos campos de gravitação. Desse modo, a cidade e seus problemas, ou melhor, “a questão urbana”, não é tratada numa definição prévia e modelar, mas como diz Telles “é figurada no andamento mesmo das prospecções como questão (parcial) e interrogações (sempre reabertas)”3.

Se o conjunto da obra tem como principal eixo de articulação justamente esta transitividade entre diversos territórios, universos de códigos e circuitos de práticas, é nas fronteiras do legal e ilegal, como diz o título, que toda argumentação analítica e empírica centra fogo. A principal referência teórica aqui é Michel Foucault e seu conceito de “gestão diferencial dos ilegalismos”, conceito que diz respeito a um conjunto de práticas de diferenciação, tipificação e hierarquização ativadas por dispositivos que cristalizam, fixam suas formas e “tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeição”4. Longe de desconsiderar os efeitos materiais e políticos da lei, busca-se compreender que o exercício de sua letra, “a assinatura do Estado” como diz Veena Das5, instaura campos de força e de conflito, estabelecendo todo um jogo de posições “numa espécie de tabuleiro de xadrez, com casas controladas e casas livres, casas proibidas e casas toleradas, casas permitidas a uns, proibidas a outros”. Disso, conclui-se, “numa formulação bem brasileira”6, como lembra Angelina Peralva no prefácio do livro, que “a lei não é feita para impedir tal ou tal tipo de comportamento, mas para diferenciar as maneiras de burlar a própria lei”7.

A obra persegue, assim, esses “torneios da lei”, dobraduras que articulam não só o legal e o ilegal, mas também o lícito e o ilícito, o formal e o informal. O foco nos ilegalismos e nos jogos de poder disputados em suas fronteiras, como explica a autora, busca lançar luz sobre uma inquietante linha de sombra que perpassa a experiência metropolitana em suas dimensões mais cotidianas e corriqueiras. E aí reside uma poderosa hipótese: a de que a vida urbana é atravessada, e em boa medida estruturada, por uma crescente teia de ilegalismos – novos, velhos e redefinidos – dispersa nas práticas e nos fluxos urbanos, os mais variados, assim como os mais prosaicos.

Um caso analisado no capítulo 5 (“Nas dobras do legal e ilegal: ilegalismos e jogos de poder”) é ilustrativo. Doralice, 40 anos, moradora de um bairro da periferia paulistana, trabalha como diarista e também faz e vende pães e doces para complementar a renda de sua extensa família. Mulher batalhadora, Doralice “não hesita quando surge a oportunidade de montar uma banca de CDs piratas em um bairro próximo à sua casa”, acionando com isso uma cascata de relações com intermediários: os “garotos de uma favela ao lado chamados para garantir a venda durante o dia, enquanto ela sai para o trabalho de diarista”; o agenciador dos CDs e o laboratório em que os CDs são copiados e distribuídos; os fiscais e os policiais aos quais os vendedores de rua têm de pagar pela proteção, ou melhor, pela extorsão. Entre essas relações mobilizadas como forma de lidar com as necessidades da vida, Doralice também se enreda numa “espantosa rede que opera o mercado de receitas médicas fraudadas para conseguir o remédio de que depende a vida do marido”, e acaba transformando-se, vez ou outra, na própria intermediária desse mercado negro. Mais à frente, “Doralice não encontra nenhuma razão moral para recusar o ‘serviço’ que lhe é proposto por um conhecido próximo e de confiança, e colocar a encomenda de ‘farinha’ em sua bolsa, entrar no ônibus, atravessar a cidade e tranquilamente levar a mercadoria a seu destino, trazendo de volta um ganho modesto, mas que fará toda a diferença no orçamento doméstico”8. Nesse trânsito, essa personagem não se vê como alguém comprometido com o “mundo do crime” ou com práticas imorais, mas como alguém que está se virando do jeito que pode através de “bicos” aqui e acolá.

A história de Doralice não é excepcional, é uma entre outras, “a vida de uma mulher infame” diria Foucault9, uma história minúscula que permite entrever a complicada cadeia de mediações e relações de poder que conectam e situam os sujeitos na trama concreta de suas existências. São então os traçados dessas “mobilidades laterais”, como conceitua Telles, que permitem explorar essa zona cinzenta na qual a cidade cotidianamente é dobrada e virada pelo avesso em suas normas, códigos e regulamentações formais. A cuidadosa análise das trajetórias urbanas – resultado, entre outras coisas, da proximidade com o trabalho de Robert Cabanes e seus estudos sobre o método biográfico10 – emerge como perspectiva capaz de enfrentar e redesenhar as dicotomias e binaridades clássicas presentes em boa parte dos estudos sobre cidade e segregação urbana: trabalho e moradia; produção e reprodução social; exploração do trabalho e espoliação urbana; centro e periferia; riqueza e pobreza; e, como não poderia deixar de ser, a cidade legal e a cidade ilegal. No livro, esses pares conceituais não são propriamente abandonados, mas permanentemente problematizados, recolocados e dobrados uns nos outros, no movimento mesmo das descrições etnográficas que acompanham e fornecem o solo no qual a análise se desenrola.

Do ponto de vista metodológico, é de fato notável como o foco nas mobilidades e nos regimes de circulação, com seus bloqueios, desvios e formas de acesso contrapõe e desloca a imagem da cidade partida11 ou da cidade de muros12, para outra que reside nas tramas da cidade13 e que preenche justamente o “entre” dos espaços fronteiriços. Contudo, longe de negar a existência de dispositivos de controle, barragem ou mesmo contenção na cidade, a análise buscou atentar para o fato de que as fortificações e os cercos da vida urbana são, todos eles, muito mais prenhes de fissuras e porosidades do que se imagina. Não partindo das partes separadas e extremadas que supostamente comporiam uma cidade dual, mas voltando-se para a própria relação que instaura ou contesta o movimento da divisão, o livro de Telles problematiza o próprio trabalho de dobradura que a experiência urbana opera sobre si mesma, evidenciando no jogo dessas fronteiras as zonas de turbulência e de intensa negociação que ainda precisam ser mais bem entendidas, mas que da ótica de seus atravessadores e passadores ordinários não são tão excepcionais assim.

No entanto, o problema da mobilidade urbana não é novo. Influenciado pelos trabalhos de Georg Simmel e seu personagem conceitual do “estrangeiro” (stranger), como um ser ao mesmo tempo múltiplo e móvel, interno e externo aos agrupamentos, os estudos da Escola de Chicago inauguraram um novo modo de analisar a cidade. A cidade vista através do movimento de seus habitantes, através de seus conflitos, de seus deslocamentos e seus modos de territorialização14. Mas se na passagem para o século XX a experiência de pesquisa em Chicago sobre as histórias de vida, as trajetórias habitacionais e ocupacionais, associava diretamente entre si os fenômenos de migração, urbanização, industrialização e modernização, hoje, cem anos depois, as questões colocadas pelos estudos de mobilidade são de outra ordem e outra escala. Se os fenômenos de ecologia urbana eram montados com relação ao problema das nacionalidades e da integração nacional americana – assim como os estudos urbanos brasileiros dos anos 1970 e 1980 tinham como questão de fundo o processo de modernização (sempre incompleta) de nosso país -, após os anos 1990, com a abertura dos mercados aos capitais e demais fluxos transnacionais que pousam e decolam em velocidade nas grandes metrópoles, iria se tratar de uma análise ecológica muito mais ligada à globalização e seus territórios15.

Esse é outro importante eixo de inflexão do livro. Ao demonstrar como o crescimento do mercado informal está diretamente conectado aos circuitos de um novo capitalismo mundializado, opera-se aqui mais uma dobra, de modo que a reluzente e pujante economia global é colocada face a face com o mundo ordinário das reciprocidades populares, estendendo e complexificando mais ainda as relações entre riqueza e pobreza urbana. E as etnografias de sua equipe de pesquisadores flagram bem esse processo. Como revela o trabalho de Carlos Freire16 sobre os circuitos urbanos do comércio informal que mobilizam o “trabalho sem forma”, conectando contrabando e pirataria e estabelecendo poderosas articulações entre o informal e os circuitos ilegais das economias transnacionais. Aqui, as vagas migratórias também são outras, não mais aquelas que buscam necessariamente a instalação durável e a inserção permanente numa sociedade hospedeira. São trabalhadores muito mais flexíveis, conectados e circulantes, bolivianos operando na indústria de confecção paulistana, articulados e agenciados, por sua vez, pelos comerciantes coreanos que controlam o nicho do tecido sintético na cidade.

Como também mostra a pesquisa de Claudia Sciré17, a economia doméstica é toda redefinida em função das condições de acesso aos grandes equipamentos de consumo, shopping centers, Casas Bahia e feirinhas das mais variadas que, com uma literal “financeirização da pobreza” decorrente da explosão do consumo popular e a generalização dos cartões de crédito, alteram a organização familiar, as sociabilidades vicinais e as práticas de lazer locais. Nesses circuitos de troca e dádiva, entrecruzam-se, mais e mais, lógicas da dívida onde se compra hoje para se pagar apenas quando puder. Os contratos de troca extrapolam a palavra empenhada e se formalizam em documentos jurídicos implicados também em juros variáveis e variantes. São práticas de endividamento sucessivo que enredam parentes e amigos na financeirização do velho “fiado” e que, entre os empréstimos que vão para lá e para cá, prorrogam sempre mais o momento de pagamento, podendo levar a gestão da dívida, sua negociação, ao infinito.

O capítulo final do livro, o único totalmente inédito, toca no centro nervoso das discussões a respeito deste fantasma que ronda a metrópole e que é chamado, no singular, de “violência urbana”. Em torno da impressionante queda na taxa de homicídios que se deu em São Paulo a partir dos anos 2000, Telles mostra como se montou um verdadeiro campo de disputas e controvérsias no qual argumentos políticos, estatísticos, sociológicos e etnográficos se cruzam e se confrontam na busca pela explicação do acontecimento e na legitimação dos discursos em pauta. Entre as hipóteses dispostas nesse debate destaca-se aquela que, celebrada pelo próprio governo do estado de São Paulo, explica a baixa no índice dos assassinatos como resultado da eficiência das políticas de segurança pública. Também a “hipótese PCC” circula nessa discussão apoiada na ideia de que a hegemonia da facção no comércio das drogas teria contribuído para a “pacificação” de territórios conflagrados mediante expedientes como os “debates”. Chamados também de “forinhos”, os “debates” são uma espécie de tribunal em que as partes envolvidas são chamadas para dar sua palavra, com a participação dos patrões da biqueira e a intermediação de “irmãos” do “partido”, seja presencialmente ou através de celulares. Nas palavras da autora:

No início, mecanismos postos em prática na resolução das desavenças internas aos “negócios do crime” e às organizações criminosas. Surge, primeiro no universo carcerário e transborda, depois, para os bairros da periferia da cidade e, em pouco tempo, passa a ser acionado para a regulação de microconflitos cotidianos: de brigas de vizinhos a disputas em torno da distribuição de lotes em áreas de ocupação de terra, passando por problemas com adolescentes abusados, pequenos delitos locais, brigas de marido e mulher e miríades de situações próprias da vida nesses bairros18.

Com isso aprendemos que, entre a prisão e o bairro, não só pessoas e coisas circulam, mas também valores e modos de agir, procedimentos e “debates” fluem pelos inúmeros “vasos comunicantes” que conectam o dentro e o fora da cadeia19. Dialogando com estudos recentes e amparada por um trabalho de campo de longa duração com Daniel Hirata20 – pesquisador cuja interlocução nesse ponto é de fundamental importância na argumentação da autora -, Telles coloca em evidência as formas territorializadas de regulação extralegal da vida (e também da morte) e explora as continuidades e as descontinuidades desses diferentes mecanismos de gestão através da recuperação da história urbana local e seus principais personagens. Com isso, “justiceiros”, “matadores” e “traficantes” aparecem como marcadores temporais de diferentes regimes de poder numa cronologia da violência que se estende por trinta anos no passado. A variação de escala e a mudança de perspectiva, operada em prol das “histórias minúsculas” desses personagens, com efeito, dissolve o espectro monstruoso e abstrato da “violência urbana” e, entre outras coisas, revela como as “mortes matadas” ocorrem, também, por motivos os mais corriqueiros, comuns e demasiadamente humanos possíveis: traições, mal-entendidos, brigas, pendências, vinganças, acertos de conta.

O livro termina com este aprofundamento crítico a respeito dos jogos de vida e morte na cidade de São Paulo, seus jogadores, percursos e cenas de atuação, questões muito diferentes de suas pesquisas anteriores, que tematizavam centralmente a pobreza, a cidadania e suas relações21. A trajetória de pesquisa de Vera Telles desenha, de fato, um importante deslocamento nos campos de problematização que efetua e que pode ser parcialmente flagrado em seus aspectos teóricos no capítulo 4 do livro (“Tramas da cidade: fronteiras incertas do informal, ilegal, ilícito”), em que, num debate mais amplo travado com seus interlocutores do CENEDIC (Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania)22, interroga-se a respeito dos limites da linguagem dos direitos e da implosão de seu vocabulário conceitual: leis, cidadania, participação e espaço público.

Situado no meio do livro, o capítulo constitui uma espécie de dobradiça articulando as duas metades da obra e permite compreender melhor as reviravoltas de uma pesquisadora que, vinte anos atrás, tinha como principal referência Claude Lefort e Hannah Arendt (e os problemas da “invenção democrática” e da “revolução”), e hoje trabalha sob um diagrama de análise montado a partir de Michel Foucault e Giorgio Agamben (e a própria reconceituação da política referente ao “biopoder” e à “governamentalidade”, à “vida nua” e ao “estado de exceção”).

Perguntávamos, e era a pergunta que eu própria fazia quando lidava com essas realidades: quais as potências que permitem transformar o “pobre” (personagem) em “cidadão” (outro personagem)? Pois, agora, a pergunta é outra. A pergunta que esses personagens estão nos sugerindo é: como escapar da morte matada ou da infelicidade do pobre coitado?23

Mas a retórica do “desmanche” e da “era da indeterminação”, utilizada para caracterizar essa transformação da política em pura administração das urgências e gestão dos riscos, não funciona, tal qual se poderia imaginar, como um paralisante do pensamento e da ação. Muito pelo contrário, a incerteza de nossa atualidade emerge no livro como o principal propulsor do esforço em descrever este mundo em mudança. Não por acaso, todo o corpo da obra é organizado em função desta experimentação de forte teor etnográfico: “experimentação como prática de pesquisa, como forma de produção de conhecimento, também como experiência de pensamento” (p. 11).

Transversal às escolas e às tradições nacionais, seja na interlocução de longa data com a literatura sociológica brasileira (Lúcio Kowarick, Chico de Oliveira, Cibele Rizek) ou na problematização da cidade através de referenciais franceses ainda pouco conhecidos em nosso país (Marcel Roncayolo, Bernard Lepetit, Isaac Joseph, Yves Grafmeyer), destaca-se no trabalho um notável diálogo com o pensamento antropológico (Arjun Appadurai, Veena Das, George Marcus, Paul Rabinow, Bruno Latour, Ulf Hannerz, Michel Agier, Alain Tarrius, Alba Zaluar). Ainda que difuso, esse diálogo aparece aqui e ali em todo corpo da obra e ajuda a estabelecer o fio condutor no qual o parâmetro descritivo da pesquisa se desdobra no próprio parâmetro da crítica. Seja como for, talvez fosse interessante operar aí uma outra dobra, não destacada no livro e que seria ao mesmo tempo um aprofundamento desse diálogo com a antropologia. Uma dobra capaz de vergar a pesquisa sobre si mesma, fazendo-a refletir mais detidamente sobre as condições de investigação quando o campo é “minado” e marcado pela desconfiança e pelo medo. O que, por sua vez, permitiria introduzir a própria urgência no coração (não só da política, mas também) do trabalho etnográfico.

O leitor que se dedica a pesquisas em paisagens análogas definitivamente fica muito instigado em saber mais sobre a “cozinha” do trabalho de investigação: como se deu a entrada em campo, quais os parâmetros metodológicos que orientaram a seleção dos entrevistados, quais foram os contextos de enunciação das narrativas registradas; e também sobre a tessitura das relações estabelecidas entre os objetos e os sujeitos da investigação, especialmente quando esta, como é o caso, se desenrola num tempo de longa duração. Além destas, outras questões podem ser levantadas. O que significa, de fato, pesquisar em territórios de exceção? Quais condições de trabalho e de conhecimento se impõem ao pesquisador nessas zonas de turbulência e indeterminação? Como pensar sobre o conflito e a violência quando se está fazendo pesquisa no centro desses processos? Como teorizar sobre a localização desses saberes?

Essas e inúmeras outras perguntas afloram da leitura do vigoroso trabalho de Vera Telles. E é justamente pela multiplicidade de problemas abertos, conceitos apresentados, hipóteses levantadas, também pela impressionante quantidade e qualidade de informações sobre São Paulo, que A cidade nas fronteiras do legal e ilegal é uma formidável “caixa de ferramentas” para pesquisadores da área e um manancial de conhecimento para todos aqueles que se interessam em decifrar a cidade numa perspectiva que transcenda o já dito. Essa obra de fôlego, que nos apresenta uma São Paulo em processo e feitura, e por isso mesmo incerta e desconcertante, desenha uma paisagem urbana onde tudo pode se relacionar com tudo. Uma cidade feita de dobraduras na qual sempre existe uma dobra dentro da outra e na qual o maior perigo é perder-se na vertigem do embaralhamento promovido pelos inúmeros caminhos que a cidade-labirinto nos propõe.

Notas

1 DELEUZE, Gilles. A dobra: Liebniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991; [Links] Deleuze, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. [Links] 2 TELLES, V. da S. e CABANES, R. (orgs.). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Humanitas, 2006. [Links] 3 TELLES, V. da S. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010, p. 26. [Links] 4 FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 226. [Links] 5 DAS, Veena. “The Signature of the State: The Paradox of Illegibility”. In: Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley/Los Angeles: University California Press, 2007. [Links] 6 TELLES, V. da S., op. cit., p. 10.
7 FOUCAULT, M. “Gerir os ilegalismos”. In: POL-DROIT, Roger (org.). Foucault entrevistas. São Paulo: Graal, 2006, pp. 50-51. [Links] 8 TELLES, V. da S., op. cit., pp. 173-75.
9 FOUCAULT, M. “A vida dos homens infames”. In: Ditos & Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. [Links] 10 CABANES, R. Travail, famille, mondialisation. Récits de la vie ouvrière. São Paulo: IRD/Karthala, 2002. [Links] 11 VENTURA, Zuenir. A cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. [Links] 12 CALDEIRA, Teresa. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2003. [Links] 13 TELLES, V. da S. e Cabanes, R., op. cit.
14 GRAFMAYER, Yves e JOSEPH, Isaac (orgs.). L’Ecole de Chicago: Nassaince de l’ecologie urbaine. Paris: Aubier- Montaigne, 1994. [Links] 15 ALSAYYAD, Nezar e ROY, Ananya. “Modernidade medieval: cidadania e urbanismo na era global”. Novos estudos Cebrap, nº 85, 2009. [Links] 16 FREIRE, Carlos. Trabalho informal e redes de subcontratação. São Paulo: dissertação de mestrado, FFLCH- USP, 2008. [Links] 17 SCIRÉ, Claudia. Consumo popular, fluxos globais: práticas, articulações e artefatos na interface entre a pobreza e a riqueza. São Paulo: dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 2009. [Links] 18 TELLES, V. da S., op. cit., p. 208.
19 GODOI, Rafael. “Prisão, periferia e seus vasos comunicantes em tempos de encarceramento em massa”. Texto apresentado no seminário Crime, violência e cidade. São Paulo: FFLCH-USP, 2009. [Links] 20 HIRATA, Daniel. Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. São Paulo: tese de doutorado, FFLCH- USP, 2010. [Links] 21 TELLES, V. da S. Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999; [Links] Telles, V. da S. Pobreza e cidadania. São Paulo: Editora 34, 2001. [Links] 22 OLIVEIRA, Francisco de e Rizek, Cibele Saliba (orgs.). A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007. [Links] 23 TELLES, V. da S., op. cit., p. 170.

Daniel de Lucca – Professor de Antropologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e doutorando em Ciências Sociais na Unicamp.

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Max Horkheimer and the Foudations of the Frankfurt School – ABROMEIT (C-FA)

ABROMEIT, John. Max Horkheimer and the Foudations of the Frankfurt School. New York: Cambridge University Press, 2011. Resenha de: KLEIN, Stefan. Sobre as origens da teoria crítica. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.18, Jun./Dez., 2011.

Mantendo-se relativamente à margem de parte significativa do atual debate nas ciências sociais, a teoria crítica da sociedade encontra ainda pontos de retomada, marcados, de modo geral, pela aproximação sóbria e crítica das formulações teóricas originais, tais como a de Max Horkheimer, sobretudo na década de 1930. De certa forma, pode-se dizer que a tendência maior é a de preconizar um distanciamento 1 face ao arcabouço teórico mobilizado por ele naquele contexto. Essa tendência, porém, coexiste com abordagens que, em direção contrária, buscam extrair dessa(s) teoria(s) alguma contribuição para sustentar um determinado conceito de crítica 2.

A obra de John Abromeit, Max Horkheimer and the Foundations of the Frankfurt School, procura lançar luz sobre o que ele denomina “teoria crítica primeva” ( early critical theory ), tal como fora esboçada por Horkhei mer na época em que dirigia o Institut für Sozialforschung ( IfS ). Ainda que também se dedique especificamente à década de 1930 3, em que foram publicados diversos artigos e ensaios de Horkheimer na revista do instituto, Abromeit destaca o período anterior como trajetória formativa importante para encaminhar sua interpretação da obra horkheimereana.

O livro, que além da introdução compreende nove capítulos, dois ex cursos e um epílogo, pode – de modo bastante livre – ser dividido em três grandes partes. Num primeiro momento, Abromeit retoma em traços gerais a biografia de Horkheimer e seus estudos nos anos 1920, em que Horkheimer realiza o doutorado e passa pelas etapas necessárias para galgar o posto de docente universitário (cap. 1-5). Em seguida, trata particularmente da direção teórica tomada por Horkheimer durante a década de 1930 (cap. 6-8). Por fim, o autor aborda a transição para os anos 40, onde também retoma aspectos considerados centrais para compreender determinadas mudanças na interpretação de Horkheimer (cap. 9, excursos 1 e 2 e epílogo).

Um dos fios condutores para a argumentação apresentada no livro é posto desde o início: a tentativa de se contrapor aos intérpretes 4 que veem a teoria crítica de Horkheimer como presa a uma filosofia da consciência. Seguindo este fio condutor, Abromeit alternará a discussão minuciosa dos textos que identifica como centrais – e que são alvo da maioria dos estudos publicados – com o sobrevoo de outros que, malgrado sua importância, formam um pano-de-fundo do desenvolvimento teórico e ficam ao largo de grande parte das investigações 5.

.Ainda na introdução, aparece uma passagem que procura realçar o caráter sui generis do título da obra e, igualmente, da teoria estudada:

De um lado, os fundamentos da teoria crítica primeva de Horkheimer eram anti-fundacionistas na medida em que eram sobretudo históricos, e não ontológicos ou metafísicos. De outro lado, para Horkheimer era essencial reconhecer que todos os conceitos teóricos desenvolvidos por ele estavam relacionados por meios mais ou menos mediados com a época histórica em que vivia – o que ele chamou de ‘época burguesa’. Talvez o caminho mais importante em que a teoria crítica diferia de suas contrapartes ‘tradicionais’ fosse sua recusa de naturalizar a moderna sociedade capitalista burguesa e sua tentativa de identificar as contradições e tendências que poderiam – ainda que de modo algum necessariamente – levar a uma época histórica pós-capitalista e pós-burguesa qualitativamente nova (p. 3) 6.

Assim, por mais que procure destacar fatores que poderiam ter levado à fundação do Instituto (que também ficou conhecido por “Escola de Frankfurt”), Abromeit reconhece o percalço de se tentar subsumi-lo a um ideário comum, que sequer existiu entre os diferentes autores que o compuseram inicialmente – como Theodor W. Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse e Friedrich Pollock 7 – e tampouco pode ser encontrado no transcurso da teoria de um mesmo autor, como analisado por Abromeit.

Ao retomar o que classifica como período de formação intelectual de Horkheimer, nos anos 1920, quando este realiza seu doutoramento e obtém o direito de lecionar (a venia legendi ), Abromeit enfatiza os elementos materialistas que percorreriam sua teoria desde então, distanciando-se da posição de que Horkheimer teria dado uma guinada rumo à influência de Marx apenas no decorrer de seu trabalho no IfS. Ao mesmo tempo, Abromeit enfatiza um aspecto marcante da produção intelectual escrita deste autor, apontando para a separação existente entre o dia-a-dia e o trabalho de cunho estritamente acadêmico.

Quando se examina seus escritos não publicados deste período – o que faremos no próximo capítulo – a importância teórica de Marx para Horkheimer torna-se bem mais clara. No entanto, como foi o caso tanto ao início quanto ao final de sua vida, Horkheimer abordou seus pronunciamentos esotéricos, publicados, de modo diferente de suas reflexões privadas, não publicadas. […] Em todo caso, Horkheimer claramente tomava suas tarefas como professor universitário por extremamente sérias, e não poderia ser acusado de apresentar ideias aos seus estudantes de maneira tendenciosa (p.127).

Os elementos materialistas logo começaram a ser conjugados com as teorizações marcadas pelo ponto de vista de Marx, o que vale em especial para o ensaio “Um novo conceito de ideologia?”, em que Horkheimer discute o modo como Karl Mannheim, renomado sociólogo e professor em Frankfurt, entende a importância da posição ou da origem de classe para o trabalho intelectual, em sua obra Ideologia e utopia. Este texto também aparece como central em virtude de constituir uma das bases que permitiram que Horkheimer acedesse a uma cátedra na Universidade de Frankfurt, marcando sua posição no contexto teórico daquele debate. Ao mesmo tempo, Horkheimer se de dicou extensamente à redação de diversos aforismas, sendo uma parte destes publicados – no livro em que adotou o pseudônimo de Heinrich Regius – sob o título de Dämmerung (Crepúsculo), e outra parte postumamente editados nas Gesammelte Schriften, publicadas em língua alemã a partir de 1985 e que chegaram ao total de 19 volumes. Nestes escritos, a forma de redação e a crítica contundente ao capitalismo marcam um distanciamento face ao estilo acadêmico dos artigos.

Encerrando o que compreendo como primeiro movimento do livro, Abromeit aprofunda, no quinto capítulo, as contribuições específicas da psicanálise para a teoria crítica de Horkheimer. Ele destaca que os estudos empíricos embasados por esses pressupostos teóricos da psicologia social freudiana também constituem uma possível contraprova ao entendimento de que haveria um déficit sociológico em seus escritos, pois apresentam e analisam vasto material com vistas a estabelecer possíveis explicações da realidade política alemã da época.

Considero que este enfoque detém importância particular, na medida em que expressa uma tendência crescente 8 de atentar às pesquisas empíricas realizadas pelo IfS, um viés que, em virtude dos debates de cunho epistemológico e teórico orientados pela filosofia, permaneceu em segundo plano entre os comentadores.

Em seguida, Abromeit procura, então, embasar a tese central de seu livro, a de que as raízes das interpretações dos anos 1930 e da passagem aos anos 1940 estão presentes nos textos anteriores de Horkheimer, algo que foi negligenciado pela grande maioria dos intérpretes, que procuram enfatizar a ruptura. Afirma assim:

Através do exame desses conceitos chave – materialismo (capítulo 6), antropologia da época burguesa (capítulo 7), lógica dialética (capítulo 8) e capitalismo de estado (capítulo 9) – o desenvolvimento geral e a transformação da teoria crítica no período entre 1931 e 1941 deveria se tornar clara. Apesar desta mudança de abordagem, as continuidades na obra de Horkheimer nos períodos antes e após 1931 são muito maiores do que aquelas entre seu trabalho antes e depois de, aproximadamente, 1940 (p. 227).

Neste ponto, vem à tona uma preocupação muito específica no contexto filosófico: quando se fala em “antropologia”, perceptível sobretudo como, por exemplo, na troca de cartas de Horkheimer com seus colegas do IfS, a referência costumeira é sua vertente filosófica representada, para citar um autor central, na antropologia de Immanuel Kant. No entanto, nos escritos horkheimereanos procura-se, antes, falar de uma antropologia de caráter histórico, fugindo a essa tradição de desenhar uma ontologia do ser humano, motivo pelo qual ele também a associa a uma determinada época, o que se torna igualmente patente no texto introdutório que escreve em 1936 “Autoridade e família”, onde apresenta os Estudos sobre autoridade e família, uma das obras de maior fôlego do IfS e fruto de longo e aprofundado trabalho empírico e interdisciplinar.

Num passo seguinte, Abromeit aponta para as preocupações de Horkheimer em produzir uma obra de grande relevância em que estivesse posta o que ele denominava de “lógica dialética”. Novamente, a correspondência fornece diversas pistas a esse respeito. Primeiramente, aquela trocada com Marcuse e, posteriormente, com Adorno, em que a referência explícita era ao “livro sobre dialética” e que, como se podia notar, foi um projeto repetidamente adiado por conta das intempéries da imigração e das dificuldades institucionais encontradas, ganhando corpo e forma apenas após sua mudança para a Califórnia, já nos anos 1940. Os preparativos para sua redação vieram com o tratamento de temas recorrentes nas críticas de Marx – como o idealismo, a metafísica e a filosofia da consciência – que foram, pouco a pouco, aliados aos estudos acerca do positivismo lógico ou das obras de Friedrich Nietzsche. Esses autores e questões teóricas reparecem, de variados modos, nos Fragmentos filosóficos, preliminarmente mimeografados em 1944 e, posteriormente, publicados como Dialética do esclarecimento, em 1947. De acordo com Abromeit, este percurso também reflete a relação peculiar que Horkheimer detinha com a prática intelectual:

Assim como o conceito de práxis de Marx é frequentemente falsa mente interpretado como uma justificação para posições voluntaristas, assim a separação enfática que Horkheimer realiza, nos anos 1930, entre a teoria crítica e as preocupações políticas imediatas, é frequentemente lida como um retorno a uma posição do jovem hegelianismo.

No entanto, como vimos, a separação da teoria face à prática política imediata feita por Horkheimer ocorre em um contexto mais amplo da prática da sociedade como um todo (p. 334).

Os dois excursos que antecedem o capítulo final tratam de questões localizadas que afetam o desenvolvimento teórico dessa teoria crítica da sociedade como um todo. De um lado, Abromeit analisa minuciosamente a relação de Horkheimer com Erich Fromm, representante vital da psicanálise vinculado ao IfS e que foi, durante longo tempo, seu principal interlocutor teórico, até o momento em que, já após a emigração para os EUA, divergências de ordem pessoal e profissional provocaram o rompimento entre eles. De outro lado, complementando essa primeira análise, Abromeit examina a relação de Horkheimer com Adorno, procurando mostrar, principalmente, como após um distanciamento – mantido até algum tempo depois da mudança para os EUA – houve uma aproximação em termos teóricos e pessoais que levou ambos a declarar repetidas vezes que a obra de cada um deles representava o pensamento do outro, e que compartilhavam inteiramente das mesmas posições teóricas.

No capítulo final do livro, Abromeit retrata o modo como Horkheimer compreende as contribuições teóricas de Marx, contra pondo-se explicitamente à compreensão de Moishe Postone, um dos principais intérpretes da teoria crítica nos EUA. Abromeit afirma:

Para Horkheimer, a diferença crucial entre Marx e os economistas políticos clássicos era a natureza dialética de seus conceitos, que tomavam seu objeto como especificamente histórico e sujeito à transformação, não como leis eternas da natureza. Os conceitos de Marx conscientemente visam uma sociedade na qual eles não mais seriam válidos. Já examinamos a interpretação e apropriação nuançadas que Horkheimer tem da crítica de Marx a Hegel […] mas talvez seja válido reiterar a interpretação da teoria crítica de Marx como uma ‘dialética aberta’, que ele contrastava à história da filosofia metafísica de Hegel (p. 422).

Como também sinaliza no epílogo do livro, dessa maneira Abromeit opõe-se à tradição da leitura habermasiana da teoria crítica, que os vê enredados numa aporia, pois, apesar de admitir uma guinada pessimista nas reflexões tanto de Horkheimer quanto de Adorno, Abromeit afirma que justamente em virtude de ser possível identificar essa alteração, pode ser frutífero retomar aquele projeto original que, malgrado a necessidade de rever algumas categorias e conceitos utilizados, pode contribuir decisivamente para desenhos teóricos atuais.

Notas

1 Entre estes deve-se citar os estudos de Jürgen Habermas (cf. HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981) e Axel Honneth (cf. Honneth, A. Kritik der Macht. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985), ambos – aquele com tradução prevista para 2012 e, este, até hoje sem tradução para a língua portuguesa – mostram o que consideram como um rompimento necessário face aos pressupostos teóricos e epistemológicos daquele modelo de teoria crítica, sobretudo em virtude da centralidade da noção de trabalho, trazida de Karl Marx, no primeiro caso, e da submissão ao paradigma da filosofia da consciência, no segundo.

2 Neste caso, remeto, decerto sem esgotar as possíveis referências, às obras de Heinz Steinert (cf. Steinert, H.Das Verhängnis der Gesellschaft. Münster: Wes tfälisches Dampfboot, 2007) e Alex Demirovi ! (cf. Demirovi !, A. Dernonkonformistische Intellektuelle. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999) que, cada um à sua maneira, enfocam aspectos da teoria de Horkheimer (e também de Adorno) que mereceriam ser iluminados na intenção de fornecer subsídios para o debate contemporâneo ”

3 Como já consagrado entre os comentadores – dos quais menciono, aqui, apenas Habermas, Honneth e, para evitar que a lista se torne demasiado extensa, Martin Jay e Rolf Wiggershaus –, este período foi, com referência a Horkheimer, certamente o mais frequentemente estudado.

4 Mencionados na primeira nota.

5 Até mesmo em decorrência de contarem com raríssimas traduções. Diversos destes textos, tais como a sua tese de doutorado e o trabalho de habilitação, modo geral ainda permanecem à margem dos comentários estrangeiros à obra de Horkheimer. O mesmo vale, por exemplo, para suas anotações de aula.

6 De certo modo, a tentativa de distanciar Horkheimer da ontologia e da metafísica converge com uma dentre as interpretações mais completas no campo da filosofia, a saber, aquela de Alfred Schmidt, que inclusive foi aluno e organizador das obras completas de Horkheimer, e que procurava tratar especificamente, como por exemplo em Zur Idee der kritischen Theorie (cf. Sch midt, A.Zur Idee der kritischen Theorie. München: Carl Hanser, 1974), de que modo ocorria a apropriação da filosofia nessa proposta teórica, bem como que tipo de filosofia da história, caso existisse, encontrar-se-ia subjacente ao projeto.

7 Menciono, aqui, apenas aqueles que talvez tenham se tornado os mais conhecidos.

8 Remeto, aqui, a dois estudos de fôlego recentemente publicados, e que recorreram a extenso material de arquivo, o de Thomas Wheatland (cf. Wheatland, T. The Frankfurt school in exile. Minneapolis/Londres: University of Minnesota, 2009) e o de Eva-Maria Ziege (cf. Ziege, E.Antisemitismus und Gesellschaftstheorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009); este último não aparece citado no livro de Abromeit.

Referências

ABROMEIT, J. Max Horkheimer and the Foundations of the Frankfurt School. New York, Cambridge University, 2011.

DEMIROVIC, A. Der nonkonformistische Intellektuelle. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999.

HABERMAS, J.Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981.

HONNETH, A. Kritik der Macht. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985.

SCHMIDT, A. Zur Idee der kritischen Theorie. München: Carl Hanser, 1974.

STEINERT, H. Das Verhängnis der Gesellschaft. Münster: Westfälisches Dampfboot, 2007.

WHEATLAND, T. The Frankfurt school in exile. Minneapolis/Londres: University of Minnesota, 2009.

ZIEGE, E. Antisemitismus und Gesellschaftstheorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009.

Stefan Klein – Professor do Departamento de Sociologia na UNB.

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Indústria Cultural: uma introdução – DUARTE (AF)

DUARTE, Rodrigo. Indústria Cultural: uma introdução. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. (Coleção FGV de Bolso, Série Filosofia). Resenha de: MARINHO, Lucas Alves. Artefilosofia, Ouro Preto, n.10, abr., 2011.

Conformado, em seis curtos capítulos, aos propósitos da coleção que integra, destinada a “interessados em filosofia de uma forma geral [que] a partir de textos claros poderão ter acesso às grandes questões do pensamento filosófico”, o livro Indústria Cultural: uma introdução é exemplo de didatismo que segue bem de perto, sobretudo em seus quatro capítulos centrais, a exitosa sequência expositiva de Teoria Crítica da Indústria Cultural 1. O surgimento da Teoria Crítica da indústria cultural, segundo capítulo do livro, relata as mais importantes ocorrências relacionadas ao Instituto para a Pesquisa Social: desde seu surgimento em 1924 na Alemanha, às expensas de Felix Weil, como alternativa entre as diretrizes ideológicas da social democracia e do comunismo ortodoxo: a invasão do instituto em 1933, então sob a direção de Horkheimer, o exílio de seus integrantes e o prosseguimento das atividades junto à Columbia University, até a chegada de Adorno aos Estados Unidos em 1938. Naquele país, Adorno, juntamente com Horkheimer, reuniu as condições teóricas e vivenciais – o conhecimento dos mecanismos de produção e difusão cultural já industrialmente instalados, as reflexões sobre a ciência e personalidade burguesas, o acirramento do antissemitismo e o início da Segunda Guerra, bem como os aforismos Sobre o conceito da história, legados por Walter Benjamin – para elaboração da Dialética do Esclarecimento. Após essa aproximação histórica, segue-se uma breve explanação temática dos seguintes capítulos da obra sobre a dialética: “Conceito de Esclarecimento”, “Ulisses ou Mito e Esclarecimento”, “Juliette ou Esclarecimento e Moral”. Explanação que conduzirá o leitor ao, digamos, vestíbulo do cerne do livro: a terceira seção do segundo capítulo, A crítica à indústria cultural no contexto da Dialética do Esclareci- mento, onde estão inseridos destacadamente os excursos constituintes da Dialética do Esclarecimento mais afeitos ao propósito de Indústria Cultural: uma introdução, aqueles sobre a “Indústria Cultural”, modelo liberal, e sobre o “Antissemitismo”, modelo autoritário das sociedades tardocapitalistas ; ambos vinculados, por uma articulação magistral, à semicultura, condição subjetiva da perpetuação de tais modelos. Vamos ao cerne do livro: Trata-se do capítulo terceiro, Os operadores da indústria cultural segundo a crítica de Horkheimer e Adorno, onde são desvelados os “procedimentos típicos da indústria cultural […] os quais se constituem também como critérios de identificação não apenas de suas práticas, mas, eventualmente, até mesmo dos seus produtos mais típicos” –; eis exatamente o que se quer dizer com operadores. Estes perfazem cinco referências básicas que explicitam, com bastante clareza e objetividade, as estratégias repressoras da indústria cultural: a manipulação retroativa – corresponder minimamente às expectativas dos consumidores (expectativas previamente enxovalhadas pela própria indústria cultural) enquanto impõe padrões de consumo, de comportamento moral e político comprometidos com a perpetuação do status quo ; a usurpação do esquematismo – antecipação estandardizada e reles, até a quase absoluta previsibilidade, das possibilidades interpretativas (individuadoras) de seus produtos; a domesticação do estilo – correlato produtivo daquela usurpação do esquematismo receptivo, que reproduz a desproporção real existente entre todo (mundo administrado) e parte (indivíduo) no interior dos produtos da indústria cultural pela sobreposição artificial, estereotipada, por isso violentamente coercitiva, de clichês in- vestidos de universalidade; a despotencialização do trágico – correlato antropológico da relação coercitiva entre todo e parte nos produtos da indústria cultural que interdita ao sujeito (parte) qualquer possibilidade de individuação, de resistência afirmativa, experiência e expressão do sofrimento (encarnação da negatividade) para além do mundo ad- ministrado (todo); tudo isso posto sob um disfarce – o fetichismo das mercadorias culturais – que sobrevaloriza seus produtos, oferecendo-os como “nobres” mercadorias pretensamente distanciadas do mercado dos gêneros utilizáveis, para escamotear exatamente suas danosas implicações sociais.

Depois da sucinta e segura apresentação do caráter regressivo dos produtos da indústria cultural a partir desses cinco tópicos básicos, o autor tematiza, no capítulo quarto, as Retomadas do tema da indústria cultural na obra de Adorno. Ele destaca duas obras do último período do pensamento do filósofo, Teoria Estética e Sem modelo: pequena estética, em busca de adições críticas relevantes ao tema da indústria cultural posteriores à publicação de Dialética do Esclarecimento, quais sejam: a reflexão adorniana sobre a histórica apropriação mercantilizada e desvigorada de conceitos da arte autônoma pela indústria cultural, que o autor ilustrará referindo-se aos conceitos de estilo e catarse ; e aquelas reflexões que atualizam, no livro Sem modelo: pequena estética, “as tendências predominantes na indústria cultural” pós- Dialética do Esclarecimento. Ele aponta, por um lado, no surgimento e consolidação da televisão como medium maximamente invasivo, a hipertrofia da estratégia cinematográfica de reduplicação e naturalização do mundo para reprodução simples do espírito; por outro lado, no desenvolvi- mento histórico de formas alternativas de cinema, a possibilidade de um cinema libertário que tematizasse diretamente, ou seja, que recuperasse objetivamente o modo imagético (assim como a pintura para o modo visível e a música para o modo auditivo) da experiência.

O quinto capítulo propõe aprofundar a atualização da interpretação crítica dos fenômenos da indústria cultural a partir das “ferramentas conceituais legadas por Horkheimer e Adorno”. Ocasião para uma frutuosa apresentação das posições de Ulrich Beck e Scott Lash, às quais o autor recorre para bem delimitar (histórica e geopoliticamente) seu objeto, a globalização – período de virulento triunfo de empreendedores transnacionais (sobremaneira intensificado nas duas últimas décadas do século XX, quando os rendimentos de capital cresceram 59%, contra apenas 2% dos rendimentos oriundos do trabalho, e a produção mundial saltara de 4 para 23 trilhões de dólares) em detrimento do operariado organizado nos moldes da modernidade clássica, os “perdedores” (nesse mesmo período o número de pobres aumentara em 20%) inexoravelmente suplantados por uma classe média qualificada, informatizada, “vencedora da reflexividade” ao lado das quatro centenas de bilionários detentores de mais da metade de toda a riqueza produzida pela humanidade. O autor não se furta a lhes impingir (às posições de Beck e Lash) sólidas emendas críticas quanto às supostas implicações culturais da globalização – no fundo mais uma versão daquele ingênuo, gracioso (porque apressado) borboletear pós-moderno onde tudo são dinâmicos fragmentos dispostos a vigorosas alternativas simbióticas que confirmariam a “liberdade das pessoas no tocante à ‘escolha’ de opções que a indústria cultural apresenta”. Ridículo como dizer: “Nem mesmo sob tortura me farão preferir Bob Dylan a Noel Rosa. Portanto, sou livre.” Rodrigo Duarte insiste, contra esse otimismo fácil, a-dialético, na vocação marcadamente totalitária da indústria cultural globalizada, cuja matriz tecnológica, a digitalização, mais que democratizar fluxos imagéticos, teria permitido intensificar, “capilarizando” na mesma medida da internacionalização e concentração histórica do capital, a coercitividade e analgesia das mercadorias culturais.

No que apresentamos até aqui, ou seja, do segundo ao quinto capítulo, tem-se o esforço fundamental do autor: a apresentação do “modo mais simples e direto […] do quadro conceitual apropriado para se compreender os fenômenos audiovisuais reunidos sob a rubrica de ‘cultura de massas’”.

Mencionemos, por fim, os dois capítulos de cunho prevalentemente histórico do livro. As origens históricas da cultura de massas, capítulo primeiro, relato utilíssimo da constituição e consolidação histórica da “cultura de massas” segundo dois movimentos complementares: a disponibilização (e massificação) do público acompanhando a progressiva distinção entre tempo de trabalho e tempo de lazer; e a progressiva concentração do capital privado no ramo do entretenimento, assenhorando-se desse tempo livre – dos Music Hall a Hollywood. E o capítulo sexto que narra o desenrolar – usual- mente servil a projetos políticos autoritários – da Indústria Cultural no Brasil, desde as primeiras transmissões radiofônicas e confecções cinematográficas “artesanais” da segunda década do século XX; passando pelo estabelecimento industrial desses media durante o Estado Novo; até sua conformação definitiva, com o advento da televisão e sagração sistemática da TV Globo, não por acaso, a partir de 1964. O autor ensaia, em seguida, nas mais bem-sucedidas fórmulas desse mais bem-sucedido conglomerado da indústria cultural brasileira (a telenovela e o telejornal) um arguto reconhecimento daqueles referi- dos “operadores” (a manipulação retroativa, a usurpação do esquematismo, a domesticação do estilo, a despotencialização do trágico, o fetichismo das mercadorias culturais) acrescidos de um mecanismo original: certa “vocação filantrópica” – tutela dúbia atinente à parcela mais desassistida da população pela promoção regular de campanhas para arrecadação de fundos e prestação de serviços básicos em lugar do Estado – típico do modelo da indústria cultural brasileira. Indústria Cultural: uma introdução assim cumpre (e ultrapassa) seus desígnios didáticos.

Nota

1 DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003(coleção Humanitas).

Lucas Alves Marinho

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Facundo ou civilização e barbárie – SARMIENTO (NE-C)

SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo ou civilização e barbárie. Tradução e notas de Sérgio Alcides; prólogo de Ricardo Piglia; posfácio de Francisco Foot Hardman. São Paulo: Cosac & Naify, 2010. Resenha de: HOSIASSON, Laura Janina O prazer da leitura em Facundo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.89, Mar, 2011.

Do tempo que é depois, antes, agora,
Sarmiento, o sonhador, continua nos sonhando.
Borges, “Sarmiento”, O outro o mesmo

A leitura deste livro – em tradução cuidadosa de Sérgio Alcides – confirma com espantosa evidência o fato de estarmos no século XXI ainda fincados de modo visceral no século XIX. Embora nossas convicções nacionalistas distem muito de ser as mesmas de Sarmiento e seus preconceitos raciais sejam intoleráveis para nós, ainda que seus prognósticos políticos soem ingênuos para o leitor latino-americano no presente, reconhecemos como nossas as contradições, os paradoxos, as ambivalências que marcam o discurso deste narrador que perscruta o mundo ao redor à procura do sentido de sua história. Sua perspectiva diante dos acontecimentos que narra nos atrai pela capacidade de enxergar a complexidade que há por trás do fato aparentemente simples. Para além de sua visão de mundo cindida em dois, um mundo que se debate entre as forças civilizadas vindas da Europa e a barbárie indígena e de lastro colonial, entre “os últimos progressos do espírito humano e os rudimentos da vida selvagem, entre as cidades populosas e as matas sombrias” (p. 53), apesar dessa visão tributária decerto do romantismo de sua época, reconhecemos a desenvoltura de sua prosa e a forma como ele liga coisas que pareciam distantes e as atrela ao núcleo principal de seu argumento.

É preciso destacar, nesse sentido, o prazer da leitura desde os primeiros parágrafos. Escrito “de uma sentada só”, em não mais de dois meses – entre maio e junho de 1845 -, para ser publicado como folhetim no jornal chileno El Progreso, sua prosa viva, ágil e imaginosa embala o leitor num ritmo que nunca esmorece. Para falar de contingências da política internacional, Sarmiento lança mão de símiles e perífrases que dariam água na boca a qualquer um de nossos comentaristas atuais. Na sua visão, o mundo possui convergências inusitadas e paralelismos que podem ligar as rotações dos astros no firmamento às reviravoltas dos regimes autoritários aqui na terra. Sua perspectiva global dos acontecimentos internacionais lhe permite aludir às vicissitudes, aos processos histórico-culturais, à política ou à economia da Itália, da Polônia ou do Paraguai para falar da Argentina. Por outro lado, sua concepção do mundo asiático e oriental, marcada pelo exotismo, parece saída dos livros de Marco Polo e são recorrentes as alusões a “lembranças imaginárias” desse mundo excêntrico, devasso, desorganizado, atrasado, bárbaro enfim, para se referir às mazelas da situação argentina.

Em primeiro lugar, e sem nunca sair do espectro de seu horizonte, está o “Eu”1 do exímio narrador, figura que se insinua e já se define nas cenas descritas na “Advertência do autor”, quando começa por nos alertar sobre os erros circunstanciais e as “inexatidões”, derivados da situação de exílio em que se encontrava2, obrigado a apelar para “as próprias reminiscências”. Exemplo emblemático é a célebre citação (“on ne tue point les idées”) que nessa mesma “Advertência”, ele atribui a Fortoul: Paul Groussac a remeteria ao conde Volney, mas críticos recentes afirmam ser invenção dele próprio e Ricardo Piglia (no prólogo a esta edição), de Diderot3! O mesmo ocorre com as epígrafes que inauguram cada capítulo, em sua maioria inexatas, incompletas e mal atribuídas. Mas isso está longe de significar motivo de preocupação para ele, que as assume como sinal de espontaneidade e de transparência, preferindo não retocar nada para não desaparecerem do livro “sua fisionomia primitiva e a audácia louçã e voluntariosa de sua concepção mal disciplinada”, como ele mesmo declara em carta a Valentín Alsina, no momento da segunda edição da obra em 18514. Nessa atitude já se mostra um tipo de narrador que se assume como leitor e intérprete ele também e que, adiantando-se em várias décadas, aponta para aquilo que Marcel Proust irá formular num pequeno e precioso texto “Sobre a leitura”: a relação livre que o escritor poderia estabelecer com os documentos e livros que cita e a partir dos quais constrói sua obra5. Podemos pensar também que aqui reside uma das matrizes da relação libérrima e lúdica que se estabelece nas narrativas de Jorge Luis Borges com as fontes e as citações bibliográficas. Borges fará disso um procedimento estético.

O narrador de Facundo sente-se duplamente livre: de um lado, num território neutro, como o que ele encontra no seu exílio chileno, para dizer e escrever o que pensa, sem risco de vida; e de outro, sente-se livre e já maduro para elaborar um estudo capaz de aglutinar de modo magistral um enorme leque de gêneros e estilos, através dos quais perambula com absoluta soltura.

Aos 34 anos, após uma formação praticamente de autodidata (Sarmiento só cursou de forma regular a escola primária) tornar-se-á grande educador, áspero polemista, político hábil e publicitário. Dominará a escrita e será capaz de compor descrições detalhadas da geografia do pampa argentino, com olhar detido em toda espécie de árvore, flor ou aroma; saberá elaborar uma tipologia social do gaúcho, de sua rotina no pampa, tão eficaz e pertinente, que o transformará de imediato e de maneira simultânea em referente para o pensamento histórico sobre o país e pedra de toque para a imaginação de toda uma linhagem literária argentina. Ainda no mesmo livro, interpreta a história do país desde sua independência em 1810 até 1845, período dentro do qual delineará a biografia circunstanciada do terrível caudilho Facundo Quiroga, salpicada de digressões, diatribes e ponderações e termina prognosticando um futuro argentino, uma vez superada a ditadura de Juan Manuel Rosas (o que só aconteceria em 1852). Tudo isso num livro só, pontuado ainda com iluminações de grande estrategista político, qualidade essa que levaria Sarmiento à presidência, em 1868.

O título bifronte –Facundo ou civilização e barbárie-, que alude, de um lado, à biografia do caudilho, e, de outro, à dialética entre o que se entende por mundo civilizado e o que se entende por barbárie, já aponta na direção de uma obra plural. Entre outras coisas, trata-se também de um panfleto político, na tradição da Brevíssima relação da destruição das Indias Ocidentais de Bartolomé de Las Casas6. Encontramos no texto de Sarmiento, como no de Las Casas, um esquematismo antitético, muitos exageros e fórmulas simplificadoras e caricaturais em que a história se coloca como campo de batalha entre forças antagônicas lutando entre si. Só que não estamos aqui em presença do maniqueísmo sistemático com que o frade dominicano reduzia o conflito entre indígenas e espanhóis no século XVI, posicionando frente a frente pobres carneirinhos e lobos famintos. Sarmiento propõe-se detratar e desmoralizar o ditador argentino, seu maior inimigo político: aquele que representa para ele a personificação do mal, do atraso, da impossibilidade do progresso e é signo da estagnação política. Só que para tanto idealiza um texto em que isso possa ser feito sem que as farpas sejam dirigidas de forma direta. A primeira biografia que escreveu, sobre o general Félix Aldao, poucos meses antes de começar a escrever Facundo, era já de certa forma germe deste livro e também do seu proceder: um meio lateral de apontar na direção de Rosas.

Mas a questão é que Rosas é muito interpelado, e ressurge o tempo todo ao longo das mais de quatrocentas páginas: como a sombra de tudo que se narra, é o alvo de tudo que se diz. Mediante um procedimento literário absolutamente magistral, a primeira frase do livro, “Sombra terrível de Facundo, vou evocar-te para que te ergas, sacudindo o pó ensanguentado que cobre tuas cinzas […]”, produz um duplo movimento: trazer das sombras da morte o caudilho da província de La Rioja para iluminar e vitalizar sua trajetória, e empurrar Juan Manuel Rosas para as sombras do texto, sem voz, mas sempre a “escutar”, como um interlocutor fantasma, tudo quanto for dito. A ele são atribuídos desde o começo e de forma direta os epítetos mais terríveis: “falso”, “coração gelado”, “espírito calculista”, “um Maquiavel”, “Tirano”, “monstro”, déspota”, “esfinge Argentina” (por covarde e sanguinário). A Rosas dirige-se também de forma direta o narrador no último capítulo (“Presente e porvir”), quando o “Eu” narrativo encara de modo frontal seu interlocutor mudo, invocando-o na segunda pessoa do singular: “Insensato! O que fizeste?” (p. 422). Um dos grandes prodígios do livro é justamente ter criado uma situação absolutamente fictícia, mas por isso mesmo de uma força real impressionante, na qual o “Tigre de los Llanos” Facundo Quiroga (exemplo máximo da barbárie provinciana), tendo ficado atrás, morto e enterrado, deixa agora eles dois – Rosas e Sarmiento a se verem finalmente um diante do outro, como num duelo de titãs. No Prólogo à edição aqui resenhada, Ricardo Piglia trabalha justamente essa ideia.

Nas páginas finais, através do olhar do estrategista, Sarmiento calcula o paradoxo segundo o qual, graças à política do terror praticada pela ditadura de Rosas, o país está já finalmente centralizado em Buenos Aires: “Porém não se creia que Rosas não conseguiu fazer progredir a República que está despedaçando […]. A ideia dos unitários está realizada; apenas o tirano está demais” (p. 418). O olhar do escritor que tudo sopesa permite-lhe capitalizar o período sinistro da ditadura como um tempo de aprendizado, de educação política e social para o povo argentino. Um desfecho otimista, esperançoso de quem, apesar da adversa realidade circundante, nunca esmoreceu nas suas convicções, de quem estava se armando para assumir um dia ele mesmo o poder político do país. Nesse momento final irá repetir doze vezes (!) sua arenga contra Rosas, agora usando a terceira pessoa do singular: “Porque ele, não tomou uma medida administrativa […]. Porque ele perseguiu o nome europeu […]. Porque ele destruiu os colégios […]” (pp. 427-430), e assim por diante.

A eficácia de todo esse esforço por desacreditar o inimigo ficaria provada pelas palavras que o mesmo Rosas teria declarado após a publicação do livro: “O livro do louco Sarmiento é o melhor que já se escreveu contra mim; é assim que se ataca, senhor; é assim que se ataca; o senhor verá que ninguém irá me defender tão bem”7.

Outra grande eficácia do livro reside na sua estrutura. Tendo sido expostas já na “Introdução” as diretrizes gerais que norteiam tanto o aparato ideológico de Sarmiento como seus pressupostos esquemáticos sobre os processos históricos, a obra poderia correr o sério risco de se tornar uma longa e árdua estrada de redundâncias e de desenvolvimentos previsíveis. Isso está longe de acontecer graças à estrutura completamente heterogênea de suas partes. É possível pensar o livro em três grandes blocos8, muito diversos em natureza e tratamento narrativo.

Um primeiro bloco que compreenderia os quatro capítulos iniciais, dedicado à descrição dos contextos físico, social, racial, econômico, cultural e histórico que determinariam a índole dos indivíduos que ali habitam; um segundo- o mais longo – que reúne os nove capítulos seguintes, em torno da “vida e obra” de Juan Facundo Quiroga; e os dois últimos capítulos, de teor mais político e panfletário. A repisada questão da multiplicidade de gêneros que residem nesta obra, já pulsa nesta divisão que supõe três viradas abruptas nos pressupostos narrativos e compositivos, assim como mudanças de tom, de perspectiva e de ritmo.

A descrição que Sarmiento é capaz de fazer da imensidão argentina, de seus pampas, desertos e planícies é digna de poeta. A poesia de suas frases, para além da descrição justa e pormenorizada, permite que a própria geografia penetre na linguagem e se faça expressão da vida natural. Ele cria cenas hipotéticas de viajantes, de encontros com animais selvagens, com a onça perigosa, com o passarinho silvestre; sua palheta harmoniza cores, esboça nuanças com a sensibilidade do grande artista. Sarmiento é um escritor nato9 num tempo feliz em que a escrita podia intervir no curso das coisas, e foi o que ele fez.

No primeiro capítulo, “Aspecto físico da República argentina e caracteres, hábitos e ideias que engendra”, destaca-se a comparação com aquilo que Sarmiento entende pelo “mundo árabe e asiático”, atrasado, violento, supersticioso. Isso funcionará quase como um motivo recorrente ao longo do livro porque lhe serve para definir o que seja o mundo bárbaro (comparado também ao mundo tártaro). Ora os luares na planície extensa do pampa argentino se lhe afiguram como um espetáculo com “certa tintura asiática” (p. 77), ora “o caudilho argentino é um Maomé” (p. 133), e assim por diante. Francisco Foot Hardman, no posfácio à edição que aqui resenhamos, aponta para as relações intertextuais mais profundas desses quatro primeiros capítulos com a obra explicitamente citada por Sarmiento, As Ruínas, ou meditações sobre as revoluções dos impérios (1721), do conde Volney. Muitas das alusões ao Oriente no deserto do pampa, a caracterização dos seus tipos, além da cena de abertura da Introdução, em que Sarmiento invoca a sombra de Facundo Quiroga, seriam empréstimos e colagens de Volney. Isso vem reafirmar a atitude geral do narrador em Sarmiento, leitor compulsivo, autodidata genial que aproveita materiais de fontes bibliográficas e testemunhais diversas para compor seus panoramas, cenas e tipos. De fato, e isto causa verdadeiro espanto, Sarmiento nunca tinha estado no pampa quando realizou essas descrições antológicas. Valeu-se de narrações de vaqueiros e de descrições feitas por combatentes da guerra civil. Ele só veio conhecer o espaço tão perfeitamente descrito sete anos depois, em 1852, redigindo boletins para o “Exército Grande” de Urquiza que derrubaria finalmente a ditadura de Rosas.

Com relação ao Oriente, seu conhecimento deve ter sido fruto de tudo que ele apanhava, no ar de seu tempo, da visão romântica e exótica, até as leituras explicitamente declaradas de Volney. A questão é que para ele, sem ter ainda estado no pampa e sem nunca ter ido ao Oriente, como afirma categoricamente e sem deixar que o leitor possa ter tempo de parar para duvidar, “há algo nas soledades argentinas que traz à memória as soledades asiáticas […]” (p. 77). Por outras palavras, para os propósitos de sua tese, é importante inventar esse mundo de barbárie (sedutor e abominável ao mesmo tempo) lançando mão de tudo que estiver disponível e, assim, poder construir a oposição com o mundo civilizado da cidade, de modos elegantes “à europeia”, instruído e trabalhador, que ele propõe para o futuro da pátria.

O determinismo oriundo da leitura de A democracia na América de Tocqueville (mais uma das referências citadas explicitamente por Sarmiento), entre outros, pairava sobre as concepções sarmientinas da formação do caráter dos povos. Somente por meio do contato direto com as ideias e a cultura europeias inculcadas nas escolas primárias é que o povo argentino poderia superar sua condição atávica de atraso que lhe chegava por duas vias: a indígena bárbara e a espanhola retrógrada (e, portanto, também bárbara).

Ao longo desses quatro capítulos iniciais aparecem alguns dos mitos que marcam de forma profunda e indelével a literatura argentina: a violência e galhardia gauchescas e a ociosidade anticapitalista do mundo da campanha, entre outros. Como não pensar em Borges quando lemos trechos como o seguinte:

[…] é preciso ver essas caras cobertas de barba, esses semblantes graves e sérios, como os dos árabes asiáticos, para julgar o compassivo desdém que lhes inspira a visão do homem sedentário das cidades, que pode ter lido muitos livros, mas que não sabe aterrorizar um touro bravio e darlhe morte; que não saberá proverse de cavalo em campo aberto, a pé e sem auxílio de ninguém; que nunca deteve um tigre, recebendoo com um punhal na mão e o poncho envolvido na outra para lhe meter na boca enquanto lhe traspassa o coração e o deixa estendido a seus pés (p. 92).

Também exercita Sarmiento seus dotes de crítico literário, incursionando na interface da ficção com o ensaio: analisa O último dos moicanos de Fenimore Cooper, aproximando-o de A cativa de Echeverría, dois antecedentes na ficcionalização do binômio civilização/barbárie. Arrola poemas de poetas cultos e o cancioneiro popular. Seu narrador está a esta altura, juntamente com o seu leitor, embevecido pelo encanto deste mito da vida do gaúcho, bárbara e desprezível – que ele retrata, lembra, inventa – repleta de força vital e literária.

Em “Originalidade e caracteres argentinos” e “Associação: a pulperia”, provavelmente as passagens mais romanescas do livro, elaboram-se os tipos e os temas gauchescos que se constituirão em mitos: o “rastreador”, o “baqueano”, o “gaucho mau”, o “cantor”, a faca e o cavalo. O narrador oscila, com a ambiguidade sedutora própria de todo grande narrador, entre a admiração e a indignação diante desse mundo, segundo ele “a cavalo” entre o século XII e o século XIX. O mistério do poder e da força que esses seres bárbaros possuem contradiz, o tempo todo, a proposta de crítica. O narrador cai na cilada do fascínio do enigma cifrado nesses gaúchos. São eles, seres que conhecem, que possuem um saber da realidade ao seu redor, o que os torna perfeitamente pertinentes dentro do contexto em que são concebidos: O rastreador, uma espécie de farejador de rastos e sinais, pela dignidade e o respeito que provoca a seu redor; o baqueano, pelos seus conhecimentos de topografia indispensáveis em qualquer façanha militar; o gaúcho mau, “sem que esse epíteto o desfavoreça de todo”, cujo mistério “voa por toda a vasta campanha”; e o cantor, que de certa forma, é uma soma dos demais e o poeta que os canta. Campo e cidade entram aqui num confronto complicado porque, para Sarmiento, a concepção de progresso (para ele a passagem do campo à cidade) passa fundamentalmente pela troca de hábitos culturais, sem que a base econômica da defasagem esteja colocada. Daí o andamento ambíguo, contraditório da escrita nessas passagens. Martín Fierro viria, décadas mais tarde, se erguer contra todo o preconceito com que Sarmiento imaginou esta tipologia popular, embora, lendo a contrapelo o poema de José Hernández, se revelem todos os débitos que ele tem com a sua matriz.

Outra das contradições interessantes nestes primeiros quatro capítulos é a concepção ambivalente que se tem da Espanha. Ora é a “renegada da Europa, posta entre o Mediterrâneo e o oceano, entre a idade Média e o século XIX”, cujo problema poderia ser compreendido por meio do “minucioso exame da Espanha americana, assim como as ideias e a moralidade dos pais podem ser rastreadas por meio da educação e dos hábitos dos filhos” (p. 53), Espanha essa que mais adiante é definida como a face europeia e culta da República argentina, em oposição à “bárbara, americana, quase indígena”, na hora de sua independência, em 1810 (p. 135). Essa “maleabilidade” dos conceitos utilizados pelo narrador neste livro fantástico repete-se em mais de uma oportunidade e pauta um estilo que vem a ser, por isso mesmo e antes de tudo, uma obra de ficção cujo protagonista principal não será nem Facundo nem Rosas, mas o próprio Sarmiento. O narrador é uma das caras deste personagem que avança no seu relato, refletindo sobre o próprio fazer a cada passo: “Dou tanta importância a esses pormenores porque eles servirão para explicar […]” (p. 134) ou mais à frente: “Precisei repassar todo o caminho até aqui percorrido a fim de chegar ao ponto no qual nosso drama começa” (p. 137), entre outros muitos exemplos ao longo da narrativa. Dessa forma nos envolve, sentimo-nos incorporados como escutas no processo desse “Eu” poderoso e envolvente que é o personagem-narrador10.

Os nove capítulos seguintes são dedicados à figura de Facundo, desde o nascimento até sua morte, assassinado a mando de Rosas, em Barranca Yaco. Fugindo da forma tradicional da biografia (proeza inusitada se lembrarmos, sobretudo, que Sarmiento escreve na primeira metade do século XIX), o narrador começa este esboço biográfico do caudilho e líder montonero11 narrando uma cena digna do melhor filme de faroeste12, na qual Facundo Quiroga se defronta com uma onça feroz. A ideia explicitada por Sarmiento é que as anedotas do personagem o revelam por inteiro. Essa é também uma teoria da composição que Borges desenvolveria depois. Toda a longa sequência do esboço da figura de Facundo é prova cabal da mão de mestre. A descrição física atravessada por digressões e conclusões deterministas e por comparações exóticas confirma o aspecto demoníaco da personalidade do feroz caudilho; a forma como o biógrafo continua fugindo do esquema tradicional de chave hegeliana leva-o a entremear os dados da vida do montonero com uma análise aguda da situação política de cada uma das províncias argentinas e de cada capital após a independência. Seu exercício é uma tentativa de compreensão do quadro geral que ali estava posto entre as províncias aliadas a Buenos Aires e as regiões em litígio, e dentro desse quadro (com direito a esquemas gráficos), ele irá acompanhar o desenvolvimento da “carreira” de batalhas e enfrentamentos de Facundo. A estratégia compositiva geral do livro repete-se aqui em cada caso particular, ou seja, o narrador leva seu leitor a sobrevoar pela geografia de cada localidade para ir adentrando em seus meandros e intrigas palacianas. De certa forma, sua tese, que concebe o campo e a cidade como compartimentos estanques, como dois polos antagônicos e em pugna, se desmancha pela própria mão de sua narrativa, que mostra as guerras intestinas que unitários e federalistas irão travar dentro e fora das cidades.

Os episódios mais macabros e cruéis das andanças de Facundo não serão poupados, mas pairará sempre sobre eles um tom de admiração diante de tamanha altivez e coragem. A cena de sua morte será descrita em minuciosos detalhes, enaltecendo-se essa coragem. Borges fará dela o seu poema “El general Quiroga va en coche al muere”13. Sarmiento também terminará seduzido pelo seu herói, “um homem superior […] de reputação misteriosa”, apesar do propósito central de demonstrar o seu caráter bárbaro e desgovernado.

Cabe destacar ainda nesta segunda parte a deliciosa e desvairada passagem em que Sarmiento se espraia sobre a importância das cores e do vestuário. Por mais descabido que possa parecer para o leitor de hoje, esses dois elementos passam a ser também mais uma arma com a qual Sarmiento arremete contra a barbárie e contra Rosas. “Sabeis o que é o tom colorado? Eu tampouco o sei; mas vou juntar algumas reminiscências”, diz ele. A cor vermelha, o colorado, símbolo dos rosistas, passará então a ser demonizada à custa de um fantástico elenco de exemplos oriundos dos mais diversos contextos em que o rubro se ligaria ao crime, aos selvagens, à barbárie, ao absolutismo europeu etc. Sua obsessão o leva até a improvável constatação de que nas bandeiras dos países europeus cultos jamais predomina o colorado, enquanto Argel, Tunis, Mongol, Turquia, Marrocos, Japão, Sião etc. fazem flamejar a cor do mal. Contra essa cor maligna, resplandece “o azul-celeste e o branco; o céu transparente de um dia sereno e a luz nítida do disco do sol: a paz e a justiça para todos” (p. 229). Já o vestuário, sua mobilidade, a moda, o uso do fraque, são privilégios de uma sociedade culta e civilizada, ao passo que “na Ásia, onde se vive sob governos como o de Rosas, desde Abraão o homem traja vestuário talar” (p. 232). Mais adiante, nos capítulos finais, denuncia a perseguição de Rosas ao fraque e “a todas as instituições que nos esforçamos por toda parte para copiar da Europa” (p. 396) e a substituição que o ditador impõe por pantalonas largas e soltas e todas as formas de trajes nacionais. A passagem da barbárie para a civilização é, de fato, cultural e comportamental na visão de Sarmiento, que chega até afirmar que “o elemento principal de ordem e moralização com que a República Argentina hoje conta é a imigração europeia” (p. 434).

Uma vez morto Facundo, resta um país unido em torno do ditador que ele concebe como o espelho de todas as características negativas do caudilho, esboçadas nos capítulos anteriores. O ataque torna-se mais direto nos últimos dois capítulos que são antecedidos por justificativas do narrador que intui que sua história deveria acabar onde acaba a vida de Facundo. Os dois capítulos finais precisam ser então justificados pelo narrador-personagem que, evidentemente, não consegue se deter sem antes arremeter contra quem na verdade havia precipitado a escrita do livro14. Ele explica então:”Como sua morte [a de Facundo] não põe fim à série de fatos que me propus coordenar, e para não deixá-la truncada e incompleta, preciso continuar um pouco mais adiante, no caminho que sigo […]” (p. 360), e antes do último capítulo, declara admitir que apesar de ter concluído seu ensaio sobre a vida do caudilho, precisa agora apreciar suas conseqüências e resultados “ora, favoráveis, ora adversos” (p. 398). Nessa última parte, portanto, além de desprestigiar o tirano, o narrador se lançará na proposta de um futuro programa de reestruturação nacional para quando o ditador for derrocado.

Este livro, que é muitos livros ao mesmo tempo, dá-nos a sensação de um mergulho profundo na mentalidade do século XIX que sentimos gravitar na raiz da nossa mentalidade em vários sentidos. Como afirma Foot Hardman nas palavras do posfácio, muitos dos processos aludidos por Sarmiento no seu Facundo têm se feito presentes na historia da América Latina contemporânea, ao longo das muitas décadas que nos separam das dele. Assim como encontramos também em escritores como Jorge Luis Borges, Ricardo Piglia, César Aira, Juan José Saer e Andrés Rivera (para citar apenas alguns) a reelaboração de seus personagens gaúchos, caudilhos, déspotas, intelectuais e escritores.

Para terminar estas notas, é preciso dizer que com a edição brasileira que ora temos em mãos estamos diante de um trabalho de tradução da mais alta qualidade que deve ser elogiado pela escolha do respeito à forma culta utilizada por Sarmiento neste livro, sem por isso ter se tornado esforço árduo para o leitor, muito pelo contrário. É interessante consignar a este respeito, que em carta dirigida por Sarmiento a Matías Calandrelli (autor de um dicionário etimológico da língua castelhana), em 1881, ele ratifica sua utilização de locuções antiquadas e castiças e invoca como razão principal o fato de ele ter sido criado, sem estudos regulares, em uma região afastada como era a província de San Juan, recebendo assim a língua dos conquistadores conservada sem alterações sensíveis. Mais uma contradição sarmientina, se pensarmos em seus abertos ataques às posturas conservadoras de Andrés Bello – travados no Chile por aqueles anos – com relação à grafia e à pronúncia da língua espanhola na América.

O critério do tradutor de conservar no original certas locuções platinas com o apoio de notas elucidativas é também muito feliz, já que permite ao leitor brasileiro adentrar de modo mais contundente o universo do pampa ali retratado. Também é necessário ressaltar que as notas que acompanham a leitura do texto refletem um esforço sério e exaustivo de pesquisa em fontes diversas e edições anotadas que resulta hoje indispensável para a completa compreensão do seu conteúdo histórico e contingente. A edição reproduz também um mapa de 1930 que permite acompanhar o traçado dos múltiplos caminhos percorridos pela trama através da geografia argentina. Só ficaria a sugestão de incluir numa próxima edição um subtítulo diferente para cada um dos quatro capítulos que levam aqui somente o nome de “Guerra Social”, já que cada um deles focaliza conflitos em lugares específicos: La Tablada, Oncativo, Chacón e Ciudadela, respectivamente.

Notas

1 Um “Eu” megalomaníaco e delirante que valeu a Sarmiento o apelido de “Dom Eu”.
2 Em 1840, Sarmiento tinha sido deportado para o Chile pelo então governador de San Juan e partidário de Rosas, Nazario Benavides.
3 PIGLIA fez do assunto matéria literária do seu primeiro romance, Respiração artificial (1980), no qual os personagens Renzi e Marconi discutem longamente sobre a citação apócrifa que abre Facundo.
4 Esta carta encontra-se no “Apêndice” da edição aqui resenhada.
5 PROUST, Marcel. Sobre a leitura [1905]. Trad. Carlos Vogt. Campinas, SP: Pontes, 1989. [Links] 6 LAS CASAS, Bartolomé de. Brevíssima relação da destruição das Indias Ocidentais [1552]. Trad. Heraldo Barbuy. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 1984.[Links] [7] Saldías, Adolfo. Historia de la confederación [1911]. Buenos Aires: Editora Universitaria, 1973, p. 193. Tradução livre. [Links] 8 Há edições do Facundo que de fato dividem o livro em três partes, como por exemplo, a edição espanhola organizada para a Editora Nacional de Madri, em 1975, por Luis Ortega Galindo.
9 PIGLIA o compara a Flaubert, no Prólogo à edição aqui resenhada (p. 38).
10 Ricardo Piglia explora de maneira engenhosa e fértil esse tema no Prólogo da edição aqui resenhada.
11 Montoneras eram unidades militares de extração rural, lideradas por caudilhos regionais que lutavam contra as milícias governamentais.
12 As ligações com o gênero norte-americano são evidentes na obra em mais de uma ocasião.
13 BORGES, Jorge Luis. Luna de enfrente [1925]. Em português em: Primeira poesia.Texto bilíngue. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras. 2007, pp. 112-113. [Links] 14 Rosas havia enviado uma comissão ao Chile, solicitando a extradição de Sarmiento para seu julgamento na Argentina. O presidente Montt denegou o pedido.

Laura Janina Hosiasson – Professora na área de Literatura Hispano-americana da Universidade de São Paulo.

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A invenção da cultura – WAGNER (NE-C)

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Trad. Marcela Coelho de Souza; Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2010. Resenha de: GOLDMAN, Marcio. O fim da antropologia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.89, Mar, 2011

Há três modos de abordar A invenção da cultura: enfatizar a originalidade quase absoluta do livro, seu caráter intempestivo; inventariar suas dívidas para com os autores a ele contemporâneos ou para com aqueles de um passado recente ou remoto; tentar, enfim, um equilíbrio judicioso entre a primeira e a segunda opções. Por diversas razões escolhi deliberadamente a primeira alternativa.

Deste ponto de vista, poderíamos observar inicialmente que a primeira edição de A invenção da cultura, em 1975, é quase simultânea a de dois outros livros de antropólogos norte-americanos que marcaram a antropologia contemporânea: A interpretação das culturas, de Clifford Geertz, e Cultura e razão prática, de Marshall Sahlins – publicados, respectivamente, em 1973 e 1976. O destino desses três livros, contudo, continua sendo muito diferente. Afinal, os dois últimos conheceram uma difusão e um sucesso que o primeiro mal começa a experimentar e que dificilmente terá em grau comparável. No Brasil, por exemplo, o livro de Geertz foi traduzido, ainda que parcialmente, em 1978, e o de Sahlins em 19791. E até hoje é raro encontrar um programa de curso de teoria antropológica que não os inclua na bibliografia.

A invenção da cultura, por outro lado, teve que esperar 35 anos para receber sua tradução, em ótima iniciativa da editora Cosac Naify e belo trabalho de tradução de Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. Com efeito, é quase inevitável especular sobre qual teria sido o destino da antropologia brasileira se o livro de Wagner tivesse sido traduzido ainda na década de 1970 e os outros dois não. Talvez não estivéssemos ensinando uma antropologia tão afastada do que efetivamente se faz na disciplina hoje em dia; talvez tivéssemos resistido melhor ao imperialismo das análises construcionistas ou desconstrucionistas que apelam para o eterno poder e as inevitáveis manipulações ocultas atrás de qualquer situação; talvez nada tivesse acontecido… De toda forma, o que não é fácil imaginar é a tradução dos livros de Geertz e Sahlins 35 anos depois de terem sido originalmente publicados.

A “mensagem” desses livros parece tão adaptada ao momento em que foram escritos que é difícil concebê-los em outro contexto qualquer. Afinal, nos dois casos se tratava, em breves palavras, de salvar o culturalismo daquilo que sempre foi o que poderíamos chamar seu melhor inimigo, a saber, o reducionismo naturalista. Ou seja, aquilo sem o que a antropologia cultural simplesmente não pode funcionar, na medida em que lhe faltaria esse seu “outro”, aquele que define, equivocadamente sem dúvida, o que a cultura elabora, interpreta, simboliza ou transcende – a natureza.

Observemos também, ainda que de passagem, que esse naturalismo se apresentava, tanto a Geertz como a Sahlins, sob uma dupla forma. De um lado, as antropologias ditas ecológicas ou materialistas, que ambos simplesmente recusam; de outro, uma versão muito mais complicada, sofisticada e, talvez, inesperada, o estruturalismo levistraussiano. Afinal, apenas dois anos antes da publicação do livro de Geertz, Lévi-Strauss havia concluído sua mitológica tetralogia – em que a demonstração da incrível sofisticação de que era capaz o pensamento indígena parecia anular qualquer possibilidade de redução – com um livro significativamente intitulado O homem nu, que conclui com a peremptória afirmativa de que, no final das contas, tudo não passa do produto da atividade do cérebro humano, ele mesmo produto de um complexo processo de evolução natural: higher naturalism2, como definiu Sahlins; hypermodern intellectualism, nas palavras de Geertz3. Mas, se Geertz parece simplesmente recusar a alternativa levistraussiana buscando refúgio numa hermenêutica que invariavelmente funciona como saída sofisticada para os que não gostam da noção de estrutura, a reação de Sahlins é diferente. Oriundo, ele próprio, de uma tradição antropológica materialista e neoevolucionista, um estágio em Paris o fez imaginar a possibilidade de, por assim dizer, embutir o estruturalismo no culturalismo, fazendo das “estruturas da mente” os “instrumentos da cultura”, não sua “condição”4, e da própria estrutura apenas uma parte da cultura e da história.

O livro de Wagner segue um caminho bem diferente, seja em relação ao interpretativismo geertziano, seja em face do culturalismo estruturalizado de Sahlins. Tão diferente que podemos ter hoje a sensação de que não são apenas um ou dois anos para mais ou para menos que separam A invenção da cultura desses dois outros livros, mas algo como meio século! De fato, se A interpretação das culturas e Cultura e razão prática soam hoje como anúncio do fim (no duplo sentido de acabamento e de término) de uma antropologia fin de siècle (século XX), A Invenção da cultura parece anunciar o início de outra coisa, que poderíamos imaginar como uma das possibilidades abertas para a antropologia do século XXI.

A esse respeito, talvez valha a pena observar que os leitmotifs centrais das obras de Geertz e Sahlins – a interpretação e a simbolização, respectivamente – não deixam de ser evocados por Wagner, ainda que para preparar outras reflexões. Assim, desde o início do livro, a “interpretação” aparece na forma da “moderna cultura interpretativa americana” (p. 10), tema que será desenvolvido no item “A magia da propaganda” (pp. 107-19) do capítulo 3 de modo evidentemente bem distinto daquele de Geertz. Pois aquilo que este trata como um dispositivo metodológico que apenas prolonga e torna mais sofisticado um procedimento inerente a qualquer cultura humana (a “interpretação”, justamente) será analisado por Wagner como uma singularidade de uma cultura particular, a “norte-americana”. Em termos mais precisos, pode bem ser que a interpretação seja um modo universal de lidar com o mundo e com a sociedade, mas o problema é que essa generalidade não nos diz nada sobre seu funcionamento em situações concretas e específicas. Isso significa, claro, que ela pode perfeitamente operar de acordo com a mecânica básica dos dispositivos chamados etnocêntricos: implementar como universal aquilo que é uma característica particular da cultura do próprio antropólogo. Neste caso, como insiste Wagner, tentando tornar cada vez mais transparente o caráter convencional da cultura em que vivemos. Ou, o que dá no mesmo, fomentando o desejo de nos tornarmos autoconscientes daquilo que, não obstante, sustentamos que nos determina. Na antropologia, sabemos bem onde tudo isso foi parar, na nossa versão particular do “pós-modernismo”, e não é casual que tenham sido alunos ou discípulos infiéis de Geertz os que lançaram a moda entre nós5.

Antes de nos determos um pouco no chamado pós-modernismo antropológico, contudo, observemos que também a oposição entre “razão prática” e “razão cultural”, que estrutura o livro de Sahlins, é de algum modo retomada em A invenção da cultura. No entanto, ao contrário do estilo épico de Sahlins, que opõe as duas razões quase como o diabo ao bom deus, Wagner sublinha o fato de que as duas variedades de antropologia derivadas dessa oposição compartilham um mesmo solo ou, ao menos, uma necessidade comum. Pois se as antropologias naturalistas ou naturalizantes (analisadas no item “Controlando a cultura”, pp. 214-20, cap. 6) atribuem uma ordem tão determinada e tão determinante à natureza, o efeito (a “contra-invenção”) dessa atribuição é estabelecer um rigoroso controle sobre a cultura, eliminando tudo o que esta pode ter de criativo e indeterminado. Por outro lado (como exposto no item “Controlando a natureza”, pp. 221-29, cap. 6), mas de modo simétrico, as antropologias culturalistas (e nada impede que as duas variedades possam coexistir em doses variáveis) atribuirão todo ou quase todo poder de determinação à cultura, de tal forma que o controle incidirá agora do lado da natureza, cujo poder e indeterminação poderão aparecer doravante como meros limites da própria cultura.

Nem interpretação, nem simbolização, o conceito central do livro de Wagner, claro, é o de invenção. Mas neste ponto é preciso ter cautela. Como observa Martin Holbraad, na ótima “orelha” escrita para a edição brasileira, o termo “invenção” tem o mau hábito de despertar uma série de associações de ideias, todas igualmente inadequadas para a compreensão correta do sentido do conceito wagneriano. Grosso modo, podemos dizer que, ao ouvir a palavra “invenção”, somos quase invariável e inevitavelmente conduzidos a noções como a de “artifício”, no mau sentido da palavra, ou seja, como aquilo que é “artificial” e se opõe ao “real”. Na definição do dicionário Houaiss, “invenção” é “coisa imaginada que se dá como verdadeira; invencionice, fantasia”; “coisa imaginada de modo astucioso, frequentemente com objetivos escusos”; ou “o que não pertence ao mundo real; imaginação, fábula, ficção, engano”. Claro que também é “imaginação produtiva ou criadora, capacidade criativa; inventividade, inventiva”; e “faculdade de criar, de conceber algo novo ou de pôr em prática, de executar uma ideia, uma concepção; criação”.

Por razões que próprio Wagner esclarece, os antropólogos parecem preferir as definições negativas às positivas. Assim, quando se fala na “invenção das tradições”, imagina-se imediatamente que estas são “falsas”, no sentido de não corresponderem à história que contam de si mesmas, e que certamente foram engendradas por alguém com objetivos pouco confessáveis. Talvez seja por isso que no curto post scriptum que escreveu para a edição brasileira, Wagner observe, de forma curiosa, que “em certo sentido, a invenção não é absolutamente um processo inventivo, mas um processo de obviação” (p. 240). Pois se em 1975 ou 1981 não era possível imaginar a direção que a compreensão da noção de invenção tomaria, em 2010 sabemos exatamente como as coisas se passaram. E isso ainda que A invenção da cultura chame a atenção para o fato de que as “tradições são tão dependentes de contínua reinvenção quanto as idiossincrasias, detalhes e cacoetes” (p. 94). O que significa que “invenção” e “inovação” não são a mesma coisa (p. 77) que toda tradição é inventada e que, em uma expressão como “invenção das tradições”, o primeiro termo (processo de invenção) deveria ser muito mais importante do que o segundo (o que acabou sendo inventado).

Adiante veremos como liberar a noção de invenção de seu estatuto crítico. Mas, antes, se vale a pena distinguir com clareza o pensamento de Roy Wagner daquele dos mais importantes antropólogos norte-americanos mais ou menos a ele contemporâneos6, isso também é verdade em relação àquilo que se seguiu à publicação de A invenção da cultura na antropologia norte-americana. Como se sabe, esta tem a fama de ter passado por uma profunda revolução a partir de meados da década de 1980, quando a publicação de Writing culture anunciou o advento do pós-modernismo na antropologia. Salvo engano, A invenção da cultura é citado apenas uma vez nesse livro, logo na “Introdução”, de James Clifford7. E o é justamente, e apenas, para opor a noção de “invenção” à de “representação” – ou seja, para ilustrar o ponto central de Writing culture, o de que as etnografias que os antropólogos escrevem são obras de ficção, não representações da realidade. É o sentido crítico da noção de invenção que opera, só que agora dotado de uma aparente positividade que não possuía.

De todo modo, não se trata aqui de tentar ressuscitar os mortos, nem o pós-modernismo antropológico, nem as críticas tradicionais que a ele foram dirigidas. Um quarto de século depois, creio que o melhor que se pode dizer dos chamados pós-modernos é que foram capazes de levantar algumas questões realmente importantes, ainda que não tenham oferecido respostas interessantes para nenhuma delas! Isso provavelmente porque seus objetivos nunca foram os de responder ao que quer que fosse, mas, como se dizia, de adotar uma postura “irônica”, quer dizer, a daqueles que ao menos sabem que nada sabem ou podem saber com certeza. Postura responsável, talvez, pela incapacidade última de transformar a “crítica da representação” e o anúncio do caráter inevitavelmente ficcional da etnografia em um novo começo para a antropologia. Afinal, como escreveu o autor nigeriano Chinua Achebe, embora toda “ficção seja indubitavelmente fictícia, ela também pode ser verdadeira ou falsa, não com a verdade ou a falsidade de um noticiário, mas em relação a sua imparcialidade, intenção, integridade”8.

Esse novo começo exigia reunir de forma mais consistente a crítica da representação como forma de conhecimento e forma de poder. Ou seja, exigia renunciar à representação não porque é falsa ou ficcional, nem mesmo porque é sempre uma relação de poder que concede a alguém o direito de representar outrem, mas sim porque a representação faz parte do conjunto de prolongamentos das relações de poder que o Ocidente capitalista estabeleceu dentro do texto antropológico com as demais sociedades do planeta9. É justamente o reconhecimento do caráter imanente das relações estabelecidas pelo poder com o texto antropológico que teria podido abrir linhas de fuga para o antropólogo escritor, uma vez que ele estaria às voltas com as relações de poder no espaço parcialmente sob seu controle, o próprio texto antropológico. Nesse sentido, teria sido possível levantar uma questão ao mesmo tempo epistemológica, ética e política: como proceder de modo a não reproduzir, no plano da produção de conhecimento antropológico, as relações de dominação a que os grupos com quem os antropólogos trabalham se acham submetidos?

Para isso, não era necessário ter ido muito longe. Bastaria ter conectado a crítica da antropologia enquanto representação com aquela, pouco mais antiga, que criticava o saber antropológico expondo suas relações de dependência para com o empreendimento colonialista. Não no sentido megalomaníaco que faria da antropologia um saber fundamental para o colonialismo, mas, como sustentou Talal Asad10, no sentido em que o colonialismo é importante demais para a antropologia, obrigando-a, consequentemente, a buscar romper essa dependência política, ética e epistemológica:

A antropologia histórica espelhava a ideologia dos impérios coloniais e supraétnicos tardios da GrãBretanha, da França, de países da Europa Central e outros (esses impérios quase que literalmente “fizeram” a evolução e a difusão Culturais como política pública). A antropologia sistêmica refletia a urgência racional da mobilização de guerra e o Estadonação econômico (p. 231, grifos meus).

Mas se a atenção a esta relação entre escolas e conceitos antropológicos com os empreendimentos colonialistas e imperialistas (estabelecida aqui de uma forma que poderíamos qualificar de imanente ou intrínseca) demonstra, creio, o interesse de Wagner na questão levantada por Asad, o trecho que se segue mostra que a linha de fuga por ele traçada segue uma trajetória bem diferente daquela esboçada na coletânea organizada pelo segundo11:

A curiosa “evolução” através da qual cada um dos sucessivos episódios paradigmáticos conduziu a si mesmo no sentido da obviação e contradição de seus pressupostos originais fornece a evidência mais convincente da natureza da antropologia como disciplina acadêmica. Tratase de uma ação de contenção contra a relatividade, uma espécie de fixativo teórico que erige insight introspectivo em teoria culturalmente corroborativa (pp. 231232).

Wagner aposta, pois, na radicalização do poder subversivo da prática etnográfica da antropologia – e não na análise das próprias relações entre a antropologia e o colonialismo ou o imperialismo – como meio capaz de romper com a dependência da primeira em face dos segundos.

Nesse sentido, o problema central do pós-modernismo antropológico, como Wagner mostrou em uma resenha pouco conhecida que escreveu sobre Writing culture12, é a pretensão de “fazer com a etnografia o que uma antropologia mais segura de si e menos cínica (a ‘Grande Teoria’, como se diz) fez com a teoria – desenvolver poderosos e decisivos cânones de compreensão”. Ou seja, introjetar na própria etnografia os mecanismos de controle em geral empregados pela teoria. Assim, se o antropólogo tradicional opera como uma espécie de crítico do fato – no sentido do crítico de arte que tenta mostrar que, por maior que seja a novidade aparente do que está sendo apresentado, “tudo já foi dito antes” (p. 235) e na verdade não está acontecendo nada -, o antropólogo pós-moderno pode ser entendido como o crítico de um “teatro do fato”, utilizado a “autoridade” (“a peça dentro da peça”, como a define Wagner) como meio de controle adicional. Nem as ideias, nem os fatos devem ter o poder de espantar ninguém!

Para traçar essa linha de fuga, Wagner foi obrigado, em primeiro lugar, a redefinir, ou a redirecionar, tanto a noção de invenção como a de cultura. É por isso que cada palavra do título deste livro – incluindo o artigo e a preposição – são fundamentais e devem ser bem compreendidas. Para começar, o que significa “invenção” em A invenção da cultura?

No início de O que é a filosofia, Deleuze e Guattari13, após definirem provisoriamente essa atividade como “a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”, e de argumentarem que os conceitos, na verdade, “não são necessariamente formas, achados ou produtos”, concluem que “a filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos”. Eu arriscaria dizer que no livro de Wagner a noção de invenção deve ser entendida rigorosamente no sentido estabelecido por Deleuze e Guattari para a noção de criação14.

Isso significa que a “invenção” de Wagner não consiste nem na imposição de uma forma ativa externa a uma matéria inerte, nem da descoberta de uma pura novidade, nem na fabricação de um produto final a partir de uma matéria-prima qualquer. Isso a afasta dos modelos mais recorrentes utilizados no Ocidente para pensar o ato de criação: o modelo hilemórfico grego15, o judaico-cristão da criação ex nihilo, o modelo capitalista de produção e da propriedade16. A invenção wagneriana é, antes, da ordem da metamorfose contínua, como acontece na imensa maioria das cosmogonias estudadas pelos antropólogos, em que as forças, o mundo e os seres são sempre criados e recriados a partir de algo preexistente. Ponto que acarreta uma série de consequências.

A primeira é o fato de que esse conceito de invenção-criação tem mais a ver com arte do que com ciência e técnicas. Não é por acaso que a pintura de Bruegel, Rembrandt, Rubens e Vermeer, a poesia de Morgenstern e Rilke, a música de Beethoven, Haydn, Mozart e o jazz aparecem ao longo do livro como meios de explicação da atividade do antropólogo. Pois esta atividade é definida justamente em termos de sua criatividade, termo que gera o título do segundo capítulo (“A cultura como criatividade”) e que aparece, direta ou correlatamente, mais de cem vezes ao longo do texto. A particularidade da antropologia é que a criatividade do antropólogo depende de outra (e de outrem): aquela das pessoas com quem escolheu conviver durante um período de sua vida. Aqui tocamos num ponto fundamental, pois o reconhecimento da criatividade daqueles que “estudam” é, para Wagner, condição de possibilidade da prática antropológica. Mais do que isso, o antropólogo deve estar preparado e disposto a assumir duas premissas: reconhecer naqueles que estuda o mesmo nível de criatividade que crê possuir; não assimilar a forma, ou o “estilo”, de criatividade que encontra no campo com aquele com o qual está acostumado e que ele próprio pratica.

Wagner é, assim, o primeiro a propor um verdadeiro construtivismo para a antropologia. Ou, pelo menos, a elaborar o acabamento daquele há muito estabelecido por Malinowski ao anunciar o trabalho de campo como o único procedimento adequado para a antropologia então “moderna”. Foi ainda em 1935 que ele sustentou que esse trabalho de campo seria, sobretudo, uma atividade construtiva ou criativa, uma vez que os fatos etnográficos “não existem”, sendo preciso, portanto, um “método para a descoberta de fatos invisíveis por meio da inferência construtiva”17 – posição que, infelizmente, não parece ter tido muito eco ao longo da história da disciplina.

A esse respeito, mais uma vez, é preciso atenção. O construtivismo wagneriano (e já o malinowskiano) tem pouco ou nada a ver com a ladainha pseudo politizadora do famigerado construcionismo social. Este, como se sabe, dedica-se a afirmar o caráter “socialmente construído” do que quer que seja (das relações de parentesco aos genes e planetas), mas concede um estranho direito de exceção a seus próprios procedimentos, bem como àquilo a que atribui o papel de grande arquiteto, a saber, as relações sociais e políticas que apenas o analista tem a miraculosa capacidade de enxergar. Assim, não pode haver dúvidas de que os agentes sociais passam todo seu tempo construindo, mas, infelizmente, não são capazes de perceber que estão construindo, “naturalizando” e “essencializando”, como se diz, tudo o que pensam encontrar pelo caminho, mas que, na verdade, foram eles mesmos que fizeram. Cabe ao analista, então, “desconstruir” essas ilusões, o que faz com que, estranhamente, construcionismo social e desconstrucionismo queiram dizer exatamente a mesma coisa. Durkheim ao menos sabia o que é essa “sociedade” que tudo cria mas que é, ela própria, incriada: Deus – e nada poderia ser mais diferente da ideia de uma invenção criativa da cultura. É por isso, aliás, que “trabalho de campo é trabalho no campo” (p. 49).

No entanto, há os que pensam que a posição de Wagner coincide com esse fetichismo generalizado do qual apenas o antropólogo está isento, essa espécie de “criacionismo de pobre”, como o definiu Latour18. O problema é que quando se supõe que a cultura a ser estudada pelo antropólogo é “socialmente construída”, não apenas “a invenção da cultura” se torna uma “invencionice” como, por vezes, os próprios nativos passam por ter sido “socialmente construídos” por um antropólogo interesseiro19. Para isso, claro, é preciso imaginar um “nativo-em-si” (por exemplo, os Daribi das Terras Altas da Papua Nova Guiné, que Wagner estudou, ou os Bororo do Brasil Central) absolutamente impenetrável para a nossa compreensão a qual, não obstante, se torna surpreendentemente poderosa e clarividente quando se trata de determinar os verdadeiros motivos e causas sociais e políticas que levaram o antropólogo a “construir” os nativos desta ou daquela forma.

Wagner, no entanto, jamais afirma que o antropólogo inventa a cultura, porque não há nada para ver ou porque é incapaz de compreender o que pensa que vê. O problema é outro, é que há coisas demais para serem vistas, ideias demais para serem compreendidas e muito pouco tempo para fazê-lo. O antropólogo faz o que pode, inventando a cultura para tentar conferir um mínimo de ordem e inteligibilidade lá onde a plenitude da vida as dispensa completamente. Nesse sentido, Wagner é provavelmente o primeiro antropólogo a fazer da vida (e não da evolução, história, função, estrutura, cognição…) o referente último do trabalho antropológico. Além de fundar o construtivismo em antropologia, ele também funda uma espécie de vitalismo antropológico20.

O construtivismo, no entanto, só pode funcionar se for completo e generalizado, e a obrigação do antropólogo é que sua criação faça aparecer a criatividade da qual ela mesma depende (a sua própria) e, principalmente, a das pessoas com quem trabalha. Ele se assemelha, assim, a um desses demiurgos das mitologias que estuda, aqueles que criam um mundo lá onde outro mundo já existia e sempre existiu. Nesse processo, há duas tentações às quais deve resistir: imaginar que está apenas “representando” o que existe em si e por si mesmo; pretender estar criando a partir do nada.

Em ambos os casos a criatividade daqueles que estudamos é recusada. No primeiro – que corresponde, grosso modo, às antropologias que Wagner designa como “diacrônica” ou “histórica” e “sincrônicas” ou “sistêmicas” (p. 230) -, essa recusa se disfarça sob uma aparente afirmação. Afinal, se os antropólogos nada fazem além de representar as outras culturas, apenas as pessoas que aí vivem podem ser as responsáveis por elas. O problema é que essas antropologias só afirmam tal criatividade para negá-la, ao atribuírem papel determinante a forças que as pessoas não conhecem e não controlam: evolução, ordem, função, sentido, inconsciente ou o que quer que seja. No segundo caso que corresponde mais ou menos aos pós-modernismos, construcionismos e desconstrucionismos dos últimos anos -, estaríamos às voltas com uma recusa ainda mais absoluta: a criatividade nativa é vista como uma espécie de quimera à qual simplesmente não podemos ter acesso. Inconscientes num caso, incognoscíveis no outro, o papel dos nativos é servir de modelo para um academicismo21 da representação ou de pretexto para um pessimismo da ficção. Ambos nos livram de todos os riscos, nos deixam intactos e incólumes, mas, ao mesmo tempo, incapazes de sermos afetados, modificados, ou seja, impossibilitados de pensar:

O passo crucial que é simultaneamente ético e teórico consiste em permanecer fiel às implicações de nossa pressuposição da cultura. Se nossa cultura é criativa, então as “culturas” que estudamos, assim como outros casos desse fenômeno, também têm de sêlo. Pois toda vez que fazemos com que outros se tornem parte de uma “realidade” que inventamos sozinhos, negandolhes sua criatividade ao usurpar seu direito de criar, usamos essas pessoas e seu modo de vida e as tornamos subservientes a nós (p. 46).

Se a criatividade é um fenômenos geral, ainda que se manifeste sempre sob determinados estilos, o antropólogo lida com um tipo particular de invenção, a “da cultura”. Em 1975, não seria difícil dizer da cultura o que Descartes dizia do bom senso: que é a coisa mais bem dividida do mundo22. A invenção, por outro lado, parecia privilégio de poucos (nós mesmos, na verdade). Trinta e cinco anos depois, as coisas parecem ter se modificado. A invenção, no mau sentido da palavra, claro, parece estar em toda parte, e a cultura (ou a tradição) só existe porque é uma invenção de nativos e/ou de antropólogos defendendo seus próprios interesses.

De certo modo, Wagner já havia invertido o quadro. É a invenção, no bom sentido de criatividade, que constitui o plano de consistência de todos os humanos (e talvez não só deles); a invenção da cultura, por outro lado, corresponde a um episódio histórico (cultural) muito específico, ocorrido em certo momento da história do mundo ocidental. É nesse sentido que poderíamos dizer que Wagner elabora uma noção de cultura propriamente cultural, ao estabelecer que dela faz parte intrínseca e constitutiva a explicitação de que a noção de cultura é ela mesma um artefato cultural, ou seja, produto de um ponto de vista cultural específico – o nosso.

O ponto fundamental, contudo, é que a origem “ocidental” da noção não é um atestado de impotência ou malignidade, mas apenas o signo de um trabalho a ser continuamente realizado. Assim, que nossa noção de cultura derive da de “cultivo” e que, mais tarde, tenha recebido seu sentido “sala de ópera” (pp. 53-4), só se torna um problema quando interrompemos o processo de derivação ou “metaforização” (p. 54), literalizando um sentido que é sempre local, transitório e instável. Cada um pensa e fala com as palavras e as categorias de que dispõe, e a grande questão é como proceder de modo que elas sejam capazes de dizer mais, ou outra coisa, do que o de costume, mantendo, não obstante, sua inteligibilidade23.

Aqui devemos retroceder um pouco. O brevíssimo quadro da moderna antropologia culturalista norte-americana esboçado no início desta resenha deixou intencionalmente de fora aquele que é certamente a mais importante “influência” sobre Wagner, seu orientador no doutorado David Schneider, a quem A invenção da cultura é dedicado. Ao lado de Geertz e Sahlins, Schneider completa a trinca de autores que de algum modo acabam (no duplo sentido da palavra) o culturalismo antropológico. Ora, o ponto fundamental do principal trabalho de Schneider24– e nisso reside, creio, sua originalidade em relação a todos os demais culturalistas – consiste em sustentar que ainda que seja inevitável investigar outras culturas a partir de categorias da nossa (o parentesco, no caso), isso não pode nos fazer imaginar que nossas categorias sejam universais. Assim, e ao contrário do que muitos imaginam, não creio que o livro de Schneider simplesmente condene o estudo antropológico do parentesco por ser este, afinal, uma “categoria ocidental” (qual não seria?). Trata-se, antes, de utilizar o parentesco de um modo que Wagner designará por “analógico” (ver, por exemplo, pp. 41-45). É nesse sentido que A invenção da cultura pode ser lido como uma extensão da proposta de Schneider: por que nos determos no parentesco uma vez que a própria noção de cultura também é exclusivamente “nossa”?

Mais uma vez, isso não significa condenar a antropologia por ser um empreendimento ocidental. Ela certamente o é, mas a questão é o que se pode fazer a partir dessa constatação. Assim, vimos que a noção de cultura como cultivo foi analogicamente estendida à de cultura “sala de ópera”, o que permite imaginar que a noção antropológica de cultura consiste numa nova extensão analógica:

O uso antropológico de “cultura” constitui uma metaforização ulterior, se não uma democratização, dessa acepção essencialmente elitista e aristocrática. Ele equivale a uma extensão abstrata da noção de domesticação e refinamento humanos do indivíduo para o coletivo, de modo que podemos falar de cultura como controle, refinamento e aperfeiçoamento gerais do homem por ele mesmo, em lugar da conspicuidade de um só homem nesse aspecto (p. 54).

Um dos argumentos centrais subjacentes em A invenção da cultura é que tanto as mudanças históricas (como as que os críticos da antropologia colonial enfatizavam) como as teóricas (de que tanto gostavam os pós-modernos) exigem uma nova extensão do conceito de cultura, extensão que seja capaz de conectá-lo com o de invenção-criação, reconhecendo assim nas “culturas” uma criatividade cuja universalidade, no entanto, não possa apagar as singularidades dos estilos locais.

Esse mecanismo de extensão do significado é o que Wagner denomina metáfora, alegoria ou, mais usualmente, analogia, e corresponde, também, à “diferenciação”. O procedimento analógico deve obedecer a três princípios fundamentais. Primeiro, só pode operar num campo de diferenças, o que significa que, evidentemente, só precisamos de analogias quando nos defrontamos com situações à primeira vista irredutíveis às que nos são habituais – ou seja, analogia não é sinônimo de semelhança. Em segundo lugar, nenhum dos dois termos colocados em relação pela analogia deve estar situado em um plano superior ao outro, como se o primeiro fosse capaz de revelar a verdade oculta do segundo – analogia não significa explicação. Por fim, os dois termos devem ser afetados pelo processo, de tal modo que o conceito ocidental de cultura, por exemplo, tem que ser ao menos ligeiramente subvertido quando serve de analogia para a vida nativa – o que significa que a analogia é da ordem da relação: “a ideia de ‘relação’ é importante aqui pois é mais apropriada à conciliação de duas entidades ou pontos de vista equivalentes do que noções como ‘análise’ ou ‘exame’, com suas pretensões de objetividade absoluta” (p. 29).

É nesse sentido que a cultura só pode ser inventada em situações de “choque cultural” (p. 34), choque que, paradoxalmente, preexiste à própria cultura; e é por isso, também, que “todo ser humano é um ‘antropólogo’, um inventor de cultura” (p. 76) em situações de ininteligibilidade primeira. Isso significa, ao mesmo tempo – ponto importante a fim de evitar a tradicional húbris antropológica -, que todo antropólogo é apenas um ser humano, operando em condições mais ou menos especiais. Ao contrário da nossa tradicional pretensão, o máximo a que o podemos almejar é viver em dois (ou mais) mundos ou modos de vida diferentes, mas não entre as culturas, como se fôssemos capazes de transcendê-las:

Assim é que gradualmente, no curso do trabalho de campo, ele próprio se torna o elo entre culturas por força de sua vivência em ambas; e é esse “conhecimento” e essa competência que ele mobiliza ao descrever e explicar a cultura estudada. “Cultura”, nesse sentido, traça um sinal de igualdade invisível entre o conhecedor (que vem a conhecer a si próprio) e o conhecido (que constitui uma comunidade de conhecedores) (p. 30).

É por isso, enfim, que o estatuto da noção de cultura ao longo de

A invenção da cultura é muito complexo, uma vez que Wagner parece defini-lo de diferentes modos ou, para ser mais preciso, encará-lo de diferentes ângulos. Ele aparece ora em sentido forte, ora em sentido fraco, o que não significa, de modo algum, que o primeiro seja melhor que o segundo. A “cultura” começa sendo definida como o que todo mundo tem; depois, como o que só nós temos e que os outros só têm porque nós a colocamos lá; mais tarde como aquilo que ninguém tem; e, por fim, como aquilo que todo mundo tem porque a cria em situações relacionais específicas. Nos termos do próprio Wagner, a cultura começa como dada e passa para a ordem do feito – primeiro como falsa invenção e depois, enfim, como invenção-criação.

Passemos, então, ao “da”, que separa “invenção” e “cultura”. Nossos hábitos acadêmicos são tão arraigados que podem nos fazer imaginar que esse partícula poderia significar apenas que é a cultura que é inventada. Se isso fosse verdade, contudo, todo o livro perderia o sentido, pois seu ponto central é justamente mostrar que a invenção da cultura é inseparável daquilo que a cultura inventa. A cultura “inventada” corresponde, basicamente, ao que Wagner denomina “convenção”; a cultura “inventante” ao que ele chama de “diferenciação” – talvez os conceitos centrais do livro.

Convenção e diferenciação constituem, em primeiro lugar, os dois mecanismos básicos da semiótica particular adotada por Wagner. Nesse sentido, ponto crucial, não constituem dois “tipos” de coisas, mas as duas faces da mesma realidade (ver p. 88). Simbolizar é sempre utilizar de forma “diferenciada” símbolos que fazem parte de uma “convenção”, e é apenas o peso respectivo de cada procedimento em cada ato simbólico que varia. É por isso que “a distinção [é] mais complicada do que dicotomias simplistas do tipo ‘progressista-conservador’, apropriadamente parodiadas por Marshall Sahlins na expressão ‘the West and the Rest’” (p. 16).

Por outro lado, quando nós confrontamos nossa própria cultura ou, para ser mais preciso, a “moderna cultura interpretativa norte-americana”, com os Daribi – ou com qualquer conjunto que Wagner designa alternadamente com combinações dos substantivos classes, grupos, povos, sociedades, tradições, e dos adjetivos camponeses, trabalhadoras, étnicas, não racionalistas, religiosos, tribais -,nós temos a sensação que o investimento no convencional e no diferenciante muda de lugar. Assim, tendemos a imaginar que nossas regras são puramente convencionais, aquilo que fazemos e, consequentemente, o domínio que está sob nossa responsabilidade (p. 19) e onde investiremos nossa criatividade. Mas os Daribi e muitos outros parecem imaginar o contrário, a saber, que este reino, para nós convencional e feito, é da ordem do dado. Até aí, convenhamos, não há muita novidade: a imagem de primitivos vivendo sob o império de uma tradição que consideram transcendente é muito antiga. O que faz de Roy Wagner o mais original dos antropólogos desde Lévi-Strauss é ter colocado a questão que faltava: onde, então, esses “primitivos” investem sua criatividade? Num enorme esforço para se singularizar diante de uma convenção dada, é a resposta.

Isso traz enormes consequências. Enquanto o Ocidente foi construindo, ao longo dos séculos, a hipótese (que toma como dado) de uma natureza “lá fora” e, no entanto, controlável (p. 225), os Daribi, os Bororo e outros parecem preferir o “‘mundo como hipótese’, que nunca se submete às exigências rigorosas da ‘prova’ ou legitimação final, um mundo não científico” (p. 171). Mas, de novo, não há necessidade de querer enxergar aqui mais um grande divisor:

O homem é tantas coisas que se fica tentado a apresentálo em trajes particularmente bizarros, só para mostrar o que ele é capaz de fazer […]. E no entanto tudo o que ele é ele também não é, pois sua mais constante natureza não é a de ser, mas a de devir (pp. 2123).

Tudo isso pode parecer meio estranho, mas é, na verdade, bem simples. A “improvisação”, define o Dictionnaire encyclopédique de la musique25, é a “execução musical criada na medida em que é tocada”, ou “a composição ou performance livre inesperada de uma passagem musical, em geral de acordo com certas normas estilísticas mas livre das características prescritivas de um texto musical específico”, como prefere a Britannica. Se nós, “de forma consciente e intencional, ‘fazemos’ a distinção entre o que é inato e o que é artificial ao articular os controles de uma Cultura coletiva, convencional”, “o que dizer daqueles povos que convencionalmente ‘fazem’ o particular e o incidental, cujas vidas parecem ser uma espécie de improvisação contínua?” (pp. 142-3), e onde os controles

[…] não são Cultura; não são pensados para serem “executados” ou seguidos como um “código”, mas para serem usados como a base da improvisação inventiva […]. Os controles são temas para interpretação e variação um pouco ao modo do jazz, que vive da constante improvisação de seu tema (pp. 1445).

A aproximação com a música permite levantar, ainda, três pontos complementares. Primeiro, nem tudo é permitido, e as improvisações têm que ser levadas a sério pelos outros, ou seja, não podem perder suas relações com a convenção. Pois elas também podem se tornar, como exclamou o grande pianista de jazz Thelonius Monk ao interromper uma sessão de improvisação, wrong mistakes (ver p. 139, para os “erros necessários” para a invenção da personalidade). Segundo, o fato de que tanto a noção de estilo como a de interpretação devem ser entendidas, em Wagner, mais no sentido musical do que culturalista ou hermenêutico dos termos. Um bom músico é capaz de tocar em mais de um estilo e de “interpretar” uma obra de diferentes maneiras. A “oposição” entre culturas convencionais e diferenciantes, ou entre os norte-americanos e os daribi, serve apenas para estabilizar provisoriamente a tensão dialética existente em todo processo de simbolização, e só deve ser sustentada enquanto rende alguma coisa. Mas ela também pode ser estabilizada no interior de uma cultura, de um indivíduo ou de um ato simbólico singular se isso for interessante26.

Por fim, é curioso que, em inglês, improvisation também se diga extemporization, que, em português, nos leva a “extemporâneo” e “intempestivo”, quer dizer, a Nietzsche. Não é à toa que as últimas palavras de A invenção a cultura– “demasiado humana” – sejam deste autor, citado apenas mais uma vez no livro (pp. 141). Há alguma coisa no pensamento de Nietzsche sobre a cultura como máquina de repressão da vida, e sobre a criatividade como única forma de escapar disso, que ecoa no livro de Wagner. Claro que este, antropólogo, adverte para o fato de que é a antropologia que pode funcionar como máquina de repressão na medida em que converte a vida em cultura. Se essa conversão é inevitável – uma vez que o antropólogo precisa dela para tornar a vida que escolheu viver entre outras pessoas vivível, e, depois, inteligível -, cabe a ele inventar uma noção de cultura que combata ativamente sua pulsão repressora. Questão que não pode ser resolvida de uma vez por todas e que, por isso, nos obriga a estarmos sempre às voltas com ela. Nesse sentido, o livro poderia se chamar “Diferenciação da convencionalização” – ou vice-versa!

Para terminar com o título, resta o pequeno artigo definido “a” – mas mesmo ele é fundamental. Na sua ausência, o título poderia sugerir uma generalidade do processo de invenção que Wagner pretende a todo custo evitar. O “a” responde justamente pelo caráter abstrato do conceito de invenção da cultura, mas abstrato no sentido preciso de que apenas assinala uma condição que pode ser preenchida de diferentes maneiras, uma vez que cada invenção é sempre efetuada de acordo com um estilo particular:

E porque a percepção e a compreensão dos outros só podem proceder mediante uma espécie de analogia, conhecendoos por meio de uma extensão do familiar, cada estilo de criatividade é também um estilo de entendimento (p. 61).

É nessa chave que deve ser entendido o capital trecho acerca do que Wagner denomina “antropologia reversa” (pp. 67-72), que ele ilustra com o exemplo do culto da carga melanésio. Trata-se, de um lado, de imaginar simetricamente a literalização das “metáforas da civilização industrial moderna do ponto de vista das sociedades tribais” (p. 69); e, de outro, de entender esse “gênero pragmático de antropologia” (p. 71) – uma vez que ele evidentemente não assumirá a forma de uma disciplina acadêmica, constituindo, antes, um análogo desta – no sentido em que se fala de “engenharia reversa”. Ou seja, da desmontagem de uma caixa-preta (no caso, a própria antropologia que praticamos) não apenas no intuito de desvendar seus mecanismos de funcionamento, mas, principalmente, de se tornar capaz de reconstituí-los. Em suma, a antropologia reversa praticada por outras sociedades explicita para nós os mecanismos que empregamos de forma implícita e, às vezes, inconfessável27.

Para concluir, poderíamos dizer que A invenção da cultura segue seus próprios pressupostos em um grau muito superior à maioria das obras. O livro é percorrido por uma série de contrastes dialéticos que o autor tem o cuidado de definir como parte de uma dialética que não almeja qualquer síntese (p. 96): contraste entre concepções de cultura (cap. 2), modos de simbolização (cap. 3), formas de subjetividade (cap. 4), estilos de socialidade (cap. 5), teorias antropológicas (cap. 6), entre outros. A ideia de síntese parece ser uma das grandes ameaças ao pensamento isoladas por Wagner. Afinal, a pretensão às grandes sínteses – ou a denúncia das falsas, tanto faz – é apenas uma “estratégia de ‘proteger

a antropologia de si mesma'” (p. 227), defendendo-a da relatividade que ela mesmo revela quando é capaz de “analisar a motivação humana em um nível radical” (p. 13). O primeiro capítulo do livro elabora justamente essa distância que separa a relatividade ameaçadora que a antropologia revela do “relativismo” que professa, relativismo que é a primeira forma de controle da própria relatividade, uma vez que, como escreveu Roland Barthes, “logo se detém no coração inalterável das coisas: é uma segurança, não uma perturbação”28. Para um espírito mais sisudo, “o fim da antropologia sintética” (p. 229), ou do “sintesismo” (234), com que Wagner encerra o livro, bem poderia ser entendido como o fim da própria antropologia. Mas, como a A invenção da cultura não se cansa de demonstrar, todo fim é a ocasião da invenção de um novo começo. Creio que nisso consiste a aposta de Roy Wagner.

Espero que o Wagner que inventei seja suficientemente flexível para escapar de uma convencionalização demasiado rápida. Porque ninguém precisa se iludir: mesmo autores tão criativos quando ele não deixam de ser incessantemente “contrainventados” na forma convencional de algo como um neo-Durkheim, cujos conceitos e ideias seriam capazes de dar conta do que quer que seja e a quem devemos devoção respeitosa. Antes de “aplicá-lo” ali e acolá, convém meditar sobre a nova forma de conexão entre fatos e teorias que pensamentos como o de Wagner nos convidam a imaginar. Certamente, coisas e ideias não são nem a mesma coisa – nem a mesma ideia. Mas isso não significa que as relações entre elas sejam da ordem da hierarquia vertical, com umas, não importa quais, sendo mais importantes do que as outras. Sua relação, como diria Guattari, é transversal; para um antropólogo, a questão é como traçar transversalmente as relações entre o que aprendeu na academia e aquilo que viu e que seus amigos lhe ensinaram no campo. Só assim, creio, poderemos responder com um “não” definitivo quando nossos amigos levantarem a questão que os daribi propuseram a Wagner: “vocês antropólogos, podem se casar com gente do governo e com missionários?”.

Notas

1 A interpretação das culturas foi traduzido para cerca de vinte línguas; Cultura e razão prática foi traduzido ao menos para o alemão, espanhol, francês, italiano e português. Mas A invenção da cultura é a primeira tradução do livro de Wagner. Além disso, o livro praticamente não foi resenhado ao ser publicado. Duas exceções – cuja incompreensão e má vontade para com o autor fazem beirar o ridículo – são: BEATTIE. J. “Roy Wagner: the invention of culture”.Rain, vol. 13, 1976, p. 10;[Links] e Blacking, J. “Wagner, Roy. The invention of culture”. Man, vol. 11, nº. 4, New Series, 1976, pp. 607-8. [Links] 2 SAHLINS, M. Culture and practical reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1976, p. 121.  [Links] 3 GEERTZ, C.The interpretation of cultures. Nova York: Basic Books, 1973, p. 359. [Links] 4 SAHLINS, op. cit., pp. 122-3.
5 Como escreveu com humor James Wafer, podemos ter saudades “do paraíso perdido da antropologia, quando era possível distinguir um tique de uma piscadela, e piscadelas reais daquelas de brincadeira” (The taste of blood: spirit possession in Brazilian candomblé. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1991, p. 117). [Links] 6 Na verdade, tanto Geertz (nascido em 1926 e falecido em 2006) como Sahlins (nascido em 1930) são seniores em relação a Wagner, que nasceu em 1938.
7 CLIFFORD, James e MARCUS, George (orgs.). Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986, p. 2. [Links] 8 ACHEBE, Chinua. Home and exile. Nova York, Anchor Books, 2000, p. 33. [Links] 9 Como escreveu Michel Foucault, “a antropologia se enraíza, com efeito, numa possibilidade que pertence exclusivamente à história de nossa cultura, mais ainda, a sua relação fundamental com toda a história, e que lhe permite ligar-se às outras sociedades sob o modo da pura teoria” (Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris: PUF, 1966, p. 388).
10 ASAD, Talal. “From the history of colonial anthropology to the anthropology of western hegemony”. In: STOCKING Jr., GEORGE W. (org.). Post-Colonial situations: essays in the contextualization of ethnographic knowledge. Madison: University of Wisconsin Press, pp. 314-24, p. 315. [Links] 11 Idem (org.).Anthropology and the colonial encounter. Nova York: Humanities, 1973. [Links] 12 WAGNER, R. “The theater of fact and its critics”.Anthropological Quarterly, vol. 59, nº 2, 1986, pp. 97-9, p. 99.[Links] 13 DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Minuit , 1991, pp. 8-10. [Links] 14 Para um cuidadoso estudo sobre as possíveis relações entre os pensamentos de Wagner (além de Marilyn Strathern e Bruno Latour), de um lado, Deleuze e Guattari, de outro, ver Viveiros de Castro, E. “Filiação intensiva e aliança demoníaca”. Novos Estudos Cebrap, vol. 77, 2007, pp. 91-126. [Links] 15 DELEUZE e GUATTARI. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980, p. 457. [Links] 16 STRATHERN, M. The gender of the gift: problems with women and problems with society in Melanesia. Berkeley: University of California Press, 1988, pp. 18-19, passim. [Links] 17 MALINOWSKI, B. Coral gardens and their magic. Londres: George Allen & Unwin, 1935, vol. 1, p. 317. [Links] 18 LATOUR, B. Petite réflexion sur le culte moderne des dieux faitiches. Paris: Synthélabo, 1996, p. 101. [Links] 19 Como escreveu Marilyn Strathern, “etnografias são construções analíticas de acadêmicos; os povos que eles estudam não. Faz parte do exercício antropológico reconhecer que a criatividade desses povos é maior do que o que pode ser compreendido por qualquer análise” (op. cit., p. XII).
20 “A monotonia que encontramos em escolas de missão, em campos de refugiados e às vezes em aldeias ‘aculturadas’ é sintomática não da ausência de ‘Cultura’, mas da ausência de sua própria antítese – aquela ‘magia’, aquela imagem insolente de ousadia e invenção que faz cultura, precipitando suas regularidades na medida em que falha em superá-las por completo” (p. 146). Ou seja, o que falta nesses lugares é vida, e o antropólogo deveria falar em desvitalização no lugar de aculturação.
21 Que, como se sabe, corresponde a um estilo pautado unicamente pelo esforço de manter com rigor intransigente as regras e as técnicas das academias de formação. Qualquer semelhança com a antropologia contemporânea não é mera coincidência (ver p. 228).
22 Ver STRATHERN, “The nice thing about culture is that everyone has it”. In: Shifting contexts: transformations in anthropological knowledge. Londres, Routledge, pp. 153-76, 1995. [Links] 23 A alternativa seria o silêncio ou a autocontemplação. Como escreveu Strathern, “o fato de não existir lugar fora de uma cultura exceto em outras culturas” levanta um problema “técnico: como criar uma consciência de mundos sociais diferentes quando tudo o que se tem à disposição são termos que pertencem ao nosso mundo” (“Out of context: the persuasive fictions of anthropology”.Current Anthropology, vol. 28, nº 3, 1987, pp. 251-281, p. 256). [Links] 24 SCHNEIDER, D. American kinship: a cultural account. New Jersey: Prentice-Hall, 1968.[Links] 25 P. Griffiths. “Improvisation”. In: D. Arnold, Dictionnaire encyclopédique de la musique. Paris: Robert Lafont, 1988. [Links] 26 Como escreveu Strathern, “a interpretação deve manter estáveis os objetos de reflexão pelo tempo suficiente para que possam ser úteis” (“Cutting the network”.Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 2, nº 3, 1996, pp. 517-35, p. 522).
27 “Nessa situação, a antropologia não pode permitir-se o papel de Grande Inquisidor” (p. 236).
28 BARTHES, R. “De um lado e do outro”. In: Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970 [1961], pp. 139-47, pp. 139-40. [Links]

Marcio Goldman – Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq e da Faperj.

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A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil: Uma Investigação sobre a Persistência – CARDOSO (NE-C)

CARDOSO, Adalberto Moreira. A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil: Uma Investigação sobre a Persistência Secular das Desigualdades. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. Resenha de: LIMA, Jacob Carlos. O trabalho e a utopia da igualdade social. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.89, Mar, 2011.

Nas últimas décadas, a sociologia tem questionado e debatido o trabalho como categoria explicativa estruturante das sociabilidades nas sociedades contemporâneas, tendo como pano de fundo as transformações econômicas e políticas do final do século XX. O fim das experiências socialistas, a crise do Estado de bem-estar social, a reestruturação da produção e a revolução tecnológica informacional reconfiguraram as relações capital-trabalho e o papel do Estado como mediador dos conflitos e regulador dessas relações. Isso não significou o fim desse papel, mas seu questionamento permanente em nome da redução dos custos da força de trabalho, da competitividade internacional etc. De forma aparentemente paradoxal, o trabalho assalariado percebido nos primórdios do capitalismo como a nova escravidão a ser combatida, foi ressignificado a partir da incorporação progressiva de direitos sociais aos contratos de trabalho. A relação de assalariamento, regulada por ganhos, jornada de trabalho, direito à saúde, educação, previdência, constituiu o bem-estar social das sociedades capitalistas avançadas como um ideal a ser alcançado de maior igualdade política, social e econômica.

A proposta de revolução operária, de uma sociedade gerida pelos trabalhadores, deu lugar ao avanço contínuo das conquistas sociais, num viés socialdemocrata, da busca da utopia da igualdade e justiça social, sem rupturas revolucionárias. Assim, conceitos como sociedade do trabalho, sociedade dos direitos, sociedade salarial, cidadania social tornaram-se explicativos de um período específico do desenvolvimento capitalista1, no qual a luta de classes assumiu novas características e a mudança social significou a incorporação crescente dos trabalhadores na ordem capitalista por meio da regulação das formas de produção e reprodução social. Trabalho e cidadania – entendidos como direitos sociais, políticos e econômicos – tornaram-se sinônimos, em certa medida. O conceito de trabalho, constituía-se em instrumento fundamental na compreensão e na explicação da organização da vida social de forma geral, das questões do cotidiano, à construção de identidades sociais, e dos movimentos de transformação da sociedade.

No Brasil, a sociedade do trabalho nunca se efetivou no sentido de que a maioria dos trabalhadores sempre esteve fora da cidadania regulada pelo trabalho. Como afirma Oliveira2, mais que Estado do bem-estar social, no Brasil, sempre houve um Estado de mal-estar social representado pela inclusão de parcelas minoritárias dos trabalhadores aos direitos sociais propiciados pelo trabalho formal. Entretanto, a partir da década de 1930, no governo Getúlio Vargas, a regulação das relações capital-trabalho, ainda que restrita, construiu uma expectativa de direitos sociais que marca a sociedade brasileira até hoje.

A proposta do livro de Cardoso é recuperar a construção dessa inconclusa sociedade do trabalho no Brasil, desde os momentos iniciais do Estado brasileiro até os mecanismos excludentes que o constituíram e o mantêm ainda hoje como um dos países campeões mundiais da desigualdade social. A persistência das desigualdades sociais se dá pelos padrões de incorporação dos trabalhadores ainda na nascente ordem capitalista, e se perenizam na construção das relações sociais posteriores, marcada pela fragilidade estatal, pela violência contra o trabalho organizado, pelas formas desorganizadas de inserção dos trabalhadores migrantes no mercado de trabalho urbano e pela insensibilidade das elites dominantes em relação aos “de baixo”. A herança escravista de dominação e descaso com os trabalhadores persiste na nova ordem republicana que se inicia.

Esse conjunto de fatores Cardoso defende serem responsáveis por e estruturantes de uma sociedade caracterizada pela grande inércia que resulta na reprodução geracional de pobreza e desigualdades. Para ele, “o Brasil construiu seu estado de bem estar social como estado redistributivo, mas a redistribuição jamais se universalizou nem foi capaz de reduzir a pobreza a patamares socialmente aceitáveis. Não levou a uma turbulência social-revolucionária, mas uma violência circunscrita a pequenos grupos em momentos específicos da história” (p.17).

O livro apresenta um conjunto de hipóteses instigantes, visando lançar novo olhar às interpretações sobre a nossa “questão social”. A proposta é ambiciosa e divide-se em duas partes recortadas temporalmente: do Império à República Velha na constituição do que seria a construção da sociabilidade capitalista e sua inércia estrutural para a mudança social; e, a partir de 1940, a construção da sociedade do trabalho na ordem social instituída por Vargas que representou uma ruptura nessa dinâmica inercial oriunda da ordem escravista, renovando as estruturas estatais sem mexer, contudo, nas relações de trabalho no campo. Isto resultou em mudanças lentas e graduais mantendo as desigualdades. A persistência dos padrões de desigualdade social é o fio condutor que dá unidade ao livro, cujas partes podem ser lidas autonomamente.

A primeira parte, organicamente estruturada, recupera as contribuições das pesquisas da história social e do trabalho das últimas décadas, confrontando com as interpretações consolidadas. O autor ressalva, entretanto, que sua preocupação não é historiográfica e sim sociológica, analisando as contribuições recentes da pesquisa histórica sob o olhar da sociologia, o que lhe permitiu formular novas hipóteses. Entre estas podemos destacar a relação entre a escravidão e a “construção de uma ética do trabalho degradada, uma imagem depreciativa do povo, uma indiferença moral das elites em relação às carências da maioria e uma rígida hierarquia social marcada por grandes desigualdades” (p. 49). Fundamentando essa hipótese, Cardoso recorre a uma releitura distinta da visão clássica ou o que chama de “são Paulo centrica”, discutindo os diversos regimes de escravidão e contrapondo-se à interpretação da plantation e da escravaria a ela ligada. Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e região Sul tinham situações diferentes; a plantation era restrita a algumas regiões. A imigração não seria, dessa forma, a substituição dos escravos, que em sua maioria já estavam liberados para atender as necessidades dessa mesma plantation, e de outras atividades econômicas constituindo uma massa diversificada de mestiços, dispersos e nômades. A libertação dos escravos não alterou as formas de controle social representada pelas milícias privadas nas mãos dos senhores locais com implicações políticas durante todo o período.

A coexistência do um trabalho livre e o controle social privado favoreceu o surgimento de um “Estado antissocial” marcado pela descentralização do poder controlado das oligarquias locais e regionais, inexistência de qualquer legislação voltada para a questão social. Aliás, tal questão, para as elites, “não existia”, tudo o que se referia aos pobres era uma questão de polícia. A federação constituiu-se no instrumento dessas oligarquias que viviam brigando entre si, mas que se juntavam contra escravos e pobres sempre que se sentiam ameaçadas. Os interesses públicos não excediam os interesses privados, o que se manteve no início da industrialização, quando as elites industriais respondiam com repressão a qualquer ameaça grevista beneficiada com o “estado de sítio permanente que vigorou nos centros industriais mais importantes a partir de 1922, por causa das revoltas militares” (p. 133).

A massa de desocupados e subocupados nas cidades favoreceu o desenvolvimento de relações de trabalho com condições precárias e baixos salários. Inicia-se a segregação espacial das cidades, a violência e a repressão estatal à desordem, o povo sendo culpado pela própria miséria na visão das elites. Dessa forma, constrói-se um mercado de trabalho que tem como característica estruturante a precariedade das condições de inserção, permanência e mobilidade, situação que, em grande medida, ainda se mantém.

A hipótese discutida por Cardoso de que a imigração não seria a mera substituição dos escravos, que os imigrantes ocuparam os espaços do mercado e, portanto, os capitalistas urbanos não precisaram recorrer ao disciplinamento do cotidiano para a implementação de uma educação para o trabalho é instigante e ao mesmo tempo polêmica. É possível sustentar que a situação de São Paulo foi distinta por conta do boom da cafeicultura e que os proprietários privadamente organizavam a vinda de imigrantes e os submetiam a condições de trabalho similares à da escravidão. Sem dúvida isto pode colocar em xeque a ideia da busca de trabalhadores habituados ao assalariamento e ao trabalho livre, coisa que os próprios fazendeiros não estavam. Mas ao sair de São Paulo (e mesmo em São Paulo), tendo em mente o trabalho industrial, a implementação de uma educação para o trabalho talvez não tenha sido tão irrelevante.

Basta lembrar que nesse período numerosas fábricas surgiram nas diversas regiões do país; vilas e cidades operárias foram construídas como forma de disciplinarização e imobilização de uma força de trabalho desacostumada aos ritmos e às exigências do trabalho industrial. Excluindo São Paulo e o Sul do país, o empresariado utilizou basicamente o elemento nacional, com exceção de profissionais qualificados e cargos gerenciais em alguns casos. Leite Lopes3 (1988), em sua pesquisa sobre a fábrica Paulista no município do mesmo nome em Pernambuco, no que hoje constitui a Região Metropolitana do Recife, demonstrou o papel disciplinador e educativo pretendido pelo empresário na constituição de sua força de trabalho. Os trabalhadores eram aliciados no sertão nordestino, uma vez que já havia a preocupação (na primeira década do século xx) com trabalhadores contaminados por ideologias subversivas nas fábricas do Recife, que então se constituía em importante centro industrial têxtil. O trabalho etnográfico de Lopes demonstra a construção de uma cultura operaria mediada por empresários, no sentido de uma “correta” educação operária, com igrejas e lazer programado numa versão tupiniquim das company towns norte-americanas e inglesas. Pesquisas sobre Rio Tinto na Paraíba4, outras ainda em Pernambuco5, Minas Gerais6 e São Paulo7 apontam no mesmo sentido. Essa preocupação empresarial não invalida a hipótese de Cardoso da privatização das relações capital e trabalho, mas matiza o descaso empresarial com a construção de uma disciplina do trabalho e com a degenerescência moral dos trabalhadores nativos, uma vez que estaria relacionada com a crescente ameaça política representada pela organização do operariado fabril nas cidades.

O ensaio finaliza apontando a revolução de 1930 e o início da construção da utopia representada pela proteção estatal presente na legislação social e trabalhista. Entretanto, a debilidade do Estado restringiu sua abrangência, o que excluiu os trabalhadores rurais, até a década de 1980, de qualquer proteção social, mas criou a expectativa de integração social de massas de migrantes que passaram a buscar as cidades como forma de melhoria de vida. Isto resultou no crescimento da população urbana e num mercado de trabalho fortemente marcado pela informalidade, ilegalidades diversas e violência que configuraram os cenários urbanos das grandes e médias cidades brasileiras.

Independentemente dos limites e de seu alcance, a legislação trabalhista varguista “instaurou um campo legítimo de disputa, cuja legitimação era o próprio Estado”, a cidadania regulada, utilizando o conceito de Santos8, com a promessa de integração social. Esta cidadania torna-se então a forma institucional da luta de classes, com o trabalhador em busca legítima por seus direitos. Inicia-se, pois, o processo civilizatório do capital, inexistente até então na construção de um Estado marcadamente antissocial. A CLT torna-se símbolo identitário. Ser trabalhador pressupõe ter carteira de trabalho, e esta simboliza acesso a direitos.

Na segunda parte do livro, o argumento da persistência das desigualdades e sua legitimação é discutido com a utilização de dados de censos demográficos, PNADs e pesquisas realizadas no âmbito do Iuperj, em 2001. São três capítulos que podem ser lidos como artigos independentes, pois trabalham com recortes específicos e utilizam metodologias distintas. O ponto central é como o mercado de trabalho urbano absorveu a massa de migrantes que correram para as cidades e em que medida essa mobilidade espacial resultou em mobilidade social atendendo as aspirações, os projetos de vida e as concepções de justiça desses trabalhadores.

No primeiro capítulo da segunda parte, são discutidas mudanças estruturais do período de 1940 a 2000 tendo como recorte a urbanização acelerada, o aumento da escolaridade e a entrada no mercado de trabalho dos jovens saídos da escola. Demonstra, nesse período, a permanência de mercados de trabalho estruturalmente precários, a manutenção de condições de trabalho e vida que indicam pouca mobilidade social, em que pese a universalização crescente do acesso ao ensino básico e mesmo a expansão do ensino superior. A hipótese defendida é que a educação teve pouca importância para esse mercado de trabalho, frustrando a expectativa da escolarização como condição de mobilidade. Nesse argumento, o autor destaca a decepção com uma escolaridade que não propiciou qualificação para o mercado, marcado pelo emprego mal remunerado, de baixa qualidade e instável, seja pela informalidade, pela rotatividade utilizada pelas empresas como forma de rebaixamento da remuneração, seja pelos tipos de ocupação disponíveis etc.

A urbanização e a maior escolarização melhorou a chance de ocupação e mesmo de mobilidade para os mais escolarizados, mas a maioria deles ficou de fora, num lento processo de mobilidade em comparação com as gerações anteriores. Tal lentidão foi agravada pela reestruturação econômica dos anos posteriores, que aumentou as exigências de escolaridade sem a equivalente melhoria da qualidade do emprego. A maior escolarização teve, assim, um resultado paradoxal: a piora das condições de entrada dos jovens no mercado de trabalho, independentemente de seu perfil educacional. As afirmações baseiam-se em dados quantitativos que estabelecem tendências. É possível discuti-las, na medida em que a urbanização, mesmo que precária, significou em grande medida acesso à escolarização e mesmo certa melhoria comparativa com a estagnação do meio rural, dos trabalhadores mais pobres no que diz respeito ao acesso a bens materiais e simbólicos. Também deve ser considerado que a modernização da agricultura teve resultados não apenas na expulsão do homem do campo, mas produziu um relativo aumento de ocupações qualificadas, significando mudanças lentas em termos de mobilidades para os trabalhadores. Todavia, isso não modifica as tendências apontadas pelos dados apresentados por Cardoso em seu recorte analítico.

Suavizando a aridez dos dados quantitativos apresentados na perspectiva da estrutura de oportunidades de inserção no mercado, o capítulo seguinte busca demonstrar a fluidez existente nas trajetórias individuais nessa estrutura que, no conjunto, é pouco dinâmica. Utilizando perspectiva similar à adotada por Lahire9 em seus retratos sociológicos nos quais recupera as disposições dos indivíduos e a realidade por eles reconstruídas, Cardoso recorre, com base em depoimentos, interpretação de comportamentos, práticas, opiniões e trajetórias, a dois casos exemplares de trabalhadores que “escaparam” de uma estrutura social que não favoreceria a mobilidade social.

Com Marlene, do interior de Minas, e Marcos, do interior do Ceará, Cardoso reconstrói as histórias de mobilidade. A primeira, como costureira, e o segundo, na construção civil, viraram empreendedores, por necessidade ou acaso, e conseguiram melhorar suas condições de vida e trabalho; possibilitaram a escolarização superior dos filhos e construíram um patrimônio num contexto de instabilidade econômica e política, altos índices inflacionários e desastrosos pacotes econômicos. As histórias permitem visualizar, segundo o autor, uma estrutura social relativamente aberta em baixo e mais fechada no topo. Os dois casos seriam representativos dos caminhos seguidos no processo de mobilidade. Situações diversificadas, em que capital social e acaso se juntam eliminando qualquer determinismo estrutural na análise. Para Cardoso o capital social e a estrutura de oportunidade, embora socialmente configurados, não são estanques, modificando-se contextualmente a partir de mudanças econômicas, políticas e sociais.

Situação análoga foi estudada entre operários fabris na Bahia por Guimarães10, que apontava a existência de “atalhos” utilizados por trabalhadores pouco escolarizados e qualificados na direção de melhores posições. Em algumas situações, a fábrica significou esse atalho. Nesses casos, a mobilidade geralmente era apenas horizontal, mantendo a condição “operária”, mas possibilitava adquirir habilidades úteis no meio urbano e resultar em certa ascensão com melhoria nas condições de vida. Processo similar pode ser percebido na construção civil, em que a experiência vai se constituindo em qualificação. Mesmo com a maior procura dos trabalhadores que se especializaram nos canteiros de obras, a informalidade e os contratos temporários marcam as condições de trabalho, bem como a instabilidade permanente, o que compromete a mobilidade11. Em outras palavras, a fluidez da mobilidade é mediada por um mercado no qual formalidade e informalidade se imbricam estruturalmente, e os trabalhadores circulam entre eles o tempo todo, mesmo em ocupações mais qualificadas, autônomas ou “empreendedoras”, perenizando a instabilidade como condição.

Por fim, o terceiro capítulo discute as concepções de justiça, da percepção da desigualdade e legitimação da ordem. Com base em dados provenientes de um survey de 2001 e em depoimentos, Cardoso conclui que a imensa maioria, principalmente dos pobres, percebe a desigualdade como uma injustiça, mas a considera legítima. De qualquer maneira, a maioria da população possui grandes expectativas de melhoria, o que aponta para a utopia brasileira de mobilidade permanente como percepção dominante.

O Estado continua sendo percebido como o grande agente da resolução da desse problema social. O acesso aos direitos teria garantias e a inserção seria uma possibilidade permanente. Não ter êxito é considerado questão pessoal, falta de sorte ou desígnio divino. Aqui os dados apontam que estudos sobretudo qualitativos podem aprofundar a análise de que exista uma correlação positiva na qual o Estado é percebido como instrumento para maior acesso à igualdade e à justiça.

Se é possível uma síntese, A construção da sociedade do trabalho no Brasil elenca numerosas hipóteses, análises e provocações, difíceis de discorrer no âmbito restrito desta resenha. O extenso período e as diversas proposições sugeridas oferecem, entretanto, numerosos insights para a análise da estrutura da sociedade brasileira, propondo novas pautas de pesquisa.

Dados recentes sobre mobilidade social desta última década, com o crescimento e a estabilidade econômica, o aumento progressivo do salário mínimo e a implementação de políticas sociais compensatórias, trazem para primeiro plano a necessidade de mais estudos sobre as mudanças em nossa estrutura social com a diminuição, pela primeira vez em décadas, da pobreza absoluta. Nesse sentido, o livro é instrumento importante para a análise da mobilidade social e contribui significativamente para o debate a cada dia com maior visibilidade.

Lentamente a população brasileira move-se para patamares acima da pobreza absoluta e se depara com uma cidadania “regulada” mais pelo consumo do que pelos direitos. Cresce o número de empregos formais, e há maior distribuição territorial desses empregos. Discutir sua qualidade exigiria uma análise mais ampla sobre o trabalho no capitalismo contemporâneo. A informalidade, embora tendencialmente em queda, ainda representa cerca de 50% do mercado de trabalho, sendo que a circulação dos trabalhadores entre formal e informal constituem-se em característica, digamos, estrutural. O trabalho informal também tem sido ressignificado como trabalho autônomo e empreendedor, mas aí adentramos em uma outra discussão.

A defesa dos direitos sociais vinculados ao trabalho pressupõe forte presença estatal na regulação capital de trabalho, o que decorre, em grande medida, de mobilização social e política. Mobilização complexa num quadro de flexibilização das relações de trabalho no qual os direitos sociais são percebidos como custos que comprometem a competitividade empresarial e as políticas sociais, percebidas financeiramente como ameaça ao fechamento das contas públicas.

As mudanças políticas desta década têm reforçado o papel do Estado na implementação de políticas sociais, na recuperação do salário mínimo e em outras medidas fundamentais para o maior atendimento das demandas sociais das populações mais pobres e diminuição da desigualdade social. Nossa sociedade do trabalho continua em construção e, para o bem ou para o mal, a utopia social brasileira continua passando pelo Estado. O livro de Cardoso é uma contribuição significativa para esse debate.

Notas

1 Período que podemos situar historicamente com as propostas keneysianas a partir da década de 1930 nos Estados Unidos, e os anos pós-Segunda Guerra Mundial na Europa Ocidental até a crise da década de 1970 e a reestruturação econômica de corte neoliberal.
2 OLIVEIRA, Francisco de. “A metamorfose da arribaçã”. Novos Estudos Cebrap, nº 27, jul. 1990, pp. 67-92. [Links] 3 LEITE LOPES, José Sérgio. A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés. São Paulo/Brasília: Marco Zero/CNPq, 1988. [Links] 4 VALE, Eltern Campina. Tecendo fios, fazendo história: a atuação operária na cidade-fábrica Rio Tinto (Paraíba, 1959-1964). Fortaleza: dissertação de mestrado, Sociologia, PPGHS, 2008. [Links] 5 LIMA, Jacob Carlos. Trabalho e formação de classe: um estudo sobre operários fabris em Pernambuco. João Pessoa: Editora da UFPB, 1996; [Links] Egler, Tamara Cohen. O chão de nossa casa: a produção da habitação em Recife. São Paulo: tese de doutorado, Sociologia, PPGHS/USP, 1987. [Links] 6 BRANDÃO LOPES, Juarez R. Crise do Brasil arcaico. São Paulo: Difel, 1967. [Links] 7 BLAY, Eva Alterman. Eu não tenho onde morar: vilas operárias na cidade de São Paulo. São Paulo: Nobel, 1985. [Links] 8 SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979. [Links] 9 LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, 2004. [Links] 10 GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. “A ilusão do atalho: a experiência operária da pequena burguesia em descenso”. In: GUIMARÃES A. S., AGIER, Michel e CASTRO, Nadya Araújo (orgs.). Imagens e identidades do trabalho. São Paulo: Hucitec, 1995. [Links] 11 COCKELL, Fernanda Flávia. Da enxada à pá de pedreiro: trajetórias de vulnerabil

Jacob Carlos Lima – Professor titular do Departamento de Sociologia da UFSCar.

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Pensamento político de Maquiavel – FICHTE (C-FA)

FICHTE, Johann Gottlieb. Pensamento político de Maquiavel Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Ed. Hedra,2010. Resenha de: GASPAR, Francisco Prata. Maquiavel e a sua aplicação. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.17, Jan./Jun., 2011.

Mãos se encontrando, cantando, esperando servir-se de justiça.

Impaciência de gerar outra carne, outra polícia diferente destas armas sempre justas para o crime1

Publicado originalmente no número 1 da revista Vesta, de Königsberg, em 1807, o ensaio de Fichte sobre a obra de Maquiavel é, decerto, um texto de divulgação e elogio da obra do “nobre florentino” para o leitor alemão da época. Retomando o texto-homenagem de Goethe escrito como um monumento erigido a Winckelmann, o propósito inicial de Fichte é o de recuperar a obra de Maquiavel, dando-lhe a sua devida importância – o que significa pretender menos que Goethe, afinal, se no caso do historiador da arte antiga se trata de alguém já com perfeita honra e dignidade, no caso de Maquiavel, embora haja alguns simpatizantes de sua obra, ele se encontra também “totalmente mal-compreendido e medido segundo uma medida que ele expressamente proíbe, depois caluniado, ultrajado, seu nome usado como pejorativo” 2. Mas, ao mesmo tempo, o ensaio é também um texto de intervenção política, no qual é o próprio Fichte que, através de Maquiavel, toma posição diante do rumo equivocado dado pelo governo prussiano para a sua política externa, e cujo desfecho tinha sido então a ocupação francesa de parte do território prussiano. Na sombra, Maquiavel ainda pede um sepultamento com honra, e é para isso que Fichte pretende contribuir; sob a ocupação francesa, é Fichte e a sua filosofia que, perturbados, não querem se calar.

Assim como um texto de divulgação, o ensaio é composto de duas partes: uma primeira parte introdutória, em que Fichte, ao fazer uma apresentação geral do autor e de suas obras, procura não só pro por uma nova interpretação da obra de Maquiavel, a fim de tirá-lo dessa sombra em que se encontra, mas também se pergunta qual aplicação a política de Maquiavel teria no tempo presente (de Fichte); e então uma segunda parte, que consiste em uma seleção de passagens traduzidas pelo próprio Fichte do Príncipe e acrescidas de alguns adendos seus. De início, é preciso afastar a má-compreensão e, com ela, por conseguinte, todos os seus preconceitos subjacentes. E Fichte o fará justamente, por incrível que pareça, como um historiador moderno da filosofia: através de uma leitura imanente de Maquiavel, a compreensão da obra é dada pela própria obra, e o leitor não deve vir com prévios conceitos ou prévios juízos, mas produzir o conceito da obra, isto é, julgar a obra, a partir das medidas que ela própria lhe fornece 3. E é desse modo, pois, que na mesma medida em que critica as leituras enviesadas de Maquiavel e suas respectivas incompreensões, Fichte pode apresentar um Maquiavel despido de preconceitos, não mais aquele autor imoral, tomado pelo paganismo e autor partidário e parcial, mas aquele que, insuflado pelo suprassensível e por uma natureza ética superior, formula uma filosofia política de alto alcance.

.Com efeito, para bem julgar a obra maquiaveliana, é preciso situar Maquiavel naquilo que ele tem em vista e não naquilo que nós temos em vista. Maquiavel, diz Fichte, se circunscreve à vida efetiva e à história, e é daqueles que formula seu pensamento a partir da vida, tudo introduzindo e extraindo da história – trata-se, pois, diz Fichte, de uma “sabedoria prática da vida e do governo (Lebens– und Regierungswei sheit) ”. Por isso, quando escreve, Maquiavel não tem em vista “as perspectivas superiores da vida humana e do Estado do ponto de vista da razão” 4 ; ele chega mesmo a ter aversão aos ideais, ao “dever ser”, mas circunscreve-se às coisas como são, procurando sempre a eficácia das ações políticas. Não exigir de Maquiavel, portanto, o que ele próprio não exigia dele, funciona aqui como chave de leitura de sua obra, e “a maior das perversões, assevera Fichte, é julgá-lo como se ele tivesse querido escrever um Direito de Estado transcendental e obrigá-lo, séculos depois de sua morte, a entrar numa escola que mesmo em vida ele não teve ocasião de frequentar” 5.

O Príncipe, por exemplo, não é um livro para ser lido como a exposição de uma moral ou de um direito puros, mas um livro em que Maquiavel, na medida em que procurou dar alguma firmeza e duração à relação dos Estados da Itália, apresenta um conjunto de regras e medidas políticas a serem tomadas conforme a situação, seguido sempre também de um conjunto de exemplos – que podem valer como regras, “modelos” – de como homens do passado agiram em determinadas situações. E se o que se busca é a consolidação de relações estáveis na Itália, o dever de todo príncipe não será um dever moral, mas o dever político de auto-conservação (Selbsterhaltung), e a sua suprema e única virtude será, em função desse dever, a consequência (Konsequenz), isto é, a coerência e sensatez em suas ações. Assim, não é a ação mais correta do ponto de vista moral que tem validade aqui, mas a ação mais eficaz de acordo com esse fim superior que Maquiavel se coloca.

Várias virtudes, ao contrário, como a generosidade ilimitada e insensata ou a clemência, são nefastas para o bom governo, e pecam em eficácia na conservação da nação e do poder político do príncipe. Aliás, é também nessa chave de leitura que é preciso interpretar a linguagem de Maquiavel: quando ele fala em “avareza, crueldade e assim por diante”, ele o faz apenas utilizando a linguagem popular da época, pois sob essas palavras o que se visa são virtudes efetivas do governar e não vícios: “uma sábia parcimônia, um rigor que se mantém inexorável na execução da lei e assim por diante” 6. Se Maquiavel faz uso dessa linguagem, diz Fichte, a culpa não está totalmente nele, pois nisso ele apenas partilhava a linguagem da época, de modo que a culpa tem de ser partilhada com ela.

Não querendo escrever uma doutrina transcendental da moral ou do direito, mas procurando formular, a partir da vida e da história, regras eficazes para a conduta política dos príncipes para um governo estável e sólido, Maquiavel não é, portanto, um autor imoral. Ao contrário, pensa Fichte: a sensatez e coerência que ele busca nos príncipes, o raciocínio rigoroso e bem ordenado e a finalidade geral de uma nação italiana unificada são os índices claros de que a obra de Maquiavel não só é uma leitura atraente, como de uma natureza ética da qual ninguém “se afastará sem amor e respeito, mas também, ao mesmo tempo, não sem lamentar que a esse soberbo espírito não tenha sido dado um palco mais regozijante para as suas observações” 7.

Isso em relação ao suposto caráter imoral de Maquiavel como escritor. Mas a mesma operação de dissolução de incompreensões e preconceitos que se imiscuem na leitura consagrada da obra do nobre florentino é também realizada em relação ao paganismo de Maquiavel, à sua indecisão entre republicanismo e monarquismo e ao seu partidarismo. Tais dissoluções, contudo, não vêm ao caso aqui. Pois é de interesse maior entender o trecho final da parte introdutória do ensaio, exatamente na medida em que, ao se perguntar pela aplicação da política de Maquiavel aos tempos presentes, começa a expor ainda mais claramente todo o caráter de intervenção política do ensaio, fazendo assim a transição para a sua segunda parte, na qual se apresentam algumas passagens do Príncipe, que, enquanto tais, foram traduzidas e selecionadas, como se tentará mostrar, não sem razão.

Mas já de início é de se perguntar, entretanto, como é possível a Fichte retomar a política de Maquiavel a fim de aplicá-la ao seu tempo presente? Isso porque se, por um lado, Fichte compartilha o “princípio capital” da política de Maquiavel, a saber, a ideia de que todo Estado pressupõe a guerra de todos contra todos, sendo sua finalidade, então, produzir a paz comum, mesmo que seja apenas como fenômeno exterior8 – pressuposição inevitável e inquestionável, já que, dado o Estado como instituição de coerção, é necessário pressupor essa guerra de todos contra todos –, por outro lado, todavia, enquanto Maquiavel introduz e extrai tudo da vida e da história, Fichte, ao contrário, é aquele que tem em vista o Estado de razão e o direito transcendental; mais que isso, Maquiavel parece ser justamente aquele “político especulativo meramente empírico” que é tão criticado por Fichte no Estado comercial fechado, o apêndice à Doutrina do Direito. É ali, pois, no Estado comercial fechado, que Fichte começa a delinear o estatuto da política no interior da doutrina-da-ciência como a ciência mediadora entre o puro direito público (das reine Staatsrecht) e a realidade efetiva 9. Afinal, na medida em que desse puro direito público nasce um Estado de razão que, por sua vez, não é imediatamente aplicável à realidade efetiva – já que em parte alguma os homens são encontrados sob uma constituição oriunda da razão e de conceitos, mas antes do acaso e providência – se faz necessária uma mediação, que faça a passagem entre o Estado de razão e o Estado efetivo dado, do contrário, a destruição repentina da constituição efetiva em proveito da constituição do Estado de razão resultaria na própria destruição dos homens, tornando-os selvagens. Em outros termos, o puro direito público fornece as regras (Regeln) universais necessárias a toda constituição fundada na razão e nessa “sua suprema universalidade elas convêm a tudo e, justamente por isso, não convêm a nada determinado ”, donde a sua imediata inexequibilidade – ou inaplicabilidade – na realidade efetiva; ora, para serem aplicadas, diz Fichte, elas “teriam somente de ser mais determinadas para um estado (Zustand) efetivo dado”, e essa determinação a mais da regra universal estabelecida no puro direito público ocorre na ciência que “eu denomino Política ” 10. Assim, dada esta certa heterogeneidade entre o Estado de razão e um Estado efetivo dado, entre a regra universal do direito e uma situação efetiva dada, torna-se necessária uma mediação, ou um termo médio, que permita a passagem dos dois mundos. A política enquanto ciência, e não enquanto prática, é uma ciência do governo que, portanto, partindo não de uma situação totalmente determinada, mas da avaliação de um estado geral de coisas, fornecerá como determinação a mais da regra universal as medidas (Maßregeln) a serem tomadas para que o Estado efetivo dado nessa situação geral se aproxime do Estado de razão; medidas que, enquanto determinação a mais das regras universais, se referem não a um caso particular, mas a um estado geral de coisas e possuem, por isso, ainda uma certa universalidade. – Traçando um paralelo ilustrativo, sugerido pela nota 18 do Tradutor 11, a política, como mediadora que torna possível a aplicação do puro direito à mera experiência, funciona aqui aproximadamente ao modo como o esquematismo da imaginação funciona na Crítica da Razão Pura de Kant. Lá, como aqui, está em questão a aplicação das regras, e lá, como aqui, entre as regras e aquilo sobre o que elas serão aplicadas há uma heterogeneidade que exige uma mediação, um terceiro termo homogêneo aos dois mundos; lá, essa mediação é dada pelos esquemas que, lembremos, enquanto efeito do entendimento (as regras) sobre a sensibilidade (um diverso em geral da sensibilidade), não “têm em vista uma intuição singular, mas só a unidade na determinação da sensibilidade” 12, aqui, essa mediação é dada pelas medidas, que ainda permanecem universais sob um certo ponto de vista, já que a política, como ciência do governo, não pode ser a política para a França ou Alemanha, nem a política para a França ou Alemanha no ano de 1800, mas tem de ser uma política comum a um certo estado geral de coisas 13.

Ora, se é assim, se a política é a ciência do governo que fornece, através das medidas, a determinação a mais que as regras do puro direito público exigem para a sua possível aplicação a um Estado existente, ela, então, se tem um elemento que provém da realidade efetiva, toma, na verdade, a sua substância das regras universais do direito transcendental, de modo que parece ser incompatível a Fichte utilizar a política de Maquiavel, aquele que introduz e extrai tudo da história, para aplicá-la ao seu presente histórico – e não se trata nem mesmo de saber se ela é aplicável ou não, já que de início ela parece ser incompatível com a concepção fichteana de política. E na crítica de Fichte ao que ele chama de “político especulativo meramente empírico” talvez seja o próprio Maquiavel que é ali encontrado: aquele é um político que, não confiando em nenhum conceito ou cálculo, mas apenas na experiência imediata, “rejeitaria esta política [a de Fichte], porque ela não conteria fatos, mas apenas conceitos e cálculos de fatos, em suma, porque ela não seria história. Um tal político tem em sua memória como uma reserva um número de casos e medidas (Maßrege ln) exitosas, que outros antes dele tomaram nesses casos. O que aparece a ele, ele pensa em um daqueles casos e procede como um dos políticos que o precederam” 14 – afinal, não é também Maquiavel, a partir da própria leitura de Fichte, que deliberadamente circunscrito à vida, formula suas regras e medidas a partir dos exemplos que encontra na história? E no entanto, Fichte não só se pergunta em que medida a política de Maquiavel é aplicável aos seus tempos, como antes já o havia elogiado profundamente – sendo o seu propósito, aliás, dar-lhe um sepultamento digno.

É que aqui dois pontos precisam ser considerados, e que, juntos, permitem entender a pergunta pela aplicação da política de Maquiavel e, com isso, a dimensão política do ensaio de Fichte. Em primeiro lugar, quando Fichte se pergunta pela aplicabilidade da política de Maquiavel é preciso entender que ele já não se encontra no terreno da política como ciência, mas já passou para o terreno da aplicação mesma da política, isto é, para a aplicação das medidas a um determinado caso dado, isto é, para a prática da política. Ora, como a medida é algo ainda geral, ela exige uma capacidade do político para saber se ela deve ser aplicada naquele caso e como ela o deve ser – como diz Fichte: “o político em exercício (ausübender Politiker) tem sempre ainda de aplicar uma regra, de certo ponto de vista sempre ainda universal, a um caso particular, e para cada caso particular um pouco diferentemente” 15, embora a aplicação não possa se afastar da regra.

Essa capacidade para aplicar a regra pode ser denominada, mantendo -se o paralelo com Kant, de capacidade de julgar, isto é, aquele talento para distinguir se algo está ou não sob a regra dada 16. E é o próprio Fichte que assim explica a aplicação da regra a partir de uma ciência mediadora: “sempre resta ao julgamento daquele que pratica (Beurteilung des Praktikers) um vasto campo; a ciência mediadora apenas o encaminha e indica a ponte dos dois mundos diferentes. Como a lacuna permanece, ele tem de se ajudar a si mesmo pelo julgamento (Beurteilung) ” 17.

Quer dizer, no momento em que é preciso aplicar a regra ou medida à realidade, o político prático, em exercício, necessita ter uma capa cidade de inventividade e discernimento para que mesmo a distância entre a medida da política, enquanto ciência mediadora, e a realidade seja acomodada 18. – E isso ele o fará pelo seu talento próprio em julgar e simultaneamente, caso este não seja suficiente, a partir de exemplos passados que mostrem como a medida foi aplicada – e é Kant quem diz que os exemplos aguçam a faculdade de juízo 19. É aqui, pois, que Maquiavel entra em cena, afinal, ao se situar no terreno da vida e da história e formular a partir delas regras para a boa conduta dos príncipes, ele acaba também por fornecer uma série de exemplos de como políticos do passado se portaram, isto é, como aplicaram as regras – em alguns casos, virtuosamente, em outros, de modo vicioso. O próprio Príncipe, aliás, é um livro escrito para Lorenzo de Médicis, para que, com a instrução do livro, possa unificar a Itália e bem governá-la, “pressuposto sempre que vos atenhais à maneira daqueles que vos apresentei como modelos ” 20 – aqui, o exemplo vale como medida, um pouco como no juízo reflexionante kantiano.

Em segundo lugar, com efeito, é preciso considerar também que quando Fichte se pergunta pela aplicabilidade da política de Maquiavel, ele não tem em vista a relação do príncipe com os seus súditos – que era a questão que movia Maquiavel ao escrever o Príncipe –, pois em geral os príncipes da Europa do século XIX já estão em paz com os seus súditos e não necessitam de uma política para isso, mas o que o move é a relação do príncipe com as outras nações. Ora, nessa relação entre os Estados não há nenhum direito superior, nem nenhuma lei, a não ser a lei do mais forte, e neste caso, não havendo direito, a relação de permanente volúpia da guerra é ainda mais forte e necessária. Como então formular uma política se não há um direito para lhe dar as regras universais que ela deverá determinar? É aqui, enfim, que a política de Maquiavel é aplicável, justamente porque, sem nenhum direito que lhe dê a regra, ele formula, com exemplos da história e tendo em vista a eficácia das ações, um conjunto de regras para dar estabilidade e duração à relação dos Estados da Itália. Assim como Maquiavel, Fichte procura agora formular regras para os príncipes para que haja estabilidade na relação entre os Estados, que justamente se encontram em guerra naquele momento.

Com efeito, no caso presente, em que não há nenhum direito superior que reja a relação entre os Estados e em que a volúpia de guerra de todos contra todos se intensifica ainda mais, cada nação procurando continuamente se engrandecer às custas da outra, a estabilidade entre os Estados não será estabelecida por qualquer confiança ou relação de tipo moral entre as nações, mas tão somente se cada nação conservar-se forte em seus limites, estiver bem preparada para a guerra, sempre atenta a qualquer tentativa de seu vizinho em mudar a situação em seu proveito – pois se ele puder, ele o fará necessariamente, mesmo que seja seu irmão – e em não confiando de modo algum nas palavras, mas sempre procurando forçar uma garantia – “e absolutamente não abrir mão dessa condição da garantia e, estando em armas, não as depor, a todo risco, antes de ter chegado a ela” 21. Desse modo somente, nesse estado de permanente atenção e tensão, nenhuma nação encontrará uma ocasião segura para se lançar contra o seu vizinho e “uma espada manterá a outra em repouso e sucederá uma paz crônica” 22. Por sua vez, essa perspectiva política, diz Fichte, se não decorre do direito, está porém de acordo com o ponto de vista da razão, pois, na medida em que os povos não são uma propriedade do príncipe, ele não pode os considerar como um assunto privado seu: ele não pode, como o faz um cidadão privado, acreditar na humanidade, na honestidade dos homens, afinal, quando o cidadão privado é lesado, é apenas ele que é lesado e ele ainda pode recorrer à justiça de sua nação, enquanto o príncipe, se assim o fizer, é toda a nação que será prejudicada e ele não pode arriscar, em nome dessa crença, a sua nação, o seu povo e todo os seus bens. Nesse sentido, aliás, a moral não tem validade na política, o príncipe está vinculado à lei moral somente em sua vida privada, pois, em relação aos seus súditos, é ao direito de sua nação que ele está vinculado e, em relação aos outros Estados, são por essas regras e política de força que Fichte formula que ele deve se guiar, sempre tendo em vista o bem-estar e a dignidade de seu povo.

Ora, é essa perspectiva “mais séria e vigorosa” que, afirma Fichte, foi deixada de lado em seu presente, e a filosofia do tempo que então vigora, “enamorada da paz perpétua”, oferece como bem somente uma certa “humanidade, liberalidade e popularidade, suplicando que simplesmente se seja bom e então tudo também será bom, por toda parte recomendando a áurea via média, isto é, o amálgama de todas as contradições em um surdo caos”. E o pior é que essa filosofia do tempo tem entrada nos gabinetes e cortes dos governos, e é a ela basicamente que Fichte concederá a honra de todas as desastradas decisões políticas do governo prussiano no cenário internacional, principal mente na relação com a França de Napoleão. Decerto, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, mostra Fichte, são os “alicerces eternos e inabaláveis de toda ordem social”, mas exclusivamente com eles não é possível construir e gerir um Estado 23. Aliás, é de se perguntar se não é essa mesma ingênua filosofia do tempo a raiz daquela leitura moralizante da obra de Maquiavel, de modo que em um só lance a obra de Maquiavel é recuperada e a filosofia política da época criticada.

Assim, considerados esses dois pontos diante da pergunta pela aplicação da política de Maquiavel ao tempo presente, a saber, que essa aplicação já se dá no terreno da prática e que o seu campo são as relações entre os Estados nas quais não há nenhum direito que as reja, é possível então compreender todo o caráter de intervenção política do ensaio de Fichte sobre Maquiavel e, nessa chave de leitura, passar aos trechos traduzidos selecionados por Fichte. Imagine agora, por tanto, leitor, um prussiano letrado em 1807 que vive desgostoso sob a ocupação francesa e, depois de ter lido a parte introdutória do ensaio, lê na primeira passagem selecionada do Príncipe – a Exortação a Libertar a Itália –: “Jamais, na verdade, o tempo foi mais favorável a um príncipe capaz de tornar-se o criador de uma nova ordem de coisas na Itália do que justamente agora” 24 ; que, diante da vacilação e adiamento do governo prussiano para declarar guerra contra a França de Napoleão, lê que os romanos não adiavam uma guerra se isso significasse adiar problemas que uma vez certamente virão, “pois bem sabiam que com isso a guerra não é sustada, mas meramente, e aliás para vantagem do outro, adiada para mais adiante” 25 ; imagine leitor, quando esse prussiano ainda lê as passagens do Príncipe sobre a arte da guerra, sobre como a neutralidade em uma disputa é sempre um equívoco – neutralidade pregada pelo governo prussiano – ou quando, enfim, lê sobre os secretários dos príncipes. Todas são passagens do punho de Maquiavel, mas é da política da época que elas falam também. E Fichte tem consciência disso: ele quer despertar – ou não seria vivificar? – em seu leitor um estado de coisas que poderia ter sido diferente 26. O texto é datado, mas hoje, em que o direito internacional e as suas instâncias são pouco respeitados, ainda dá muito o que pensar e imaginar. Imagine, pois, leitor, porque, de certa forma, também é disso que se trata, nessa confluência entre história da filosofia, filosofia e intervenção política, contida no ensaio de Fichte sobre Maquiavel, cuja já consagrada tradução de Rubens Rodrigues Torre Filho foi ano passado reeditada, depois de ter sua primeira publicação em 1979, no número 9 da revista Almanaque.

Notas

1Torres Filho. “Poema desmontável”. In: Novolume, São Paulo, 1997, p. 146.

2 FICHTE, J. Pensamento político de Maquiavel. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Hedra, 2010, p. 18.

3 Coisa que o próprio Fichte exigia dos leitores da sua doutrina-da-ciência, dado o seu caráter radicalmente reflexionante. Aqui, com Maquiavel, ele apenas faz a um outro filósofo o que ele exige para si. Sobre o princípio de leitura da doutrina-da-ciência, vale a pena ver a obra filosófica do tradutor, notadamente: Torres Filho., R. R. O espírito e a letra: crítica da imaginação pura em Fichte, São Paulo, Ática, 1975, cap. 1

4 FICHTE, J. Pensamento político de Maquiavel, p. 19.

5 Idem, p. 21.

6 Idem, ibidem.

7 Idem, p. 23.

8.Para isso, Fichte cita o próprio Maquiavel: “todo aquele que funda uma república (ou, em geral, um Estado) e lhe dá leis tem de pressupor que todos os homens são malignos e que, sem exceção nenhuma, darão vazão a sua malignidade intrínseca tão logo encontrem para isso uma ocasião segura”, idem, p. 40.

9 Toda essa discussão sobre a política em Fichte e, depois, a comparação com a imaginação em Kant, foi sugerida pela nota 18 do Tradutor, onde, depois de uma citação do Estado comercial fechado, na qual aparece a definição de política, o Tradutor comenta: “Tão central quanto a imaginação como mediadora entre o sensível e o inteligível, ela [a política] é, para Fichte, o meio -termo entre ‘história’ e ‘filosofia’”, idem, p. 42 – nota 18 da tradução

10 FICHTE, J. Der geschlossene Handelsstaat. In: Werke, III, Berlin, Walter der Gruyter, 1971, p. 390-1. No apêndice à Doutrina dos Costumes, Fichte escreve: “O que medeia (das Vermittelnde) a aplicação da pura Doutrina do Direito às de terminadas constituições públicas existentes chama-se Política ”, Ascetik als Anhang zur Moral, Werke, XI, p. 123.

11.A propósito, alguém poderia dizer que o paralelo da nota 18 feito pelo tra dutor é de Fichte com ele mesmo, e não da política em Fichte com a imaginação em Kant. Não adentraremos nessa discussão, mas apenas apontaremos para as relações estabelecidas pelo próprio Torres Filho, em sua referida obra filosófica, entre o esquematismo como meio da Crítica e a imaginação como centro da doutrina-da-ciência (ver: Torres Filho., R. R. O espírito e a letra, cap. 2). E a isso acrescentaremos que, aqui, Fichte não se encontra no nível transcendental originário das exposições da doutrina-da-ciência, mas em um nível derivado em que ao a priori se opõe o a posteriori, nível semelhante àquele da Crítica, pois a questão aqui é como introduzir na vida a ciência (ver: Fichte, J. Ascetik als anhang zur Moral, Werke, XI, p. 122).

12 KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, v. III, p.189 (A140/B179).

13 FICHTE, J. Der geschlossene Handelstaat, Werke, III, p. 391.

14 Idem, ibidem.

15 Idem, ibidem.

16 KANT, I. Kritik der reinen Vernunft, p. 184 (A132/B171).

17 FICHTE, J. Ascetik als Anhang zur Moral, Werke, XI, p. 122-3.

18 Talvez seja possível dizer que a política como ciência fornece uma estratégia para a política e a política como prática, ao procurar aplicar essa estratégia, precisará formular uma tática.

19 KANT, I.Kritik der reinen Vernunft, A134/B173. Não é curioso que o próprio Kant, quando fale da faculdade transcendental de juízo se refira à necessidade de um político de ter o talento do juízo e diga: “Um médico, um juiz ou um estadista (Staatskundiger) podem ter na cabeça excelentes regras patológicas, jurídicas ou políticas, a ponto de cada um poder ser um importante professor nelas, e no entanto, facilmente se equivocar na sua aplicação (Anwendung), ou porque falte a ele o juízo natural (embora entendimento, não), e ele pode compreender o universal in abstracto, mas não pode distinguir se um caso pertence a ele in concreto, ou também porque ele não foi preparado o suficien te para esse juízo com exemplos e ocupações concretas” (Idem, p. 185, A134/ B173).

20 FICHTE, J. Pensamento político de Maquiavel, p. 55 (passagem selecionada do Príncipe ).

21 Idem, p. 46.

22 Idem, p. 47.

23 Idem, p. 51.

24 Idem, p. 53 (passagem selecionada do Príncipe ).

25 Idem, p. 61 (passagem selecionada do Príncipe

26 Fichte escreve: “Assim dizem que o avestruz fecha os olhos ante os caçadores que vêm ao seu encontro, também como se o perigo que não lhe é mais visível simplesmente não existisse mais. Não seria nenhum inimigo do avestruz quem lhe gritasse: – Abre teus olhos, vê, ali vem o caçador, foge para aquele lado para que lhe escapes”. Idem, p. 85.

Referências

FICHTE, J. Pensamento político de Maquiavel. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Hedra, 2010.

_____.Der geschlossene Handelsstaat, Werke, III. Berlin: Walter de Gruyter, 1971.

Ascetik als Anhang zur Moral.In: _____, Werke, vol. XI. Berlin: Walter de Gruyter, 1971.

KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974.

TORRES Filho. O espírito e a letra: crítica da imaginação pura em Fichte.São Paulo: Ática, 1975

Francisco Prata Gaspar – Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo.

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Kant-Index – DELFOSSE; HINSKE et al (C-FA)

DELFOSSE, Henrich P; HINSKE, Norbert; BORDONI, Gialuca Sadum (Eds). Kant-Index, Band 30: Stellenindex und Konkordanz zum “Naturrechet Peyrabend”. Teilband 1: Einleitung des “Naturrechets Feyrerabend., frommann-halzboog. Stuttgart: Bad Camstatt, 2010. Resenha de: MOLEDO, Fernando. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.17, Jan./Jun., 2011.

Se acaba de publicar la primera parte del volumen nº 30 del Kant – Index. Este volumen está dedicado a la lección Naturrecht Feyerabend y su primera parte – que reseñamos aquí – se ocupa específicamente de indexar los términos correspondientes al texto de la introducción a la lección.

El Kant– Index es un vasto proyecto editorial dirigido por Norbert Hinske y Lothar Kreimendhal. Su objetivo es indexar la obra de Kant y de otros autores de la filosofía de la ilustración alemana (Wolff, Meier, Lambert, etc.). Cada volumen se compone esencialmente de un gran índice de los términos empleados en una obra determinada y reproduce dichos términos en el contexto textual de la obra en el que aparecen. Además, al trabajo de indexación de los términos se suma el cálculo de la frecuencia relativa de su aparición en la obra. Esta frecuencia se establece teniendo en cuenta los radicales de cada uno de los términos (lemas), no las formas declinadas.

El Kant – Index permite conocer de ese modo, por ejemplo, la evolución de un concepto determinado en la obra de Kant y establecer en base a ello cuándo comienza a ser utilizado, cuando se acentúa su uso, y cuando éste por fin decae.

Kant dictó lecciones sobre filosofía del derecho desde 1767 hasta 1788. De ellas, la única lección que se conserva en la actualidad es la lección del semestre de verano de 1784, conocida como Naturre cht Feyerabend. La lección fue editada originalmente por Gerhard Leh mann en 1979 en la Akademie Ausgabe (donde fue incluida como anexo al tomo 27, correspondiente a lecciones sobre filosofía moral). A ella está dedicado el volumen nº 30 del Kant – Index. La primera parte de este volumen, recientemente publicada, cuenta con un índice principal del texto de la Einleitung ; reproduce los términos en el contexto textu al de la obra en el que estos términos aparecen e indica la frecuencia relativa de su aparición. Pero el dato más significativo de esta entrega del Kant – Index no es tanto la valiosa presencia de los índices, como el hecho de que traiga una edición integralmente nueva del texto mismo de la Einleitung. Esta valiosísima edición corrige y amplía (en base al trabajo con las fuentes manuscritas originales) la versión de Lehmann, contenida en la Akademie – Ausgabe.

De acuerdo a lo que señalan los editores del volumen (Heinrich P. Delfosse, Norbert Hinske y Gianluca Sadun Bordoni), la decisión de reeditar de manera integral el texto de la Introducción se debió a que la edición de Lehmann plantea más problemas de los que se pue den resolver con una lista de erratas y enmiendas (p. ix); se registran inclusive algunos casos en los cuales el texto de la Akademie Ausgabe omite directamente oraciones enteras de la lección (cfr. xi n.). Pero además del valor que de por sí supone contar con una nueva edición mejorada de un texto kantiano, la nueva edición de la Einleitung es en sí misma un llamado de atención sobre la enorme importancia cientí fica que tiene esta fuente – relativamente poco conocida en el con texto de la investigación kantiana – para la comprensión de la filoso fía práctica de Kant. En efecto, contra lo que sería esperable debido a la temática de la lección, la Einleitung no está orientada a la filosofía del derecho, sino precisamente a temáticas propias de la fundamen tación crítica de la moralidad. Este no es un dato menor y su impor tancia queda clara cuando se presta atención al año en el que Kant sostiene la lección, 1784, porque a la luz de esta fecha se advierte que la lección pertenece al contexto temporal en el que tiene lugar la re dacción de la Fundamentación de la metafísica de las costumbres ( GMS ). Los editores tienen razón, pues, cuando afirman que la Einleitung constituye uno de los elementos fundamentales a los que cabe recurrir a la hora de establecer el cuadro completo del estado de las investigaciones de Kant en el campo de la fundamentación de la moral para el año 1784 (junto con la Moral – Mrongovius II y la misma GMS ). Reseñemos (muy brevemente) algunos de los aspectos en los que esto se hace visible.

El primer aporte del texto de la Einleitung respecto de la GMS es de índole sistemático. Tanto la Einleitung como la GMS están dedicadas a la filosofía práctica y provienen de un contexto temporal similar; sin embargo, mientras que la GMS comienza tematizando la noción de una buena voluntad (AA 4: 393), la introducción a la lección gira entorno a la determinación kantiana del Hombre como un fin en sí mismo (cfr. ix). La determinación del Hombre como un fin en sí mis mo tiene un rol argumental destacado en la GMS : Kant se sirve de esta determinación para dar la conocida fórmula del imperativo categórico en la que se afirma el deber de tratar a la humanidad en la persona siempre como un fin y nunca sólo como un medio (AA 4: 429). Sin embargo, a pesar de la importancia que le otorga a la determinación del Hombre como un fin en sí mismo, Kant no ofrece en la GMS ninguna explicación clara que permita entender con exactitud qué es aquello que hace que se deba considerar al Hombre de ese modo. La Einleitung enmienda este punto oscuro.

El hombre, como un ser racional, es un fin en sí mismo – sostiene Kant en la Einleitung al igual que en la GMS –. Ahora bien el Hom bre no es un fin en sí mismo porque sea un ser racional. El texto de la Einleitung es muy claro al respecto (y desmiente de ese modo el punto de vista de algunos intérpretes que pasan por alto esta fuente).

El Hombre es un fin en sí mismo, sí; pero lo es debido expresa y úni camente a la libertad de la voluntad: “Si únicamente seres racionales pueden ser [un] fin en sí mismo, no es que puedan esto porque tengan razón, sino libertad”. ( Naturrecht Feyerabend p. 8). De acuerdo con el texto de la Einleitung, poseer una voluntad libre es lo que hace que el Hombre nunca pueda estar enteramente sometido al poder de una voluntad ajena y a ello se debe que no se lo pueda considerar sola mente como un medio y que se lo deba tratar por eso siempre, al mismo tiempo, como un fin (Cfr.

Naturrecht Feyerabend p. 7). Así queda aclarada la cuestión del fundamento de la determinación del Hombre como un fin en sí mismo que no se encontraba suficientemente expli cada en la GMS.

Otro aspecto del contenido de la Einleitung que vale la pena re saltar en relación con la comprensión del estadio de las investigacio nes de Kant sobre filosofía práctica para 1784 tiene que ver con el análisis histórico – evolutivo del pensamiento kantiano. Se trata, concretamente, de la posibilidad de detectar en el texto de la Einleitung el vínculo entre el concepto de un fin en sí mismo y el concepto del fin de la creación, un vínculo que no se encuentra desarrollado en la GMS y que le sirve a Kant en la introducción a la lección para determinar al Hombre como el fin de la creación por medio de un argumento al que recurrirá nuevamente, seis años después, en la Crítica del Juicio ( KU ).

De acuerdo con el texto de la Einleitung, cuando la razón se dirige a la naturaleza y la considera como una serie de medios y fines, debe representarse a su vez algo como un fin incondicionado – un fin en sí mismo – que permita poner término a la serie de los medios y los fines. En ello – explica Kant a sus alumnos – ocurre algo similar a lo que sucede cuando la razón considera la naturaleza como una serie de causas y efectos y debe poner al comienzo de la serie una primera causa incondicionada. La necesidad de la representación de un fin en sí mismo como término en la serie de los medios y los fines tiene, según las palabras de Kant en la Einleitung, el mismo origen que la necesidad de la representación de una causa primera: la exigencia de la razón de conectar toda serie de condiciones con lo incondicionado en una totalidad.

Del texto de la Einleitung se sigue, pues, que la representación de un fin en sí mismo es una necesidad originada en la razón y que dicha representación es al mismo tiempo la representación de un fin último al cual todo, en la serie de los medios y los fines, se encuentra subor dinado. Ahora bien, dado que el Hombre, en virtud de la libertad, es un fin en sí mismo, la conclusión que se sigue de todo esto es que el Hombre no sólo debe ser considerado un fin en sí mismo, sino tam bién, precisamente por el hecho de ser un fin en sí mismo, como el fin para el cual existen todas las cosas i. e.como el fin de la creación misma: “el Hombre es, así pues, el fin de la creación; puede ser usado a su vez como medio por otro ser racional, pero nunca es sólo un medio; sino siempre al mismo tiempo fin”. ( Naturrecht Feyerabend p. 5).

Con este argumento la Einleitung ofrece un importante testimonio sobre la evolución del pensamiento kantiano, pues se trata del mismo argumento que será recogido seis años más tarde en el parágrafo 84 de la Crítica de la facultad de juzgar ( KU ). En efecto, en este parágrafo el Hombre es definido como el fin final ( Endzweck ) de la creación en virtud de que se lo deba considerar (debido a su determinación moral i.e. a su libertad) como un fin en sí mismo ( KU AA 5: 435 s.). La Ein leitung permite concluir que dicho argumento, a pesar de no estar presente en la GMS, se encontraba formulado al menos desde el se mestre de verano de 1784.

Además de las consideraciones de naturaleza sistemática relativas a la determinación del Hombre como un fin en sí mismo y de las consideraciones de índole histórico – evolutivas sobre la determina ción del Hombre como el fin de la creación, la primera parte del volumen del Kant – Index dedicado a la Naturrecht Feyerabend aporta también elementos de naturaleza filológica, relevantes para el estudio del contexto en el que tiene lugar la redacción de la GMS. El más impor tante es probablemente la constatación de que Kant no utiliza en la Einleitung el término Grundlegung que da título a la GMS ni se refiere en ninguna oportunidad a una fundamentación de la moralidad. Dado que tampoco lo hace en la Moral – Mrongovius II y que en la GMS el térmi no Grundlegung aparece únicamente en el título de la obra y en el prólogo, los editores del volumen nº 30 del Kant – Index llegaron a la conclusión de que Kant debió haber encontrado el título de la GMS “sólo en el último minuto, después de haber sopesado una serie de otras posibilidades primero” (p. xi.) Por último, además del índice general, entre los diversos recursos que componen el índice de la Einleitung, cabe señalar la presencia de índices especiales (de terminología en latín, de nombres de personas, de nombres mitológicos, de nombres tomados de la literatura, y de nombres topográficos), un catálogo de lugares paralelos relativos a la GMS, una sección dedicada a aclaraciones y lugares paralelos en ge neral, un registro comparado de la terminología de la Einleitung, la GMS y la Moral Mrongovius II y reproducciones facsimilares de dos manus critos de la Introducción indexada.

Por todo lo dicho, la edición de este nuevo volumen del Kant – Index es una excelente noticia para todo investigador de la filosofía kantiana

Fernando Moledo – Doutor em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires.

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Seguir regras. Uma introdução às Investigações Filosóficas de Wittgenstein – DALL’AGNO (D)

DALL’AGNOL, D. Seguir regras. Uma introdução às Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Pelotas: Ed. UFPel, 2011. Resenha de: FILHO, Eduardo Ferreira das Neves. Dall’agnol sobre Wittgenstein e seguir regras. Dissertatio, Pelotas, v.34, 2011.

No Tractatus Logico-Philosophicus, Wittgenstein adverte que os pensamentos ali expressos possivelmente só sejam entendidos por quem é capaz de pensar por si próprio. Ao mesmo tempo, destaca que as verdades dos respectivos pensamentos são irretocáveis e definitivas, pois resolvem os problemas filosóficos e mostram, ao bom entendedor, que em verdade não é importante resolvê-los. Essas ideias associadas à força perlocucionária do discurso tractariano anunciam um término à Filosofia (a um modo de fazer Filosofia, o que não deixa de ser o caso, em certo sentido), e criam a ilusão de que pouco se tem a fazer depois de Wittgenstein, podendo suscitar certo quietismo filosófico.

É interessante notar que parte dos leitores de Wittgenstein mantém postura quietista mesmo diante da insuficiência das ideias contidas no Tractatus, insuficiência essa reconhecida pelo próprio Wittgenstein, o que o levou a mudar pela segunda vez os rumos da filosofia contemporânea com a organização das Investigações Filosóficas, publicadas postumamente. Manterse em uma perspectiva quietista é, como eu gostaria de colocar a questão, discutir Wittgenstein, seja de que período e respectivo pensamento for, descrevendo os pensamentos desse autor, nada mais, nada menos, em um trabalho de exegese, ou seja, descrever aquilo que parece definitivo, e que pode, no máximo, necessitar de clareamento e organização.

Darlei Dall’Agnol, em seu livro Seguir Regras: Uma introdução às Investigações Filosóficas de Wittgenstein, recentemente publicado na Coleção Dissertatio de Filosofia, (Pelotas, 2011), nos apresenta uma coletânea de doze  trabalhos que publicou anteriormente. Neles desafia o tipo de quietismo filosófico que destaquei discutindo e esclarecendo bem questões importantes do pensamento de Wittgenstein (algumas vezes buscando pontos de partida às ideias wittgensteinianas, ainda que possamos criticar algumas interpretações que realizou, como é natural), pensando e escrevendo bem com, mas sobretudo a partir de Wittgenstein, servindo-se das reflexões deste filósofo para esclarecer e tentar resolver alguns problemas filosóficos recorrentes, na maior parte dos casos no campo da filosofia moral.

Aquele que se fixar em demasia no título poderá supor que o livro de Dall’Agnol se constitui em um manual, um esclarecimento inicial das Investigações pela via de um problema central que é sempre referido pela fortuna crítica: seguir regras. Não é o caso de que o livro seja introdutório.

No livro, o leitor não encontrará primeiros passos para compreender pensamentos de Wittgenstein. As reflexões de Dall’Agnol têm sentido diferente: elas remontam percursos intelectuais decorrentes de uma série de pesquisas que desenvolveu sobre Wittgenstein e que foram reorganizadas (como chama a atenção na Apresentação do livro) para que os trabalhos (já publicados) pudessem ser reunidos em formato de livro. Em todos os capítulos do livro Dall’Agnol revela seu modo de fazer filosofia: trabalhar com ‘problemas’, e não somente escrever sobre História da Filosofia.

Podemos suspeitar que haja certa dissonância entre o título do livro e o conteúdo de alguns dos capítulos. No entanto, em uma reflexão que realiza com Wittgenstein, tácita ou expressamente o pano de fundo argumentativo de Dall’Agnol (em todos os capítulos) se desenvolve sobre a convicção de que a linguagem é uma atividade guiada por regras, regras gramaticais no sentido profundo (o que não cabe esclarecer aqui), e essa é certamente uma característica marcante em todos os pensamentos do filósofo vienense bem registrados por Dall’Agnol para seus próprios propósitos de pesquisa em filosofia prática, de modo geral, e particular no campo ética.

Tomada desse modo a ‘arquitetura’ do livro, isto é, tendo como pano de fundo a questão de seguir regras (então por ora resolvida a questão do título), seria compreensível que o subtítulo indicasse ser o livro ‘uma introdução às Investigações Filosóficas de Wittgentein, ainda que uma introdução sui generis, isto é, como resultado do percurso intelectual ‘wittgensteiniano’ de Dall’Agnol e suas observações sobre seguir regras. No entanto, alguns capítulos não tratam diretamente das Investigações Filosóficas, mas estão relacionados ao Tractatus ou a outras obras de Wittgenstein posteriores às Investigações, por exemplo, ao Da Certeza, utilizado por Dall’Agnol para tentar dissolver o Paradoxo de Moore, dissolução que pretendo comentar adiante. Por que, então, um subtítulo que nos fala de uma introdução às ‘Investigações’ tão somente, visto que o problema de seguir regras tem eco na filosofia wittgensteiniana de modo geral? Dall’Agnol, na Apresentação, diz que o livro presta uma homenagem aos 60 anos de falecimento de Wittgenstein, e pretende fazê-lo discutindo temas de sua filosofia tardia, particularmente temas das Investigações Filosóficas. Isoladamente, essa afirmação não é elucidativa para se compreender o subtítulo, nem tampouco as razões para o compêndio, as quais são elencadas por Dall’Agnol logo a seguir.

Porém, adiante, no primeiro e segundo capítulos, por exemplo, Dall’Agnol mostra-se atento à discussão de como se deve compreender a filosofia de Wittgenstein: ou sustentando-se interpretações que separam realmente “dois” Wittgenstein, o do Tractatus e o das Investigações, ou se devese dar crédito (e a essa posição Dall’Agnol parece estar filiado) àqueles que sustentam ser o conjunto da obra de Wittgenstein uma continuidade. A questão não é rejeitar a existência de diferentes etapas no pensamento de Wittgenstein (inclusive, como se especula recentemente, há quem sustente a hipótese da existência de um ‘terceiro’ Wittgenstein, identificado nas anotações dos últimos anos de sua vida, particularmente no Da Certeza), mas sustentar que existem fios condutores que estão presentes em todo o percurso intelectual deste autor. Ao mesmo tempo em que identifica essa característica do pensamento wittgensteiniano, as próprias pesquisas de Dall’Agnol (as que estão contidas no livro) se apresentam como uma continuidade, como é observado no final do livro com a tese do cognitivismo prático (construído a partir da assunção do saber-como, importante para o Wittgenstein das Investigações).

Apesar de reconhecer, como fiz acima, que existe certa unidade no livro de Dall’Agnol construída sobre o leitmotiv seguir regras, acredito que seria improdutivo que eu tentasse encontrar uma (s) característica (s) marcante (s) das reflexões de Dall’Agnol que me permitissem dizer o ‘quanto’ ele defende posições genuinamente wittgensteinianas, ou mesmo o contrário.

Isto por vários motivos, entre eles pelo fato de que, como já me ative a dizer anteriormente, Dall’Agnol não tem postura filosófica quietista, pôde pensar com e a partir de Wittgenstein; por não ser natural pensar que exista uma ‘escola wittgensteiniana’ (e o próprio Wittgenstein tinha ojeriza a ter seguidores, como se comenta); e o que é evidente: pelas várias ideias discutidas que, apesar de envolverem o aspecto de seguir regras, são desenvolvidas em diferentes direções, o que necessitaria, por si só, de um exame de doze capítulos de certo modo independentes. Por isso, escolho dois capítulos apenas para apresentar ao leitor. Em ambos Dall’Agnol defende perspectivas originalíssimas. Uma delas me interessa em particular1.

Para Dall’Agnol, o tema que está entre os “principais pontos de continuidade no pensamento de Wittgenstein” (p. 12) é o sentido ético das obras de Wittgenstein. Assim, os capítulos em que se discute o Tractatus, particularmente o primeiro – “Sobre aquilo de que não se pode dizer, deve-se falar”-, servem como pontos de partida para sedimentar essa percepção sobre a obra de Wittgenstein.

No primeiro capítulo, Dall’Agnol pretende esclarecer alguns malentendidos correntes em interpretações do Tractatus, particularmente no que diz respeito à introdução do sentido completo da obra por meio de certa ‘lei ética’ encontrada em seu Prefácio: “o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. No capítulo resume reflexões que realizou e estão publicadas em seu livro “Ética e Linguagem”(nas edições de (1993; 1995 e 2005), bem como foram apresentadas em comunicação no vigésimo sétimo Simpósio Internacional sobre Wittgenstein (2004), com o título “What we cannot say, we can and must speak about”.

Levantando a pergunta “sobre o que se deve calar?” (realmente), tenta desfazer o seguinte paradoxo: normalmente a resposta a essa pergunta parece contraditória, visto que o próprio Wittgenstein em TLP 6.421 destaca que as proposições da ética não podem ser colocadas em palavras, mais ainda em TLP 7, onde nos diz que ‘Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. Ou seja, o Tractatus parece ter sentido ético, se tomamos como ponto de partida a ‘lei ética’ contida no Prefácio; e, parece haver uma lei ‘ética’, ao final, que rejeita a própria ética ou o próprio sentido ético da obra, aparentemente destacado no Prefácio. Deste modo, haveria, além de um paradoxo, uma contradição eminente na obra. Como essa tensão pretende ser resolvida, para Dall ‘Agnol? Retomando a distinção wittgensteiniana entre dizer e mostrar, Dall’Agnol ressalta que os limites daquilo que se pode dizer, de acordo com o Wittgenstein do Tractatus, com sentido, é dado pelo que se pode figurar; todas as sentenças que não podem ser figuradas, não serão nem verdadeiras, nem falsas, não corresponderão a nenhum estado de coisas possível. Quando se tenta dizer alguma coisa sem obedecer a ‘lei’ da representação linguística, constrói-se pseudoproposições. É o caso das proposições da ética, que só podem, a seu turno, ser mostradas e não podem ser ditas. Mas, podemos falar de proposições morais? Sim, é o que sustenta Dall’Agnol. Baseado na distinção entre dizer e mostrar, Dall’Agnol sugere uma distinção entre dizer e falar: Algo é ‘dito’ quando representa um estado de coisas possível, de acordo com a regra da figuração; algo é falado quando expressa alguma coisa sem cumprir as condições de sentido, ainda que construindo pseudoproposições. E justamente a proibição de falar sobre proposições dessa natureza, como proposições que dizemos morais, não cabe aqui. Elas não podem ser ditas, se dizer é compreendido com pretensões figurativas, mas podem ser faladas, pois pertencem, como Dall’Agnol sustenta, ao domínio do místico, a esfera das coisas que não dizem que o mundo é, mas que ele existe. Podemos, pois, falar do sentido da vida, mesmo que o sentido da vida não se constitua em um fato, não esteja sub judice das condições de verdade aplicadas às proposições empíricas.

O contraste apontado por Dall’Agnol entre juízos morais e éticos é elucidativo. Ambos não são genuínas proposições, não podem ser verdadeiros nem falsos, mas os primeiros são sem sentido, enquanto que os segundos contrasensos, pois tentam dizer aquilo que só pode ser mostrado, carregando uma pretensão, como destaca Dall’Agnol, metafísica. O ‘calar-se’ proposto por Wittgenstein requer, como compreende o autor do livro Seguir Regras, ser distinguido segundo suas pretensões de verdade: deve-se calar quando não se pode dizer, quando se tem pretensões cientificistas sobre as questões de natureza moral; se não há pretensão de verdade e fundamentação da moral, pode-se falar, e nos mantemos no domínio das expressões comuns da moralidade humana2. A implicação da análise faz Dall’Agnol sustentar a tese de que o Wittgenstein do Tractatus, assim, sustenta uma epistemologia moral não-cognitivista.

Conclui Dall’Agnol que o paradoxo apontado acima é só aparente. A tese 7 do Tractatus refere-se a uma proibição às filosofias da moral, não à moralidade cotidiana e seus ‘problemas’. Também a aparente contradição é dissipada, visto que Wittgenstein não parece abolir a moralidade, mas tenta limitar o discurso cientificista sobre a moral, realizado em teorias éticas.

Assim, o silêncio tractariano diz respeito a um calar-se em sentido lógico filosófico sobre questões que envolvem a moralidade; não é um calar-se em sentido trivial, devemos falar sobre muitas questões morais, denunciando calúnias, malfeitos de toda a natureza, sob a pena de, caso contrário, assumirmos um silêncio imoral3.

Mas, nem toda a análise de Dall’Agnol sobre seguir regras tem (aparentemente) repercussões imediatas sobre o campo da moral. No décimo primeiro capítulo do livro, propõe-se a esclarecer as regras de uso dos verbos epistêmicos crer e saber, com isso, oferecendo uma dissolução ao Paradoxo de Moore (PM). O que tem de ser explicado é o que há de absurdo em pensamentos e asserções de sentenças tais como a) ‘Está chovendo, mas não creio’ ou b) ‘Está chovendo, mas creio que não está’, cuja diferença lógica é ressaltada pela fortuna crítica, inclusive oferecendo-se, em muitos casos, explicações ou soluções diferentes para cada caso. Também, alguns autores tentam explicar por que esse ‘paradoxo’ acontece apenas qiando o verbo crer é conjugado na primeira pessoa do presente do indicativo, e não acontece quando o crer é conjugado em terceira pessoa, no passado ou no futuro.

Dall’Agnol, em sua análise, não discute esse ponto em particular, mas se concentra sobre a ‘absurdidade’ das sentenças Moore-paradoxais4.

Após sintetizar outras tentativas wittgensteinianas de dissolução do PM, a primeira observação importante para compreendermos como Dall’Agnol constrói a argumentação que leva à sua dissolução do PM é a de que o verbo ‘saber’ teria semelhanças de família, em Wittgenstein, com compreender, entender, cujo uso possível faria com que o austríaco não rejeitasse a definição tradicional de conhecimento para determinado jogo de linguagem (do conhecimento, desse modo compreendendo a importância dessa ‘definição’ em um dado contexto): ter conhecimento é ter crença, verdadeira e justificada5.

Wittgenstein, em seus últimos escritos, publicados após a sua morte com o título de Da Certeza, exatamente no parágrafo 177 afirma que “aquilo que sei, acredito” (WIIGENSTEIN, Da Certeza, s/d, Lisboa: Edições 70, p. 61). Para Dall’Agnol, essa frase mostra que Wittgenstein estava preocupado em estabelecer as regras desse uso particular do verbo saber, indicando a correta aplicação, em consequência, do verbo crer.

Sentenças Moore-paradoxais seriam absurdas, pois, se “Saber=df acreditar e ter evidências adequadas que justifiquem a crença; crer=df ter a pré-disposição de aceitar a verdade de uma proposição mesmo sem evidências suficientes” (p.165), então o primeiro conjunto seria a manifestação de que ‘sei que p’, e, no segundo conjunto, nego ter o conhecimento de p, pois nego a crença em p (no caso de 1), ou afirmo a crença no contrário (no caso de 2). Seria correto asserir, por exemplo, ‘Creio que está chovendo, embora não o saiba’, mas não ‘Sei que está chovendo, mas não creio’. Ou seja, tanto no caso de 1, como no caso de 2, não cumpri corretamente o uso dos verbos crer e saber; assim, “o Absurdo de Moore é simplesmente um mau uso de verbos epistêmicos” (p. 165).

Ora, a dificuldade maior na tentativa de dissolução ao PM oferecida por Dall’Agnol é justamente ter de mostrar que sempre, em uma asserção de sentença Moore-paradoxal, na primeira metade da conjunção há uma alegação de algo forte como conhecimento, ou seja, sempre ao asserir p alguém está asserindo ‘eu sei que p’, ainda que o contexto seja apropriado para uma pessoa (pretender) sustentar conhecimento, no sentido tradicional do termo. Sem esse passo, fica permitido imaginar uma série de situações em que as pessoas não alegam ‘saber’ uma dada proposição, mas apenas possuem crença sobre ela, ainda não têm condições de assegurar o conhecimento de p, apesar de sua asserção ocorrer, como já disse, em um cenário ‘epistêmico’. E, se esse for o caso, então voltamos ao princípio: ter de explicar a razão da absurdidade de asserções de sentenças Moore-paradoxais6. Em uma situação dessas, na ausência de condições para assegurar ‘conhecimento’ sobre uma dada proposição, ainda que o quisesse, a pessoa descumpriu alguma regra, isso é correto dizer, mas será importante dizer qual regra efetivamente ela descumpriu (então, algo mais sobre a lógica da asserção deve ser trazido ao debate).

Caso seja verdade que possamos construir cenários nos quais o PM se dissipa mediante diferentes recursos, por exemplo, em certas asserções que parecem ser ‘contradições disfarçadas’ (como o fizeram alguns dos autores que defenderam uma posição expressivista, tentando mostrar que sempre a asserção de ‘eu creio que p’ é idêntica a asserção pura e simples de p) – e também aqui, em Dall’Agnol, para o qual o problema deve ser respondido unicamente na esfera de um jogo de linguagem do saber, devemos sempre procurar explicar a situação que nos parece mais espinhosa, e que foge a cenários exclusivos: quando há uma tensão entre as crenças que declaro em primeira pessoa e das quais ‘duvido’ em terceira pessoa. Aqui está o ninho das vespas menos indolentes de Moore, parafraseando o Wittgenstein de Cultura e Valor7.

Como eu disse antes, não analisei o ‘quanto’ Dall’Agnol é mais ou menos ortodoxo no livro em suas interpretações wittgensteinianas dos problemas discutidos. Parece que no caso de sua dissolução wittgensteiniana do PM, a ortodoxia é o caso. Cabe ao leitor do livro tirar suas próprias conclusões a respeito disso, tanto na leitura desse capítulo, quanto dos demais capítulos nos quais Dall’Agnol se ocupa de outros problemas.

Certamente encontrará uma série de investigações que devem ser levadas adiante, pois, como eu mencionei acima, Dall’Agnol desafia qualquer quietismo filosófico e nos faz (re) pensar sobre muitas questões relevantes relativas a seguir regras na filosofia de Wittgenstein.

Notas

1 O chamado “Paradoxo de Moore” foi meu tema de investigação na pesquisa de mestrado e de doutorado, esse sob orientação de Darlei Dall’Agnol..

2 Recentemente, interpretando o Da Certeza, Daniéle Moyal-Sharrock, em Understanding Wittgenstein’s On Certainty (New York: Palgrave Macmillan, 2007), discutindo a não-proposicionalidade de algumas proposições, faz exatamente essa distinção, entre dizer e falar, anteriormente apontada por Dall’Agnol.

3 Chamando a atenção para esse tipo de regra, Dall’Agnol parece abrir terreno à discussão posterior sobre a interpretação de se o ‘segundo’ Wittgenstein, das Investigações Filosóficas, é cognitivista ou não-cognivista no que diz respeito à ética, o que parece ser sugerido ao final do capítulo e ao final do livro com a proposta do cognitivismo prático, que mencionei acima. Tratar dessa questão com cuidado foge às pretensões de análise aqui. Essa menção, no entanto, é oportuna para se notar que a pesquisa de Dall’Agnol, apesar de tratar de seguir regras em outras obras de Wittgenstein que não nas Investigações, tem o propósito de compreender a filosofia de Wittgenstein como continuidade, discutindo criticamente os resultados das mudanças de perspectiva realizadas pelo autor até a sua morte em 1951, particularmente com reflexos sobre as questões envolvendo a moralidade.

4 Dall’Agnol apresenta o problema e, após, reconstrói a análise que o PM recebeu de Moore para contrastála com sua dissolução wittgensteiniana do PM, apresentada adiante (Cf. as páginas 153 – 160).

5 De acordo com Dall”Agnol, Wittgenstein “não recusaria completamente a definição tradicional de conhecimento” (p. 164), mas a estaria relacionando a um uso do verbo saber, que tem semelhanças de família com compreender.

6 E, temos de lembrar que uma pessoa pode duvidar de que saiba sobre p apenas ‘pensando’, e não asserindo p. Desse modo uma solução ao PM deve ser simultânea a um ‘pensamento’ de proposição Moore-paradoxal e sua respectiva asserção (e a pessoa deve saber as razões pelas quais seu ‘pensamento’ é incorreto).

7 Por isso, é duvidoso que possamos construir cenários em que asserções de sentenças Moore paradoxais possam ter sentido e não ser absurdas. Por exemplo, se digo ‘(Sei que) Minha tia faleceu e não acredito’, como afirma Dall’Agnol, inconformado com sua morte. Nesse caso, pois dificilmente estamos em posição de saber a correta intenção de falantes em asserções. O problema está na conjunção. Se eu tivesse dito ‘Minha tia faleceu. Não acredito’, certamente não haveria aí qualquer absurdidade.

Eduardo Ferreira das Neves Filho – Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected]

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Keynes: The return of the master – SKIDELSKY (NE-C)

SKIDELSKY, Robert. Keynes: The return of the master. Londres: Penguin Books, 2009. Resenha de:  FRACALANZA, Paulo Sérgio. As lições de Keynes. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.88, dez, 2010.

O título é auspicioso: o retorno do Mestre. O Mestre é John Maynard Keynes e Lord Skidelsky não oculta seu otimismo: para compreendermos as razões da grave crise econômica atual e, quem sabe, evitar uma sucessão de novas débâcles, é necessário reabilitar Keynes.

Muitos economistas não abraçarão o título provocativo, mas por diferentes razões. Alguns pretenderão, a exemplo de Gregory Mankiw, com indisfarçável temor, negar que o debate realmente importe. Talvez concedam em dizer que Keynes foi um atento observador dos eventos econômicos de seu tempo, mas pouco ou nada mais do que isso1. Outros, na trilha de Joseph Stiglitz, arvorandose como fiéis discípulos de Keynes, dirão sem pudores que ele pouco teria a dizer sobre a crise atual, uma vez que sua compreensão dos mercados financeiros era rudimentar2. Outros talvez, como Paul Krugman, mesmo admitindo alguma simpatia à recuperação das ideias de Keynes, tomarão precauções em rechaçar a apreciação inconveniente de Skidelsky de que a reflexão econômica tenha seguido um rumo absolutamente desacertado3.

Mas seguramente haverá economistas que se jubilarão com Skidelsky. Talvez se perguntem o porquê do retornode Keynes, uma vez que creem nunca ter abandonado seus ensinamentos. A questão é : quantos de nós estariam realmente dispostos a abraçar, para além dos estreitos limites das fronteiras do pensamento que a Economia se impôs, as perguntas que Keynes ousou fazer?

A provocação é bem vinda. RobertS kidelsky, nascido em 1939 em Harbin, na China, de pais súditos britânicos com ascendência russa, é um dos mais eminentes historiadores econômicos em atividade, atuando como professor emérito de Economia Política da Universidade de Warwick, na Inglaterra. Autor da mais prestigiosa biografia sobre Keynes, escrita em três caudalosos volumes, é referência incontornável para aqueles interessados no estudo do pensamento do grande economista de Cambridge4.

Em sua obra mais influente, A teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de 1936, Keynes lamentava que a Economia ocupasse papel de tamanha importância na organização da vida social. Ansiava pelo dia em que ela ocuparia seu devido lugar – no banco de trás – e não mais estivesse, como então sucedia, a guiar a carruagem da História. Para ele, mesmo os homens de negócios, que em sua empáfia se criam livres de qualquer influência intelectual, eram escravos de algum economista morto5.

A Teoria Geral marca o nascimento da macroeconomia, campo de especulação científica dedicado a interpretar as relações de agregados estatísticos como, entre outros, o volume de emprego, a composição da demanda efetiva e a taxa de juros, na tentativa de compreender o (mau) funcionamento do sistema econômico. Keynes pretendia tornar inteligíveis – no contexto da crise de 1929 e na contramão da doutrina hegemônica à época – as razões para o desemprego da força de trabalho e os remédios para debelar esse flagelo.

Naquele período, os alarmantes níveis de desemprego que se verificavam nos Estados Unidos e na Europa seguiamse a uma profunda crise creditícia e de desorganização da produção que combalira a confiança dos capitalistas. Assim como Karl Marx, Keynes compreendera que as assimetrias de poder eram constitutivas das relações sociais sob a égide do capital. Em face de conjunturas nada alentadoras e prognósticos sombrios, os detentores do capital simplesmente não desejavam contratar mais trabalhadores, por mais que houvesse muitos dispostos a oferecer seu trabalho por salários irrisórios. A natureza do desemprego era involuntária, clamava Keynes. Mais do que isso, Keynes asseverava que, a depender dos mecanismos de mercado, a economia poderia permanecer indefinidamente numa situação de desemprego de sua força de trabalho.

O termo involuntário não fora escolhido ao acaso: ao referirse assim ao fenômeno do desemprego, Keynes forçava a comparação com o desemprego voluntário da tradição dominante que o concebia como fruto de uma escolha racional – e maximizadora – de alguns trabalhadores que, em virtude de suas preferências individuais, se recusavam a aceitar os empregos disponíveis ao cotejar os salários que se ofereciam com o penoso esforço requerido no consumo de sua força de trabalho.

É possível imaginar o assombro daqueles familiarizados com as lidas do pensamento então hegemônico ao tomarem contato pela primeira vez com A Teoria Geral. Keynes planejara seu ataque em múltiplas frentes. Insistia sobre a importância de se compreender a economia como uma economia monetária da produção, na qual a moeda desempenha papel de suma importância e não apenas por consubstanciar a forma mais geral da riqueza, conferindo a seu detentor a possibilidade de comando sobre o trabalho alheio, mas fundamentalmente por representar em simultâneo os papéis – somente em aparência contraditórios – de refúgio contra a incerteza e de objeto de desejo compelindo à valorização do capital. Insistia sobre a importância das intervenções estatais a sustentar a demanda efetiva sempre que as decisões privadas de gasto se mostrassem insuficientes. Insistia sobre o vazio das proposições que prometiam a redenção no porvir, pois, segundo seu célebre adágio, “no longo prazo, todos estaremos mortos”. As heresias eram tantas e tão agudas que admitilas significaria comprometer irremediavelmente as fundações da tradição dominante.

Mas se esses fatos são bem conhecidos e se a importância de Keynes ao longo do século XX é incontroversa, também não é nada difícil imaginar o assombro daqueles não familiarizados com as práticas rudes de nossa lúgubre ciência ao tomarem contato com a moderna macroeconomia ensinada nas melhores escolas. E aqui nos referimos apenas à tradição dominante, ao assim intitulado mainstream.

Skidelsky, sem dispensar uma pitada de fina ironia, faz, no segundo e quinto capítulos de seu livro, uma competente descrição da história do pensamento e do estado atual da tradição dominante da macroeconomia. Com linguagem clara e acessível, convidanos a uma visita guiada aos principais conceitos da macroeconomia contemporânea e organiza uma clara demarcação entre o pensamento original de Keynes e as versões mais recentes da tradição dominante.

Como recurso, o autor retoma o debate sobre a posição dos economistas norteamericanos divididos entre freshwaters e saltwaters (literalmente, “de água doce” e “de água salgada”), respectivamente, os economistas das universidades da região dos Grandes Lagos (Chicago, entre outras) e os economistas das costas leste e oeste dos Estados Unidos (Berkeley, Harvard, MIT, entre outras).

De forma um pouco esquemática, os primeiros, que comporiam o grupo dos assim denominados economistas Novos Clássicos, atribuiriam as flutuações econômicas a mudanças no lado da oferta (choques tecnológicos, aumento do capital humano etc.) e afirmariam que o governo seria incapaz de alterar o nível de atividade econômica. Já os economistas saltwaters, representados pelos economistas Novos Keynesianos, dariam relevo ao papel da demanda na explicação do ritmo da atividade econômica e concederiam, não sem reticências, que o governo poderia ter um papel na atenuação dos ciclos de atividade6.

Independentemente das considerações que se possa fazer sobre a justeza dessa distinção, importa mesmo assinalar a apreciação mais geral de Skidelsky sobre o panorama atual da macroeconomia. Para ele, entre as posições de Novos Clássicos e Novos Keynesianos, de um ponto de vista essencialmente keynesiano, há muito mais semelhanças a unilas do que diferenças a separálas. Nesse sentido, ao esboçar em poucas linhas o recente programa de pesquisa da Nova Síntese Neoclássica, a reunir os esforços e os métodos de Novos Clássicos e Novos Keynesianos, Skidelsky sugere uma manifestação concreta dessa sua correta apreciação.

Contudo, ele talvez devesse ter poupado o leitor de alguns dispensáveis desvios no caminho que convida a percorrer: para os economistas a trilha é bem conhecida, mas muitos a considerarão rasa demais; para os não iniciados o percurso é pedregoso e não se chega a ver a paisagem. O risco, creio, é desorientar o leitor e induzilo a imaginar que a grave deficiência da macroeconomia moderna repousa na escolha equivocada das hipóteses e dos métodos de trabalho.

Melhor seria reforçar o que permanece o mais das vezes apenas subentendido: os autores do mainstream, Novos Clássicos ou Novos Keynesianos, compartilham de uma mesma visão de mundo. E essa visão diz respeito a uma crença particular na natureza do funcionamento do sistema capitalista. Creem que existem forças automáticas que (se destravadas) conduziriam a economia a uma situação de pleno emprego dos recursos. Acreditam que ofertantes e demandantes de mercadorias, inclusive da força de trabalho, se defrontariam no mercado como iguais. Compreendem a economia capitalista como uma economia de trocas (barter economy), em que ofertantes de variadas mercadorias se relacionam para a satisfação das necessidades de consumo. Nessa senda, encontramonos no paraíso hedonista.

Para melhor sugerir a influência das ideias de Keynes em seu tempo, Skidelsly procura então comparar os resultados econômicos de dois grandes períodos da história recente, mormente para os países desenvolvidos: aquele que se iniciou ao final da Segunda Grande Guerra e findou no início dos anos de 1970, conhecido como a golden age, e o período imediatamente subsequente que tem início com a referida crise e se encaminha até os dias de hoje. A estratégia consistiria em evidenciar que os melhores frutos colhidos nos anos dourados, quando comparados aos do período mais recente, se devem ao triunfo das políticas keynesianas no primeiro vis-à-vis a hegemonia das doutrinas neoliberais e não intervencionistas no segundo. No entanto, uma abordagem mais histórica teria sido mais convincente do que a ampla utilização de dados a que procedeu o autor. Ademais, a tarefa teria sido menos exigente, visto que os argumentos já estão todos lá perfilados: a ordem de Bretton Woods, a hegemonia benigna exercida pelos Estados Unidos, o objetivo do pleno emprego e a forte participação do Estado nos anos dourados. Em contraponto, a reafirmação da supremacia norteamericana, o desmonte da ordem internacional, o acirramento da concorrência com a emergência de novas potências, as políticas de desregulamentação dos mercados financeiros e as reformas liberalizantes nos anos do triunfo do Consenso de Washington.

Mas, sem dúvida, o grande trunfo de Skidelsky encontrase no interessante painel da vida e do pensamento de Keynes organizado ao longo dos capítulos 3 a 8. Como são várias as ideias instigantes – algumas incômodas, outras engenhosas, muitas provocativas e poucas absolutamente dispensáveis -, resgato algumas mais importantes.

Keynes beneficiouse dos estímulos e da imensa riqueza intelectual do meio em que vivia. A relação comunal com seus diletos amigos de Bloomsbury7, a intensa vida universitária em Cambridge, o contato com grandes pensadores de seu tempo – a exemplo de G. E. Moore e Sigmund Freud -, seu genuíno interesse pelas artes, suas habilidades como financista, sua crença na humanidade e em sua capacidade de persuasão, sua confiança de que as ideias corretas poderiam mudar o mundo e seu posicionamento apaixonado em todas as questões importantes de seu tempo ajudamnos a compreender a originalidade e as múltiplas facetas de seu pensamento. Nesse particular, Skidelsky esmerase, e seu texto é fluente e seguro.

Revisitando a vida de Keynes e a ousadia de seu pensamento não convencional, Skidelsky confessa uma mudança de sua perspectiva em relação a Keynes tal como se encontrava em sua aclamada biografia: “Eu o chamei de ‘economista pouco convencional’ . Mas ele não era, absolutamente, um economista”8.

Keynes formulara uma pergunta hoje completamente estranha à moderna reflexão econômica: afinal, qual o objetivo do capitalismo, essa forma de organização social evidentemente imperfeita?

Para o autor, o progresso tecnológico (e o crescimento econômico) não poderia ser considerado um fim em si mesmo. Recusava se a admitir que as realizações humanas pudessem se reduzir à métrica da acumulação de riquezas. Na sociedade que almejava, quando o problema econômico houvesse sido definitivamente superado, o “amor ao dinheiro” seria considerado uma patologia social e os acometidos dessa neurose, objetos de piedosa comiseração, deveriam ser recomendados aos especialistas de doenças mentais. Mas afinal qual era o problema econômico a ser superado? Em Possibilidades econômicas para nossos netos, de1930, Keynes esboçara os traços de seu projeto utópico. Em mais cem anos, caso se lograsse produzir uma expansão da atividade econômica às taxas que até então se verificavam, seriam reunidas, pela primeira vez, ascondições efetivas para que a humanidade pudesse superar o problema econômico, ou seja, libertarse da necessidade imperiosa do trabalho. No entanto, os obstáculos não eram de pequena monta: as guerras e a instabilidade social deveriam ser evitadas, o crescimento populacional necessitaria ser contido e a ciência precisaria ser dirigida para a finalidade do progresso social. Mas até que esse estado de coisas fosse alcançado os homens deveriam fingir acreditar que “fair is foul, and foul is fair”9 e muitos ainda deveriam se sacrificar no estouvado propósito de acumular riquezas.

Porém, como Skidelsky de forma arguta adverte, Keynes não ignorava outros óbices ainda maiores. A libertação do fardo do trabalho compulsório e a promessa de uma vida plena, sábia e boa exigiria que o “império da ganância” fosse rechaçado, uma vez que seus préstimos para alcançar a abundância não fossem mais necessários. No mesmo sentido, as necessidades dos homens pelos bens materiais não poderiam ser reconhecidas como ilimitadas e teriam de ser pautadas por uma concepção de suficiência para a vida boa.

Creio que essa advertência é mais do que atual e urge retomála. A Economia há tempos enveredou, e nesse particular comungam os economistas do mainstream e grande parte dos heterodoxos, numa linha irrefletida de que se há uma variável síntese que permite avaliar o sucesso ou insucesso de uma determinada sociedade, essa é o crescimento econômico. Retomamos, portanto, a questão formulada há pouco: se o crescimento é o meio para alcançar um determinado fim, que fim é esse?

Alguns bens treinados num utilitarismo vulgar poderão se contentar em responder que a satisfação das necessidades humanas é o objetivo da produção material, e quanto mais e melhores bens, maior o bemestar social e, em conseqüência, não custará muito acrescentar, maior a felicidade humana. Contra a objeção de que um sistema assim animado não conhecerá um fim, dirão que a natureza humana é feita desse material, que os homens são alimentados por necessidades ilimitadas e que se encontram permanentemente insatisfeitos e que não é por outra razão que o progresso nunca cessará.

Mas para Keynes a resposta era outra. Asseverara que o objetivo da vida humana apontava para a Ética. Nesse domínio bebera da fonte de G. E. Moore, que em 1902 publicara Principia Ethica, obra que exerceu um verdadeiro fascínio sobre Keynes. Moore identificava como questão ética primordial “o que é bom?” e sustentava que apenas com o concurso da resposta a essa questão, a dimensão moral que indagava sobre “como devemos nos comportar” poderia ser adequadamente respondida.

As coisas “boas em si mesmas” e que deveríamos procurar atingir são os estados da mente elevados. Estes poderiam ser alcançados no enlevo amoroso, na criação, na contemplação de obras artísticas e – uma adição pessoal de Keynes à lista de Moore – na busca do conhecimento. A associação entre o bem (goodness) e o prazer não poderia, porém, ser facilmente estabelecida, uma vez que estados d’alma elevados, a exemplo do arrebatamento amoroso, seriam simultaneamente fonte de prazer e dor.

Keynes não ignorava a miséria de muitos e a enorme injustiça do desemprego, reconhecendo que as condições para a consecução de seu ideal de vida plena só seriam alcançadas quando os requisitos de conforto material, de uma certa estabilidade política e da liberdade intelectual fossem contemplados. Mas se recusava a imaginar que a vida humana poderia se consumir de forma irrefletida e que os homens poderiam consagrar suas melhores energias e talentos na adoração do bezerro de ouro.

Nos dias de hoje, é cada vez mais aguda a consciência de que o sistema de relações sociais que forjamos e os impulsos de morte que ele abriga poderão comprometer irremediavelmente a possibilidade de nossos netos em herdarem uma Terra que lhes permita viver com dignidade. Sobejam razões para crermos que nunca, em termos de progresso material, estivemos tão perto da utopia keynesiana da abolição do fardo do trabalho. Contudo, em termos das aspirações dos homens, empenhados numa luta sem trégua em distinguirse de seus semelhantes com os signos conspícuos do consumo ostentatório, nunca estivemos dela tão longe. Tal contradição sugere que, antes do ponto final neste texto, se dê lugar a uma pergunta crucial: Não seria bem o caso de, pelas razões que realmente importam, retornar aos ensinamentos do Mestre?

Notas

1 MANKIW, Gregory, “Back in demand”. Wall Street Journal, 21/9/2010, em <http://online.wsj.com/article/NA_WSJ_PUB:SB10001424052970204518504574417810281734756.html> [Links].
2 STIGLITZ, Joseph. “The non-existent hand”. London Review of Books, 22/4/2010, em <http://www.lrb.co.uk/v32/n08/joseph-stiglitz/the-non-existent-hand> [Links].
3 KRUGMAN, Paul. “Keynes: The Return of the Master, by Robert Skidelsky”.The Observer, 30/8/2009, em <http://www.guardian.co.uk/books/2009/aug/30/keynes-return-master-robert-skidelsky> [Links].
4 SKIDELSKY, Robert. Keynes. Nova York: Penguin Books, 1994, 3 vols. (Vol. 1: Hopes betrayed: 1883-1920; Vol. 2: The economist as saviour: 1920-1937; Vol. 3: Fighting for Britain: 1937-1946). [Links] 5 KEYNES, J. M. A teoria geral do em prego, do juro e da moeda. São Paulo: Nova Cultural, 1985 [1936]. [Links] 6 Skidelsky omite o esclarecimento, talvez por recear controvérsias evitáveis, que esses termos haviam sido cunhados em 1976, por Robert Hall. Uma versão em pdf desse texto original mimeografado pode ser encontrada em <http://www.stanford.edu/~rehall/Notes%20Current%20State%20Empirical%201976.pdf>. Hall admitia que se a clivagem era bastante ilustrativa das posições do debate no campo da macroeconomia, na realidade havia um espectro mais contínuo de salinidade a separar os economistas.
7 Grupo de artistas, escritores e intelectuais britânicos do começo do século XX, que incluía, entre outros, os escritores Virginia Woolf e Lytton Strachey, o pintor e crítico de arte Roger Fry e o próprio Keynes.
8 SKIDELSKY, R. Keynes: the return of the master, op. cit., p. 59. [Links] 9 KEYNES, J. M. “Economic possibilities for our grandchildren”. In: Essays in persuasion. Nova York: Classic House Books, 2009 [1930]. [Links]

Paulo Sérgio Fracalanza – Professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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Contextos da justiça: Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo – FORS (NC-C)

FORST, Rainer. Contextos da justiça: Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo. Trad. Denilson Luis Werle. São Paulo: Boitempo, 2010. Resenha de: MELO, Rúrion. Automonia, justiça e democracia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.88, Dez, 2010.

Um dos traços mais característicos da “renovação” da teoria crítica hoje é o enfrentamento dessa tradição de pensamento com o problema da legitimidade e da dimensão normativa das instituições políticas1. Cada vez menos os temas considerados pelas teorias críticas da sociedade permitem que se conclua pela “impossibilidade da democracia”2, levando antes à formulação de novos diagnósticos vinculados a uma concepção de crítica social mais radicalmente política e pluralista. Quando Seyla Benhabib alerta que “a negligência quanto a uma tal teoria política e democrática é um dos principais pontos cegos da teoria crítica da Escola de Frankfurt”3 e Jean Cohen e Andrew Arato chamam atenção insistentemente para o fato de que “a teoria crítica não pode mais manter seus propósitos práticos sem uma teoria política”, uma vez que “a crítica da razão funcionalista precisa ser complementada por uma teoria da democracia”4, esses autores sintetizam uma mudança fundamental na relação entre teoria social e filosofia política partilhada por diversos autores explicitamente filiados à tradição de pensamento que, desde Theodor Adorno e Max Horkheimer, se tornou conhecida como teoria crítica da sociedade5. Essa mudança teórica no projeto original esteve orientada, em linhas gerais, à investigação das “bases normativas da teoria crítica”6, ao vínculo entre o “potencial radical da democracia” e o “legado da Escola de Frankfurt”7, à retradução do núcleo crítico-emancipatório no interior da “programática democrática”8.

Para entendermos melhor o que estaria em jogo nessa mudança de projeto teórico, podemos recorrer brevemente à caracterização do que Axel Honneth chamou de “fraqueza teórica” da primeira geração da teoria crítica, ou seja, àquela formulação ligada principalmente aos nomes de Horkheimer e Adorno. Embora ambos tivessem recusado a referência de Marx à categoria do “trabalho” como conceito determinante da análise crítica da sociedade e da respectiva orientação emancipatória, os principais representantes da primeira geração permaneceram fechados diante de “todas as tentativas de considerar o processo histórico de um ponto de vista outro que não o do desenvolvimento do trabalho social”9. Esse fechamento acabou levando à desconsideração da dimensão da ação social, na qual convicções morais e intuições político-normativas se constituem independentemente, e priorizou, na interpretação dos processos sociais, as funções de expansão e reprodução do trabalho social. Em suma, subsistiria um “reducionismo funcionalista”, já presente em Marx, responsável por restringir a história humana a uma concepção instrumental de ação. A segunda geração começou a questionar decisivamente os déficits teóricos nos fundamentos normativos da primeira teoria crítica, lançando mão, sobretudo, de outro tipo de ação social que pudesse ao menos ser concebido ao lado do trabalho, e assim abrir caminho à análise da integração social e da dimensão normativa da interação social.

Jürgen Habermas foi o autor dessa tradição que primeiro trouxe à consciência teórica o diagnóstico de que “se esgotou a utopia da sociedade do trabalho”10 e pensou explicitamente o projeto futuro da teoria crítica segundo a necessidade de “superar o paradigma produtivista, sem abrir mão das intenções do marxismo ocidental”11. Representante mais importante da segunda geração da teoria crítica, Habermas desenvolveu diagnósticos significativos sobre a esfera pública e temas da moral, do direito e da democracia, buscando eliminar o que entendeu ser o déficit nos fundamentos normativos da crítica social. Também Axel Honneth, não obstante procurasse superar vários aspectos da teoria habermasiana, seguiu explicitamente a crítica ao paradigma produtivista, estabelecendo, agora na terceira geração, uma rica articulação entre crítica e filosofia social. Sua teoria do reconhecimento pretende compreender as formas de reivindicação política assim como a natureza específica dos conflitos e das lutas existentes nas sociedades contemporâneas. Uma das preocupações centrais de seu principal livro,Luta por reconhecimento, consistiu em investigar a lógica dos conflitos sociais, insistindo na necessidade de apresentar a dinâmica de tais conflitos a partir de sua gramática moral implícita12.

A renovação representada pelas segunda e terceira gerações da teoria crítica implicou, portanto, a inclusão de categorias que permitissem explicar mais adequadamente as novas formas de luta política e de mobilização cultural que ampliaram os sentidos da emancipação e configuraram atualmente os dilemas e os desafios da democracia contemporânea. Abandonaram-se necessariamente as orientações emancipatórias presas ao paradigma produtivista e se estabeleceu um rico diálogo entre a crítica da sociedade e concepções normativas preocupadas com questões de justiça política e social, com a dinâmica política de esferas públicas autônomas, com a participação da sociedade civil e com as lutas por reconhecimento (em que estão envolvidos os dilemas criados por diferenças culturais, orientação sexual, gênero, raça etc.) , ou seja, âmbitos de conflitos sociais que requerem uma reflexão renovada sobre a moral, a política e o direito.

Essa rápida e esquemática referência à história da teoria crítica tem o intuito de posicionar o livro de Rainer Forst, Contextos da justiça, no interior dessa mesma tradição teórica. Podendo ser considerado membro de uma “quarta geração” da teoria crítica, Forst voltou-se essencialmente para as questões do pensamento político contemporâneo e foi responsável por uma rigorosa reconstrução de um dos mais importantes debates filosóficos da atualidade no campo das teorias normativas. Suas preocupações teóricas giram em torno da articulação entre crítica social e filosofia normativa, da reconstrução dos temas clássicos do pensamento político moderno e do enfrentamento dos dilemas contemporâneos ligados às questões de justiça, tolerância, cidadania e direitos humanos13. Esse rico estoque de problemas indica de certo modo que aquele ponto cego denunciado por muitos autores entre a filosofia política e a tradição da teoria crítica vem sendo superado desde a segunda geração14. O passo inicial mais significativo de Forst resultou no exaustivo estudo sobre a justiça política e social a partir de uma visão sistemática e crítica do conhecido debate entre liberais e comunitaristas.

Contextos da justiça, que acabada de ser publicado no Brasil em rigorosa tradução de Denilson Luis Werle, procura analisar criticamente as respostas oferecidas à questão da justificação das normas que tornam legítimas relações jurídicas, políticas e sociais no interior de uma comunidade política. Além de contribuir para o esclarecimento dos conceitos fundamentais das teorias da justiça, Forst pretende também superar a oposição consolidada entre liberalismo e comunitarismo, apresentando uma proposta de solução conceitual própria. Seguindo uma rígida oposição entre os dois polos que compõem o debate analisado, os liberais procuraram fundamentar moralmente uma teoria da justiça abstraindo os contextos sociais concretos e priorizando as liberdades individuais em face de concepções substantivas do bem. Os comunitaristas, por sua vez, criticaram essa tese liberal da prioridade do justo perante o bem e enfatizaram o enraizamento da justificação normativa de concepções de justiça em autocompreensões e tradições constitutivas das comunidades políticas, de modo que só poderiam ser considerados justos aqueles princípios que resultam de um determinado contexto comunitário, e somente ali podem pretender validade. Todas as teorias que sublinham a prioridade do justo diante do bem acabam se mostrando “indiferentes ao contexto”, ao passo que a teoria comunitarista reforça uma posição “obcecada pelo contexto” (p. 11). Forst, indo além dessa oposição, acredita ser necessário formular uma teoria crítica da justiça capaz de justificar o ancoramento dos princípios normativos nos valores, nas práticas e nas instituições da comunidade política, compatibilizando dessa maneira os aspectos universalistas com a reivindicação de validade daqueles princípios para a autocompreensão e instituições sociais específicas.

A solução conceitual de Forst para os dilemas criados no interior do debate sobre a justiça leva em consideração quatro “contextos de problemas teóricos” em que aspectos da justificação normativa oferecidos por liberais ou comunitaristas podem se mostrar mais ou menos adequados. O próprio conteúdo do livro, portanto, divide-se nesses quatro planos conceituais críticos. Primeiramente, abordam-se criticamente a constituição do self e os pressupostos de uma concepção atomista de pessoa, típicos da formulação liberal; em segundo lugar, Forst critica a neutralidade do direito diante de visões de mundo e concepções sobre a vida boa que caracteriza a tese liberal da prioridade do justo sobre o bem; em seguida, o texto apresenta uma análise crítica da aposta comunitarista na força eticamente integradora da comunidade política; em quarto lugar, por fim, analisa criticamente a teoria moral universalista e seu vínculo a contextos concretos de justificação. Em cada um desses planos se esclarecem as posições antagônicas de justificação da justiça, as quais permaneceriam, numa “perspectiva horizontal”, meramente excludentes.

Forst pretende mostrar a possibilidade de “superar” tais oposições tradicionais segundo uma “perspectiva vertical” a partir de sua tese dos “contextos da justiça”. Uma teoria crítica da justiça precisa antes considerar as necessidades que podem surgir no contexto de socialização dos indivíduos e serem justificadas publicamente em dimensões ao mesmo tempo diferenciadas e interrelacionadas. Argumentos universalistas, pretensões de neutralidade jurídica e dimensões axiológicas compõem os contextos de reconhecimento e de justificação pública nos âmbitos da moral, do direito, da ética e da política. “Eles formam”, comenta Forst,

[…] quatro “contextos” de reconhecimento recíproco – como pessoa ética, pessoa do direito, cidadão(ã ) com plenos direitos, pessoa moral – que correspondem a diferentes modos de justificação normativa de valores e de normas em diferentes “comunidades de justificação”. A análise do debate entre teorias deontológico-liberais “que se esquecem dos contextos” e teorias comunitaristas “obcecadas pelo contexto” levou, com isso, a uma diferenciação de quatro contextos normativos nos quais as pessoas estão “situadas” (p. 275).

Desse modo, aquelas clássicas oposições entre “eticidade” e “moralidade”, bem e justiça, são vinculadas a processos de justificação da normatividade em que formas de vida culturais e políticas e determinações substantivas da justiça encontram-se atreladas a direitos e procedimentos imparciais. “Portanto”, segue o autor, “princípios de justiça são aqueles que são justificados de modo universal e imparcial na medida em que correspondem, de maneira apropriada, aos interesses, necessidades e valores concretos daqueles atingidos por eles” (p. 276). Pretende-se assim evitar uma “cegueira” em face dos contextos, bem como apontar os limites das orientações contextualistas que desconhecem o núcleo universalista das reivindicações por justiça. A harmonização desses diferentes contextos requer uma teoria da justiça que possa reuni-los de um modo mais adequado.

A reconstrução do debate entre liberais e comunitaristas apresentada no livro evita, por conseguinte, a mera defesa de uma ou outra posição, privilegiando avaliá -los como abordagens parciais para o problema da justiça. Para que seja suficientemente abstrata e concreta ao mesmo tempo, uma teoria crítica da justiça assume o vínculo essencial entre pessoas e comunidades e parte do ancoramento dos princípios de justiça a toda comunidade política. A oposição normativa entre universalismo e contextualismo só pode ser superada se trouxermos para o centro da discussão a questão de quais conceitos de pessoa e comunidade estão em jogo. A solução conceitual de Forst complementa criticamente as proposições globais tradicionais ao distinguir quatro conceitos de pessoa (pessoa ética, pessoa de direito, cidadão e pessoa moral) e de comunidade (ética, jurídica, política e moral) que correspondem a quatro contextos normativos diferentes e entrelaçados de modo complexo:

A identidade ética das pessoas é reconhecida e protegida juridicamente numa sociedade e, na verdade, por meio do direito estatuído de modo político autônomo no interior de uma comunidade política de membros com plenos direitos – direito esse que possui um conteúdo moral em seu cerne, que respeita a integridade de pessoas morais (p. 276).

O propósito crítico da diferenciação e da articulação dos diversos contextos consiste menos na separação entre o plano ético, jurídico, político e moral, do que na possibilidade de “comprovar a compatibilidade dos direitos individuais com o bem da comunidade, da universalidade política com a diferença ética, do universalismo moral com o contextualismo”, permitindo desse modo “evitar oposições falsas” (p. 13).

Podemos chegar às diferenciações internas que compõem os contextos aludidos considerando as relações entre pessoa e comunidade. A teoria liberal tendeu a desvincular o indivíduo de seus contextos de socialização ao priorizar uma concepção abstrata de pessoa como portadora de direitos ou como pessoa moral. As críticas republicanas e comunitaristas mostraram, ao contrário, que toda pessoa se individualiza nas comunidades em que são integradas. Porém, não sabemos ainda a quais comunidades pertencem as pessoas e quais são as normas e os valores que as integram. Se para o liberal a justiça está fundada num conceito abstrato de pessoa de direito – como portadora de direitos subjetivos e como sujeito de direito -, para o defensor do contextualismo toda pessoa está integrada eticamente a uma determinada comunidade de valores. Embora Forst também não acredite ser necessário reduzir um âmbito ao outro, “verticalmente” é possível justapô -los de acordo com contextos de justificação diferentes e igualmente legítimos: enquanto considero a comunidade político-jurídica e sua integração normativa segundo uma concepção política e pública de justiça, compreendo os indivíduos como pessoas que portam direitos; já as comunidades éticas se integram por diferentes tipos de concepções do bem – e não com base na imagem abstrata e universal da pessoa de direito -, de modo que a pessoa ética se torna, dessa perspectiva, membro de determinadas comunidades com as quais a identidade do self está vinculada. As relações éticas (constituídas por visões de mundo e concepções de bem ) não substituem relações jurídicas (em que se trata de atentar para direitos e deveres que formam a estrutura de relações reguladas juridicamente). Como diz Forst, “uma coisa é reconhecer uma pessoa como igual portador de direitos; outra coisa é reconhecê -la em todas as suas qualidades” (p. 40). O direito igual justifica-se segundo normas e princípios que pretendem ser universalmente válidos sem que recorramos a concepções de bem e valores particulares. Não importa quais concepções éticas e valores estão em jogo, normas jurídicas (bem como normas morais) têm de valer “para todos”: no caso do direito, as normas jurídicas valem para todos os parceiros do direito considerados membros de uma comunidade jurídica; normas morais, por sua vez, valem para todas as pessoas morais consideradas membros da comunidade dos seres humanos. A validade de normas éticas, contudo, depende da identificação dos indivíduos com determinados valores que formam suas identidades do ponto de vista de sua história de vida.

Um dos principais conceitos utilizados por Forst nas quatro dimensões como mediação para redefinir os conceitos de pessoa de direito, cidadania ou de uma moral universalista em contextos intersubjetivos diferenciados é o de autonomia. “Segundo esse conceito”, afirma Forst,

[…] as pessoas como agentes são, no sentido prático, seres “autônomos” autodeterminantes quando agem de forma consciente e fundamentada. Como tais são responsáveis por suas ações: podem ser questionadas acerca das razões pelas quais agiram. Como pessoas responsáveis, são aquelas “que se justificam” e esperamos que tenham considerado suas razões para agir, sendo capazes de justificá -las. Nesse sentido, as pessoas autônomas são razoáveis em termos de razão prática: possuem razões para agir que podem ser justificadas para elas mesmas e comunicadas e defendidas diante de outras, de modo que essas razões […] possam ser compartilhadas (p. 305).

Contudo, também uma diferenciação nos “contextos da autonomia” poderá nos mostrar quais questões práticas e quais respostas autônomas podem se apoiar em razões capazes de ser publicamente reconhecidas. A “autonomia ética” está ligada à validade de valores éticos e à autorealização da pessoa; a “autonomia jurídica” é característica de pessoas de direito e é assegurada a todos os destinatários do direito; a “autonomia política” é exercida pelo cidadão considerado autor dos direitos; e a “autonomia moral” é pressuposta nas pessoas como autoras e destinatárias de normas morais. A justificação normativa exercida nos distintos contextos pode validar argumentos e princípios de justiça em referência à autorealização ética, à liberdade pessoal de ação, à autolegislação política ou à autodeterminação moral. Em tais contextos novamente a própria constituição do self (em que a pessoa ética é considerada membro de uma comunidade constitutiva da identidade) pode se distinguir da pessoa de direito (membro de uma comunidade de direito), bem como o cidadão (que pertence à comunidade política) desempenha um papel diferente daquele da pessoa moral (pertencente à comunidade moral de agentes moralmente autônomos). Liberais e comunitaristas não compreenderam justamente que nenhuma dessas concepções de autonomia pode pretender ser a única válida como base da justiça. Por essa razão, a tarefa da análise crítica é saber como integrá-las, compatibilizá-las e perceber quando entram em conflito “de modo que uma dimensão não seja sacrificada em nome das outras” (p. 306).

O livro não se limita à analise crítica dos argumentos normativos sobre a justiça. Há também um importante balanço sobre os princípios de legitimação do poder político em sociedades complexas e pluralistas. Forst amplia o quadro de discussão analisando princípios de justificação pública ao debater com as correntes deliberativas da democracia, com a crítica feminista do liberalismo, dilemas multiculturais e com a literatura sobre a sociedade civil. Sua intenção é pensar criticamente os pressupostos socioculturais das sociedades democráticas, ou seja, entender como os cidadãos se compreendem como membros de uma comunidade política e sob quais condições justificam publicamente normas que retiram sua legitimidade de discursos democráticos. A crítica de Forst implica pensar a relação entre cidadania e justiça social a partir de um ethos democrático constitutivo das práticas de justificação da normatividade sem cair, contudo, na oposição liberal/comunitarista. Mesmo que os próprios cidadãos precisem se compreender como participantes e responsáveis na regulação e na ação políticas, não são os valores éticos compartilhados que orientam legitimamente suas pretensões por reconhecimento e realização de direitos. Orientam-se antes pelo ideal de cidadania ativa, de modo que ethos da democracia não consiste senão na realização das dimensões da própria autonomia do cidadão.

Forst mantém, assim, uma atitude crítica diante das teorias normativas existentes. Na verdade, Contextos da justiça não pretende ir além dessa análise exaustiva das justificações normativas contidas nos discursos teóricos que compõem o amplo debate entre liberais e comunitaristas, ficando para seu outro livro a tarefa de compatibilizar uma reconstrução teórica com a dimensão histórica, como no caso, por exemplo, dos fenômenos da tolerância15. De todo modo, não há teoria crítica sem que se enfrente as teorias capazes de representar da melhor maneira os problemas de nossa época. Assim como fez Marx em seu tempo ao empreender uma “crítica da economia política”, a tarefa atual implica necessariamente uma crítica das mais importantes correntes teóricas vigentes – embora não mais da economia política, mas sim da filosofia política contemporânea com sua pauta de problemas e desafios ligados à moral, ao direito e à democracia.16 E para tanto, a análise crítica não oferece uma “nova” teoria da justiça, apenas acusa a parcialidade das oposições vigentes, reconstruindo seu sentido. Nessa relação com a filosofia política, a teoria crítica também não precisa abrir mão dos fundamentos normativos em que se apoiam tais teorias, bastando justificá -los de forma mais adequada em face dos complexos contextos da justiça.

Notas

1 Cf. NOBRE, M. “Teoria crítica hoje”. In: KEINERT, M. e outros (orgs.). Tensões e passagens: filosofia crítica e modernidade. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, pp. 265-83.
2 AVRITZER, L. “Teoria crítica e teoria democrática”. Novos Estudos Cebrap, nº 53, 1999, pp. 167-188. [Links] 3 BENHABIB, S. Critique, norm, and utopia: a study of the foundations of critical theory. Nova York: Columbia University Press, 1986, p. 347. [Links] 4 ARATO, A. eCohen, J. “Politicsand the reconstruction of the concept of civil society”. In: HONNETH, A. e outros (orgs.) .Zwischenbetrachtungen: Im Prozess der Aufklärung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1989, p. 493. [Links] 5 Cf. HONNETH, A. “Teoria crítica”. In: GIDDENS, A. e TURNER, J. (orgs.) . Teoria social hoje. São Paulo: Editora da Unesp, 1999, pp. 503-52. Ver também Nobre, M. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
6 BENHABIB, op. cit., p. ix. [Links] Ver também BAYNES, K.The normative grounds of social criticism: Kant, Rawls, Habermas. Nova York: Albany, 1991. [Links] 7 BOHMAN, J. Public deliberation: pluralism, complexity, and democracy. Massachussetts: MIT, 1996, p. 20. [Links] 8 WELLMER, A. “Bedeutet das Ende des’realenSozialismus’auchdasEnde des Marxschen Humanismus?”. In: Endspiele: Die unversöhnliche Moderne. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1993, p. 91. [Links] 9 HONNETH, op. cit., p. 517. [Links] 10 Cf. HABERMAS, J. “Volkssouveränität als Verfahren”. In:Faktizität und Geltung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1998, p. 602.
[11] Ibidem. “Ein Interview mit der New Left Review“. In: Die Neue Unübersichtlichkeit. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1985, p. 217.
12 Cf. HONNETH. A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.
13 Cf. FORST, R. Toleranz im Konflikt. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2003; Ibidem. “Os limites da tolerância”. Trad. Mauro Soares. Novos Estudos Cebrap, nº 84, 2009, pp. 15-29; Ibidem. Das Recht auf Rechtfertigung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2007; Forst e outros (org). Sozialphilosophie und Kritik. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2009. Ver também seu programa de pesquisa social desenvolvido ao lado de Klaus Günther, “Innenansichten: Über die Dynamik normativer Konflikte”. In: Forschung Frankfurt 2/2009. O subtítulo de seu próximo livro (no prelo) remete a uma junção explícita entre filosofia política e teoria crítica, a saber, “perspectivas de uma teoria crítica da política”. Cf. Forst. Kritik der Rechtfertigungsverhältnisse: Perspektiven einer kritischen Theorie der Politik. Frankfurt/M: Suhrkamp (no prelo).
14 Os limites existentes nessa “virada normativa” não foram desconsiderados mesmo por aqueles que se preocupam com uma renovação da tradição da teoria crítica. Cf. Honneth. “Das Gewebe der Gerechtigkeit. Über die Grenzen des zeitgenössischen Prozeduralismus”. In: Das Ich im Wir: Studien zur Anerkennungstheorie. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2010, pp. 51-77.
15 Cf. FORST, R. Toleranz im Konflikt, op. cit.
16 Cf. o programa de pesquisa apresentado em Forst e Günther, op. cit.

Rúrion Melo – Professor de Teoria Política do Departamento de Ciências Sociais da Unifesp e pesquisador do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap.

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A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno – SILVA (AF)

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Resenha de: KANGUSSU, Imaculada. Artefilosofia, Ouro Preto, n.9, out., 2010.

A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno, livro recém-lançado de Márcio Seligmann-Silva, chama imediatamente a atenção pela densidade do texto. O autor da obra apresentada como uma “publicação introdutória” (p.83), e com o desejo de servir “de incentivo para os leitores irem aos originais” (p.12), consegue condensar em poucas páginas, e em linguagem acessível a não especialistas, aspectos importantes do legado intelectual deixado pelos dois amigos, luminares da forma de pensamento conhecida como Teoria Crítica, a partir do conceito de atualidade. Através da apresentação de reflexões dos próprios filósofos em torno do necessário movimento de atualização, Benjamin e Adorno revelam-se, no correr do texto, como pensadores de problemas ainda atuais e como autores de reflexões que ainda podem auxiliar na percepção das realidades atuais.

Depois de uma breve introdução, os protagonistas são apresentados separadamente e em ordem cronológica: a primeira parte é dedicada a Benjamin, a segunda a Adorno. O modo de o autor enfocá-los também é distinto, mais amplo em Benjamin, mais pontual para Adorno. Na primeira parte, denominada simplesmente “Walter Benjamin”, mesmo confessadamente consciente do perigo existente na tentação de explicar as obras a partir da biografia do autor e com isso “cair no biografismo” (p.15), Seligmann-Silva assume o risco de, no seu texto, levar em frente, entrelaçados, o pensamento filosófico e a “memória de sua (dele, Benjamin, ik) trágica vida” (p.16). Ao adotar esse procedimento essencialmente benjaminiano, i.e, o de considerar a obra pari passu com a materialidade do contexto histórico de sua produção, o livro já diz a que veio, na medida em que pinça e dá a conhecer, condensados, detalhes da vida do protagonista potencialmente capazes de lançar novos focos de luz sobre seu pensamento. E se aceitarmos a ideia benjaminiana segundo a qual a repetição é a alma do jogar – ou da brincadeira, em alemão spielen nomeia os dois – e, mais ainda, de que “toda experiência mais profunda quer ser insaciavelmente, até o fim de todas as coisas, repetição e volta, restauração de uma protossituação da qual ela partiu” (BENJAMIN, Gesammelte Schriften III, p.131, citado na p.19), o autor realiza essa experiência anímica como convite ao jogo de levá-la adiante por meio da repetição. Como uma mônada, com mais ou menos ênfase, o texto reflete toda a vida do pensador alemão, do nascimento ao suicídio, e a incidência desta sobre a obra, e vice-versa. A escolha da amplitude leva à apresentação por meio de índices da enorme exuberância dos conceitos benjaminianos e movimenta uma massa de pensamentos sucintamente 214 Imaculada Kangussu apresentados. Corre com isso o perigo de que a intensidade das dobras e manobras presentes na formulação destes passe desapercebida aos neófitos diante da síntese tão bem construída a partir da relação vida e obra. Risco que, da minha perspectiva, vale a pena ser corrido na medida em que é compensado pelo volume de informação fornecido. Por outro lado, em quem encontra-se mais familiarizado/a com o filósofo, o livro provoca um turbilhão mental ao promover, com sua leitura, a rememoração dos percursos realizados até que sejam encontradas as formulações apresentadas. Com isso, o texto ganha uma força extra ao mover leitores e leitoras rumo à rememoração do que não está dito, e, vale lembrar, todo rememorar configura uma forma de atualização. Seja como apresentação, seja provocando rememorações, o livro atualiza a dimensão metafísica da linguagem salientada pelo assim chamado “jovem Benjamin”; a caracterização da crítica como médium da e de reflexão (Reflexionsmedium), de acordo com a tese fundamental de O conceito de crítica da arte no romantismo alemão (Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik); as articulações de uma teoria política, as ideias messiânicas, a percepção corpórea dos fenômenos e sobretudo o desdobramento da filosofia da linguagem, presentes nos textos dos anos 1920; a capacidade de pensar imageticamente revelada em Rua de mão única (Ein- bahnstrasse) e nos Diários de Moscou ; o entrelaçamento entre vida e obra sob a égide da filosofia, na Crônica Berlinense (Berliner Chronik) e em sua versão posterior, Infância berlinense por volta de 1900 (Berliner Kindheit um neunzehnhundert). Deslocando um pouco o termo, também é salientada a atualidade de certas passagens relativas às obras de arte, como acontece por exemplo na defesa da pertinência de uma teoria estética composta a partir “do índice, dos traços, rastros e marcas, em oposição à arte da narrativa totalizante, épica, metafórica e tradicional” (p. 41), percebida por Seligmann-Silva na descrição feita por Benjamin, em “O autor como produtor”, dos objetos dadá, capazes de produzir a percepção de que, devidamente emoldurado, “o menor fragmento autêntico da vida diária diz mais que a pintura”. Dialeticamente, revela-se também bastante atual a denúncia da transformação da “própria miséria em objeto de fruição”, encontrada no mesmo texto.

Em nossa época, povoada por excessos de dados e ausências de nexos, soa extremamente up to date o termo fantasmagoria, usado para nomear certas indistinções (frutos da impossibilidade de distinção) entre o real e o universo da fantasia. Seligmann-Silva observa que foi nos brinquedos e nas brincadeiras que Benjamin aprendeu pela primeira vez seu significado: “os brinquedos e as brincadeiras implicavam para ele (Benjamin, ik) uma libertação” (p. 78). Antes de passar para a segunda parte do livro, onde o autor discorre sobre Theodor W. Adorno, julgo – tendo em vista a analogia temática – valer a menção a um brevíssimo texto de Norbert Bolz, “Estéticas da Media”, composto em torno da questão relativa ao “custo de se manter Benjamin atual”. Bolz atualiza o pensamento deste ao salientar a verdade ainda presente na necessidade, reclamada por Benjamin, de se reformular, na teoria estética contemporânea, a distinção entre individual e coletivo, a partir do momento em que, na prática, organizar a percepção coletiva constitui a principal tarefa do cinema. O preço atribuído por Bolz à atualização de Benjamin consiste, portanto, no necessário abandono das categorias estéticas focadas nas relações entre a obra e o indivíduo, cujo conceito precisa acompanhar o deslizamento factual deste, rumo à sua dissolução nas amorfas massas urbanas. Parece não ter sido ainda levado às últimas consequências o fragmento (K 3, 3) das Passagens, onde se apresenta o filme como “desdobramento (resultado?) de todas as formas e percepção, tempo e ritmo que se encontram pré-formados nas máquinas atuais, de tal maneira que todos os problemas da arte atual só podem encontrar suas formulações definitivas na correlação com o cinema” (Der Film: Auswicklung (Auswirkung?) aller Anschauungsformen, Tempi und Rhyth- men, die in den heutigen Maschinen präformiert liegen, dergestalt dass alle Pro- bleme der heutigen Kunst ihre endgültige Formulierung nur im Zusammenhange des Films finden). Quando se vai, para além do conceito de obra de arte, em direção à dimensão estética em seu sentido original mais abrangente, pode-se perceber que a necessidade de atualização do pensamento filosófico relativo às transformações provocadas nos modos de percepção sensível pelo incessante processo de maquinização – incluindo nesse processo o próprio cinema – permanece viva. E lembro aqui o duplo significado de “atual” (duplicidade existente também no termo alemão Aktuell) que pode dizer respeito tanto a algo significativo no momento presente, quanto àquilo que é a realização de uma potência, do que se encontrava anteriormente em estado virtual.

Conforme já foi registrado, a segunda parte do livro, relativa à atualidade de Adorno, tem um foco mais fechado e a chave de leitura da filosofia adorniana é encontrada na teoria estética. Seligmann-Silva inicia seus comentários sublinhando o caráter assistemático do filósofo e o engano de se considerar sua recusa ao sistema como abandono dos conceitos. Na realidade, Adorno elege a forma ensaística como modo privilegiado para expressar campos de força onde as “partículas (efêmeras) do real” são organizadas a partir de conceitos dinâmicos, tendo em vista que, “em lugar da falsa definição, do artigo de dicionário, o pensamento que se deixa embalar pelo ritmo do ensaio permanece aberto, tenso” (p.85). Parece-me bem aguda, a esse respeito, a observação formulada por Alfred Whitehead, em Process and Reality, segundo a qual o conceito de “mundo real” é similar a “ontem” e “amanhã”: ele muda de sentido de acordo com o ponto de vista. Esse preâmbulo torna-se essencial por- que, conforme a citação de A Dialética do Esclarecimento, recolhida por Seligmann-Silva, “a história real (die reale Geschichte) se teceu a partir de um sofrimento real, que de modo algum diminui proporcionalmente ao crescimento dos meios para sua eliminação, a concretização desta perspectiva depende do conceito” (p.86). Em outras palavras, para Adorno, “crítica da sociedade é crítica do conhecimento, e vice-versa” (ibidem). Na segunda parte do livro, também se apresentam as relações entre vida e obra, através do entrelaçamento das duas esferas e ao mesmo tempo mantendo a distinção entre ambas, procedimento consoante ao proposto por Adorno para abordar a relação entre sujeito e objeto. Grande destaque é dado ao ponto de vista adorniano da “arte como expressão do sofrimento e memória da barbárie”, nome de uma das seções da obra. A arte aparece como potência capaz de fazer vir à tona o reprimido, o recalcado, e, a partir de certo momento, ao colocar em cena vidas danificadas pelos horrores da história, de constituir uma forma de “memória do sofrimento acumulado”. Segundo o filósofo citado, “os autênticos artistas do presente são aqueles em cujas obras ressoa o terror mais radi- cal” (“ Die authentischen Künstler der Gegenwart sind die, in deren Werken das Grauen nachzittert ”, p.97). Tal perspectiva implica ir além dos limites do trágico e do sublime assinalados por Schiller, dentro dos quais a dor e o sofrimento extremos não tinham lugar. Vemos no texto de Seligmann- Silva (p.104), como Adorno ultrapassa essa limitação e, no ensaio – de 1967 – “A arte é alegre?” (“ Ist die Kunst heiter? ”), critica a famosa frase de Schiller, escrita no fi nal da introdução de Wallenstein, “A vida é séria, a arte é alegre” (“ Ernst ist das Leben, heiter ist das Kunst ”), com o irônico comentário, segundo o qual “o burguês deseja que a arte seja voluptuosa e a vida ascética, o contrário seria melhor” (“ Der Bürger wünscht die Kunst üppig und das Leben asketisch; umgekehrt wäre es besser ”).

Na teoria estética adorniana pós-Auschwitz, a verdadeira arte é a expressão do indizível, aquela que tira da pressão o que em outra linguagem não encontraria som nem figura. Conforme recortado por Seligmann-Silva: “Não há quase outro lugar [senão na arte] em que o sofrimento encontre a sua própria voz” (“ kaum woanders [als in der Kunst] findet das Leiden noch seine eigene Stimme ”, p.107). O problema reside no fato de, por um lado, a obra testemunhar o irreconciliável, e, por outro, de tender à reconciliação, devido à linguagem própria da forma, que provoca prazer. Dor e sonho se acasalam tendo como pano de fundo uma espécie de anseio quimérico. Mesmo o radicalismo formal de Schonberg na canção “Sobrevivente de Varsóvia” (Überlebende von Warschau) também pode consolar. Se o movimento pode ser considerado traição do conteúdo através da forma, a aporia nesse caso não é o fim do caminho, ao contrário, pode ajudar a ir adiante porque expressa também o que ainda não encontrou reconciliação: a barbárie testemunhada e a outra esfera criada pelas obras, a qual, mesmo quando se trata de obras formalmente radicais, aponta para a reconciliação, em uma ambiguidade bastante condizente com a já famosa metáfora utilizada por Adorno da mensagem na garrafa. Depois de assinalar tais questões, entre outras, sumamente atuais, o livro sobre A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno termina lembrando que “o importante é percebermos o pólen ativo do pensa- mento de ambos. Eles possuem potencial para fertilizar muito em nosso presente” (p.126). Palavras que faço minhas.

Imaculada Kangussu – UFOP.

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Participatory Institutions in Democratic Brazil – AVRITZER (NE-C)

AVRITZER, Leonardo. Participatory Institutions in Democratic Brazil Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009. Resenha de: ROMÃO, Wagner de Melo. Entre a Sociedade Civil e a Sociedade Política. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.87, Jul, 2010.

Participatory institutions in democratic Brazil é a obra mais importante de Leonardo Avritzer desde a publicação de Democracy and the public space in Latin America1. O autor rediscute e amplia a análise sobre experiências de orçamento participativo (OP) nas cidades de Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo e também apresenta estudos sobre mais duas “instituições participativas” — os conselhos de saúde e os processos de formulação dos planos diretores urbanísticos nestas cidades, e também em Salvador.

Avritzer reelabora o que tem sido seu principal desafio teórico desde os anos de 1990: as aproximações entre sociedade civil e sociedade política, e a incorporação de práticas originárias da sociedade civil pelas instituições políticas, em novos “desenhos institucionais” participativos com poder de deliberação sobre políticas públicas. O autor propõe-se a desenvolver uma “teoria das instituições participativas” (p. 4) e reconhece que “os partidos políticos e a sociedade política permanecem pouco teorizados na maior parte da literatura sobre participação, por causa do caráter elitista da literatura ou das concepções anti-sistêmicas da teoria dos movimentos sociais”2. Isto seria uma lacuna na literatura, sobretudo no contexto brasileiro, “em que o Partido dos Trabalhadores (PT) mostrou o caminho ao introduzir arranjos participativos, a conexão entre partidos políticos e sociedade civil na implementação de modelos de participação vem a ser uma variável-chave — mas que não é esclarecida pela teoria” (p. 7). Assim, a principal diferença deste livro para seus trabalhos anteriores é a incorporação da dimensão político-partidária à análise.

Avritzer busca formular sua teoria sobre as instituições participativas relacionando-a com três elementos principais: a sociedade civil, a sociedade política e o desenho institucional3. Inicialmente, o autor retoma a tese já presente em seus trabalhos anteriores: as mudanças na sociedade civil brasileira — explicadas, sobretudo, pelo avanço do associativismo em grandes cidades como Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte a partir de meados dos anos de 1970 — teriam atuado fortemente para a democratização do país, em uma perspectiva autonomista ante o Estado autoritário, distinta de uma cultura política anterior, centrada na aproximação clientelista e subalterna ao aparelho estatal. Entretanto, o autor identifica algumas peculiaridades locais. Em Belo Horizonte e, principalmente, em Porto Alegre, indica maior autonomia em face do Estado e dos partidos políticos, na comparação com São Paulo e Salvador. Além disso, os movimentos sociais de Belo Horizonte e Porto Alegre seriam mais “generalistas” no que diz respeito ao acesso a bens públicos, enquanto os de São Paulo e Salvador teriam objetivos mais localizados — em torno da saúde e educação, em São Paulo, e do movimento cultural, em Salvador. Tais diferenças seriam fatores de maior ou menor sucesso na incorporação das “instituições participativas” ao sistema político formal.

Em seguida, o autor direciona suas observações às mudanças ocorridas na sociedade política brasileira e latino-americana nos anos de 1980 e 1990. É então que começa a ser incorporada à análise a dimensão partidária, pouco explorada nos textos anteriores em virtude da avaliação sobre a centralidade da sociedade civil nos processos de democratização no Brasil e na América Latina, e também pela visão de que o Estado seria refratário aos impulsos democratizantes advindos da esfera societária. Neste livro, ao contrário, Avritzer enfatiza o modo como a sociedade política, os partidos políticos de esquerda e, especificamente, o Partido dos Trabalhadores teriam atuado para a formalização do que chama de “instituições participativas”, incorporando demandas sobre participação presentes em suas origens “externas” às instituições políticas formais:

A sociedade política, no interior das instituições participativas, relaciona concepções de participação originárias dos atores da sociedade civil. Nesse sentido, reforça concepções gerais de participação que estão na raiz da formação dos partidos políticos de massas e de esquerda. […] O PT, no Brasil, desempenha exatamente este papel de relacionar ideias de participação presentes em suas origens com atores da sociedade civil que demandam participação. Na maior parte dos casos de participação analisados neste livro, a iniciativa foi tomada por atores da sociedade política (p. 10).

Esta nova demarcação teórica, dada pela incorporação dos partidos políticos à análise, dá-se de modo bastante específico:

Afirmo que a distinção entre partidos de massa e partidos eleitorais ainda é válida. Além disso, argumento que o lado identitário da formação do partido continua a ser relevante no debate sobre partidos políticos de massa. Demonstro que um partido de massas com ligações externas ao sistema político é o veículo ideal para trazer demandas participativas ao Estado (p. 13).

Assim, o modo pelo qual Avritzer incorpora a sociedade política na análise se dá pelo viés da sociedade civil, uma vez que o PT é visto como um partido de origem nela e portador de suas demandas participativas. As mudanças na sociedade política — em suma, o aparecimento do PT — são derivadas das mudanças ocorridas na sociedade civil: o PT, herdeiro direto do associativismo revigorado nos anos de 1970 e 1980, teria atuado como cabeça de ponte da participação popular no sistema político, facilitando a inserção de práticas democratizantes da sociedade civil no Estado.

Dessa forma, assim como no caso da sociedade civil, a caracterização do PT elaborada por Avritzer se dá na chave da autonomia: “o projeto político do PT nasce das demandas por autonomia em relação ao Estado feitas pelo novo sindicalismo e pela Igreja Católica” (p. 47). No caso do “novo sindicalismo”, tratar-se-ia de autonomia diante da tutela do controle do Estado sobre as organizações sindicais. No caso da Igreja Católica, Avritzer indica que “autonomia significou a habilidade dos atores sociais de demandar bens públicos — terra, serviços sociais, saúde, ou melhorias urbanas, como pavimentação ou saneamento — independentemente do Estado” (p. 47)4. Ao “novo sindicalismo” e à Igreja Católica, o autor agrega o que chama de new left, parcela da esquerda que critica os comunistas, sem que se demore em investigar suas características e o modo como teria se agregado às duas outras “forças de coalizão”.

Além disso, também como um componente identitário do PT, figuram a crítica ao clientelismo e a adoção da democracia participativa. Estes fatores teriam contribuído para que o PT tivesse inovado institucionalmente ao introduzir formas de participação no orçamento, na saúde e na política urbana.

É a partir desta caracterização do papel do PT na sustentação das “instituições participativas” que o autor introduz o que parece ser o principal — embora modesto — ganho analítico de Participatory institutions in democratic Brazil. Avritzer argumenta que, para que sejam investigadas as causas dos sucessos e dos fracassos das políticas participativas das diversas administrações petistas, devem ser conhecidas as seções locais do PT, sobretudo, quanto à relação entre identidade e estratégia no nível local. E avalia que o PT, como todo partido político de esquerda e de massas de perfil social-democrata, teria passado pelo dilema de manter sua identidade sociopolítica, construída sobre o princípio da autonomia dos movimentos sociais dos quais seria originário, e ao mesmo tempo tornar-se competitivo no sistema político — a dimensão estratégica. As variações desses dois pólos (identidade e estratégia) deveriam ser consideradas no âmbito local (municipal e/ou estadual). Deste conjunto de fatores originou-se maior ou menor “vontade política” da seção local do PT e de seus governos municipais para com as “instituições participativas” (p. 50ss).

Cabe no momento indicar o terceiro elemento analítico utilizado por Avritzer no livro. Ele propõe um olhar sobre as “mudanças no desenho institucional” (pp. 62-80), apresentando um “modelo dinâmico e interativo de desenho participativo”:

O modelo dinâmico e interativo também compreende que o sucesso do desenho participativo não é causado pelo desenho em si; antes, cada sucesso é o resultado não antecipado de interações entre atores da sociedade política e da sociedade civil que levam ao desmantelamento das velhas regras e fixam as novas (p. 64).

Este é fundamento do movimento teórico pelo qual o autor incorpora a sociedade política como um ator propositivo de instituições participativas, e não apenas resistente a elas. A partir da premissa do “desenho institucional e interativo”, são apresentadas três possibilidades de instituições participativas — o orçamento participativo, os conselhos de saúde e os processos de aprovação dos planos diretores municipais. Com base nelas, o autor constrói tipos ideais de desenho institucional, respectivamente os chamados bottom-up designs (desenhos “de baixo para cima”), os power-sharing designs (desenhos de compartilhamento de poder) e os ratification designs (desenhos de ratificação). Esses modelos terão maior ou menor possibilidade de sucesso de acordo com o modo em que se dá o encontro entre sociedade civil e sociedade política no contexto local. Assim, por meio da análise sobre como se comporta cada design em cada uma das quatro cidades estudadas, o autor pretende construir quadros comparativos que o levem a uma “teoria das instituições participativas”.

O livro denota um relativo deslocamento nas teses anteriores de Avritzer, sobretudo quanto ao orçamento participativo. De fato, era insustentável a pouca importância teórica dada ao contexto político-partidário das localidades, sobretudo aquele relativo aos posicionamentos do PT local e mesmo às disputas no interior do partido. Embora o tema não estivesse totalmente ausente em seus textos anteriores, o autor não havia ainda tratado do papel central dos governos — e dos partidos que os sustentam — na proposição e no controle dos processos de orçamento participativo. Ou seja, não havia ainda estabelecido como preocupação teórica a natureza das relações entre os partidos políticos e a sociedade civil que ajudam a explicar a configuração das instâncias participativas, considerando a propensão do PT local a estimular e fortalecer as instituições participativas. Avritzer pouco se debruçara sobre o problema dos padrões de comportamento e composição local dos partidos que ajudam a explicar as variações de “vontade política” nas várias experiências de orçamento participativo nos governos petistas ou não-petistas.

Este passo analítico teve que ser dado principalmente pelo relativo fracasso da experiência do OP de São Paulo. Anteriormente saudado como “potencializador da dinâmica participativa na cidade”5— a postura adotada pelo autor com relação a esse caso se torna mais crítica neste livro. Assim, a incorporação de São Paulo ao seu rol de cidades estudadas (em textos anteriores ele se respaldava nas experiências “positivas” de Porto Alegre e Belo Horizonte6) — traz a necessidade de explicar por que, em uma cidade com movimentos sociais tradicionalmente vigorosos, a experiência de OP não teria sido satisfatória na capital paulista.

Os oito anos de malufismo (1992-2000) entre a primeira e a segunda administração petista em São Paulo são indicados como perniciosos para a estruturação de instituições participativas na cidade. Isto teria se dado não só em relação ao OP, mas também aos conselhos de saúde e à elaboração de seu plano diretor urbanístico. Entretanto, o que é central como opção analítica é a verificação das divisões internas no PT paulistano sobre as prioridades dadas à participação popular, já presentes no governo de Luiza Erundina e acentuadas no governo de Marta Suplicy.

É fundamental ao argumento de Avritzer indicar o PT como um partido pró-participação. Os casos em que isso não se configura são ora explicados pelas fissuras internas ao partido — entre setores mais ou menos afeitos às instituições participativas —, ora indicados como “concessões” ao sistema político formal para que o partido não “perca votos”, como na justificativa pela “opção” do governo de Marta Suplicy em não privilegiar o OP como política de gestão, pela necessidade eleitoral que o teria levado a realizar acordos com a direita malufista na Câmara de Vereadores (p. 113).

Para Avritzer, quando há harmonia intrapartidária nas seções locais do PT, as chances de que o OP vingue são maiores. Este argumento vale tanto para o caso negativo — São Paulo —, em que não teria havido acordo no interior do partido sobre a dimensão a ser dada às políticas participativas, como para o caso positivo — Porto Alegre —, em que teria havido um “pacto” entre as principais facções para que as disputas internas não atrapalhassem o projeto político maior na cidade:

Em Porto Alegre, Olívio Dutra tomou posse com o apoio de todos os grupos internos ao PT, liderando um pacto segundo o qual cada facção local do PT iria indicar o prefeito nas eleições subsequentes. Tarso Genro seguiu Dutra, e Pont seguiu Genro, mostrando como este pacto no âmbito das lideranças produziu uma durável hegemonia do PT na cidade (p. 58).

Afirmações de tal natureza indicam os limites da análise de Avritzer e demonstram as insuficiências da compreensão apresentada pelo autor quanto aos padrões internos da competição político-partidária. É sabido que as disputas entre as forças políticas internas do PT de Porto Alegre — e gaúcho de maneira geral — nos anos de 1990 talvez tenham sido ainda mais conflagradas do que as do PT paulistano. Segundo Filomena7, de 1993 a 1999, estabeleceu-se uma aliança entre as tendências Articulação de Esquerda e Democracia Socialista (DS), adversárias do PT Amplo (grupo liderado por Tarso Genro). Tanto é que, ao contrário do que aponta Avritzer, em 1996 houve prévias entre Raul Pont (DS) e José Fortunati (PT Amplo) para a escolha do candidato a prefeito, vencidas pelo primeiro. Fortunati, então, torna-se vice de Pont. Já em 2000, mesmo com a vigência da possibilidade da reeleição, as novas prévias envolvem Pont, Fortunati e Genro, que as venceu. Estas situações e os muitos casos de desfiliações de figuras locais proeminentes — como o próprio Fortunati e, antes dele, Antonio Hohlfeldt, que fora o primeiro vereador do partido em Porto Alegre, eleito em 19828— indicam que o ambiente interno do PT gaúcho pouco diferia do habitual em outras seções do partido. Ou seja, as disputas por indicações a cargos majoritários deram-se em geral na base do voto e da quantidade de delegados que cada candidato ou facção conseguia arregimentar. Tal aritmética, da mesma forma, era a base para a nomeação de mais ou menos correligionários aos cargos no governo ou no partido9. O prestigiado OP porto-alegrense, sem dúvida, tornou-se também um anexo a esta disputa, pois se tornou um espaço político estratégico de fortalecimento dos grupos internos10.

É também interessante verificar como Avritzer trata de um caso negativo de orçamento participativo, o de São Paulo na gestão de Marta Suplicy (PT). Para o autor, a explicação para o fracasso se deve aos seguintes fatores, combinados: 1) o núcleo de assessores mais próximos de Suplicy seria cético em relação à participação, e teria deixado o comando do OP aos setores esquerdistas do PT na capital paulista, com pouco poder político no interior do partido e da gestão; 2) a opção de governabilidade executada pelo governo fora a incorporação de setores conservadores e malufistas à maioria governista, sobretudo por meio das nomeações de subprefeitos. Isto teria dificultado o OP em subprefeituras dominadas por membros de partidos não comprometidos com a participação.

Embora certamente tais fatores possam explicar parcialmente a pouca relevância do OP na elaboração do orçamento e na priorização de políticas públicas na cidade de São Paulo, não explicam o fato de o OP de São Paulo ter apresentado, nos quatro anos em que esteve em vigor, um crescente aumento na participação, que variou crescentemente de 34 mil a 82 mil pessoas, entre 2001 e 2004 (p. 101).

Em outros trabalhos, relativos aos casos de Porto Alegre e Belo Horizonte, Avritzer vinculou a participação à credibilidade do processo perante a população. Em suma, as regras do orçamento participativo seriam efetivas e as deliberações quanto à priorização de obras e serviços seriam cumpridas pelos governos11. No caso de Porto Alegre, o autor liga a baixa participação em algumas regiões com “menor tradição associativa” a dúvidas sobre a capacidade do processo em promover a execução de obras públicas. Sugere, então, que a existência anterior de práticas de participação da sociedade civil predetermina a efetividade do orçamento participativo. No caso de Belo Horizonte, os altos e baixos níveis de participação que se apresentam ano após ano são ligados também a dúvidas dos participantes quanto à efetividade e à continuidade do orçamento participativo. Em seu estudo sobre esta cidade, o autor relaciona tais dúvidas com a incerteza sobre se o candidato do PT ganharia as eleições em 1996 e se, depois, o prefeito do PSB daria a mesma prioridade ao OP12. Todas essas elucubrações, de fraca consistência empírica, servem ao autor para o reforço de suas premissas sobre a capacidade da população em participar de “modo racional”.

Em São Paulo, mesmo considerando que o OP “sempre levantou fortes dúvidas sobre o quão deliberativas seriam suas decisões” (p. 100), os números oficiais utilizados pelo autor demonstram que houve sempre um acréscimo dos níveis de participação, mesmo considerando que o OP paulistano teria privilegiado os setores mais organizados da população13 (p. 102), em tese, os mais esclarecidos sobre eventuais manipulações da prefeitura e/ou sua incapacidade em entregar as obras prometidas.

Tais inconsistências analíticas sobre a participação no OP e a limitação em se considerar os partidos políticos e governos apenas com relação à “vontade política” para se implementar ou não propostas participativas fazem com que o livro pouco avance na análise sobre o que realmente pauta a dinâmica política das experiências de OP e, de resto, das “instituições participativas”. A incorporação da sociedade política em sua argumentação é restringida por seu arcabouço teórico anterior, vinculado ao protagonismo da sociedade civil na proposição de processos participativos. Esta visão permanece em Participatory institutions in democratic Brazil, impedindo-o de avançar significativamente na incorporação à análise das dinâmicas próprias da sociedade política.

Artigos e livros publicados ao longo desta década14 têm contribuído para que se forme a seguinte tese: as “instituições participativas” são freqüentadas principalmente por agentes (indivíduos e grupos) situados nas franjas da “sociedade política”, em torno (ou mesmo no interior) dos partidos políticos. Esta visão é reforçada à medida que se sobe na escala de proximidade com a sociedade política, ou seja, no caso das experiências de orçamento participativo, de maneira crescente desde as reuniões de bairro até os “conselhos do orçamento participativo”, que deliberam sobre a proposta orçamentária a ser apresentada à Câmara de Vereadores e têm maior capacidade institucional de interagir com o poder municipal. A proximidade com as esferas estatais invariavelmente é utilizada pelos conselheiros para um melhor posicionamento pessoal (ou de grupo) no interior da dinâmica político-partidária-eleitoral de cada bairro e da cidade.

Diante disso, é preciso que o referencial analítico sobre os processos participativos induzidos pelos poderes públicos seja remodelado. Deve-se caracterizar, afinal, quem acorre aos conselhos e, mais do que qualificar e mensurar a relação dos conselheiros com organizações da sociedade civil, verificar qual o nível de relação destes com a sociedade política, tanto nas instituições (governos, partidos), como nos processos típicos das disputas realizadas na sociedade política, sobretudo as campanhas eleitorais. Afinal, quem é a “sociedade civil” que participa dessas experiências? E em que medida seus “representantes” podem ser considerados como tal, uma vez que, numa visão mais acurada, mantêm vínculos tão fortes com a sociedade política?

Este veio de análise não poderia ser trilhado por Avritzer, pois põe à prova suas teses originais sobre uma “sociedade civil” que demandaria espaços de participação e atuaria neles de maneira autônoma pela democratização do Estado. O argumento do livro, de que “o elemento analítico relevante é como sociedade civil e sociedade política interagem” (p. 165), mantém intacto o espírito de seus textos desde A moralidade da democracia15. É notável como, em Participatory institutions in democratic Brazil— embora avance na observação do contexto local das relações internas dos governos e partidos —, sociedade civil e sociedade política permanecem como elementos estanques. Pouco se diz sobre o quanto a dimensão substantiva da sociedade civil — tal como conceituada por Avritzer —, em vez de se afirmar, pode ser diminuída nos orçamentos participativos e nas outras instituições políticas.

Notas

1 Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2002. [Links] 2 Todas as passagens do livro citadas foram traduzidas pelo autor.
3 Provavelmente, esta incorporação da sociedade política como um componente analítico no mesmo nível da sociedade civil tenha se devido, de um lado, a outros trabalhos sobre o OP que enfatizaram a centralidade das iniciativas partidárias para o sucesso (ou fracasso) de inúmeras experiências. De outro lado, Avritzer passa a reconhecer a multiplicidade de situações relativas à “vontade política” com relação ao OP no interior mesmo do Partido dos Trabalhadores e outros partidos de esquerda.
4 É interessante perceber como o autor, assim, vincula diretamente os movimentos sociais que demandam políticas públicas de todas as ordens à ação estrita da Igreja Católica.
5 AVRITZER, Leonardo, RECAMÁN, Marisol e Venturi, Gustavo. “O associativismo na cidade de São Paulo”. In: AVRITZER, L. (org.). A participação em São Paulo. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, pp. 11-57. [Links] 6 AVRITZER. “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”. In: DAGNINO, Evelina (org.).Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 17-45; [Links] Ibidem, “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO, Z. (orgs.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2003, pp. 13-60. [Links] 7 FILOMENA, César L. O agonismo nas relações sociais do partido, dos espaços públicos da sociedade civil e do sistema administrativo estatal: a experiência da Administração Popular em Porto Alegre. Porto Alegre: dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, 2006. [Links] 8 Antonio Hohlfeldt retira-se do PT em 1993, filiando-se ao PSDB, e José Fortunati, em 2001, filiando-se ao PDT. Ambos continuaram como figuras de proa na política no Rio Grande do Sul, sendo que Hohlfeldt foi vice-governador do estado (no governo de Germano Rigotto — PMDB) e José Fortunati é, atualmente, o prefeito de Porto Alegre (beneficiado pela renúncia de José Fogaça — PMDB).
9 O que não quer dizer que tenha sido o único critério para nomeações.
[10] BAIERLE, Sergio. “OP ao termidor?”. In: VERLE, João e BRUNET, Luciano (orgs.). Construindo um mundo novo: avaliação da experiência do orçamento participativo em Porto Alegre — Brasil. Porto Alegre: Guayí, 2002, p. 132-64. [Links] Cf. Filomena, op. cit.
11 Cf. AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit.; “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”, op. cit.; “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”, op. cit.
12 AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit., pp. 152-3.
13 Segundo survey utilizado como referência por Avritzer, em 2003, 69% dos participantes do OP de São Paulo pertenceriam a associações voluntárias.
14 NAVARRO, Zander. “Orçamento participativo de Porto Alegre (1989-2002): um conciso comentário crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO op. cit., pp. 89-128; [Links] Wampler, Brian. “Instituições, associações e interesses no orçamento participativo de São Paulo”. In: AVRITZER (org.). A participação em São Paulo, op. cit., pp. 371-407; [Links] GURZA LAVALLE, Adrian, Houtzager, Peter e Achrya, Arnab. “Lugares e atores da democracia: arranjos institucionais participativos e sociedade civil em São Paulo”. In: COELHO, Vera Schattan e NOBRE, Marcos (orgs.). Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 343-67; [Links] Baiocchi, Gianpaolo. Militants and citizens: the politics of participatory democracy in Porto Alegre. Stanford-CA: Stanford University Press, 2005; [Links] COELHO, Vera Schattan e FAVARETO, Arilson. “Dilemas da participação e desenvolvimento territorial”. In: Democracia, sociedade civil e participação. Chapecó: Argos, 2007, pp. 97-126; [Links] WAMPLER, Brian. Participatory budgeting in Brazil: contestation, cooperation, and accountability. University Park, PA: The Pennsylvania State University Press, 2007. [Links] 15 AVRITZER. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática. São Paulo/Belo Horizonte: Perspectiva/Editora da UFMG, 1996. [Links]

Wagner de Melo Romão – Doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo.

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Die Deutung der Welt. Jörg Salaquardas schriften zu Arthur Schopenhauer – BROESE; KOSSLER et al (C-FA)er

Die Deutung der Welt. Jörg Salaquardas schriften zu Arthur Schopenhauer. Editado por Konstantin Broese, Matthias Kossler e Barbara Salaquarda.Würzburg: Königshausen & Neumann 2007. Resenha de JUNIOR, Oswaldo Giacoia. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.16, Jun./Dez., 2010.

A Interpretação do Mundo. Escritos de Jörg Salaquarda sobre Arthur Schopenhauer, editado por Konstantin Broese, Matthias Kossler e Barbara Salaquarda reúne textos esparsamente publicados por Jörg Salaquarda ao longo de sua vida, dedicados ao estudo aprofundado da obra de Arthur Schopenhauer, tanto de um ponto de vista imanente ao sistema de filosofia do autor de O Mundo como Vontade e Representação, quanto numa abordagem que relaciona seus escritos, seja com a tradição da história da filosofia ocidental – aquela de que ele próprio é herdeiro, mas também aquela que sua obra preconiza e que recebe o potente influxo de seu pensamento –, seja com outros campos do saber, seja, enfim, sob a ótica da atualidade e relevância de sua contribuição para a reflexão sobre as questões fundamentais da filosofia, as de hoje e as de sempre, sobre a responsabilidade da filosofia e de seus representantes quanto à situação espiritual e política de seu próprio tempo.

O concernimento fundamental dos editores, assim como o princípio da divisão do trabalho são colocados em destaque logo nas páginas iniciais do livro: “Com a edição de seus escritos referentes à obra de Arthur Schopenhauer, assumimos os próprios planos de Jörg Salaquarda. Na situação dada, escolhemos – seguindo a idéia e o conceito de Konstantin Broese – um modo de procedimento segundo o qual Konstantin Broese e Barbara Salaquarda retrabalharam e redigiram cuidadosamente os textos publicados, enquanto Matthias Kossler fez uma introdução a esses textos e empreendeu uma ordenação crítica dos mesmos na discussão atual sobre Schopenhauer.”

Procedendo de conformidade com esse programa, os editores coletaram textos pertencentes a momentos diversos da produção bibliográfica de Salaquarda, alguns deles de acesso muito difícil até então, interconectando-os num todo orgânico, sistematicamente ordenado, de acordo com a temática a que foram dedicados.

Daí resulta um livro dividido em quatro partes: a primeira reúne ensaios que são comentários e análises internas do conjunto da obra de Schopenhauer; o primeiro deles reproduz a introdução ao volume organizado por Salaquarda para a coleção Wege der Forschung (Caminhos da Pesquisa), dedicado à filosofia de Schopenhauer. O segundo é uma apresentação panorâmica do sistema schopenhaueriano, abrangendo a teoria do conhecimento, a metafísica (ou filosofia da natureza), a estética e a ética, num compreensivo plano de conjunto, que em momento algum cede à tentação da simplificação ou superficialidade, senão que, pelo contrário, alia o rigor crítico-filológico à ousadia de certas hipóteses hermenêuticas extremamente refinadas – como, por exemplo, a tese da ruptura entre a ética e a santidade (ascese), que assume o risco de contrapor-se à interpretação dominante, de acordo com a qual a vida ética constitui uma espécie de etapa no árduo caminho da negação ascética da vontade de viver.

A segunda parte é dedicada aos escritos de Schopenhauer sobre Teologia e Religião e à discussão empreendida pelo filósofo de Frankfurt com esses domínios da cultura espiritual; essa parte inclui também textos que, além de ocupar-se com a ácida crítica da religião e da teologia por Schopenhauer, cotejam essa crítica seja com variantes da hermenêutica do fenômeno religioso, seja com o pensamento de Karl Jaspers a respeito de filosofia, teologia e religião.

A terceira parte é inteiramente dedicada a trabalhos de Salaquarda tendo por objeto a ética de Schopenhauer, nos quais a relação com a filosofia prática de Kant, com o debate contemporâneo a respeito das dificuldades e impasses nas tentativas de fundamentação de projetos éticos, a pergunta sobre a liberdade, a responsabilidade, as diversas tentativas de impugnar a possibilidade de formulação, com sentido, de juízos sobre o valor moral das ações, constituem o elemento dominante.

A quarta parte se ocupa do campo temático no qual a genialidade de Jörg Salaquarda se atesta em toda sua plenitude: a relação problemática entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche.

Com efeito, Salaquarda talvez seja mais conhecido, na cena mundial da filosofia contemporânea, como um dos mais competentes especialistas na obra de Nietzsche.

Colaborador e ex-assistente de Wolfgang Muller-Lauter, co-editor dos Nietzsche-Studien (Estudos Nietzsche) durante muitos anos, um dos principais responsáveis pela concepção e implementação da criteriosa série de publicações, hoje mundialmente célebre: Monographien zur Nietzsche-Forschung (Monografias da Pesquisa-Nietzsche) (cujo editor é o famoso Walter de Gruyter), destacado representante da escola de intérpretes responsáveis pela consolidação dos padrões histórico-crítico-filológicos que, no horizonte intelectual inaugurado pela edição histórico-crítica dos escritos éditos e inéditos de Nietzsche por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, determinam hoje os rumos mais significativos da pesquisa internacional sobre o pensamento de Nietzsche, Jörg Salaquarda é autor de trabalhos de inexcedível elevação teórica e penetração hermenêutica, cujo arco de abrangência se amplia nessa coletânea para incluir o tenso e ambivalente relacionamento entre Nietzsche e seu amado-odiado mestre Schopenhauer.

A leitura dessa quarta parte nos proporciona a compreensão, em toda sua extensão e profundidade, da influência de Schopenhauer sobre Nietzsche, da autêntica prefiguração, pelo primeiro, do ataque disruptivo à metafísica, empreendido pelo segundo, mas também a potência de radicalização do gênio nietzschiano, a inflexão decisiva que o leva a apartar-se do caminho ascético e metafisicamente soteriológico trilhado pelo pensador do ‘sistema único’, com seu recurso à compaixão como único e verdadeiro fundamento de toda moralidade, seu apelo à negação da vontade, do sofrimento e do mundo como caminho da redenção – uma postura existencial e uma interpretação global da existência e de seu valor que é transfigurada por Nietzsche em dionisíaca afirmação incondicional da vida, do tempo, da finitude e da morte – no percurso de seu ‘terceiro caminho’, que pode também ser enunciado com a frase provocativa: ‘eu sou total e completamente corpo, e nada além disso’.

A quinta parte, por fim, é composta pelas recensões por Jörg Salaquarda de livros como o de Friedhelm Decher: Wille zum Leben – Wille zur Macht. Eine Untersuchung zu Schopenhauer und Nietzsche ( Vontade de Vida – Vontade de Poder. Uma Investigação sobre Schopenhauer e Nietzsche) ; de Alfred Schmidt: Idee und Weltwille. Schopenhauer als Kritiker Hegels ( Idéia e Vontade do Mundo. Schopenhauer como Crítico de Hegel) ; e do livro de Matthias Kossler: Substantielles Wissen und Subjetives Handeln, dargestellt in einem Vergleich von Hegel und Schopenhauer ( Saber Substancial e Agir Subjetivo numa Comparação entre Hegel e Schopenhauer). Essa derradeira parte da coletânea mostra um Salaquarda igualmente partícipe da discussão crítica acerca da relação entre Schopenhauer e o idealismo alemão, enfrentando, sob a ótica da resenha, o labiríntico percurso no qual se desenrola a discussão sobre a verdade a respeito da famigerada relação entre Schopenhauer e Hegel, detratado pelo primeiro como representante par excellence do filisteísmo próprio à filosofia universitária alemã.

Jörg Salaquarda, como filósofo e como homem, foi um dos seres humanos mais íntegros e magnânimos que conheci. Aqueles que já tiveram ocasião de entrar em contacto com seus textos, certamente fizeram também a inigualável experiência de aprendiza do com um pensador fecundo, com um mestre prenhe daquela rara virtude dadivosa que, com um profundo sentido de respeito pela individualidade de cada um, consegue a proeza de ser terno e generoso, com o rigor e a disciplina indispensáveis ao trabalho filosófico sério e comprometido.

Para todos os que o conhecem, mas também para quem somente agora entra em contacto com o maravilhoso universo intelectual de Salaquarda, essa coletânea é de um valor verdadeiramente inestimável. Num tempo em que também no Brasil o interesse pela obra de Schopenhauer e de Nietzsche revela um incremento efetivamente considerável, sob a forma de estudos especializados que se situam nos mesmos patamares de excelência do trabalho internacional de pesquisa tendo por objeto esses dois máximos representantes das modernas filosofias da vontade, a publicação de. A Interpretação do Mundo. Escritos de Jörg Salaquarda sobre Arthur Schopenhauer constitui um marco de importância fundamental.

Seria indubitavelmente de bom alvitre a iniciativa de traduzila para nosso idioma, em edição crítica que fizesse jus à grandiosidade do original. A iniciativa viria certamente ao encontro da demanda de um público leitor interessado não apenas em filosofia da melhor qualidade, mas também em teologia, ciências da religião, estética e ciências humanas em geral.

Oswaldo Giacoia Junior – Departamento de FilosofiaIFCH-Unicamp.

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Deleuze, a arte e a filosofia – MACHADO (AF)

MACHADO, Roberto. Deleuze,  a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: PACHECO, Fernando Tôrres. Artefilosofia, Ouro Preto, n.8, abr., 2010.

Lançado no segundo semestre de 2009, Deleuze, a arte e a filosofia consiste em uma revisão ampliada do livro Deleuze e a filosofia (Graal, 1990). No mais recente, Roberto Machado procura explicitar os ca- minhos percorridos pelo filósofo Gilles Deleuze no seu esforço para afirmar o pensamento da diferença contra o pensamento representativo. Para tanto, fez-se necessário demonstrar como essa afirmação perpassa por agenciamentos com interlocutores tanto da própria filosofia quanto de outras maneiras de pensar, como as artes. Deleuze, ao travar acordos e distanciamentos com esses interlocutores, revolve seus conceitos e/ou sensações buscando elevar as suas relações em prol do exercício construtivista característico de seu pensamento. A via proposta pelo autor centra-se principalmente sobre as leituras das obras da década de 60 – em especial Diferença e Repetição – partindo para Foucault e terminando sua análise nos livros e escritos sobre literatura, pintura e cinema. Roberto Machado investiga como o tema da diferença é suscitado tomando como ponto de partida o texto “Platão e o simulacro”, em que Deleuze discorre sobre o método de divisão platônico. Tal texto pretende demonstrar como Platão privilegia a representação em detrimento da diferença ao adotar um método de divisão na sua teoria das idéias, em que há uma eliminação sistemática das cópias que não possuem os seus respectivos correspondentes no mundo ide- al. Dessa maneira, Platão elimina da perspectiva filosófica o simulacro, prevalecendo somente as cópias que mantêm correlação intrínseca com a idéia originária. Contra essa perspectiva excludente das diferenças e contra o ponto de vista ascensional platônico, Deleuze alia- se à perspectiva nietzscheana, esta que se posiciona de maneira cética ao pensamento identitário e universalista. Deleuze revisita o filósofo alemão e adota as noções de eterno retorno e vontade de potência como orientações do pensamento que, em relação, são capazes de afirmar a diferença sem subordiná-la à identidade. O ponto determinante do livro está na leitura deleuziana de Kant, em que podemos perceber que a relação do filósofo francês com o criador da filosofia crítica não se configura por tanta animosidade como é comum ser dito. Dentre as inovações conceituais kantianas, Deleuze aponta como fator positivo a inserção da forma do tempo no cogito, gerando uma cisão no sujeito, o je transcendental e o moi empírico. Deleuze é instigado pela caracterização temporal atribuída por Kant em sua filosofia, a qual possibilita a forma diferencial cingida do sujeito, ainda que este mesmo sujeito seja reconciliado posteriormente pela identidade sintética e pela moralidade da razão prática. Em contrapartida, o filósofo francês vai questionar o acordo das faculdades kantianas inserindo a idéia de “gênese” no senso comum. Para Deleuze, Kant não abre mão da noção do comum acordo entre as faculdades, que configuraria um dos postulados da filosofia da representação. Ao contrário, Kant multiplicaria tal noção. Dessa maneira, o filósofo francês demonstrará que existe um “acordo discordante” entre as faculdades encontradas na Crítica do Juízo, em que “no caso do sublime, o desacordo entre imaginação e a razão é o princípio genético do acordo das faculdades”. Ao contrário da idéia da filosofia da representação em que as faculdades convergem para a recognição do objeto, Deleuze propõe três faculdades (sensibilidade, memória e pensamento) autônomas: a cada uma delas um objeto próprio é apresentado, “só apreende o que a concerne exclusivamente, diferencialmente”.

A intensidade é aquilo que força a ser sentido, é a razão suficiente do fenômeno, dá o limite daquilo que é sentido. O objeto da memória (memória transcendental) é a forma pura do tempo, a coisa esquecida, o ser em si do passado que força a lembrança. Já o pensamento opera sobre um impensável que força o pensamento a pensar. Assim, Deleuze aponta que a relação entre as faculdades é do tipo de uma violência discordante que força o pensamento e que as idéias são uma multiplicidade. O capítulo sobre Foucault é apresentado pelo autor como referência a uma continuidade temática de Deleuze em relação aos escritos da década de 60, o que o faz afirmar não haver uma ruptura a partir do “Anti-Édipo”. Nesse capítulo, ao demonstrar o procedi- mento deleuziano de repetir o pensamento de outrem com o intuito de criar torções, o autor adota também a perspectiva de colagem, contrapondo a própria leitura à de Deleuze e demonstrando o funcionamento de conceitos como poder e saber segundo a perspectiva de cada um. Na parte do livro reservada ao pensamento deleuziano em conexão com interlocutores não-filosóficos, Roberto Machado demonstrará como o filósofo francês capta potências de conceitos oriundos de sensações literárias, pictóricas e cinematográficas. Com Proust, Deleuze irá demonstrar o papel da boa interpretação como forma de alcançar a essência: perfeita unidade entre signo e sentido. Continuando entre os literatos, o filósofo demonstrará a importância da linguagem e do estilo e apontará para o papel da sintaxe como constructo da diferença. Para Deleuze, a sintaxe estabelece o que ele chamará de uma “língua estrangeira” dentro da própria língua, o desvario da língua materna. Alguns autores como Melville conseguem, através do uso sintático da linguagem, proporcionar uma desterritorialização da língua, produzindo um devir-outro da língua que fuja dos padrões gramaticais, do establishment canonizado. Esse procedimento de criação de uma nova linguagem procura estabelecer uma conexão com o de-fora “(…) que consiste em visões e audições capazes de revelar o que há de vida nas coisas ao capturar as forças e a intensidade”. Com Francis Bacon, Deleuze demonstrará como o pintor, ao adotar procedimentos de desfiguração e isolamento da Figura, se caracteriza como sendo o artista a expressar as forças, a prevalência das forças sobre as formas.

Para introduzir “Imagem-movimento” (cinema clássico), Machado demonstra a distinção feita por Deleuze entre movimento reproduzido e movimento apresentado para localizar a leitura de Bergson sobre o cinema e, ao invés de situá-lo como algoz da sétima arte, insere sua filosofia mais ainda no audiovisual. “Imagem-tempo” (cinema moderno) caracteriza-se para Roberto Machado como o livro de cinema em que Deleuze pôde estabelecer a sua filosofia da diferença. Com o advento do neo-realismo, o filósofo francês enxerga a tomada do pensamento pelo cinema: ele sai do cinema de ação e passa a ser um cinema visionário, “um exercício transcendental da faculdade de sentir que suspende o reconhecimento sensório-motor da coisa, ou a percepção de clichês, como é a percepção comum, proporcionando um conhecimento e uma ação revolucionários” (p.273).

Deleuze, a arte e a filosofia reforça a hipótese do autor de que a filosofia de Deleuze é uma filosofia sistemática, mas uma sistematização que se dá por articulações e agenciamentos de multiplicidades conceituais. Como bem lembrou Machado ao comparar a filosofia deleuziana ao “Samba de uma nota só” de Tom Jobim: “outras notas vão entrar, mas a base é uma só.”

Fernando Tôrres Pacheco-Mestrando em Estética e Filosofia da Arte/ IFAC/ UFOP.

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Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil – KOWARICK (NE-C)

KOWARICK, Lúcio. Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo: Editora 34, 2009. Resenha de: MOYA,Maria Encarnación. Trajetórias e transições da questão social no brasil urbano. Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.86, Mar 2010.

Na esteira da crise dos Estados de Bem-estar Social que seguiu às transformações econômicas orientadas pelo paradigma do neoliberalismo, a problemática da pobreza e das desigualdades ressurgiu como questão central em diversos países, com destaque para sua produção e reprodução no mundo urbano. Desemprego e precarização do trabalho, concentração espacial da pobreza, além da violência presente nesses espaços passaram a ocupar lugar central na agenda de governos, nas ações de organizações civis e, inevitavelmente, no campo de investigação das ciências sociais.

Em face das vertiginosas mudanças sociais, econômicas e político-institucionais em curso, e tendo por cenário dessas mudanças a cidade de São Paulo, Viver em risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil, do sociólogo e cientista político Lúcio Kowarick revela-se uma obra ímpar ao situar o leitor nas trajetórias e transições da problemática da pobreza e das desigualdades no Brasil urbano. Ou, nos termos do próprio autor, nos debates e embates em torno da questão socialque se configura em nossa atualidade urbana e que denomina vulnerabilidade socioeconômica e civil. Afilia-se, assim, à acepção conferida pelo sociólogo francês Robert Castel, para quem:

A “questão social” é uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade (o que em termos políticos se chama nação, para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência1.

Integrando história, sociologia e etnografia, Viver em risco oferece ao leitor uma profunda interpretação dos desafios enfrentados pela cidadania na sociedade brasileira. Desafios que dizem respeito às dificuldades históricas de expansão dos direitos, mas que hoje também se associam a restrições e a processos de destituição, particularmente dos direitos civis e sociais, no bojo das transformações em curso. Se na concepção moderna da cidadania, direitos civis, políticos e sociais são prerrogativas básicas para garantir a integração e a participação plenas numa comunidade nacional, promovendo em alguma medida maior eqüidade, Kowarick questiona a própria capacidade do Estado brasileiro de garantir a integridade física dos cidadãos, sobretudo daqueles que habitam os lugares onde se concentra a pobreza. O livro é resultado de ampla investigação que contou com a participação de graduandos e pós-graduandos da Universidade de São Paulo.

Desde os anos de 1970, Lúcio Kowarick é um dos mais reconhecidos especialistas nos estudos urbanos no Brasil e uma referência central no debate sobre pauperismo e desigualdades nas sociedades do “capitalismo periférico”. Em livros já clássicos como Capitalismo e marginalidade na América Latina (1975), Crescimento e pobreza (1975),A espoliação urbana(1979) , Kowarick desenvolveu conceitos influentes, como espoliação urbana, no interior de um quadro interpretativo que explicava o pauperismo e as desigualdades no mundo urbano como a “somatória de extorsões” resultante de processos econômicos e políticos. Essa noção, e o quadro interpretativo correspondente, foram revistos e atualizados ante as mudanças na realidade social, política e econômica brasileira,a emergência de novos atores e as próprias transformações no campo teórico e analítico das ciências sociais2.

A noção de vulnerabilidade socioeconômica e civil insere-se nesse contínuo processo de reatualização do pensamento do autor, construída a partir do diálogo com a literatura nacional e internacional, mas sobretudo a partir da análise de múltiplos dados quantitativos e do material qualitativo proveniente de pesquisa em profundidade realizada em bairros populares da cidade de São Paulo. O ensaio fotográfico de Antonio Saggese leva o leitor a um encontro sensível com as formas de moradia tipicamente associadas à pobreza, como também, hoje, à violência – cortiços das áreas centrais, loteamentos nas periferias e favelas -, revelando a precariedade que caracteriza para muitos o viver na cidade.

Viver em risco não se confunde com o “estado da arte” das discussões sobre pobreza e desigualdades em diversos países ou mesmo no Brasil, mas traz uma construção conceitual e interpretativa na qual, mediante a estratégia analítica dos “olhares cruzados”, o autor contrapõe lugares, instituições, representações e conflitos, de modo a indagar e delinear os contornos de nossa questão social. O leitor é agraciado com um relato histórico, sempre politicamente posicionado, de representações e práticas acerca da pobreza e das desigualdades, num momento em que essa problemática volta a ser central.

O livro é estruturado em duas partes. A primeira, “Olhares cruzados: Estados Unidos, França e Brasil”, é eminentemente teórica e inicia o percurso do autor no “campo teórico de investigação que diz respeito à vulnerabilidade socioeconômica” (p. 19), expondo em um primeiro momento as formas em que a questão social aparece nas sociedades norte-americana e francesa (cap. 1), para a seguir reconstruir essa problemática à luz da especificidade das questões que afligem a sociedade brasileira (cap. 2). Na segunda parte, “Sobre a vulnerabilidade em bairros populares: sociologia, história e etnografia”, o foco recai sobre os lugares e modos de morar e viver dos mais pobres na cidade de São Paulo e na violência que, nas últimas décadas, se concentrou nesses locais. O autor realiza uma reconstrução histórica e uma descrição detalhada dos três padrões que são tradicionalmente as alternativas de moradia dos mais pobres: o cortiço (cap. 3), a casa própria autoconstruída em loteamentos na periferia (cap. 4) e a favela (cap. 5). Os temas da habitação e da violência se entrecruzam ao final (cap. 6) com o objetivo de sintetizar a hipótese anunciada ao início do livro e que se afigura como a questão social enfrentada hoje pela sociedade brasileira:

[…] a violência, nos anos recentes, e de forma crescente, tornou-se um elemento estruturador da vida das pessoas,pois,não raras vezes, constitui fator de migração de um local para outro na escolha do local de moradia, além do cuidado em tomar medidas de segurança que minimizem os riscos de sofrer atos violentos (p. 20).

A questão social não se dissocia das formas históricas que a cidadania adquiriu em distintos contextos nacionais. Por essa razão, o papel desempenhado pelo Estado é central. Esse é o fulcro do capítulo 1, “A Questão da pobreza e da marginalização na sociedade americana e francesa”, no qual o autor contrapõe as trajetórias da questão social e seus dilemas nos Estados Unidos e na França. Como mostra, ao sofrerem os recentes impactos das transformações econômicas globais, ambos os países desenvolveram diferentes respostas político-institucionais, “em função das especificidades próprias de cada ambiente sócio-político nacional” (p. 29).

No caso estadunidense, a herança do racismo e a situação dos afro-americanos sempre ocuparam lugar central no debate público, nas ações governamentais e nas organizações civis, assim como na agenda da investigação das ciências sociais. Nos anos de 1960,no bojo das lutas anti-raciais, o dilema norte-americano desembocaria na lei dos direitos civis (1964) e em medidas de políticas de proteção social, no âmbito da hegemonia da visão liberal – o que significa uma visão progressista naquele país – num momento em que a presença do Estado e de políticas públicas que combatam a pobreza eram valorizadas e implementadas no interior da chamada War on Poverty. Na esteira da crise econômica que caracteriza os anos de 1970, o foco da atenção pública recai sobre os comportamentos “desviantes” da população afrodescendente empobrecida e concentrada nos guetos, designada como underclass [subclasse]. É o momento em que a balança política começa a pender para a direita.

Na obra que será referencial para o pensamento conservador, Losing ground, de Charles Murray, as políticas públicas de proteção social alavancadas e ampliadas nos anos de 1960, em especial o Aid to Families with Dependent Children (AFDC), são atacadas como causa de uma “cultura da dependência” – comportamentos opostos ao da sociedade mainstream, orientada pelos valores individualistas do “trabalho árduo, honestidade e responsabilidade pessoal”3. Kowarick lembra que apesar da dinamização do debate público e acadêmico a partir da publicação de The truly disadvantaged, obra do sociólogo William Julius Wilson que focaliza as conseqüências das mudanças macroeconômicas responsáveis pela maior concentração do desemprego entre os moradores dos guetos, a trajetória das políticas de proteção social nos Estados Unidos torna-se mais conservadora.

Com a substituição do AFDC pelo Personal Responsability and Work Opportunity Reconciliation Act (Prowora), o acesso ao benefício assistencial torna-se mais restrito e condicionado a contrapartidas por parte do indivíduo, como ter um trabalho. O objetivo, de matiz conservador, é combater o que se designa então como welfare dependency, isto é, tornar-se dependente dos serviços sociais. O autor conclui, assim, que a essência do debate nos Estados Unidos é “culpar ou não culpar a vítima” no interior de um processo de destituição progressiva de direitos sociais.

Na França, inversamente, a tradição republicana e jacobina que impregna as instituições francesas confere centralidade à ação do Estado no combate à pobreza e às desigualdades, independentemente da posição ocupada pelos diversos atores no espectro político. Kowarick retoma os percursos da questão social nesse país desde o pós-guerra, e principalmente as respostas institucionais aos efeitos da precarização econômica e social que, na década de 1980, atingem, sobretudo, os trabalhadores com baixas qualificações (franceses ou imigrantes) e os jovens das banlieues– termo próximo a “periferias” -, e, nos anos de 1990, também os trabalhadores mais qualificados. Os “bairros difíceis”, onde se concentram desemprego e atos violentos,tornam-se foco de diversas políticas públicas. Ao longo desses anos, multiplicam-se as ações governamentais e são criadas instituições como o Ministère de La Ville (1989), que coordena ações e reformas em âmbitos como educação, emprego e melhorias urbanas. Em 1991, o termo “exclusão social” aparece no interior do aparelho de Estado, e a “coesão social” é erigida como meta a ser atingida. Na França, não é a responsabilização do indivíduo que está em jogo,e o retrato francês parece menos desesperador quando comparado à situação estadunidense.

No campo das ciências sociais na França são múltiplas as noções desenvolvidas para apreender os processos de destituição em cur-so: “desqualificação social” (Serge Paugam), “desinserção” (Gaujelac), “desfiliação” (Castel). Lúcio Kowarick, no entanto, detém-se no conceito de desfiliação de Robert Castel ao considerar a obra deste autor como a de”maiorenvergadura histórica e teórica” (p.56):”Desfiliaçãosignifica perda de raízes sociais e econômicas e situa-se no universo semântico dos que foram desligados, desatados, desamarrados, transformados em sobrantes, em inúteis, desabilitados socialmente” (p.57).

O modelo formal desenvolvido por Castel é constituído por dois eixos – um econômico e outro social -,onde ganham centralidade os processos que levam à destituição do trabalho seguro e da participação em relações sólidas, que podem levar o indivíduo a transitar por quatro “zonas”: integração, vulnerabilidade social, assistência e desfiliação.

O contraste entre a forma como se configura a questão social nos dois países dá ensejo a uma observação crucial do autor:a questão social da atualidade nos países centrais pode ser balizada por processos mais ou menos intensos de desenraizamento que se associam ao papel do Estado na garantia de direitos de cidadania, o que se configura historicamente no interior de tensões e conflitos, segundo as especificidades políticas de cada contexto nacional.

No capítulo 2, “Sobre a vulnerabilidade no Brasil urbano”, o autor problematiza o caso brasileiro a partir de um denso ensaio acerca dos dilemas e dos bloqueios envolvidos na expansão dos direitos de cidadania no país, o que a seu ver representa o âmago de nossa questão social hoje. Se ao longo dos anos de 1980 e 1990 Kowarick avalia que houve a consolidação do sistema político democrático, isso teria ocorrido paralelamente à manutenção de um déficit em relação aos direitos sociais, econômicos e civis. O país viu crescer nas últimas décadas a vulnerabilidade socioeconômica em virtude do crescimento do desemprego e da expansão de formas precárias de trabalho, somados a um sistema público de proteção desde sempre restrito e incompleto. A vulnerabilidade civil perpetua-se graças à crescente incapacidade do Estado de controlar a violência da polícia e dos bandidos, que afeta, principalmente, os moradores dos bairros populares mais pobres.

Kowarick introduz a discussão do conceito de desfiliação à luz dessa problemática, mas não sem antes revisitar o que talvez possa ser considerado a mais importante tradição teórica e política desenvolvida no âmbito latino-americano: as teorias da dependência – elaboradas no marco da teoria marxista das classes sociais -, desenvolvidas num intenso debate intelectual-acadêmico acerca das possibilidades ou não de desenvolvimento das sociedades no interior do capitalismo.

De forma similar aos debates que hoje se centram na exclusão social, a noção de marginalidade social foi utilizada nesse âmbito para problematizar os processos de (des)inserção econômica dos contingentes populacionais de origem rural que, nos anos de 1960 e 1970, migravam para as cidades. Definida por Kowarick à época como formas de inserção marginal e intermitente no mundo do trabalho urbano, baseada na (super) exploração (Marginalidade na América Latina, 1975), a este processo o autor associou o que denominou como espoliação urbana: “ausência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que,conjuntamente com o acesso à terra,se mostram socialmente necessários à reprodução dos trabalhadores”4.

Não por acaso, o autor sugere paralelos entre a lógica do mercado de trabalho explicitada naquele contexto e as formas que este assume hoje, desta vez associadas à reestruturação econômica que deu origem a múltiplas formas de trabalho precário – em alguns casos conectadas a cadeias produtivas dinamizadas por alta tecnologia. Por outro lado, em se tratando do acesso à terra e à moradia na cidade, o autor destaca o crescimento das formas precárias de moradia, especialmente as favelas.

Tais questões são analisadas no livro por meio do conceito de desfiliação. Kowarick adverte, porém, que o uso dessa noção para problematizar a questão social brasileira contemporânea não diz respeito à crise da sociedade salarial, como na França, mas a “um vasto processo de desenraizamento do mundo do trabalho formal,na medida em que para muitos ele tornou-se informal, instável e aleatório” (p. 86). Não obstante, Kowarick considera o conceito mais adequado para pensar as conjunturas presentes, marcadas por processos de destituição de direitos sociais, do que para explicar conjunturas passadas, quando trabalho e moradia ainda representavam “vigorosas alavancas integrativas”, associadas ao acesso a serviços públicos na cidade – ou pelo menos à expectativa de sua chegada. Nas conjunturas mais recentes, para muitos a trajetória na cidade seria, antes, marcada por experiências de perdas e mesmo um processo de descenso social caracterizado pela impossibilidade de conquistar a casa própria ou mesmo a perda da condição de proprietário para morar em favelas, em razão do desemprego e do empobrecimento.

Por outro lado, a idéia de exclusão não é abandonada, mas passa a ser traduzida como a possível emergência de um princípio de exclusão social, instituído num conjunto de falas e de práticas calcadas em um imaginário social que associaria, hoje, a pobreza à delinqüência, estruturando “múltiplas práticas sociais de caráter defensivo, repulsivo ou repressivo” (p. 92).

Essa hipótese, delineada no início da obra, é desenvolvida ao longo da segunda parte, “Sobre a vulnerabilidade em bairros populares: sociologia, história e etnografia”, baseada em múltiplos indicadores quantitativos e na pesquisa em profundidade realizada junto a moradores de dois cortiços no Centro, dois loteamentos na periferia e numa favela da cidade de São Paulo. Os três primeiros capítulos que compõem essa parte do livro são preciosos por oferecerem ao leitor uma reconstrução histórica das três modalidades de moradia que se constituíram como alternativas possíveis para boa parte dos trabalhadores na cidade ao longo do século XX, em virtude dos baixos salários e da quase inexistência de políticas de habitação voltadas para as camadas populares.

Essas alternativas são hoje designadas pelo autor como “modalidades de viver em risco na cidade” em virtude da onipresença da violência nesses espaços, perpetrada por bandidos e pela polícia, mas também pelas condições insatisfatórias, desgastantes e por vezes humilhantes com as quais os moradores se deparam. Cada um dos capítulos dedica um item ao relato etnográfico que revela o cotidiano dos lugares pesquisados e a percepção de seus moradores, considerados personagens desses diferentes cenários urbanos. As falas revelam, segundo as perspectivas dos moradores, as vantagens e as desvantagens de se morar nessas diferentes condições, assim como as desvantagens que sempre envolvem os “outros” lugares, associados à violência, à discriminação e à desordem.

No capítulo 3, “As áreas centrais e seus cortiços: dinamismos, pobreza e políticas”, destacam-se as origens e os percursos da moradia popular no Centro de São Paulo. No início do século XX, o cortiço é praticamente a única alternativa de moradia para os trabalhadores pobres; mas hoje ainda continua como uma modalidade de moradia dos mais empobrecidos.,tendo-se espalhado mesmo nas periferias.

No caso das áreas centrais, a perda de sua primazia para outras localizações da cidade a partir dos anos de 1960 e 1970 foi acompanhada de esvaziamento populacional, com a saída dos mais ricos e o abandono de casas e edifícios. Isso estimulou seu uso para um negócio que se revelou muito lucrativo: a habitação coletiva de aluguel, atraindo uma população mais empobrecida. Apesar da precariedade das condições de vida nesse tipo de moradia (que envolve problemas de higiene, uso coletivo de banheiros, cozinha e outros equipamentos, além da prevalência de espaços exíguos nos quais o acúmulo de moradores e a proximidade tendem a gerar conflitos, nas falas de seus moradores), “o Centro é perto de tudo”. Trata-se da grande vantagem de morar em cortiço na área central – ou “pensão”,termo mais usado:a concentração e a proximidade das oportunidades de trabalho, de serviços e de opções de lazer, apesar da desvantagem dos aluguéis abusivos. Mas suas falas também são atravessadas por visões valorativas acerca da moradia em outros locais, que procuram evitar: favelas são em geral referidas como lugar da criminalidade, e a periferia, ou “vila”, distante de tudo, é também o local onde impera a violência. Tais relatos, no entanto,contradizem por vezes a realidade exposta em outras passagens, em que violência e assassinatos também estão presentes.

Apesar da deterioração que caracteriza parte das áreas centrais, Kowarick lembra que o Centro vem sendo objeto de investimentos públicos e privados, por meio de programas que envolvem conjuntamente associações – menção especial à Associação Viva o Centro – e órgãos públicos. Como afirma o autor, “são vastas as potencialidades sociais e econômicas do Centro e os recursos públicos nele alocados para os próximos anos não são em nada desprezíveis” (p.160).Daí ser lugar de disputas e lutas pela apropriação do espaço, em que o poder público, municipal e estadual, têm papel chave para canalizar recursos e influir no mercado imobiliário. Nesse sentido, ganha significação a orientação política de cada gestão em termos dos interesses que nela se expressam.

A esse respeito, há um posicionamento claro de Kowarick, que critica as ações coletivas e públicas orientadas por uma visão higienista e segregacionista de recuperação do Centro. Ante estas políticas, a ação dos movimentos sociais e das assessorias técnicas que as apóiam orientam-se muito mais pela ampliação dos direitos de cidadania, ao lutar pelo acesso à moradia no Centro para as camadas populares. Kowarick também avalia as gestões de diferentes partidos que estiveram à frente da administração da cidade, considerando que nos governos do PT predominaria um estilo de gestão que denomina “Republicanismo de participação”,enquanto o PSDB se orientaria pelo “Republicanismo delegativo”. Cada estilo comporta seus riscos:

O risco do modo petista de governar reside em retardar as decisões, acabando por tornar a participação ineficaz ao gerar um conselhismo ratificador das iniciativas do poder executivo. O risco da concepção baseada na representação, em uma sociedade extremamente hierárquica e excludente como a brasileira, reside em exacerbar posicionamentos tecnocráticos que acabam por reproduzir o elitismo que está na raiz da segregação de nossas cidades (p. 160).

A segunda “modalidade de viver em risco” é retratada historicamente e em sua atualidade no capítulo 4, “Autoconstrução de moradias em áreas periféricas: os significados da casa própria”. A autoconstrução da casa própria insere-se no conhecido padrão periférico de expansão urbana que teve papel central na produção do espaço da cidade, no que o autor classifica como verdadeiro laissez-faire urbano, que dominou a cidade de São Paulo desde os anos de 1940. Nesse capítulo, é retomado o processo tradicional de autoconstrução da casa própria nas periferias da cidade, modelo que continua a reproduzir-se em locais cada vez mais distantes da cidade.

A autoconstrução da casa própria em loteamentos de periferias distantes comporta muitos sacrifícios, que envolvem não só reunir recursos para seu empreendimento, mas também a distância do trabalho, implicando longas horas em transporte público. Mas os que se dirigiram a esta alternativa encontram nela vantagens significativas: um abrigo mais seguro não só em função da liberação do aluguel, mas também porque a casa é propriedade privada, bem que se valoriza com a chegada de infra-estrutura, serviços públicos e outras amenidades. O autor sugere que melhorias ocorreram, e muitas, renovando desigualdades que contribuem para reproduzir, nas diversas periferias, um tecido urbano muito heterogêneo – mesmo nas áreas que concentram pobreza.

Mas se esse processo de autoconstrução da casa própria continua expressivo,é porque se efetiva em locais cada vez mais distantes – nas franjas da cidade, nos “bairros-dormitório” de outros municípios da Grande São Paulo -, pois o preço da terra em localidades mais bem servidas tornou-se proibitivo para os que foram afetados pelo desemprego prolongado e pela precarização do trabalho, associada a rendimentos baixos e instáveis. Junto a outros fatores, esse processo assumiu também caráter predatório ao ocuparem-se densamente as áreas de mananciais, comportando um risco para a cidade como um todo.

Nas falas das personagens desse cenário de moradia, a casa própria aparece como uma conquista, que, a depender da experiência, envolveu lutas baseadas na organização local, no apoio e na assessoria de entidades de direitos humanos para a obtenção de serviços básicos e regularização da propriedade; ou, simplesmente, o investimento do grupo familiar-doméstico, com a ajuda de outros familiares, vizinhos ou amigos, e cada vez mais com a presença de pagamento a terceiros: com o desemprego e a precarização, a mão-de-obra “ociosa” tornou-se volumosa e mais barata. Em qualquer caso, é uma trajetória habitacional marcada por um início de muitas carências e sacrifícios, a casa sempre “por acabar”.

A violência aparece como algo onipresente, pois mesmo quando negada ou remetida para o passado por alguns, mostra-se parte do cotidiano nas falas, especialmente pelo medo dos assaltos e de sair para trabalhar de madrugada, quando ainda está escuro, assim como pela referência à ação violenta de traficantes e às rivalidades entre estes, aos homicídios, à “desova” de corpos nas proximidades e mesmo à experiência pessoal de alguém próximo e querido que foi vítima de assassinato.

Como mostra Kowarick, um dado interessante é o de que a autoconstrução da casa própria cresceu mesmo em conjunturas desfavoráveis, como os anos de 1990, substituindo em grande parte o viver de aluguel. Não obstante, o que mais cresceu em termos relativos na cidade foram as favelas. A questão das favelas é problematizada no capítulo 5, “Favelas: olhares internos e externos”.

Favelas não são mais ocupações totalmente ilegais, tampouco totalmente desprovidas de infra-estrutura e serviços.Nos anos de 1980, políticas de urbanização alcançaram esses espaços e teve início o processo de regularização da moradia. Isso ajudou a consolidar a favela como alternativa de moradia na cidade para os mais pobres e, como no caso dos loteamentos,deu origem a um mercado imobiliário informal ativo.Essa seria uma das razões por que,segundo o autor, já não representam lugar de moradia provisória, um “trampolim” para situações melhores. Mas seu crescimento seria também evidência de processos de mobilidade descendente, pois muitos chegam em virtude da perda da capacidade de pagar aluguel, ou mesmo porque forçados a vender a casa própria.

As favelas multiplicaram-se, mas são muito diversas, não só entre si, como internamente. Isso tem sido cada vez mais evidenciado, na última década, por estudos que contemplam a expansão das melhorias tanto em termos de infra-estrutura e serviços,como das características socioeconômicas de seus moradores5.

Nos relatos das personagens desse cenário, morar em favela representa vantagens específicas. Entre elas ,a ausência de taxas normais ou de impostos,e a possibilidade de reverter isso em economias para realizar melhorias na moradia que, apesar disso, não oferece a segurança da casa própria. Além disso, tanto a favela como seus moradores são alvo de profunda discriminação, ponto destacado por Lúcio Kowarick. Não é necessariamente nas favelas que se concentram os índices de criminalidade; apesar disso, mais do que em qualquer outro lugar, é nesse espaço que os olhares externos tendem a associar pobreza e criminalidade. Nas falas, no entanto, a criminalidade está presente, e os conflitos entre traficantes são um medo e uma ameaça constantes para os moradores; uma convivência inevitável, que estabelece a “lei do silêncio” e a desconfiança entre vizinhos. Além disso, há o desrespeito e a violência por parte da polícia, vista de forma ambivalente.Por essas razões, muitos querem sair da favela.

Nas “Considerações finais” (“Vulnerabilidade socioeconômica e civil em bairros populares”), Kowarick retoma os vários argumentos e evidências apresentados nos três capítulos anteriores, juntamente com falas (desta vez, despersonificadas) que contrastam as vantagens e as desvantagens de cada modalidade de “viver em risco”. No item final,”Violência e Medo”,o autor reforça a hipótese de que a violência é atualmente um elemento estruturador do modo de vida nos diferentes espaços: “Assim, a violência passou a ser um elemento que também estrutura o cotidiano das pessoas,demarcando espaços,selecionando horários e forjando atitudes e comportamentos defensivos que visam diminuir os riscos” (p. 299).

A partir das experiências de se “viver em risco” Lúcio Kowarick vincula a vulnerabilidade socioeconômica ao que denomina experiências do desrespeito: “um reconhecimento social denegado, baseado em formas sistemáticas de violação de direitos básicos de cidadania” (p. 301).

O livro de Lúcio Kowarick oferece ao leitor a oportunidade de refletir de modo abrangente acerca das continuidades e descontinuidades de nossa questão social nas últimas décadas, e que tornaram São Paulo um cenário urbano bastante diferente do que fora entre os anos de 1950 e 1970. Não obstante as mudanças positivas em alguns aspectos, o percurso da cidadania no Brasil é pontuado por contradições e descompassos, e as trajetórias e transições descritas trazem para o centro da problematização os atuais impasses à sua expansão:a violência e o medo disseminado, as restrições à capacidade do Estado em atuar como agente garantidor de segurança física e proteção social.

Notas

1 CASTEL, Robert. “Introdução”. In: As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Trad. Iraci D. Pole-ti. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 1998, p. 20. [Links] 2 Essa trajetória é explicitada em KOWARICK,Lúcio.Escritos urbanos.São Paulo: Editora 34, 2000.[Links] 3 MURRAY, apud KOWARICK, Viver em risco, op. cit., p. 38.
4 Kowarick. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.[Links] 5 A esse respeito, ver SARAIVA, Camila e MARQUES Eduardo.”A dinâmica social das favelas na Região Metropolitana de São Paulo”. In: MARQUES, Eduardo e TORRES,Haroldo.São Paulo: segregação, pobreza e desigualdades sociais. São Paulo: Senac, 2005. [Links]

Maria Encarnación Moya– doutoranda no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap).

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A Cultura do Romance – MORETTI (NE-C)

MORETTI, Franco. A Cultura do Romance. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Resenha de: VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. O romance como gênero planetário: a cultura do romance. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.86, Mar. 2010.

Ao percorrer as páginas de A cultura do romance, primeiro dos cinco volumes da série O romance, organizada por Franco Moretti, o leitor logo notará que se encontra diante de uma obra singular, pois ali se narra uma história do gênero que, não raro, transgride fronteiras nacionais, abole limites espaço temporais e segue uma orientação comparatista e internacionalista, certamente inspirada na conhecida posição de seu organizador sobre a literatura mundial. Com efeito, em ensaio publicado em 2000, Franco Moretti retomava o conceito proposto por Goethe, no final do século XVIII, e defendia o retorno à antiga ambição da Weltliteratur, a partir da constatação de que”afinal, a literatura a nossa volta é inequivocamente um sistema planetário”1.

Mescla de história e crítica literárias, esta coletânea reúne um respeitável time de especialistas e põe em funcionamento outro princípio que tem norteado o trabalho de seu organizador:o de que uma história do romance,fundamentalmente pelo caráter transnacional do gênero, teria de ser escrita a partir de um esforço coletivo, por meio do qual as diferentes especialidades contribuiriam para repensar o modo como tratamos a historiografia literária, reinscrevendo o romance não mais no espaço demarcado pelas linhas divisórias das nações, mas em um mundo cujas fronteiras se alargaram e no qual o romance viaja e viceja como forma verdadeiramente livre na sua tradutibilidade2.

O romance como um sistema planetário: eis o espírito que parece animar esse conjunto diversificado de ensaios que,recobrindo um largo espectro temático e um amplo arco temporal,abarca uma multiplicidade de pontos de vista e tradições, combina traços específicos e particulares a questões de ordem geral e redesenha o mapa da história desse gênero onívoro e inclusivo, dessa forma permanentemente a se fazer e se renovar3, cuja natureza de inacabamento se comprova fartamente aqui.

Graças à sua”capacidade de mudar sem transformar-se em outra coisa”,4 o romance desafia e desestabiliza convenções, alia continuidades e descontinuidades, reinventa-se e franqueia ao romancista liberdade de imaginação, de recriação das formas e de proposição de novos caminhos.Seu modo de ser protéico e camaleônico fica patente na pletora de temas, procedimentos, técnicas e soluções que vemos mobilizados nas obras que são discutidas e comentadas nos ensaios do volume. A dinâmica da forma-romance emerge, assim, nas suas mais variadas vertentes, como narrativas de fundação, relatos da vida cotidiana, histórias de sondagem da interioridade, da experiência urbana, dos embates entre o indivíduo e a sociedade, do sobrenatural, dos recônditos da alma humana – apenas alguns exemplos das potencialidades quase ilimitadas do gênero desde sua invenção. Do mesmo modo, pelas suas próprias características e desapego às convenções, o romance convida à aproximação com outros campos e artes, como a história, a historiografia, a sociologia, a política, o cinema, a linguagem, a psicanálise, a pintura, numa teia de relações que põe em destaque sua abertura para as mais diferentes esferas da experiência humana. Esses diálogos e intersecções também vemos em ação aqui.

Os dois ensaios que, respectivamente, abrem e encerram o volume, com seus títulos especulares não só estabelecem de pronto um vínculo estreito e indiscutível entre o romance e o mundo moderno, como também pontuam alguns dos temas que iremos acompanhar com interesse no percurso dessa”primeira forma simbólica verdadeiramente mundial”5. Assim, enquanto Mario Vargas Llosa encarece a importância da leitura e explora os sentidos da literatura, enfatizando seu papel na formação do cidadão e da linguagem, seu teor de conhecimento e sua vocação para despertar um”sentimento de pertencimento à coletividade humana através do tempo e do espaço”6, ele igualmente lembra a capacidade de insubmissão e transgressão dos bons romances e, num exercício de ficcionista, imagina o quê ou como seria um mundo sem romances. Claudio Magris, por sua vez, retoma e discute com maestria outro problema que, ao leitor mais atento, não deve ter passado despercebido ao final da leitura. Ao longo de todo o volume, vamos topando freqüentemente com certa variação dos modos de se referir ao romance: ora romance mesmo, ora”romance”, romance, novel, novelas ou ainda romanesco. Além disso, muitas vezes o vocábulo romance se faz acompanhar de um adjetivo. A lista não é muito extensa, mas intriga: moderno, medieval, antigo, de corte, de cavalaria. Para os leitores menos familiarizados com as questões mais técnicas, é bom esclarecer que na tradição inglesa romance e novel designam de fato modalidades narrativas distintas, e passaram a fazer parte do vocabulário crítico no século XVIII como efeito da percepção de que ocorrera uma importante mudança histórica, com reflexos indiscutíveis na prosa de ficção. Por isso, na maioria das vezes dispensam adjetivos. A inexistência dessa diferenciação em outras línguas européias e a subsunção de romance e novel num mesmo termo genérico (cf. romance, romanz, roman, romanzo) põem em menor evidência,nessas outras tradições, a noção de ruptura que norteou a adoção dos dois vocábulos em língua inglesa.

Que conseqüências tirar dessa instabilidade, então, e desse uso reiterado dos qualificativos para melhor definir e precisar aquilo de que se fala? A resposta já ficara delineada por Catherine Gallagher7, que expõe com clareza a questão e mapeia, com bom fôlego teórico, as diferenças entre romance e novel, entre o gênero pré-moderno, precursor imediato do romance, e esse outro, encarnação da modernidade. O ensaio de Magris volta ao assunto, com uma reflexão que incorpora algumas das mais iluminadoras discussões sobre o gênero, para não apenas ressaltar a sua modernidade radical, mas sobretudo para pensar essa”epopéia do desencanto”, nos termos propostos por Hegel e Lukács,como objetivação da cisão entre o eu e o mundo. Essa”por vezes degradada mas aventurosa e radicalmente nova odisseia”8 é, entre todos os gêneros, aquele que faz do mundo, enquanto história, seu objeto, em que o caráter temporal e histórico da ação dos homens é problema sempre crucial e sempre presente para o romancista. Ao afirmar que”o romance é o mundo moderno”, Magris, além de o alinhar aos desenvolvimentos da era que se inaugura por sobre os escombros da ordem feudal, sugere que nele podemos reconhecer a experiência que nos determina e constitui. Reaparece assim,nesse remate,a relação problemática entre romance e realidade que já viera pontuando várias das outras intervenções no debate que pudemos ir acompanhando até esse final.

Essa moldura enquadra, dessa maneira, um verdadeiro mosaico de leituras que nos deslocam no tempo e no espaço e nos confrontam com um rol de questões que rondam o romance desde seu surgimento. De dentro da diversidade de abordagens, ângulos e perspectivas que os autores dos ensaios escolheram para ler seus objetos, vemos surgir alguns temas recorrentes, que atravessam o volume como um todo e remetem às escaramuças que o romance teve de enfrentar no seu longo processo de ascensão e consolidação. Um deles diz respeito à tensão entre veracidade e ficcionalidade (ou verdade e mentira, verdadeiro e falso,fato e ficção),que desde sempre esteve no centro da discussão sobre as relações entre o romance e a representação do real. Não é muito difícil compreender por que essa tem sido uma preocupação constante por parte de teóricos e críticos: afinal, o romance tem suas raízes firmemente fincadas no tempo histórico e em contextos socioculturais específicos e, mesmo nos altos vôos da fantasia, tem um conteúdo de verdade e um notável poder de revelação, de “descoberta e interpretação da realidade” (a expressão é de Antonio Candido). É essa capacidade de escavar a superfície e penetrar nas correntes subterrâneas de uma vida, de uma comunidade, de uma experiência, que lhe confere a prerrogativa de produzir uma impressão de verdade, a qual nasce da arte do romancista de absorver na estrutura narrativa, para além dos detalhes e fragmentos do real, para além dos dados externos, certos princípios constitutivos da sociedade. Basta acompanhar o que fizeram os diversos romancistas dos mais diferentes quadrantes que são motivo de comentários nas leituras críticas que compõem o mosaico e estão distribuídas ao longo do volume.

O contrato com o leitor, a “plausibilidade fictícia”9, o jogo ficcional – tudo contribui para a suspensão da descrença e carrega o leitor para um mundo que parece verdadeiro,quando é apenas crível, verossímil. A verossimilhança, entretanto, não explica esse sentimento de verdade de que somos possuídos quando um romancista” toma a si o encargo de imaginar e compor o movimento da sociedade”10. Sem dúvida, foram os nexos que estabelece com a vida real, somados à sua inegável faculdade de estimular a imaginação,que lhe valeram a pecha de influência perniciosa e prejudicial e fizeram dele alvo de censura e condenação, inclusive judicial, por meio de processos que levaram às barras dos tribunais romances e romancistas. A história literária está repleta de exemplos, e eles não se limitam aos tempos em que um controle mais rígido e rigoroso sobre a moral esteve vigente. Alguns deles são lembrados aqui e dão notícia dos obstáculos que o gênero enfrentou para ganhar dignidade e reconhecimento. Um verdadeiro dossiê reúne vários documentos que registram a história dessa batalha, cujo último capítulo não está tão distante assim e envolveu a fatwa contra os Versos satânicos de Salman Rushdie. Mas as imputações não se restringiram ao terreno da religião,da política ou da moralidade, como foi o caso de Madame Bovary ou de O amante de Lady Chatterley.Para além das acusações de sedição, blasfêmia, obscenidade ou difamação que fustigaram o romance em diferentes momentos da sua história, esse”vão caudal de tinta sobre papel esfarrapado”11 teve ainda de se haver com aqueles que o consideravam apenas um gênero bastardo, destituído de tradição e da nobreza do teatro e da poesia. Um parvenu da República das Letras, o romance não mereceria senão desprezo e desconfiança, e o establishment literário não perdeu as oportunidades de golpeá-lo,como o fizeram Pierre Nicole ou Gotthard Heidegger12. Como outros, antes e depois, eles esgrimiram argumentos éticos e estéticos para desaprovar o gênero. Na Itália, ainda no século XIX, prevalecia”a aversão da escola com relação ao romance” e se assistia” à luta destemida do padre Antonio Bresciani […]” e de seu aliado Cesare Cantú”contra a podridão proveniente das cloacas francesas”, isto é, contra o romance-folhetim13. Na mesma Itália, em 1956, Pier Paolo Pasolini foi chamado a defender seu Ragazzi di vita diante de um tribunal, que exigiu dele”justificar a sua obra no plano moral [e] esclarecer [seu] significado artístico e literário”14, enquanto em Moscou, dez anos mais tarde, os autos contra Juli Daniel e Andrei Siniavski acusavam Govorit Moskva de instigar”um acerto de contas com os dirigentes do partido e do governo”15.

Havia ainda outro motivo para a condenação da ficção. Desde seu surgimento, o romance esteve bastante próximo do universo feminino. As mulheres foram, desde o início, suas protagonistas e seu público. Por isso, muitos dos ataques ao romance foram provocados pelo medo da imitação.A oposição à fantasia e a suspeita de que a liberdade de imaginação podia levar à ação foram argumentos recorrentes nas discussões sobre os efeitos deletérios da leitura de romances principalmente sobre os jovens e as mulheres.Julgava-se que o poder corruptor dos romances, esse passatempo de ociosos, podia influenciar condutas e pôr em risco a virtude feminina, inspirando a desobediência ou a transgressão de normas de comportamento consideradas essenciais para a reputação das mulheres. Havia também um temor generalizado da identificação do leitor com as personagens ficcionais, pois ela poderia provocar emoções e sentimentos e mobilizar sua sensibilidade, fazendo aflorar uma série de reações físicas que se acreditava serem evidências da comoção produzida pela leitura. As mulheres pareciam especialmente suscetíveis a essas alterações emocionais,que se traduziam em afecções do corpo, como testemunha essa leitora de Samuel Richardson, em carta ao romancista:

Se me tivesses visto, tenho certeza de que teria despertado vossa piedade. Quando só, em agonia eu punha o livro de lado, o retomava novamente, andava pela sala, derramava um rio de lágrimas, enxugava os olhos, lia novamente, talvez nem três linhas, jogava longe o livro, bradando, desculpai-me, bom Sr. Richardson, não consigo continuar; é vossaculpa- fizestes mais do que consigo suportar; jogava-me sobre o sofá para me recompor, recordando minha promessa (que mil vezes desejei não tivesse sido feita); de novo lia, de novo agia exatamente igual: às vezes agradavelmente interrompida por meu querido esposo, que estava naquele momento avançando com dificuldade ao longo do 6volume, com um coração capaz de impressões como o meu […].

Vendo-me tão comovida, ele implorou, pelo amor de Deus, que eu não lesse mais; bondosamente ameaçou tomar-me o livro, mas, diante da minha promessa, permitiu-me continuar. Aquela promessa agora está cumprida e estou grata que a pesada tarefa tenha acabado, embora os efeitos não. Tivesse ela sido conduzida como eu desejava, em vez de ficar impaciente para terminar a triste história, como eu teria me demorado, com prazer, em cada linha, e me sentido relutante em chegar à conclusão.

Meu ânimo foi estranhamente afetado; meu sono está perturbado, despertando durante a noite, tenho ataques de choro; isso aconteceu no desjejum, essa manhã, e agora, de novo. Deus, seja misericordioso – o que isso pode significar? Talvez, Senhor, atribuais isso a paixões violentas, mas, de fato, se conheço a mim mesma, não sou acometida delas. É tudo fragilidade, inequívoca fragilidade tola. Eu vos asseguro, não exacerbo o desassossego que me aflige, não, nem comunico o pior [Lady Bradshaigh, 6 de janeiro de 1748].

Esse depoimento de leitura é um dos exemplos daquilo que Stefano Calabrese chama de”patologias da leitura romanesca”, tais como a Wertherfieber e o bovarismo16, as quais pareciam acometer principalmente as mulheres e fazer delas suas vítimas potenciais, aumentando o preconceito e as restrições ao gênero. Apesar disso,o romance foi um dos principais instrumentos do acesso delas à esfera pública.

O século XVIII marcou em definitivo a entrada das mulheres no mundo da escrita, não mais apenas na condição de leitoras. E os romances desempenharam um papel fundamental nisso,porque,sendo um gênero sem leis nem regras e tratando de assuntos da vida cotidiana numa linguagem acessível a todos, eles se constituíram como um espaço no qual elas, como escritoras, podiam exercitar seus talentos e tratar de temas que as tocavam de perto, e, como leitoras, se reconhecer como partícipes de uma comunidade de interesses e de destino, que lhes permitia partilhar,mesmo que vicariamente,experiências comuns. O âmbito doméstico e o viés sentimental das narrativas, assim como o recurso à vivência pessoal de suas autoras,elas mesmas envolvidas e empenhadas em uma luta pela afirmação de suas aspirações, facilitavam esse reconhecimento. O romance tornou-se, para muitas delas, meio de expressão, de denúncia, de revolta e de recusa das limitações e dos constrangimentos sociais a que estavam submetidas.Um passo que Virginia Woolf reconheceria como um feito histórico, em Um teto todo seu (1929):

Assim, para o término do século XVIII promoveu-se uma mudança que, se eu estivesse reescrevendo a história,descreveria mais integralmente e consideraria de maior importância do que as Cruzadas ou as Guerras das Rosas. A mulher da classe média começou a escrever17.

Inaugurava-se, assim, uma linhagem, com uma participação cada vez maior e mais ativa das mulheres na cena literária.Mesmo em culturas muito diversas da européia, como é o caso da japonesa, a presença feminina foi central para o florescimento da prosa, por meio de cartas e narrativas escritas pelas damas da corte, com as quais elas, se utilizando da língua coloquial, própria da esfera privada, contribuíram para a busca e a formação de uma nova linguagem literária e para o desenvolvimento do romance18.A tradição da escrita feminina tem ainda desdobramentos trazidos à tona por Christa Bürger19, que, numa visada diacrônica,percorre os modos como o tema do amor assumiu diferentes formas e ajudou a inscrever algumas mulheres na história do romance. Esse quadro se completa com as leituras críticas que tratam de outras romancistas que representaram uma enorme contribuição ao gênero, como George Eliot e a própria Virginia Woolf.

Na sua longa trajetória, alguns romances foram esquecidos e condenados”à morte pelo tribunal da posteridade”20, mesmo que tenham sido populares à sua época e caros aos seus leitores; porém, a grande maioria deles passou a fazer parte do nosso acervo comum, fornecendo um repertório de imagens, temas, personagens e enredos que se incorporaram à nossa experiência e às nossas maneiras de explicar e compreender o mundo.Por quase três séculos,o romance tem sido expressão artística de um espírito democrático21, e espaço onde questões cruciais são objeto de configuração estética. Trata-se de um gênero inquieto, que continua”inacabado”, com uma”ossatura […] ainda […] longe de ser consolidada”, tornando impossível”prever todas as suas possibilidades plásticas”22.

Por essa razão, o romancista está permanentemente diante de desafios formais, sempre repostos. Se no romance oitocentista o indivíduo burguês se constituiu como uma subjetividade que se reconhecia como sujeito da história, a progressiva perda dos vínculos do homem consigo próprio e com a comunidade acentuou-se cada vez mais no mundo administrado da sociedade industrial.A partir de meados do século XIX,assistimos à desagregação desse indivíduo e sua diluição na massa, no caos urbano. Desde suas origens, o romance instaurou a fratura entre o eu e o mundo,encenando a jornada do homem solitário, que já não se sente em casa em lugar algum. O esforço de recriação da totalidade preside o gesto do romancista,cuja tarefa é construir o sentido de uma vida e de um mundo que perdeu o sentido,por meio de uma forma que é a”tentativa,na época moderna,de recuperar algo da qualidade da narração épica como uma reconciliação entre matéria e espírito, entre vida e essência’23. Essa empreitada foi se mostrando cada vez mais difícil. Matéria primordial do gênero, o eu fraturado, numa sociedade fraturada, configura-se como o tema por excelência principalmente do romance modernista, com conseqüências para a forma romanesca, que também se estilhaça e se refrata na perda da onisciência ou na multiplicação da voz narrativa, na interiorização dos conflitos e na quebra do encadeamento causal no âmbito do enredo. A crise da experiência e do indivíduo contemporâneo encontra rebatimento numa forma também em crise, obrigando o romancista a re-configurar seus materiais e técnicas para dar conta de novos conteúdos,a aventurar-se em novos experimentos formais, como os que vemos comentados no último conjunto de leituras críticas, quase ao final do volume24.

Cobrindo o período de 1900 a 1950, e portanto dos movimentos de vanguarda que mudaram o panorama das artes no século XX, esse instantâneo dos múltiplos caminhos abertos aos romancistas pela consciência das transformações cruciais que sofria o mundo naquela quadra histórica flagra algumas das respostas possíveis para o desafio de dar uma nova conformação narrativa ao real.Não se trata apenas da dissolução da forma-romance tradicional,mas também de enfrentar a”questão do sujeito e de sua representação,sua ausência ou desagregação”25. Uma observação de Virginia Woolf, em ensaio de 1924, cristaliza essa percepção numa tirada lapidar:”em ou por volta de dezembro de 1910, o caráter humano mudou”. Woolf parece se reportar aqui a alguns dos acontecimentos, entre eles a exposição do Pós-Impressionismo naquele ano,que marcaram o fim de uma época de estabilidade e, na sua visão, praticamente obrigaram os artistas a repensar o modo como o caráter humano era moldado e compreendido. Essa mudança é o que ela vai buscar representar literariamente em seu romance Mrs. Dalloway (1925), como concretização de uma nova concepção do personagem de ficção e das novas maneiras de captar o fluxo incessante e caótico da vida, tanto no plano exterior como interior26.

De Rainer Maria Rilke a Mikhail Bulgakov, passando por Luigi Pirandello, Louis Aragon, Mário de Andrade e Vladislav Vanura, vemos como diferentes autores, de origens e tradições diversas, fizeram implodir a estrutura narrativa que o romance realista do século XIX havia erigido em modelo. Por meio de soluções inovadoras para o tratamento do tempo e do ponto de vista, do recurso à livre associação de idéias, ao monólogo interior e ao fluxo da consciência, entre outras providências,eles puseram em xeque as próprias fundações do gênero, possibilitando, com isso, sua renovação. Os romances que esses escritores nos legaram são exemplos do esgarçamento da experiência e da “fratura do senso de continuidade”, de que fala Enrico Testa a respeito de Pirandello27, e, no seu desassossego, são a materialização de experimentos formais que configuram algo que está para além de meros procedimentos técnicos. Na sua discussão sobre o romance moderno, Anatol Rosenfeld argumenta que a arte do século XX se caracteriza por um fenômeno que ele chama de”desrealização”, para se referir ao abandono da mimese, pela arte, e à recusa da”função de reproduzir ou copiar a realidade empírica, sensível”28. O realismo forte nunca se contentou com a mera reprodução ou cópia da realidade, contudo. O que os romances modernistas impõem, ao contrário, é a necessidade de ampliação do conceito de realismo para compreendê-lo na sua dimensão plural e histórica. Se aceitarmos que a”matéria do artista [não é] informe: é historicamente formada,e registra de algum modo o processo social a que deve a sua existência”29, é possível perceber nesses autores o esforço que empreenderam de ir além da superfície e ler cada obra como”a historiografia inconsciente de si mesma da sua época”30.

Podemos concluir, assim, que A cultura do romance constitui seu objeto como um campo de tensões e de negociação, e, à sua maneira, narra a história da ascensão, do apogeu e da crise do romance, na qual se inscreve a história do indivíduo, cuja trajetória o gênero formaliza em seus impasses, conflitos e contradições. Os autores aqui reunidos aceitam e cumprem à risca o desafio proposto por Franco Moretti de conferir aos seus ensaios”aquele tom antropológico – história da literatura como história da cultura – que é a aposta desse volume”31.

Notas

1 Idem.”Conjeturas sobre a literatura mundial”.Novos Estudos Cebrap, 2000, nº 58, pp.173-181, p.174 “Conjectures on world literature”.New Left Review, 2000, nº 1, pp. 54-68.
2 Idem. Atlas of the European novel 1800-1900. Londres: Verso, 1997 [ed. bras.: Atlas do romance europeu 1800-1900. Trad. SANDRA Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2003].
3 BAKHTIN, Mikhail.”Epic and novel”. In:The dialogic imagination. Austin: University of Texas Press, 1986, pp.3-40 [Ed.bras.: “Epos e romance”. In: Questões de literatura e estética.2 ed. Trad. Aurora F. Bernardini e outros. São Paulo: Hucitec, 1990].
4 MCKEON, Michael. “Introduction”. In: Theory of the novel: a historical approach. Baltimore/Londres: The Johns Hopkins University Press, 2000, p. xiv. Tradução minha.[Links] 5 MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 11.
6 LLOSA, Mario Vargas.”É possível pensar o mundo moderno sem o romance?”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 22. [Links] 7 GALLAGHER, Catharine.”Ficção”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 629-58. [Links] 8 MAGRIS, Claudio.”O romance é concebível sem o mundo moderno?”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 1016. [Links] 9 GALLAGHER, op. cit., p. 638.
10 SCHWARZ, Roberto.”Outra Capitu”. In: Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 104. [Links] 11 HEIDEGGER, Gottard.”Mitoscopia romântica: ou discurso sobre o chamado romance”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., 202. [Links] 12 Ver NICOLE, Pierre.”Sobre a comédia”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 200-201; Heidegger, op. cit., pp. 201-203.
13 FAETI, Antonio.”Um negócio obscuro: escola e romance na Itália”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 147. [Links] 14 SITI, Walter.”O romance sob acusação: aparato crítico”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 227. [Links] 15 Ibidem, p. 233.
16 CALABRESE, Stephano.”Wertherfieber, bovarismo e outras patologias da leitura romanesca”. In: MORETTI (org.),A cultura do romance, op. cit., pp. 697-732. [Links] 17 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 86. [Links] 18 ORSI, Maria Teresa.”A padronização da linguagem: o caso japonês”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 425-58. [Links] 19 Ver BÜRGER, Christa.”O sistema do amor: gênese e desenvolvimento da escrita feminina”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 595-627. [Links] 20 LUZZATTO, Sergio, em”Leituras: bestsellers perdidos”, pp. 735-819. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 787 (sobre O ano 2440, de Louis Sébastien Mercier). [Links] 21“O romance nasce ao mesmo tempo que o espírito de revolta e traduz, no plano estético, a mesma ambição” (Camus, Albert. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1951, p. 320, trad. minha).
22 BAKHTIN, op. cit., p. 397.
23 JAMESON, Fredric. “Georg Lukács”. In: Marxism and form. Princeton: Princeton University Press, 1974, pp. 171-172. [Links] 24 Ver “Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 951-1012. [Links] 25 TESTA, Enrico, em “Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p.972 (sobre Um, nenhum e cem mil, de Luigi Pirandello). [Links] 26 Ver BANFIELD, Ann, em”Leituras: experimentos com a forma (1900-1950)”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., pp. 961-70 (sobre Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf ). [Links] 27 TESTA, op. cit., p. 971.
28 ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno”. In: Texto/ Contexto. São Paulo/Brasília: Perspectiva/INL, 1973, pp. 75-97, p. 76. [Links] 29 SCHWARZ. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 25. [Links] 30 ADORNO, Theodor W. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1970, p. 207. [Links] 31 MORETTI.”O século sério”. In: MORETTI (org.), A cultura do romance, op. cit., p. 823. [Links]

Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos – Professora do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP.

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Emoções ocultas e estratégias eleitorais – LAVAREDA (NE-C)

LAVAREDA, Antonio. Emoções ocultas e estratégias eleitorais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. Resenha de: MESQUITA, Laura. O marketing e a ciência política emoções ocultas e estratégias eleitorais. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo n.86, Marc., 2010.

Publicado em 2009, o livro Emoções ocultas e estratégias eleitorais de Antonio Lavareda promete ser um best-seller entre políticos,assessores e estrategistas de campanha. De fato, é uma grande contribuição para quem transita no mundo da política. É revelador entender a lógica das campanhas, os mecanismos utilizados pelos coordenadores e a gama de ferramentas que podem ser mobilizadas numa disputa eleitoral, incluindo emoções e sentimentos dos eleitores, alguns arraigados desde a infância, outros construídos a partir das experiências vividas no campo da política. Como o próprio autor anuncia, trata-se menos de uma obra acadêmica e mais de um livro sobre marketing político. Ainda assim, a obra não deixa de levantar questões importantes, que deveriam ser mais bem exploradas pelos cientistas políticos, e propor uma nova agenda de pesquisa para a área, na fronteira com o marketing e a psicologia: o uso das emoções na política.

O livro pode ser dividido em três partes. A primeira trata mais especificamente do contexto político das eleições e aborda temas clássicos da ciência política (partidos na disputa, coligações, vantagem dos incumbentes, carreira/trajetória política, preferência partidária). A segunda parte é mais próxima de um manual: ali o autor ensina, a quem tem interesse em trabalhar com campanhas, quais são os recursos disponíveis, como e quando podem ser mobilizados (se antes da campanha propriamente dita ou durante), e apresenta a sua vasta experiência no campo. A terceira parte, que é o coração do livro, versa sobre a importância das emoções e dos sentimentos. Mobilizar uma dada emoção auxilia na transmissão e na fixação da mensagem que se quer passar, assim como na construção das fidelidades político-partidárias.

Ao fim da leitura o leitor encontra-se absolutamente convencido da importância das campanhas, de se traçar uma estratégia de comunicação clara que mobilize de forma eficaz recursos neurológicos disponíveis a fim de garantir que a mensagem seja apreendida de maneira satisfatória.Também não restam dúvidas quanto à centralidade das pesquisas quantitativas e qualitativas, não só durante a campanha (para se mensurar o desempenho do candidato, o potencial e o impacto das peças publicitárias, e conhecer o público com quem se vai falar, além de definir quais são os seguimentos sociais mais favoráveis e os que representam maior obstáculo ao competidor), mas também,e talvez principalmente, antes do início da disputa, para que se tenha tempo de preparar o concorrente, corrigir seus pontos fracos e destacar os fortes, garantir que o plano de governo e o conteúdo das mensagens que se pretende transmitir respondam às principais preocupações e demandas dos eleitores, e conhecer bem os adversários, para com isso minimizar os ataques e evitar o desgaste do candidato.

Apesar de afirmar que não se trata de um trabalho acadêmico, Lavareda faz uso de uma série de conceitos e índices tradicionais da ciência política, nem sempre apresentados com o rigor necessário. No entanto, o autor acaba chegando a conclusões duvidosas, que reforçam o senso comum segundo o qual o sistema eleitoral brasileiro é resultado de uma combinação esdrúxula de representação proporcional e lista aberta, com a possibilidade de coligações. Essa combinação é freqüentemente apontada pela mídia – e por alguns analistas – como inibidora do desenvolvimento dos partidos,o que teria conseqüências para a qualidade da democracia brasileira. A falta de rigor pode ser verificada, por exemplo, quando o autor discute a importância dos partidos.

Como mostra Lavareda, a característica mais evidente que define a importância dos partidos refere-se ao monopólio das candidaturas. No Brasil não é permitido que indivíduos que não estejam associados a alguma das legendas registradas nos tribunais eleitorais concorram a cargos eletivos. Lavareda elenca também outras três características freqüentemente apontadas pela literatura como responsáveis por inflar a importância dos partidos, a saber: (1) o número de partidos que efetivamente competem. “O número de concorrentes hierarquiza o grau de dificuldade de acesso dos postulantes a cada categoria de disputa – teoricamente maior quanto mais concentrado for o sistema – e gradua, no sentido inverso, a dificuldade de elaboração da estratégia eleitoral: disputas com três ou quatro candidatos competitivos são o terror de qualquer planejamento estratégico de campanha” (p.29);(2) a distribuição das preferências partidárias (quanto maior a identificação dos eleitores com um partido, maior o “potencial de largada” dos candidatos associados a essa legenda);(3) o tempo disponível na propaganda eleitoral gratuita, que é distribuído de acordo com o tamanho das bancadas na Câmara dos Deputados.

É justamente quando apresenta essas três características, e o impacto delas sobre o sistema político e eleitoral brasileiro, que o autor falta com o rigor necessário. O primeiro equívoco ocorre na mensuração da quantidade de partidos que de fato participam das disputas, mediante o calculo do Número Efetivo de Partidos (NEP); o segundo, quando trabalha com a idéia de identificação partidária; e o terceiro deslize diz respeito à crítica superficial feita às coligações eleitorais.

Com o intuito de identificar a quantidade de partidos que competem, com reais chances de vitória, em uma eleição, Lavareda faz uso de um índice muito conhecido na ciência política: o Número Efetivo de Partidos1, que pode ser interpretado como o peso relativo dos partidos em uma dada população (eleitorado). É com base na análise dos resultados do NEP que o autor chega a duas conclusões:existiria, no sistema brasileiro, um processo de descolamento das disputas proporcionais e majoritárias, a primeira em processo de fragmentação e a segunda em processo de polarização (p.33); e o sistema estaria “progressivamente, se fragmentando na base” (p. 34), pois Lavareda julga encontrar, nas eleições municipais, tanto na disputa majoritária como na proporcional, um maior número de partidos competindo efetivamente.

O autor apresenta uma tabela com os valores calculados do NEP para as eleições de 2006 e 2008, para todos os cargos disputados:presidente, governador, senador, deputado federal e estadual na primeira peleja e prefeito e vereador na segunda. Com base nessa tabela,verifica que o NEP é muito distinto entre os cargos majoritários e proporcionais, aumentando à medida que se aproxima da base (a média nacional para a presidência e senado é 2,4, para governador, 2,5, enquanto para as prefeituras é de 7,0).

Todavia, o cálculo de NEP para as eleições municipais de 2008 merece ser revisto. Segundo o autor, o índice foi calculado considerando-se os estados. Ou seja, para calcular o índice, somaram-se os votos que os partidos obtiveram na disputa municipal nos diversos municípios de cada estado. Essa decisão inflou o resultado do índice. Isso porque os partidos não lançam candidatos em todos os municípios e também não têm desempenho uniforme entre os municípios, e a fórmula do NEP leva em conta o peso eleitoral dos partidos. Da forma como foi calculado, o que o índice permite afirmar é que, em média, em cada estado oito partidos concorrem nas disputas municipais com chances reais. Mas não diz nada sobre a disputa nos municípios, ou seja, se esse número é o mesmo em todas as cidades ou se é resultado de um contexto em que poucos partidos disputam com chances de vitória em cada cidade apesar de serem distintas as legendas entre as cidades.

Recalculei o NEP para as eleições de 2008 utilizando como unidade os votos dos partidos nos municípios, e não somando os votos por estado, como fez Lavareda. Como esperava, baseada nos resultados encontrados nas demais disputas majoritárias, e em conformidade com a literatura sobre os efeitos da legislação eleitoral sobre a competição partidária2 resumida na regra do “M+1” (a magnitude – M, que significa o número de cadeiras em disputa – acrescido de 1), a média do NEP para o país foi de 2,1, como mostra o quadro a seguir.

 

 

Um NEP próximo ou igual a dois,como encontrado para os cargos executivos, não significa que são os mesmos dois partidos que competem em cada uma das localidades. À exceção da eleição presidencial, na qual é evidente haver duas forças que polarizam a disputa, e que são as mesmas desde 1994, não é possível fazer essa afirmação. Ou seja, verifica-se, no geral, uma tendência de bipolarização nas eleições executivas em cada localidade (cada município e estado), o que é diferente de afirmar (e que, aliás, desautoriza a afirmação) que o sistema caminhe para o bipartidarismo. Para que essa afirmação seja consistente, é necessário uma análise de quais são os partidos que participam das disputas, pois as combinações de dois partidos verificadas podem, e provavelmente são (como aponta o cálculo apresentado por Lavareda), diversas em cada caso.

A segunda observação diz respeito ao cálculo do NEP para as eleições proporcionais. A mesma crítica feita ao cálculo do NEP para a disputa das prefeituras vale para o cálculo do índice para o cargo de vereadores. Cabe ainda um questionamento: por que seria desejável um índice próximo ao encontrado para os cargos majoritários, se o número de cadeiras em disputa é muito maior? A resposta corrente, e também a do autor, diz que é desejável um pequeno número de partidos na esfera proporcional para se garantir a governabilidade. A fragmentação do legislativo (cuja culpa é atribuída às regras eleitorais em vigência no país) é, com freqüência, apontada como um empecilho à governabilidade, forçando a necessidade de amplas coalizões de governo para garantir maioria no congresso. Nesse caso, o NEP não deveria ser calculado com base nas votações dos partidos nas eleições, mas sim com base nas cadeiras conseguidas: seria o número efetivo de partidos com representação no parlamento. Ou seja, o número de partidos com uma quantidade relevante de cadeiras no legislativo. Um exercício mais simples ainda mostra que o cenário não é tão dramático como o sugerido por Lavareda.

Como mostra o quadro a seguir, as câmaras municipais brasileiras, terminadas as eleições de 2008, seriam compostas, em média, por representantes de 5,6 partidos distintos. Número bem inferior ao NEP calculado pelo autor (média nacional de 13,5).

 

 

Esses simples exercícios parecem demonstrar que conclusão do autor de que a eleição é fragmentada na base, ou seja,que há um maior número de partidos competindo nas eleições municipais, a menor unidade federativa em que se realizam eleições, não se sustenta. Mais do que isso, torna evidente a necessidade de uma análise mais apurada para que se possa afirmar que há um descolamento entre as disputas proporcionais e majoritárias.

Ainda falando sobre a importância dos partidos,Lavareda apresenta uma série de dados sobre a identificação partidária. É forte e procedente a afirmação do autor de que a identificação com os partidos é o que garante a viabilidade eleitoral dos seus candidatos, ou seja, o que garante que eles entrem no jogo eleitoral com chances reais de vitória. Segundo os dados que o autor apresenta,o maior índice de identificação verifica-se com o PT (29%, contra 8% do PSDB). Ele sugere que essa identificação está fortemente associada à boa avaliação do governo Lula e que a identificação com o partido do presidente é responsável pelos níveis de identificação partidária verificados no país (em torno de 55%), uma vez que a queda de identificação partidária verificada recentemente coincide com a crise moral que o partido enfrentou no ano de 2005,e sua recuperação coincide com o momento em que melhora a avaliação do governo, após a eleição de 2006.

Uma maneira fácil de controlar se a identificação com o Partido dos Trabalhadores está de fato associada à boa avaliação de sua gestão na presidência seria verificar os índices auferidos antes de 2002. Os achados de Luciana Fernandes Veiga, no artigo “Os partidos brasileiros na perspectiva dos eleitores: mudanças e continuidades na identificação partidária e na avaliação das principais legendas após 2002”3, reforçam a suspeita de que a identificações dos eleitores com o PT esteja dissociada da boa avaliação do governo Lula. A autora aponta que, na eleição de 2002, os eleitores que declaram se identificar com os partidos somam 39%.Desse total, 23% declaram identificar-se com o PT (contra 4% com o PSDB).

Antonio Lavareda aponta ainda que a exígua identificação entre eleitores e o Partido da Social Democracia Brasileira merece um estudo mais detido. Acredito que o primeiro passo deveria ser a revisão de como as pesquisas que mensuram a identificação partidária são realizadas. Quais perguntas, além da indagação direta pela simpatia ou predileção pelos partidos, são feitas? Um bom exercício de mensuração das identificações políticas seria inferir para quais partidos cada eleitor deu seus votos nas últimas eleições. A um eleitor que vem votando sistematicamente em um dado partido para governador ou presidente nos últimos anos,pode seratribuída uma identificaçãocom essepartido,mesmo que ele não afirme explicitamente essa identificação.

Ainda no que diz respeito à identificação partidária, o autor sugere que o processo de refundação do antigo Partido da Frente Liberal (ex-PFL) que culminou na sua renomeação (renomeado,com base em pesquisa coordenada pelo próprio Lavareda, Democratas – DEM) e a renovação do quadro dirigente teriam sido bem-sucedidos em reverter o processo e recuperar a identificação dos eleitores com a legenda. Além de,nesse caso,Lavareda se referir à identificação considerando o critério de votos recebidos4 em uma eleição, a de 2008, e deixando de lado pesquisas do mesmo tipo das que referenciaram a análise sobre a identificação com o PT e o PSDB, o autor não poderia chegar a essa conclusão com base nos resultados eleitorais, conforme mostram os dados levantados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), apresentados no quadro a seguir.

 

 

Na eleição de 2004, quando já estava fora do governo federal e fazendo oposição do governo Lula (2002-2010), ainda sob a sigla PFL, o partido obteve mais de 11 milhões de votos na eleição para prefeito e saiu vitorioso em nada menos que 789 municípios, entre eles o Rio de Janeiro.Em 2008,no entanto, o partido, já rebatizado, conquistou apenas 494 prefeituras – o que corresponde a apenas 63% das prefeituras conquistadas em 2004. E, a despeito da vitória na cidade de São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, o DEM viu sua votação minguar para cerca de 9 milhões de votos, 83% do que conquistara quatro anos antes. A esse propósito, cabe uma ressalva: a eleição de Gilberto Kassab, o candidato Democrata em São Paulo, está menos associada à imagem do partido do que à continuação da gestão de José Serra,de quem o primeiro era vice e do qual herdou a prefeitura com a renúncia do segundo para concorrer ao governo estadual em 2006.O apoio do governador foi fundamental nesse processo, inclusive se abstendo de participar da campanha do candidato de seu partido durante o primeiro turno para não prejudicar a associação feita entre ele e o prefeito em exercício, e seu antigo vice, Gilberto Kassab.

Em ambos os exemplos mobilizados por Lavareda a identificação partidária aparece como menos enraizada do que usualmente é afirmado nos trabalhos sobre o tema. Afinal, em um intervalo de cerca de dois anos os partidos vivenciam flutuações expressivas nos seus índices de identificação.

Para encerrar o tema da importância dos partidos, Lavareda fala da distribuição do tempo no horário político gratuito eleitoral (HPGE). A distribuição é definida com base na bancada dos partidos na Câmara Federal, e seria a principal responsável pelas coligações proporcionais, necessárias para maximizar o tempo de TV dos candidatos a cargos executivos. As coligações seriam nocivas ao sistema político brasileiro por permitirem a representação aos pequenos partidos, que não conquistariam uma cadeira por si sós. Isso não só aumentaria a fragmentação do sistema como também daria assento aos partidos nanicos que seriam, em sua maioria, legendas de aluguel e com menor coerência ideológica. Ao associar a possibilidade das coligações à fórmula de distribuição das sobras (as cadeiras não preenchidas automaticamente quando se divide o total de votos recebido por um partido ou coligação pelo quociente eleitoral – o mínimo de votos necessários para se conquistar uma cadeira), o sistema eleitoral brasileiro produziria ainda mais uma aberração, que é a possibilidade de que candidatos que receberam votação ínfima garantissem um assento no parlamen-to.Um bom exemplo de casos como esse é a eleição de 2002,quando o candidato a deputado federal pelo Prona, Éneas Carneiro, obteve uma votação estrondosa e com isso garantiu a vaga de um correligionário que obteve menos de 1.000 votos.

A suposta distorção provocada pelas coligações proporcionais foi tema de um estudo recente feito por Freitas e Mesquita5. As autoras mostram que a abolição das coligações nas eleições brasileiras, ou a distribuição das cadeiras no interior das coligações de forma proporcional à contribuição de cada partido, não alteraria de modo significativo a composição da Câmara dos Deputados. Não seriam os partidos chamados de “pequenos” os que mais perderiam com as coligações. Pelo contrário,o mecanismo das coligações parece ser peça fundamental para garantir representação às principais legendas em um número maior de estados, pois mesmo elas são “nanicas” em alguns estados e se beneficiam enormemente desse mecanismo.

Apesar de as críticas aqui apresentadas terem como foco fatores relativamente secundários da obra de Lavareda, elas se referem a limitações não desprezíveis. A falta de rigor no uso dos conceitos e nos testes apresentados apenas ajudam a sedimentar, na sociedade e entre os políticos, público-alvo do livro, a falsa impressão de que, se não todas, pelo menos parte importante das mazelas vivenciadas pela política brasileira tem origem nas regras que regem as eleições. Elas seriam responsáveis pela suposta fraqueza dos partidos, pelo personalismo na política, pela disputa intrapartidária e pela fragmentação da representação, que culminaria no alto custo para formar maioria nos legislativos. Um a um, esses mitos têm sido desmontados pelos cientistas políticos nos últimos anos. Esse falso juízo apenas contribui para engrossar o caldo de afirmações sem embasamento cientifico que desqualificam o sistema brasileiro, reafirmam sua anormalidade, reforçando a idéia de que uma reforma política, além de urgente, seria capaz de resolver, se não todos, pelo menos grande parte dos problemas da vida política nacional, o que não necessariamente é correto. Isto porque, além da incerteza de um novo quadro institucional, ao que parece, as soluções recorrentemente propostas seriam um tratamento ineficiente para um diagnóstico equivocado.

Notas

1 Ver LAAKSO, Markku e TAAGEPERA, Rein. “The ‘effective’ number of parties: a measure with applications West Europe”. Comparative Political Studies, 1973, vol.12, nº 1. A fórmula de cálculo é onde pi significa a proporção dos votos do partido i. [Links] 2 DUVERGER, Mauricio. Os partidos políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 1951. E também COX, Gary. Making votes count: strategic coordination world’s electoral systems.Nova York: Cambridge University Press, 1997.
3 Opinião Pública, 2007, vol. 13, nº 2, p 340-65.
4 Se o critério de mensuração de identificação fosse o desempenho eleitoral, como o sugerido (mesmo que indiretamente) por Lavareda com essa análise,poderíamos afirmar que a identificação com o PSDB é bastante significativa.
5 FREITAS, Andrea M. e MESQUITA, Lara.”Coligações em eleições proporcionais: Quem ganha com isso?”. Revista Eletrônica da Fundação Liberdade e Cidadania, 2010, ano II, nº 7. [Links]

Lara Mesquita – Doutoranda em Ciência Política pelo Iuperj e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap).

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A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica – REPA (C-FA)

REPA, Luiz. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008. Resenha de: MATTOS, Fernando Costa. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.15 Jan./Jun., 2010

A transformação da filosofia em Jürgen Habermas, de Luiz Repa, é um livro que anuncia no título o seu escopo mais geral: analisar as transformações por que passa, ao longo da obra de Habermas, a compreensão que este tem da filosofia. E o subtítulo, por seu turno – os papéis de reconstrução, interpretação e crítica –, indica desde logo as principais balizas desse caminho de transformação: essas três noções-chave, que se vão incorporando gradativamente ao conceito habermasiano, permitirão compreender o lugar da filosofia em seu pensamento, até pelo menos o final da década de 1990.

Com isso, Repa poderá chamar a atenção do leitor – e este é talvez um dos grandes méritos de seu livro – para a centralidade que a filosofia assume na obra do filósofo Habermas, tornando a princípio insustentáveis as acusações segundo as quais o “sociólogo” Habermas reduziria a filosofia a um mero apêndice das ciências sociais.1

Não há de ser fortuito, por sinal, que Luiz Repa inicie seu livro com uma citação d’ O discurso filosófico da modernidade em que Habermas se reporta à oposição kantiana entre os conceitos acadêmico e mundano de filosofia 2 : é um ótimo ponto de partida para quem quer explicar a posição filosófica habermasiana em termos propriamente filosóficos, extraídos daquele que seria, embora sem ter a consciência disso (segundo Habermas), o inaugurador do discurso filosófico da modernidade. A noção de “diagnóstico de época”, por exemplo, desde o princípio tão cara à teoria crítica, se deixaria explicar em associação com tal conceito mundano de filosofia, estando já em Kant, pois, a percepção da necessidade, colocada para todo filósofo autenticamente moderno (ou contemporâneo), de “filosofar” com os olhos voltados ao “mundo”, i.e. à sociedade humana em sua inscrição espácio-temporal. De outro lado, o conceito acadêmico de filosofia seguiria denotando a filosofia enquanto especialidade universitária, a qual pendeu cada vez mais, com o passar do tempo, a um estudo da história da filosofia que, embora rigoroso, tenderia a mostrar-se descompassado em relação ao momento presente.3

Essa menção inicial a Kant não tem por objetivo, evidentemente, o perfilamento de Habermas no pelotão dos filósofos modernos e contemporâneos, como se ele fosse apenas mais um sistema de pensamento. O que o impede de cair nessa armadilha é a outra filiação decisiva, mencionada por Luiz Repa na sequência: a tradição hegelo-marxista de crítica da ideologia, segundo a qual o papel da filosofia é essencialmente crítico, negativo, e não positivo.4 É certo que ela se pauta por um “interesse emancipatório” que já nos anos 1960 Habermas opunha aos interesses técnico (próprio das ciências da natureza) e prático (próprio das assim chamadas ciências do espírito), 5 mas esse, digamos, princípio regulativo só se deixa realizar na medida em que a filosofia se constitua por oposição aos discursos positivos que bloqueiam a possibilidade da emancipação.

Ao fazê-lo, porém – e aqui se mostra aquele que é, talvez, o grande paradoxo de toda filosofia após Hegel –, a filosofia não pode (como pareceu querer Adorno) ficar na mera negatividade: ela tem de construir, ou na verdade reconstruir, os padrões normativos racionais que, na realidade efetiva das transformações sociais, apresentaram-se associados à luta pela emancipação. Não é ao filósofo, nesse sentido, que cabe ditar, positiva e soberanamente (tal como faziam os filósofos clássicos), qual o caminho a seguir; é a própria sociedade quem deve indicá-lo, a partir de conflitos concretos em que os aspectos comunicativos da racionalidade buscam afirmar-se contra os meramente instrumentais.

Assim, a nova função do filósofo está ligada à capacidade de identificar, nessa reconstrução que faz da sociedade moderna, tanto os potenciais emancipatórios como os obstáculos que se apresentem à sua realização. Para identificá-los, contudo, ele necessita do instrumental teórico oferecido pelas ciências que, por meio de pesquisas empíricas, permitem tornar muito mais preciso aquele “olhar para o mundo” de que já o velho Kant nos falava e que, na tradução contemporânea, passou a denominar-se com frequência um “diagnóstico de época”. É por este viés, com efeito, que Luiz Repa nos permite compreender, com razoável clareza, a nada simples relação entre filosofia e ciência no pensamento habermasiano: o tal trabalho reconstrutivo que é agora exigido do filósofo passa tanto (1) pela identificação dos pressupostos normativos que, sob a forma de pretensões universalistas, constituem a base das lutas concretas pela emancipação (“reconstrução horizontal”) como (2) pela demonstração de como esses mesmos pressupostos puderam constituir-se sob condições empíricas (“reconstrução vertical”).

Nas palavras do próprio autor,

com a idéia de uma divisão de trabalho ‘não exclusivista’ entre filosofia e ciência, as reconstruções vertical e horizontal se implicam, de modo que, para a filosofia, resulta a possibilidade de se apoiar em estudos empíricos para o estabelecimento de suas pretensões de validade. Ou seja, articula-se uma concepção falibilista para as reconstruções filosóficas, a qual é contraposta a toda ideia de fundamentação última.6

De certo modo, estão dados aí os dois aspectos mais gerais do desafio teórico colocado para Habermas e, por extensão, para Luiz Repa na reconstrução do percurso trilhado pelo filósofo: a possibilidade de um apoio na empiria e o distanciamento das fundamentações últimas. São essas duas exigências, com efeito, que pautam tanto o diálogo de Habermas com seus críticos como as transformações conceituais com que ele responde a essas críticas: deixando de lado uma compreensão da filosofia como crítica da ideologia e da ciência – vista então como ideológica, na esteira da tradição marxista frankfurtiana 7 –, Habermas se verá forçado a ampliar a sua concepção de racionalidade, nos anos 1970, para dar conta dos potenciais emancipatórios que, segundo permitiam notar as ciências sociais de base empírica, estariam contidos no interior da própria evolução do sistema capitalista, da ciência e da técnica 8 – uma carência de seu pensamento para que críticos como Bubner haviam apontado.9 Em seguida, a presença de elementos ainda muito fortes, do ponto de vista da fundamentação filosófica, no interior da compreensão nascente de uma racionalidade – elementos como a “comunidade ideal de fala”, duramente criticada por Wellmer –, acabaria por conduzir Habermas a mitigar ao máximo os “elementos horizontais” de sua filosofia, falando de um “transcendental fraco” para contrapor-se a Karl-Otto Apel.10 E a sensível dificuldade de efetivar tal mitigação, por seu turno, acabaria por levá-lo a sofisticar ao máximo aquela relação entre as reconstruções horizontal e vertical dos pressupostos normativos da linguagem – linguagem cujo protagonismo, em função da influência da filosofia analítica, iria acentuar-se cada vez mais.

É na reconstituição desses deslocamentos habermasianos, assim, que Luiz Repa constrói o seu próprio percurso, alinhando os capítulos do livro aos sucessivos períodos e temas por que passou a compreensão habermasiana da filosofia e de sua relação com a ciência.11 Da “filosofia como crítica da ciência” (capítulo 1) à “filosofia como interpretação mediadora” (capítulo 4), passando por “um conceito complexo de racionalidade” (capítulo 2) e pela “filosofia como ciência reconstrutiva” (capítulo 3), somos levados a acompanhar e, em razoável medida, a compreender tanto as referidas transformações como a permanência de certos ideais metodológicos e o gradativo estabelecimento – basicamente, dos anos 1960 aos 80 – de uma posição a eles mais conforme: deixando para trás toda pretensão veritativa de um discurso filosófico positivo, quiçá capaz de fundamentar os pressupostos teóricos extraídos da linguagem por meio da reconstrução vertical, Habermas passaria a enfatizar o caráter falibilista de seu próprio discurso reconstrutivo, o qual buscaria equilibrar-se sempre entre os pontos de vista descritivo e normativo com vistas à elaboração de uma compreensão efetivamente crítica das sociedades modernas, pluralistas e pósindustriais.12

De certo modo, é essa a resposta tardia de Habermas à grande dificuldade da filosofia desde meados do século XIX (“somos contemporâneos dos jovens hegelianos”, diz ele na resposta a Henrich 13 ): entre o dogmatismo subjetivista com que ainda Kant, segundo ele, pretenderia acessar se não o mundo, pelo menos as estruturas últimas do sujeito transcendental, e o relativismo antirracionalista que sobretudo a partir de Nietzsche identificaria toda racionalidade à dominação, o transcendentalismo falibilista de sua filosofia reconstrutiva, maximamente ancorado nos movimentos sociais, de um lado (as tendências emancipatórias inscritas na própria efetividade), e nas pesquisas empíricas, de outro (as contribuições decisivas das ciências sociais ao novo discurso filosófico), permitiria resolver em nova chave o velho desafio kantiano de sair do dogmatismo sem cair no ceticismo (absoluto). Afinal, seria possível falar em pressupostos normativos sem conservar os fardos metafísicos da filosofia da subjetividade, e sem ceder inteiramente o terreno aos positivistas dogmáticos que, desconfiados de todo e qualquer pressuposto não verificável, enterrariam de vez as esperanças da filosofia.14

A saída é engenhosa, e o livro de Luiz Repa, bastante persuasivo. Não obstante, há questões que parecem teimar em persistir. Que o seu falibilismo, por exemplo, guarde estreito parentesco com a solução dada por Kant às idéias da razão e ao juízo reflexionante, é algo que o próprio Habermas não hesitaria em admitir. Ora! A depender da leitura que fizermos de Kant, contudo – enfatizando os elementos regulativos em detrimento dos constitutivos –, pode ser que a diferença se torne tão pequena que sejamos levados a questionar o alcance dessa aparente revolução copernicana a que Habermas, inspirado no modelo kuhniano de história da ciência, dá o pomposo nome de uma “mudança de paradigma”.15

É também discutível, nesse mesmo sentido, se a nova metafísica pretendida por Kant – e que, como se sabe, está longe de resumir-se à analítica transcendental – encaixa-se no conceito de metafísica que Habermas acredita ter sido ultrapassado no “pensamento pós-metafísico”.16 Se tivermos em vista as reflexões de Kant nos Prolegômenos, por exemplo, em que ele se põe a considerar o que será da metafísica no futuro, salta aos olhos o caráter meramente problemático e hipotético – leia-se falibilista – de uma série das ideias que serão centrais a esse novo saber. Note-se que também aqui não se trata de questionar a engenhosidade da solução habermasiana, mas apenas o seu grau de novidade e transformação paradigmática: a depender de como interpretemos o conceito de metafísica no cenário pós-kantiano, o que Habermas faz é radicalizar a problematicidade que desde o princípio marca esse conceito.17

Isso, de qualquer modo, se estiver correto o peso dado por Luiz Repa à filosofia, por meio dos conceitos de reconstrução, interpretação e crítica, no interior do pensamento de Habermas.

Pois caso se reduzisse esse peso, como querem alguns, haveria o risco nada pequeno, apontado também por Dieter Henrich, de a filosofia ver-se engolida pelas ciências sociais empíricas e contaminada pelo positivismo destas últimas. Mas neste ponto parece acertada a insistência de Repa em assinalar a “dependência recíproca” em que Habermas enxerga as relações entre a filosofia e as ciências:

Quanto mais houver uma cooperação feliz entre ciência e filosofia, tanto mais poderemos, na esfera do discurso teórico, ter razões para aceitar – ainda que por enquanto – propostas teóricas fortemente universalistas. O que surge não é, entretanto, uma dependência da filosofia em relação à ciência, mas uma “dependência recíproca”, uma vez que as ciências reconstrutivas de tipo experimental (…) precisam, por sua vez, das abordagens reconstrutivas filosóficas como uma espécie de medida de processos evolutivos.18

Resta saber, naturalmente, se de fato funcionam assim, em regime de “cooperação feliz”, as relações entre as ciências e a sua “ex-mãe”. Antes disso, porém, é preciso entender melhor o modo como o próprio Habermas as enxerga. E o livro de Luiz Repa, quanto a isso, nos indica certamente um bom caminho.

Notas

1.Entre tais acusações, valeria destacar aquela que é feita por Dieter Henrich no artigo “O que é metafísica? O que é modernidade? Doze teses contra Jürgen Habermas”. in: Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 14, p 83-117, jul.-dez,.2009.

  1. REPA, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, p. 13.

3 Idem, ibidem.

4 Idem, p. 15.

5 Idem, p. 14.

6.Idem, p. 17.

  1. Idem, pp. 76 e ss.
  2. Idem, pp. 85 e ss.
  3. Idem, p. 71 (nota 151).

10.Idem, p. 166 e ss.

11 Cf. idem, p. 229.

12 Idem, p. 175.

13 HABERMAS, J. “Retorno à metafísica – uma recensão”. In: _____. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002 (2ª.ed.), p. 269.

14 REPA, L.A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, p. 217 e ss.

  1. É o que faz Dieter Henrich em “O que é metafísica? O que é modernidade”?”. Henrich, D. “O que é metafísica? O que é modernidade?”. In: Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 14, p. 101-3.
  2. Cf. HABERMAS, J.Pensamento pós-metafísico, p. 14-5.
  3. Cf. =ies, C. Der Sinn der Sinnfrage. Metaphysische Reflexionen auf kantianischer Grundlage. Munique: Alber, 2008, pp. 58-65.
  4. REPA, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica, p. 177

Fernando Costa Mattos – Doutor em filosofia pela USP, desenvolve atualmente pesquisa de pós-doutorado, com bolsa da FAPESP, junto ao Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP.

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Hegelianismo/ Republicanismo e Modernidade / Douglas Moggach

A obra Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade é a versão revisada de uma série de conferências realizadas na Universidade Federal da Bahia UFBA, no ano de 2004, pelo professor Douglas Moggach e que, posteriormente, foram lançadas em inglês com o título Hegelianism, Republicanism, and Modernity, e vertidas ao português pelo trabalho sempre competente do professor Roberto Hofmeister Pich (PUCRS), que, na tradução, que ora se resenha, permite ao leitor apreciá-la sem dar-se conta de que se trata de um texto traduzido.

O professor Douglas Moggach, atualmente, leciona na Universidade de Ottawa na School of Political Studies, sendo um reconhecido especialista no pensamento hegeliano desde a vazante interpretativa conhecida pela alcunha de esquerda hegeliana. As pesquisas do estudioso notabilizam-se no plano propriamente historiográfico pelo resgate do papel e da contribuição de Bruno Bauer para a compreensão, tanto de Hegel em específico, como de todo o idealismo alemão em geral, e, pela apresentação de um novo conceito de republicanismo, que está ligado, segundo suas pesquisas, a Hegel e à exegese que é feita de seu pensamento pela esquerda hegeliana.

O livro estrutura-se em três capítulos, respectivamente, intitulados de: (a) Hegelianismo, republicanismo e modernidade, (b) republicanismo hegeliano e por fim (c) republicanismo e socialismo na escola hegeliana.

Dividiremos a presente resenha em dois momentos, primeiramente, se fará (i) revelar a estrutura temático-argumentativa do autor, apresentando, segundo a ordem do discurso, os principais temas e problemas desenvolvidos nos três capítulos de seu livro e, após esta fase, (ii) analisaremos as conclusões do autor, de modo a avaliar o potencial de produtividade estabelecido pelo livro e por suas conclusões.

  1. Desvelando a estrutura argumentativa de Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade

O projeto de reconstrução e resgate de conceitos como republicanismo, modernidade e liberdade desde o pensamento de Hegel, mas, com foco na exegese da esquerda hegeliana [Hegelsche Linke], vem sendo desenvolvido com muita percuciência pelo prof. Douglas Moggach [1] ao longo da sua trajetória acadêmica e que, agora, conforme se demonstrará, se expõe em toda a sua maturidade. [2]

(a) Hegelianismo, republicanismo e modernidade: Por um novo conceito de liberdade

A tese de Moggach, neste primeiro capítulo, é conectar o significado do idealismo alemão com a sua concepção de liberdade, de modo a articular liberdade, história e modernidade.

A constatação do renovado interesse na atualidade pelo instrumento hegeliano resume-se, basicamente, a três eixos de abordagens e retomadas, respectivamente postas em: a leitura de Hegel, desde o sinal transcendental do projeto kantiano, a mudança de sentido do projeto político hegeliano, exposto na Filosofia do Direito a partir da publicação das Vorlesungen por Karl Heinz-Ilting e a reavaliação da concepção política da escola hegeliana.

O primeiro modo de retomada do hegelianismo constitui-se a partir de uma leitura aproximativa entre Hegel e Kant, em que o primeiro passa a ser lido desde os limites do projeto transcendental do segundo, iluminando assim uma legítima compreensão hegeliana da constituição objetiva da intersubjetividade, [3] enquanto unidade imanente entre determinação conceitual e objetividade.

A segunda frente situa-se em reavaliar o status acerca do qual repousa o intento exposto na Filosofia do Direito, pondo em cheque a tradicional concepção política hegeliana de uma monarquia constitucional em favor de uma compreensão de justificação estatal desde o primado da soberania popular, tal como exposto nas Vorlesungen.

E o terceiro desenvolvimento, que se dirige em torno da escola hegeliana, sinaliza o sentido da inclusão do republicanismo como a chave de compreensão do legado de Hegel e da esquerda hegeliana, focada principalmente na sua crítica ao estado da restauração ao invés da sempre mencionada crítica à religião.

Como forma de dar conta e posicionar-se acerca destas três novas formas de abordagem do pensamento hegeliano, Douglas Moggach (p.12) retoma os motivos e os fundamentos da corrente denominada idealismo alemão, de modo a recuperar o fio histórico que conduz a Hegel e que lhe orienta, para assim poder conectar estes novos vieses interpretativos à compreensão da contemporaneidade. Para tanto, Moggach (p.12), interpreta o idealismo alemão como “[…] uma reflexão extensa sobre a idéia de liberdade e as perspectivas para a sua realização no mundo moderno”, ao mesmo tempo em que diferencia o idealismo que se estruturou como alemão dos demais idealismos, em síntese, pôr não estabelecer uma ordem transcendente perfeita em detrimento da imperfeição do real (Platão), nem reduzir o ser ao pensamento, negando a existência do mundo exterior (Berkeley).

Moggach (p.14) afirma que o problema filosófico central do idealismo alemão é a pergunta pela racionalidade da objetividade e como podemos nos determinar de modo igualmente racional face ao mundo e a nós mesmos. O autor declara que o idealismo alemão pode nos conceder um grande legado com a introdução do conceito de espontaneidade kantiano, que consiste em

Agemir Bavaresco, Danilo Vaz-Curado R. M. Costa 322 uma necessidade definível, segundo Moggach (p.18), em “a habilidade da vontade de se determinar somente pelas causas que ela mesma admite ou permite que operem”, proporcionando um meio conceitual de adequação, sem subsunção, entre a autonomia e a heteronomia, entre se dar normas (subjetividade) e viver comunitariamente sob normas (intersubjetividade).

Porém, para que a espontaneidade unisse, sem dissolução, autonomia e heteronomia, era preciso superar a concepção racionalista de Leibniz de uma harmonia pré-estabelecida, posto que esta se constitua unicamente por determinações internas pré-existentes, impedindo qualquer modo de reflexão exterior e a heterodeterminação; novamente Moggach (p. 20) nos acena que Kant, com a categoria da relação, estabelecera as condições para pensar e compreender a internalização da causalidade e, logo, do papel central da espontaneidade como operador entre o eu teórico em face do eu prático.

O conceito espontaneidade, legado do idealismo, é que permite a passagem, na modernidade, para uma concepção de polis fundada moralmente e não como em Locke e Hobbes, alicerçada no cálculo e no interesse.

Deste novo componente legado por Kant, a espontaneidade, e apropriado por Hegel, nos apresenta Moggach (p.21) uma tríplice estruturação do conceito de vontade, ancorada em sua Ciência da Lógica hegeliana e que se baseia em uma tentativa de deduzir do eu teórico as condições de explicitação lógica do eu prático, coordenando a autoreferência interna da apercepção com a determinação externa da vontade que deseja e quer.

Neste percurso de tríplice constituição da vontade, Moggach (p.23) considera que Hegel estrutura os níveis de universalização e realização da vontade em: vontade formalmente universal, particular e individual. [4] A primeira esfera da vontade é a vontade universal, a qual se duplica em dois momentos, vontade como forma e um segundo, que pode ser designado de vontade universal, como conteúdo.

O primeiro estágio da vontade universal é aquele em que esta se figura como sendo imediatamente negativa, [5] não determinada por nada que não por si mesma, ponto de partida de Hegel da ideia de liberdade, tal como exposta na sua Filosofia do Direito e claramente insuficiente para os padrões contemporâneos. [6] O segundo momento do primeiro estágio de determinação da vontade universal hegeliana, consoante a leitura de Moggach (p.25), “[…] se refere à sua habilidade de assumir um conteúdo e fazer dele seu próprio” e é tematizada por Hegel na seção moralidade de sua Filosofia do Direito.

Neste estágio de determinação do eu prático pelo eu teórico, a vontade não é apenas abstração, negação formal, mas a capacidade negativa de discriminação e padronização da vontade como querer, historicamente situado e interacionalmente partilhado, e não como em Kant, atemporal, pois meramente formal A segunda esfera de autodeterminação da vontade é a particularidade, momento de determinação da vontade universal que possui forma e conteúdo, mas se depara em face de objetos (desejos, impulsos, outras vontades etc.) que lhe são exteriores e que, em face destes objetos, deve particularmente determinar-se.

Neste momento, de acordo com Moggach (p. 26), Hegel encontra-se com Fichte novamente, mas não com o Fichte que identifica o eu = eu, e, sim, com o Fichte que determina a autoconsciência como incisivamente sob o pálio do eu prático, logo, da intersubjetividade intrasubjetiva. Agora é o conteúdo empírico da autoconsciência que a obriga a se determinar, não exclusivamente de modo interno, mas prioritariamente sob o signo da alteridade e da diferença.

A universalidade da vontade percebe-se em relação com objetos e se objetualiza como um particular frente a outros particulares, passa-se da capacidade normativa da vontade à sua capacidade de determinação descritiva. Nesta figuração, Moggach (p. 27) demonstra como em Hegel encontra-se posta uma dura crítica tanto ao liberalismo como a Hobbes, consistente na incapacidade de sermos espontaneamente determinados apenas pela esfera da particularidade. Na esteira ainda desta crítica, Moggach (p. 27) afirma que “esse é o defeito de Hobbes e, muito também, do liberalismo subseqüente: ver a liberdade como a ausência de obstáculos entre os sujeitos e os objetos do seu desejo, mas em perguntar à luz de que padrões esses desejos são justificados”.

A terceira configuração ou esfera da vontade é a sua determinação como liberdade que decide ou da decisão, movimento de passagem na vontade do interior para o exterior, da liberação da forma no conteúdo, o decide [7], expressa a vontade focada em um objeto por exclusão dos demais, momento através do qual a vontade individualiza-se pelo movimento de universalização particular de seu conteúdo, em face do universo de objetos e possibilidade frente às quais teve de se decidir.

Este terceiro estágio da vontade é descrito por Moggach como “o universal adquire substância e concretude pela seleção e representação de si mesmo num conteúdo particular, o qual, por isso mesmo, cessa de ser meramente dado, e é ‘posto’ ou conscientemente aceito” (p. 28).

Neste projeto de tríplice determinação da vontade, sua expressão concreta é a liberdade que escolhe se autolimitar e que, por isso, reconcilia subjetividade e objetividade.

Moggach define o idealismo alemão como expressão da razão prática e acentua que Hegel, com a Fenomenologia do Espírito, estabelece a forma de compreensão de uma história da razão prática, ancorada nas diversas formas de relacionamento entre o eu e o mundo pelas figurações históricas experienciadas, que, por seu turno, permitem a constituição da personalidade como um ato de liberdade, onde a vontade é exercida como modo de determinação para-si de seus fins e atributos (cf. p. 29).

Contudo, nos adverte Moggach que “a teoria de Hegel não é simplesmente um endosso da ordem liberal, mas um modernismo crítico ou alternativo” (p.32), centrado na irredutível diferença entre sociedade civil e estado, estabelecendo as condições de efetivação de uma concepção de cidadania focada em um modelo de comunidade racionalmente ordenado.

Certamente é esta unidade entre (i) idealismo alemão, compreendido como a totalidade histórica das configurações do pensar, (ii) modernidade, expressão temporal de realização desta totalidade que é o idealismo alemão (iii) e hegelianismo, apreensão conceitual da temporalidade à luz do discurso filosófico, tendo como centro explicativo a ideia de liberdade, que conduz, na análise de Moggach, a uma diferenciada concepção de republicanismo que será desenvolvida no capítulo seguinte.

(b) republicanismo hegeliano

No primeiro capítulo do livro, Douglas Moggach (p.11) nos afirma que, em linhas gerais, o republicanismo no idealismo alemão pode ser compreendido como uma teoria da liberdade positiva ou da autotranscendência, que alterna, motivos éticos e estéticos derivados de Kant e Hegel, na constituição do status de cidadão.

No segundo capítulo, Moggach (p. 37) afirma ser o estudo do republicanismo uma importante nuance do pensamento político contemporâneo, mas que, paradoxalmente, o republicanismo de origem alemã não tem sido amplamente recepcionado, em razão de que ele tem suas raízes em Hegel e sob este paira uma ‘suspeita’ acerca de uma suposta submissão da liberdade à metafísica.

Assim, insere-se o intento do presente capítulo em esclarecer este flanco aberto, constituído pela tentativa de superação desta negação de aproximação da teoria contemporânea à concepção republicana hegeliana, através da demonstração do seu potencial de diagnose e da atualidade deste específico tipo de republicanismo.

Para situar-nos preliminarmente em face do republicanismo, informanos Mogach que: “A idéia republicana central é que as práticas e instituições de cidadania são integrais à experiência da liberdade; elas não são meramente instrumentais aos propósitos econômicos, como no liberalismo, nem são elas indispensáveis em favor da administração econômica” (p. 37).

O autor (p.38-39) nos apresenta duas concepções que balizam o debate dentro desta renaissance do republicanismo, em um corte que os divide em uma versão moderada de republicanismo, pautada no postulado da nãodominação e compatível com uma concepção republicana de raiz nitidamente jurídica, centrada na defesa dos direitos e na divisão da concepção de liberdade em liberdade positiva e liberdade negativa.

Uma segunda forma de republicanismo tachada de rigorosa, apresentase com os mesmos postulados anteriores, mas os agudiza no sentido de formulação e justificação de uma distinção entre moralidade e direito, no intento de estabelecer correspondências entre as motivações internas (morais) como determinantes das pautas políticas (direito) e, inversamente, estabelecendo exigências estritas sobre os sujeitos como cidadãos mediante o primordial interesse na questão social.

Mogach (cf. p.39) associa esta concepção rigorosa de republicanismo à esquerda hegeliana, mais especificamente a Bruno Bauer e os debates sobre o republicanismo no período do Vormärz e seu projeto de um modelo republicano que assuma a liberdade positiva de feição hegeliana como forma de reordenar as instituições sociais tradicionais, dilaceradas pela divisão do trabalho e pelo predomínio dos interesses privados.

Nesta concepção de republicanismo de feição alemã, o interesse privado é preservado, porém submetido a uma autotransformação pelo recurso à luta por instituições políticas racionais como modo eficiente de uma dúplice reordenação social que incida nos indivíduos e nas próprias instituições.

Nesta leitura do republicanismo de base hegeliana, as instituições são racionais na medida em que resultam da atividade autotélica [8] dos indivíduos e menos por realizarem um princípio metafísico ou fins substanciais prévios.

Moggach (p. 42), ao resgatar na esteira de Hegel, a concepção de Bruno Bauer, [9] a interpreta no sentido e marco das atuais correntes neohegelianas que se auto-intitulam de pós-metafísicas, [10] exatamente na medida em que assume as constatações da diagnose hegeliana, mas rompe a discursividade especulativa imanente que as desvelam como modo de evitar o compromisso discursivo com a integridade sistemática do pensamento hegeliano.

O republicanismo que Moggach (p.46-47) extrai da esquerda hegeliana, especificamente de Bruno Bauer, constitui-se pela dúplice raiz conceitual de Kant e Hegel. Em Kant, afirma Moggach (p.46), Bauer apropria-se da crítica transcendental às formas da heteronomia empírica e racional, mas se aproxima da heteronomia racional ancorada na ideia de perfecionismo, pois, mesmo sustentando que a subjetividade autodetermina-se quando repudia interesses privados e universais transcendentais, acredita Bauer que o papel da espontaneidade e da autonomia, quando assumidos conscientemente, devem conduzir ao progresso histórico.

Em Hegel, declara-nos Moggach (p.47), que Bauer encontra o diagnóstico da modernidade e o papel central atribuído a personalidade livre infinita, como os pilares restantes para a construção madura de seu republicanismo.

Dentro deste cenário, Bauer constrói sua concepção republicana adjudicando à modernidade a tarefa de incorporação na atuação dos sujeitos da autonomia e da razão como um esforço à construção racional da objetividade desde um regresso ao eu racional, ao contrário do propugnado por Hegel.

O republicanismo de Bauer propõe um modelo de estado laicizado, com intenso papel do indivíduo na vida pública, e dirige-se ferozmente em face da nascente sociedade de massas que obnubila o político, enclausurando os indivíduos na exclusividade de seus fins privados, impedindo a dupla reflexividade nascente com a modernidade e a percepção da racionalidade do curso histórico, tornando os indivíduos meros solipsistas práticos.

(c) republicanismo e socialismo na escola hegeliana

Após as revoluções de 1848, a esquerda hegeliana conhece, através dos debates entre Bauer e Marx, em torno da questão judaica, uma cisão entre republicanismo e socialismo. Na esteira deste diálogo, Bauer enfatiza a crítica às concepções de liberdade constituídas desde a vaga pós-revolucionária, inclusive as de Marx e Hegel, e afirma a centralidade do projeto republicano na emancipação social e não somente na emancipação política, propugna a libertação do proletariado, o qual era por ele designado de helotas [11] da sociedade civil [bürgerlichen Heloten].

Nesta tarefa de posicionar seu republicanismo como antípoda do socialismo, Bauer, consoante Moggach (p. 58), defende um modelo de sociedade civil que repudie o primado da liberdade de escolha exercida sob o.jugo do mercado, apelando a uma participação política em prol de um certo perfeccionismo social, por imputar ao modelo liberal a pecha de, em sua base formativa, transformar os indivíduos em massa, ao identificar autonomia individual e asserção individualista resultante da posse protegida pelo direito privado, instituindo um anacrônico individualismo possessivo.

Contudo, se o republicanismo de Bauer é contra o liberalismo e a favor de uma reordenação recíproca de liberdade negativa e positiva como forma do ser livre da modernidade, o mesmo Bauer filia-se à crítica liberal quando de sua repulsa ao socialismo, taxando-o unicamente de buscar a satisfação imediata do proletariado. Para Bauer, o projeto socialista de emancipação e generalização da classe proletária seria apenas a universalização da necessidade e da pobreza.

Nesta tensão entre republicanismo e socialismo ou entre as divergências da esquerda hegeliana, mais especificamente entre Bauer e Marx, Moggach (p. 65 e s) quer estruturar a concepção republicana oriunda do hegelianismo. No seio deste debate entre Bauer e Marx, ou entre republicanismo e socialismo, Marx constitui sua concepção de socialismo na crítica e ao mesmo tempo retomada da concepção de trabalho hegeliana e de sua correspondência com as determinações lógicas da Ciência da Lógica, na seção teleologia. Aduz ainda Moggach (p. 66) que a concepção de trabalho de Marx permite-nos visualizar uma nova concepção de democracia, mesmo que não explicitado diretamente por Marx, que englobe os processo de trabalho e as relações sociais que lhe são condicionantes, como modos de efetivação das pautas modernas por liberdade, igualdade e fraternidade. Nesta nova concepção de democracia, que estaria contida em Marx derivada da sua concepção de trabalho, dois são os fundamentos operantes: a autoadministração e o planejamento.

Para Bauer, a teoria socialista fetichiza o trabalho e sobrevaloriza o proletariado; para Marx o republicanismo é um modo ideológico que mascara as contradições da vida real e é impotente em face do capital.

  1. Conclusões

O livro do Prof. Moggach inscreve-se no marco de leituras da filosofia política da atualidade que buscam extrair de autores, consagrados ou não, seu potencial de compreensão do passado como modo de explicitação das dinâmicas e aflições contemporâneas, só por este ponto, o texto, que ora se resenha, merece ser lido e meditado.

Contudo, há outro motivo que instiga a leitura e a análise das conclusões inferidas e que se refere ao resgate de uma tradição filosófica, outrora muito conhecida e, atualmente, pouco estudada e relegada a um injusto ostracismo. Trata-se da vazante de pensadores que, na esteira do idealismo alemão em geral, e de Hegel em particular, movimentaram intensamente o debate pós-revolucionário de 1848 e de um certo modo polarizaram, por décadas, todo o debate da filosofia política e que poderíamos resumi-los a: Kuno Fischer, Karl Rosenkranz, Eduard Gans, F.W. Carové, H. F. W. Hinrichs, Carl L. Michelet, H. B. Oppenheim, John Eduard Erdmann, Carl Rössler, os assim denominados da direita hegeliana [Hegelsche Rechte] e Heinrich Heine, Arnold Ruge, Moses Hess, Max Stirner, Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach e Karl Marx, que, no passado, foram denominados da esquerda hegeliana [Hegelsche linke]. Claro que o resgate, aqui, mencionado resume-se a Bauer e a Marx, porém estudos como este do Prof. Moggach incitam os jovens pesquisadores na busca de alternativas teóricas aos lugares comuns da atual ortodoxia da filosofia política.

Por fim, espera-se que esta não seja a única das publicações do Professor Moggach vertidas à flor do lácio, mas apenas a primeira de tantas a nos brindar com suas análises atuais e lúcidas sobre os problemas contemporâneos do republicanismo, liberalismo e do Estado de direito.

Notas

1. Pensa-se, mais especificamente, nos desenvolvimentos constituídos em The Philosophy and Politics of Bruno Bauer, Cambridge: ed. Cambridge University Press, 2003, em Reason, Universality, and History, Ottawa, Legas Press, 2004, 303 pp.(com Michael Buhr) e no volume organizado pelo autor intitulado de The New Hegelians: Politics and Philosophy in the Hegelian School, Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

2. O professor Douglas Moggach expôs, sob a forma de intuições no texto introdutório ao livro The New Hegelians: Politics and Philosophy in the Hegelian School, os conceitos que, posteriormente, se encontram aqui desenvolvidos. Não por mera coincidência, o texto de abertura do referido volume intitula-se: Introduction: Hegelianism, Republicanism, and Modernity, pp.1-24.

3. Moggach, 2010, p. 9.

4. É usualmente utilizado na bibliografia hegeliana, especialmente na brasileira, o terceiro momento da vontade hegeliana com a expressão singularidade, mas, como fora optado pelo autor e pelo tradutor o termo individualidade, dele nos serviremos.

5. Moggach (p.23) nos diz que a vontade universal é idêntica à tese fichteana do eu=eu da Doutrina da Ciência.

6. Moggach (p.24-25) indica que Hegel crítica tal concepção de vontade abstratamente universal, mediante o recurso à três experiências históricas que demonstraram sua fragilidade, (a) a concepção estóica de liberdade, (b) a bela alma romântica e (c) o terror jacobino.

7. Do Latim: decido, -is, -ère, decidi, -cisum. Sent. próprio: 1) Separar cortando, cortar, reduzir (Tac. G.10) in. Farias, Dicionário Latino-Português. p. 280.

8. Para não cair no teleologismo de base hegeliana, Moggach afirma que a ação é autotélica [que se dá fins] e não portadora de um telos, que, lhe sendo imanente, pré-ordena sua atividade, determinando-a.

9. Principalmente o Bruno Bauer das obras: Die Posaune des jüngsten Gerichts über Hegel, den Atheisten und Antichristen, Geschichte Deutschlands und der französischen Revolution unter der Herrschaft Napoleons e Hegels Lehre von der Religion und Kunst von dem Standpunkte des Glaubens aus beurteilt.

10. Pensa-se aqui em Axel Honneth, Jean-François Kervègan, Paul Ricoeur entre outros

11. Também chamados de Hilotas, na Grécia, eram servos e propriedade do estado. Não se deve confundir os Hilotas [servos] com os escravos, pois estes eram de outro estrato social

Agemir Bavaresco – PUCRS.

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – PPGFIL-UFRGS.


MOGGACH, Douglas. Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade.Trad. Roberto Hofmeister Pich. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. Resenha de: BAVARESCO, Agemir; COSTA, Danilo Vaz-Curado R. M. Dissertatio, Pelotas, v.32, 2010. Acessar publicação original.

Hegelianismo/ Republicanismo e Modernidade – MOGGACH (D)

MOGGACH, Douglas. Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade.Trad. Roberto Hofmeister Pich. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. Resenha de: BAVARESCO, Agemir; COSTA, Danilo Vaz-Curado R. M. Dissertatio, Pelotas, v.32, 2010.

A obra Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade é a versão revisada de uma série de conferências realizadas na Universidade Federal da Bahia UFBA, no ano de 2004, pelo professor Douglas Moggach e que, posteriormente, foram lançadas em inglês com o título Hegelianism, Republicanism, and Modernity, e vertidas ao português pelo trabalho sempre competente do professor Roberto Hofmeister Pich (PUCRS), que, na tradução, que ora se resenha, permite ao leitor apreciá-la sem dar-se conta de que se trata de um texto traduzido.

O professor Douglas Moggach, atualmente, leciona na Universidade de Ottawa na School of Political Studies, sendo um reconhecido especialista no pensamento hegeliano desde a vazante interpretativa conhecida pela alcunha de esquerda hegeliana. As pesquisas do estudioso notabilizam-se no plano propriamente historiográfico pelo resgate do papel e da contribuição de Bruno Bauer para a compreensão, tanto de Hegel em específico, como de todo o idealismo alemão em geral, e, pela apresentação de um novo conceito de republicanismo, que está ligado, segundo suas pesquisas, a Hegel e à exegese que é feita de seu pensamento pela esquerda hegeliana.

O livro estrutura-se em três capítulos, respectivamente, intitulados de: (a) Hegelianismo, republicanismo e modernidade, (b) republicanismo hegeliano e por fim (c) republicanismo e socialismo na escola hegeliana.

Dividiremos a presente resenha em dois momentos, primeiramente, se fará (i) revelar a estrutura temático-argumentativa do autor, apresentando, segundo a ordem do discurso, os principais temas e problemas desenvolvidos nos três capítulos de seu livro e, após esta fase, (ii) analisaremos as conclusões do autor, de modo a avaliar o potencial de produtividade estabelecido pelo livro e por suas conclusões.

  1. Desvelando a estrutura argumentativa de Hegelianismo, Republicanismo e Modernidade

O projeto de reconstrução e resgate de conceitos como republicanismo, modernidade e liberdade desde o pensamento de Hegel, mas, com foco na exegese da esquerda hegeliana [Hegelsche Linke], vem sendo desenvolvido com muita percuciência pelo prof. Douglas Moggach1ao longo da sua trajetória acadêmica e que, agora, conforme se demonstrará, se expõe em toda a sua maturidade.2

(a) Hegelianismo, republicanismo e modernidade: Por um novo conceito de liberdade

A tese de Moggach, neste primeiro capítulo, é conectar o significado do idealismo alemão com a sua concepção de liberdade, de modo a articular liberdade, história e modernidade.

A constatação do renovado interesse na atualidade pelo instrumento hegeliano resume-se, basicamente, a três eixos de abordagens e retomadas, respectivamente postas em: a leitura de Hegel, desde o sinal transcendental do projeto kantiano, a mudança de sentido do projeto político hegeliano, exposto na Filosofia do Direito a partir da publicação das Vorlesungen por Karl Heinz-Ilting e a reavaliação da concepção política da escola hegeliana.

O primeiro modo de retomada do hegelianismo constitui-se a partir de uma leitura aproximativa entre Hegel e Kant, em que o primeiro passa a ser lido desde os limites do projeto transcendental do segundo, iluminando assim uma legítima compreensão hegeliana da constituição objetiva da intersubjetividade,3enquanto unidade imanente entre determinação conceitual e objetividade.

A segunda frente situa-se em reavaliar o status acerca do qual repousa o intento exposto na Filosofia do Direito, pondo em cheque a tradicional concepção política hegeliana de uma monarquia constitucional em favor de uma compreensão de justificação estatal desde o primado da soberania popular, tal como exposto nas Vorlesungen.

E o terceiro desenvolvimento, que se dirige em torno da escola hegeliana, sinaliza o sentido da inclusão do republicanismo como a chave de compreensão do legado de Hegel e da esquerda hegeliana, focada principalmente na sua crítica ao estado da restauração ao invés da sempre mencionada crítica à religião.

Como forma de dar conta e posicionar-se acerca destas três novas formas de abordagem do pensamento hegeliano, Douglas Moggach (p.12) retoma os motivos e os fundamentos da corrente denominada idealismo alemão, de modo a recuperar o fio histórico que conduz a Hegel e que lhe orienta, para assim poder conectar estes novos vieses interpretativos à compreensão da contemporaneidade. Para tanto, Moggach (p.12), interpreta o idealismo alemão como “[…] uma reflexão extensa sobre a idéia de liberdade e as perspectivas para a sua realização no mundo moderno”, ao mesmo tempo em que diferencia o idealismo que se estruturou como alemão dos demais idealismos, em síntese, pôr não estabelecer uma ordem transcendente perfeita em detrimento da imperfeição do real (Platão), nem reduzir o ser ao pensamento, negando a existência do mundo exterior (Berkeley).

Moggach (p.14) afirma que o problema filosófico central do idealismo alemão é a pergunta pela racionalidade da objetividade e como podemos nos determinar de modo igualmente racional face ao mundo e a nós mesmos. O autor declara que o idealismo alemão pode nos conceder um grande legado com a introdução do conceito de espontaneidade kantiano, que consiste em

Agemir Bavaresco, Danilo Vaz-Curado R. M. Costa 322 uma necessidade definível, segundo Moggach (p.18), em “a habilidade da vontade de se determinar somente pelas causas que ela mesma admite ou permite que operem”, proporcionando um meio conceitual de adequação, sem subsunção, entre a autonomia e a heteronomia, entre se dar normas (subjetividade) e viver comunitariamente sob normas (intersubjetividade).

Porém, para que a espontaneidade unisse, sem dissolução, autonomia e heteronomia, era preciso superar a concepção racionalista de Leibniz de uma harmonia pré-estabelecida, posto que esta se constitua unicamente por determinações internas pré-existentes, impedindo qualquer modo de reflexão exterior e a heterodeterminação; novamente Moggach (p. 20) nos acena que Kant, com a categoria da relação, estabelecera as condições para pensar e compreender a internalização da causalidade e, logo, do papel central da espontaneidade como operador entre o eu teórico em face do eu prático.

O conceito espontaneidade, legado do idealismo, é que permite a passagem, na modernidade, para uma concepção de polis fundada moralmente e não como em Locke e Hobbes, alicerçada no cálculo e no interesse.

Deste novo componente legado por Kant, a espontaneidade, e apropriado por Hegel, nos apresenta Moggach (p.21) uma tríplice estruturação do conceito de vontade, ancorada em sua Ciência da Lógica hegeliana e que se baseia em uma tentativa de deduzir do eu teórico as condições de explicitação lógica do eu prático, coordenando a autoreferência interna da apercepção com a determinação externa da vontade que deseja e quer.

Neste percurso de tríplice constituição da vontade, Moggach (p.23) considera que Hegel estrutura os níveis de universalização e realização da vontade em: vontade formalmente universal, particular e individual.4 A primeira esfera da vontade é a vontade universal, a qual se duplica em dois momentos, vontade como forma e um segundo, que pode ser designado de vontade universal, como conteúdo.

O primeiro estágio da vontade universal é aquele em que esta se figura como sendo imediatamente negativa,5 não determinada por nada que não por si mesma, ponto de partida de Hegel da ideia de liberdade, tal como exposta na sua Filosofia do Direito e claramente insuficiente para os padrões contemporâneos.6 O segundo momento do primeiro estágio de determinação da vontade universal hegeliana, consoante a leitura de Moggach (p.25), “[…] se refere à sua habilidade de assumir um conteúdo e fazer dele seu próprio” e é tematizada por Hegel na seção moralidade de sua Filosofia do Direito.

Neste estágio de determinação do eu prático pelo eu teórico, a vontade não é apenas abstração, negação formal, mas a capacidade negativa de discriminação e padronização da vontade como querer, historicamente situado e interacionalmente partilhado, e não como em Kant, atemporal, pois meramente formal A segunda esfera de autodeterminação da vontade é a particularidade, momento de determinação da vontade universal que possui forma e conteúdo, mas se depara em face de objetos (desejos, impulsos, outras vontades etc.) que lhe são exteriores e que, em face destes objetos, deve particularmente determinar-se.

Neste momento, de acordo com Moggach (p. 26), Hegel encontra-se com Fichte novamente, mas não com o Fichte que identifica o eu = eu, e, sim, com o Fichte que determina a autoconsciência como incisivamente sob o pálio do eu prático, logo, da intersubjetividade intrasubjetiva. Agora é o conteúdo empírico da autoconsciência que a obriga a se determinar, não exclusivamente de modo interno, mas prioritariamente sob o signo da alteridade e da diferença.

A universalidade da vontade percebe-se em relação com objetos e se objetualiza como um particular frente a outros particulares, passa-se da capacidade normativa da vontade à sua capacidade de determinação descritiva. Nesta figuração, Moggach (p. 27) demonstra como em Hegel encontra-se posta uma dura crítica tanto ao liberalismo como a Hobbes, consistente na incapacidade de sermos espontaneamente determinados apenas pela esfera da particularidade. Na esteira ainda desta crítica, Moggach (p. 27) afirma que “esse é o defeito de Hobbes e, muito também, do liberalismo subseqüente: ver a liberdade como a ausência de obstáculos entre os sujeitos e os objetos do seu desejo, mas em perguntar à luz de que padrões esses desejos são justificados”.

A terceira configuração ou esfera da vontade é a sua determinação como liberdade que decide ou da decisão, movimento de passagem na vontade do interior para o exterior, da liberação da forma no conteúdo, o decide7, expressa a vontade focada em um objeto por exclusão dos demais, momento através do qual a vontade individualiza-se pelo movimento de universalização particular de seu conteúdo, em face do universo de objetos e possibilidade frente às quais teve de se decidir.

Este terceiro estágio da vontade é descrito por Moggach como “o universal adquire substância e concretude pela seleção e representação de si mesmo num conteúdo particular, o qual, por isso mesmo, cessa de ser meramente dado, e é ‘posto’ ou conscientemente aceito” (p. 28).

Neste projeto de tríplice determinação da vontade, sua expressão concreta é a liberdade que escolhe se autolimitar e que, por isso, reconcilia subjetividade e objetividade.

Moggach define o idealismo alemão como expressão da razão prática e acentua que Hegel, com a Fenomenologia do Espírito, estabelece a forma de compreensão de uma história da razão prática, ancorada nas diversas formas de relacionamento entre o eu e o mundo pelas figurações históricas experienciadas, que, por seu turno, permitem a constituição da personalidade como um ato de liberdade, onde a vontade é exercida como modo de determinação para-si de seus fins e atributos (cf. p. 29).

Contudo, nos adverte Moggach que “a teoria de Hegel não é simplesmente um endosso da ordem liberal, mas um modernismo crítico ou alternativo” (p.32), centrado na irredutível diferença entre sociedade civil e estado, estabelecendo as condições de efetivação de uma concepção de cidadania focada em um modelo de comunidade racionalmente ordenado.

Certamente é esta unidade entre (i) idealismo alemão, compreendido como a totalidade histórica das configurações do pensar, (ii) modernidade, expressão temporal de realização desta totalidade que é o idealismo alemão (iii) e hegelianismo, apreensão conceitual da temporalidade à luz do discurso filosófico, tendo como centro explicativo a ideia de liberdade, que conduz, na análise de Moggach, a uma diferenciada concepção de republicanismo que será desenvolvida no capítulo seguinte.

(b) republicanismo hegeliano

No primeiro capítulo do livro, Douglas Moggach (p.11) nos afirma que, em linhas gerais, o republicanismo no idealismo alemão pode ser compreendido como uma teoria da liberdade positiva ou da autotranscendência, que alterna, motivos éticos e estéticos derivados de Kant e Hegel, na constituição do status de cidadão.

No segundo capítulo, Moggach (p. 37) afirma ser o estudo do republicanismo uma importante nuance do pensamento político contemporâneo, mas que, paradoxalmente, o republicanismo de origem alemã não tem sido amplamente recepcionado, em razão de que ele tem suas raízes em Hegel e sob este paira uma ‘suspeita’ acerca de uma suposta submissão da liberdade à metafísica.

Assim, insere-se o intento do presente capítulo em esclarecer este flanco aberto, constituído pela tentativa de superação desta negação de aproximação da teoria contemporânea à concepção republicana hegeliana, através da demonstração do seu potencial de diagnose e da atualidade deste específico tipo de republicanismo.

Para situar-nos preliminarmente em face do republicanismo, informanos Mogach que: “A idéia republicana central é que as práticas e instituições de cidadania são integrais à experiência da liberdade; elas não são meramente instrumentais aos propósitos econômicos, como no liberalismo, nem são elas indispensáveis em favor da administração econômica” (p. 37).

O autor (p.38-39) nos apresenta duas concepções que balizam o debate dentro desta renaissance do republicanismo, em um corte que os divide em uma versão moderada de republicanismo, pautada no postulado da nãodominação e compatível com uma concepção republicana de raiz nitidamente jurídica, centrada na defesa dos direitos e na divisão da concepção de liberdade em liberdade positiva e liberdade negativa.

Uma segunda forma de republicanismo tachada de rigorosa, apresentase com os mesmos postulados anteriores, mas os agudiza no sentido de formulação e justificação de uma distinção entre moralidade e direito, no intento de estabelecer correspondências entre as motivações internas (morais) como determinantes das pautas políticas (direito) e, inversamente, estabelecendo exigências estritas sobre os sujeitos como cidadãos mediante o primordial interesse na questão social.

Mogach (cf. p.39) associa esta concepção rigorosa de republicanismo à esquerda hegeliana, mais especificamente a Bruno Bauer e os debates sobre o republicanismo no período do Vormärz e seu projeto de um modelo republicano que assuma a liberdade positiva de feição hegeliana como forma de reordenar as instituições sociais tradicionais, dilaceradas pela divisão do trabalho e pelo predomínio dos interesses privados.

Nesta concepção de republicanismo de feição alemã, o interesse privado é preservado, porém submetido a uma autotransformação pelo recurso à luta por instituições políticas racionais como modo eficiente de uma dúplice reordenação social que incida nos indivíduos e nas próprias instituições.

Nesta leitura do republicanismo de base hegeliana, as instituições são racionais na medida em que resultam da atividade autotélica8 dos indivíduos e menos por realizarem um princípio metafísico ou fins substanciais prévios.

Moggach (p. 42), ao resgatar na esteira de Hegel, a concepção de Bruno Bauer,9a interpreta no sentido e marco das atuais correntes neohegelianas que se auto-intitulam de pós-metafísicas,10exatamente na medida em que assume as constatações da diagnose hegeliana, mas rompe a discursividade especulativa imanente que as desvelam como modo de evitar o compromisso discursivo com a integridade sistemática do pensamento hegeliano.

O republicanismo que Moggach (p.46-47) extrai da esquerda hegeliana, especificamente de Bruno Bauer, constitui-se pela dúplice raiz conceitual de Kant e Hegel. Em Kant, afirma Moggach (p.46), Bauer apropria-se da crítica transcendental às formas da heteronomia empírica e racional, mas se aproxima da heteronomia racional ancorada na ideia de perfecionismo, pois, mesmo sustentando que a subjetividade autodetermina-se quando repudia interesses privados e universais transcendentais, acredita Bauer que o papel da espontaneidade e da autonomia, quando assumidos conscientemente, devem conduzir ao progresso histórico.

Em Hegel, declara-nos Moggach (p.47), que Bauer encontra o diagnóstico da modernidade e o papel central atribuído a personalidade livre infinita, como os pilares restantes para a construção madura de seu republicanismo.

Dentro deste cenário, Bauer constrói sua concepção republicana adjudicando à modernidade a tarefa de incorporação na atuação dos sujeitos da autonomia e da razão como um esforço à construção racional da objetividade desde um regresso ao eu racional, ao contrário do propugnado por Hegel.

O republicanismo de Bauer propõe um modelo de estado laicizado, com intenso papel do indivíduo na vida pública, e dirige-se ferozmente em face da nascente sociedade de massas que obnubila o político, enclausurando os indivíduos na exclusividade de seus fins privados, impedindo a dupla reflexividade nascente com a modernidade e a percepção da racionalidade do curso histórico, tornando os indivíduos meros solipsistas práticos.

(c) republicanismo e socialismo na escola hegeliana

Após as revoluções de 1848, a esquerda hegeliana conhece, através dos debates entre Bauer e Marx, em torno da questão judaica, uma cisão entre republicanismo e socialismo. Na esteira deste diálogo, Bauer enfatiza a crítica às concepções de liberdade constituídas desde a vaga pós-revolucionária, inclusive as de Marx e Hegel, e afirma a centralidade do projeto republicano na emancipação social e não somente na emancipação política, propugna a libertação do proletariado, o qual era por ele designado de helotas11 da sociedade civil [bürgerlichen Heloten].

Nesta tarefa de posicionar seu republicanismo como antípoda do socialismo, Bauer, consoante Moggach (p. 58), defende um modelo de sociedade civil que repudie o primado da liberdade de escolha exercida sob o.jugo do mercado, apelando a uma participação política em prol de um certo perfeccionismo social, por imputar ao modelo liberal a pecha de, em sua base formativa, transformar os indivíduos em massa, ao identificar autonomia individual e asserção individualista resultante da posse protegida pelo direito privado, instituindo um anacrônico individualismo possessivo.

Contudo, se o republicanismo de Bauer é contra o liberalismo e a favor de uma reordenação recíproca de liberdade negativa e positiva como forma do ser livre da modernidade, o mesmo Bauer filia-se à crítica liberal quando de sua repulsa ao socialismo, taxando-o unicamente de buscar a satisfação imediata do proletariado. Para Bauer, o projeto socialista de emancipação e generalização da classe proletária seria apenas a universalização da necessidade e da pobreza.

Nesta tensão entre republicanismo e socialismo ou entre as divergências da esquerda hegeliana, mais especificamente entre Bauer e Marx, Moggach (p. 65 e s) quer estruturar a concepção republicana oriunda do hegelianismo. No seio deste debate entre Bauer e Marx, ou entre republicanismo e socialismo, Marx constitui sua concepção de socialismo na crítica e ao mesmo tempo retomada da concepção de trabalho hegeliana e de sua correspondência com as determinações lógicas da Ciência da Lógica, na seção teleologia. Aduz ainda Moggach (p. 66) que a concepção de trabalho de Marx permite-nos visualizar uma nova concepção de democracia, mesmo que não explicitado diretamente por Marx, que englobe os processo de trabalho e as relações sociais que lhe são condicionantes, como modos de efetivação das pautas modernas por liberdade, igualdade e fraternidade. Nesta nova concepção de democracia, que estaria contida em Marx derivada da sua concepção de trabalho, dois são os fundamentos operantes: a autoadministração e o planejamento.

Para Bauer, a teoria socialista fetichiza o trabalho e sobrevaloriza o proletariado; para Marx o republicanismo é um modo ideológico que mascara as contradições da vida real e é impotente em face do capital.

  1. Conclusões

O livro do Prof. Moggach inscreve-se no marco de leituras da filosofia política da atualidade que buscam extrair de autores, consagrados ou não, seu potencial de compreensão do passado como modo de explicitação das dinâmicas e aflições contemporâneas, só por este ponto, o texto, que ora se resenha, merece ser lido e meditado.

Contudo, há outro motivo que instiga a leitura e a análise das conclusões inferidas e que se refere ao resgate de uma tradição filosófica, outrora muito conhecida e, atualmente, pouco estudada e relegada a um injusto ostracismo. Trata-se da vazante de pensadores que, na esteira do idealismo alemão em geral, e de Hegel em particular, movimentaram intensamente o debate pós-revolucionário de 1848 e de um certo modo polarizaram, por décadas, todo o debate da filosofia política e que poderíamos resumi-los a: Kuno Fischer, Karl Rosenkranz, Eduard Gans, F.W. Carové, H. F. W. Hinrichs, Carl L. Michelet, H. B. Oppenheim, John Eduard Erdmann, Carl Rössler, os assim denominados da direita hegeliana [Hegelsche Rechte] e Heinrich Heine, Arnold Ruge, Moses Hess, Max Stirner, Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach e Karl Marx, que, no passado, foram denominados da esquerda hegeliana [Hegelsche linke]. Claro que o resgate, aqui, mencionado resume-se a Bauer e a Marx, porém estudos como este do Prof. Moggach incitam os jovens pesquisadores na busca de alternativas teóricas aos lugares comuns da atual ortodoxia da filosofia política.

Por fim, espera-se que esta não seja a única das publicações do Professor Moggach vertidas à flor do lácio, mas apenas a primeira de tantas a nos brindar com suas análises atuais e lúcidas sobre os problemas contemporâneos do republicanismo, liberalismo e do Estado de direito.

Notas

1 Pensa-se, mais especificamente, nos desenvolvimentos constituídos em The Philosophy and Politics of Bruno Bauer, Cambridge: ed. Cambridge University Press, 2003, em Reason, Universality, and History, Ottawa, Legas Press, 2004, 303 pp.(com Michael Buhr) e no volume organizado pelo autor intitulado de The New Hegelians: Politics and Philosophy in the Hegelian School, Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

2 O professor Douglas Moggach expôs, sob a forma de intuições no texto introdutório ao livro The New Hegelians: Politics and Philosophy in the Hegelian School, os conceitos que, posteriormente, se encontram aqui desenvolvidos. Não por mera coincidência, o texto de abertura do referido volume intitula-se: Introduction: Hegelianism, Republicanism, and Modernity, pp.1-24.

3 Moggach, 2010, p. 9.

4 É usualmente utilizado na bibliografia hegeliana, especialmente na brasileira, o terceiro momento da vontade hegeliana com a expressão singularidade, mas, como fora optado pelo autor e pelo tradutor o termo individualidade, dele nos serviremos.

5 Moggach (p.23) nos diz que a vontade universal é idêntica à tese fichteana do eu=eu da Doutrina da Ciência.

6 Moggach (p.24-25) indica que Hegel crítica tal concepção de vontade abstratamente universal, mediante o recurso à três experiências históricas que demonstraram sua fragilidade, (a) a concepção estóica de liberdade, (b) a bela alma romântica e (c) o terror jacobino.

7 Do Latim: decido, -is, -ère, decidi, -cisum. Sent. próprio: 1) Separar cortando, cortar, reduzir (Tac. G.10) in. Farias, Dicionário Latino-Português. p. 280.

8 Para não cair no teleologismo de base hegeliana, Moggach afirma que a ação é autotélica [que se dá fins] e não portadora de um telos, que, lhe sendo imanente, pré-ordena sua atividade, determinando-a.

9 Principalmente o Bruno Bauer das obras: Die Posaune des jüngsten Gerichts über Hegel, den Atheisten und Antichristen, Geschichte Deutschlands und der französischen Revolution unter der Herrschaft Napoleons e Hegels Lehre von der Religion und Kunst von dem Standpunkte des Glaubens aus beurteilt.

10 Pensa-se aqui em Axel Honneth, Jean-François Kervègan, Paul Ricoeur entre outros

11 Também chamados de Hilotas, na Grécia, eram servos e propriedade do estado. Não se deve confundir os Hilotas [servos] com os escravos, pois estes eram de outro estrato social

Agemir Bavaresco – PUCRS.

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa – PPGFIL-UFRGS.

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Le devenir actif chez Spinoza – SÉVÉRAC (CE)

SÉVÉRAC, Pascal. Le devenir actif chez Spinoza. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2005. Resenha de: PAULA Marcos Ferreira de. Como tornar-se livre e feliz. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 22, 2010.

Lançado na França há cinco anos, Le devenir actif chez Spinoza, de Pascal Sévérac, é uma dessas obras de comentário que se tornam “referência obrigatória” assim que são publicadas. O tema de que trata Sévérac toca o cerne da filosofia de Espinosa: como “tornar-se ativo”? Pergunta que, em Espinosa, pode ser perfeitamente reescrita assim: como afinal chegamos a ser livres e felizes? É por isso que devenir, aqui, é melhor traduzido por “tornar-se”, em vez de “devir”, já que o tema do livro não é outro senão o processo mesmo de conquista da felicidade e da liberdade. Há contudo, como veremos, um lugar da obra em que o termo pode ser traduzido como devir.

A importância das paixões alegres

Um pouco na esteira de Deleuze, Sévérac põe a “alegria passiva” no centro do problema do “torna-se ativo”. De fato, pergunta-se Sévérac, pode-se ser feliz, isto é, potente, em meio a uma passividade que é constitutiva, já que somos parte da Natureza em relação com outras partes? Como pensar a passividade ou impotência numa filosofia que propõe uma ontologia da afirmação absoluta? São problemas éticos e ontológicos que poderiam ser focalizados num só ponto: a existência de alegrias passivas. De um lado, elas mostram que não se pode identificar passividade e sofrimento; de outro, elas deixam ver há um paradoxo: enquanto alegria é aumento da potência, mas enquanto paixão é negação da potência; paradoxo que, porém, não chega a ser uma contradição, já que a alegria passiva não é ao mesmo tempo aumento e diminuição, mas aumento e negação que só podem ocorrer em momentos afetivos diversos, e por causas que não dizem respeito à alegria em si mesma. Como se poderia, com efeito, distinguir subjetivamente a alegria passiva da alegria ativa? A diferença objetiva, como bem lembra Sévérac, não é um problema: somos causa parcial do afeto de alegria, num caso, e causa total no outro. Mas se não há diferença, o que explica a passagem? Qualquer leitor de Espinosa sabe que não se trata de dever moral: não somos obrigados a buscar a felicidade, por uma determinação extrínseca à nossa própria experiência afetiva. A questão, portanto, não é o que se deve ou não fazer, mas o que se ganha e o que se perde ao se passar da alegria passiva à ativa. Assim, como indica a leitura atenta que Sévérac faz de Espinosa, é preciso perguntar como se explica o problema, considerando-se a realidade efetiva do desejo. E aqui questão do livro ganha toda a sua força e coerência, indo ao cerne do problema ético: como afinal chegamos a desejar, no interior mesmo da vida passiva, o tornar-se ativo? É assim que a abordagem do problema do “tornar-se ativo” ou da conquista da felicidade passa pela consideração, por um lado, daquilo que na própria vida passiva nos impede de ser ativos, mas, por outro lado, daquilo nela justamente nos leva a desejar o tornar-se ativo. Vê-se então que não saímos do campo das paixões ao explicar a passagem à atividade, porque é aí que o problema se explica.

A estrutura da passionalidade admirativa

E a explicação de Sévérac nos traz uma contribuição original, ao enfatizar o papel de um afeto em particular: a admiratio. A admiração é de fato um afeto bastante particular na teoria das paixões de Espinosa: ela mantém a mente fixada numa coisa através de uma “imaginação singular” (singularis imaginatio) que não tem nenhuma conexão com as outras coisas (Spinoza 2, Def. dos Afetos 4, p. 241). Dada assim a sua estrutura particular, a admiração é o afeto que, segundo Sévérac, oferece o maior obstáculo ao processo liberativo. O problema maior é que, afirma o autor, muitos afetos passivos não comportam a mesma estrutura da admiração, e é por isso que a esses afetos nós tendemos a aderir tenazmente, isto é, de forma obessiva (fixação afetiva).

A fixação e a obsessão nos distraem de outros bens que poderiam aumentar nossa capacidade de agir e pensar. Elas limitam nossa potência. Riqueza, libido e honras são assim, na leitura de Sévérac, bens que nos distraem (o termo de Spinoza é distrahitur), mas a distração não é ela mesma um sofrimento, uma tristeza – ou seja, uma diminuição da atividade de pensar: ela é um impedimento dessa atividade, um obstáculo, uma barreira. Nessa medida, escreve Sévérac: “ (…) a distractio, a qualquer bem que ela se reporte, não envolve nenhum sofrimento em si mesma. Ela consiste de fato em um impedimento para aceder ao verdadeiro bem, mas esse impedimento não é sentido como tal: ele não é sentido como um mal (Sévérac 1, p. 235). A admiração, portanto, impede a potência sem necessariamente entristecer. Eis por que os afetos que ocorrem sob a estrutura da admiração podem nos manter fixados e obsedados num determinado bem, numa determinada coisa ou alegria, limitando nossa capacidade de agir e pensar. Se o tornar-se ativo é a aptidão para o “múltiplo simultâneo”, para usar uma expressão de Chaui, então o maior problema é o pensamento ou afeto obsessivo. É portanto sob a estrutura da admiração que um afeto adere tenazmente. E o afeto tenaz é justamente o grande inimigo a ser combatido, na interpretação de Sévérac. As teorias da admiração, do afeto tenaz e da distração levam a uma outra: a “Teoria da ocupação da mente”, assunto de todo o capítulo IV do. Todas estas teorias estão intimamente interligadas, em Sévérac: a admiração é a estrutura afetiva que leva à fixação em certos afetos, aos afetos que aderem tenazmente; com isso, causando um desejo excessivo e nos fazendo admirá-los sem cessar, nós somos distraídos a tal ponto que não podemos pensar noutra coisa, e portanto não podemos pensar em outro modo de vida melhor, o que em Espinosa significa não pensar num “modelo de natureza humana”; assim, a mente então pode estar ocupada, ou com o que nos distrai, ou com o que nos permite pensar no novum institutum. É da distração, e da fixação num “modelo de natureza humana”, esses dois modos por excelência de ocupação da mente sob as paixões, que trata o capítulo IV.

A idéia de modelo é importante na argumentação de Sévérac. Trata-se de pensar, ainda no campo próprio das paixões, um novo modo de vida. É portanto ainda no campo do imaginário que o tornar-se ativo se impõe. Se tudo se passa no universo passional, ser salvo é ser salvo através do corpo: não podemos, só pela razão, abandonar nossas alegrias. É que a negação da potência não significa necessariamente tristeza, como o demonstra a alegria passiva, mas antes polarização dos afetos, fixação e obsessão afetiva. Mas justamente toda a dificuldade em tornar-se ativo está em que a conquista da felicidade deve ser realizada em meio à passividade alegre, em que o problema é, especificamente, o afeto tenaz. É sob o afeto tenaz que somos dominados pelas paixões, e é esse o maior obstáculo ao devir ativo. O pensamento de um “modelo de natureza humana”, tal como aparece no Tratado da Emenda do Intelecto e no prefácio da Parte IV da Ética, exemplifica a utilidade da imaginação. Para Sévérac, o devir ativo exige a substituição de um “imaginário da obsessão” por um “imaginário da salvação”.

Assim, as paixões que nos dominam devem ser combatidas no próprio campo da passividade: forjamos um “modelo de natureza humana” que é ele mesmo um objeto admirado e sobre o qual nos fixamos de algum modo. Há portanto, ainda no campo da imaginação, uma mudança de idéia, isto é, de afeto. Mas se toda obsessão se dá, como toda paixão, sob a estrutura da passionalidade admirativa; se todo imaginário fixo é “imaginário admirativo”, de que modo o imaginário do modelo não nos manteria fixos numa outra ilusão? A resposta está em como se opera uma tal mudança. E aqui Sévérac não hesita em nos remeter à idéia de que tudo se passa num campo de forças: não basta que uma idéia seja verdadeira para nos livrar de uma paixão, é preciso que ela nos seja um afeto mais forte e contrário aos afetos a serem combatidos. A própria racionalidade encontra então seus meios de se afirmar contra os amores excessivos, exclusivos e fixadores, pela constituição de um imaginário que a toma por objeto (Sévérac 1, p. 434).

o eterno devir ativo

O livro de Sévérac é extenso e sua análise é minuciosa. O leitor tem a impressão de que o autor tenta resolver todos os problemas que aparecem no desenrolar da argumentação, de que todas as questões devem ser enfrentadas sem economia (na medida do possível) de tempo e espaço. Não cabe aqui tratar de todas elas. Mas uma questão importante que Sévérac teve que enfrentar, evidentemente, é a do problema da eternidade em Espinosa. Aqui talvez o termo devenir possa ser melhor traduzido por devir. É o problema do “devenir actif éternel”: como se poderia falar de um devir ativo numa metafísica em que nossa participação no Real, na Natureza e na Substância é proclamada eterna? Ou seja, se somos já de algum modo eternos, como pensar um devir ativo, ou um vir-a-ser feliz? Em outras palavras, o problema da conquista da felicidade, o tornar-se ativo, se colocaria então em termos da conquista de nós mesmos, daquilo sempre fomos mas não sabíamos que éramos. É o assunto do último capítulo do livro.

A eternidade em Espinosa parece pôr em questão a possibilidade do tornar-se ativo como conquista através de um “supremo esforço”, summum conatus. A eternidade é uma descoberta ou uma revelação? Uma invenção ou uma produção? (Sévérac 1, p. 417). O escólio da proposição 34 da Parte V da Ética afirma que os homens têm consciência de sua eternidade, mas a confundem com a imortalidade. Para Sévérac, há duas maneiras possíveis de ler essa afirmação: ou bem há uma eternidade em si que não é por si (ela está lá, dada, mas não temos – a maior parte dos homens – consciência dela); ou bem a crença na imortalidade é uma consciência da eternidade, mesmo que seja uma idéia confusa, e neste caso não há eternidade que não seja ao mesmo tempo em si e para si. O escólio da proposição 23 da Parte V parece concordar com essa segunda interpretação, já que afirma que toda mente é em parte eterna, e, mais do que isso, afirma que nós “sentimos e experimentamos” ser eternos.

Mas o problema da eternidade, diante do tema do tornar-se ativo, aparecerá com toda clareza no escólio da proposição 31 do De libertate, onde Espinosa afirma que, embora só agora estejamos certos da eternidade da mente, consideraremos como se só a partir de então ela começasse a o ser, como se a eternidade da mente tivesse tido um começo no momento em que compreendemos que ela é eterna em parte. Por esse escólio Sévérac afirma que podemos diferenciar o fato de a mente ter uma parte eterna do fato de temos a certeza disso (Sévérac 1, p. 423). Para ele, é justamente porque nos tornamos eternos, porque começamos a experimentar o amor intelectual, que nós fazemos como secomeçássemos a ser eternos (Sévérac 1, p. 424). Contudo, assim como, para formar uma idéia verdadeira do círculo forjando o movimento de um semi-círculo em torno de seu centro, é preciso já ter uma idéia de círculo, assim também, para formar a idéia verdadeira de nossa eternidade é preciso forjar a idéia de seu começo. Porque, segundo o autor, é a ficção do devir eterno que engendra a certeza do devir eterno, da eternidade, com o que nos tornamos verdadeiramente mais e mais eternos:

“Os comentadores sem dúvida insistiram bastante sobre o fato de que nos é preciso ser eterno para em seguida tornarmos-nos certos dessa eternidade; é preciso quanto a nós insistir sobre o fato de que só podemos nos tornar certos de sermos eternos se engendramos a partir da ficção de um devir essa certeza, e portanto essa existência eterna” (Sévérac 1, p. 425).

É então a ficção do devir eterno que nos permite ter a certeza de nossa eternidade (Sévérac 1, p. 426), e é a idéia fictícia do devir ativo – o que ele chama de “ficção verdadeira” – que eliminará contudo a idéia de um engendramento da eternidade: “…a ficção do devir faz vir efetivamente o que retrospectivamente não pode mais ser concebido adequadamente em termos de devir” (Sévérac 1, p. 427). Assim a passagem à atividade é uma idéia fictícia que precisa ser forjada. Não há de fato passagem: o que há é um esforço que vai de uma atividade reduzida, porque limitada pelas potências exteriores, à uma atividade expandida, porque determinada antes de tudo pela atividade interna da mente na produção dos afetos.O devir ativo eterno não é portanto inexplicável. Ele se deixa apreender no momento mesmo em que se realiza. No ponto onde tudo pareceria problemático – de onde um devir eterno se já estamos necessariamente na eternidade? –, tudo se resolve, segundo Sévérac, pois no momento mesmo em que nos tornamos eternos, já não podemos mais nos pensar como não eternos (Sévérac 1, p. 435). Sévérac nos fala assim em processo eterno de engendramento da certeza da eternidade. Partindo da passividade, cabe-nos engendrar a atividade eterna, e é a isso que nos conduz nosso “supremo esforço”, que recorre à ficção de nosso “nascimento na beatitude”, mas essa ficção “faz advir o que retrospectivamente não pode mais ser concebido senão como eterno”. O devir ativo reabsorve todo o passado, que se torna ele mesmo eterno, sendo concebido em sua eternidade. Os estudiosos de Espinosa não deixarão de encontrar, nessas leituras de Sévérac, os motivos de um grande prazer intelectual.

Referencias

  1. SÉVÉRAC, Pascal. Le devenir actif chez Spinoza. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2005.
  2. SPINOZA, B. de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

Marcos Ferreira de Paula – Professor de filosofia do Departamento de Saúde, Educação e Trabalho da Unifesp-Santos.

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Berlim: um diário de idéias – DURÃO (AF)

DURÃO, F. Rio-Durham (NC). Berlim: um diário de idéias. Campinas: Publicações IEL/ UNICAMP (Coleção Work in progress), 2009. Resenha de: JÚNIOR, Douglas Garcia Alves. Experiências do pensamento diante da face das coisas. Artefilosofia, Ouro Preto, n.7, out., 2009.

Fábio Durão apresenta um empreendimento incomum em nossos dias: um “diário de idéias”, composto de 85 fragmentos. Projeto ousado já na forma, que remete a Nietzsche e Adorno, filósofos que fizeram da forma de exposição em aforismos um elemento central de suas obras. Ousado, além disso, na amplitude e dificuldade dos temas tratados, que vão da dialética aos Estudos Culturais, da diferença entre as formas brasileira e norte-americana de sociabilidade ao capitalismo, da hermenêutica literária ao silêncio na música, da questão do lugar histórico das idéias à utopia do conhecimento. Reconhece-se, tanto na forma, como nos temas, o diálogo com Adorno, o que o torna ainda mais ousado: pretende- ria o autor reescrever as Minima Moralia em chave contemporânea e brasileira? No que se segue, reúno algumas indicações a respeito do teor das experiências de pensamento que Durão propõe. Trata-se de um breve comentário de quatro núcleos temáticos do livro de Durão, os quais, a meu ver, representam melhor o teor do seu trabalho como um todo. São eles: a reificação na prática acadêmica contemporânea; as dificuldades na lida hermenêutica com a alteridade da arte; as relações humanas como esfera de resistência à dominação capitalista; a utopia de uma teoria alegre. A reificação da academia Durão fala do contexto americano, alemão e brasileiro, mas é neste primeiro que ele mais se detém, tomando a sério o anúncio de Max Weber: “permitam-me que os conduza aos Estados Unidos da América, pois que lá se pode observar certo número de realidades em sua feição original e mais contundente” 1. O núcleo das suas anotações a respeito, retiradas de sua experiência pessoal naquele país, refere-se, em primeiro lugar, ao produtivismo e à competitividade, de feições abertamente capitalistas, que se observam em tudo o que é relaciona- do à universidade. Por outro lado, e intimamente relacionado a este primeiro aspecto, ele nota a contradição entre uma busca obstinada pela heterogeneidade, multiplicidade e pelo novo, por parte da crítica literária, da “Teoria” e dos Estudos Culturais, e o encerramento desses discursos em uma concepção anistórica e abstrata do “outro”, que termina por perdê-lo.

As várias faces do primeiro aspecto, Durão as encontra na prática americana das citações 2, na designação de “star” aplicada aos professores que detém um “grande nome” capaz de atrair muitas matrículas 3, n a especialização de cada departamento de universidade em um determinado tipo de “mercadorias culturais” 4, na polivalência de intelectuais que acompanham as demandas cambiantes de um trabalho flexibilizado 5, na transformação da prática intelectual em uma “máquina hermenêutica”, a recobrir de sentido (e perder) o movimento contraditório da realidade social capitalista 6. Quanto ao segundo aspecto apontado, a compulsão abstrata pelo “outro”, Durão a entende a partir de sua posição histórica e social, e da divisão social do trabalho. Cito: Muito se fala nos Estados Unidos do outro. Em inúmeras publicações, congressos, cursos etc encontra-se esse desejo pela diferença, por aquilo que não se repete, que anuncia o novo. A busca pelo diferente pode assumir as mais diversas formas: o entusiasmo pelos novos media, o deslumbre pelas possibilidades de sexualidades alternativas, a fixação pelo indefinível do corpo, a promessa de riqueza na mistura de culturas de imigrantes num mundo globalizado, a disseminação infinita do sentido no infinito da linguagem… Todas essas versões de alteridade têm seu contrário na realidade repetitiva da rotina do trabalho, na homogeneização dos hábitos por todo o globo, na Mcdonaldização do mundo. 7 Essa denúncia seria unilateral se não viesse acompanhada de um reconhecimento do que há de crítico nessa busca do “outro”. A “nebulosa da Teoria” porta consigo um teor de verdade: a indicação de que a aspiração ao novo não pode ser realizada nos quadros de um todo social que reprime a irrupção do heterogêneo sob a máscara da hiper-produção de sentido e do consumo de bens culturais. Escreve Durão: “entregar-se completamente à teoria da diferença, de fato, leva à auto-satisfação da classe média, mas ignorá-la por completo, reprimi-la, só faz com que ela volte, como uma vingança, para assombrar o discurso revolucionário dono da verdade” 8.

Durão sugere que a recuperação do momento de verdade da hermenêutica americana do “outro” passa por uma operação reflexiva, pelo dever de pensar as formas de produção de sentido sob o capitalismo contemporâneo, ao mesmo tempo em que se põe a pensar os problemas de uma leitura respeitosa e, ao mesmo tempo, desafiante, viva, das obras de arte. Torna-se impositivo resistir ao fluxo homogeneizador dos discursos da diferença, e abrir um “tempo lógico” para a teoria em sentido forte, isto é, para a contemplação da conexão inteligível imanente que se apreende das próprias coisas. Talvez a problemática da hermenêutica da obra de arte sob o capitalismo seja o locus privilegiado para pensar estas questões.

A (difícil) alteridade da arte

A incômoda experiência de fazer parte da massa de turistas diante da Mona Lisa, no Louvre, é senha para Durão pensar a questão da posição do receptor diante da obra de arte, do que esta tem de único e irredutível. Trata-se, naquele caso, de uma experiência em que está ausente o silêncio, em que não há tempo para que se desdobre um outro tipo de experiência, negativa (face ao excesso de sentido proposto): a de abrir-se à obra para que ela “perguntasse algo àquele que [a] via” 9. A renúncia à intenção subjetiva, assim, torna-se mediação incontornável para o contato com a alteridade. A leitura do mundo, das coisas, exige uma disciplina do sujeito. Não sua dissolução completa, em prol de um “objetivismo” ingênuo, mas participação no movimento constitutivo da obra. Ela exige, na verdade um trabalho do sujeito, no sentido de reconstituir as mediações históricas impressas na estrutura e no tecido da obra, e, além disso, de uma atenção ao que escapa a esse movimento, à sua não-identidade material irredutível. Durão torna clara a sua posição a esse respeito, ao comentar a prática acadêmica do close reading: Para a lírica, busca-se ambigüidades e padrões imagísticos recorrentes, assim como recursos sonoros organicamente li- gados ao sentido; para a prosa, investiga-se a profundeza e a verossimilhança psicológica dos personagens, a estruturação e o desenvolvimento do enredo. Subjacente a essa forma de ensino da literatura reside uma bela idéia de imediatidade e comunicabilidade da experiência humana (daí a identificação com personagens desempenhar um papel tão importante) seu aspecto negativo, no entanto, apresenta-se no apagamento da diferença, da estranheza que artefatos do passado geram quando parecem se fechar para nossas perguntas a eles 10. Como romper a reificação dos instrumentos hermenêuticos, dos métodos de análise estética? Como restituir ao objeto o que é do objeto, a sua alteridade mais secreta? Durão amplia o foco dessas questões a partir da consideração do oposto da obra de arte, do “lixo” da indústria cultural. Este, surpreendentemente, adquire um estatuto revelador para o crítico cultural interessado na não-identidade da arte. Por dois motivos. Em primeiro lugar, segundo Durão, é possível mostrar que o “puro ruim não existe”, que mesmo o mais reificado produto da indústria cultual contém, latente, um momento de utopia, anuncia uma promessa de satis- fação e liberdade 11 (ainda que não as sustente de modo radical). Além disso, mais fundamentalmente, trata-se de ter consciência de que, se o “lixo” da indústria cultural impõe uma cunha hermenêutica a seus receptores, impedindo-os de desenvolver uma leitura diferenciada do mundo, em franca contraposição, trata-se, para a crítica, de apontar estes entraves, para restituir o potencial obstruído de leitura do mundo 12. Enfim, é possível pensar a prática crítica e a leitura forte da obra de arte como um tipo de amizade, de uma relação em que atividade e passividade se complementam, para articular um campo de forças em que as tensões possam se exprimir, ao mesmo tempo em que a dominação e a violência, desse modo, possam ser substituídas pela coexistência vivificadora e autônoma. Talvez seja por isso que Durão enxergue nas relações interpessoais um potencial utópico não-desprezível.

A fragilidade e a resistência das relações humanas

Um dos mais interessantes fragmentos de Durão é o de número 41, sobre o universo social da praia de Copacabana. Enquanto a opção mais fácil para o intelectual crítico brasileiro seria a de apontar para o engodo da intimidade entre os socialmente desiguais, na esteira da crítica (justificada, diga-se) de Sérgio Buarque de Holanda à “cordialidade” brasileira, ele toma um outro rumo. Sem negar a injustiça impressa na realidade, ele chama a atenção para o teor de verdade da sociabilidade afetiva e próxima do carioca. O “esforço de se ligar a um outro” e o “ser amigável como ponte” portam algo de verdadeiro, na medida em que manifestam, de algum modo, um confronto com a realidade social que faz dos indivíduos “mônadas sociais irreconciliáveis”. O criminoso, que também circula por lá, lembra Durão, é aquele que nega essa proximidade, que expõe sua insuficiência 13.

Esse limite da proximidade carioca é posto em questão, nova- mente, por outra via, a do comentário da relação amorosa. Se o vocábulo “relação” chama para si a atenção para o aspecto desregulamenta- do e espontâneo do amor, é preciso apontar, lembra Durão, para aquilo que a “relação” exclui: a abertura para o mundo além das subjetividades envolvidas 14. O conteúdo utópico das relações interpessoais tem seu funda- mento na simples conversa, relação em que os interlocutores não se engajam primariamente em um objetivo instrumental, a qual Durão confere dignidade, ao comentar o texto de Jakobson, “Lingüística e Poética”. Ele ressalta o elemento de contato da linguagem, a “função fática”, e afirma que a conversa “define um tipo de troca onde o tópico ou o tema é flutuante, onde aquilo que me liga ao meu interlocutor é, simples e unicamente, o prazer de tê-lo à minha frente” 15. A dignidade do individual, do ôntico, em sua finitude e alteridade, é estabelecida, assim, na faculdade da linguagem, capaz de estabelecer e manter pontes com o outro, concreto e único. Não se deve esquecer, além disso, o elemento de prazer envolvido no exercício dessa faculdade. Esse elemento de prazer tem a ver com a experiência do reconhecimento da semelhança do “outro” – indivíduo, obra de arte, animal, coisa – com o sujeito. Essa dimensão mimética da experiência, desse modo, se faz notar como elemento fundamental tanto da ética quanto da estética. Durão, nesse sentido, em ressonância com Lévinas, chama a atenção para o elemento utópico da experiência da face, do rosto. Cito: Nossa capacidade de identificar caras, um ímpeto não-intencional e não-consciente, é talvez a prova maior da possibilidade concreta da utopia. O rosto faz humano (…) Desde Auschwitz, seu inimigo maior é o número. A felicidade reside no contrário, no aprendizado da leitura da face. O que é o amor senão a multiplicação dos rostos do ser amado? Quem ama está sempre vendo novas faces no outro, faces que no fundo quebram as amarras do indivíduo: de quem contempla, que se perde no rosto amado, e de quem é contemplado, cada vez com uma outra cara 16. Essa “possibilidade concreta da utopia” é o que cabe desdobrar como conceito a uma teoria atenta tanto ao particular individual e material quanto ao universal, à dinâmica social que lhe dá a lei e o insere numa ordem. A experiência do pensamento como alegria utópica

A referência a uma “teoria da alegria” 17, que me autorizo a interpretar como uma teoria alegre, faz eco aos dois autores que mencionei no início, Nietzsche e Adorno. Se, para o primeiro, a noção de uma “gaia ciência” 18 recebia o sentido de uma crítica da construção de mundos inteligíveis e da separação filosófica tradicional entre corpo e espírito (que desvalorizava o primeiro para melhor assegurar a dominação do último), em Adorno, a teoria, sobretudo a teoria moral, é tida como uma “triste ciência” 19, na medida em que “não há vida correta na falsa” 20, e que tanto pensamento quanto ação se vêm enredados na perpetuação da dominação social da natureza externa e interna. No entanto, para o autor da dialética negativa, resta ao pensamento a tarefa de determinar as condições de efetivação de uma “humanidade como utopia” 21.

Em Adorno, a “vida correta”, a arte autêntica e o pensamento forte se medem pela sua negatividade com relação ao estado de coisas existente, de super-exploração do trabalho e degradação da natureza, no capitalismo tardio. Durão recolhe a lição de Adorno, e sua escolha pelo fragmento é sinal disso: a “teoria da alegria” que persegue deve surgir do contato com os objetos, com a configuração de cultura e da sociabilidade no atual estádio histórico. O fragmento permite certa “lógica de sedimentação”, pois “os fragmentos devem dar boas vindas à insistência daquilo que, apesar de si próprios, se faz repetir” 22. O fragmento, recusando a lógica do sistema dedutivo, de premissa e conclusão, dá lugar à experiência do confronto do pensamento com o pensado, permitindo desenhar a figura de uma “utopia do saber”, afim à noção adorniana de “constelação”, que Durão descreve da seguinte maneira: Um bom conceito se deixa isolar apenas relutantemente, sob a pena de se oferecer como vítima. Aquilo que quer ter de único, de singular, aconteceria da sedimentação de seus contextos de ocorrência, que necessariamente deixam restos, parte de seu sentido para a qual permanecemos na maioria das vezes cegos 23.

Esse elemento fugidio do conceito, Durão o aborda por meio do que se poderia chamar de primazia da idéia em relação ao sujeito, à qual alude diversas vezes, ao dizer que “as idéias nos pensam” 24, que “as idéias nos possuem 25 ”, que, ao “caçador de idéias” intelectual, vale lembrar que “uma idéia não gostaria de ser caçada; ao invés, disso, preferia ser paparicada, cortejada, até mesmo às vezes esquecida para ser depois revisitada” 26. Mais adiante, ele aponta para a fragilidade do pensamento, ao se dar conta de que “é necessário acolhermos os pensamentos, pegá-los no colo e sermos doces com eles, ao invés de tentarmos ser mais fortes que eles” 27. Todas essas formulações sugerem a noção de uma necessidade de uma contínua auto-reflexão do pensamento a respeito de seus próprios pressupostos – mais uma afinidade com Nietzsche e Adorno, que denunciaram o caráter arbitrário e violento do sistema, mais afeito ao aumento da dominação sobre as coisas do que a uma relação verdadeira com sua não-identidade. Esse acolhimento da diferença do pensado em relação ao pensamento, Durão várias vezes o relaciona à idéia da necessidade de um corte no fluxo discursivo geral, num momento de silêncio da teoria. Uma fórmula resume essa concepção: “em silêncio, dar tempo para as coisas falarem” 28. Não se trata, porém, da busca do místico, que motivou um Wittgenstein, por exemplo. Trata-se de um difícil trabalho do sujeito, de encontrar e valorizar na experiência os “brancos” do discurso e da sobrecarga de sentido. Momentos tais como os sonhos diurnos, as conversas e os devaneios 29 – cujo potencial utópico foi valorizado por Ernst Bloch. Nesses blocos de experiência em que “para além de qualquer intenção individual ou consciência subjetiva” se expressa o anseio pelo inteiramente outro, o sujeito deve tentar encontrar a pulsão que ancore o pensamento, para além de todo sentido socialmente instaurado de felicidade, justiça e liberdade. Espero ter podido indicar, ao cabo, que há uma unidade que atravessa todos esses núcleos temáticos, e que tem a ver com algo extremamente difícil que o autor logra realizar, a meu ver: a articulação de uma tipologia contemporânea das dificuldades de se aceder a uma relação dialética (vale dizer, reflexiva e, ao mesmo tempo, interna, colada aos fenômenos) com o universo hiper-regulamentado da vida contemporânea, nos seus aspectos culturais, cognitivos e sociais. Ao fazer isso, penso que ele contribui para desfazer o equívoco, por um lado, de ver na teoria crítica da sociedade um mero exercício de pessimismo cultural, e, por outro, o engano daquelas “coleiras mentais” que, mais afeitas à administração da produção acadêmica do que à coisa mesma, ao exercício do pensamento, insistem em diferenciar entre autores e temas “sérios” daqueles pretensamente “não-filosóficos”. A estes, e a todos nós, o livro de Fábio Durão faz pensar e dá alento.

Notas

1 WEBER, Max. A ciência como vocação. In: Ciência e política: duas vocações. Trad. de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 43.

2 DURÃO, Fábio. Rio-Durham (NC)-Berlim: um diário de idéias. Campinas: Publicações IEL/UNICAMP (Coleção Work in progress), 2009, p. 16.

3 Idem, p. 32.

4 Idem, p; 34.

5 Idem, p. 46s.

6 Idem, p. 58s.

7 Durão, op. cit., p. 58.

8 Idem, p. 70.

9 Durão, op. cit., p. 27.

10 Idem, p. 45.

11 Durão, op. cit, p. 65.

12 Idem, p. 56.

13 Idem, p. 39s.

14 Durão, op. cit., p. 31s.

15 Idem, p. 69.

16 Idem, p. 34.

17 Durão, op. cit, p. 76.

18 NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cf. especialmente o aforismo 1, p. 52s, sobre a valorização do ôntico, e o aforismo 324, p. 215, que fala da vida como experiência de alegria e conhecimento.

19 ADORNO, Theodor W. Minima Moralia: reflexões a partir da vida danificada. Trad. de Luiz Bicca e revisão de Guido de Almeida. São Paulo: Ática, 1992, p. 7.

20 Idem, p. 33.

21 Idem, p.67.

22 Durão, op. cit., p. 33.

23 Idem, p. 42.

24 Idem, p. 44, 74.

25 Idem, p. 76.

26 Idem, p. 47.

27 Idem, p. 54.

28 Idem, p. 65

29 Idem, p. 62

Douglas Garcia Alves Júnior-Professor do Departamento de Filosofia da UFOP.

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