Arte e Filosofia no Idealismo Alemão – WERLE; GALÉ (C-FA)

Marco Aurélio Werle; Pedro Fernandes Galé (Orgs). Arte e Filosofia no Idealismo Alemão. São Paulo: Barcarolla, 2009. Resenha de: VIDEIRA, Mario. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.15 Jun./Dez., 2009.

“A arte […] consegue para a intuição justamente aquilo que a mais alta filosofia consegue através da especulação”1

Numa carta de 06 de janeiro de 1795, Schelling escreve a Hegel: “A filosofia ainda não chegou ao final. Kant deu os resultados: faltam ainda as premissas”. E conclui: “Nós precisamos seguir adiante com a filosofia!”.

Um dos principais problemas herdados pelos filósofos póskantianos foi o da passagem entre filosofia teórica e filosofia prática. A exigência do incondicionado, indicada por Kant no § 76 da Crítica do Juízo foi profundamente sentida pelos pensadores pós-kantianos, para os quais o problema do Absoluto se resolveria, de certa forma, no âmbito da arte.

Desde o chamado “O mais antigo programa de sistema do Idealismo Alemão” já se indicava que a unificação entre teoria e prática deveria ser efetuada através da beleza:

Por último, a Idéia que unifica tudo, a Idéia da beleza, tomada a palavra em seu sentido superior, platônico. Pois estou convicto de que o ato supremo da Razão, aquele em que ela engloba todas as Idéias, é um ato estético, e que verdade e bondade só estão irmanadas na beleza. O filósofo tem de possuir tanta força estética quanto o poeta. Os homens sem senso estético [ästhetischen Sinn] são nossos filósofos da letra. A filosofia do espírito é uma filosofia estética […]

A poesia adquire com isso uma dignidade superior, torna-se outra vez no fim o que era no começo – mestra da humanidade ; pois não há mais filosofia, não há mais história, a arte poética sobreviverá a todas as outras ciências e artes.2

A união entre necessidade e liberdade, a passagem entre filosofia teórica e prática será consumada por meio da arte. Para alguns autores, a arte fornece de maneira imediata – isto é, através de uma intuição estética – aquilo que, no âmbito da teoria só pode ser concebido como uma “aproximação infinita”. No “Sistema do Idealismo Transcendental” (1800) de Schelling, o belo será considerado como sendo o infinito exposto finitamente [ das Unenedliche endlich dargestellt ]. Para ele, a intuição estética nada mais é do que a intuição intelectual que se tornou objetiva: “aquilo que para o filósofo já se divide no primeiro ato de consciência, e que é, de outra forma, inacessível a qualquer intuição, resplandece através do milagre da arte, a partir de seus produtos”3 Daí a tese, defendida por Schelling, de que a arte seria o único e verdadeiro órganon e, ao mesmo tempo, o documento da filosofia.

A partir dessas considerações pode-se perguntar: como foi possível que a arte alcançasse essa autonomia e dignidade? De que maneira a arte representa, a partir desse momento, um campo privilegiado para a afirmação do absoluto? Estas são algumas das questões investigadas na coletânea de ensaios intitulada “Arte e filosofia no Idealismo Alemão” que acaba de ser publicada pela Editora Barcarolla. Esse livro é resultado do colóquio internacional “Estética no Idealismo Alemão”, promovido pelo Departamento de Filosofia da USP em outubro de 2007, e reúne nove textos de importantes pesquisadores brasileiros e estrangeiros.

Como os organizadores ressaltam logo na introdução ao volume, o livro não pretende ser uma apresentação sistemática de todos os temas do Idealismo Alemão. Ao invés disso, procura-se tratar a estética desse período “como uma questão aberta, sobretudo como um desafio ao pensamento e que comporta diferentes enfoques” (p. 11). Com efeito, a variedade de enfoques e temáticas dos ensaios dão uma mostra da complexidade das relações entre arte e filosofia no Idealismo, que é certamente um dos períodos mais ricos da filosofia alemã. Os ensaios concentram-se principalmente no exame das filosofias de Kant, Schelling e Hegel. No campo da literatura, o autor-chave é Goethe.

A temática do gênio, central para a reflexão filosófica do período, é examinada num ensaio do professor Ubirajara Rancan de Azevedo. Trata-se de um estudo bastante específico, que por meio do confronto com outros textos de Kant (como alguns fragmentos das Preleções sobre Antropologia ), busca examinar a definição kantiana do gênio como “inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá regra à arte”, tal como exposta no § 46 da Crítica do Juízo. A temática da experiência estética em Kant e Schiller é examinada num ensaio de Christian Hamm, que procura mostrar em que pontos a concepção schilleriana difere da kantiana e como “a instauração da nova perspectiva estética implica alterações absolutamente essenciais em quase todos os componentes da constelação original kantiana”, como por exemplo, na função sistemática do juízo (p. 72). Além disso, Hamm mostra de que maneira a interpretação (moral) da atividade estética do sujeito permite a Schiller o desenvolvimento de sua proposta de uma educação estética do homem.

A relação entre monismo e filosofia da arte em Schelling é estudada num excelente artigo de Christian Klotz, que examina a teoria da forma de representação simbólica exposta particularmente na parte geral das preleções sobre Filosofia da Arte (1804/05).

Klotz defende a tese de que essa teoria seria uma transformação da concepção kantiana de idéia estética, motivada pelo ponto de vista monista de Schelling (p. 107). Além disso, Klotz procura mostrar de que maneira as transformações da estética kantiana levadas a cabo por Schelling, de certa forma, podem ser consideradas como uma antecipação de elementos da estética de Hegel.

O artigo de Eduardo Brandão procura traçar alguns paralelos entre as filosofias de Schelling e de Schopenhauer, a partir da noção de “ideia”. Segundo Brandão (p. 15), o Mundo como Vontade e Representação de Schopenhauer “repõe no interior da metafísica da Vontade o problema clássico que se arma em torno da noção de ideia e que é enfrentado por Schelling”.

A filosofia de Hegel é trabalhada nos ensaios de Javier Dominguez Hernández, de Klaus Viehweg e de Marco Aurélio Werle. O professor Klaus Viehweg examina a superação da orientalidade e do classicismo pela arte moderna, bem como o tema do “fim da arte” na Estética de Hegel. Um ponto interessante para o qual Viehweg chama a atenção do leitor é a atualidade da filosofia de Hegel. Segundo ele (p. 159), Hegel “fixou linhas fundamentais, forneceu alicerces sobre os quais uma filosofia da ar te atual pode ser construída”. O tema do caráter pretérito da arte em Hegel é examinado também no artigo de Javier Hernández. Segundo ele, a definição da arte levada a cabo por Hegel é feita a partir de sua tarefa na formação do espírito e cultura humanos. Dessa forma, a função histórica da arte na cultura moderna não seria t anto de conteúdo, ou seja, “não se trata de uma formação substancial ( substantielle Bildung ), mas sim de uma formação formal ( formelle Bildung )” (p. 84). Tal como Viehweg, também Hernández critica uma interpretação classicista da estética de Hegel, que impede que se perceba “a atualidade de suas exposições” (p. 90). O artigo de Marco Aurélio Werle explora o tema da subjetividade artística em Goethe e Hegel. Partindo de uma análise do final da primeira parte dos Cursos de Estética (mais especificamente, do subcapítulo sobre o artista ), Werle defende que Hegel dialoga com Goethe e o toma como referência central em sua argumentação, de modo que Goethe seria, de certa forma, o protótipo da subjetividade para Hegel. Segundo Werle, “Goethe se apresenta, para Hegel, como um exemplo acabado da única possibilidade que resta para a arte na época moderna: seguir a via da interioridade subjetiva e reflexiva, priorizar os desdobramentos autônomos do sujeito em suas manifestações” (p.188).

Se Werle examina principalmente exemplos da produção lírica de Goethe nesse confronto com a estética de Hegel, o professor Vinícius de Figueiredo analisa o romance Os sofrimentos do jovem Werther, procurando assinalar um ponto de contato entre essa obra e a primeira Crítica de Kant. Segundo ele, “tanto Goethe quanto Kant edificam um modelo de crítica da positividade, que se legitima pelas prerrogativas literárias e especulativas atribuídas à indeterminação – seja do narrador, como no caso do Werther, seja da atividade reflexiva, como no caso da Terceira Seção da Analítica Transcendental da Crítica da Razão Pura ” (p. 39).

Também o artigo escrito por Franklin de Matos está voltado para uma análise do Werther. Mas aqui, o foco está mais no exame da forma literária adotada por Goethe, a saber: o romance epistolar, tão em voga no século XVIII. Matos compara as soluções adotadas por Goethe com aquelas adotadas por autores como Montesquieu, Rousseau e Laclos, e mostra de que maneira a forma d o romance epistolar seria a fórmula romanesca que mais se aproxima do drama pois, excetuando-se os prefácios, advertências ou notas de um editor fictício, são os próprios personagens que toma m a palavra.Por meio de uma análise exemplar, concisa e elegante, Franklin de Matos aponta a “notável destreza” de Goethe ao lidar com “as faces lírica e narrativa do gênero epistolar” (p. 147).

Através deste breve resumo da temática trabalhada em cada um dos capítulos, pode-se notar que os mesmos constituem uma contribuição valiosa para a compreensão de aspectos relevantes desse período decisivo da filosofia alemã. Embora o nível de detalhamento de alguns dos ensaios possa torná-los potencialmente mais úteis para os especialistas na área, parece-nos que o livro como um todo também pode ser de grande interesse para um público mais amplo, especialmente no que diz respeito ao exame das conexões entre a filosofia e a literatura.

Notas

1 SCHLEGEL, A. W. Die Kunstlehre. Hg. E. Lohner. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1963, p. 72.

  1. SCHELLING, F.W.J. Obras escolhidas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1984, pp. 42-3.

3.SCHELLING, F. W. J. Ausgewälhte Schriften I. Frankfurt-am-Main.: Suhrkamp, 2003, p. 693.

Referências

SCHELLING, F.W.J. Obras escolhidas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

_____.Ausgewälhte Schriften I. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 2003.

SCHLEGEL, A. W.Die Kunstlehre. Hg. E. Lohner. Stuttgart: W.

Kohlhammer, 1963, p. 72.

Mario Videira Doutor em Filosofia (FFLCH-USP)

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Leis da Liberdade – KANGUSSU (AF)

KANGUSSU, Imaculada. Leis da Liberdade. São Paulo: Ed.Loyola. Resenha de: FIGUEIREDO, Virginia. Sobre Marcuse, 40 anos depois de 68. Artefilosofia, Ouro Preto, n.6, maio, 2009.

“A subjetividade dos indivíduos, a sua própria consciência e inconsciência, tendem a ser dissolvidas na consciência de classe. Assim é minimizado um importante pré-requisito da revolução, nomeadamente, o fato de que a necessidade de mudança radical se deve basear na subjetividade dos próprios indivíduos, na sua inteligência e nas suas paixões, nos seus impulsos e nos seus objetivos. A teoria marxista sucumbiu à própria reificação que expôs e com- bateu na sociedade como um todo.” Essa passagem que extraio do livro Leis da Liberdade é uma citação de outro livro, A Dimensão Estética, de Herbert Marcuse. Ela exprime, com alguma clareza, a atitude desse filósofo que podemos considerar como membro da Escola de Frankfurt, mas também como um crítico da ortodoxia marxista, talvez pela influência que Martin Heidegger, seu orienta- dor em Freiburg, deixou marcada em seu pensamento. Neste ano de 2008, lembrando a importante participação e liderança de Marcuse no movimento estudantil de 1968, principalmente na Universidade da Califórnia, em San Diego, onde o filósofo era, na época, professor, nada mais justo que comemoremos os 40 anos de Maio 68, com a publicação do livro de Imaculada Kangussu, que é resultado de uma tese sobre Marcuse, defendida com muito brilho na UFMG em 2001. A autora, que há tempos milita no difícil questionamento, hoje e sempre, das relações entre arte e política, quer chamar nossa atenção para o sentido de subversão política que a dimensão estética pode conter. Nas suas palavras, a dimensão estética aparece como uma “trincheira para a potência de negação”, na qual se exercitam as leis da liberdade, que são a marca distintiva da natureza humana. Também são de se ressaltar, no livro As Leis da Liberdade, a s incursões psicanalíticas, sobretudo em conceitos freudianos, como os de pulsão e princípio de prazer, a partir dos quais nos é revela- do o sentido material e natural da razão marcuseana, bem como o progressivo recalque a que a mesma foi e continua sendo submetida pela ordem perversa do sistema capitalista.

Renovando o espírito de contestação e rebeldia, com o qual toda arte digna desse nome está comprometida, o livro pretende alcançar a definição de uma “Nova sensibilidade” (é assim que um dos capítulos se intitula) descondicionada. Se, junto com Freud, Marcuse reconhece o valor metapsicológico das estruturas pulsionais, diferentemente dele, o filósofo atribuiu a elas certa plasticidade e, portanto, certa capacidade de efetuar mudanças da organização social. Tomando, talvez como pressuposto, certa constatação de fracasso do que estava implícito nas propostas das estéticas vanguardistas – o que poderia ser resumido na estratégia de dissolução da subjetividade, como se esta última fosse o foco privilegiado da ação individualizadora do capital – a proposta de retomada da obra marcusiana parece querer indicar a necessidade da constituição de uma “nova subjetividade” positiva (e não mais dissolvida e negativa, o que, talvez tenha, segundo esse diagnóstico, favorecido o avanço voraz da economia pródiga de recalques do capital) ou estética, forte o suficiente para o confronto e a resistência frente à ordenação do nosso status quo.”

Virginia Figueiredo-UFMG/CNPq.

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Viagem de um alemão à Itália – MORITZ (C-FA)

MORITZ, Karl Philipp. Viagem de um alemão à Itália. Tradução, introdução e notas de Oliver Tolle. São Paulo: Humanitas – Imprensa Oficial, 2008. Resenha de: NASCIMENTO, Luís F. S. Uma Itália em alemão. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.14, Jun./Dez., 2009.

Publicado entre os anos de 1792 e 1793, a Viagem de um alemão à Itália de Karl Philipp Moritz ganhou recentemente uma bela versão em português, feita por Oliver Tolle. Se não informa tudo, o título deste volume diz algo importante acerca de seu conteúdo e do modo como ele é apresentado: estamos diante da obra de alguém que, desde o início, assume a posição de um estrangeiro. Sabemos que Moritz não é o primeiro nem o último que se encanta por esse lugar : Shaftesbury, Winckelmann, Herder, Goethe1, Nietzsche e tantos outros, a lista de artistas, eruditos e literatos “estrangeiros” que viveram, escreveram ou refletiram sobre a Itália parece infinita. Por que, podemos sempre nos perguntar? Qual é o motivo desse encanto? O que tem o solo italiano que tanto fascina e faz com que os habitantes de outros países se interessem por ele? Sua beleza, ou antes, a beleza que ele nos permite vislumbrar, respondemos de pronto. Se é assim, então em que medida a visão da beleza da Itália que Moritz pretende nos apresentar já pressupõe o fato de ela ser contemplada por um olhar estrangeiro? Escrito em uma forma que lembra a do diário, o livro é composto de várias notas que por vezes registram a data em que foram compostas.

Na expressão do tradutor da edição brasileira, são fragmentos organizados por rubricas, tais como Pérsio, Os arabescos na loggia de Rafael, Alegoria, Michelangelo etc. Em uma dessas partes de seu livro, denominada O belo é uma língua mais elevada, Moritz nos diz o seguinte:

Onde a harmonia do todo recebeu um nome, ali foi desvelado o belo; o nome podia ser Apolo, Júpiter ou Minerva; o belo podia elevar-se suavemente na coluna coríntia ou causar a impressão de resistir, com força rochosa, à pressão do alto na coluna dórica; ele podia se revelar na constituição delicada dos membros da beleza feminina mais elevada ou no peito e nas costas de um Hércules. (p.160, destaques nossos)

Todas as vezes em que uma certa variedade de elementos se apresenta como sendo uma unidade, onde quer que se ofereça “nos objetos mais diversos um ponto de vista principal para o todo” (p.187), há aí o que Moritz chama de belo. A beleza pode se manifestar de modos distintos e ganhar vários nomes: Apolo, Júpiter, Minerva ou Hércules são exemplos desses lugares ou momentos nos quais a beleza “se desvela”, como dizia Moritz no trecho acima citado. Cada um deles pode ser dito belo na medida em que são totalidades nas quais as partes formam um único e mesmo todo – uma “multiplicidade na unidade” (p. 10). Pois bem, se é verdade que o nome Itália é ele mesmo uma totalidade que unifica um certo número de elementos diversos, se podemos conferir ao solo italiano o atributo belo, então é lícito perguntar: como pensar a multiplicidade que esse nome (Itália) encerra? O que nos levaria a uma segunda indagação: qual seria o “ponto de vista” que possibilitaria a visão da união das partes que formam esse todo?

Com relação à primeira questão, podemos dizer que de um modo geral o livro de Moritz nos apresenta três “Itálias” que se complementam e formam uma só: a antiga, a renascentista e a do final do século XVIII. Por todo o seu texto vemos aproximações e diferenças entre um passado longínquo, um outro mais recente e o presente. Se em alguns momentos Moritz afirma não haver da Antiguidade “mais nenhum vestígio” (p. 103), em outros nos lembra que a Roma antiga vive em provérbios repetidos por italianos setecentistas, tais como “ ‘Il Romano non é vinto, se non é sepolto’, ‘o romano só é sobrepujado pelo túmulo’” (p. 194) ou quando as mulheres dessa cidade dizem: “ ‘Io sono Romana!’” e, assim, “tal como as antigas romanas, elas conservam a sua cabeça erguida” (p. 219). Muitas coisas mudaram na Itália ao longo dos séculos, mas essa mudança que brota de suas ruínas continua a expressar, a partir de diferentes nomes, a mesma unidade: Marcial, Rafael, Michelangelo, Ticiano, assim como a descrição das cidades, ruas e costumes de outrora e de hoje podem ser vistos como diferentes imagens ou partes de uma mesma beleza chamada Itália.

Entender essa dinâmica que liga em um todo elementos distintos e, sob certos aspectos, opostos, é condição sem a qual não se pode compreender o que torna esse país belo:

Das ruínas brotou a figueira selvagem e, por meio do seu crescimento ininterrupto, ela separa uns dos outros os encaixas mais firmes.

Mas mesmo com esse crescimento a vista das ruínas é pictórica e bela – e constitui o mais encantador contraste ver b rotar o verde mais jovem das pedras modernas e das fendas da muralha caída, lançando suas sombras sobre esses restos veneráveis da Antiguidade; e o pintor de paisagens encontra aqui sempre uma colheita rica, pois vê unificado na natureza aquilo que a imaginação mais viva não poderia reunir de modo tão romântico. (p. 137, grifo nosso).

A questão agora é: o que é preciso para que se chegue a esse olhar ? O que temos de fazer para ascender a essa posição capaz de ver a mais harmônica das combinações em um conjunto tão díspar de elementos, tal como uma paisagem que reúne antiguidade e modernidade, arte, imaginação e natureza? Um trecho no qual Moritz comenta a beleza do trabalho de Ticiano é bastante esclarecedor a esse respeito:

Para considerar, contudo, uma pintura de Ticiano em sua beleza, o olho deve primeiro se acostumar a ser inteiramente olho, a se comportar com passividade, a não espreitar e não investigar demasiadamente, mas permitir que a impressão do todo atua gradualmente sobre si, a fim de que se procure o belo, que está aqui imediatamente diante dos olhos, não muito longe da fantasia ou mesmo do pensamento./ Para cada obra autêntica deve-se despertar primeiro uma espécie de sentido mais alto, e certamente é falso afirmar que é uma prova do belo autêntico agradar tanto à massa ignara quanto ao especialista, mostrando o seu efeito logo ao primeiro olhar. (p.35, grifo nosso)

Há algo de paradoxal no trecho acima e que, por sua vez, mostra a complexa atividade do modo como Moritz pensa a contemplação da beleza. Se, desde o primeiro momento, a totalidade do objeto belo está dada diante dos olhos, isso não exclui um trabalho ou atividade que busca acomodar o olhar àquilo que ele julga. Nesse sentido, a tarefa é a de procurar ou desvendar o que já é evidente, o que significa aprofundar-se no conhecimento das relações que fazem do belo uma evidência. Em outras palavras: o olho não deve passar a ver outra coisa quando investiga o objeto que tomou como belo, ele apenas o vê melhor à medida que se acostuma a se r olho e se acomoda ou se familiariza à beleza que contempla:

O colorido de Ticiano não surpreende propriamente, mas exerce muito mais uma atração suave – e apenas quando contemplado com maior demora descobre-se a riqueza e a diversidade infinita no simples. (p. 35, grifo nosso)

Talvez encontremos aqui o ponto de vista pelo qual seria possível desvendar alguns dos infinitos elementos que tornam a Itália tão simples e interessante quanto bela aos olhos de um Moritz: trata-se daquela visão que identifica na beleza de seu objeto uma atração suave que não a surpreende por completo, mas que ainda assim a fascina, pois sabe que há ali segredos a serem desvendados e, nesse sentido, alguma estranheza capaz de manter sua atenção. Daí a importância de se ater às diferenças e às diversidades: elas confirmam e enriquecem a unidade. É curioso notar como em alguns momentos dessa obra a multiplicidade de aspectos a partir dos quais Moritz apresenta a sua Itália acaba por compreender a Alemanha. Ao comparar provérbios italianos com ditos alemães, quando estabelece relações entre os modos de pensar e falar dos dois povos, o autor põe lado a lado o olho e o seu objeto: nesse instante, o seu ponto de vista estrangeiro e a paisagem italiana que ele admira são elementos complementares. Por certo, as estranhezas e as diferenças entre esses dois pólos persistem, mas já temos aqui alguma unidade, o suficiente para que se possa descrever, julgar ou apresentar ( darstellen ) uma Itália em alemão.

Nota

1 Vale lembrar, como faz o tradutor da versão brasileira, que Moritz conheceu Goethe e Herder na Itália

Luís F. S. Nascimento – Professor do Departamento de Filosofia da UFSCar.

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Shakespeare, o gênio original – SÜSSEKIND (C-FA)

SÜSSEKIND, Pedro. Shakespeare, o gênio original. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008). Resenha de: CHAVES, Ernani. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n.13 Jan./Jun., 2009

O título deste livro, à primeira vista, é enganador. De imediato, podemos simplesmente pensar que seu assunto é Shakespeare. Apenas o leitor mais afeito às questões de filosofia da arte prestará atenção ao que segue no título: não se trata apenas de mais um estudo sobre o grande dramaturgo inglês (o maior em língua inglesa, diz-se; o maior dentre todos em todos os tempos, também se costuma dizer), mas de um estudo a partir de uma certa perspectiva, a da questão do gênio, e, mais ainda, a partir de uma concepção bem precisa de gênio, a do gênio “original”. Ora desfeito o engano, as coisas ficam bem interessantes, uma vez que é necessário perguntar, obviamente, o quem vem a ser um “gênio original”.

Responder a essa pergunta significa situar filosófica e historicamente a questão do gênio, conceito que Pedro Süssekind reconstrói, conduzindo-nos com isso para o interior de uma discussão fascinante, muito bem localizada no tempo e no espaço: trata-se, acima de tudo, de uma questão alemã, capítulo fundamental da história da reflexão filosófica sobre as artes nos séculos XVIII e XIX; trata-se, de fato, da grande contestação, iniciada por Lessing, do modelo erigido pelos franceses, em especial por Corneille e Racine, e que dizia respeito às regras que deveriam presidir a atividade de qualquer dramaturgo que quisesse ser reconhecido por sua excelência.

Do ponto de vista do classicismo francês, apesar de uma ou outra modificação, Aristóteles teria dado à posteridade, em sua Poética, o maior de todos os presentes: os elementos a partir dos quais se poderiam construir as regras a serem obedecidas tendo em vista a perfeição. Nesta perspectiva, “gênio” e “engenho” se complementam, ou seja, o gênio se caracteriza pelo total e absoluto domínio de uma técnica específica, que segue obedientemente as normas estabelecidas para distinguir a boa da má tragédia e, por conseguinte, o que é belo e elevado por oposição ao que é feio e decaído. Dessa maneira, o classicismo francês dá continuidade a uma interpretação iniciada ainda na Renascença, período histórico em que a Poética é redescoberta. Assim sendo, as teorias normativas da arte “associavam o talento a uma técnica apurada, a uma perícia de execução, à realização de uma obra sem erros, equilibrada e arduamente alcançada” (pp. 7-8).

O movimento pré-romântico alemão, também conhecido por Sturm und Drang e antecedido por Diderot e Lessing, marca uma ruptura em relação a esse quadro, já na segunda metade do século XVIII, ao defender a liberdade, a espontaneidade na criação e, com isso, também a possibilidade de transgressão das regras, visando os efeitos causados pelas obras de arte. O poeta, liberto da escravidão às regras e normas, será valorizado agora por sua “originalidade”; o talento, desse modo, tornar-se-á superior à técnica e o efeito alcançado pelas obras, às regras. Questão que ganhará, no campo da filosofia, sucessivas elaborações, cujo marco inicial é, sem dúvida, a “3ª. Crítica”, de Kant.

É no interior desse debate que a obra de Shakespeare desempenha o papel principal, pois o bardo inglês será tomado como modelo alternativo às tragédias francesas. Pedro Süssekind, com elegância e precisão, descortina ao leitor seu impacto sobre os eruditos alemães, a fervorosa admiração, poderíamos mesmo dizer, que passam a nutrir por Shakespeare e que um francês, Diderot, já expressara com todas as linhas no verbete “Gênio” da Enciclopédia, onde Shakespeare é considerado um “verdadeiro deus dramático” (p. 67). Em Shakespeare, dizia Herder, a originalidade da criação artística atingirá seu ponto mais alto, pois nele “o novo, o primacial, o de todo diverso mostra a força inata de sua vocação” (p.68).

Tal admiração, entretanto, permite também a crítica e o distancia mento (como é o caso em alguns textos de Schiller, por exemplo, e também de Goethe), mas sem abalar radicalmente essa espécie de veneração. Considerar Shakespeare como o Sófocles moderno, igualar “Hamlet” ao “Édipo Rei” consistiu, sem dúvida, no ponto culminante desse processo, do qual nem mesmo Nietzsche escapou. Lembro apenas, en passant, o aforismo 240 de Aurora.

O livro de Pedro Süssekind é de um rigor exemplar. Rigor no trato com as fontes, na mobilização dos intérpretes e comentado res, na indicação ao leitor brasileiro de textos que passariam facilmente despercebidos. É o caso, por exemplo, do artigo de Walter Benjamin sobre Goethe (escrito entre 1926 e 1928), na verdade um verbete que deveria ser publicado numa Enciclopédia russa e que foi recusado. Rigor exemplar porque se trata de um livro muito bem escrito, fluente, na contracorrente da idéia de que um texto filosófico é necessariamente hermético e esotérico, escrito para iniciados. Ele pode, assim, atingir um público diversificado e não apenas um público acadêmico. Mas ambos, o público mais amplo e aquele especializado e exigente, certamente ganharão muito com a leitura desse livro.

Ernani Chaves Departamento de Filosofia. Universidade Federal do Pará.

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Dialética negativa – ADORNO (NE-C)

ADORNO, W. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: GATTI, Luciano. Exercícios do pensamento. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.85, 2009.

A fama de certos livros costuma induzir o leitor a enganos. A Dialética negativa, publicada originalmente em 1966, poderia ser muito bem recebida no Brasil como a consumação da obra filosófica de Theodor W. Adorno. A aura de obra difícil, reforçada por décadas de inacessibilidade em língua portuguesa, seria uma preparação condizente com o posto de obra-prima. Tal fetiche poderia naturalmente justificar-se em diversos elementos que, de fato, se encontram no livro. Os leitores familiarizados com outros textos do autor não terão dificuldade em encontrá-los, embora alguma suspeita não faça mal a quem folheia o livro pela primeira vez. Os interessados, por exemplo, na gênese das idéias de Adorno saberão rastrear temas que remontam àquelas primeiras conferências do início da década de 1930, sobre “A atualidade da filosofia” e sobre a “Idéia de história natural”. Nestes trabalhos programáticos, com as quais um jovem e pretensioso filósofo estreava na cena universitária alemã, delineava-se o confronto do panorama da filosofia contemporânea, herdeira, segundo Adorno, do idealismo alemão, com uma noção ainda bastante vaga de filosofia materialista, inspirada nos escritos de juventude de Walter Benjamin. Essa intenção de realizar uma crítica imanente da filosofia idealista alemã, avaliando-a pelas suas próprias pretensões, de modo a extrair, nesta crítica, uma concepção bastante singular de materialismo, certamente pode ser reencontrada na Dialética negativa.

Os leitores da Dialética do esclarecimento, por sua vez, reconhecerão elementos da caracterização do estágio mais avançado do capitalismo como um sistema de dominação social que teria colocado fora de campo as esperanças marxistas de realização da filosofia numa sociedade justa. A Dialética negativa poderia ser considerada, então, um aproveitamento desse diagnóstico de época para um minucioso acerto de contas com a tradição filosófica. Um rápido percurso pelo sumário do livro indica ao leitor o confronto de Adorno com disciplinas da tradição – filosofia prática, filosofia da história e metafísica – e com a ontologia heideggeriana. Do ponto de vista da impossibilidade de uma sociedade justa, as ambiciosas construções do pensamento idealista são desmascaradas como falsas. Segundo esse diagnóstico emprestado da Dialética do esclarecimento, a história da filosofia se reverteria, por fim, em uma história de ideologias.

Os interessados nos trabalhos materiais de Adorno, ou seja, naqueles inúmeros ensaios em que trabalhou a especificidade dos objetos mais diversos, da crítica musical à sociologia empírica, talvez busquem na Dialética negativa uma espécie de fundamentação filosófica do ensaísmo adorniano, fazendo eco à idéia corrente de que a filosofia teria alguma prioridade epistemológica perante a crítica de arte ou as ciências humanas. No Prefácio ao livro, Adorno, contudo, adverte contra este posicionamento da Dialética negativa em relação a seus trabalhos materiais. Nada seria mais estranho a uma filosofia materialista do que tal hierarquia entre pensamento e material histórico ou empírico.

As circunstâncias de elaboração do livro fornecem outros indícios contra supostas continuidades entre este livro e o restante da produção intelectual de seu autor. Escrito a partir de conferências apresentadas no Collège de France no início da década de 1960, cada uma das partes do livro foi apresentada e discutida em cursos ministrados por Adorno na Universidade de Frankfurt, ao longo dos anos de 1960, em auditórios ocupados por centenas de pessoas. Seu autor não era apenas um professor universitário, mas também uma personalidade pública no cenário da reconstrução alemã do pós-guerra. A expressiva audiência de seus cursos não era indício apenas da penetração da teoria crítica entre os estudantes, em particular no movimento estudantil alemão, mas também da permeabilidade do pensamento de Adorno à discussão pública das questões que estavam na ordem do dia. A Dialética negativa surge então como documento de um exercício intelectual único, construído no confronto reiterado com as exigências do tempo presente. Lê-lo a partir de teses formuladas em circunstâncias históricas diversas trairia o esforço da teoria crítica em compreender seu próprio tempo. O confronto com a tradição filosófica levado a cabo por Adorno, ausente em sua obra de juventude, também não pode estar vinculado de antemão às teses sombrias da Dialética do esclarecimento, mas deve abrir-se à experiência intelectual a qual ele convida.

O livro que finalmente chega às mãos do leitor brasileiro no aniversário de quarenta anos da morte de seu autor, com tradução cuidadosa de Marco Antônio Casanova e revisão técnica de Eduardo Soares Neves Silva, possui uma posição própria, sem prejuízo da reelaboração de questões que percorrem uma vida de trabalho intelectual. A ocasião deve ser saudada como a possibilidade de transformação da recepção de Adorno no Brasil, ainda fortemente marcada pela Dialética do esclarecimento. Muitos dos ensaios traduzidos por aqui costumam ser lidos e interpretados na chave deste livro. Esta tradução da Dialética negativa, por sua vez, tem o potencial de alterar tal situação, ensejando uma redescoberta de seu autor. Em relação ao livro de 1947, escrito em parceria com Max Horkheimer durante os anos de exílio nos Estados Unidos, o título da Dialética negativa, já indica algo novo. O “negativo” da dialética é inseparável da questão da sobrevivência da filosofia, com a qual Adorno abre a introdução: “A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu seu instante de realização” (p. 11). Esta tese deve ser entendida como a formulação de um diagnóstico de época que não apenas possibilita, mas também exige este exercício do pensamento configurado historicamente no embate da Dialética negativa com a tradição filosófica.

A diferença em relação à Dialética do esclarecimento é grande. Neste livro, a tese da autodestruição do esclarecimento, levada a cabo por um desenvolvimento histórico que conduzira a humanidade a um estado de barbárie, colocava o pensamento crítico diante de uma aporia, pois o conluio de pensamento e dominação social minava a possibilidade da crítica, a qual, contudo, era exercida conscientemente por seus autores. O Prefácio de 1969 para a reedição do livro adverte para a suspensão (mas não interrupção) daquele diagnóstico de época, segundo o qual o capitalismo tardio caminhava para um sistema integrado de dominação. A compreensão do mundo atual nos países avançados como uma trama de dominação formada por mercado, Estado, burocracia e meios de comunicação de massa, que impede o colapso do sistema e sua superação em uma sociedade justa, mantém-se atual no pós-guerra. A guerra do Vietnã, o macarthismo e a corrida armamentista comprovariam essa atualidade. A diferença em relação ao livro da década de 1940 está em que tal diagnóstico não implica a desconsideração da possibilidade de consciência crítica, nem de participação política no contexto das democracias do pós-guerra, como evidencia o posicionamento ativo de Adorno em diversos debates na esfera pública alemã. A questão da possibilidade da emancipação não poderia ser colocada sem esses novos desdobramentos históricos. Em relação à Dialética do esclarecimento, a diferença do diagnóstico de época subjacente à Dialética negativa está em conseguir detectar na história recente elementos singulares de experiência crítica não subsumida à totalidade social. Por este motivo, a possibilidade mesma de composição da experiência torna-se a questão-chave de uma dialética negativa, configurando-a como um exercício de crítica da história do pensamento à luz de um diagnóstico de época. A idéia de experiência como um exercício do pensamento circunscreve o esforço de negação empreendido pela teoria crítica adorniana em função da convergência histórica entre a tradição filosófica e a lógica da dominação social. O esforço de escapar dessa aporia no capitalismo tardio é o que teria exigido esta forma de crítica da filosofia caracterizada por seu autor com a expressão “dialética negativa”.

O recurso do pensamento à tradição filosófica, indicado em tal expressão, exige, portanto, a subversão dessa mesma tradição. Em sua reconstituição por Adorno, o pensamento da negação sempre procurou estabelecer algo positivo. A dialética negativa volta-se contra essa positividade e suas inúmeras formas, particularmente contra a pretensão da dialética idealista de esquadrinhar a totalidade da experiência a partir de princípios subjetivos. Mas não só: ela também se contrapõe à pretensão malograda da dialética materialista de realizar na história a identidade entre sujeito e objeto. Diante do fracasso da emancipação como revolução social, a sobrevivência do pensamento dependeria do esforço de alcançar seus objetos em sua singularidade por meio da auto-reflexão crítica dessa pretensão. Com isso, a idéia de sobrevivência da filosofia só é possível como uma crítica do idealismo que leva em consideração a esperança não realizada de sua realização na história.

Nesta constelação histórico-filosófica desenhada pela Dialética negativa, Adorno busca conferir uma tarefa para a filosofia no presente a partir do destino de um projeto específico: a realização da filosofia por Marx e pelo hegelianismo de esquerda. Como evidencia a caracterização do capitalismo tardio, a pergunta pela possibilidade da emancipação não passa apenas pela consideração do fracasso das esperanças depositadas numa revolução social ou da reversão do caráter autoritário do socialismo real, mas exige também questionar a perpetuação de um estado de não-emancipação no capitalismo mais avançado. Ainda assim, é o fracasso de tal projeto filosófico que constitui a perspectiva para o exame da possibilidade da filosofia contemporânea, a qual é examinada do ponto de vista da “crise do idealismo”. Adorno sabia muito bem que nem todas as filosofias do presente-as quais, segundo ele, disputam um lugar no mercado da teoria – têm esse projeto como referência primordial. Por que então submeter todas a esse crivo? Sua justificativa não passa apenas pela conclusão de que o vínculo entre pensamento e emancipação tem sua referência maior nas pretensões emancipatórias desse projeto, mas também pela convicção de que a história da filosofia foi marcada pela pretensão de conferir um sentido à totalidade da experiência por meio de sua apreensão conceitual. Diante disso, o sistema hegeliano marcaria o apogeu dessa história, assim como o maior fracasso da pretensão de submeter a realidade ao movimento do conceito. E mais: a história recente, bem distante da força emancipatória que o idealismo representou na consolidação da sociedade burguesa, também poderia ser interpretada como a realização nefasta do idealismo. O capitalismo contemporâneo seria a realização perversa do sistema hegeliano, na medida em que todo singular é subsumido à sua lógica de funcionamento. Com isso, na Dialética negativa, a crítica da filosofia é indissociável da crítica social.

O diagnóstico adorniano da filosofia contemporânea – Bergson, Husserl, Sartre, Heidegger – evidencia esta pretensão de conferir sentido à realidade por meio de sua antecipação em categorias subjetivas. Em outras palavras, a filosofia contemporânea resolve a dialética de sujeito e objeto no sujeito. Um diagnóstico análogo conduz também a uma interpretação singular do idealismo alemão, segundo a qual a força da mediação subjetiva da objetividade teria impedido a formulação de qualquer ontologia neste período da história da filosofia. Na filosofia moderna, a ontologia seria índice da impotência do sujeito em satisfazer a pretensão de conferir sentido à objetividade. O projeto da Dialética negativa não é, contudo, negar legitimidade a tal pretensão, descartando-a como mera ideologia, para então instaurar uma nova maneira de pensar para além das aporias da tradição. Tal pretensão constituiu o pensamento na sua história e permanece constituindo-o no presente, na medida em que tal pensamento representa também a história da sociedade atual. Mas retomá-la simplesmente seria ideologia; negá-la, por outro lado, seria ignorar a própria historicidade do pensamento como algo formado nessa tradição. A auto-reflexão do pensamento proposta pela Dialética negativa se traduz então no confronto dessa pretensão com a impossibilidade atual de sua realização.

A organização do livro é um registro de tal confronto. Ele ocorre, primeiramente, na crítica à ontologia heideggeriana, como o projeto de satisfazer uma carência ontológica que, em princípio, é uma manifestação legítima da fraqueza do sujeito contemporâneo em realizar o que ainda parecia possível na época do idealismo alemão. Na seqüência, por meio do confronto reiterado com Kant e Hegel, Adorno apresenta os três modelos de pensamento nos quais a Dialética negativa enfrenta as pretensões de verdade da filosofia prática, da filosofia da história e da metafísica. Como Adorno expõe neste último modelo, teses metafísicas segundo as quais o verdadeiro é o eterno e a realidade é dotada de sentido são desmentidas por catástrofes como Auschwitz e a perpetuação do sofrimento físico. A própria idéia de verdade não é pensável, contudo, caso esvaziada de toda pretensão metafísica. Um momento especulativoéimprescindível ao pensamento insatisfeito com a ordem vigente das coisas. Embora Adorno se recuse a legitimar a metafísica como um modo de apresentar questões últimas como as de verdade e sentido, ele também não nega sua imprescindibilidade ao pensamento por meio da inauguração de um pensamento pretensamente pós-metafísico. No interior da Dialética negativa, ambas as alternativas recairiam em idealismo, pois passariam ao largo da própria configuração histórica do pensamento como algo que veio a ser sob certas circunstâncias. A dialética só poderia ser considerada materialista caso fosse capaz de, paradoxalmente, salvar a pretensão de verdade da metafísica ao confrontá-la com sua caducidade. Somente ao pensamento que reflete criticamente sobre esta pretensão, avaliando-a tanto pela sua imprescindibilidade como pela sua insuficiência, seria reservada a possibilidade de expor o que escapa à identidade do conceito.

Com isto, chega-se ao cerne da crítica de Adorno à filosofia idealista: a caracterização do conceito como produção de identidade. Pensar é identificar, diz Adorno, referindo-se à tendência do pensamento a ser um com o pensado. Esta identidade é uma posição de princípio para a dialética idealista. Para que a negação da negação produza uma posição ela já tem que pressupor essa posição desde o início. Em outras palavras, para que o pensamento possa organizar-se na forma da contradição, ele precisa pressupor a verdade de uma totalidade subjetivamente instaurada, a qual subsume todo particular, falso em sua limitação e imediatidade. Desta descrição da dialética idealista, Adorno apresenta uma tarefa para a dialética negativa. Ela se volta contra a identidade entre o pensamento e o pensado. Ela não visa à identidade, pressuposta desde o início na totalidade, mas à não-identidade entre coisa e pensamento. Dialética significa, antes de tudo, que a coisa não é idêntica ao seu conceito. A inscrição histórica do potencial crítico desta concepção de dialética está na configuração da identidade como a forma atual da ideologia, exigindo uma transformação da noção mesma de crítica da ideologia: não mais apontar a diferença entre realidade e conceito em vista da realização futura deste, mas expor a diferença entre coisa e conceito diante de sua identidade social aparente. A dialética torna-se materialista quando adquire consciência desta não-identidade entre coisa e pensamento. Sua tarefa seria assim alcançar o não-idêntico por meio da lógica da identidade do pensamento ou, na formulação famosa, ir além do conceito por meio do conceito.

Esse lema da Dialética negativa indica que o esforço em expor o não-idêntico não se efetiva na elaboração de um conceito de não-identidade. Na medida em que o que importa a Adorno é evidenciar o laço entre conceito e identidade, alcançar o não-idêntico pela formulação de um conceito de não-idêntico seria absorvê-lo no pensamento da identidade, liquidando a dialética entre identidade e não-identidade. Pelo mesmo motivo, o não-idêntico não é apreensível por meio da intuição ou de alguma outra forma de intelecção não-conceitual, pois isto conduziria a dialética negativa às fronteiras de uma mística negativa. Não é nem pelo pensamento não-conceitual, nem por um conceito de não-identidade, que o pensamento alcança o não-conceitual, mas por uma auto-reflexão do procedimento conceitual a respeito dos elementos não-conceituais necessários à configuração do pensamento como linguagem. Segundo Adorno, os conceitos já estão implicitamente concretizados pela linguagem em que se encontram. A Dialética negativa toma essas significações como ponto de partida para a auto-reflexão do conceito. Tal questão não se traduz, contudo, na elaboração de uma filosofia da linguagem, mas na atenção às convenções e aos elementos retóricos, literários e estilísticos necessários à escrita filosófica. Não se trata aqui, porém, de reverter uma oposição entre lógica e retórica que caracterizaria a história da filosofia, mas de permanecer no médium conceitual, reconhecendo que o pensamento só se configura quando apresentado na materialidade da linguagem escrita.

É possível dizer então que a relação entre exposição e conceito torna possível a Dialética negativa. Conseqüentemente, a exposição adorniana é necessariamente muito distinta da forma de exposição das dialéticas idealista e materialista. Ela não é o encadeamento da figuras do desdobramento imanente da consciência, nem o encadeamento lógico das categorias que organizam o material histórico. Em ambas, haveria a precedência da totalidade guiando a explicitação dos elementos constituintes de um ponto de partida sistemático. A forma de exposição da Dialética negativa, ao contrário, prescinde da idéia de totalidade. Nesse sentido, ela poderia ser caracterizada, antes de tudo, como uma justaposição de elementos materiais e conceituais na composição do texto filosófico. A linguagem não é um instrumento neutro ou transparente para a organização e para a expressão do pensamento, mas o próprio meio no qual a filosofia se configurou historicamente em uma tradição fundada na elaboração e no comentário de textos. Exercitar-se no pensamento implica entrar em contato com os textos legados pela tradição, não só procurando refazer suas operações lógicas e argumentativas, mas também notando a dimensão histórica e estilística de sua configuração literária.

Esse relevo dado à relação do pensamento com a linguagem, com a qual Adorno encaminha a dialética entre conceito e exposição, possui tanto um nome como uma forma literária: constelação e ensaio. Adorno considerou sua reflexão sobre esta forma –O ensaio como forma –uma espécie de programa para sua filosofia tardia, formulada a partir da história sedimentada nessa forma de exposição. O ensaio, diz ele, não constrói seus conceitos a partir de um princípio primeiro, nem reenvia seus objetos, por mediações sistemáticas, a uma totalidade anterior, mas os aborda em seu aqui e agora, como algo culturalmente pré-formado. Tomando de empréstimo um termo de Benjamin, o ensaio é a forma que apresenta a constelação em que o objeto se encontra. “Perceber a constelação na qual a coisa se encontra significa o mesmo que decifrar aquilo que ele [o objeto] porta em si enquanto algo que veio a ser”, diz Adorno na Dialética negativa (p. 141). O termo “constelação” indica, em primeiro lugar, essa inscrição histórica do objeto. Cada objeto traz em si, tal como uma mônada, sua história sedimentada como a cifra do processo pelo qual ele veio a ser. O ensaio é uma exposição dessa constelação histórica. Mas “constelação” caracteriza também esta forma de exposição. Não se trata simplesmente de uma cadeia argumentativa ou da dedução conceitual do objeto, nem de proposição e comprovação de teses, mas de uma disposição de conceitos no texto com o intuito de iluminar a especificidade do objeto. Daí a dificuldade em tratar a idéia mesma de constelação como uma nova categoria filosófica, pois ela desapareceria caso abstraída dos elementos organizados por ela. Pela maneira como dispõem conceitos em torno de um objeto, a constelação mostra como eles são imprescindíveis ao pensamento, mas também como são insuficientes para iluminar um objeto em sua singularidade. Ela apresenta a tendência do conceito a identificar-se com seu objeto e, nesta apresentação, mostra sua insuficiência para alcançar a especificidade do objeto em causa. A constelação se vale assim dos conceitos tanto para denunciar sua lógica de identidade como para iluminar o que escapa a esta lógica. Com isso, ela também busca atender à intenção dos conceitos, mas não pelo processo de identificação, segundo o qual o conceito se sobrepõe a seu outro, e sim pela maneira como os justapõem a fim de iluminar a coisa.

Tal como um ensaio, a Dialética negativa investiga a constelação em que se encontra seu objeto por excelência-o pensamento conceitual cristalizado nos textos da tradição -, o qual ela apresenta por meio da dialética de identidade e não-identidade. Essa peculiar forma de exposição é uma das responsáveis pela dificuldade imposta à leitura do livro. A dialética não se expõe sistematicamente, mas por meio de tópicos curtos, organizados sem continuidade em torno de um problema maior, iluminado e retomado de diferentes ângulos. Talvez a única falha séria da edição brasileira (da Jorge Zahar) seja a supressão dos títulos desses tópicos na parte superior das páginas ímpares. Na edição alemã (da Surhkamp), tais títulos realçam a semelhança de cada trecho a um microensaio, iluminando o caráter descontínuo da exposição, próxima, em sua forma de organização, à justaposição das peças de um mosaico. Longe de ser um elemento preciosístico e sem importância, este cuidado na justaposição de parágrafos e títulos salienta a disposição gráfica do pensamento no formato de livro e, conseqüentemente, seu caráter de objeto cristalizado em texto. Tal materialidade da exposição evidencia que o pensamento não é apenas sujeito em busca de um sentido para a experiência, mas também objeto constituído na densidade material da escrita. A tese do primado do objeto, que marca, para Adorno, a distinção entre filosofia idealista e filosofia materialista, mostra-se nesta auto-reflexão do pensamento como objeto culturalmente pré-formado, cujo sentido se constitui no instante em que é decifrado pelo momento histórico atual. Nesta dialética de sujeito e objeto, a filosofia se assemelha a uma arte de interpretação de textos, ainda que crítica dos pressupostos metafísicos da hermenêutica. Não há nenhum sentido prévio a ser encontrado pela interpretação, mas somente um sentido reelaborado em cada leitura da tradição à luz de um diagnóstico do tempo presente. Como diz Adorno, a dialética busca o que poderia ser verdadeiro ali onde pensamento crítico seculariza um modelo originário irrecuperável de comentário aos textos sagrados.

Esta relação entre sujeito e objeto caracteriza a concepção de experiência própria à Dialética negativa. O romance de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, cuja noção de experiência é retomada por Adorno, pode ser entendido como um modelo dessa relação. A reconstituição da biografia de um indivíduo pela atividade rememorativa não se reduz à expressão subjetiva de uma vivência de mundo. Na medida em que o trabalho de recordação só é levado a termo pela mediação daescrita, opassado individualseobjetiva num processo de apropriação da linguagem e de convenções literárias historicamente configuradas. Quando as leis da memória se entrelaçam com as da escrita na composição da experiência literária, os anos vividos escapam ao domínio exclusivo daquele que os viveu e transformam-se em material infiel às intenções de um autor. No texto, a recordação segue caminhos próprios, os quais, entretanto, são também os caminhos daquele que os recorda. O resultado da recordação não é a vida tal como foi uma vez vivida, mas o passado reconstituído à luz do esforço atual de recordá-lo. Neste entrelaçamento de recordação e escrita, a experiência individual conquista a atualidade objetiva que, segundo Adorno, é o índice de sua verdade.

Tal afinidade da Dialética negativa com a experiência proustiana não é sinal de dissolução de fronteiras entre arte e filosofia, muito menos de projeção na arte de esperanças formuladas no âmbito da filosofia. Ela é mais um índice de que a verdade e a objetividade da experiência não estão em sua ordenação segundo a totalidade que lhe confere sentido, mas no respeito à lógica própria de composição do singular. Num momento histórico de constante ameaça de integração do indivíduo ao sistema social, a não-reconciliação entre indivíduo e totalidade e a irredutibilidade de um singular a universalidades heterônomas são vistas por Adorno como exercícios de negação e resistência articulados em processos de composição da experiência humana individual. Esta referência à experiência literária permite delinear não exatamente um conceito de experiência na Dialética negativa, mas o percurso de uma experiência efetivamente realizada como exercício singular de leitura da tradição filosófica à luz de um diagnóstico de época. Os diversos desenvolvimentos apresentados até aqui poderiam ser reunidos nesta concepção de experiência como exercício do pensamento. A Dialética negativa, contudo, não pretende estabelecer as condições de realização de tal forma de experiência no presente. Sua inscrição histórica, ou ainda, a objetividade de sua pretensão de verdade, não se origina de um ponto de vista universal ou universalizante da teoria que fala do mundo – ela reconhece a fraqueza da teoria em desvendar o funcionamento real da sociedade -, mas do entrelaçamento de condições materiais e históricas na composição da experiência individual de um intelectual do pós-guerra alemão.

Uma vez que esta dialética entre individual e universal deve apresentar-se somente num processo histórico em aberto de constituição da experiência individual, não há propriamente uma fundamentação prévia para a idéia de crítica praticada pela Dialética negativa. Do mesmo modo, também não se extrai daqui nenhuma receita política, como exigiu o movimento estudantil alemão no final dos anos de 1960. Avessa à formação de escolas ou seguidores, tal experiência fornece, contudo, material para se pensar uma noção radical de autonomia individual que poderia ser rica em conseqüências para a participação política. O que a Dialética negativa apresenta é o esforço de constituição da experiência individual diante de forças que buscam identificá-la a falsos universais. Contra toda fundamentação prévia, tal experiência é um exercício do pensamento que testa sua possibilidade à medida que é realizado. Foi durante este exercício que Adorno chegou à formulação de que o pensamento também é uma forma de práxis. Como um esforço sujeito ao fracasso, a Dialética negativa não é uma fundamentação filosófica da teoria crítica adorniana, nem uma teoria geral do funcionamento da sociedade no capitalismo tardio, mas o documento exemplar de um exercício de experiência intelectual.

Luciano Gatti – Doutor em filosofia pela Unicamp. Realiza pesquisa de pós-doutorado em filosofia na PUC/SP com bolsa da Fapesp.

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Dialética Negativa – ADORNO (NE-C)

ADORNO, W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: GATTI, Luciano. Exercícios do pensamento. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.85, 2009

A fama de certos livros costuma induzir o leitor a enganos. A Dialética negativa, publicada originalmente em 1966, poderia ser muito bem recebida no Brasil como a consumação da obra filosófica de Theodor W. Adorno. A aura de obra difícil, reforçada por décadas de inacessibilidade em língua portuguesa, seria uma preparação condizente com o posto de obra-prima. Tal fetiche poderia naturalmente justificar-se em diversos elementos que, de fato, se encontram no livro. Os leitores familiarizados com outros textos do autor não terão dificuldade em encontrá-los, embora alguma suspeita não faça mal a quem folheia o livro pela primeira vez. Os interessados, por exemplo, na gênese das idéias de Adorno saberão rastrear temas que remontam àquelas primeiras conferências do início da década de 1930, sobre “A atualidade da filosofia” e sobre a “Idéia de história natural”. Nestes trabalhos programáticos, com as quais um jovem e pretensioso filósofo estreava na cena universitária alemã, delineava-se o confronto do panorama da filosofia contemporânea, herdeira, segundo Adorno, do idealismo alemão, com uma noção ainda bastante vaga de filosofia materialista, inspirada nos escritos de juventude de Walter Benjamin. Essa intenção de realizar uma crítica imanente da filosofia idealista alemã, avaliando-a pelas suas próprias pretensões, de modo a extrair, nesta crítica, uma concepção bastante singular de materialismo, certamente pode ser reencontrada na Dialética negativa.

Os leitores da Dialética do esclarecimento, por sua vez, reconhecerão elementos da caracterização do estágio mais avançado do capitalismo como um sistema de dominação social que teria colocado fora de campo as esperanças marxistas de realização da filosofia numa sociedade justa. A Dialética negativa poderia ser considerada, então, um aproveitamento desse diagnóstico de época para um minucioso acerto de contas com a tradição filosófica. Um rápido percurso pelo sumário do livro indica ao leitor o confronto de Adorno com disciplinas da tradição – filosofia prática, filosofia da história e metafísica – e com a ontologia heideggeriana. Do ponto de vista da impossibilidade de uma sociedade justa, as ambiciosas construções do pensamento idealista são desmascaradas como falsas. Segundo esse diagnóstico emprestado da Dialética do esclarecimento, a história da filosofia se reverteria, por fim, em uma história de ideologias.

Os interessados nos trabalhos materiais de Adorno, ou seja, naqueles inúmeros ensaios em que trabalhou a especificidade dos objetos mais diversos, da crítica musical à sociologia empírica, talvez busquem na Dialética negativa uma espécie de fundamentação filosófica do ensaísmo adorniano, fazendo eco à idéia corrente de que a filosofia teria alguma prioridade epistemológica perante a crítica de arte ou as ciências humanas. No Prefácio ao livro, Adorno, contudo, adverte contra este posicionamento da Dialética negativa em relação a seus trabalhos materiais. Nada seria mais estranho a uma filosofia materialista do que tal hierarquia entre pensamento e material histórico ou empírico.

As circunstâncias de elaboração do livro fornecem outros indícios contra supostas continuidades entre este livro e o restante da produção intelectual de seu autor. Escrito a partir de conferências apresentadas no Collège de France no início da década de 1960, cada uma das partes do livro foi apresentada e discutida em cursos ministrados por Adorno na Universidade de Frankfurt, ao longo dos anos de 1960, em auditórios ocupados por centenas de pessoas. Seu autor não era apenas um professor universitário, mas também uma personalidade pública no cenário da reconstrução alemã do pós-guerra. A expressiva audiência de seus cursos não era indício apenas da penetração da teoria crítica entre os estudantes, em particular no movimento estudantil alemão, mas também da permeabilidade do pensamento de Adorno à discussão pública das questões que estavam na ordem do dia. A Dialética negativa surge então como documento de um exercício intelectual único, construído no confronto reiterado com as exigências do tempo presente. Lê-lo a partir de teses formuladas em circunstâncias históricas diversas trairia o esforço da teoria crítica em compreender seu próprio tempo. O confronto com a tradição filosófica levado a cabo por Adorno, ausente em sua obra de juventude, também não pode estar vinculado de antemão às teses sombrias da Dialética do esclarecimento, mas deve abrir-se à experiência intelectual a qual ele convida.

O livro que finalmente chega às mãos do leitor brasileiro no aniversário de quarenta anos da morte de seu autor, com tradução cuidadosa de Marco Antônio Casanova e revisão técnica de Eduardo Soares Neves Silva, possui uma posição própria, sem prejuízo da reelaboração de questões que percorrem uma vida de trabalho intelectual. A ocasião deve ser saudada como a possibilidade de transformação da recepção de Adorno no Brasil, ainda fortemente marcada pela Dialética do esclarecimento. Muitos dos ensaios traduzidos por aqui costumam ser lidos e interpretados na chave deste livro. Esta tradução da Dialética negativa, por sua vez, tem o potencial de alterar tal situação, ensejando uma redescoberta de seu autor. Em relação ao livro de 1947, escrito em parceria com Max Horkheimer durante os anos de exílio nos Estados Unidos, o título da Dialética negativa, já indica algo novo. O “negativo” da dialética é inseparável da questão da sobrevivência da filosofia, com a qual Adorno abre a introdução: “A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu seu instante de realização” (p. 11). Esta tese deve ser entendida como a formulação de um diagnóstico de época que não apenas possibilita, mas também exige este exercício do pensamento configurado historicamente no embate da Dialética negativa com a tradição filosófica.

A diferença em relação à Dialética do esclarecimento é grande. Neste livro, a tese da autodestruição do esclarecimento, levada a cabo por um desenvolvimento histórico que conduzira a humanidade a um estado de barbárie, colocava o pensamento crítico diante de uma aporia, pois o conluio de pensamento e dominação social minava a possibilidade da crítica, a qual, contudo, era exercida conscientemente por seus autores. O Prefácio de 1969 para a reedição do livro adverte para a suspensão (mas não interrupção) daquele diagnóstico de época, segundo o qual o capitalismo tardio caminhava para um sistema integrado de dominação. A compreensão do mundo atual nos países avançados como uma trama de dominação formada por mercado, Estado, burocracia e meios de comunicação de massa, que impede o colapso do sistema e sua superação em uma sociedade justa, mantém-se atual no pós-guerra. A guerra do Vietnã, o macarthismo e a corrida armamentista comprovariam essa atualidade. A diferença em relação ao livro da década de 1940 está em que tal diagnóstico não implica a desconsideração da possibilidade de consciência crítica, nem de participação política no contexto das democracias do pós-guerra, como evidencia o posicionamento ativo de Adorno em diversos debates na esfera pública alemã. A questão da possibilidade da emancipação não poderia ser colocada sem esses novos desdobramentos históricos. Em relação à Dialética do esclarecimento, a diferença do diagnóstico de época subjacente à Dialética negativa está em conseguir detectar na história recente elementos singulares de experiência crítica não subsumida à totalidade social. Por este motivo, a possibilidade mesma de composição da experiência torna-se a questão-chave de uma dialética negativa, configurando-a como um exercício de crítica da história do pensamento à luz de um diagnóstico de época. A idéia de experiência como um exercício do pensamento circunscreve o esforço de negação empreendido pela teoria crítica adorniana em função da convergência histórica entre a tradição filosófica e a lógica da dominação social. O esforço de escapar dessa aporia no capitalismo tardio é o que teria exigido esta forma de crítica da filosofia caracterizada por seu autor com a expressão “dialética negativa”.

O recurso do pensamento à tradição filosófica, indicado em tal expressão, exige, portanto, a subversão dessa mesma tradição. Em sua reconstituição por Adorno, o pensamento da negação sempre procurou estabelecer algo positivo. A dialética negativa volta-se contra essa positividade e suas inúmeras formas, particularmente contra a pretensão da dialética idealista de esquadrinhar a totalidade da experiência a partir de princípios subjetivos. Mas não só: ela também se contrapõe à pretensão malograda da dialética materialista de realizar na história a identidade entre sujeito e objeto. Diante do fracasso da emancipação como revolução social, a sobrevivência do pensamento dependeria do esforço de alcançar seus objetos em sua singularidade por meio da auto-reflexão crítica dessa pretensão. Com isso, a idéia de sobrevivência da filosofia só é possível como uma crítica do idealismo que leva em consideração a esperança não realizada de sua realização na história.

Nesta constelação histórico-filosófica desenhada pela Dialética negativa, Adorno busca conferir uma tarefa para a filosofia no presente a partir do destino de um projeto específico: a realização da filosofia por Marx e pelo hegelianismo de esquerda. Como evidencia a caracterização do capitalismo tardio, a pergunta pela possibilidade da emancipação não passa apenas pela consideração do fracasso das esperanças depositadas numa revolução social ou da reversão do caráter autoritário do socialismo real, mas exige também questionar a perpetuação de um estado de não-emancipação no capitalismo mais avançado. Ainda assim, é o fracasso de tal projeto filosófico que constitui a perspectiva para o exame da possibilidade da filosofia contemporânea, a qual é examinada do ponto de vista da “crise do idealismo”. Adorno sabia muito bem que nem todas as filosofias do presente-as quais, segundo ele, disputam um lugar no mercado da teoria – têm esse projeto como referência primordial. Por que então submeter todas a esse crivo? Sua justificativa não passa apenas pela conclusão de que o vínculo entre pensamento e emancipação tem sua referência maior nas pretensões emancipatórias desse projeto, mas também pela convicção de que a história da filosofia foi marcada pela pretensão de conferir um sentido à totalidade da experiência por meio de sua apreensão conceitual. Diante disso, o sistema hegeliano marcaria o apogeu dessa história, assim como o maior fracasso da pretensão de submeter a realidade ao movimento do conceito. E mais: a história recente, bem distante da força emancipatória que o idealismo representou na consolidação da sociedade burguesa, também poderia ser interpretada como a realização nefasta do idealismo. O capitalismo contemporâneo seria a realização perversa do sistema hegeliano, na medida em que todo singular é subsumido à sua lógica de funcionamento. Com isso, na Dialética negativa, a crítica da filosofia é indissociável da crítica social.

O diagnóstico adorniano da filosofia contemporânea – Bergson, Husserl, Sartre, Heidegger – evidencia esta pretensão de conferir sentido à realidade por meio de sua antecipação em categorias subjetivas. Em outras palavras, a filosofia contemporânea resolve a dialética de sujeito e objeto no sujeito. Um diagnóstico análogo conduz também a uma interpretação singular do idealismo alemão, segundo a qual a força da mediação subjetiva da objetividade teria impedido a formulação de qualquer ontologia neste período da história da filosofia. Na filosofia moderna, a ontologia seria índice da impotência do sujeito em satisfazer a pretensão de conferir sentido à objetividade. O projeto da Dialética negativa não é, contudo, negar legitimidade a tal pretensão, descartando-a como mera ideologia, para então instaurar uma nova maneira de pensar para além das aporias da tradição. Tal pretensão constituiu o pensamento na sua história e permanece constituindo-o no presente, na medida em que tal pensamento representa também a história da sociedade atual. Mas retomá-la simplesmente seria ideologia; negá-la, por outro lado, seria ignorar a própria historicidade do pensamento como algo formado nessa tradição. A auto-reflexão do pensamento proposta pela Dialética negativa se traduz então no confronto dessa pretensão com a impossibilidade atual de sua realização.

A organização do livro é um registro de tal confronto. Ele ocorre, primeiramente, na crítica à ontologia heideggeriana, como o projeto de satisfazer uma carência ontológica que, em princípio, é uma manifestação legítima da fraqueza do sujeito contemporâneo em realizar o que ainda parecia possível na época do idealismo alemão. Na seqüência, por meio do confronto reiterado com Kant e Hegel, Adorno apresenta os três modelos de pensamento nos quais a Dialética negativa enfrenta as pretensões de verdade da filosofia prática, da filosofia da história e da metafísica. Como Adorno expõe neste último modelo, teses metafísicas segundo as quais o verdadeiro é o eterno e a realidade é dotada de sentido são desmentidas por catástrofes como Auschwitz e a perpetuação do sofrimento físico. A própria idéia de verdade não é pensável, contudo, caso esvaziada de toda pretensão metafísica. Um momento especulativoéimprescindível ao pensamento insatisfeito com a ordem vigente das coisas. Embora Adorno se recuse a legitimar a metafísica como um modo de apresentar questões últimas como as de verdade e sentido, ele também não nega sua imprescindibilidade ao pensamento por meio da inauguração de um pensamento pretensamente pós-metafísico. No interior da Dialética negativa, ambas as alternativas recairiam em idealismo, pois passariam ao largo da própria configuração histórica do pensamento como algo que veio a ser sob certas circunstâncias. A dialética só poderia ser considerada materialista caso fosse capaz de, paradoxalmente, salvar a pretensão de verdade da metafísica ao confrontá-la com sua caducidade. Somente ao pensamento que reflete criticamente sobre esta pretensão, avaliando-a tanto pela sua imprescindibilidade como pela sua insuficiência, seria reservada a possibilidade de expor o que escapa à identidade do conceito.

Com isto, chega-se ao cerne da crítica de Adorno à filosofia idealista: a caracterização do conceito como produção de identidade. Pensar é identificar, diz Adorno, referindo-se à tendência do pensamento a ser um com o pensado. Esta identidade é uma posição de princípio para a dialética idealista. Para que a negação da negação produza uma posição ela já tem que pressupor essa posição desde o início. Em outras palavras, para que o pensamento possa organizar-se na forma da contradição, ele precisa pressupor a verdade de uma totalidade subjetivamente instaurada, a qual subsume todo particular, falso em sua limitação e imediatidade. Desta descrição da dialética idealista, Adorno apresenta uma tarefa para a dialética negativa. Ela se volta contra a identidade entre o pensamento e o pensado. Ela não visa à identidade, pressuposta desde o início na totalidade, mas à não-identidade entre coisa e pensamento. Dialética significa, antes de tudo, que a coisa não é idêntica ao seu conceito. A inscrição histórica do potencial crítico desta concepção de dialética está na configuração da identidade como a forma atual da ideologia, exigindo uma transformação da noção mesma de crítica da ideologia: não mais apontar a diferença entre realidade e conceito em vista da realização futura deste, mas expor a diferença entre coisa e conceito diante de sua identidade social aparente. A dialética torna-se materialista quando adquire consciência desta não-identidade entre coisa e pensamento. Sua tarefa seria assim alcançar o não-idêntico por meio da lógica da identidade do pensamento ou, na formulação famosa, ir além do conceito por meio do conceito.

Esse lema da Dialética negativa indica que o esforço em expor o não-idêntico não se efetiva na elaboração de um conceito de não-identidade. Na medida em que o que importa a Adorno é evidenciar o laço entre conceito e identidade, alcançar o não-idêntico pela formulação de um conceito de não-idêntico seria absorvê-lo no pensamento da identidade, liquidando a dialética entre identidade e não-identidade. Pelo mesmo motivo, o não-idêntico não é apreensível por meio da intuição ou de alguma outra forma de intelecção não-conceitual, pois isto conduziria a dialética negativa às fronteiras de uma mística negativa. Não é nem pelo pensamento não-conceitual, nem por um conceito de não-identidade, que o pensamento alcança o não-conceitual, mas por uma auto-reflexão do procedimento conceitual a respeito dos elementos não-conceituais necessários à configuração do pensamento como linguagem. Segundo Adorno, os conceitos já estão implicitamente concretizados pela linguagem em que se encontram. A Dialética negativa toma essas significações como ponto de partida para a auto-reflexão do conceito. Tal questão não se traduz, contudo, na elaboração de uma filosofia da linguagem, mas na atenção às convenções e aos elementos retóricos, literários e estilísticos necessários à escrita filosófica. Não se trata aqui, porém, de reverter uma oposição entre lógica e retórica que caracterizaria a história da filosofia, mas de permanecer no médium conceitual, reconhecendo que o pensamento só se configura quando apresentado na materialidade da linguagem escrita.

É possível dizer então que a relação entre exposição e conceito torna possível a Dialética negativa. Conseqüentemente, a exposição adorniana é necessariamente muito distinta da forma de exposição das dialéticas idealista e materialista. Ela não é o encadeamento da figuras do desdobramento imanente da consciência, nem o encadeamento lógico das categorias que organizam o material histórico. Em ambas, haveria a precedência da totalidade guiando a explicitação dos elementos constituintes de um ponto de partida sistemático. A forma de exposição da Dialética negativa, ao contrário, prescinde da idéia de totalidade. Nesse sentido, ela poderia ser caracterizada, antes de tudo, como uma justaposição de elementos materiais e conceituais na composição do texto filosófico. A linguagem não é um instrumento neutro ou transparente para a organização e para a expressão do pensamento, mas o próprio meio no qual a filosofia se configurou historicamente em uma tradição fundada na elaboração e no comentário de textos. Exercitar-se no pensamento implica entrar em contato com os textos legados pela tradição, não só procurando refazer suas operações lógicas e argumentativas, mas também notando a dimensão histórica e estilística de sua configuração literária.

Esse relevo dado à relação do pensamento com a linguagem, com a qual Adorno encaminha a dialética entre conceito e exposição, possui tanto um nome como uma forma literária: constelação e ensaio. Adorno considerou sua reflexão sobre esta forma –O ensaio como forma –uma espécie de programa para sua filosofia tardia, formulada a partir da história sedimentada nessa forma de exposição. O ensaio, diz ele, não constrói seus conceitos a partir de um princípio primeiro, nem reenvia seus objetos, por mediações sistemáticas, a uma totalidade anterior, mas os aborda em seu aqui e agora, como algo culturalmente pré-formado. Tomando de empréstimo um termo de Benjamin, o ensaio é a forma que apresenta a constelação em que o objeto se encontra. “Perceber a constelação na qual a coisa se encontra significa o mesmo que decifrar aquilo que ele [o objeto] porta em si enquanto algo que veio a ser”, diz Adorno na Dialética negativa (p. 141). O termo “constelação” indica, em primeiro lugar, essa inscrição histórica do objeto. Cada objeto traz em si, tal como uma mônada, sua história sedimentada como a cifra do processo pelo qual ele veio a ser. O ensaio é uma exposição dessa constelação histórica. Mas “constelação” caracteriza também esta forma de exposição. Não se trata simplesmente de uma cadeia argumentativa ou da dedução conceitual do objeto, nem de proposição e comprovação de teses, mas de uma disposição de conceitos no texto com o intuito de iluminar a especificidade do objeto. Daí a dificuldade em tratar a idéia mesma de constelação como uma nova categoria filosófica, pois ela desapareceria caso abstraída dos elementos organizados por ela. Pela maneira como dispõem conceitos em torno de um objeto, a constelação mostra como eles são imprescindíveis ao pensamento, mas também como são insuficientes para iluminar um objeto em sua singularidade. Ela apresenta a tendência do conceito a identificar-se com seu objeto e, nesta apresentação, mostra sua insuficiência para alcançar a especificidade do objeto em causa. A constelação se vale assim dos conceitos tanto para denunciar sua lógica de identidade como para iluminar o que escapa a esta lógica. Com isso, ela também busca atender à intenção dos conceitos, mas não pelo processo de identificação, segundo o qual o conceito se sobrepõe a seu outro, e sim pela maneira como os justapõem a fim de iluminar a coisa.

Tal como um ensaio, a Dialética negativa investiga a constelação em que se encontra seu objeto por excelência-o pensamento conceitual cristalizado nos textos da tradição -, o qual ela apresenta por meio da dialética de identidade e não-identidade. Essa peculiar forma de exposição é uma das responsáveis pela dificuldade imposta à leitura do livro. A dialética não se expõe sistematicamente, mas por meio de tópicos curtos, organizados sem continuidade em torno de um problema maior, iluminado e retomado de diferentes ângulos. Talvez a única falha séria da edição brasileira (da Jorge Zahar) seja a supressão dos títulos desses tópicos na parte superior das páginas ímpares. Na edição alemã (da Surhkamp), tais títulos realçam a semelhança de cada trecho a um microensaio, iluminando o caráter descontínuo da exposição, próxima, em sua forma de organização, à justaposição das peças de um mosaico. Longe de ser um elemento preciosístico e sem importância, este cuidado na justaposição de parágrafos e títulos salienta a disposição gráfica do pensamento no formato de livro e, conseqüentemente, seu caráter de objeto cristalizado em texto. Tal materialidade da exposição evidencia que o pensamento não é apenas sujeito em busca de um sentido para a experiência, mas também objeto constituído na densidade material da escrita. A tese do primado do objeto, que marca, para Adorno, a distinção entre filosofia idealista e filosofia materialista, mostra-se nesta auto-reflexão do pensamento como objeto culturalmente pré-formado, cujo sentido se constitui no instante em que é decifrado pelo momento histórico atual. Nesta dialética de sujeito e objeto, a filosofia se assemelha a uma arte de interpretação de textos, ainda que crítica dos pressupostos metafísicos da hermenêutica. Não há nenhum sentido prévio a ser encontrado pela interpretação, mas somente um sentido reelaborado em cada leitura da tradição à luz de um diagnóstico do tempo presente. Como diz Adorno, a dialética busca o que poderia ser verdadeiro ali onde pensamento crítico seculariza um modelo originário irrecuperável de comentário aos textos sagrados.

Esta relação entre sujeito e objeto caracteriza a concepção de experiência própria à Dialética negativa. O romance de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, cuja noção de experiência é retomada por Adorno, pode ser entendido como um modelo dessa relação. A reconstituição da biografia de um indivíduo pela atividade rememorativa não se reduz à expressão subjetiva de uma vivência de mundo. Na medida em que o trabalho de recordação só é levado a termo pela mediação daescrita, opassado individualseobjetiva num processo de apropriação da linguagem e de convenções literárias historicamente configuradas. Quando as leis da memória se entrelaçam com as da escrita na composição da experiência literária, os anos vividos escapam ao domínio exclusivo daquele que os viveu e transformam-se em material infiel às intenções de um autor. No texto, a recordação segue caminhos próprios, os quais, entretanto, são também os caminhos daquele que os recorda. O resultado da recordação não é a vida tal como foi uma vez vivida, mas o passado reconstituído à luz do esforço atual de recordá-lo. Neste entrelaçamento de recordação e escrita, a experiência individual conquista a atualidade objetiva que, segundo Adorno, é o índice de sua verdade.

Tal afinidade da Dialética negativa com a experiência proustiana não é sinal de dissolução de fronteiras entre arte e filosofia, muito menos de projeção na arte de esperanças formuladas no âmbito da filosofia. Ela é mais um índice de que a verdade e a objetividade da experiência não estão em sua ordenação segundo a totalidade que lhe confere sentido, mas no respeito à lógica própria de composição do singular. Num momento histórico de constante ameaça de integração do indivíduo ao sistema social, a não-reconciliação entre indivíduo e totalidade e a irredutibilidade de um singular a universalidades heterônomas são vistas por Adorno como exercícios de negação e resistência articulados em processos de composição da experiência humana individual. Esta referência à experiência literária permite delinear não exatamente um conceito de experiência na Dialética negativa, mas o percurso de uma experiência efetivamente realizada como exercício singular de leitura da tradição filosófica à luz de um diagnóstico de época. Os diversos desenvolvimentos apresentados até aqui poderiam ser reunidos nesta concepção de experiência como exercício do pensamento. A Dialética negativa, contudo, não pretende estabelecer as condições de realização de tal forma de experiência no presente. Sua inscrição histórica, ou ainda, a objetividade de sua pretensão de verdade, não se origina de um ponto de vista universal ou universalizante da teoria que fala do mundo – ela reconhece a fraqueza da teoria em desvendar o funcionamento real da sociedade -, mas do entrelaçamento de condições materiais e históricas na composição da experiência individual de um intelectual do pós-guerra alemão.

Uma vez que esta dialética entre individual e universal deve apresentar-se somente num processo histórico em aberto de constituição da experiência individual, não há propriamente uma fundamentação prévia para a idéia de crítica praticada pela Dialética negativa. Do mesmo modo, também não se extrai daqui nenhuma receita política, como exigiu o movimento estudantil alemão no final dos anos de 1960. Avessa à formação de escolas ou seguidores, tal experiência fornece, contudo, material para se pensar uma noção radical de autonomia individual que poderia ser rica em conseqüências para a participação política. O que a Dialética negativa apresenta é o esforço de constituição da experiência individual diante de forças que buscam identificá-la a falsos universais. Contra toda fundamentação prévia, tal experiência é um exercício do pensamento que testa sua possibilidade à medida que é realizado. Foi durante este exercício que Adorno chegou à formulação de que o pensamento também é uma forma de práxis. Como um esforço sujeito ao fracasso, a Dialética negativa não é uma fundamentação filosófica da teoria crítica adorniana, nem uma teoria geral do funcionamento da sociedade no capitalismo tardio, mas o documento exemplar de um exercício de experiência intelectual.

Luciano Gatti – Doutor em filosofia pela Unicamp. Realiza pesquisa de pós-doutorado em filosofia na PUC/SP com bolsa da Fapesp.

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Anuario de historia de la iglesia en Chile

El segundo volumen de esta publicación, realizada en colaboración entre el Seminario Pontificio Mayor de Santiago y la Sociedad de Historia de la Iglesia en Chile, ha mantenido la estructura y calidad del primer volumen, editado en 1983, siendo una expresión más de la creciente preocupación por los enfoques historiográficos centrados en dilucidar y estudiar la presencia de la Iglesia Católica en el pasado y presente de Chile.

En este número, en su sección Estudios, se publican nueve trabajos, de una extensión variable entre diez y treinta y cuatro páginas; la mayoría centrados en el Seminario de Santiago y en problemas históricos de los siglos XIX y XX, presentamos a continuación una breve reseña de cada uno:

RAIMUNDO ARANCIBIA S. El seminario de Santiago 1584-1984, 28 pp.: estudio póstumo de este historiador eclesiástico, es una relación esencialmente cronológica, apoyado en material documental, bibliográfico y anecdótico, especialmente interesante en el registro de los sucesivos programas de estudio, alumnos y rectores. Se destaca la temprana fundación y larga vida de este “semillero de sacerdotes”. Leia Mais

Encyclopedia of the American Revolution | Mark M. Boaster

Resenhista

Cristián Guerrero Yacham – Universidad de Chile.

Referências desta Resenha

BOASTER III, Mark M. Encyclopedia of the American Revolution. New York: David MacKay Company, Inc., 1974. Bicentennial Edition. Resenha de: YACHAM, Cristián Guerrero. Cuadernos de Historia. Santiago, n.1, p. 155-157, diciembre, 1981.

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