Ciências Sociais
História & outras eróticas | Marcos Antonio de Menezes, Martha S. Santos e Robson Pereira da Silva
Orestes perseguido por las Furias, de William-Adolphe Bouguereau (1862) | Domínio público |
Ninguém vai poder, querer nos dizer como amar
Um novo tempo há de vencer
Pra que a gente possa florescer
E, baby, amar, amar, sem temer
Eles não vão vencer
– Johnny Hooker
Apesar dos constates ataques que a educação e a ciência têm sofrido no Brasil, principalmente nos últimos anos, por conta da gestão genocida empreendida por Jair Bolsonaro bem como por todos os outros ignóbeis que se somam a ele, ainda assim é possível notar uma resistência por parte daqueles que não aceitam abaixar a guarda e continuam firmes na produção de um conhecimento que busca reflexões contínuas da sociedade atual e da pluralidade de indivíduos nela inseridos.
Desse desejo de resistir é que nasceu História e outras eróticas (2020), organizado por Martha S. Santos, Marcos Antonio de Menezes e Robson Pereira da Silva. A obra mostra a que veio logo em suas primeiras páginas, ao dar as boas-vindas aos leitores com uma citação do sociólogo inglês Anthony Giddens que, dentre outros assuntos, investiga as transformações contemporâneas e seus reflexos nas relações amorosas e eróticas, e também com um trecho do single God Control (2019), de Madonna, que em sua música faz um manifesto contra o porte de armas nos Estados Unidos e relembra no clipe da canção o massacre [2] ocorrido em uma boate LGBT, no mesmo país.
A coletânea de textos que se seguem é inaugurada por Tamsin Spargo, que no primeiro capítulo do livro tece considerações abarcando sexo, gênero e sexualidade, partindo principalmente dessas temáticas para promover reflexões que vão desde o tratamento misógino que observou em ambientes de trabalho dos quais fez parte até a maneira como a pornografia colabora para as representações sexualizadas de corpos hiperbólicos. Em seu texto, Spargo dialoga em grande medida com o filósofo Michel Foucault, umas das maiores referências no que diz respeito as temáticas de sexualidade e educação, bem como a relação destes com o poder. Ademais, a autora ainda relembra a publicação de seu ensaio Foucault e a teoria queer (1999), onde ela explora o modo como o pensamento do filósofo teria refletido na construção e entendimento da referida teoria.
Na sequência, Luisa Consuelo Soler Lizarazo reflete sobre as fronteiras sexuais que ainda perduram paralelamente a diversidade de gênero, sobretudo àquelas observadas em sociedades transculturais, ao mesmo tempo em que problematiza a ordem moral que continuamente busca impor um modelo de família funcional apenas à sistemas patriarcais e capitalistas. A autora faz um levantamento de como as questões relacionadas ao assunto foram observadas ao longo dos séculos e evidencia a importância do direito de se exercer a possibilidade de escolha de cada sujeito.
Ao longo do tempo tem-se observando a História e a ficção protagonizando discussões acaloradas que resultaram em mudanças e reestruturações no fazer historiográfico. Seguindo nessa linha de raciocínio, Peterson José de Oliveira constrói seu texto a partir da relação dos historiadores com a verdade e a ficção e traz para o leitor a novela, um gênero um tanto quanto subestimado e ainda pouco estudado. Para suas análises, Oliveira concentra seu trabalho principalmente a partir do uso da montagem e da polifonia, duas formas narrativas essenciais para a construção de O mezz da gripe (1998) de Valêncio Xavier que, por meio maneira de sua narrativa, mescla ficção e realidade e, por conseguinte, reflete sobre os efeitos de verdade presentes na novela.
No capítulo seguinte a autora Lúcia R. V. Romano promove reflexões importantes a respeito das intersecções entre as artes cênicas e o feminismo, elucidando a importância da história para a construção de um diálogo entre os dois campos e pontuando a colaboração cada vez mais notável da historiografia para os estudos feministas. Em seu texto, Romano deixa claro que muitas são as questões atuais envolvendo a história, o teatro e o pensamento feminista e abre espaço para se pensar o artivismo feminista, com ênfase no Madeirite Rosa, um coletivo teatral paulistano.
Outra linguagem artística colocada em pauta ao longo da obra História e outras eróticas (2020) é o cinema, abordado no texto de Grace Campos Costa e Lays da Cruz Capelozi, que trazem para os leitores um debate precioso sobre a representação feminina a partir da filmografia de Catherine Breillat. Em um texto bastante didático e rico em imagens, as autoras apresentam uma discussão que vai de encontro a um tabu ainda muito atual: o prazer feminino. Como objeto de estudo é analisado o filme Romance X (1999) e ao longo do texto, além de conhecer um pouco mais sobre o cinema de Breillat também é possível compreender a forma como ela se posiciona antagonicamente aos estereótipos que ainda são observados no que diz respeito ao desejo feminino em representações cinematográficas.
No capítulo seguinte, Ana Lorym Soares faz um interessante paralelo entre a realidade a qual temos vivido e a distopia, lançando seu olhar para o romance O conto da Aia (1939), de Margaret Atwood. A autora explica que em outras obras de distopia o que se observa é um padrão onde os personagens principais são, na grande maioria das vezes, homens, de modo que no romance estudado, Margaret Atwood inova ao trazer uma mulher como personagem central da obra, fugindo dos padrões observado neste gênero da literatura. Desse modo, além de importantes reflexões a respeito da escrita feminina de Atwood, direito das mulheres e seus corpos enquanto campo de poder, Ana Lorym Soares ainda deixa evidente a importância de um olhar atento a realidade, a fim de que as distopias permaneçam no campo de conhecimento da ficção.
Também no campo da literatura, Marcos Antonio de Menezes, constrói seu texto a partir de romances e poesias, sendo que nas páginas que se seguem os leitores serão levados a refletir sobre a(s) representações do(s) feminino(s) na obra de Charles Baudelaire, levando em consideração questões postas em pauta pelo movimento feminista atualmente. Indo contra a grande maioria das produções literárias do século XIX, tecidas a partir da ótica masculina e burguesa, os leitores poderão conhecer um pouco mais sobre a estética, a recepção e as temáticas abordadas nos enredos de grandes obras, como As flores do mal (1857), de Baudeleire e Madamy Bovary (1856), de Gustave Flaubert.
No capítulo seguinte, Robson Pereira da Silva, apresenta-nos ao subversivo Hélio Oiticia, um dos artistas mais completos e importantes da arte brasileira. No texto é apresentada e discutida a antiarte e a arte de subversão de Oiticica nos anos de 1960 e 1970, onde através da performance o mesmo combatia todo e qualquer autoritarismo institucionalizado. O texto é essencial para compreender as configurações do corpo como objeto inventivo bem como do uso da contraviolência de Hélio Oiticica, que se valia da arte para combater a repressão vivida no contexto da ditadura militar no Brasil. O trabalho de ativistas/artivistas negros queer no estado da Bahia é preconizado por meio do texto de Tanya Saunders, que a partir do seu estudo relacionado a discussões de gênero, raça e sexualidade debate de que maneira se tem observado a construção crescente do “não humano”. No capítulo, o retrocesso vivido atualmente no Brasil é colocado em xeque e debatido através da ótica da colonialidade, do afrofuturismo e da necropolítica, que de maneira cada vez mais pungente e perigosa busca ditar quem têm ou não importância em sociedade.
No capítulo seguinte, Martha S. Santos toca com coragem em uma ferida ainda aberta, especialmente, ao problematizar a importância da compreensão da instituição da escravidão no Brasil a fim de que se entenda de uma vez por todas os reflexos desta para a criação e manutenção de privilégios desfrutados por determinadas classes sociais em nosso país. Em seu texto, a autora busca fazer um rápido balanço historiográfico dos estudos ligados a escravidão nas últimas quatro décadas no Brasil além de apresentar seus estudos, concentrados no interior do Ceará, e dialogar intrinsicamente com os estudos de gênero ao refletir sobre a maneira pela qual mulheres e crianças aparecem inseridas no processo da escravidão.
Com um olhar voltado também para a escravidão, Murilo Borges da Silva dialoga com o texto anterior ao abordar os relatos de viajantes no estado de Goiás, bem como as contribuições destes para a produção de corpos femininos negros e representações do feminino muitas vezes equivocadas.
Em seu texto, Silva trabalha com os relatos de Saint-Hilaire (1975) e Johann Emanuel Pohl (1976) para verificar como as mulheres negras aparecem nestes relatos, através dos quais nota-se que há uma tentativa de silenciamento por parte dos viajantes em questão, que não raras vezes, faziam de seus escritos um lugar seletivo, tornando visível determinados fatos e invisíveis outros, da maneira como lhes era favorável e de acordo com aquilo que consideravam necessário.
Logo em seguida os leitores são postos frente a questões direcionadas principalmente aqueles que se dedicam a produção de conhecimento, pois Fábio Henrique Lopes lança um problema grave que diz respeito a maneira como muitas vezes utilizam-se de pessoas transsexuais e de outras identidades de gênero apenas como objetos de estudo. Partindo dessa colocação, o autor torna possível um olhar mais atento ao lugar de fala que cabe a nós, pesquisadores. Aqui, fica claro que é necessário que haja um repensar do fazer historiográfico e epistemológico de modo a não ferir o outro e deixa a todos uma breve, mas, importante advertência: “incluir, excluindo é fácil […]” (LOPES, 2020, p. 276).
O próximo capítulo é um nó na garganta, daqueles que a cada palavra lida cresce um pouco mais, pois logo de cara, Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Diego Aparecido Cafola lançam alguns fatos que não podem serem ignorados: a heterossexualidade e a cisgeneridade compulsória tem acarretado na invisibilização e precarização da existência da população LGBTQI+ e, consequentemente, na sua eliminação física. Os autores afirmam que o conhecimento produzido na academia não tem ultrapassado seus muros e que os reflexos dos discursos construídos em cima de conservadorismos podem ser notados cada vez mais através da violência com que a população LGBTQI+ tem sido alvo constante. Em um texto tocante, os autores colocam em xeque a noção atual de humanidade e questionam o processo de exclusão de grupos marcados pela diferença, ou melhor, que as maiorias silenciadas têm sofrido.
No texto que se segue as problemáticas levantadas dialogam com estas do texto anterior, porém, são levadas para o espaço escolar ao demonstrar como a escola tem atuando como agente da normatividade. Neste capítulo, Aguinaldo Rodrigues Gomes problematiza a hierarquização e o silenciamento de corpos dissidentes por meio do discurso falacioso da “ideologia de gênero” difundida, inclusive, como uma das principais bandeiras levantadas e defendidas durante a eleição de Jair Bolsonaro. O autor reitera os ataques aos quais a educação tem sofrido no campo dos estudos de gênero e da educação sexual, além de expor o cerceamento de professores, aos quais os conservadores e reacionários tentam colocar em uma redoma cujas grades é a ignorância e o preconceito.
Por fim, o último capítulo traz aos leitores uma “greve selvagem” que resultou na derrota do capitalismo em uma luta protagonizada por estudantes e trabalhadores. Em seu texto, João Alberto da Costa Pinto aborda a Revolução do Maio de 1968, a mais importante revolução anticapitalista do século XX. Sua análise parte da trajetória política e teórica de Raoul Vaneigem e se expande para outros militantes que fizeram parte do movimento que ficou conhecido como Internacional Situacionista (IS). De forma clara, Pinto explana o que levou dez milhões de trabalhadores e estudantes a frearem o capitalismo na França de forma totalmente espontânea e auto-organizada.
Dessa feita, levando em consideração o cenário hostil em que a produção de conhecimento científico se encontra em discrédito, como política de governo, bem como os ataques que as populações negras, índigenas, de mulheres e LGBTQI+, sobretudo àqueles sujeitos e sujeitas marcadas pela pobreza e precariedade da vida e do mundo do trabalho tem sofrido cotidianamente com as políticas de morte e indiferença, conclui-se que a coletânea de textos reunida em História e outras eróticas (2020) além de sinônimo de resistência é também um contributo a produção intelectual que se preocupa em pensar, refletir e problematizar os campos de estudo da política, raça, femininos e performatividades de gênero. Nas páginas desta obra, os leitores irão encontrar questionamentos relevantes acerca de temas atuais e necessários, fazendo com que a obra se configure como um alento a defesa dos direitos humanos, revestido de esperança, força e coragem para continuar na luta por igualdade.
Nota
2. O massacre na boate “Pulse” aconteceu em Orlando, no dia 12 de junho de 2016. Na data, Omar Mateen abriu fogo dentro do local e assassinou quarenta e nove pessoas e deixou cinquenta e três gravemente feridas.
LOPES, Fábio Henrique. Efeitos de uma experimentação político-Historiográfica com travestis da primeira geração. Rio de janeiro. In: MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.
MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020.
Natália Peres Carvalho – Graduada em História pela Universidade Federal de Goiás e mestranda no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de Goiás. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9841094387536865. E-mail: nperescarvalho@gmail.com.
MENEZES, Marcos Antonio de; SANTOS, Martha S.; SILVA, Robson Pereira da (org.). História & outras eróticas. Curitiba: Appris, 2020. Resenha de: CARVALHO, Natália Peres. História & outras eróticas (2020) – Uma obra urgente e necessária. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.184-188, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].
Resenha Crítica, Aracaju & Crato, n.4, 1 jul., 2021.
Edição n.4 (2021)
Apresentação
Nesta edição, disponibilizamos as aquisições do período 01 a 30 de junho de 2021. Destacamos resenhas sobre livros de história das mulheres, histórias do erotismo, do colonialismo em Moçambique e dos governos progressistas na América Latina. Também reblogamos resenha em periódico espanhol que avalia o escrito de autor brasileiro sobre Epistemologia Histórica.
Necessariamente, o tema da pandemia continua a pautar dossiês de modo objetivo ou como instrumento de contextualização.
Das novas revistas incorporadas ao acervo, destacamos dois periódicos: Filosofia e História da Biologia (USP/2020) e Palavras ABEHrtas (ABEH/2021), revista especializada em Ensino de História.
Aproveitamos para anunciar a finalização da captura dos dossiês de 120 revistas brasileiras de História. Cerca de 2100 textos de apresentação, linkados aos seus seus respectivos artigos, estão à disposição, via busca livre ou consulta parametrizada no índice de objetos de dossiê.
O trabalho de captura de resenhas continua. Hoje, acumulamos cerca de 3200 textos produzidos nos últimos 40 anos, já disponíveis para a consulta no índice de objetos de resenha,
Saúde e trabalho para todos nós!
Itamar Freitas e Jane Semeão (Editores)
Resenhas
- Los gobiernos progresistas latinoamericanos del siglo XXI. Ensayos de interpretación histórica | Frank Gaudichaud, Jeffrery Webber e Massimo Modonesi
- 29 de junho de 2021
- La ciencia de la erradicación. Modernidad urbana neoliberalismo en Santiago de Chile, 1973-1990 | César Leyton Robinson
- 25 de junho de 2021
- Canguilhem e a gênese do possível. Estudo sobre a historização das ciências | Tiago Santos Almeida
- 25 de junho de 2021
- Acre, Formas de Olhar e de Narrar: Natureza e História nas Ausências | Francisco Bento da Silva
- 9 de junho de 2021
- Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais | Silvia Federici
- 9 de junho de 2021
- Aquirianas: mulheres da floresta na história do Acre | Carlos Alberto Alves de Souza
- 9 de junho de 2021
- História & outras eróticas | Marcos A. Menezes, Martha S. Santos e Robson P. Silva
- 9 de junho de 2021
- A vida e o mundo: meio ambiente patrimônio e museus | Paulo H. Martinez
- 9 de junho de 2021
- Antonio Fagundes no palco da história: um ator | Rosangela Patriota
- 9 de junho de 2021
- Sex, Law, and Sovereignty in French Algeria, 1830–1930 | Judith Surkis
- 4 de junho de 2021
Dossiês
- Povos originários e Covid-19: Experiências indígenas diante da Pandemia na América Latina | Albuquerque | 2021
- 9 de junho de 2021
- RESISTÊNCIA: A construção de saberes históricos em tempo de pandemia | Das Amazônias | 2021
- 9 de junho de 2021
Sumários
- Boletim Historiar | Aracaju, v.8, n. 2, abr./jun. 2021.
- 29 de junho de 2021
- Asclepio – Revista de Historia de la Medicina y de la Ciencia. Madrid, v.73, n.1, 2021.
- 25 de junho de 2021
- Revista de História Regional | Curitiba, v.26, n.1, 2021.
- 18 de junho de 2021
Revistas recentemente incorporadas ao acervo
- Palavras ABEHrtas | ABEH | 2021
- 7 de junho de 2021
- Filosofia e História da Biologia | USP | 2020
- 1 de novembro de 2020
Conheça a totalidade do acervo
Para adequado uso do espaço na página inicial deste blog, destacamos até treze resenhas, cinco dossiês, cinco sumários correntes e cinco periódicos recentemente incorporados ao acervo em cada edição mensal do Resenha Crítica.
A quantidade de textos, porém, se altera à medida que incorporamos novos periódicos, retroativamente, aos nossos bancos de dados.
Para conhecer a totalidade das aquisições de resenhas, apresentações de dossiês e sumários, publicados originalmente no período 1839-2021, utilize os filtros da barra lateral.
Das Amazônias | Rio Branco, v.4, n.1, 2021.
Dossiê RESISTÊNCIA: A construção de saberes históricos em tempo de pandemia
Apresentação da Capa
- Apresentação da Capa | Jardel Silva França |
Ficha Técnica
Sumário
Editorial
Artigos
- Disputas entre medicinasprática e ensino médico e as artes de curar no Brasil e nas Amazônias no século XIX | Ana Paula Oliveira do Nascimento | PDF
- A música como forma de expressão e manifestação contra a ditadura Civil-Militar no Brasil | Cyndy Nathana Melo de Souza, Uizenairian Rodrigues da Rocha, Elcio Gomes Araújo | PDF
- Entre memórias e fontes históricasdiálogos, problemáticas e historiografias em sala de aula no ensino de história | Danilo Rodrigues do Nascimento, Poliana de Melo Nogueira | PDF
- Do Casarão à Casa de Memóriaum lugar de memória na Rua 20 | Darlen Priscila Santana Rodrigues | PDF
- O Discurso colonizador camuflado de ciência na Amazônia do século 19 | Déborah Santos | PDF
- Racismo conceito historicamente construído na legislação brasileira | Diego Manoel de Medeiros de Albuquerque | PDF
- História e alimentaçãopolíticas de assistência alimentar na Amazônia (1940-1950) | Edson Gabriel dos Santos Dias | PDF
- A escola nunca vai entender a comunidade…e será que a comunidade entende o significado da escola? | Jose Manuel Ribeiro Meireles | PDF
- Nas Entrelinhas da Históriarepresentações sobre mulheres no romance de Francisco Galvão| Neila Braga Monteiro | PDF
- A Revista Manchete Rural e a antena parabólicatecnologia, integração enovos hábitos | Roberto Biluczyk | PDF
- A História da Madeira-MamoréMedos, desafios e enfrentamentos na construção da EFMM | Rosa Thaís Neves Hydall | PDF
- Os Intelectuais na cosntrução de uma Bahia imaginada entre as décadas de 1910 e 1950 | Sura Souza Carmo | PDF
- Do Interior baiano à selva de pedra paulistanadesafios frente a migração nordestina em São Paulo | Victor Hugo de Almeida França | PDF
Resenha
- Notas sobre o “desdizer” e o “desexplicar” de Francisco Bento da Silva, na obra “Acre, formas de olhar e de narrar: natureza e história nas ausências” | Ezir Moura Júnior | PDF
- Aquirianaso protagonismo feminino na floresta acriana | Jardel Silva França | PDF
- Caça às Bruxasa contribuição do capitalismo para o aumento da violência contra às mulheres | Karolaine da Silva Oliveira | PDF
Publicado em 09 jun | v.4, n.1 (2021)
A vida e o mundo: meio ambiente patrimônio e museus | Paulo H. Martinez
Estela Okabayaski Fuzii, Angelita Marques Visalli, Paulo HenriqueMartinez e Chico Guariba | Foto: Agência UEL |
Estabelecer conexões concretas entre as potencialidades de ação educativa dos patrimônios e museus com o meio ambiente foi o desafio do historiador Paulo Henrique Martinez em seu mais recente trabalho A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. Publicado em 2020 pela editora Humanitas, o livro reúne textos de diferentes naturezas escritos pelo autor em sua extensa trajetória de pesquisa e ensino voltada a cooperação técnica, cuja atuação permeou universidades, Câmara dos Deputados, conselhos municipais, organizações não-governamentais, entre muitos outros.
A reunião das produções entre os anos de 2003 e 2017, demonstra a atuação deste historiador diante os acontecimentos que atravessaram as áreas de meio ambiente, patrimônio e museus.
A variedade do material, entre capítulos de livros, artigos de revista científica, resenhas de obras publicadas, artigos em revista universitária e jornais locais, evidencia um trabalho atento às transformações do presente e da vida cotidiana, além da preocupação em ampliar o acesso aos conhecimentos produzidos na universidade e nas instituições culturais ao público geral.
Nesses moldes, a primeira parte do livro denominada Museus e mudança social procura delinear um diagnóstico da situação dos museus no Brasil, no momento da escrita dos textos. Partindo de questões do presente e da esfera local, Martinez articula os acontecimentos com documentos, instituições e agendas nacionais e internacionais tal como a Política Nacional de Museus (2003), o Conselho Internacional de Museus (1946) e a Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (DEDS, 2005-2014).
A sensível tarefa de repensar o processo de desenvolvimento, sobretudo mediante as significativas transformações no meio ambiente, analisando e promovendo a distribuição de seus benefícios ao conjunto da sociedade global, exige tratar as especificidades culturais, de gênero, classe social e raça. O desenvolvimento sustentável, conceito orientador no século XXI, contempla com atenção este último aspecto do desenvolvimento humano, emergindo as demandas de formação de cidadãos, geração de emprego, combate à pobreza, igualdade de gênero e acesso à educação e saúde de qualidade.
Qual o potencial dos museus na educação para o desenvolvimento sustentável? As diretrizes estabelecidas em documentos internacionais tal como a Agenda 21, elaborada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, documento gerador da já mencionada DEDS e, atualmente, da Agenda 2030 com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2015-2030) encontram um fértil terreno nos patrimônios ambiental e cultural presente nos museus.
A cultura, protagonista nas atividades museológicas, é uma das bases do desenvolvimento sustentável pois concentra os mecanismos e finalidades do desenvolvimento.
Vida humana e não humana se encontram em um mundo diversificado, identificado por valores, crenças, saberes, técnicas, instrumentos de produção e consumo que se estabelecem em meio as harmonias e conflitos entre estes dois universos profundamente conectados. A reordenação das atividades humanas e o meio ambiente, o “pensar ecológico” é, para Martinez, parte do trabalho de profissionais das ciências sociais, em geral, e dos historiadores, em particular, que atuam em instituições museológicas.
Atento às transformações do tempo presente, o caráter de experimentação proporcionado pelos museus em exposições e acervos apresentam um novo plano de realidade com o aprimoramento dos usos dos recursos naturais e do capital humano. Parece ser esta a participação institucional de parques e museus no desenvolvimento sustentável, a preservação, valorização, pesquisa e comunicação da cultura material e imaterial e dos patrimônios ambientais. Articulados, garantem a cidadania, inclusão social e vida digna a toda população.
Estas características ganham maior expressão quando vinculados à cultura indígena no Brasil.
A Lei n°11.645 de 2008 institucionaliza a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena nos currículos escolares da educação básica e superior. O patrimônio indígena, fundamental para a constituição e conhecimento da história do Brasil, encontra debates fecundos e atuais na segunda parte do livro Patrimônio indígena no Brasil. A localização dos elementos indígenas na sociedade brasileira constitui um dos primeiros passos para o conhecimento da história nacional.
A rivalidade dos discursos hoje predominantes, como aquele vivido pela Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, nos auspícios da Copa do Mundo, corresponde aos conflitos de narrativas de dominação enraizadas no cotidiano brasileiro. As diferentes simbologias presentes nessa experiência narrada na obra, o futebol, a hostilidade com os indígenas, o desenvolvimento econômico no qual os grupos tradicionais são vistos como obstáculos naturais e o autoritarismo da política nacional, são explicativas para compreensão da realidade O sincretismo no uso da palavra “Maracanã” e a luta pela permanência da aldeia indígena naquela região do Rio de Janeiro complementa aquilo que já havia observado o historiador Caio Prado Jr sobre o passado vivo no cotidiano dos brasileiros. Os aspectos coloniais dessa experiência no Brasil, faz aquele “lugar de memória” converter o passado sua forma de resistência e respeito ao compreender os processos no qual deram origem a esta sociedade tão diversificada.
Em todas as situações discutidas, seja nos museus municipais, exposições itinerantes, centros culturais ou universidades, Martinez conduz a educação como inerente às transformações para o século XXI. Em consonância com documentos legislativos e acordos institucionais como as citadas Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI) e a Convenção sobre Diversidade Biológica, a afirmação e o reconhecimento da cultura e dos direitos dos povos indígenas, a inclusão na vida social, a garantia de participação nos planos de gestão é diretamente dependente de um processo educativo que valoriza a cultura, a natureza, as mulheres, a cooperação e a democracia.
O Parque do Xingu e o Museu do Índio no Rio de Janeiro são alguns exemplos concretos desses anseios que relembram a trajetória violenta da colonização e preservam a cultura e a memória dos grupos indígenas. Para além destas instituições, as universidades também desempenham função importante com o desenvolvimento de disciplinas que abordem os temas, no gerenciamento de museus universitários, na formação de profissionais qualificados e na inserção destes grupos no ambiente universitário.
Apresentando a “Universidade da Selva” como ficou proclamada a Universidade Federal do Mato Grosso através de uma resenha da obra Museu Rondon: Antropologia e indigenismo na Universidade da Selva da antropóloga Maria Fátima Roberto Machado, Martinez testemunha os aspectos institucionais da identificação e preservação da cultura material e imaterial na universidade. Estas instituições acompanham os processos de formação intelectual e produção de conhecimentos em conjunto com os museus, embora os últimos tenham sua data de nascimento anterior às primeiras, no Brasil. Este fato, no entanto, reforça as complementaridades entre ambas e os benefícios do trabalho conjunto, adicionando, ainda, a escola de educação básica.
As perspectivas de trabalho nos museus para a abertura de temas relacionados ao meio ambiente, principalmente para a constituição da história dos municípios, destacam o valor do patrimônio indígena. Os processos de formação nacional em seus aspectos econômicos, sociais e políticos esbarram com a trajetória desses povos cujos reflexos ainda permeiam no século XXI. A PGNATI foi um material analisado para demarcar os complexos desafios de preservação e recuperação dos recursos naturais e o reconhecimento da propriedade intelectual e do patrimônio genético. A educação ambiental e indigenista é definida como a principal estratégia destes objetivos, beneficiando não apenas a população indígena, mas todos os cidadãos.
A partir dos exemplos observados, o volume encerra com um caráter pedagógico de demonstração prática das potencialidades da educação patrimonial e ambiental na formação da cidadania.
Uma organização documental para auxiliar historiadores, em especial aqueles dedicados à História Ambiental, aos profissionais da área de museus e professores de educação básica e superior, que permite visualizar as narrativas presentes nos objetos e paisagens como fontes de observação e pesquisa histórica.
O significado cultural da alta produção de carrancas, marcante na paisagem do São Francisco, os processos de utilização deste rio para transporte e comércio, a formação da cidade e da cultura material, dos valores, saberes e comportamentos da população da região são demonstrativos da promoção do patrimônio na construção do conhecimento histórico. Os objetos cotidianos, como o automóvel e os elementos da cultura afro-brasileira também são destacados como mecanismos para compreender a organização da vida social, os processos de industrialização e seus efeitos, principalmente nos centros urbanos.
A pandemia de COVID-19 colocou em evidência as consequências do modelo industrial globalizado na vida humana e não humana. O surgimento de novas doenças, a perda de ecossistemas e da biodiversidade desloca a atenção para fora das cidades e marca os estreitos vínculos entre seres humanos e natureza. Esta experiência demonstra os sintomas de um planeta cujos padrões da vida atual não consegue sustentar e no qual deve-se estar atento. Como observou Donald Worster, todas as epidemias ao longo da história tiveram origem onde o equilíbrio com a natureza estava abalado.
Em sua argumentação sobre o patrimônio indígena, Martinez reforça o utilitarismo como obstáculo para a proteção desses povos e do meio ambiente. Percebe-se que esta perspectiva atravessa diferentes dimensões da vida humana, atribuindo valores distintos, muitas vezes alimentados pelo objetivo do crescimento econômico. Assim, os recursos naturais são destruídos, os objetos musealizados perdem a importância em sua função prática e se fortalece a narrativa dos museus “viverem do passado”. São para estes critérios que a pandemia exige observação, pois escancarou as desigualdades sociais e a crise ambiental da atualidade.
Ao mesmo tempo o isolamento social, para impedir a propagação da doença, fortaleceu os meios de comunicação e incentivou as instituições culturais a se renovarem para acompanhar as novas demandas. As redes sociais se tornaram ferramentas apropriadas pelos museus. A 14° dos Primavera dos Museus, em 2020, trouxe como tema Mundo Digital: museus em transformação e convidou os profissionais a pensar a inserção destas instituições nos novos mecanismos de comunicação.
Martinez nos mostra que as possibilidades de atuação são muitas e trazem consigo resultados positivos à sociedade.
Ao demonstrar os frutíferos e os frustrantes trabalhos que presenciou ao longo de sua carreira, transmite um apelo para a expansão das instituições que já existem e para a valorização e o investimento daquelas que ainda não tem usufruído de seu potencial. Demonstra com clareza os benefícios da cooperação nas dimensões individuais, institucionais e sociais do trabalho. A leitura da obra é direcionada aos profissionais da educação e museus, em etapas de formação inicial ou continuada, para vislumbrarem os contextos no qual fazem parte, integrar e valorizar os conhecimentos locais e aplicar essas ações em todas as oportunidades que vierem à frente.
Os desafios emergentes já visíveis neste século e aqueles que ainda estão por vir convergem na ação educativa como ferramenta fundamental. O trabalho educativo dos museus na promoção da cidadania e da preservação do patrimônio cultural e ambiental convergem com as diretrizes de ação internacional, fortalecendo, ainda, a cooperação para o desenvolvimento sustentável.
Referências
MARTINEZ, Paulo Henrique. A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. São Paulo: Humanitas, 2020.
NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961.
WORSTER, Donald. Otra primavera silenciosa. Historia Ambiental Latioamericana y Caribeña, 10, ed. sup. 1, p. 128-138, 2020. Disponível em: https://www.halacsolcha.org/index.php/halac/ issue/view/40 Acesso em: 26 fev. 2021.
Cíntia Verza Amarante – Mestranda em História pela Universidade Estadual Paulista, UNESP, câmpus de Assis. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8845494592325213. E-mail: cintia.amarante@unesp.br.
MARTINEZ, Paulo Henrique. A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus. São Paulo: Humanitas, 2020. Resenha de: AMARANTE, Cíntia Verza. Educação Ambiental em Museus. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.189-193, jan./jun.2021. Acessar publicação original [IF].
Antonio Fagundes no palco da história: um ator | Rosangela Patriota
Antônio Fagundes e Rosângela Patriota | Foto: Agenda |
Professora aposentada da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Rosangela Patriota é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), coordenadora do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC/UFU), e coordenadora do GT Nacional de História Cultural da ANPUH e da Rede Internacional de Pesquisa em História e Cultura no Mundo Contemporâneo. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Artes e História da Cultura (PPGEAHC) da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Com uma trajetória sólida nos debates que se endereçam a pensar as relações e imbricamentos entre História e Teatro, sobretudo no que se refere à produção da História Cultural, a historiadora Rosangela Patriota se desafia a inserir o ator no centro desses debates de maneira crítica, na contramão de grande parte das pesquisas acadêmicas que estão voltadas para a História do Teatro Brasileiro que, de certa maneira, tendem a privilegiar dramaturgos, críticos e companhias teatrais.
Assim, a autora busca suprir uma lacuna, na área de História, acerca da inserção histórica de atores e atrizes em “termos de periodização da história do teatro no Brasil” (PATRIOTA, 2018, p. 401).
Essa obliteração, ou, a secundarização do ‘trabalho atorial’ que, segundo Rabetti (2012), consiste em interpretação, atuação e presença cênica que corporifica de maneira mediada anseios múltiplos, inclusive os seus, diante deste circuito que configura o funcionamento da arte teatral no Brasil. Assim como Rabetti (2012), Patriota (2008) aponta para as dificuldades de lidar com a figura do ator por dois pontos específicos: a efemeridade da cena no acontecimento do fenômeno teatral e pela hierarquia da crítica cultural, ou mesmo, a tirania do texto escrito, como bem salientado por Roger Chartier (2010), evocando as formas de corporeidade, representação, apropriação e vocalização desses textos.
Dessa feita, o ator seria um ponto fulcral na circulação e personificação de textos e ideias. Porém, mesmo sendo um elemento e figura tão primordial para a construção cênica, o trabalho do ator acontece no espectro temporal do efêmero, que é construído na delicadeza de expressões e gestos e, talvez, por esse motivo seja mais dificultoso lidar com ele no campo da pesquisa, mas não impossível, pois o teatro não se restringe apenas a zona do espetacular ou as características específicas do trabalho de performance atorial que, inclusive, é parcialmente capturada em registros audiovisuais, fotográficos e por índices de recepção fragmentados, como grande parte dos documentos utilizados em História. Sobre isso, Patriota afirma que o fenômeno teatral faz com que o teatro possua inúmeras linguagens (PATRIOTA, 2018, p. 400).
No coração de seu tempo Para o enfrentamento de tal empreitada de contar a história do teatro sob o ponto de vista de uma historiadora de ofício, Rosangela Patriota escolheu Antonio Fagundes como sujeito no palco da História, especialmente, para não dizer que não falou dos atores por causa da efemeridade da ação teatral. Esse desafio está estampado nas páginas de Antonio Fagundes no palco da História: um ator, lançado em 2018, pela Editora Perspectiva. Sempre com um diálogo em primeira pessoa com os leitores, Patriota é franca ao afirmar como será difícil essa jornada, porém em vários momentos reafirma com argumentos muito bem sustentados que a biografia intelectual traz questões impres cindíveis, mesmo dispondo de poucos documentos que façam referência específica a performance do ator. Mas, nem por isso, o cotejamento com outros fragmentos documentais é menos eficaz em responder as perguntas dela enquanto historiadora. Assim, ela insiste que a fabricação de tais documentos está carregada de intenções e, por isso, a ajudam na construção histórica da trajetória e carreira de Antonio Fagundes, pois:
Todavia, uma trajetória é muito mais que a mera exposição de vontades e realizações. Pelo contrário, ela, de acordo com meu entendimento, deve ser vista, interpretada e compreendida à luz das circunstâncias históricas e sociais que a acolheram.
Sob essa óptica, Fagundes é uma personagem fascinante, na medida em que construiu suas experiências em meio a debates e tensões possíveis de serem analisadas, sob o horizontes de expectativas diferentes, ou, em outras palavras: é sabido que o tempo não é apreendido da mesma forma por sujeitos e esferas sociais distintos, isto é, as rupturas vistas e sentidas, por exemplo, no campo da política não se apresentam necessariamente nos mesmos termos na esfera cultural, assim como os ditames e os ritmos da ordem econômica muitas vezes são sentidos e definidos sob regimes e expectativas próprias. (PATRIOTA, 2018, p. 52)
O aporte teórico está afetuosa e devidamente baseado na obra A Teia do Fato (1997), de Carlos Alberto Vesentini, que se acerca da compreensão da construção, disseminação e cristalização do fato histórico, inclusive, de seu poder hipnótico de condução das narrativas que em volta dele gravitam, seja pelo aspecto dos temas, marcos temporais, personagens e acontecimentos, conduzindo e produzindo o sentido e seus respectivos ordenamentos periodizadores. No teatro, por exemplo, a ideia e o desejo de modernização enquanto bandeira, especialmente calcada em referenciais eurocentrados, fez com que o ‘teatro do ator’ fosse relegado como aspecto menor a ser superado, chamado inclusive de ‘teatro velho’ em prol da estetização resumida à atmosfera da cena, especificamente, na passagem do ensaiador para o encenador. Tal procedimento, por exemplo, fez de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, peça encenada pelo polonês Zbgniev Ziembinski, em 1943, um marco convencionado moderno e tido como um referencial na história do teatro brasileiro, por sua renovação cênica, cristalizando assim uma memória histórica carregada de hierarquias da consagração especialmente constituídas pela crítica, como consta no Dicionário do Teatro Brasileiro.
[…] consolidam-se no âmbito profissional vários projetos de renovação cênica que contestam o protagonismo do ator na concepção do espetáculo. O deslocamento do foco do ator para o encenador é explicitado pelo crítico Décio de Almeida PRADO aos seus leitores em uma crítica publicada em 1947: ‘Presenciamos então, já no nosso século, esse fato inacreditável: a fama e o prestígio dos metteurs em scéne obscurecem a dos atores, e mesmo a dos autores. (GUINSBURG; FARIA; LIMA, 2006, p. 43).
Afirmamos aqui que a historiadora Rosangela Patriota se propôs o desafio de tratar sobre o ator, sobretudo, por ela já possuir uma trajetória frutífera nos debates do campo da historiografia do teatro brasileiro. Ao fazê-lo se coloca diante de um salto frente às suas próprias produções anteriores que se dedicaram a pensar sujeitos históricos que transitaram no circuito teatral, especialmente na qualidade de dramaturgos, críticos, grupos e companhias teatrais; agora foi chegada a hora de pensar a presença do ator em meio a esse emaranhado de questões. Nesses termos, suas contri buições nos estudos sobre teatro já se apresentam em sua primeira obra, Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo (1999) e Crítica de um Teatro Crítico (2007). Não podemos deixar de mencionar a frutífera parceria entre a historiadora com o saudoso professor Jacó Guinsburg, que está registrada em livros, como J. Guinsburg, a cena em aula: Itinerários de um professor em devir (2009) que reúne a transcrição de fitas da disciplina Estética Teatral, ministrada pelo professor Jacó Guinsburg, e também em Teatro Brasileiro: Ideias de uma História (2012).
Dessa feita, sob a posse desse debate e aporte teórico-metodológico bem definido, a autora faz com que, a partir da experiência profissional de Antonio Fagundes, surja a figura do ator diante desses e de outros acontecimentos históricos. A biografia se dedica a pensar a vida artística de Fagundes desde o início, com a peça A Ceia dos Cardeais (Julio Dantas, 1902), encenada em 1963, nos tempos que o protagonista ainda era estudante colegial, até a peça Tribos (Nina Raine, 2013). Respaldada pela micro-história italiana de Giovani Levi, Patriota torna Antonio Fagundes protagonista de uma narrativa histórica que o considera como eixo norteador da relação entre sujeito e sociedade e, neste interstício, apresenta-se o processo histórico no qual ele se inseriu e continua inserido.
Por conseguinte, a autora faz com que o texto biográfico suscite a abertura de ângulos interpretativos em relação à história do teatro brasileiro, tendo a vida e obra desse ator como eixo condutor. Deste modo, essa biografia não se apresenta como convencional, mas como uma biografia intelectual que ganha forma a partir de temas e problematizações que em outras oportunidades ficaram restritas aos dramaturgos, críticos e companhias.
Entrementes, a narrativa biográfica produzida por Patriota, sobre Fagundes, enfrenta com profundidade a construção e a cristalização de marcos na história do teatro brasileiro. Assim posto, fica claro que Rosangela Patriota tem fôlego para tal discussão que está por vir, a trajetória do ator Antonio Fagundes, conhecido nacionalmente e internacionalmente, por seus trabalhos no teatro, televisão e cinema. Sobretudo, a autora inverte a consagração do galã dessas últimas linguagens, especialmente por sua profícua e longeva atuação em telenovelas, e privilegia o ator e produtor de teatro. Assim, a autora demonstra como os trabalhos de Fagundes na TV e no cinema, de certa forma (não sem restrições e limites), constituíram capital financeiro e de público que sustentaram a sua consolidação no campo teatral, inclusive angariando público para suas produções no Teatro (locus onde ele iniciou sua carreira), proporcionando-lhe este espaço como formativo.
Como bem apontamos, o livro Antonio Fagundes no palco da História: um ator é uma biografia crítica que nos apresenta momentos marcantes, de um ator que iniciou suas atividades e paixão pelo teatro ainda como estudante do Colégio Rio Branco. Fagundes atuou em alguns espetáculos infantis dirigido por Afonso Gentil, que também trabalhava na seção de teatro infantil do Teatro de Arena de São Paulo, e assim aconteceu o convite para Antonio Fagundes participar do núcleo de teatro infantil do grupo de teatro paulista. Ou seja, Rosangela Patriota produz ‘poeira da estrela’[3], porém sem glamourização, pois demonstra que Antonio da Silva Fagundes Filho não esteve predestinado a ser o ator/galã Antonio Fagundes, ou, até mesmo ter uma carreira de sucesso especialmente cristalizada por sua presença em telenovelas.
A autora trata de uma construção artística balizada em processos de formação e atuação teatral, trabalho e uma rede de sociabilidade construída pari passu com a constituição de Antonio Fagundes enquanto ator. A referida rede foi formada por Afonso Gentil, Carlos Augustos Strazzer, Myriam Muniz, Gianfrancesco Guarnieri, José Renato, Augusto Boal, Ademar Guerra, Marta Oberbeck, Armando Bógus, Oswaldo Campozana, Sylvio Zilber, Othon Bastos, Consuelo de Castro, Fernando Peixoto, Antônio Bivar, etc.
No palco das palavras.
O primeiro capítulo intitulado Antonio Fagundes ou Estratégias para a composição de uma narrativa biográfica, trata-se de um balanço crítico que perpassa discussões teórico-metodológicas que esbarram na carreira do ator. Patriota consegue englobar discussões que são caras, não só a nós, historiadores, mas a todos que trabalham com objetos artísticos em geral, pois essas questões se apresentam como um quiasma na trajetória de Fagundes.
Uma das perguntas que move a autora a pensar esse trabalho, como um todo, é: por que Antonio Fagundes passa despercebido perante a historiografia do Teatro Brasileiro até então? Mesmo com sua participação no Teatro de Arena, que foi a sua primeira escola formativa e trabalho atoral profissional. A pergunta é respondida com uma digressão importante sobre as construções que foram feitas ao longo da escrita da História do Teatro, que não foi feita apenas por historiadores, mas também por críticos que estabeleceram certos marcos e fatos, incluindo assim certos grupos teatrais.
Nessa concepção foi estabelecida uma diferença entre teatro empresarial e teatro de grupo. O primeiro foi denominado como um teatro comercial, que visa lucros com a bilheteria, teoricamente sem se importar com o público ou a qualidade do espetáculo, o segundo foi denominado como um teatro sério, que busca o diálogo com os dramaturgos e é composto por grupos teatrais que possuem uma proposta de diálogo entre arte e sociedade.
Antonio Fagundes, por seu sucesso como galã de telenovelas, foi sumariamente engessado como pertencente a categoria de teatro empresarial, como uma espécie de distinção hierárquica estabelecida no circuito teatral, o espoliando de um capital cultural formado no teatro anteriormente ao seu ingresso nas produções televisivas. Diante dessas reflexões, o segundo capítulo intitulado O Teatro de Arena, os espetáculos da resistência democrática e a formação de um ator e de um cidadão, Patriota se debruça na formação intelectual e profissional de Fagundes nos primeiros anos de carreira, focando principalmente na sua frutífera estadia no Teatro de Arena.
No final da década de 1970, Fagundes assinou o contrato com a Rede Globo de Televisão e aceita integrar o elenco da novela Dancin’ Days (Gilberto Braga; direção de Daniel Filho, Gonzaga Blota, Marcos Paulo e Dennis Carvalho; codireção: José Carlos Pieri, 1978). Patriota explica aos leitores a historicidade da palavra galã e, assim, nos demostra como seu protagonista começa a ser reconhecido como galã ao interpretar o papel do ‘mocinho’ Carlos Eduardo Amaral Cardoso, o Cacá, par romântico da personagem Júlia Matos interpretada por Sônia Braga, que já havia estado em cena com Fagundes em Hair (direção de Ademar Guerra, 1969). Em um breve intervalo de tempo, ele estreia, também na televisão, a série composta por cinquenta e quatro episódios, Carga Pesada, na qual toda a sensibilidade de Cacá é posta de lado para dar vida ao viril Pedro, um caminhoneiro que percorre as estradas do país, na companhia de Bino (Stênio Garcia).
A Companhia Estável de Repertório (CER) é objeto do terceiro capítulo, no qual Rosangela Patriota consta a consolidação do homem de teatro e de cultura que passa a colocar em prática de maneira sistematizada todos os seus aprendizados e formação no circuito e no mercado teatral, inclusive, como alguém que se dispõe a debater publicamente as políticas culturais do país ou a falta delas. A referida companhia surge em um contexto de horizontes de expectativas marcado pelo campo da experiência de uma ditadura militar em processo de abertura e redemocratização, momento no qual setores da cultura começam a discutir suas posições na constituição de uma memória histórica sobre a resistência democrática e pensando novos rumos e maneiras diversas de lidar com a linguagem teatral. Como aponta Patriota (2018, p. 198), o telos que antes unira distintos grupos no compromisso com a luta democrática já não atendida mais os anseios de alguns segmentos, inclusive dos mais jovens.
Nesse contexto, em 1981, a CER inicia suas atividades que estiveram em cartaz até 1991, com peças dentre as quais destacamos: O Homem Elefante (de Bernard Pomerance, com direção de Paulo Autran, em 1981); Morte Acidental de um Anarquista (de Dario FO, 1982, direção de Antônio Abujanra); Xandu Quaresma (de Chico de Assis, 1984, sob a direção de Adriano Stuart); Cyrano de Bergerac (de Edmond Rostand, 1985, direção de Flávio Rangel); Carmem Com Filtro (de Daniela e Gerald Thomas, 1986, sob a direção de Gerald Thomas) e Fragmentos de um Discurso Amoroso (de Roland Barthes, 1988, com direção de Ulysses Cruz).
Antonio Fagundes no palco da História: um ator aponta para a confirmação da tese de que a importância do ator para o teatro no Brasil foi de certa maneira suprimida, especialmente, entre a década de 1940 e 1950, devido ao adensamento e a propagação de ideias-força (nacionalismo, modernidades, modernização, politização, estetização) que secundarizaram a figura do ator em meio aos anseios por um moderno teatro brasileiro. Isso, inclusive fez com que o ‘teatro de ator’[4] tão latente na primeira metade do século XX, especialmente, caracterizado por figuras que aproximaram o trabalho atoral com o empresarial na área teatral, como João Caetano, Armando Gonzaga, Dulcina de Moraes, Leopoldo Fróes, etc., fosse considerado como ‘velho teatro’ e visto de certa forma como um entrave para uma pretensa linha evolutiva do teatro brasileiro que deveria ter como destino o signo do novo, o encenador estrangeiro, para se constituir enquanto moderno. Parte desse debate é expressado por Patriota, especialmente, no quinto e último capítulo que recebe o título O ator no centro da narrativa: contribuições à escrita da história do teatro brasileiro, no qual afirma:
De posse desse repertório teórico-metodológico, acredito que comecei a refinar meu olhar interpretativo sobre as histórias do teatro brasileiro, tanto que, em 2012 tive o privilégio de escrever, em parceria com J. Guinsburg, o livro Teatro Brasileiro: ideias de uma História. Nele, foi possível aprofundar questões referentes à urdidura da narrativa histórica e evidenciar como os embates e os anseios dos contemporâneos orientam as ideias-forças que organizam e alicerçam os marcos identificados como a história do teatro brasileiro. […] conseguimos, eu e J. Guinsburg, expor a maneira pela qual as bandeiras artísticas, defendidas por críticos teatrais, em sintonia com grupos e/ou companhias, tornaram-se o leitmotiv da escrita da história de inúmeras histórias do teatro brasileiro. (PATRIOTA, 2018, p. 383)
Em suma, recomenda-se a leitura de Antonio Fagundes, no palco da História: Um Ator, pois através da narrativa biográfica balizada em um robusto trato da documentação (críticas, fotografias, gravações audiovisuais, programas de peças, entrevistas, cartas), Rosangela Patriota nos convida conhecer os ângulos interpretativos de enfrentamentos historiográficos e embarcar na imersão em 50 anos de história cultural brasileira, especificamente, com foco na história do teatro. O grande mérito dessa obra está na sua capacidade intelectual de perspectivar debates e problemáticas es pecíficas da História e Historiografia do Teatro em atravessamentos transversais da vida e obra do ator/produtor teatral Antonio Fagundes, assim desconstruindo a sua atuação do engessamento da cristalizada imagem de galã televisivo, o conduzindo junto com o seu público das telas e palcos às páginas, ou seja, o livro trata da singularidade e o percurso de um ator no meandro de um debate político e cultural do teatro brasileiro.
Referências
BRANDÃO, T. Ora, direis ouvir estrelas: historiografia e história do teatro brasileiro. Sala Preta, v.1, p. 199-217, 28 set. 2001.
CHARTIER, Roger. Escutar os mortos com os olhos. Estudos avançados, v. 24, n. 69, p. 6-30, 2010.
GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de (orgs). Dicionário do
Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. [S.l: s.n.], 2006.
PATRIOTA, Rosangela. O teatro e historiador: interlocuções entre linguagem artística e pesquisa histórica. In: RAMOS, Alcides Freire; PEIXOTO, Fernando; PATRIOTA, Rosangela. A história
invade a cena. São Paulo: Editora Hucitec, 2008.
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999.
PATRIOTA, Rosangela. A crítica de um teatro crítico. São Paulo: Perspectiva, 2007.
PATRIOTA, Rosangela; GUINSBURG, J. (org.). J. Guinsburg, a cena em aula – itinerários de um professor em devir. São Paulo: EDUSP, 2009.
PATRIOTA, Rosangela; GUINSBURG, Jacó. Teatro Brasileiro: ideias de uma história. São Paulo: Perspectiva, 2012.
PATRIOTA, Rosangela. Antonio Fagundes no palco da história: um ator. São Paulo: Perspectiva, 2018.
RABETTI, Maria de Lourdes. Subsídios para a história do ator no Brasil: pontuações em torno do lugar ocupado pelo modo de interpretar de Dulcina de Morais entre tradição popular e projeto moderno. ILINX-Revista do LUME, v. 1, n. 1, 2012.
VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato: uma proposta de estudo sobre a Memória Histórica.
São Paulo: Hucitec; História Social da USP, 1997.
Notas
3. Como bem salienta Tania Brandão (2001, p. 199): “Escrever história do teatro é, em mais de um sentido, produzir poeira de estrelas, escrever a história das estrelas.”
4. Sobre o teatro do ator conferir: (GUINSBURG; FARIA; LIMA, 2006, p. 44-45).
Robson Pereira da Silva – Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás (Mestrado). Licenciado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Membro do Laboratório de Estudos em Diferenças & Linguagens – LEDLin/ UFMS e do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC/UFU). Membro associado da Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo. Tendo experiência na área de História, com ênfase em História Cultural e Ensino de História. Autor do livro Ney Matogrosso…para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976-1977). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq. br/5608673598392485. E-mail: robson_madonna@hotmail.com.
Lays da Cruz Capelozi – Doutoranda em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pela mesma instituição, estudado o Mestrado em História e o Curso de Graduação em História – Bacharelado e Licenciatura -. É membro do NEHAC – Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura. Membro associada da Rede Internacional de Pesquisa em História e Culturas no Mundo Contemporâneo. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8785972568211269. E-mail: syalcc@gmail.com.
PATRIOTA, Rosangela. Antonio Fagundes no palco da história: um ator. São Paulo: Perspectiva, 2018. Resenha de: SILVA, Robson Pereira da; CAPELOZI, Lays da Cruz. Antonio Fagundes: o ator do palco às páginas. Albuquerque. Campo Grande, v.13, n.25, p.176-183, jan./jun.2021. Acessar publicação original [IF].
Povos originários e Covid-19: Experiências indígenas diante da Pandemia na América Latina | Albuquerque | 2021
Covid-19 | Foto: OPAS |
Apresentação
Las bacterias y los virus fueron los aliados más eficaces. Los europeos traían consigo, como plagas bíblicas, la viruela y el tétanos, varias enfermedades pulmonares, intestinales y venéreas, el tracoma, el tifus, la lepra, la fiebre amarilla, las caries que pudrían las bocas. La viruela fue la primera en aparecer. ¿No sería un castigo sobrenatural aquella epidemia desconocida y repugnante que encendía la fiebre y descomponía las carnes? «Ya se fueron a meter en Tlaxcala. Entonces se difundió la epidemia: tos, granos ardientes, que queman», dice un testimonio indígena, y otro: «A muchos dio muerte la pegajosa, apelmazada, dura enfermedad de granos». Los indios morían como moscas; sus organismos no oponían defensas ante las enfermedades nuevas. Y los que sobrevivían quedaban debilitados e inútiles. El antropólogo brasilero Darcy Ribeiro estima que más de la mitad de la población aborigen de América, Australia y las islas oceánicas murió contaminada luego del primer contacto con los hombres blancos. (GALEANO, 2008, p. 35) La rápida expansión del COVID-19 ha tenido un fuerte impacto sobre la vida diaria y la organización sanitaria, escolar, política y económica de las sociedades en su conjunto. Si bien la pandemia afectó de modo simultáneo a poblaciones y territorios a lo largo y ancho del planeta, a partir de la proliferación de un virus que no distingue clivajes de clase, etnia, género ni religión, a poco tiempo de transcurrida no fue difícil discernir sus impactos diferenciales en territorios y poblaciones concretas. Leia Mais
RESISTÊNCIA: A construção de saberes históricos em tempo de pandemia | Das Amazônias | 2021
Iniciamos esta edição com sinceras condolências em respeito a todos os brasileiros e brasileiras que partiram devido à crise sanitária ocasionada pelo novo coronavírus, mas sobretudo pesarosos do contexto ideológico em que o Brasil está inserido. A Revista Discente das Amazônias se irmana no sentimento de tristeza de cada ente querido que sente a dor da saudade, palavra encontrada apenas no português do Brasil (e que faz muito sentido face a falta do avô, da mãe, do irmão, do pai, da tia, do primo, do próximo ou do distante), na ausência da vida. Externamos nossa solidariedade aos que permanecem e lastimamos por aquelas pessoas que se tornaram montante numérico superior a 470.000 mil mortos, vítimas de um genocídio resultante da ignorância, do negacionismo e da pseudociência.
Mas, nos apeguemos aos respingos de esperanças. Paulo Freire, fugindo da norma, já nos convidava a conjugar o substantivo “esperança” – esperançar é preciso. É nesses embalos de incerteza de um viver marcado por lutas, que devemos acreditar na ciência, na educação pública e gratuita e sua fundamental importância e contribuição para à sociedade. Assim, caros(as) leitores e leitoras, lhes convidamos a lerem os trabalhos submetidos à Das Amazônias, Revista Discente de História da Ufac (em seu volume 4, número 1), que compõe o conjunto de periódicos da área de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), da Universidade Federal do Acre (Ufac). Leia Mais
Mundos do Trabalho / Cantareira / 2021
A tradição da temática do trabalho na historiografia não impediu que apenas após 18 anos da sua primeira edição, a Revista Cantareira trouxesse entre suas publicações o seu primeiro dossiê inteiramente dedicado ao tema da História do Trabalho. Esta ausência se torna ainda mais surpreendente quando nos deparamos com a grande procura de pesquisadoras e pesquisadores não só de todo o Brasil, como também de outras partes do globo. De fato, as pesquisas de História do Trabalho e dos Trabalhadores e Trabalhadoras nas últimas décadas vem cada vez mais ampliando seu escopo e seus debates, mostrando que a experiência do homem branco, adulto e operário, que por muito tempo figurou na historiografia como o trabalhador ideal, não é a experiência universal dos mundos do trabalho.
Com um número recorde de artigos submetidos e aprovados, os trabalhos deste Dossiê mostram uma História do Trabalho dinâmica, plural, e que extrapola os grandes centros urbanos e as fronteiras nacionais. Ao mesmo tempo que os temas clássicos da História do Trabalho são revistos com novos olhares, abordagem e fontes, demonstrando a riqueza das pesquisas produzidas e a sua diversidade.
Refletindo os objetos discutidos pela sociedade atual, pesquisas abordando a convergência de classe, raça, gênero, identidade, orientação sexual aparecerem em diversos artigos do Dossiê. A ruptura dos paradigmas que segmentavam as investigações historiográficas entre trabalho e trabalhadores livres e não livres ajuda na formação de um complexo mosaico do Mundos do Trabalho. Dentro dessa seara, destacamos os artigos de Thompson Alves e Antônio Bispo, Ferreiros, “escravos operários” e metalúrgicos: trabalhadores negros e a metalurgia na cidade do Rio de Janeiro e na microrregião Sul Fluminense (Século XIX e XX) e de Karina Santos, Composição de trabalhadores na Fábrica de Ferro de Ipanema (1822-1842).
Para operacionalizar o rompimento da separação entre as análises sobre o trabalho livre e cativo, a ferramenta metodológica da interseccionalidade se mostra fundamental para pensar as complexidades do processamento da dominação e opressão de diversos grupos sociais dentro da classe trabalhadora. É o que podemos ver no artigo de Caroline Souza, Giovana Tardivo e Marina Haack, Localizando a mulher escravizada nos Mundos do Trabalho, bem como no de Caroline Mariano e Lígya de Souza, Mulheres úteis à sociedade: gênero e raça no mercado de trabalho na cidade de São Paulo (fim do século XIX e início do século XX), que mostram como a análise sobre o lugar social de mulheres escravizadas e os mundos do trabalho pode refinar a análise historiográfica. Ainda sobre a importância da interseccionalidade com o objetivo de pensar os trabalhadores, o artigo de João Gomes Junior, A “indústria bagaxa”: prostituição masculina e trabalho no Rio de Janeiro e na constituição da ordem burguesa aborda questões sobre a experiência de homens, trabalhadores sexuais que desviam do padrão heteronormativo, como parte formadora da classe trabalhadora carioca do início da República.
A utilização dos processos da Justiça do Trabalho emergiu como importantes fontes documentais há alguns anos e continuam rendendo pesquisas inovadoras: Tatiane Bartmann em Eles querem menos, elas querem mais: as reivindicações por trabalho na 1ª JCJ de Porto Alegre (1941-1945) e Vitória Abunahman, Trabalhadoras ou esposas? Um estudo sobre reclamações na Justiça do Trabalho de mulheres que trabalhavam para seus companheiros na década de 1950, trazem a luz as reivindicações das trabalhadoras, e Paulo Henrique Damião, A Justiça do Trabalho enquanto palco de disputas: entre estratégias e discursos, e Arthur Barros, Márcio Vilela, Fernanda Nunes, Marmelada de tomate: as relações de trabalho a partir do “sistema de parceria” na Fábrica Peixe (Pesqueira / PE), discutem as diversas estratégias e relações de trabalho a partir da instância judicial.
A cidade e a geografia nos mundos do trabalho se cruzam com diferentes fontes, temas e análises teórico-metodológicas, apresentando uma nova visão sobre o espaço urbano. Sob essa lente, podem ser lidos os trabalhos de Gabriel Marques Fernandes em A vida urbana em Tudo Bem (Arnaldo Jabor, 1978): a figuração dos “operários” durante a decomposição do “milagre” econômico brasileiro, de Amanda Guimarães da Silva em Lavadeiras na cidade: trabalho, cotidiano e doenças em Fortaleza (1900-1930), e de Aline Crunivel e Claudio Ribeiro em Memória, trabalho e cidade: contribuições para o debate contemporâneo sobre o lugar da classe trabalhadora.
Fora dos centros urbanos, a relação dos trabalhadores rurais, indígenas e migrantes com suas lideranças, com os empregadores e o Estado, suas lutas e representações, são temas dos artigos de Leandro Almeida, Os comunistas e os trabalhadores rurais no processo de radicalização da luta pela terra no pré-1964, de Idalina Freitas e Tatiana Santana, Entre campos e máquinas: histórias e memórias de trabalhadores da Usina Cinco Rios – Maracangalha, Bahia (1912-1950), e de Pedro Jardel Pereira, “A legião dos rejeitados”: trabalhadores migrantes retidos e marginalizados pela política de mão-de-obra em Montes Claros / MG, na década de 1930, e de Eduardo Henrique Gorobets Martins, As denúncias de trabalhadores indígenas do cuatequitl no códice Osuna durante a visita de Jerónimo de Valderrama na Nova Espanha.
Temas cânones dos estudos sobre o trabalho, como suas entidades representativas e seus discursos, o contato com o mundo da política, suas estratégias de luta e a organização burocrática, são discutidos sob novas perspectivas teóricas, metodológicas e bibliográficas nos artigos de Bruno Benevides, “Eu não tenho mais pátria!”: a primeira guerra mundial à luz da propaganda libertária de Angelo Bandoni, de Igor Pomini, As Jornadas de Maio de 1937, o antifascismo e o refluxo da Revolução Espanhola, de Eduard Esteban Moreno, Manifiestos políticos para la acción del movimiento obrero: Brasil y Colombia durante las primeras décadas del siglo XX, de Frederico Bartz, Os espaços da luta antifascista em Porto Alegre (1926-1937), de Pedro Cardoso, A atuação militar contra a greve do Porto de Santos em 1980, e de Guilherme Chagas, O corporativismo na construção do discurso da Revista Light (1928-1940).
Extrapolando os limites da História e da historiografia e nas suas interseções, o Dossiê também conta com contribuições de distintas áreas das Ciências Humanas e Sociais, o que mostra a importância do diálogo constante e como o tema do trabalho continua provocando discussões interdisciplinares sobre o sistema capitalista e os novos regimes de trabalho e explicação, de acordo com os artigos de Leonardo Kussler e Leonardo Van Leeuven, Da alienação em Marx à sociedade do cansaço em Han: fantasia e realidade dos trabalhadores precarizados, de Evandro Ribeiro Lomba, As estruturas históricas da formação para o trabalho no sistema capitalista e de Gustavo Portella Machado, Entre desemprego e freelance: a atual configuração do mundo do trabalho na cultura a partir da ocupação de produtores culturais como microempreendedores individuais. Ainda dentro dessa temática, este número também conta com a resenha de Regina Lucia Fernandes Albuquerque sobre o livro de Tom Slee, Uberização: a nova onda do trabalho precarizado.
Finalizando o Dossiê Mundos do Trabalho, apresentamos a entrevista concedida pelos professores Paulo Fontes (PPGH / UFRJ) e Victoria Basualdo (COCINET / FLACSO) para as organizadoras, Clarisse Pereira e Heliene Nagasava. Na conversa, os professores discutem suas formações acadêmicas, trajetórias de pesquisa, transformações no campo da história do trabalho e a importância do pensamento e da atuação dos historiadores, em especial os historiadores do trabalho e trabalhadores, fora dos muros da Universidade.
Desejamos a todas e todos uma ótima leitura!
Clarisse Pereira – Mestra e licenciada em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolve pesquisa na área de História do Brasil Republicano, atuando principalmente no tema sobre trabalhadores rurais na ditadura civil-militar. Atualmente é doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense, com bolsa CAPES, e desde 2019 faz parte da Comissão Editorial da Revista Cantareira. E-mail: clarissepereira.snts@gmail.com
Heliene Nagasava – Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV), pesquisadora do Laboratório de Estudos de História do Trabalho (LEHMT / UFRJ) e funcionária do Arquivo Nacional. E-mail: hnagasava@gmail.com
PEREIRA, Clarisse; NAGASAVA, Heliene. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.34, jan / jun, 2021. Acessar publicação original [DR]
Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia (II) / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2021
Rancho na região da serra do Caraça, MG, Spix e Von Martius, 1817-1820 | Imagem: JLLO |
É com satisfação que publicamos a segunda parte do dossiê Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia. Os artigos selecionados tratam das interfaces entre o poder, as culturas políticas e a sociedade, a partir de perspectivas teórico-metodológicas que focalizem as rupturas, as permanências, os antagonismos e as ambivalências historicamente tecidas nas múltiplas formas de relações sociais entre as elites e as camadas populares no Brasil durante o século XIX, nas mais diversas dimensões do poder e seus reflexos na sociedade e na economia. Atualizações e ressignificações do local e do regional diante das injunções produzidas pela dinâmica do global, assim com os processos e as tramas que singularizam as histórias do local e regional, em suas demissões social, econômica e de poder são também contempladas.
O primeiro artigo que abre o Dossiê, de Francivaldo Alves Nunes, intitulado na gigantesca floresta de metais: O Engenho Central São Pedro do Pindaré e os debates sobre a lavoura maranhense no século XIX, nos remete a implantação dos engenhos centrais como solução para o processo de modernização da atividade açucareira em fins do século XIX, tendo como palco a província do Maranhão. Em diálogo com a historiografia, o autor demonstra o quanto o otimismo presente na imprensa e nos relatórios dos presidentes de província em relação a essa inovação produtiva contrastava com as dificuldades e os obstáculos encontrados para sua realização, tais como a falta do concurso do capital externo para atender aos seus vultosos custos, o conflito de interesses entre produtores de cana e o Engenho central e a ausência de inovação na atividade agrícola.
Já o artigo Ofícios mecânicos e a câmara: regulamentação e controle na Vila Real de Sabará (1735-1829), de Ludmila Machado Pereira de Oliveira Torres, analisa a ação de reguladora exercida pela Câmara municipal de Sabará no território sub sua jurisdição e na ausência de corporações com essas funções em Minas Gerais, em fins do período colonial e início do Imperial. Nessa direção, a autora procede à verificação da eficiência deste poder público em regulamentar o trabalho mecânico por meio da realização de exames dos candidatos aos ofícios, proceder às eleições de juízes de ofício, tabelar preços e conceder licenças à categoria. Por outro lado, o texto ainda se detém no universo dos ofícios mecânicos na região, na maior ou menor presença de escravizados no seu meio e na relação desses trabalhadores com a instituição que os fiscalizava e regulava.
No texto de Jeffrey Aislan de Souza Silva, “Nunca pode, um sequer, ser preso pela ativa guarda”: a Guarda Cívica do Recife e as críticas ao policiamento urbano no século XIX (1876-1889), temos a abordagem de um aparato policial criado na capital de Pernambuco com a dupla função de combater a criminalidade e disciplinar a população. Nele é investigada a lei que criou essa força pública em seus diversos aspectos, como também a sua estrutura hierárquica, funções e os requisitos para o ingresso na corporação Além disso, o autor discute a eficácia e comportamento desse aparato de segurança, que mereceu uma avaliação nada lisonjeira dos seus contemporâneos na imprensa.
Com o título Gênero, raça e classe no Oitocentos: os casos da Assembleia do Bello Sexo e do Congresso Feminino, Laura Junqueira de Mello Reis pesquisa dois jornais na Corte, A Marmota na Corte e O Periódico dos Pobres, que possuíam seções especificamente dedicas às mulheres, e que tinham como seus principais colaboradores homens. Ao longo do artigo discutem-se os assuntos e as abordagens constantes nesses impressos do interesse de suas leitoras, como matrimônio, adultério, maternidade e emancipação feminina, entre outros. A perspectiva teórico-metodológica da autora busca realçar a questão de gênero sempre levando em conta a condição racial e de classe das mulheres a que os dois periódicos almejavam cativar e orientar, no caso as mulheres brancas, alfabetizadas e da elite.
O trabalho Arranjos eleitorais no processo de eleições em Minas Gerais na década de 1860, de Michel Saldanha, versa sobre importante temática política que cada vez mais vem merecendo a atenção da historiografia: as eleições. Embora as eleições sejam um assunto sempre referido nos trabalhos sobre a histórica política do Império, só recentemente vimos surgir inúmeras pesquisas que têm como seu objetivo particular o processo e a dinâmica eleitoral em diversos momentos e espaços do Brasil oitocentista. A autora se debruça sobre as eleições em Minas Gerais, na década de 1860, com um intuito de discutir as estratégias informais e formais utilizadas pelos candidatos e partidos para obtenção de sucesso nas urnas. Neste sentido, a difícil feitura da chapa de candidatos, a busca de aproximação dos dirigentes políticos com o seu eleitorado e a qualificação dos votantes estão entre as práticas eleitorais analisadas.
Educação e trabalho: a função “regeneradora” das escolas nas cadeias da Parahyba Norte é o título do artigo Suênya do Nascimento Costa. Nas suas páginas, são abordadas as práticas pedagógicas no Brasil do século XIX direcionadas à população carcerária, em sua maioria constituída de pessoas de origem humilde, no intuito não só de discipliná-las, mas também instruí-las sobre os valores dominantes que deveriam reabilitar os indivíduos criminosos para o convívio social, especialmente através do trabalho, em conformidade as ideias em voga no século XIX.
O artigo de Paulo de Oliveira Nascimento, intitulado Até onde mandam os delegados: limites e possibilidades do poder dos presidentes de província no Grão-Pará e Amazonas (1849 – 1856), versa sobre o executivo provincial cujos titulares, na qualidade de representantes do governo central, buscavam impor a orientação dos gabinetes às diversas partes do Império nem sempre com sucesso. No território do Amazonas o autor explora as dificuldades enfrentadas pelos presidentes para administrar um conflito antigo em particular, o que envolvia o religioso e diretor da Missão de Andiras e as autoridades locais pelo controle dos indígenas.
O estudo sobre a instância de poder provincial é também o assunto do artigo Instituições entre disputas de poder e a remoção dos párocos em Minas Gerais, de Júlia Lopes Viana lazzarine, que aborda a interferência dos presidentes de província no Padroado Régio, tida como supostamente prevista no Ato Adicional. Como aconteceu frequentemente por todo o país à época da Regência, a extrapolação das atribuições de poder na esfera províncias, prevista naquela lei descentralizadora, terminou por conflitar diversas instâncias político-administrativas. Em Minas Gerais não foi diferente. No caso discutido, ocorreu o embate, de um lado, entre o governo provincial e a Igreja; e de outro, entre a Assembleia Provincial e a Câmara dos deputados.
O artigo de Rafhaela Ferreira Gonçalves, Contornos políticos em torno dos processos cíveis de liberdade na zona da mata pernambucana: a denúncia de Florinda Maria e o caso dos pardos Antônio Gonçalves e Bellarmino José (1860-1870), discuti como base documental os processos cíveis, que constam na atualidade como fontes valiosas para a compreensão da luta dos escravizados pela liberdade. Por meio da análise de um deles, a autora consegue muito bem desvendar as estratégias encontradas pelos escravizados para se valerem do sistema normativo dominante a seu favor nos tribunais. A ação de liberdade escolhida pela autora para apreciação não poderia ser melhor. Trata-se do caso de uma liberta que engravidou de seu antigo senhor e depois viu seus filhos, nascidos do ventre livre, serem vendidos pelo pai como se fossem cativos.
Manoel Nunes Cavalcanti Junior, em A Revolta dos Matutos: entre o medo da escravização e a ameaça dos “republiqueiros” (Pernambuco-1838), investiga uma revolta da população livre e pobre do interior, na região da Zona da Mata e Agreste, que teve como estopim um decreto do governo interpretado pelos populares como uma medida visando escravizá-los. Na sua abordagem o autor investiga o levante em dupla perspectiva. Primeiro, no contexto do conflito intra-elite no período regencial , quando a boataria sobre o cativeiro da população foi atribuída pelas autoridades aos inimigos do governo, os chamados Exaltados, os quais procuraram aliciar para o seu lado os habitantes do interior tidos à época como “ignorantes” e de fácil sedução. Segundo, procurando compreender a revolta a partir das motivações próprias da gente livre e pobre do campo, que era a que mais penava com o recrutamento militar e tinha razões de sobra para desconfiar de tudo que vinha das elites e do Estado.
O trabalho O julgamento do patacho Nova Granada: embates diplomáticos entre Brasil e Inglaterra no auge do tráfico atlântico de escravizados nos anos de 1840, de Aline Emanuelle De Biase Albuquerque, nos remete à questão da repressão ao comércio negreiro e dos envolvidos nesse negócio ilícito, arriscado e lucrativo. Por meio de um processo crime que durou anos e que não condenou ninguém, a autora desvenda o conluio entre o governo brasileiro e os traficantes, os desacordos entre as autoridades britânicas e brasileiras no caso, assim como quem eram os integrantes dessa atividade mercantil proibida desde 1831. Na sua apreciação, aspectos interessantes da logística e da organização do tráfico são também revelados, como o tipo de equipamento encontrado nas naus que seguiam para África ou de lá retornavam, e que era considerado prova da atividade negreira, independe da presença de cativos na embarcação.
A imprensa no período de emancipação do Brasil de Portugal, no momento de definição dos rumos da nação que se pretendia construir, consta como temática do artigo O Reverbero Constitucional Fluminense e as interpretações do tempo no contexto da Independência (1821-1822), de João Carlos Escosteguy Filho. Nesse sentido, o autor expõe e problematiza a compreensão do tempo e da trajetória histórica do Brasil e das Américas presentes nas páginas da folha em tela, cujos propósitos eram o de influenciar o debate público e os rumos políticos do país.
Amanda Chiamenti Both, em seu trabalho Imediatos auxiliares da administração: o papel da secretaria de governo na administração da província do Rio Grande do Sul, estuda a secretaria de governo provincial, de grande importância para as presidências, mas ainda pouco explorada pela historiografia. Em meio à substituição frequente de presidentes, o artigo demonstra a relativa permanência dos indivíduos indicados para o posto de secretário da presidência no Rio Grande do Sul, além de explorar quem eram seus titulares, como se dava sua escolha e quais as suas atribuições. Suas conclusões apontam para a posição estratégica desse funcionário para o desejado entrosamento entre os presidentes e a sociedade local.
O texto de Ivan Soares dos Santos encerra o dossiê, intitulado Uma trama de fios discretos: alianças interprovinciais das sociedades públicas de Pernambuco (1831-1832). Ele retoma os estudos de duas importantes associações federais por um viés diferenciado daquele geralmente presente na historiografia sobre o período regencial. Neste sentido, o autor procura explorar e realçar as estratégias políticas construídas pelos liberais federalistas de Pernambuco para além das fronteiras da sua província, no intuito de fortalecê-los como grupo em luta pelo o poder.
Em vista dessas considerações, convidamos todos os interessados na produção histórica recente, inédita e de qualidade à leitura deste dossiê dedicado ao Brasil oitocentista.
Cristiano Luis Cristillino
Suzana Cavani Rosas
Maria Sarita Cristina Mota
CRISTILINO, Cristiano Luís; ROSAS, Suzana Cavani; MOTA, Maria Sarita Cristina. Apresentação. CLIO: Revista de Pesquisa Histórica. Recife, v.39, p.1-6, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [IF].
Clio – Revista de Pesquisa Histórica. Recife, v. 39, n. 1, jan./jun, 2021. (S)
Dossiê: Política e sociedade no Brasil oitocentista: história e historiografia – Parte 2
Apresentação
- Apresentação | Suzana Cavani Rosas, Cristiano Luís Christilino, Maria Sarita Cristina Mota | PDF | 01-05
Dossiê
- Na gigantesca floresta de metais: o Engenho Central São Pedro do Pindaré e os debates sobre a lavoura maranhense no século XIX | Francivaldo Alves Nunes | PDF | 06-28
- Ofícios mecânicos e a câmara: regulamentação e controle na Vila Real de Sabará (1735-1829) | Ludmila Machado Pereira de Oliveira Torres | PDF | 29-61
- “Nunca pode, um sequer, ser preso pela ativa guarda”: a Guarda Cívica do Recife e as críticas ao policiamento urbano no século XIX (1876-1890) | Jeffrey Aislan de Souza Silva | PDF | 62-86
- Gênero, raça e classe no Oitocentos: os casos da Assembleia do Bello Sexo e do Congresso Feminino | Laura Junqueira de Mello Reis | PDF | 87-104
- Arranjos eleitorais no processo de eleições em Minas Gerais na década de 1860 | Michel Saldanha | PDF | 105-123
- Educação e trabalho: a função ‘regeneradora’ das escolas nas cadeias da Parahyba do Norte | Suenya Nascimento Costa | PDF | 124-142
- Até onde mandam os delegados: limites e possibilidades do poder dos Presidentes de Província no Grão-Pará e Amazonas (1849 – 1856) | Paulo de Oliveira Nascimento | PDF | 143-167
- Instituições entre disputas de poder e a remoção dos párocos em Minas Gerais | Júlia Lopes Viana Lazzarini | PDF | 168-194
- Contornos políticos em torno dos processos cíveis de liberdade na zona da mata pernambucana (1860-1870) | Raphaela Ferreira Gonçalves | PDF | 195-220
- A revolta dos matutos: entre o medo da escravização e as ameaças dos “republiqueiros” (Pernambuco-1838) | Manoel Nunes Cavalcanti Junior | PDF | 221-245
- O julgamento do patacho Nova Granada: embates diplomáticos entre Brasil e Inglaterra no auge do tráfico atlântico de escravizados nos anos de 1840 | Aline Emanuelle De Biase Albuquerque | PDF | 246-267
- O Reverbero Constitucional Fluminense e as interpretações do tempo no contexto da Independência (1821-1822) | João Carlos Escosteguy Filho | PDF | 268-292
- Imediatos auxiliares da administração: o papel da secretaria de governo na administração da província do Rio Grande do Sul | Amanda Chiamenti Both | PDF | 293-314
- Uma trama de fios discretos: alianças interprovinciais das sociedades públicas de Pernambuco (1831-1832) | Ivan Soares | PDF | 315-341
Artigos Livres
- A requalificação do Forte de Tamandaré (Pernambuco) | Maria do Carmo Ferrão Santos | PDF | 342-365
- Paraná das tipografias, Paraná das letras: elementos para uma história da cultura escrita no Paraná | Silvia Gomes Bento de Mello | PDF | 366-383
- Ciências Naturais, História e os Recursos Minerais no Ceará Colonial (1750-1822) | Marilda Santana Silva, José Adilson Dias Cavalcanti | PDF | 384-404
- Revisitando a Setembrada: disputas e tensões políticas no Maranhão durante a Regência (1831-1833) | Raissa Gabrielle Vieira Cirino | PDF | 405-436
- Scenas da escravidão: coluna denuncia do Jornal do Recife. | Jefferson Gonçalo Do Carmo | PDF | 437-454
- Ensino de História, Teoria da História, Metodologia da História: tempo de revolucionar, pensar junto, fazer diferente. | Aryana Costa, Marta Margarida de Andrade Lima | PDF | 455-467
- A história dos governadores da capitania de Minas Gerais nas instruções de José João Teixeira Coelho | Luiz Francisco Albuquerque de Miranda, Natália Cristina Santos Ribeiro | PDF | 468-489
- Trânsito e transitados na província de Santo Antônio do Brasil (Séc. XVIII) | Bruno Kawai Souto Maior de Melo | PDF | 490-507
Resenhas
- A persistência do privilégio: uma história das estruturas e das hierarquias do Brasil | Flavio Dantas Martins | PDF | 508-513
- Crítica da razão negra e a introdução ao pensamento decolonial | Ana Luiza Rios Martins | PDF | 514-518
- “Muitas vezes é mais cômodo conviver com uma falsa verdade do que modificar a realidade” | Filipe Soares | PDF | 519-524 | Sobre a Revista | Expediente | Suzana Cavani Rosas | PDF
El pueblo contra la democracia: por qué nuestra libertad está em peligro y cómo salvarla | Yascha Mounk
A onda de recessão democrática global gerou outra onda: a de livros teóricos sobre o tema, que surgiram aos montes em tempos recentes. Um desses é El pubelo contra la democracia, de Yascha Mounk, professor de Harvard. Yascha, como grande parte dos pesquisadores do Norte, prefere trabalhar com o conceito de populismo, evitando outras noções também em voga como fascismo, democratura e afins. Independente do rótulo utilizado, Yascha prossegue com a discussão que se tornou em voga: por que a democracia liberal passou a dar sinais de decadência após décadas de estabilidade?
Enquanto autores como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018, p. 33-34) preferiram focar sua obra, na fragilização das instituições através de um processo de autoritarismo gradual, Mounk direciona o seu livro para uma visão menos institucional e mais “popular”. Isto é, busca compreender menos os líderes por trás desses movimentos anti- democráticos, e mais a base que os sustentam: o povo, conforme até mesmo o título deixa claro. Para isso, se propõe a debater os motivos que levaram parte da população mundial a rejeitar a democracia, que, outrora com apoio majoritário, atualmente encontra-se, na melhor das hipóteses, desacreditada (MOUNK, 2018, p. 64).
A surpreendente vitória de Donald Trump em 2016 serviu para evidenciar um tumor no âmago da democracia liberal (MOUNK, 2018, p. 10): se a suposta democracia mais estável e poderosa do planeta pode eleger um demagogo, o que será das outras? Previsível, portanto, que essa eleição tenha acabado por impulsionar também a eleição de outros demagogos ao redor do planeta (MOUNK, 2018, p. 10). Apesar de suas idiossincrasias variáveis de nação para nação, todos esses “homens fortes” (MOUNK, 2018, p. 13) possuem características interseccionais entre si: os ataques à mídia livre; a perseguição à oposição; a existência de inimigos invisíveis, dentro e fora de seus países; e, mais notável, a simplicidade com que tratam a democracia, interpretando a realidade como crianças mimadas, se propondo a solucionar todos os problemas possíveis (apenas para suas seitas), mas sem propostas reais de como fazê-lo (MOUNK, 2018, p. 12-16). Mas o que leva as pessoas desejarem isso, almejarem trocar a estabilidade da democracia liberal por um movimento populista autoritário, quando não fascista?
Para Mounk (2018, p. 159) o primeiro motivo é pragmático: estagnação econômica. Crises e estagnações historicamente sempre favoreceram o surgimento ou ascensão de regimes autoritários, principalmente quando aliadas a altos índices de corrupção. A crise de 2008 e as medidas de austeridade que se seguiram a ela, adicionaram ainda mais caldo ao ressentimento criado pela estagnação. Na impossibilidade de prover a família ou de desfrutar do mesmo conforto que outrora possuíra, as pessoas direcionam o seu ressentimento e frustração para a política e para bodes expiatórios conforme a necessidade: alguém precisa ser culpabilizado pelo fracasso. No caso europeu e estadunidense, os imigrantes; no caso brasileiro, a corrupção e o fantasma invisível e onipresente de um comunismo inexistente.
Segundo Mounk (2018, p. 172), a segunda razão, principalmente na Europa e na América do Norte, é a imigração. A presença do alien, do desconhecido, o contato com novas culturas, principalmente em momentos de crise, é um ingrediente importante para o bolo do nacionalismo populista. Como efeito, Mounk também constata que homens são mais suscetíveis a sucumbir à hipnose populista pela perda de autoridade masculina conforme, nas últimas décadas, a tradição de poder é progressivamente questionada. Da mesma forma, o Partido Republicano, nos EUA, é particularmente forte entre os homens brancos, o maior eleitorado de Donald Trump, dado que sentem um esvaziamento de seu poder e se colocam, eles próprios, como vítimas (STANLEY, 2018, p. 98, 104-105). Assim, surgem narrativas que apontam mulheres independentes, negros, judeus, árabes, homossexuais, ou qualquer desviante da tradição, como responsáveis por um suposto declínio da nação.
O terceiro motivo, o grande diferencial dos populismos contemporâneos, é a ascensão da internet e das redes sociais como ferramenta de comunicação em massa (MOUNK, 2018, p. 152-153). Ao passo que fenômenos como a tão em voga fake news pouco têm de novo, as redes sociais ajudaram na disseminação da mentira, bem como na organização de grupos de ódio e na padronização dos pensamentos através de algoritmos. Se na realidade somos constantemente expostos ao outro, a uma alteridade forçada, na internet podemos facilmente nos fechar em pequenos grupos, repetindo mentiras até que se tornem verdades. Como Orwell (2009, p. 338) já mostrava, 2 + 2 passa a ser 5 se assim for conveniente, e quem mostrar que é 4 é obviamente um (insira aqui o rótulo do inimigo objetivo do movimento).
Foucault (1979, p. 77) já dizia que “as massas, no momento do fascismo desejam que alguns exerçam o poder, alguns que, no entanto, não se confundem com elas, visto que o poder se exercerá sobre elas […]; e, no entanto, elas desejam este poder, desejam que esse poder seja exercido.” Embora Mounk evite trabalhar com a ideia de fascismo, conforme já foi aventado, o conceito de populismo que desenvolve lida com a mesma ideia: a necessidade das pessoas, em um momento de frustração e desilusão com o establishment político, desejarem avidamente por um “homem forte”, pouco importando seu preparo para o cargo. A capa da edição espanhola, edição que aqui está sendo resenhada, um rebanho de ovelhas, ilustra justamente a submissão do homem-massa ao messias, ao líder.
O modus operandi desses populistas autoritários é padrão e já foi bastante relatado nos últimos anos: a classificação maniqueísta do mundo em uma oposição binária. Consequentemente, todos aqueles que não apoiam esses grupos, são automaticamente classificados como “malignos”. Os meios de comunicação, a oposição e as universidades são alvos preferenciais, e inimigos invisíveis aparecem por todos os lugares. Se há uma característica em comum, a despeito de todas as diferenças, entre esses grupos, essa é o conspiracionismo paranoico.
Um dos exemplos mais mencionados por Mounk (2018, p. 17) é a Hungria de Orbán, sugerida por politólogos após a queda da União Soviética como um dos antigos satélites com mais chances de consolidar uma democracia liberal. Mounk (2018, p. 18) aponta alguns dos pontos que indicavam que a democracia iria se tornar resiliente na Hungria: experiência democrática no passado; legado autoritário mais frágil do que os demais ex- satélites soviéticos; país fronteiriço com outras democracias estáveis; crescimento econômico; mídia, ONGs e universidades fortes. Trinta anos depois, verifica-se justamente o contrário: após anos gradualmente dissolvendo as instituições do país, aparelhando a corte, perseguindo jornalistas e acadêmicos, Viktor Orbán conseguiu, no escopo da crise do coronavírus, enorme poderes (O GLOBO, 2020) e poucos discordariam que a Hungria é, hoje, autoritária.
Outra força importante da obra de Mounk é ressaltar a diferença entre liberalismo e democracia, discussão pouco levantada por outros autores sobre a temática. Com a queda do Muro de Berlim, e o suposto fim da história, o homem se acostumou à falácia de que democracia e liberalismo são sinônimos, de que não há democracia sem liberdade individual, e que não há liberdade individual sem democracia. Viktor Orbán classifica o seu regime como uma “democracia iliberal”, nome orwelliano que, em última análise, sintetiza o seu autoritarismo e o de tantos outros atuais: uma ditadura velada, com uma democracia de fachada, inexistente na prática, com restrição de liberdades individuais e do livre-pensamento (MOUNK, 2018, p. 18). Um método eficiente de “democratura” desenvolvida pela escola Putin de governar.
Mounk divide essas “democraturas” em dois tipos: liberalismo antidemocrático e democracia iliberal. Em outras palavras, uma cisão na noção de democracia liberal, que se parte em duas. A primeira é caracterizada por um sistema fechado, que exclui a população, através do representativismo, da participação política, concentrando o poder nas mãos de uma elite oligárquica. Ou, como Robert Dahl (2005, p. 31) já havia apontado quase 50 anos atrás em Poliarquia, uma hegemonia ou uma semi-poliarquia, considerando que, para Dahl, somente um regime inclusivo e igualitário poderia ser classificado como poliarquia, isto é, o mais próximo possível de uma democracia, esta um ideal utópico a ser perseguido mas nunca alcançado. Entrementes, o liberalismo antidemocrático de Mounk, assim como a hegemonia ou semi-poliarquia de Dahl, é marcado pela concentração de poder e limitação da liberdade apenas para a elite, enquanto o restante da população é progressivamente excluído. O segundo sistema, a democracia iliberal, é uma consequência do primeiro. A população politicamente invisível acaba por ser presa fácil de movimentos populistas anti-democráticos, que supostamente visam subjugar o primeiro sistema, embora, muitas vezes, como ocorreu no Brasil de 2018, sejam parte dessa própria elite. Conforme aponta Jason Stanley (2018, p. 82), “a democracia não pode florescer em terreno envenenado pela desigualdade”. O povo é, assim, capturado pelo discurso do “homem forte”, que retomará o país aos tempos de glória, não importando se a morte da democracia real é uma consequência inevitável desse processo. Soma-se a isso a diminuição da representatividade na democracia representativa. Embora, por sua própria definição, a democracia representativa implica em certo afastamento do povo em relação ao político, dado que o primeiro fica, em grande parte, impossibilitado de tomar decisões diretas, há uma ascensão no sentimento desse afastamento. Isto é, a democracia está supostamente cada vez menos representativa, e os políticos profissionais progressivamente mais afastados da opinião popular (MOUNK, 2018, p. 64).
Talvez o maior defeito da obra de Mounk – um defeito que não é exclusivo seu, mas sim de grande parte dos livros sobre movimentos anti-democráticos contemporâneos -, é vender suas ideias como se fossem novidades, quando Robert Dahl, meio século atrás, já apontava as mesmas questões com nomenclaturas distintas, ressaltando ainda a importância de perceber que a democracia plena é impossível e utópica. Tanto mais, a insistência de Mounk com o rótulo de populismo autoritário recusa, possivelmente para evitar utilizar um termo tão desgastado, a ideia de que parte desses movimentos anti-democráticos sejam de fato movimentos fascistas. Entretanto, se por um lado é realmente necessário evitar elasticizar o conceito de fascismo para não englobar tudo, por outro somente com malabarismo intelectual é possível classificar um Jair Bolsonaro, para usar um exemplo de nosso país, como apenas um “populista de extrema-direita, ultraconservador e nacionalista”. Mesmo porque um populista de extrema-direita, ultraconservador e nacionalista é justamente um fascista.
Referências
DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
O GLOBO. Parlamento da Hungria aprova lei de emergência que dá a Orbán poderes quase ilimitados. O Globo, Rio de Janeiro, 01 abr. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/parlamento-da-hungria-aprova-lei-de-emergencia-que-da-orban-poderes-quase-ilimitados-24338118 . Acesso em: 15 ago. 2020.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
MOUNK, Yascha. El pueblo contra la democracia: por qué nuestra libertad está em peligro y cómo salvarla. Espasa Libros: Barcelona, 2018.
STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Porto Alegre: L&PM, 2018.
Sergio Schargel – Mestrando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, mestrando em Ciência Política pela UNIRIO. Bolsista CNPq. E-mail: sergioschargel_maia@hotmail.com
MOUNK, Yascha. El pueblo contra la democracia: por qué nuestra libertad está em peligro y cómo salvarla. Barcelona: Espasa Libros, 2018. Resenha de: SCHARGEL, Sergio. Velhas ideias sob novas roupagens. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 24, p. 220-224, jul./dez., 2020.
Rock cá/ rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985 | Paulo Gustavo da Encarnação
Bichos escrotos saiam dos esgotos
Bichos escrotos venham enfeitar […]
Bichos, saiam dos lixos
Baratas me deixem ver suas patas
Ratos entrem nos sapatos
Do cidadão civilizado
(TITÃS, 1986).
Nas favelas, no Senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da Nação
(LEGIÃO URBANA, 1987)
O primeiro fragmento citado compõe a letra da música “Bichos escrotos”, do álbum Cabeça Dinossauro da banda Titãs. Ainda que apresentada em shows desde o começo da década de 1980, a música foi gravada apenas em 1986. O motivo: a censura imposta no regime militar. Já o segundo excerto compõe o disco Que país é este, da banda Legião Urbana. Lançado no álbum de 1987, a música, igualmente intitulada “Que país é este”, rapidamente se transformou num hit da banda e embalou gerações. Ambas foram oficialmente lançadas nos anos iniciais do processo de redemocratização do Brasil. Contêm críticas profundas ao período e aos fundamentos da Nova República, denominação cunhada para tratar do período iniciado com o fim da ditadura militar (FERREIRA; DELGADO, 2018).
Elas foram (e são) entoadas por jovens de diferentes gerações como canções de protesto e contestação à ordem política vigente e à estrutura social. Embora trintonas, são extremamente atuais para pensarmos o cenário político brasileiro, as relações entre Executivo e Legislativo e, principalmente, as práticas políticas adotadas. Afinal, atualmente ainda sobram “bichos escrotos” que desrespeitam a Constituição, mas, apesar da dura realidade enfrentada pelo cidadão brasileiro, entoam fábulas encantadoras sobre o “futuro da Nação”.
Não obstante, as canções também possibilitam aprofundar a discussão acerca das complexas relações entre história, rock, mídia e política. E suscitam outras importantes indagações, tais como: O que é rock? É um gênero nacional ou estrangeiro? É popular ou elitista? É música de caráter alienante ou música de protesto? É expressão de posturas progressistas ou conservadoras? Como é comumente classificado por agentes do campo midiático?
Esses são alguns dos problemas argutamente debatidos pelo trabalho recém-publicado por Paulo Gustavo da Encarnação, doutor em história pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e com estágio pós-doutoral realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Fruto da sua tese de doutorado, sob a orientação do professor doutor Áureo Busetto, e com estágio de pesquisa em Portugal, o historiador publicou o livro intitulado Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa (1970-1985).
A obra apresentada se inscreve no horizonte da chamada “história política renovada”, que, como formulado por René Rémond (1996), concebe a amplitude dos objetos enfocados pela história política. Toma o rock como objeto com potencial para o conhecimento de práticas políticas diversas e múltiplas dimensões da identidade coletiva — perspectiva que possibilita adentramos “terrenos que, mesmo aparentemente apresentados como paisagens desérticas e estéreis, são searas para serem trilhadas pelo historiador do contemporâneo” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 32). O autor do livro observa a “relação rock/política como resultado de um feixe de relações sociais, cujos subsídios principais podem ser percebidos em discursos, nos comportamentos e, inclusive, nas aparentes ausências de elementos e ingredientes da política” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 32).
Com tais preocupações, Paulo Gustavo da Encarnação procura demonstrar as proximidades entre o rock brasileiro e o lusitano entre as décadas de 1970 e 1980. Aponta semelhanças entre os países; por exemplo, os períodos de ditadura. Mas também cuida das particularidades. Munido de uma perspectiva comparativa, afasta-se de visões totalizantes, hegemônicas e uniformes para pensar os agentes e expedientes dos universos roqueiros brasileiro e português. Como bem lembrou Marc Bloch sobre o trabalho do historiador (2001, p. 112), “no final das contas, a crítica do testemunho apóia- se numa instintiva metafísica do semelhante e do dessemelhante, do Uno e do Múltiplo”.
Assim, o livro busca refletir comparativamente acerca das características do rock lusitano e do brasileiro. Para tanto, leva em conta parâmetros linguístico-poéticos e musicais na análise de canções com críticas sociais e políticas. Procura demonstrar como o gênero foi classificado, respectivamente, por agentes brasileiros e portugueses, ocupando-se especialmente das definições e dos estereótipos formulados pelos integrantes do universo midiático, assim como da constituição e atuação da crítica musical veiculada em cadernos jornalísticos específicos e/ou em revistas especializadas. Portanto, historiciza o rock e o modo como o gênero foi tomado pela imprensa nos universos brasileiro e português.
Com relação à imprensa, concebe as diferentes e, por vezes, antagônicas facetas que conferem existência a uma empresa midiática. Compreende o estatuto das suas fontes e explica, detalhadamente, os passos trilhados para a realização do estudo. Apresenta, por exemplo, o modo como constituiu quadros temáticos para realização da pesquisa documental e para o trabalho com a bibliografia — expediente que possibilitou estruturar uma narrativa fluente e pouco afeita apenas à exposição cronológica e linear dos fatos.
Com base nos dados obtidos em pesquisa documental de fôlego e a partir da consulta crítica e assertiva à ampla e diversificada bibliografia, o pesquisador expõe consistente tese sobre o tema:
O rock produzido em língua portuguesa, no Brasil e em Portugal, desde os anos 1950 vinha num processo de nacionalização que culminaria, a partir da década de 1970 e, com especial destaque, para os anos 1980, no denominado rock nacional. […] defendemos a tese de que o rock produzido durante o período de 1970-1985 expressou e lançou mensagens musicais e críticas políticas. Ele se tornou, por conseguinte, um catalisador e um difusor de anseios e visões de mundo de uma parcela da juventude que não estava disposta a ver suas expectativas com relação à vida cultural e à política encerradas nas dicotomias: nacional/ estrangeiro, popular/elitista, capitalismo/socialismo (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 25).
Além de fértil e sólida tese, o leitor terá a oportunidade de conhecer o trabalho de um pesquisador incansável que minerou e lapidou dados e elementos históricos. Ademais, o livro de Paulo Gustavo da Encarnação é leitura obrigatória para pesquisadores que apreciam a constituição de séries no trabalho de pesquisa documental, a organização do material e sua exposição numa narrativa envolvente, sem, contudo, renunciar ao enfretamento de densas e qualificadas questões teórico-metodológicas. Ao longo dos quatro capítulos, o leitor terá a chance de conhecer a história do rock e, também, uma potente análise sobre as relações desse gênero musical com a mídia e a política no Brasil e em Portugal.
Se, por um lado, o trabalho de Paulo Gustavo nos ensina sobre um objeto específico e a operação do historiador num recorte temporal definido, comparando práticas em dois espaços distintos, por outro lado, chama atenção para a importância de entendermos o universo político para além das leituras simplistas sustentadas por visões duais e dicotômicas de mundo. Essa não seria, aliás, uma necessidade da nossa frágil democracia? Que a leitura de Rock cá, rock lá fomente a reflexão e o debate. E que os leitores experimentem mais do que visões binárias e esquemáticas de mundo. Afinal, como o autor colocou, o rock “é uma miscelânea de difícil definição”, mas como “posicionamentos que buscam criticar os pilares da sociedade”, expressando, “muitas vezes, elementos, mensagens e linguagem contestadoras” (ENCARNAÇÃO, 2018, p. 267-8).
Referências
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
ENCARNAÇÃO, Paulo Gustavo da. Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985. São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2018.
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucila de Almeida Neves (Org.). O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016 – Quinta República (1985-2016). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. v. 5.
LEGIÃO URBANA. Que país é este. In: LEGIÃO URBANA. Que país é este. Rio de Janeiro: EMI-Odeon Brasil, 1987. 1 áudio (2 min. 57).
RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.
TITÃS. Bichos escrotos. In: TITÃS. Cabeça Dinossauro. Rio de Janeiro: Warner, 1986. 1 áudio (3 min. 17).
Edvaldo Correa Sotana – Mestre e doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP/Assis). Professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: edsotana11@gmail.com
ENCARNAÇÃO, Paulo Gustavo da. Rock cá, rock lá: a produção roqueira no Brasil e em Portugal na imprensa – 1970/1985. São Paulo: Intermeios/Fapesp, 2018. Resenha de: SOTANA, Edvaldo Correa. Rock, mídia e política: história numa perspectiva comparada. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 24, p. 225-228, jul./dez., 2020.
Revista do Arquivo Público do Espírito Santo. Vitória, v.4 n.8, 2020.
Editorial
Apresentação
- Dossiê: Justiça, Cidadania e Direito na História do Espírito Santo
- Kátia Sausen da Motta |pdf
Entrevista
- As contribuições do Arquivo Público e dos documentos de arquivo para o acesso à informação na perspectiva das pesquisas de Ana Célia Rodrigues
- Alexandre Faben | pdf
Dossiê: Justiça, Cidadania e Direito na História do Espírito Santo
- O “Império quer dizer Governo ou Nação”: o Espírito Santo emerge como província
- Adriana Pereira Campos | pdf
- Os votantes da Província do Espírito Santo: direito de voto e perfil socioeconômico (1824-1881)
- Kátia Sausen da Motta | pdf
- “Diz a senhora suplicante que o recrutado a sustenta”: mulheres, justiça e cidadania no Espírito Santo do Oitocentos
- Karolina Fernandes Rocha | pdf
- A sociedade propagadora da instrução pública capixaba em fins do Oitocentos
- Meryhelen Quiuqui | pdf
- Liberdades controladas: da Lei do Ventre Livre aos sexagenários. Espírito Santo (1871-1888)
- Rafaela Domingos Lago | pdf
- A Jagunçada de Barracão: vingança, racismo e morte na comarca de Santa Teresa/ES (1897)
- Francisco Roldi Guariz
- As mobilizações pela anistia brasileira no estado do Espírito Santo (1975-1979)
- Brenda Soares Bernardes, Pedro Ernesto Fagundes | pdf
- As solicitações de informação na Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo entre os anos de 2017 e 2019
- Camila Mattos da Costa, Maria Ivonete Rodrigues Pego | pdf
Artigos
- Paisagem urbana do Centro de Vitória (ES) no início do século XX: a fotografia no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
- Enzo Daltoé Nepomoceno, Maira Cristina Grigoleto | pdf
- O poder político-econômico da Companhia de Jesus na capitania do Espírito Santo: uma análise da Devassa de 1761
- Vinícius Silva dos Santos | pdf
- Experiências interdisciplinares nos acervos históricos de Fundão
- Gabriela de Oliveira Gobbi, Marcello França Furtado, Jessica Dalcolmo de Sá | pdf
Colaborações especiais
- Resenha do Ciclo de Comunicações: 112 anos do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
- Kimberlly de Mattos | pdf
- Documentos
- Pelo direito de votar: justiça, cidadania e a Lei Saraiva na Província do Espírito Santo (1881)
- Larissa Ricas Cardinot | pdf
Resenhas
- Estatuto da Mulher Casada e a cidadania no Brasil: História, Gênero e Direito
- Bárbara Lempé Alonso Scardua | pdf
- Reportagens
- Fazenda do Centro: 175 anos de história
- Cilmar Franceschetto | pdf
Justiça, Cidadania e Direito na História do Espírito Santo | Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo | 2020
Justiça, Cidadania e Direito são temas de longa tradição no campo da História que contemplam fenômenos jurídicos e políticos numa perspectiva ampla e interdisciplinar. Recentes estudos e abordagens têm evidenciado o papel relevante das culturas jurídicas e políticas para a compreensão das ideias, instituições, comportamentos e relações de poder nos mais variados contextos históricos. Em consonância com as tendências historiográficas dos últimos decênios, que indagam as interpretações generalizantes e, por vezes, reducionistas, o dossiê objetivou congregar estudos que se dedicam ao exame das práticas e do pensamento no âmbito político-jurídico e suas transformações ao longo da História. Abre-se, assim, uma série de problemas ligados às práticas judiciárias e políticas, construção da cidadania, garantia de direitos, acesso à justiça e à informação. Para essa edição da Revista do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, o dossiê procurou incorporar pesquisas que tratam a temática no âmbito do Espírito Santo, perpassando os diversos regimes políticos e jurídicos, desde o processo de independência do Brasil até a República e suas diversas temporalidades. Leia Mais
Cultura e democracia: convergências, conflitos e interesses públicos / Albuquerque: revista de história / 2020
Até ontem a palavra do alto César podia resistir ao mundo inteiro. Hoje, ei-lo aí, sem que ante o seu cadáver se curve o mais humilde. Ó cidadãos! Se eu disposto estivesse a rebelar-vos o coração e a mente, espicaçando-os para a revolta, ofenderia Bruto, ofenderia Cássio, que são homens honrados, como vós bem os sabeis. Não pretendo ofendê-los; antes quero ofender o defunto, a mim e a vós, do que ofender pessoas tão honradas. (Marco Antônio, em Júlio César de William Shakespeare)
O dossiê Cultura e Democracia: convergências, conflitos e interesses públicos, ainda que esteja ligado a temas e problemas temporais próximos ao que estamos vivendo no imediato presente, abrange uma temporalidade mais ampla que envolve os diversos meandros que compõe a estrutura do mundo e do Estado modernos. Desde as revoluções burguesas, que marcaram o surgimento de uma nova sociedade, homens e mulheres em vários espaços geográficos passaram por diferentes tipos de instabilidades políticas, o que gerou muitos debates intelectuais além de lutas e disputas frequentes pelas formas de entendimento sobre o poder de atuação das pessoas no espaço público.
O século XIX, por exemplo, é caracterizado no âmbito do continente europeu por numerosas lutas de trabalhadores que perceberam as possibilidades de transformação de suas condições de sobrevivência e de atuação política inaugurada pelo enredo liberal no final do século anterior. Um dos exemplos mais importantes nesse sentido ocorreu em Paris em 1848 quando a utopia da transformação atingiu inúmeras pessoas que incendiaram e subverteram as ruas da capital. A população invadiu e saqueou o Palácio das Tulherias, então residência do rei Luís Felipe. E antes que um governo provisório fosse formado e a Dinastia dos Orleans perdesse o poder, populares arrastaram o trono pelas ruas e o incendiaram na Bastilha. A força política e simbólica do que ocorreu a partir desse acontecimento foi retratada por imagens e palavras, mas nada mais forte que a análise produzida por Karl Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.
Escrito entre dezembro de 1851 e fevereiro de 1852, Marx elaborou no calor dos acontecimentos uma análise cortante sobre a amplitude da atuação política de setores sociais explorados na vida democrática da França à época. O mesmo país que poucos anos antes havia legado ao mundo o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” utilizou o discurso da democracia para que as subversões e lutas de 1848 fossem acalmadas e conformadas. A derrota imediata dos trabalhadores que ocupavam as ruas de Paris ocorreu a partir de junho de 1848, quando a Assembleia Nacional Constituinte foi formada e começou a elaboração das bases da Segunda República Francesa. O trono queimado de 1848 foi calmamente reconstruído até que, em 1851, o sobrinho imitou o tio e fez do dia 2 dezembro o seu 18 de Brumário.
Esse é apenas um exemplo onde os temas da democracia e da cultura estiveram fortemente imbricados em um “momento de perigo” do século XIX. Nele podemos observar muitas coisas e tirar diversas conclusões, mas o mais importante é perceber que o discurso democrático, por si mesmo, não garante a ampla e profunda participação política de diferentes estratos sociais. Aqui é desnecessário realçar a habilidade de Marx em tratar desse tema, inclusive porque O 18 de Brumário é inquestionavelmente um clássico, mas é impressionante perceber que desde 1852, quando ele foi publicado, temos condições de desdobrar essa discussão principalmente para entender que a democracia não é um bem em si, mas um constructo social que depende de variáveis históricas e, portanto, de condições sociais que precisam ser cotidianamente pensadas e, claro, reescritas. Inclusive o próprio Marx nas linhas iniciais de seu texto chama a atenção para o fato de que “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2001, p. 25). A participação política requer responsabilidade de todos. As noções de cidadania, igualdade e direitos, entre outros, como todos os aparatos discursivos, possuem correspondentes na prática. O autor alemão nos mostrou no século XIX, que quando alguns grupos colocam em prática a igualdade, outros reagem, inclusive no campo do discurso lançando mão do vocabulário de participação política inaugurado pelas revoluções burguesas.
Tomando essa reminiscência do século XIX como referência, podemos buscar outras no século posterior. O que nos motiva nesse caminhar é o vocabulário político do Estado Moderno, lembrando sempre que nosso escopo são as convergências entre democracia e cultura.
Ao longo do século XX, as duas guerras mundiais foram acontecimentos que alteraram profundamente os debates sobre democracia. Se antes de começar, o primeiro conflito fora saudado em prosa e verso por inúmeras pessoas embaladas pelo nacionalismo e o imperialismo de fins de século na Europa, 1918 apresentou um quadro muito distinto. Além dos problemas econômicos decorrentes da guerra e do novo quadro de forças políticas mundiais, o nacionalismo adquiriu cada vez mais traços xenófobos e chauvinistas. Isso sem contar o peso que a Revolução Russa de 1917 teve para os debates ideológicos da época bem como a acentuada gravidade do processo de exploração do continente africano para a política internacional. Não por acaso, as derrotas mais duras para o campo democrático não tardaram a chegar. Em 1922, Benito Mussolini promoveu a conhecida Marcha sobre Roma, com isso o fascismo entrava triunfal na cena pública contemporânea e, em 1933, Adolf Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha pelo presidente Paul von Hindenburg. Daí até a Segunda Guerra Mundial foi uma questão de tempo e novamente o mundo se viu diante de inúmeros debates sobre a questão democrática.
Muitos autores se dedicaram à discussão sobre democracia e espaço público nesse amplo contexto que abarca também o período posterior a 1945, quando inclusive se coloca em prática no ambiente europeu o Estado de bem estar social. Uma das reflexões mais marcantes da época surge das letras da filósofa Hannah Arendt, em especial por ela entender que o espaço da ação política é o espaço da ação pública por excelência. A política se efetiva onde os Homens se unem aos seus iguais, são capazes de assumir posicionamentos, persuadem, sofrem e aceitam derrotas.
Arendt se dedicou, desde As Origens do Totalitarismo (1951), amplamente às reflexões que envolvem “ação” e “pensamento” no ambiente dos autoritarismos inaugurados no século XX. Os leitores atentos encontram nos seus livros análises primorosas sobre as incongruências que o tema da democracia carrega, entre eles Sobre Revolução (1963), Entre o passado e o futuro (1968) e Crises da República (1969). Nesse último, tratando especificamente da realidade dos Estados Unidos, país que acolheu a autora quando ela fugira do Nazismo, a análise se volta para a revisão da ideia de representatividade política frente às questões da liberdade pública:
Queremos participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público, e queremos ter uma possibilidade de determinar o curso político do nosso país. Já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para determinar nosso destino, precisamos de um certo número de espaços públicos dentro dele. As cabines em que depositamos as cédulas são, sem sombra de dúvida, muito pequenas, pois só têm lugar para um. Os partidos são completamente impróprios; lá somos, quase todos nós, nada mais que o eleitorado manipulado. Mas se apenas dez de nós estivermos sentados em volta de uma mesa, cada um expressando a sua opinião, cada um ouvindo a opinião dos outros, então uma formação racional de opinião pode ter lugar através da troca de opiniões. (ARENDT, 2010, p. 200)
É perceptível pela ótica da autora, entre outras coisas, que a participação democrática ampla depende de fatores que vão além do depósito do voto nas urnas e inclui a ampliação dos espaços públicos, a capacidade de diálogo, o processo formativo cultural e educacional, daí a importância do ambiente escolar e da escolarização, discutidos de maneira tão contundente no texto A Crise na Educação. Ninguém nasce em um mundo livre de construções humanas, por isso cada nova geração tem responsabilidade com o passado e com o futuro. Portanto, sem o processo educacional, corremos o risco de ignorar o que as gerações anteriores construíram e, com isso, desprezamos os perigos autoritários inaugurados no passado. E isso, infelizmente, é possível sem o diálogo frequente e a expansão da esfera pública.
Com tantos e profundos autoritarismos no século XX percebemos, lendo autores diferentes e refletindo sobre momentos e sociedades distintas, que é impossível não ser constantemente vigilantes com o processo formativo das pessoas. É ele que minimamente pode garantir um debate mais consistente sobre os meandros democráticos e, principalmente, condições de sobrevivência onde existam conflitos e convergências de interesses públicos.
Apesar de termos percorrido apenas vinte anos do século XXI, está claro que a força autoritária recrudesce imensamente no mundo e no Brasil nos últimos anos. Há inclusive uma extensa bibliografia sobre o tema que vem colocando acentos interpretativos distintos e importantes sobre a ideia de democracia. Desde a publicação de Como as democracias morrem (2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, temos acesso no Brasil aos livros Como a democracia chega ao fim (2018), de David Runciman; O povo contra a democracia (2019), de Yascha Mounk; Na contramão da liberdade (2019), de Timothy Snyder, entre outros. Já entre autores e pesquisadores brasileiros a situação não é diferente e merece destaque o livro do sociólogo Leonardo Avritzer, O pêndulo da democracia (2019).
Levando em conta toda essa discussão e entendendo, desde os escritos mais contundentes do século XIX, que a democracia é um tema sempre a ser discutido, construído e cultivado que estruturamos a proposição deste dossiê. Assim, a articulação entre Cultura e Democracia não é apenas um jogo de palavras que diz respeito às urgências intelectuais da época em que vivemos, mas é um retorno ao passado carregado de historicidade e de respeito aos contínuos movimentos das lutas de homens e mulheres que formaram nossa sociedade ao longo do tempo. Está também relacionada à constatação de que o conhecimento acadêmico é fundamental para uma época que despreza a ciência e a racionalidade como sintoma de autoritarismos políticos e sociais que desprezam a vida e a multiplicidade humana.
Abrindo o dossiê, Durval Muniz de Albuquerque Júnior no texto Narrar vidas, sem pudor e sem pecado: as carnes como espaço de inscrição do texto biográfico ou como uma biografia ganha corpo problematiza a noção de biografia histórica, trazendo à tona como o ato de escrever biografias maneja a dimensão temporal e carnal da existência. Para tanto, o historiador lança mão da obra Roland Barthes por Roland Barthes (2017) e permite que os leitores compreendam que o ato de narrar e ler sobre vidas é carregado de significados variados. No campo do debate sobre democracia, o texto adquire singularidade por nos permitir compreender que quando lidamos com agentes do passado por meio de biografias estamos diante de uma “potência carnal que corporifica a escrita biográfica”.
Na sequência, disponibilizamos as reflexões de Rosangela Patriota sobre as incertezas contemporâneas em torno de práticas democráticas, por meio do artigo A questão democrática em tempos de incertezas. Com essa preocupação, a autora realiza um mergulho no cenário político internacional das últimas décadas para, posteriormente, discutir o tema do antissemitismo em sociedades contemporâneas, a partir do revisionismo na historiografia do Holocausto e por intermédio da peça teatral Praça dos Heróis de Thomas Bernhard. Articulando diálogos entre passado / presente, Patriota problematiza dúvidas e impasses de nossa história imediata.
Ainda no contexto de elaboração de narrativas históricas, cabe destacar o artigo do historiador Antonio de Pádua Bosi, Trabalho, Imigrantes e Política em “Greve na Fábrica”: o maio de 68 para Robert Linhart. Homem público francês, que viveu um dos momentos mais intensos dos debates democráticos da segunda metade do século XX, Linhart produziu um texto revelador sobre identidades culturais e experiência de trabalho industrial a partir da vivência de operários de diferentes nacionalidades na linha de montagem da Citroën, em 1969. Bosi recupera esses escritos e dá dimensão histórica e crítica ao livro do autor francês. Ler o artigo nos ajuda a perceber o quanto a dinâmica do trabalho e o debate sobre democracia se alterou ao longo do tempo, ao mesmo tempo que trouxe consequências marcantes para a vida e a luta dos operários.
Caminhando para a compreensão das discussões da democracia no Brasil, o artigo Paulo Freire: el método de la concientización, em la educación, para analizar y compreender el contexto actual de la Globalización, escrito por José Marin Gonzáles, traz para o debate sobre democracia o tema da educação por meio do método de Paulo Freire no atual contexto de Globalização. O texto é fundamental para um momento em que muito se critica o educador brasileiro sem nenhum tipo de fundamentação acadêmica e mais ainda quando o processo educacional é pensado prioritariamente como corpo que oferece aos sujeitos, desvinculados de quaisquer coletividades, ferramentas exclusivas para o mercado de trabalho. Freire é um chamamento à coletividade, à noção de educação voltada para o bem comum e principalmente para a justiça social, temas caros às experiências democráticas.
Entrando especificamente no diálogo com linguagens artísticas no Brasil dos últimos anos, o dossiê conta com quatro artigos. Em O homem de La Mancha: aspectos da utopia no teatro musical brasileiro da década de 1970, André Luis Bertelli Duarte promove importantes discussões sobre o teatro brasileiro nos duros anos da repressão política brasileira, com destaque para as possibilidades do debate democrático promovido pela encenação musical de O homem de la mancha (Dale Wasserman, 1965), produzido por Paulo Pontes, sob a direção de Flávio Rangel, em 1972-1973. No ambiente de autoritarismos diversos e em especial contra a figura de artistas e intelectuais, a releitura de Quixote se apresentava como ideal de justiça e liberdade.
Ainda dialogando com o campo teatral, Rodrigo de Freitas Costa promove no artigo O teatro de rua e sua expressão política: os primeiros anos do Grupo Galpão de Belo Horizonte (1982-1990) reflexões sobre o teatro de rua no período logo após o processo de abertura política, tendo por referência o trabalho desenvolvido pelo conhecido grupo teatral da capital mineira. O texto contribui para a discussão sobre democracia e cultura no Brasil especialmente por problematizar e questionar a ideia de “vazio cultural” desenvolvida por inúmeros críticos teatrais que tratam da produção nacional pós Estado Autoritário. Nesse sentido, as primeiras peças escritas e encenadas pelo Galpão são o mote para compreender parte da complexidade do processo cultural brasileiro e a amplitude do teatro político nos anos 1980.
Já sobre a relação entre Cinema, Democracia e História, o artigo de Rodrigo Francisco Dias, Autoritarismo e democracia nos filmes “Jânio a 24 Quadros” (1981, de Luís Alberto Pereira) e “Jango” (1984, de Silvio Tendler), permite ao leitor compreender como os temas do autoritarismo e da democracia são reelaborados nos documentários de Luís Alberto Pereira e Silvio Tendler no início da década de 1980. Abordando aspectos formais, o autor mostra como as configurações estéticas carregam posicionamentos históricos e políticos. Com isso, une forma e conteúdo por meio da historicidade e promove considerações importantes capazes de elucidar as dinâmicas do debate democrático dos anos finais da Ditadura Militar.
Por fim, o dossiê se encerra com uma discussão sobre financiamento cultural nos dias atuais. Essa discussão é fundamental para o Brasil de hoje, onde a arte é menosprezada e diversos artistas e intelectuais são hostilizados publicamente. Em um país que investe pouco em educação e cultura, sabemos que as discussões democráticas são frágeis e que os espaços públicos são minados por discursos surdos e preconceituosos. O artigo Democracia e Arte: as percepções da Lei Rouanet e o financiamento da cultura de Jacqueline Siqueira Vigário e Anna Paula Teixeira Daher promove reflexões importantes recolocando essa discussão em bases acadêmicas inicialmente analisando a lei de incentivo à cultura e, por fim, utilizando como exemplo o caso da exposição “Queermuseu: Cartografia da diferença na arte brasileira” (2017).
Como parte do dossiê para este este número de albuquerque: revista de história, há uma entrevista da Professora Doutora Maria Helena Rolim Capelato. Historiadora atuante na esfera pública, árdua defensora do conhecimento histórico cientificamente elaborado e produtora de reflexões importantes sobre História e Imprensa no Brasil do século XX. Na entrevista, a professora fala de sua formação ainda na Ditadura Militar, destaca os principais debates que dizem respeito à sua pesquisa sobre imprensa no Brasil e na América Latina e, por fim, reflete sobre temas políticos brasileiros contemporâneos.
Esperamos que os leitores aproveitem as reflexões que o dossiê traz e que possam cada vez mais entender e divulgar que a democracia não é um bem em si, mas um processo que precisa constantemente ser reelaborado, inclusive quando o objetivo é favorecer o humanismo em tempos sombrios.
Referências
ARENDT, Hannah. Crises na República. Tradução de José Volkmann. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia, 2019.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. Tradução de Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. Tradução de Sérgio Flaksman. São Paulo: Todavia, 2018.
SNYDER, Timothy. Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Rosangela Patriota (Universidade Presbiteriana Mackenzie / CNPq)
Rodrigo de Freitas Costa (Universidade Federal do Triângulo Mineiro)
Thaís Leão Vieira (Universidade Federal de Mato Grosso)
Organizadores
PATRIOTA, Rosangela; COSTA, Rodrigo de Freitas; VIEIRA, Thaís Leão. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.12, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]
Mulheres e Gênero na Historiografia Capixaba | Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo | 2020
O presente dossiê é fruto de reflexões que vêm ocorrendo há quase duas décadas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), notadamente a partir da criação do Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e Violência (LEG). A institucionalização desse campo de estudos, em especial com pesquisas sobre mulheres, tem contribuído para promover na historiografia capixaba novas perspectivas e novos objetos. Este é um movimento de renovação devedor de muitas fontes. Está atrelado tanto a mudanças de paradigmas nas Ciências Humanas, quanto a uma tradição capixaba de memória e história que começou a ser repensada a partir da publicação de obras pioneiras, como A mulher na História do Espírito Santo, de Maria Stella de Novaes.
Escrito nos idos dos anos 1950, mas publicado somente em fins da década de 1990, a obra de Novaes pode ser lida em diálogo com uma vertente mais testemunhal e memorialística, mas que indica uma busca de espaço pouco discutida até então sobre a urgente necessidade de se narrar as experiências marginalizadas de mulheres. De lá para cá, a historiografia produzida no Espírito Santo vem trilhando um longo caminho, no esforço por consolidar os estudos sobre mulheres e relações de gênero. Nesse ponto, uma crítica é pertinente, pois se houve avanços incontestáveis de abordagem e método, ainda estamos longe de ter uma extensa produção acadêmica pautada nas temáticas de gênero, com pesquisas que privilegiem o enfoque regional. Leia Mais
O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história | Durval Muniz de Albuquerque Júnior
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história. São Paulo: Intermeios, 2019. Resenha de: MAYER, Milena Santos. Revista Expedições, Morrinhos, v. 11, jan./dez. 2020.
“Os textos aqui reunidos formam uma constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, com pés calçados no presente, com olhos no passado ou como um projeto de história futura” (CEZAR, 2019, p.12). É assim que o historiador Temístocles Cezar apresenta o livro “O Tecelão dos Tempos “publicado no ano de 2019 pela Editora Intermeios. Publicados anteriormente em outros livros ou revistas acadêmicas, os escritos são frutos de análises, pesquisas e apresentações do historiador Durval Muniz Albuquerque Junior em conferências, aulas magnas ou seminários. O autor de “A Invenção do Nordeste e Outras Artes” (1999), “Nordestino: Uma Invenção do Falo – Uma História do Gênero Masculino” (2003) e “História: A Arte de Inventar o Passado” (2007), dentre outros, apresenta a nova publicação rebatendo críticas e comentando a repercussão que o livro de 2007, dedicado também à teoria, que causou entre os colegas da academia.
Segundo Durval, as críticas iniciaram pelo próprio título, uma vez que os termos arte e invenção sugerem um debate polêmico e recorrente no campo da história diante da busca por uma cientificidade. Além das questões teóricas, o autor foi avaliado em relação a forma em que o texto foi construído e apresentado. Por esse motivo, o historiador dedica a apresentação do novo livro para rebater as críticas, justificar e argumentar o uso do ensaio como gênero de escrita. Para ele é possível produzir conhecimento histórico preocupando-se também com a forma e com a estética da narrativa. No decorrer da leitura é possível perceber a intenção em reforçar o entendimento de que o trabalho do historiador é um trabalho de escrita e que, portanto, a forma dessa escrita é essencial e um desafio constante. “Sem a reflexão crítica sobre a arte da narrativa não há ciência possível na historiografia” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2019, p. 16). Leia Mais
Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades | Aguinaldo Rodrigues Gomes
A obra Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades, sob organização de Antonio Ricardo Calori de Lion e Aguinaldo Rodrigues Gomes, nos apresenta, em suas 408 páginas, uma sequência de vinte artigos, divididos em três partes distintas: Existências/Resistências; Subjetividades e as reinvenções de si; e (In)visibilidades e representatividades. Pontuando variados períodos da história humana, o conjunto de textos englobados na obra nos fornece um interessante panorama acerca do corpo e de suas subjetividades desde a antiguidade romana até a contemporaneidade.
Ao considerarmos o atual momento histórico-social brasileiro, no qual a invisibilidade e a marginalização da comunidade LGBT+ [2] aparenta ser uma questão à qual os poderes governamentais gradativamente parecem se afeiçoar, principalmente através de discursos de ódio voltados ao “diferente”, o conteúdo disposto em Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades apresenta-se como uma leitura fundamental para entendermos não apenas as transmutações históricas da mentalidade, corporalidade e sexualidade LGBT+, mas também como uma maneira de compreendermos a vivência desses sujeitos frente às violências quotidianas a que são submetidos.
Embora o foco da maioria dos textos que a compõem seja voltado para experiências de travestis e mulheres transexuais, a obra mostra-se uma prolífica mina de conhecimento ao englobar ideias de importantes pensadores como Judith Butler, Paul Beatriz Preciado, Angela Davis e Michel Foucault, entre outras/os, além de entrevistas com sujeitas/os cujas vivências foram e ainda são marcadas por experiências corporais tidas como desviantes dentro de um contexto patriarcal cis- heteronormativo.
A obra inicia na antiguidade romana, ao examinar a corporeidade masculina em contraste com a idealização quase utópica acerca do conceito de masculinidade e feminilidade da época. Ao explorar a relação do imperador Nero e do escravo Esporo em Um eunuco e um imperador: o discurso literário sobre casamento, corpo e gênero no Império Romano, o autor do texto, Benedito Inácio Ribeiro Júnior, traça uma importante análise sobre o corpo masculino e as funções sociais de homens e mulheres no Império Romano. Ao explorar as relações de poder que permeavam os estratos sociais mais altos da sociedade romana da época, o autor nos convida a questionar como são construídas as identidades de sexo, gênero e corpo, bem como os papéis atribuídos socialmente ao masculino e feminino na sociedade antiga – um questionamento que nos causa também uma reflexão sobre esses mesmos elementos na sociedade contemporânea.
Corpos e comportamentos em desconformidade às regras socialmente estabelecidas também são abordadas no texto Efeminados, travestis, transexuais e hermafroditas luso-afro-brasileiras nas garras da inquisição, de Luiz Mott. Nele, o autor comenta acerca do modo como sujeitos biologicamente identificados como sendo do sexo masculino eram levados aos tribunais inquisitoriais devido a comportamentos desviantes dos padrões patriarcais do período. Para a realização de seu estudo, Mott reúne registros da Torre do Tombo e traça um panorama não apenas do pensamento e valores da época sobre o “ser” masculino, mas também uma visão do feminino enquanto um elemento depreciativo na conduta de homens e rapazes. Nesse contexto, a transexualidade e a travestilidade são empurrados para a margem social como condutas consideradas violações sérias aos olhos da sociedade e da religião, punidas com a prisão, degredo ou mesmo a morte.
Ao pensarmos a realidade brasileira desses indivíduos marginalizados, um ponto bastante complexo e muitas vezes ignorado pelos poderes governamentais é a situação dessas pessoas quando parte da população carcerária. É essa realidade que Aguinaldo Rodrigues Gomes e Josimara Aparecida Magnani exploram em seu texto Travas e Trans – abjetificação e precarização de vidas no cárcere brasileiro. O capítulo traça um retrato da precarização e do desrespeito aos direitos humanos dentro do sistema penal, bem como da violência reservada a esses corpos dentro das instituições carcerárias no Brasil, dando-nos uma visão bastante ampla acerca da virilidade inserida no sistema penal como um instrumento de dominação e uma forma de subjugar corporalidades consideradas abjetas, excluídas do ideário machista.
A questão da corporalidade é também trabalhada lançando-se um olhar para a área da saúde. Nos textos Cada cicatriz conta uma história: corpos doloridos, de Regiane Corrêa de Oliveira Ramos e Frida Pascio Monteiro; Paradoxos discursivos na luta pela inserção social das brésiliennes em Paris, de Marina Duarte e Daniel Wanderson Ferreira; e Despatologização das identidades trans desde os transativismos na Abya Yala: notas sobre uma experiência acadêmica-ativista avaliativa e participativa, de Fran Demétrio, vemos as relações estabelecidas entre o discurso médico e a “criação”, manutenção e (des)patologização dos corpos em transição.
Ramos e Monteiro conectam a vivência de homens e mulheres transexuais no Brasil e na Índia ao discorrer sobre a insubmissão dos corpos frente ao sistema patriarcal, e sobre a violência sofrida por esses corpos em trânsito em suas buscas pela adequação corporal à sua subjetividade. Aqui, nos é exposto também um panorama relativo à lida médica diante de indivíduos transexuais que desejam intervenções cirúrgicas em sua construção corporal.
Duarte e Ferreira comentam sobre a migração de travestis brasileiras para Paris, principalmente com o objetivo de trabalhar no mercado sexual. Também nos é apresentada a figura de Camille Cabral, ativista brasileira trabalhando em território francês em prol da saúde das prostitutas travestis e transexuais. O texto conta com um extenso trabalho de pesquisa relativo à trajetória dos projetos de saúde desenvolvidos por Cabral e associações que trabalham em parceria com esta, em um esforço para a visibilidade e manutenção da saúde dessa população, principalmente em relação ao vírus do HIV/AIDS.
Demétrio, por sua vez, traz a discussão desses corpos em trânsito para o âmbito da América Latina. Em seu texto a autora analisa a situação cultural e sociopolítica de pessoas trans em vários países latino-americanos, além de refletir sobre o papel da justiça, da medicina e da psicologia no tratamento dispensado às comunidades transexuais.
A corporalidade como instrumento da expressão da subjetividade e como fazer artístico é assaz visível nos textos Reflexões transversais sobre o corpo de Hija de Perra (1980-2014), de Thiago Henrique Ribeiro dos Santos; “Com a sobrancelha lá na puta que pariu”: a arte de ser drag em Belém do Pará – a NoiteSuja e as drags Themônias (2014-2018), de Ana Paulo Gomes Barbosa; “Não quero ouvir falar em outro transformista, o que não for Olga del Volga é vigarista”: o nonsense debochado de Patrício Bisso na década de 1980, de Robson Pereira da Silva; DZI Croquettes e os corpos em trânsito, de Natanael de Freitas Silva; e Identidades em trânsito: revisitações acerca da arte da montação, de Juliana Bentes Nascimento.
Em sua análise sobre a trajetória de Hija de Perra, Santos vale-se de conceitos como o de corpo falante, o de máscara e mascaramento, e o de rostilidade, para traçar um esboço sobre a construção corporal de Hija de Perra, em um estudo que mistura fragmentos de dados biográficos e ficcionais do que Santos nos apresenta como uma “poética abjeta e marginal”, um corpo monstruoso e indisciplinado. Colocando-se fora de uma lógica colonial binária, que admite apenas “homem” e “mulher” como construções sociais e sexuais cujas existências são autorizadas, Hija de Perra inventa outros modos de existir, surgindo como uma subversão do sistema, um indivíduo incompreensível pela mentalidade patriarcal hegemônica.
A fuga da normatividade é também explorada por Barbosa ao dissertar acerca das drags Themônias, um grupo que se diferencia das drags “convencionais” a partir, entre outros pontos, da criação de novos conceitos estéticos. É nesse contexto que Barbosa questiona o que é ser drag, além de comentar sobre o pensamento binário ainda existente em meio à comunidade LGBT+ que privilegia as drag queens aos drag kings. A autora também reflete a respeito dos elementos que caracterizam um gênero e quais os limites, se é que existem, entre sexo, gênero e sexualidade dentro de uma lógica heterossexual compulsória. Em sua análise, Barbosa discorre sobre indivíduos que, ao se montarem, são identificados com o gênero masculino, feminino ou nenhum dos dois.
Robson Pereira da Silva, por sua vez, investiga a performance artística de Patricio Bisso como a sexóloga russa Olga del Volga. Em seu texto, o autor explora a performatividade da linguagem da personagem de Bisso de forma a dar vazão a uma subjetividade de gênero que não seria, dado o momento histórico no qual o artista viveu, benquisto frente à sociedade. A mistura de dualidades na figura de Olga del Volga e de Histeria (outra personagem tratada no texto), como o belo, o feio, assim como a fuga aos padrões de beleza e o discurso enviesado por absurdos, unem-se na criação do nonsense utilizado por Bisso em sua arte. Silva defende que ambas as personagens apresentadas no capítulo seriam elas próprias afrontas aos padrões de beleza e comportamento impostos às mulheres.
No âmbito desses questionamentos acerca dos padrões decretados pela lógica cis-heteronormativa, Natanael de Freitas Silva explora a problematização da virilidade e das atribuições de gênero socialmente construídas ao comentar sobre os DZI Croquettes. O autor reflete sobre o período ditatorial brasileiro e como a homossexualidade foi associada a uma doença social, uma degenerescência e um grave pecado aos olhos de setores sociais conservadores. Nesse panorama, a negação de traços tidos como femininos era vista como uma necessidade, uma vez que o feminino era uma mácula na utopia cis-heteronormativa. Em seu texto, Silva comenta também sobre o corpo não mais como uma ferramenta de adequação, mas sim de aperfeiçoamento da performance artística em constante diálogo entre a corporalidade masculina e feminina, uma ambiguidade subversiva e perigosa à “moral e os bons costumes”.
Na discussão relativa à quebra desses parâmetros cis-heteronormativos, Nascimento contribui ao enviesar seus comentários em direção à montação. Ligada ao conceito de mascaramento, a autora trabalha a ideia de montar-se para uma ação em busca não apenas de um efeito estético, mas também de uma nova percepção corporal. Ao comentar sobre formas de montação, como drag queen, drag king, transformismo, cross-dressing e drag queer, incluindo também as drags Themônias, Nascimento monta um panorama sobre esse processo identitário e artístico, em constante diálogo com a performatividade de gênero.
Em alguns capítulos o corpo em trânsito é observado a partir das vivências da infância. Em Vidas dissonantes em memórias de infância: as artes de existência como resistência ao desaparecimento social, de Raquel Gonçalves Salgado e Bruno do Prado Alexandre; e Traíd@s pela verdade: análise cinematográfica sobre a infância trans nas obras francesas Ma vie em rose (1997) e Tomboy (2011), de Márcio Alessandro Neman do Nascimento, Eloize Marianny Bonfim da Silva, Jefferson Adriã Reis e Jéssica Matos Cardoso, nos é exposto um panorama sobre a vivência e construção da identidade sexual e de gênero de crianças em meio a um ambiente adultocêntrico e LGBTfóbico.
Salgado e Alexandre exploram as bagagens memorialísticas de infância de travestis durante suas passagens por instituições escolares. Um fato que torna-se bastante evidente nas narrativas apresentadas é o despreparo da escola para lidar com experiências de gênero dissonantes dentro do sistema de heteronormatividade compulsória. São vivências rechaçadas e desprezadas, mas também rebeldes frente às convenções de gênero e sexualidade.
Já Nascimento, Silva, Reis e Cardoso tecem uma reflexão a respeito das experiências de gênero e sexualidade na infância a partir de obras cinematográficas. Assim como no texto de Salgado e Alexandre, notamos nesse capítulo a violência direcionada à criança que de alguma maneira desvia do comportamento convencionado segundo as normas da sociedade machista. Ambos os textos trabalham em consonância, proporcionando-nos relevantes contribuições ao entendimento da vivência do indivíduo transexual na infância, um importante período de construção da individualidade.
A carga memorialística também é perscrutada por Fábio Henrique Lopes e Paulo Vitor Guedes de Souza no capítulo Suzy Parker e Yeda Brown. Amizade, modos de existência e invenções de si. Nele, por meio de entrevistas, somos apresentados à cena cultural do Rio de Janeiro da década de 1960, na qual travestis inseriam-se no entretenimento noturno da cidade e experimentavam intervenções estéticas corporais a partir de modelos de feminilidade branca e cisgênera. Nesse período notamos a formação de redes de solidariedade para com as artistas travestis que inseriam-se nesse meio.
Lopes e Souza discutem o abandono da ideia do comportamento viril como algo necessário e o autorreconhecimento dessas artistas como mulheres, numa emancipação do padrão cis-heteronormativo – um rompimento com padrões sociais de gênero artificialmente construídos e já então falidos.
A representação das incongruências corporais na mídia também é discutida por Jéfferson Balbino em Representações da transgeneridade na teledramaturgia brasileira, texto no qual o autor preza por explorar, no cenário televisivo do Brasil, a forma como personagens transexuais foram levadas à grande massa consumidora de telenovelas.
Como comenta Balbino, configurando-se enquanto veículo de grande influência cultural e política, a mídia televisiva tem capacidade de provocar reflexões em larga escala e revisões de aspectos culturais. É a partir desse pensamento que o autor analisa a figura de transexuais inseridas em três novelas, a saber: Tieta (1989), As filhas da mãe (2001) e A lua me disse (2005). Balbino pondera sobre questões de subversão de gênero, comicidade voltada ao tratamento dessas personagens e confusões comuns no tratamento dos conceitos de sexualidade e gênero.
Acerca da (in)visibilidade de subjetividades e corporalidades trans, os capítulos Da invisibilidade visível: o caso de Edmundo de Oliveira (Belo Horizonte, 1952-1981), de Luiz Morando; Travestis e transexuais brasileiras: ativismos e estratégias de resistências nos processos históricos de pessoas e coletivos organizados, de Adriana Sales, Herbert de Proença Lopes e Wiliam Siqueira Peres; e A invisibilidade das vivências não binárias das sexualidades e gêneros e a reivindicação do direito de aparecer: itinerários de uma pesquisa/viagem no cistema binário na educação, de José Augusto Gerônimo Ferreira e Leonardo Lemos de Souza, tecem reflexões sobre a forma como as manifestações de gênero e sexualidade, desviantes da norma cis-heterossexual hegemônica, são lançadas na marginalidade em uma tentativa de apagamento dessas vivências. Ao lançar foco sobre a experiência de vida de Edmundo de Oliveira, Morando traça um panorama do modo como a mentalidade patriarcal obriga Oliveira a jogar com a visibilidade e a invisibilidade de sua identidade, de modo a tentar encaixar-se na sociedade de sua época.
Da mesma maneira, Sales, Proença e Peres pintam um retrato das invisibilidades e violências que atingem as comunidades de travestis e transexuais, ao mesmo tempo em que essas coletividades resistem ao apagamento de suas histórias. O texto aponta para o fato de que, ao transitarem seus corpos, esses indivíduos tornam-se um desafio ao poder machista que deseja apagar suas histórias, negando o processo de desumanização desses corpos.
Já Ferreira e Souza lançam sua atenção para a academia ao discutirem a produção de conhecimento sobre transexualidades dentro da universidade, muitas vezes realizada através de um olhar cis-heteronormativo. A visão da academia explorada pelos autores é a de um ambiente no qual o progresso e o retrocesso de ideias comumente coexistem e acabam produzindo saberes construídos sob pontos de vista hegemônicos.
Em Ode à engenharia textual transvestigênere: uma leitura de Liberdade ainda que profana, de Ruddy Pinho, Cláudia Maria Ceneviva Nigro e Luiz Henrique Moreira Soares dissertam sobre a representação de transgeneridades e travestilidades dentro do discurso literário. A partir da escrita em tom memorialístico de Ruddy Pinho, vislumbramos o modo como a autora torna-se ela própria um sujeito de sua escrita ao desconstruir ideais de gênero, sexualidade e identidade única, reafirmando sua existência enquanto um corpo transgressor. A maneira como a escritora é retratada denuncia a instabilidade da identidade masculina e feminina dentro de um contexto sociocultural que caminha, ainda que vagarosamente, para uma configuração plural.
Por fim, em A busca pelo corpo perfeito: uma rápida autoetnografia e análise interseccional da intersexualidade, Carolina Iara de Oliveira discorre acerca das violências sofridas pelo corpo e pela subjetividade de pessoas intersexuais. No texto de Oliveira, os discursos social e médico são ponderados a partir da vivência do indivíduo, na qual misturam-se violências geradas por preconceitos não apenas relacionados à sua materialidade genital, mas também à sua sexualidade, raça e classe social. Oliveira traça assim um quadro bastante claro acerca da maneira como a interseccionalidade atua ativamente na tentativa de adequar os corpos aos padrões cis-heteronormativos.
A recolha de materiais dos mais diversos tipos e nos mais diversos meios, como documentos oficiais, novelas, vídeos de internet, livros e entrevistas, torna a coletânea uma prolífica fonte de informações e fornece uma relevante base para reflexões sobre a subjetividade e a corporalidade dentro da comunidade LGBT+, principalmente no concernente a travestis e transexuais. Os relatos que servem de base para as análises desenvolvidas nos capítulos são em algumas ocasiões apresentados pelas palavras do próprio indivíduo a vivenciar tais situações, permitindo um mergulho na subjetividade das/os entrevistadas/os e o surgimento de um sentimento de empatia por aqueles cujas experiências estão sendo tratadas.
Na obra Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades somos confrontados com corporalidades que não afirmam sua existência a partir de uma forma única de ser. Esses corpos posicionam-se enquanto elementos integrados política, social e culturalmente, ainda que empurrados à margem, em uma sociedade de base patriarcal hegemônica, na qual a valoração dos corpos dá-se através de um olhar cis-heteronormativo. Os modos artísticos de construção do corpo e de expressão do eu interior através das estruturas corporais abrem um horizonte no qual não encontramos apenas a violência comumente dispensada à comunidade LGBT+, mas também uma forma de arte e de enfrentamento do sistema limitante de binaridades homem/mulher.
Transitar, na obra, é mais do que apenas expressar uma individualidade e uma subjetividade latentes, é também transgredir as rígidas normas sociais, políticas e religiosas que vêm regulando o comportamento humano há milênios, em busca de uma expressividade sem restrições. Formada por textos de leitura acessível, diversas vezes utilizando vocabulário próximo ao comumente usado por membros das comunidades LGBT+, Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades configura-se como uma oportunidade de conhecimento e aprendizado, além de uma valiosa contribuição aos estudos corporais, aos estudos sobre gênero e sexualidade, bem como aos estudos LGBT+.
Notas
2. Utilizamos a sigla LGBT+ pelo fato de “LGBT” ser de uso mais corrente do que outras abreviações, como LGBTQI, por exemplo, e por considerar que o sinal de adição (+) indica a abrangência de todas as individualidades representadas por essa comunidade, como queer, intersexuais, assexuais etc. Dessa maneira a nomenclatura fica menos extensa.
Marco Aurelio Barsanelli deAlmeida1 – Possui graduação em Licenciatura em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2010). Desenvolveu estudo acerca do processo de adaptação fílmica de obras do escritor Neil Gaiman. Concluiu em 2015 o programa de graduação em Licenciatura em Letras com habilitação em Português-Italiano da Unesp Câmpus de São José do Rio Preto. Concluiu também em 2015 o curso de Mestrado, cujo foco de estudos foi a adaptação cinematográfica da figura do herói do romance Stardust (1999). E-mail: marcoaurelio_maba@hotmail.com
GOMES, Aguinaldo Rodrigues; LION, Antonio Ricardo Calori de (org.). Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades. Salvador: Editora Devires, 2020. Resenha de: ALMEIDA, Marco Aurelio Barsanelli de. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 23, p. 197-203, jan./jun., 2020.
O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História | Durval Muniz de Albuquerque Júnior
ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019. 276 p. Resenha de: SOUZA, Vitória Diniz de. A História como tecido e o historiador como tecelão das temporalidades. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.508-514, jan./jun., 2020.
A historiografia está em constante transformação, por isso, certas tendências foram sendo esquecidas com o tempo e outras surgiram para formular novas maneiras de produzir história. O livro do historiador Durval Albuquerque Júnior, O Tecelão dos Tempos, nos convida a refletir sobre a escrita da história e a inventar novos usos e sentidos para o passado. Essa sua obra pode ser encarada como um manifesto para os historiadores/as repensarem a sua prática e a abandonarem certos convencionalismos que marcam a tradição historiográfica.
O “Prefácio” é escrito por Temístocles Cezar, que define o livro como uma “constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, com os pés descalços no presente, com olhos no passado ou como projeto de uma história futura” (CEZAR, 2019, p. 12). Sendo essa uma boa descrição de como esses textos se entrelaçam e convidam seus leitores a mergulharem em polêmicas discussões sobre a história e o seu estatuto hoje. De fato, a escolha do estilo ensaístico na escrita desse livro é ousada, principalmente, pela liberdade que esse gênero possibilita para quem escreve. Estilo narrativo que foi preterido pela historiografia por muito tempo, em especial, no Brasil. Nesse caso, o ensaio é uma maneira interessante para se iniciar discussões, aprofundá-las, mas sem as amarras conclusivas que certos textos exigem, como os artigos.
Essa obra está dividida em três partes, a escrita da história, usos do passado e o ensino de história, que estão organizadas de maneira sistemática, a partir das temáticas discutidas nos ensaios, articulando-se em uma diversidade de discussões que se interligam em diferentes momentos. Causando uma sensação de fazerem parte de uma mesma narrativa, com início, meio e fim, mesmo que não tenham sido escritas em ordem cronológica, ou que não sejam lidas na ordem apresentada. Por outro lado, pela sua heterogeneidade, cada capítulo inicia uma discussão independente das outras e rica em si mesma. Na primeira parte, “A escrita da história”, inicia a discussão sobre o trabalho do historiador e o estatuto da história enquanto disciplina, problematizando sobre o lugar do arquivo e sobre a prática historiadora – da análise documental ao seu processo de escrita. Enquanto isso, em “Usos do passado”, propõe reflexões sobre passado, memória, patrimônio, comemorações, traumas e esquecimentos. Dessa maneira, possui um olhar criativo sobre esses conceitos tão caros a história, como também, conceitualiza-os, explicitando seus significados e usos, e propondo uma (re)apropriação deles. Na terceira parte do livro, “O ensino de história”, centraliza as discussões acerca da disciplina histórica e o ensino da história na Educação Básica. Demonstrando que além de um erudito e pesquisador, ele também é professor, defendendo a necessidade de um ensino de história que se reinvente dada a situação atual da educação escolar.
Dando início, no capítulo que dá nome ao livro, “O tecelão dos tempos: o historiador como artesão das temporalidades”, defende as razões para que o trabalho do profissional da história seja considerado como de um artesão, pois […]a história nasce como este trabalho artesanal, paciente, meticuloso, diuturno, solitário, infindável que se faz sobre os restos, sobre os rastros, sobre os monumentos que nos legaram os homens que nos antecederam que, como esfinges, pedem deciframento, solicitam compreensão e sentido (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 30).
As metáforas enriquecem o texto de maneira que o leitor pode compreender a atividade do historiador a partir da comparação com outros ofícios. Mas também, oferece ao profissional uma reflexão sobre a sua prática, principalmente, sobre a sua escrita que, muitas vezes, se vê enrijecida por um texto acadêmico sem vivacidade. Em certo momento, o autor compara o trabalho do historiador com o de um cozinheiro do tempo “aquele que traz para nossos lábios a possibilidade de experimentarmos, mesmo que diferencialmente, os sabores, saberes e odores de outras gentes, de outros lugares, de outras formas de vida social e cultural” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 32).
Em seguida, no capítulo “O passado, como falo?: o corpo sensível como um ausente na escrita da história”, ele faz uma defesa da colocação do corpo, do sensível, das dores, dos sofrimentos, dos afetos, dos sentimentos como lugares para a história. A partir dessa perspectiva, ele aponta para a necessidade de se discutir novas maneiras de expressar as sensibilidades na narrativa histórica, criando novas estratégias que possam expressar na própria pele do texto essa presença, ignorada e mutilada das narrativas acadêmicas. Um corpo que é erótico, que sente afetos, raiva, desejo, rompendo, dessa maneira, com o pudor que cerca a historiografia.
As sensibilidades é um dos temas mais recorrentes ao longo dos capítulos, sendo que em “A poética do arquivo: as múltiplas camadas semiológicas e temporais implicadas na prática da pesquisa histórica”, Durval Albuquerque Júnior critica os historiadores e sua técnica de análise, afirmando que na busca pela informação, o pesquisador pode até se emocionar, pode até ser profundamente afetado pelo contato com a materialidade, mas pouco o leva em conta na hora da sua análise. Essa repressão à dimensão artística da pesquisa histórica leva a dificuldade que os profissionais da história têm de perceber, de lidar, de incorporar, no momento da interpretação, os signos emitidos pela própria escrita do documento. Em suma, a natureza da linguagem é ignorada, seus efeitos e dimensões são apenas transformados em dados. Para o autor o “trabalho do historiador é semiológico, ou seja, constitui-se na decifração, leitura e atribuição de sentido para os signos que são emitidos por sua documentação” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 64). Sendo assim, é preciso enxergar no documento as camadas do tempo, suas marcas, sua historicidade, sua materialidade, significados e sentidos que perpassem não apenas o racional, mas também, o emocional, o artístico.
A questão da poética na escrita da história se destaca no capítulo “Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e documentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico”, no qual Durval Albuquerque Júnior une dois campos diferentes que causam polêmicas entre os historiadores, a ficção e a escrita da história. Inspirado em uma pesquisa do biógrafo Guilherme de Castilho sobre o poeta Antônio Nobre, ele cria um conto fictício no qual personifica os documentos como personagens da história. Instigando o leitor a estar curioso sobre o destino das cartas e dos postais que esse poeta enviou para o também escritor Alberto de Oliveira. O mais interessante é como consegue articular questões teóricas e metodológicas da pesquisa histórica em uma narrativa ficcional, provocando o leitor e sensibilizando-o a imaginar as fontes e sua trajetória. Assim, a subversão do gênero que ele propõe ao construir um texto de história por meio da ficção é uma das inovações mais interessantes desse livro.
A discussão sobre história e ficção é polêmica, tendo sido abordada por uma vasta produção historiográfica. Nesse contexto, diferentes perspectivas acerca do estatuto da história enquanto uma “verdade” entram em conflito. Como é o caso emblemático do historiador Carlo Ginzburg com a historiografia considerada “pós-moderna”. No capítulo “O caçador de bruxas: Carlo Ginzburg e a análise historiográfica como inquisição e suspeição do outro”, Durval Albuquerque Júnior critica o posicionamento de Carlo Ginzburg em relação as suas discordâncias no meio acadêmico. Visto que, Ginzburg é considerado um dos maiores “inimigos” da historiografia “pós-moderna”, entrando em conflito com nomes como os de Michel Foucault e Hayden White. Sendo que, o historiador italiano chegava a transmitir, em certos momentos, xingamentos e ofensas contra aqueles de quem discordava. Durval Albuquerque Júnior critica o seu posicionamento e manifesta as razões pelas quais Carlo Ginzburg utiliza de um procedimento retórico estratégico do discurso inquisitorial e judiciário: a submissão da variedade de formas de pensar a um só conceito, em um só esquema explicativo, que simplifica, caricaturiza e estereotipa aquelas que são consideradas diferentes. Procedimento que o próprio Ginzburg criticou em seus trabalhos, como em Andarilhos do Bem (1988), O Queijo e os Vermes (1987), entre outros. É preciso reconhecer que a dita “historiografia pós-moderna” não se qualifica enquanto uma corrente de pensamento homogênea e coerente, na verdade, ela se apresenta mais como uma diversidade de perspectivas, métodos e teorias divergentes entre si que se aproximam menos pela uniformidade que pelo rompimento com a tradição moderna que marca a história. Para Durval Albuquerque Júnior, Ginzburg utilizava essa estratégia para reduzir em inimigo todos aqueles de quem discordava.
A seguir, as reflexões acerca do passado e da memória e de seus usos no presente ganham forma na segunda parte do livro. Como é o caso do oitavo capítulo, “As sombras brancas: trauma, esquecimento e usos do passado”, no qual o autor faz referência a literatura luso-africana e algumas reflexões proporcionadas pelas obras dos autores José Saramago, Eduardo Agualusa e José Gil em relação a memória, identidade e esquecimento. Com efeito, Durval Albuquerque Júnior discute sobre a questão do trauma na história portuguesa, que apesar de todo o processo de ser uma cidade histórica que constantemente exibe os símbolos e marcas do passado, ao mesmo tempo, ignora ou esquece dos traumas vivenciados, seja a experiência salazariana, como também, o processo de colonização exploratória nos países africanos, asiáticos e americano, como é o caso do Brasil. Para o autor, é função dos historiadores expor o sangue derramado e o “cheiro de carne calcinada” e clamar por justiça. Sendo assim, a história deve ser o trabalho com o trauma para que esse deixe de alimentar a paralisia e o branco psíquico e histórico, em referência a cegueira branca do livro Ensaio sobre a Cegueira (1995), de José Saramago.
Uma discussão semelhante se segue no nono capítulo, “A necessária presença do outro, mas qual outro?: reflexões acerca das relações entre história, memória e comemoração”, no qual Durval Albuquerque Júnior elabora acerca de como as comemorações e datas históricas são encaradas pela historiografia hoje, sobre as quais há um consenso de que precisam ser problematizadas, sendo as versões oficiais alvo de críticas que se transformaram em uma densa produção historiográfica. Ele conclui sobre a importância de “fazer da comemoração profanação e não culto, fazer da comemoração divertimento e não solenidade, fazer da comemoração momento de reinvenção do passado e não de cristalização e de estereotipização do que se passou” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 190). Seguindo essa perspectiva, no décimo capítulo, “Entregar (entregar-se ao) o passado de corpo e língua: reflexões em torno do ofício do historiador”, ele traz também para o debate a questão da “verdade” e do negacionismo histórico que tem sido uma ferramenta recorrente dos grupos de extrema direita no Brasil para desqualificar o conhecimento produzido pela história. Dessa maneira, recomenda maneiras para combatê-lo, como, por exemplo, através do uso da imaginação, da linguagem e da narrativa para emocionar, sensibilizar sobre os sofrimentos, corpos e tragédias ocorridas no passado, como é o caso do Holocausto e da Escravidão. Para o autor, esse é o meio mais eficaz para que as pessoas consigam ser afetadas pelo conhecimento histórico e possam aprender com ele.
Na terceira parte do livro, o foco da discussão foi o ensino de história. Assim, no capítulo “Regimes de historicidade: como se alimentar de narrativas temporais através do ensino de história”, o historiador paraibano estabeleceu um paralelo em termos de comparação entre regimes de historicidade e regimes alimentares. Levantando questionamentos sobre a qualidade do que os alunos estão sendo alimentados nas aulas de história e apontando para a necessidade de aulas mais atrativas, lúdicas, saborosas, sem, no entanto, perder a qualidade, a crítica e a historicidade. Nesse sentido, defende que os professores devem contar histórias que sejam realmente interessantes e que afetem, de fato, os alunos. Sendo responsabilidade dos docentes, ensiná-los a terem uma relação saudável com o tempo, com a diferença e com a alteridade. Nessa proposta de um ensino mais criativo, no décimo segundo capítulo, “Por um ensino que deforme: o futuro da prática docente no campo da história”, o autor provoca o leitor/professor a desconstruir sua visão de escola e da atividade docente, proporcionando uma prática que realmente revolucione. Ele discute sobre o estatuto da escola atualmente e sua “crise” enquanto instituição formadora. Um ensino que deforme é aquele que “investe na desconstrução do próprio ensino escolarizado, rotinizado, massificado, disciplinado, sem criatividade, monótono” (ALBUQUERQUE, 2019, p. 240).
No último capítulo, “De lagarta a borboleta: possíveis contribuições do pensamento de Michel Foucault para a pesquisa no campo do ensino da história”, tece críticas acerca do uso da obra de Michel Foucault na área da educação que se centralizam apenas na escola como instituição disciplinar e que não exploram outros olhares sobre a suas obras. Dessa maneira, ele lista uma série de recomendações para os pesquisadores na área de ensino de história para explorarem a obra de Michel Foucault de outra maneira, uma pesquisa que não repita o que já foi dito, mas que seja inventiva, ousada, evitando assim, certo dogmatismo.
Durval Albuquerque Júnior é um crítico da historiografia e tem uma extensa carreira. Em O Tecelão dos Tempos, ele reúne quatorze ensaios escritos ao longo dos anos, o que explica a variedade de discussões. Esse é um livro instigante que considero a melhor produção desse historiador até o momento. Ele possui uma escrita fluída, clara e objetiva, sendo uma preocupação recorrente a explicitação sobre o significado de conceitos e ideias discutidas, para assim evitar mal-entendidos. Esse livro deveria ser lido acompanhado de outra obra desse autor, História: a arte de inventar o passado, publicada em 2007, no qual ele faz outras duras críticas a produção histórica. Obra polêmica que causou desconforto por parte dos pares acadêmicos, questão tocada por ele na introdução.
Uma das marcas da sua escrita é a presença de inúmeros referenciais teóricos, citados e retomados em diversos momentos do texto. Pela clareza do texto, é uma obra tanto para os mais experientes em teoria da história, como também para os iniciantes. Pelo fato de serem ensaios, as discussões não se encerram nos capítulos, sendo interessante para o leitor procurar as obras citadas ao longo do texto e aprofundar esses assuntos individualmente. Assim, esse exercício contribui para a melhor compreensão dos assuntos abordados e para a visão de outras perspectivas.
De fato, o historiador é como um tecelão, que tece as tramas do tempo, compondo um tecido que, nesse caso, é a narrativa histórica. Sendo também, inclusive, cozinheiro, responsável por produzir sabores, delícias e dissabores no tempo. Portanto, fica a recomendação dessa obra tão rica de discussões pertinentes aos amantes da história e que também se dedicam a produzi-la. Durval Albuquerque Júnior além de historiador, é um poeta, que apesar de não escrever poesias, escreve uma história poética, sensível, afetiva, que emociona e nos faz relembrar dos prazeres de se produzir história.
Referências
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da História. Bauru: Edusc, 2007.
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019.
CEZAR, Temístocles. Prefácio. In: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019, p. 09-12.
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GINZBURG, Carlo. Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Vitória Diniz de Souza – Graduação em História pela UEPB, Guarabira-PB, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação UFRN, Natal-RN. Bolsista de Mestrado do CNPq. E-mail: vitoria4218@gmail.com.
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Da Antropologia e Sociologia do corpo aos Estudos Corporais. Análise e quadro interpretativo / Albuquerque: revista de história / 2020
Estudios sociales, cuerpos y corporeidades
El cuerpo como lo que percibe, lo que toca o lo que ve, es fácil que a su vez sea lo no visto, lo rara vez tocado aunque a menudo trabajado, y como tal lo que se le ha escurrido hace tiempo a la percepción, lo no sentido. Esto llega incluso a lo normativo. La salud y el bienestar pueden definirse como el cumplimiento de la disposición de que el cuerpo no tiene que hacerse notar. Hans Blumenberg (2011)
En los últimos 30 años, y como resultado de un trabajo entrecruzado y permeable entre diferentes disciplinas (entre las cuales podemos mencionar la antropología, la comunicación, la historia, la sociología, el arte, la psicología o la educación), se ha desarrollado un amplio y novedoso campo interdisciplinario que podemos denominar con el término de habla inglesa: Body Studies (Estudios Corporales). Desde los trabajos iniciales de algunos autores que arrancaron con esta forma de investigar y de arropar el cuerpo como objeto de estudio (Marcel Mauss con su texto Techniques du corps; Michel Foucault y una amplia red de textos que han tejido escrituras corpóreas; Pierrre Bourdieu y su trabajo iniciático Remarques provisoires sur la perception sociale du corps) se creó un marco interpretativo sin la pretensión de generar un campo de estudio específico. A través de una segunda generación de investigadores dedicados todavía de forma más amplia y específica al estudio del cuerpo (Bryan Turner o David le Breton, ambos con infinidad de trabajos centrados en el cuerpo como objeto central de sus investigaciones), se han desarrollado diferentes contribuciones que, de forma casi definitiva, han permitido la posibilidad de transitar por caminos alternativos a la hermenéutica del cuerpo como algo biológico, fisiológico o biomecánico.
Es así como podemos aventurarnos a afirmar que los Body Studies nacieron, sin saberlo o sin ser plenamente conscientes de ello, como complemento o alternativa a la perspectiva anatómica y biológica del cuerpo humano. El cuerpo era (y en su esencia sigue funcionando de esta forma) asimilado a los órganos, a lo fisiológico, a lo biológico, pero muy pocas veces a su dimensión cultural o vivencial-experiencial. Desde hace más de 50 años el filósofo alemán Edmund Husserl hizo una distinción que se convirtió en algo fundamental para entender esta cuestión, y que consistió en diferenciar el concepto Leib (cuerpo vivido) de Körper (cuerpo físico).
Desde aquellos autores iniciales se ha tratado de arrojar luz sobre ciertas preguntas centrales sobre las formas de vivir la condición de humanidad. Diferentes escenarios y ubicaciones han desempeñado un papel relevante, pero de manera especial en los últimos 10 años han surgido grupos de investigación, proyectos, tesis, artículos, libros y congresos que ubican a países como México, Brasil, Colombia o Argentina como ejes globales de producción de conocimiento. El dossier que presentamos de la revista Albuquerque busca ofrecer a los lectores trabajos actuales centrados en la perspectiva de los Estudios Corporales con una amplia visión de temas y disciplinas interesados en ofrecer otras miradas sobre el cuerpo. Investigadores y académicos proponen trabajos que nos permiten seguir pensando en el ser humano y sus formas de interacción y circulación por el mundo desde su dimensión simbólica-corporal. Como hemos avanzado, se trata de un campo de intersección, de un espacio en el cual se puede discutir su ejercicio en forma de proyectos de investigación (artículos), resultados de proyectos, ensayos o artículos de revisión en los que se incorporan problemas que abordan la perspectiva de los estudios corporales desde diferentes dimensiones, inclinaciones teóricas o metodologías.
El dossier arranca con un artítulo titulado “O corpo na historia: reflexões sobre a historiografía do corpo, do gênero e das sexualidades”, que propone una profunda revisión de los estudios corporales desde la perspectiva historiográfica. El trabajo recorre distintos momentos, perspectivas, temas y metodologías que en el contexto de una disciplina como la historia han tomado forma en el cuerpo como objeto de estudio. Su propuesta consiste en analizar estos interrogantes con el telón de fondo del género y la sexualidad, verdaderos territorios de impacto social y personal del asunto corporal.
Un segundo trabajo, titulado “A morte no filme ‘Ventos de agosto’: os usos sociais do corpo”, apuesta por mostrar los estudios corporales aplicados al campo de las artes visuales. A partir de la película Ventos de agosto se despliega un conjunto de visiones sobre el cuerpo que lo trasladan hacia la muerte. ¿Qué es un cuerpo en estado final? ¿Cómo se traza una línea que separa la vida de la muerte, el cuerpo del cadáver? El trabajo apuesta por pensar y problematizar de forma dialógica la muerte como uno de los temas centrales de los Estudios Corporales. El tercer trabajo del dossier se presenta alrededor de los cuerpos que no son dóciles. Titulado “Corpos (não tão) dóceis: o rock e a juventude”, el texto transita por elementos no estándares de esta tipología de investigaciones. Se trata de pensar, o mejor dicho de repensar, los cuerpos jóvenes, productores de resistencias somáticas frente a una sociedad ultranormalizada; el rock es el hilo conductor que permite este análisis.
El cuarto trabajo lleva por título “As fronteiras de um corpo imaginário: o gênero e a identidade em ‘O menino que brincava de ser’” y propone estudiar esta obra de Georgina Martins (2000) desde la perspectiva de los estudios corporales. Ello se traduce en un recorrido analítico por las geografias del texto que confrontan las identidades, los géneros, los cuerpos y los imaginarios simbólicos que las envuelven.
Un quinto trabajo propone la recuperación de un término cada vez más en desuso frente a lo que podemos denominar “terminologías queer”. Con el título “A viacrucis do corpo travesti em ‘A Inevítavel Historia de Letícia Diniz’ (2006)”, nos adentramos en la mirada hacia la práctica del travestismo y su vinculación con la vida misma, con el dolor y el sufrimiento de las miradas y de los actos ajenos.
El sexto artículo con el título “‘Com sedas matei e com ferros morri’: o corpo em disputa (classificação, abjeção e violência no Brasil)” propone comprender la disputa de los cuerpos desarrollados a través de su clasificación, basada en la abyección y que tiene en consecuencia, la violencia dirigida a una gran parte de la población LGBT+ en Brasil.
Lo artículo “Concepciones del cuerpo en contextos multi e interculturales” habla de la importancia que reporta la multiculturalidad y la interculturalidad en el análisis de la diversidad cultural, la inclusión social, las identidades colectivas, para visibilizarlos en el cuerpo como auténtico artífice material y simbólico intercultural; el lugar de la intersección de flujos, tensiones y contradicciones del proceso intercultural, siempre precario.
El dossier cierra con un trabajo dedicado a la educación y a los estudios corporales: con el título “Los cuerpos en los procesos de formación inicial en Educación Física ¿Cómo se observan y comprenden?”, el artículo ofrece un análisis de cómo se forman, deforman o performan los cuerpos en uno de los grandes dispositivos sociales: la escuela.
Este conjunto de artículos sirve para abordar desde ángulos distintos y complementarios un marco de trabajo amplio que permite repensar un campo disciplinar todavía en proceso de construcción, y que necesita de aportes transdisciplinares que no se cierren en fronteras académicas y que fluyan por los distintos temas que forman el campo de los estudios corporales para insistir en su vigor.
Referências
BLUMENBERG, Hans. Descripción del ser humano. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011.
Jordi Planella Ribera (Universitat Oberta de Catalunya, España)
Héctor Rolando Chaparro (Universidad de los Llanos, Colombia)
Organizadores
RIBERA, Jordi Planella; CHAPARRO, Héctor Rolando. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.12, n.23, 2020. Acessar publicação original [DR]
A liberdade é uma luta constante | Angela Davis
Talvez não seja absurda a máxima “me diga o que tu lês e eu te direi o que tu és”. Afinal, nossos gostos não são naturais. São históricos e, portanto, revelam as afinidades teóricas, posições políticas e éticas de nós mesmos e da cultura que nos enlaça. Deste modo, o ato de escolher um livro para leitura reflete as estruturas hierárquicas do poder e do saber.
Logo, escutar a fala de Angela Davis – digo escutar porque o seu texto transpõe as letras e ecoa como uma voz forte que grita a sensibilidade, por meio de seu ativismo político e suas reflexões intelectuais que, aliás, caminham lado a lado, é ganhar fôlego e coragem para falar de coisas que o projeto neoliberal tenta calar para não desestabilizar as relações de desigualdade que ele faz manter rígida.
Davis não fala do racismo contra a mulher negra. Sua frase “quando as mulheres negras se movem, toda a estrutura política e social se movimenta na sociedade” mostra como a violência contra a mulher está diretamente articulada a violência do Estado, ao sistema prisional, ao sexismo e ao capitalismo. Neste sentido, ela desromantiza o feminismo negro e lança a real: para acabar com a percepção de que a mulher negra só serve para ser subalterna ou fazer sexo barato ou forçado, não basta lutar pelo lugar de fala individual. Ter jornalista negra na bancada de um jornal não é suficiente para aplacar o racismo. É preciso refletir, no coletivo, os discursos do presente e ver como eles mantém, sob novos arranjos, o passado escravista, como no complexo industrial-prisional, nos serviços de assistência à saúde, à educação e à assistência social, todas empresas que captam lucros obscenos graças ao encarceramento e a alienação da população. É, pois, na correlação entre as categorias de gênero, raça e classe que somos alertados a pensar e mudar nossa experiência.
Deste modo, as reflexões de Davis nos lançam para a interseccionalidade, um conceito de estrutura intelectual e política que tensiona o dinamismo da violência presente no enodamento entre patriarcado, supremacia branca, Estado, mercado, imperialismo e capitalismo. A luta pela liberdade não é limitada, ela se estende a todas as condições de vida desafortunada do mundo. Para tanto, ela convoca a pensarmos em estratégias e táticas que sejam acessíveis a uma amplitude de pessoas, incluindo aquelas cujo nível de despolitização banaliza injustiças. Para ela, a luta deve ser globalizada, exercida pelo coletivo. Só assim poderemos enfrentar a militarização da sociedade, sempre com beleza e estímulo. Ela realça essas condições para a luta.
Contra o insidioso individualismo capitalista, que é perigoso e inclusive modela e enfraquece as formas de lutas, Davis enfatiza que os movimentos coletivos devem ter maior importância que as falas sobre indivíduos tomados isoladamente. Outrossim, a história não deve ser percebida como gerida por personalidades heroicas, mas por pessoas comuns, que em espírito de comunidade, exercem seu protagonismo. Logo, não se pode reduzir o enfrentamento do racismo a pessoa de Nelson Mandela ou Martin Luther King. Eles foram figuras importantes, claro, mas suas realizações, como eles mesmos reconheciam, aconteceram no âmbito coletivo.
Do mesmo modo, não se pode reduzir a luta contra o racismo a questão da representatividade individual. O ingresso de pessoas negras em quadros de reconhecimento socioeconômico – ter tido um ministro negro como presidente do STF, por exemplo – não aplaca os efeitos do racismo na vida da maioria da população negra. Aliás, é assim que o capitalismo opera seu politicamente correto: individualizando-o, ou seja, concentrando o discurso contra o racismo em exemplos isolados para mantê-lo aceso em suas engrenagens. Assim, os discursos pela representatividade devem se referir a luta pela liberdade negra, o que inclui a acessibilidade aos direitos legais, é verdade, mas, sobretudo, a possibilidade de subsistência concreta, através de moradia, saúde, educação, emprego, segurança, enfim, ao desmonte estrutural do funcionamento social baseado, dentre outros, na violência policial, no aprisionamento racista e na exploração capitalista.
Se tomarmos o complexo industrial-prisional, no Brasil e no mundo, veremos que sua lucratividade é diretamente proporcional a manutenção da engrenagem escravista que ele incita. A tendência a reduzir os problemas de segurança pública à construção de presídios de encobre a tática neoliberal de se desviar dos problemas sociais subjacentes – concentração de renda, qualidade da educação, gratuidade do serviço de saúde, tolerância a diversidade sexual e religiosa, etc., que, em última instância, são transformados em mercadorias extremamente lucrativas quando deveriam ser direitos fundamentais, ofertados gratuitamente a todos, sem exceção.
Dentro desta perspectiva, todo fenômeno que cerceia a vida humana deve ser tomado como uma questão social que os atos de luta por justiça devem incluir em suas pautas. É de extrema relevância uma contextualização ampliada e globalizada para compreender os fenômenos que restringem os direitos civis. Demarcar os elos que articulam as múltiplas formas do aparato segregatício, nos diferentes períodos históricos, é imprescindível. Demarcar a presença do passado no presente, para se tecer um futuro comum, é crucial. Caso contrário, como iremos compreender o fato do negro ser sempre invadido pelo medo quando do encontro com policiais por ser considerado um elemento suspeito? Obviamente, atualmente não vivenciamos os abusos escancarados do tronco de açoite de negros ou da Ku Klus Klan. Não obstante, as atrocidades policial, militar e estatal funcionam sob a mesmo modelo e funcionalidade daqueles. Basta tomarmos o número de adolescentes negros, moradores de comunidades brasileiras, mortos pela polícia.
Portanto, a criminalização do racismo nas leis não significa a abolição do racismo, que persiste de modo ostensivo, transpondo o poder judiciário. As instituições sociais tornam o racismo profundamente arraigado, escamoteado e presente no entrecruzamento dos discursos da economia, da política, da ciência, da religião, da mídia, da estética, da família, das forças armadas, da saúde, da educação e do trabalho.
Por isso, não se pode analisar a questão a partir de casos individuais. Processar alguém que cometeu um ato racista, embora seja importante, não mortifica as raízes do racismo que estão no aparato. Igualmente, ter uma mulher negra no comando de uma penitenciária não oferece garantia nenhuma. As tecnologias e o regime do poder permanecem intactos. Deste modo se o “quem matou Marielle Franco?” reivindica unicamente a criminalização e o encarceramento das pessoas envolvidas, ele estará reproduzindo o trabalho do Estado, porque quando focamos no indivíduo culpado, engajamo-nos involuntariamente na mesma lógica que reproduz a violência que supomos contestar.
Daí os esforços em agregar novas perspectivas nas reflexões dos ativistas, seguindo a linha da interseccionalidade dos movimentos e do desenvolvimento de manobras de lutas que produzam identificações entre os membros que as elaboram e, por isso mesmo, a elas se engajam. Se esse tipo de abordagem não for feita, fica até difícil assimilar a questão do abolicionismo prisional, que envolve questões ideológicas e psíquicas mais profundas que simplesmente o fechamento das instituições. Sobre isso, vale citar a representação do policial e do bandido nos desenhos infantis em que o primeiro é bom porque prende o segundo, que é mau e por isso é levado para a prisão. Ou seja, há um encadeamento implícito entre os significantes mau e prisão, que precocemente é introjetado no imaginário social, impedindo uma análise crítica sobre as condições de possibilidade da maldade, que não são inatas, são sociais. Aliás, as prisões existem para bloquear este tipo de enfoque. A mesma violência que justifica sua construção é aquela da qual ela se alimenta para exercer seu funcionamento.
Destarte, é preciso incentivar pensamentos que desmontem a idéia segundo a qual a prisão é um lugar destinado a punição de quem comete crimes. É necessário ampliar as avaliações. Para tanto, algumas interrogações são bem vindas: por que há mais negros que brancos encarcerados? Por que os escolarizados são minoria nas prisões quando comparados aos analfabetos? Parece que o holofote deveria incidir primeiro sobre os temas racismo, educação, saúde, moradia. Temos de falar do papel político, econômico e ideológico da prisão. É por aí que chegaremos na associação dela ao sistema punitivo, não o oposto. É um esquema lucrativo. Como Foucault anunciou, as prisões existem para não funcionar, para depositar pessoas que representam grandes feridas sociais. É este seu projeto. Segurança, lei e ordem são retóricas que viabilizam o aumento da população carcerária e, por efeito, consolam o eleitorado burguês, promovem a corrupção e a concentração de renda e amalgamam a incompetência e a recusa estatal aos problemas que merecem atenção.
É preciso repetir a todo instante para não esquecer: a abolição da escravatura não aboliu a instituição escravidão, que continua no modus operandi das sociedades democráticas. Lembremos da precarização do trabalho tão bem representada pelotas aplicativos de entrega.
Outro ponto importante salientado por Davis é a necessidade de não inferiorizarmos as pessoas em relação as quais defendemos os direitos. Afinal, a luta por justiça social somente será efetiva se for feita em parceria e igualdade entre aqueles que são injustiçados e aqueles que têm consciência da injustiça. A libertação das mulheres não é uma luta das mulheres, assim como o racismo não é uma luta dos negros. Pensar em termos identitários despontencializa o ato. Não podemos reduzir o feminismo e o racismo aos corpos, ao gênero, a individualidades. A luta não pertence a ninguém em si. Ela é de todos. É global e objetiva a globalidade. Todos os movimentos – população LGBTQ +, feminista, antirracista, dos doentes mentais, prisioneiros, pessoas em situação de rua, etc. devem ser coesos e agir em massa, em solidariedade transacional, pois os objetos de suas causas estão interligados e incorporam em sua estrutura reminiscências históricas de relações de poder.
A mudança deve ser sistêmica. Não podemos medir os níveis de transformação em curso se tomando como critério analítico ações individuais. O indiciamento do policial que matou o adolescente João Pedro em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, em maio deste ano, durante uma operação contra o tráfico de drogas, não dá conta, isoladamente, de romper a barbárie instalada pela violência policial. É preciso repensar o papel da polícia, a forma pela qual ela é encorajada a usar a violência como primeiro recurso de trabalho e de como ela repete a tendência de criminalizar a cor da pele, já reinante na época da escravidão. É curioso escutar nas narrativas de pessoas negras o quanto a cor da pele se coloca como um elemento determinante em suas relações sociais. Uma mulher negra é barrada na piscina de um clube por ser confundida com uma babá. Um homem negro na parada de ônibus é olhado com terror por pessoas brancas por poder ser um assaltante. Enfim, a ideologia entre negritude, sexualização e criminalização é controlada por um aparato que transcende a pessoas e cargos. Eleger um presidente negro não corta a raiz do racismo. Os EUA nos mostra isso. Ter Obama eleito e reeleito, com seu progressismo, não impediu o assassinato do adolescente Michel Brown, em Ferguson, em 2014, tampouco o sufocamento de George Floyd, durante oito minutos, por um policial branco, em maio deste ano. Nenhuma mudança ocorre somente porque um chefe de Estado a quer. Nenhum direito é dado. Todo direito é tomado, através de lutas da massa.
Destarte, devemos inferir que as lutas antirracista, das questões de gênero, contra a homofobia, contra as políticas repressivas anti-imigração, contra os indígenas, os mulçumanos, devem ser tomadas como um emblema da luta pela liberdade. Certamente, a liberdade de muitas pessoas é cerceada. O fato de ter uma modelo negra e trans na passarela da São Paulo Fashion Week não transforma necessariamente a condição de vida da maioria das mulheres negras e trans. Indica, apenas, a ascensão de alguns, bem poucos, indivíduos.As conexões entre os acontecimentos e experiências devem ser continuamente estimuladas para que não esqueçamos de que nada acontece isoladamente. “A injustiça em qualquer lugar do mundo é uma ameaça à justiça de todo o mundo” (DAVIS, 2018, p. 66), diz Davis, citando Martin Luther King.
O neoliberalismo incita o individualismo, fazendo as pessoas pensarem apenas nelas mesmas. Isso aparece até em seu discurso politicamente correto, afinal, o capitalismo é político e sabe usar isso a seu favor, como por exemplo, na tentativa de concentrar na pessoa de Mandela toda a luta antirracista, desconsiderando o processo vivido por um conjunto de companheiros e companheiras. Até nas supostas campanhas publicitárias feitas com pessoas negras, gordas, idosas ou com deficiência o que chama a atenção é o protagonismo para o consumo, para a vida de si mesmo.
Não podemos contaminar as lutas reivindicatórias com tal idéia, pois é no coletivo que elas se dão, apesar de todos os desafios. Afinal, “o otimismo é uma necessidade absoluta, mesmo que seja apenas um otimismo da vontade e um pessimismo da razão” (DAVIS, 2018, p. 56).
Um traço do discurso de Davis é o reconhecimento do sujeito coletivo da história. Para ela, há uma tendência em concentrar os grandes feitos históricos em individualidades masculinas e investidas de poder. Tendência esta perigosa porque enfraquece o movimento. Ora, o número de ruas em nosso país que homenageia os grandes nomes da história é altíssimo. Igualmente o é o número da população carcerária, que passa dos 773.000. Mas, também, vela o papel fundamental, nos movimentos pela liberdade das pessoas comuns, das mulheres, domésticas, trabalhadores rurais, dentre outros. Vale salientar que os regimes de segregação e autoritarismo não são destituídos pela ação de um líder e sim pelo protagonismo de pessoas que, tendo um posicionamento crítico na relação com a realidade, não se calam e vão a luta. Com efeito, o conceito de liberdade só pode ser forjado por quem dela se encontra privado. O lugar de fala deve ser dado a estas pessoas. É preciso desconstruir o mito, reforçado no imaginário social, de que existiu, existe e existirá um salvador, um messias. É claro que há pessoas na história que devem ser aplaudidas por sua perspicácia em perceberem e autorizarem atos que viabilizem a luta mediante a garantia dos direitos civis – Mandela, Lincoln, Obama, Lula, etc. Entretanto, restringir a questão da liberdade a isso é enfraquecê-la em sua amplitude. Não é suficiente o reconhecimento legal da união homossexual quando um filho de um casal homoafetivo é estigmatizado na escola.
Por isso mesmo destacar a elaboração de pautas sistêmicas, tal qual a erigida pelo Partido das Panteras Negras, em 1966, nos EUA, cujo eco ainda se faz potente em nosso século graças à amplitude de suas reivindicações. Como sugere Davis, o partido, ao reconhecer que a escravidão não seria eliminada com sua mera abolição, esforçou-se pela luta da liberdade, entendendo que nesta está incluída o fim da exploração do capitalismo aos oprimidos, a aquisição de moradias adequadas a vida humana, uma educação crítica e não alienante, saúde gratuita, o fim da violência policial, o fim das guerras, controle da tecnologia pelo coletivo, dentre outros. Talvez não seja absurdo apostar que a consciência e a amplitude do movimento tenha sido determinante para que Davis entrasse na lista das dez pessoas criminosas mais procuradas pelo FBI, sem nunca ter feito nada. Aliás, fez. Ela se insurgiu com força e determinação. E, é verdade, as faces do neoliberalismo sabem intimidar – e usa meios legais para isso – aqueles que o enfrentam, desencorajando o restante das pessoas a não se envolverem em protestos sociais. É nesta perspectiva que o assassinato de Marielle Franco precisa ser situado.
Davis nos lembra que, embora Bush tenha declarado o combate ao terror nos EUA, após o 11 de setembro de 2001, o termo terrorista já era amplamente designado aos ativistas da luta antirracista na década de 1960, no país, pelos discursos de ordem e lei do presidente Nixon. Assim, o fenômeno terrorismo parece funcionar como uma estratégia sólida para justificar truculências. Talvez caiba aqui citar que é de terrorista que o presidente Bolsonaro nomeia aqueles que lutam pela liberdade no país. Ora, o que foi a fantasmagoria em torno da operação Lava-jato e seu discurso jurídico de anticorrupção senão uma manobra institucionalizada de poder que abriu espaço para o avanço do fascismo no Brasil, com toda uma engrenagem de fake news, apoio midiático e empresarial e conivência da burguesia?
Reconhecer, pois, as continuidades entre as diferentes formas de violação da vida são imprescindíveis para se construir lutas globais para a ampliação da “linha do nós”, sem exceção de classe, gênero, raça ou etnia. E, ainda, para que o acesso ao conhecimento, ao bem estar biopsicossocial e ao trabalho não sejam determinadas pelas obscenidades do lucro capitalista.
Davis ressalta que os constantes casos de violência devem ser sempre mencionados pelos movimentos. Tal evoca luta, perseverança e coragem na construção de um futuro comum. Para ela, nomes como Michel Brown e Assata Shakur devem ser citados não apenas para prenderem os responsáveis por sua morte, mas para anunciar a verdade sobre a violência no mundo. Ou seja, para mostrar que estamos vacinados contra soluções manifestas e enganosas, que deixam intactas toda uma estrutura latente. Os movimentos contra o racismo suscitados pela morte de George Floyd, nos EUA, que se estenderam a vários lugares do mundo, guardam sua potência aí. A maneira como ele foi morto obedece a lógica da violência de que o acusam. O ato, feito por um policial branco e de todo modo institucionalizado pelo Estado, tem um único objetivo: provocar medo na população oprimida. Fazer as pessoas desistirem de denunciar a macro estrutura de poder, ramificada nos diferentes setores da sociedade, que se mantém erguida graças a opressão das diferenças.
Como entender o investimento maciço de dinheiro na construção de presídios e o corte de verbas destinadas às escolas, que se mantém sob condições miseráveis, quando se sabe que o problema da violência urbana é um problema social que não pode ser reduzido ao nível da individualidade de um suposto criminoso? Mas, o complexo prisional é mais lucrativo que a construção de escolas. Fato.
Assim, Davis insiste que o epicentro das teorias e práticas do século XXI devem ser a interseção e a globalidade. Se tomarmos a questão do feminismo, veremos que seu discurso é de certo modo aceito pela sociedade em geral e até reforçado pelo capitalismo porque, no fim das contas, ele se destina as mulheres brancas de classe média e alta que devem ser livres para ter “o seu estilo” que podem adquirir nas lojas e magazines, que vendem todos os estilos. Em contrapartida, mulheres negras, da classe trabalhadora, que inclusive trabalham com serviços domésticos para que as mulheres abastadas sejam livres, permanecem à margem, excluídas da própria categoria “mulher”. Então, de que mulher falamos? De que humanos falam os direitos humanos? Questionamentos como estes são essenciais para se desconstruir a universalização de categorias como as de “mulher”, “humano”, “negro”, que reforçam o discurso meritocrático. No fim das contas, é preciso ter consciência que o caráter revolucionário e radical das lutas não está simplesmente no esforço em incluir os indivíduos, sejam eles mulheres, negros ou trans, em categorias ideologicamente formatadas. Trata-se, essencialmente, de uma contestação à própria categoria, que precisa ser repensada para deixar de produzir normatividades, ou seja, referenciais cristalizados sobre quem pode ou não pode ser mulher, por exemplo. O trabalho empreendido pelos movimentos precisa ser feito na intersecção entre raça, classe, sexualidade e gênero, deslocando-se de uma abordagem centrada em experiências individuais e detendo-se em questões mais amplas como os sistemas de produção neoliberal, o complexo industrial prisional, o encarceramento psiquiátrico, a indústria farmacêutica, etc. Apesar desses problemas serem abordados de modo marginal e independente, a potência que os mantém ativos está justamente no elo que os liga. Vale salientar que, mesmo tendo sua identidade de gênero legalmente instituída, a mulheres trans negras e em vulnerabilidade social ainda são enclausuradas, em penitenciárias masculinas, vítimas da violência e discriminação dentro e fora das instituições.
Davis aponta a necessidade de reavaliarmos, a nível individual e coletivo, as ideologias produzidas em torno do conceito de normal. Ora, é difícil legitimar a luta pelo abolicionismo prisional se há uma percepção da massa de que as prisões são normais. Destarte, é impossível lutar pela inclusão social da loucura se esta é definida como uma doença mental essencialmente orgânica pela hegemonia psiquiátrica. Igualmente, é impossível lutar pela diversidade sexual quando há uma insistência na naturalização e binarização do conceito de gênero. Aliás, a própria ideia de normalidade é produto de condições sociais, políticas e ideológicas que são criadas para justificar legalmente e cientificamente discursos e práticas abusivas.
Assim, os movimentos pela liberdade envolvem muito mais que reivindicações de inclusão identitária. Eles envolvem a consciência em relação às estruturas de poder capitalista, ao colonialismo, ao racismo, ao fascismo e a multiplicidade de experiências que não devem ser objetos de uma categorização. Tais movimentos não nos mostram apenas a existência de uma série de conexões entre discursos e práticas de instituições diversas que tendemos a analisar isoladamente. Eles nos convocam a esboçar modelos epistemológicos, teóricos, metodológicos, éticos e de organização coletiva que nos levem além de classificações maniqueístas, moralizantes e reducionistas, incitando-nos a adentrar no universo produtivo dos antagonismos. Enfim, os movimentos nos encorajam a uma reflexão que nos permite separar coisas que concepções ideológicas insistem em permanecer unidas e, consequentemente, separar coisas que a ideologia persiste em naturalizar. Não se pode defender o abolicionismo prisional sem considerar o antirracismo. Da mesma forma, a abolição das prisões deve abarcar a crítica a ideologia de gênero.
Pensar o feminismo em um contexto abolicionista, antirracista e vice-versa, quer dizer, interseccionalizá-los, significa aplicar a máxima de que o pessoal é político, ou seja, o individual é social. Afinal, como não vermos uma continuidade entre a violência institucionalizada das prisões e a violência doméstica e sexual contra a mulher? Não podemos reduzir o machismo a questões individuais, a um repertório psicológico anormal. Precisamos compreender que modelamos nossa intimidade, nossos sentimentos e afetos, segundo estruturas políticas de poder. Neste sentido, acabamos por fazer o trabalho do Estado em nossa vida privada, reproduzindo uma estrutura racista e repressora. O aumento do feminicídio no governo antidemocrático de Bolsonaro informa-nos isso. Ora, um governo que se constrói em torno do ódio e tortura incita os mesmos atos na vida doméstica. A violência racista e sexual, contra a mulher são práticas não apenas toleradas ou negligenciadas. Ela é encorajada.
Os movimentos pela liberdade, portanto, não tratam apenas da garantia dos direitos civis. Eles visam a mudança e ao remodelamento da estrutura. Ser livre não significa simplesmente a garantia de direitos formais que permitam o acesso e participação do indivíduo na sociedade, que continuaria a funcionar sob uma engrenagem ultrajante. Ser livre é não ter que se submeter a um sistema de produção capitalista que, utilizando um vocabulário coaching, extorque o tempo de vida da maioria das pessoas, enfraquecendo os vínculos sociais, sindicais e trabalhistas, incutindo-lhes a ideal do consumo como determinante de uma vida feliz. Aliás, a luta implica repensar radicalmente nossa vida íntima, a construção daquilo que somos, pois o capitalismo já faz isso e, por isso, tendemos a reduzir nosso projeto de existência a posse de mercadorias que poderemos adquirir com trabalho e esforço, reproduzindo, assim, uma lógica escravista, em que o abusador e o abusado é o próprio indivíduo.
Por fim, Davis adverte que a luta é global, ampla, articulada, interseccionlizada, solidária, coletiva. É constante.
Kelly Moreira de Albuquerque – Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (2009), mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (2012) e doutorado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (2016). Atualmente é doutora III do Centro Universitário Fanor Wyden. E-mail: kellynha.psico@hotmail.com
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018. Resenha de: ALBUQUERQUE, Kelly Moreira de. Uma luta constante. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 23, p. 204-211, jan./jun., 2020.
Astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história – IEGELSKI (AHSS)
Francine Iegelski/Divulgação UFF
IEGELSKI, Francine. Astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história. São Paulo: Humanitas, 2016, 422 p. Resenha de: BRANDI, Felipe. Annales. Annales. Histoire, sciences sociales, v.2, p.450-452 2019. Acessar publicação original.
En 1949, Claude Lévi-Strauss publiait, dans un numéro de la Revue de métaphysique et de morale consacré aux « Problèmes de l’histoire », l’article « Histoire et ethnologie », devenu dix ans plus tard la célèbre introduction d’Anthropologie structurale 1. Les deux disciplines qui donnent son titre à l’article y sont montrées comme un Janus bifrons : deux sciences soeurs, solidaires, mais investies de missions opposées. Alors que l’histoire s’en tiendrait au domaine du particulier et à l’étude des expressions conscientes de la vie sociale, l’ethnologie paraît atteindre un degré plus élevé d’abstraction àmême d’explorer les « possibilités inconscientes » et d’opérer le passage à l’universel. Les historiens ont vite compris que leur discipline se trouvait menacée d’être reléguée aux tâches subalternes d’une science de second rang : la collecte consciencieuse des matériaux empiriques dont il reviendrait à d’autres d’opérer la synthèse. Méfiants, ils sentaient que l’anthropologue n’avait insisté sur la complémentarité des deux disciplines que pour mieux les hiérarchiser. Conquérante et forte de ses attraits, la jeune ethnologiemontrait qu’elle s’apprêtait à détrôner son aînée. Depuis lors, le thèmede l’histoire dans la pensée de Lévi-Strauss a suscité l’un des grands débats qui, en France et ailleurs, ont marqué les sciences de l’homme du second XXe siècle – un débat que nous aurions tort d’imaginer dépassé. Le livre de l’historienne brésilienne Francine Iegelski en témoigne. Issu d’une thèse de doctorat soutenue à l’université de São Paulo en 2012, le volume, préfacé par François Hartog et enrichi d’une présentation de Sara Albieri, fraye son chemin au milieu d’une vaste littérature par l’originalité d’une démarche qui allie histoire des idées et réflexion théorique, afin de montrer que les questions posées par Lévi-Strauss à l’histoire peuvent encore nous guider parmi les interrogations actuelles de l’historiographie.
L’ouvrage d’Iegelski présente un triple intérêt. Tout d’abord, il se centre sur les écrits de Lévi-Strauss et montre que celui-ci a enrichi l’histoire, suivant lemêmemouvement par lequel il en a fait une espèce de contrepoint à son projet d’anthropologie sociale. Ensuite, ce travail se lance dans une histoire intellectuelle qui retrace les débats et les controverses ayant jalonné la réception historienne des idées de Lévi-Strauss, depuis l’article de Fernand Braudel sur la longue durée jusqu’aux écrits d’Hartog. Enfin, il change à nouveau de peau et s’engage dans une réflexion, plus théorique, sur les « expériences du temps ». Ce livre est en effet celui d’une historienne de métier, dont le but est de réfléchir sur l’histoire.
On lit avec profit les chapitres qui déclinent les significations diverses dont l’histoire apparaît investie au sein de l’oeuvre de Lévi-Strauss : elle désigne tantôt les expériences vécues des sociétés (le « champ événementiel », si l’on veut), tantôt l’attitude subjective que les différentes sociétés adoptent face au devenir, tantôt un savoir constitué au sein des sociétésmodernes, que ce soit sous la forme de l’histoire qu’écrivent les historiens ou d’un grand récit aux mains des philosophes et des idéologues. Des thèmes bien connus sont utilement revisités : les rapports entre histoire et ethnologie, le problème des discontinuités culturelles, celui de la contingence irréductible de l’événement et, finalement, la mise à nu des rapports entre mythe et histoire. Le mérite essentiel de cette traversée repose sur la gerbe d’informations moissonnées et sur un effort de décryptage d’autant plus estimable que la matière est spécialement compliquée. Au fil de ce parcours, le thème de l’histoire se diffracte au sein des écrits de Lévi-Strauss, tout en restant une constante.
Si l’analyse de l’oeuvre occupe la plus grande part du livre, l’originalité de l’initiative d’Iegelski est de ne pas s’y arrêter. L’autrice couronne son étude par l’histoire du retentissement des idées de Lévi-Strauss chez les historiens, au fil d’un récit truffé d’aperçus nouveaux. Elle propose une lecture intéressante du discours de Lévi-Strauss à l’occasion de la 5e Conférence Marc Bloch, que les Annales publient en 1983 sous le titre « Histoire et ethnologie », comme un écho à son article de 1949 qui ne fait qu’accuser l’écart entre leur conjoncture polémique respective. Cette dernière contribution de Lévi-Strauss dans les Annales atteste que le rapport entre les deux disciplines s’était radicalement transforméentre-temps ; en témoigne aussi, dans le même numéro, un autre article, cette fois signé Hartog, sur l’anthropologie de l’histoire où apparaît pour la première fois, sous une forme encore embryonnaire, la notion de « régimes d’historicité 2 ».
Un quart de siècle après que Braudel a proposé la longue durée comme une réponse à l’avancée de l’anthropologie structurale, Hartog lit Marshall Sahlins et envisage qu’un nouvel échange entre historiens et anthropologues soit désormais placé au niveau de l’événement, et non des « structures », mettant ainsi à l’épreuve l’idéequelerefusduchangement serait l’attitude prédominante des sociétés traditionnelles, supposées « froides », face à l’histoire. La rencontre de ces deux articles de Lévi-Strauss et d’Hartog est explorée par l’autrice comme une coïncidence pleine de sens, qui marque le moment où une conjoncture intellectuelle s’achève afin qu’une autre commence. En amont, l’étude des sociétés dépourvues d’écriture (donc sans archives ni histoire) s’opposait aux recherches consacrées aux sociétés engagées dans le devenir ; en aval, la manière dont les sociétés conçoivent leur inscription dans l’histoire devient un champ problématique commun, partagé par les spécialistes des deux disciplines.
D’une étude sur l’histoire chez Lévi-Strauss, l’ouvrage se transmue ainsi en une histoire intellectuelle de la réception historienne de ses écrits, avant de se convertir en un essai sur la genèse de la réflexion sur les « expériences du temps » dans le travail d’Hartog. Les pages finales sont particulièrement novatrices, dédiées à l’influence des écrits de Lévi-Strauss sur le tournant réflexif de l’historiographie des années 1980 et sur l’avènement de cet outil d’investigation historique du temps qu’est la notion de « régimes d’historicité ». L’enjeu touche ici à l’actualité qu’acquiert au sein du travail d’Hartog la réflexion de Lévi-Strauss sur l’histoire. Après avoir remis en question l’idéal de progrès, Lévi-Strauss fut aussi l’un des savants à avoir reconnu les signes avant-coureurs d’un bouleversement des rapports au temps qui allait toucher les sociétés modernes en cette fin de siècle.
En 1993, Lévi-Strauss revient sur le binôme sociétés froides/sociétés chaudes qu’il avait autrefois proposé et signale que les « états » auxquels correspondent ces deux catégories ne sont pas figés, mais eux-mêmes soumis au devenir historique.
Il constate alors une double évolution, symétriquement opposée, qui atteint autant les sociétés traditionnelles (froides) que les sociétés modernes (chaudes) lors du dernier quart du XXe siècle : les premières, s’insurgeant contre le pouvoir des anciens colonisateurs, s’engagent dans l’histoire et « se réchauffent », tandis que les secondes suivent un mouvement inverse de « refroidissement », né de leur effort pour neutraliser les effets du temps et résister au devenir. Signe d’une perte de confiance dans l’avenir provoquée par les expériences traumatiques du XXe siècle (guerres, explosion démographique, ravages de la civilisation industrielle), ce processus de refroidissement au sein des sociétés chaudes recoupe, selon l’autrice, ce qu’Hartog appelle le basculement du « régime moderne d’historicité » vers le « présentisme ». Visiblement, les deux diagnostics convergent et se recouvrent. Pour Iegelski, ce refroidissement dont parle Lévi-Strauss est une expression de la fermeture du futur et de la montée d’un présent omniprésent qui caractérisent le moment « présentiste ». Dans sa préface, Hartog accepte volontiers ce rapprochement, mais se demande si l’on ne peut voir dans le présentisme un « hyper-réchauffement », où l’accélération est telle que le devenir se consume aussitôt, jusqu’à ne laisser de place qu’à un présent perpétuel.
De nouvelles perspectives de recherche s’ouvrent ainsi aux spécialistes de l’historiographie. Elles témoignent de la fécondité des réflexions actuelles sur la conscience historique des sociétés et leur rapport au temps 3. Dans une étude sur l’histoire chez Lévi-Strauss, on peut certes regretter que l’autrice effleure seulement le thème des théories diffusionnistes, lequel recèle une piste importante pour comprendre comment les analyses des mythes chez l’anthropologue se situent face à un débat relatif aux processus d’acculturation précolombiens ainsi qu’aux guerres et aux migrations qui ont tantôt rapproché, tantôt séparé les hautes civilisations et les cultures de la forêt et de la savane. On eût aimé qu’Iegelski posât le problème des organisations dualistes en tant que traces de l’histoire perdue d’un ancien syncrétisme, des contacts et d’un vieux fonds culturel commun d’où seraient dérivées les cultures des hautes et des basses terres. L’obscurité enveloppant le passé américain a représenté, sans conteste, un redoutable obstacle qui n’a pas été sans déterminer très tôt les positions adoptées parLévi-Strauss à l’égard de l’histoire. Ces remarques n’enlèvent pourtant rien à la portée d’une étude qui se lance dans une lecture résolument historienne de la pensée vivante de Lévi-Strauss, en convoquant ses différentes réflexions sur l’histoire, en vue de mieux s’armer pour répondre aux défis historiographiques qui sont aujourd’hui les nôtres.
Felipe Brandi. E-mail: brandifelipe@yahoo.com AHSS, 74-2, 10.1017/ahss.2020.20.
Notas
1- Claude LÉVI-STRAUSS, « Histoire et ethnologie », in Anthropologie structurale, Paris, Plon, [1949] 1958, p. 3-33.
2 – Id., « Histoire et ethnologie », et François HARTOG, «Marshall Sahlins et l’anthropologie de l’histoire », Annales ESC, 38-6, 1983, respectivement p. 1217-1231 et p. 1256-1263 ; François HARTOG, Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps, Paris, Éd. du Seuil, 2003.
3 -Dossier « L’anthropologie face au temps », Annales HSS, 65-4, 2010, p. 873-996.
Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão | Adriana Stemy
Da mesma forma que Caetano Veloso, em “Alegria, Alegria” passa a impressão de andar na rua registrando os acontecimentos de sua época como os “crimes de guerra”, as “cardinales bonitas” e as “caras de presidente”, Adrianna Setemy busca analisar os aspectos históricos que possam ter criado o cenário efervescente da década de 1960 no que diz respeito às mudanças de comportamento e a forma como as revistas se defrontaram com o problema da censura, em uma clara necessidade de compreender o tempo presente. Ao andar na rua, ler os jornais e conversar com pessoas, a autora reconhece que o Brasil se vê ameaçado novamente pela censura às artes e à liberdade de expressão. Os ataques ao Museu de Arte Moderna (MAM) por terem permitido a interação de uma criança com a performance de um homem nu e os projetos de lei apoiados no Programa Escola Sem Partido que buscam impor um fim à liberdade de cátedra com motivos de evitar uma “doutrinação ideológica” por parte dos professores sugere uma volta à censura, desta vez não pelas mãos de um regime militar, mas sim um estado que se pressupõe democrático.
A obra Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão parte da análise de como as revistas Manchete (Rio de Janeiro, 1952-2000) e Realidade (São Paulo, 1966-1976), de grande circulação durante os anos iniciais da ditadura militar, construíram uma revolução nos costumes da época, bem como a forma com que discutiram temas sobre comportamento e relacionamento que eram até então tabus morais. Seu recorte é o período entre 1964, início do regime militar brasileiro, e 1968, ano de promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) que representou o fim das liberdades individuais no país.
O livro, publicado em 2019 pela Editora Letra e Voz, contém três capítulos: o primeiro capítulo traz um panorama sobre a indústria editorial no Brasil na década de 1960, enquanto o segundo capítulo busca explicar a trajetória de ambas revistas e o terceiro passa a analisar sua produção.
Com pós-graduação – Pós-doutorado (2015), doutorado (2013) e mestrado (2008) – em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduada pela Universidade de Brasília (2005), a carreira acadêmica de Adrianna Cristina Lopes Setemy se pautou no estudo de temas relativos à censura e propaganda do Estado brasileiro no século XX, passando por temas como Direitos Humanos, memória social e violência política. O livro analisado faz parte de uma pesquisa maior desenvolvida durante o mestrado em que a autora visa compreender a censura nos periódicos entre 1964 e 1985, durante o regime militar.
A principal tese do livro é a de que mesmo o período ditatorial tendo sido um momento crítico da história política do Brasil, os anos 1960 foram responsáveis por uma revolução nos costumes. As revistas são mais do que veículos de comunicação ou reprodutores do pensamento de determinados grupos, mas revelam transformações sociais, bem como se colocam como agentes sociais das transformações. Setemy busca dar fim à ideia de que a sociedade foi vítima do Estado opressor e construir uma interpretação relacional entre Estado e sociedade, em que predomina, em certos momentos, mecanismos de negociação.
As revistas Manchete e Realidade revelaram-se rico material para compreender as representações, discussões e disputas dessa década de efervescência, tanto no que tange ao momento cultural quanto à indústria editorial. Ambas as revistas, salvo características particulares, se dedicaram à abordagem de temas comportamentais e de interesse geral que, muitas vezes, desagradaram o regime militar. A revista semanal Manchete, da Editora Bloch, entrou no mercado e se destacou por seu aspecto visual e pela preocupação com a produção e diagramação de imagens, voltada para um público de classe média urbana. Já a revista mensal Realidade, da Editora Abril, tinha como alvo um público de classe média urbana mais intelectualizado, preocupado com a profundidade com que os assuntos eram tratados. O sucesso de ambas as revistas, principalmente da revista Realidade, foi grande, mas durou pouco tempo, característica que a autora analisa frente a problemas internos referentes aos conselhos editoriais de cada empresa, mas também devido as rápidas mudanças no mercado editorial que buscava atender um público cada vez mais diversificado e que, portanto, escolheu por difundir um número maior de revistas especializadas em detrimento das de interesses gerais.
Ao analisar o conteúdo das revistas, Setemy divide sua análise em três eixos temáticos: a nova realidade feminina, as transformações da juventude e o conflito de gerações e os problemas educacionais. Os eixos temáticos apresentam o questionamento dos papéis sociais tradicionais e um abrandamento do formalismo que envolvia tanto a vida pública quando a vida privada no que diz respeito à sexualidade, ao papel dos gêneros, a relação entre pais e filhos etc. A organização social da década de 1960 se mostrava mais fluida, privilegiando o indivíduo no espaço público e dissolvendo funções tradicionais pautadas em velhas normas e instituições que antes limitavam a atuação na sociedade.
Para Setemy, a análise das revistas Manchete e Realidade permitiu demonstrar que a sociedade, ao longo da segunda metade do século XX, foi adotando formas reguladoras mais brandas e que permitiam uma maior liberdade individual que, entretanto, não significou o fim dos princípios morais. Além disso, é possível perceber que os problemas antes restritos a esfera particular da sociedade se tornou assunto das páginas das revistas e vendidos comercialmente. Ainda que as revistas tratassem de temas que antes eram tabus e relegados ao mundo das relações privadas, contribuíram para a manutenção da estrutura vigente com matérias conservadoras que, algumas vezes, apontavam qualidades do regime militar como a manutenção da ordem e a necessidade de regras rígidas para a manutenção da segurança nacional.
A pesquisa de Setemy consegue demonstrar a dialética presente na relação entre produção e consumo que resultou no desenvolvimento de uma cultura de massa no Brasil. Se por um lado, o regime incentivou o desenvolvimento da indústria editorial, seu aparato repressivo, apresentado pelo Ato Institucional nº 5, interferiu no diálogo entre cultura e sociedade. A dialética também se apresenta no estudo das matérias publicadas pelas revistas Manchete e Realidade no que se refere à mudança de costume e liberdades individuais, pois mesmo que as regras morais não se apresentassem com tanta rigidez e a discussão acerca de assuntos privados estivesse presente nas matérias, as estruturas de longa duração se mantinham presentes na sociedade, prova disso é o fato de que as matérias nem sempre aprovavam as novidades, principalmente na questão da sexualidade e das drogas.
A autora escolhe terminar sua análise com o decreto do Ato Institucional nº 5 porque acredita que o fim das liberdades individuais colocou um fim na liberdade de imprensa, abrindo margem para uma possibilidade de análise pós-AI-5 de como essas revistas, em especial a Manchete que se mantém ativa até os anos 2000, lidaram com a forte censura e se não conseguiram manter sua essência revolucionária de forma sutil, além da possibilidade de análise das revistas de grande circulação em relação com as de menor alcance no que tange a apresentação e discussão de temas tabus.
Setemy, ao olhar para o passado em um momento de ebulição cultural e censura política, permite questionar o presente. Embora não vivamos em um regime ditatorial, as estruturas morais que se apresentavam na década de 1960 continuam se manifestando no século XXI e buscando vias democráticas de censura. A autora cita a contundente crítica ao Museu de Arte Moderna e a posterior censura da exposição “História da Sexualidade” no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), mas podemos listar tantas outras ações governamentais que indicam a censura por parte do Estado, como a decisão judicial de remover do catálogo da plataforma de streaming Netflix o filme A primeira tentação de Cristo, especial de natal do grupo de humor Porta dos Fundos em que Jesus é retratado como homossexual. Tal ação demonstra que, não muito diferente da época ditatorial, a sociedade brasileira em pleno século XXI, apesar de parecer liberal, ainda mantém velhos tabus. Embora a democracia esteja consolidada, a censura permanece como um instrumento do conservadorismo e tem buscado, cada vez mais, atacar a educação e a cultura, como a ação de retirada dos pôsteres de filmes nacionais dos prédios da Ancine, a diminuição de verbas federais para a cultura e os projetos do Escola Sem Partido que têm se disseminado entre as regiões brasileiras. Essas ações sutis demonstram que o Estado está disposto a retaliar qualquer conduta que seja considerada oposta aos ideais conservadores do governo.
Marcela dos Santos Alves – Mestranda em História na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Câmpus de Assis. E-mail: marceladossantosalves@gmail.com
SETEMY, Adriana. Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão. São Paulo: Letra e Voz, 2019. Resenha de: ALVES, Marcela dos Santos. A revolução dos costumes em tempos de censura: a Ditadura Militar e os periódicos Manchete e Realidade. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 22, p. 252-255, jul./dez., 2019.
História e Teoria Queer | Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Aguinaldo Rodrigues Gomes
O Livro História e teoria queer, organizado pelos historiadores Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Aguinaldo Rodrigues Gomes e publicado pela editora Devires em 2017, de 391 páginas, é uma obra que reúne, adotando critérios bem simplificados e simplificadores, textos de duas naturezas. Na primeira parte, denominada Teoria queer e historiografia: contribuições e debates, é apresentado em termos gerais um panorama da produção historiográfica referente às temáticas dos sujeitos inseridos nas complexas identidades tlbqg+, tais como corpo, gênero, heteronormatividade, normalização, e ainda suas articulações com questões raciais em processos de interpelação. Na segunda parte, de nome As potencialidades dos estudos queer: corpo, performances e representações, são trazidos alguns estudos mais específicos referentes a alguma dessas individualidades ou grupos.
A primeira parte da obra começa com o texto de Miguel Rodrigues de Souza Neto, Rotas desviantes no oco do mundo: desejo e performatividade no Brasil contemporâneo. O autor inicia a reflexão lembrando a vinda ao Brasil, em novembro de 2017, da filósofa estadunidense Judith Butler para participar de um seminário organizado pelo Sesc Pompeia, intitulado “Os fins da democracia”, e toda a comoção social causada, naquela ocasião. Vale lembrar que ela é acusada de ser uma das fundadoras do que se convencionou denominar, no Brasil e em outras partes do mundo, de “Ideologia de gênero”. Aí está uma das marcas que o leitor encontrará em boa parte dos escritos na obra: a relação entre a discussão teórica e algumas questões contemporâneas que eclodem socialmente. Ao longo do texto o autor nos apresenta um histórico do desenvolvimento dos estudos relacionados à sexualidade e ao gênero, a partir de disciplinas e lugares específicos, em áreas como a antropologia e a sociologia, até serem encampados pelos estudos históricos. Também nos é apresentado um certo histórico da produção dos discursos a respeito dos sujeitos desviados daquilo que é denominado de heteronormatividade, que parte de uma aproximação simplificadora entre sexo biológico e performatividade de gênero, e que, portanto, tende a normalizar os sujeitos de maneira binária. Tais discursos seguem certo percurso: começam a ser produzidos sobre os sujeitos, sobretudo por parte do universo religioso e jurista, e com uma percepção pejorativa, e em algum momento passa a ser produzida também por esses sujeitos, na medida em que são inseridos no discurso por meio de estudos que lhes conferem protagonismo.
O segundo texto, Normatizar para normalizar: uma análise queer dos regimes de normalidade na historiografia contemporânea da homossexualidade, Bruno Brulon afirma que “a teoria queer propõe a desconstrução dos regimes de identidade na medida em que estes criam a marginalização dos sujeitos e seu consequente silenciamento”. Nesse sentido sua reflexão faz caminho parecido à anterior, na medida em que apresenta o que denomina regime jurídico-religioso, um regime médico, um regime psicológico e um regime epistemológico como sistemas explicativos que, hegemonicamente, marginalizaram e silenciaram. Daí a necessidade, segundo o próprio Bruno, de historicizar o queer, e de queerizar a história, na medida em que isso permita oferecer espaço e fornecer voz a sujeitos até então totalmente subalternizados.
Na sequência, em Cisgeneridade e historiografia: um debate necessário, Fábio Henrique Lopes segue a mesma linha de reflexão, valendo-se de autores como Michel Foucault e Judith Butler. Ele inicia apresentando um elemento interessante, que é o próprio domínio do gênero masculino da delimitação do que deve ser estudado ao longo da consolidação da disciplina histórica. A partir daí, mostra a relevância dos estudos feministas para a ocupação de espaço por mulheres no campo das ciências humanas, passando pela denominada História das Mulheres. Por último, a incorporação da abordagem de gênero pela própria história. O autor lembra ainda como foi fundamental a diferenciação entre identidade de gênero e orientação sexual na possibilidade de ampliação de atribuição de sentidos e nomeações de histórias, experiências, comportamentos, corporalidades, identidades e subjetividades.
Na sequência, como o texto Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos? Uma reflexão feminista sobre corpos negros e tecnologias da visualidade, Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro reuniu as reflexões sobre teoria feminista e prática política às quais já dava andamento para a escrita a um evento impactante: o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Pedro Gomes. Novamente a obra conecta teoria e realidade social. Mas a estratégia central da autora no trabalho do texto é a utilização de fontes iconográficas, lançando mão de fotografias de amas- de leite com crianças brancas no colo, no Brasil do século XIX, e contrastando com a imagem da vereadora Marielle, com o slogan “Marielle presente”. As relações dos lugares reservados aos corpos ao longo do tempo, a presença ou não do racismo e as suas configurações, tudo isso recebe abordagem a partir de tais documentos e, evidentemente, de aparato teórico.
Em Outras histórias de Clio: escrita da história e homossexualidades no Brasil, Elias Ferreira Veras e Joana Maria Pedro refletem sobre a invisibilidade das figuras homossexuais na historiografia brasileira. Voltam a frisar como até a década de 1970, no Brasil, os registros sobre experiências homossexuais foram produzidos predominantemente pelos campos médico e policial, sendo raras as ocasiões nas quais o próprio sujeito produzia algum discurso sobre si. Lembram, a partir daí, a relevância da História das Mulheres, dos estudos de gênero, da figura de Foucault, como marcos para algumas alterações nesse sentido e, por fim, apresentam algumas produções no Brasil que resultam dessa mudança de perspectiva.
Fechando a primeira parte com Estudos queer na historiografia brasileira (2008-2016), Benedito Inácio Ribeiro Júnior realiza um inventário sobre tais estudos na historiografia recente e aponta a história como a área das ciências humanas que mais tempo demorou para inserir tais reflexões entre suas preocupações. Ele denomina a história, de maneira sarcástica, de “Tia velha”. A partir daí aponta para a relevância da interdisciplinaridade para que avanços ocorressem no sentido de abarcar outros sujeitos na historiografia, e por fim apresenta os ganhos por parte da própria disciplina histórica com a inclusão de certas temáticas.
A segunda parte do livro tem abordagens que visam romper com certa tendência contemporânea de identificação entre sexo e gênero, tendendo, portanto, a normalizar as subjetividades de maneira binária. Em Corpos migrantes: a presença da primeira geração de travestis brasileiras em paris, Marina Duarte procura analisar, como ela própria afirma, corpos que atravessam duas fronteiras fortemente estabelecidas: a do estado-nação e das relações de gênero. Para tanto a autora retorna à cidade de Paris antes da chegada das travestis, e procura compreendê-las também antes da ida a Paris. Quando as estuda lá, analisa inclusive como trafegam pelos espaços e, portanto, como elas o influenciam e são por ele influenciadas.
Na sequência, em Experiências trans: amizades, corpos e outros trânsitos, Rafael França Gonçalves dos Santos analisa, a partir de Michel Foucault, como a categoria da amizade poderia auxiliar na compreensão das sociabilidades homossexuais, sobretudo na formação de suas subjetividades e identidades ao longo da existência, já que a própria intervenção do corpo realizada por alguns deles necessita de identificação, apoio, laços estabelecidos. O autor insere na reflexão o conceito de rede, caro às formas de sociabilidade contemporâneas, assim como a questão da migração.
Em As “genis” representadas nas páginas do Lampião da Esquina, Débora de Souza Bueno Mosqueira realiza um estudo da importância das páginas desse periódico que circulou entre 1978 e 1981 para a construção de espaços de circulação de temas relativos à homossexualidade, integração dos gays em movimentos que defendessem seus direitos e denúncias relativas às violências cometidas contra homossexuais. A autora lembra, inclusive, de como mulheres foram incluídas na equipe do jornal a partir da pressão dos próprios leitores, em um processo dinâmico, e de como a mulher negra, brasileira e da periferia encontrou espaço em algumas de suas páginas.
Em Corpo anacrônico (sucedido por uma alegoria queer para as musas), Antonio de Lion lembra, parafraseando Carlos Alberto Vesentini, a dificuldade de um historiador ou historiadora para falar das lutas de agentes de um tempo que não é o seu. A partir daí, por meio de uma avaliação de como os estudos foram se desenvolvendo a partir, sobretudo, da interdisciplinaridade, desemboca na afirmação de que a contribuição dos estudos queer consiste justamente na capacidade que eles têm de promover uma ampliação dos olhares aos corpos que importam, para que, em algum momento, se possa compreender que todos os corpos importam.
Na sequência Kauan Amora Nunes, em O que Queer tem a ver com as calças: uma análise histórica do conflito entre críticas marxista e queer, nos apresenta uma relação, em geral no mínimo intranquila, entre estudos marxistas de um lado, que em geral entenderam que questões referentes a etnia ou gênero seriam menores se comparadas à questão da luta de classes, e a bibliografia queer do outro, que evidentemente critica a percepção marxista por lhe reduzir o nível de importância. O autor lembra, no caso brasileiro, da controversa relação entre o próprio PT, com orientações iniciais do marxismo, e a questão da homossexualidade.
Em “Vai malandra…seu corpo é instrumento [contra] violento”: Figurações da marginalidade no filme “A Rainha Diaba” (1973), Robson Pereira da Silva busca compreender em que medida a arte da década de 1970 pôde responder, com figurações de corpos marginais, às lesões efetuadas pelo Estado autoritário configurado na ditadura militar no Brasil, que vigorou entre 1964 e 1985. A partir disso o autor trabalha com possibilidade de ler, nas obras de arte, uma possível contraviolência praticada por uma diversidade de figuras da classe artística nacional.
Fechando a obra Aguinaldo Rodrigues Gomes e Peterson José de Oliveira, em Erosão das masculinidades e dos discursos marginais no app Grindr, buscam compreender a configuração das identidades e subjetividades de sujeitos que interagem nas redes sociais. A chamada heteronormatividade dominante se aplica, evidentemente, nos espaços virtuais, e a análise dos autores se realiza na busca de compreender até que ponto, em um aplicativo mais específico para um público homossexual, os sujeitos conseguem romper com tais parâmetros de visão de si e dos outros e até que ponto permanecem enredados na teia de representações hegemônicas.
A obra, a meu ver, pela multiplicidade de referenciais teóricos e de abordagens metodológicas sobre uma diversidade de temas pertinentes, é objeto valioso para aqueles que se dedicam a objetos teóricos que estejam nas fronteiras do que é tratado no livro, assim como para aqueles que, no mínimo, queiram ampliar sua compreensão sobre a complexa formação das subjetividades nas sociedades contemporâneas.
Cássio Rodrigues da Silveira – Possui graduação em Filosofia, mestrado em História e doutorado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente leciona Filosofia no Instituto Irmã Teresa Valsé Pantellini, da Rede Salesiana de Escolas.
SOUSA NETO, Miguel Rodrigues de Sousa; GOMES, Aguinaldo Rodrigues (Org.). História e Teoria Queer. Salvador: Devires, 2018. Resenha de: SILVEIRA, Cássio Rodrigues da. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 22, p. 256-259, jul./dez., 2019.
Cultura, politecnia e imagem – ALBUQUERQUE et al (TES)
ALBURQUERQUE, Gregorio G. de; VELASQUES, Muza C. C; BATISTELLA, Renata Reis C. Cultura, politecnia e imagem. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017. 318 pp. Resenha de: GOMES, Luiz Augusto de Oliveira. A materialidade da cultura: uma nova forma de ler o mundo. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.17, n.2, Rio de Janeiro, 2019.
O livro Cultura, politecnia e imagem,organizado por Gregorio Galvão de Albuquerque, Muza Clara Chaves Velasques e Renata Reis C. Batistella, publicado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fundação Oswaldo Cruz, apresenta um panorama ampliado do conceito de cultura a partir de três eixos de análise que se complementam: (1) Cultura, educação, trabalho e saúde; (2) Cultura, educação e imagem; e, (3) Cultura e cinema. Os 20 autores que assinam os 15 artigos do livro apresentam importantes contribuições para compreender a materialidade da cultura nos tempos atuais.
No eixo “Cultura, educação, trabalho e saúde”, ao debater cultura, os autores se fundamentam especialmente no materialismo histórico dialético para refletir sobre o conceito ampliado do termo. É interessante observar a defesa de uma concepção de cultura imbricada dialeticamente com todas as instâncias dos processos de produção da vida social, refutando a tradição idealista que busca na cultura algo puro e apartado do “reino dos conflitos e contradições” (p. 25). Além da crítica ao idealismo, é crucial destacar as reflexões acerca das obras de Eduard Palmer Thompson e Raymond Willians, pensadores da chamada nova esquerda britânica, para desconstruir a leitura de um marxismo dogmático e fundado no reducionismo econômico, que hierarquiza base/superestrutura e plasma a cultura no plano da ‘superestrutura’, desvinculada das relações sociais de produção (infraestrutura). Quanto às relações dialéticas entre estrutura e superestrutura, assim como Thompson (1979, p. 315) podemos dizer que “o que há são duas coisas que constituem as duas faces de uma mesma moeda”. Ao ter em conta os nexos entre economia e cultura, podemos perceber que a “dimensão cultural das sociedades são espaços dinâmicos permeados por conflitos de interesses” (p. 88), espaços onde estão presentes tanto o consenso quanto disputas por uma nova hegemonia. Essa constatação vai ao encontro das palavras de Thompson (1981, p. 190) de que “toda luta de classes é ao mesmo tempo uma luta acerca de valores”, valores esses que constituem a cultura, cuja base material deve ser investigada e considerada na análise do movimento do real.
É um desafio compreender o conceito de cultura não apenas como campo de consenso. Como nos informa o eixo “Cultura, educação, trabalho e saúde”, a cultura pode ser entendida como resultado das ações dos homens e mulheres sobre o mundo. Em última instância, “ela se torna o próprio ambiente do ser humano no qual ele é formado, apropriando-se de valores, crenças, objetos, conhecimentos” (p. 99).
A obra de Clifford Geertz, trabalhada em um dos artigos do livro, também contribui para o debate sobre cultura, principalmente por abordar os modos de vida e discursos dos grupos vulneráveis ou excluídos. A noção de comportamento humano de Geertz é uma ótima ponte para aproximar a antropologia da discussão a respeito da compreensão do processo saúde-doença. A autora do artigo afirma que a contribuição de Geertz e a sua antropologia “é muito favorável para a inclusão do ponto de vista dos pacientes e usuários dos serviços na análise das questões de saúde, principalmente no atual contexto, no qual o discurso médico é dominante” (p. 114).
No segundo eixo, intitulado “Cultura, educação e imagem”, os autores tratam da construção de conhecimento por meio das imagens. Esse eixo, em especial, nos favorece a compreensão das imagens como mediação em espaços formativos, sejam eles institucional (como a escola) ou qualquer outro espaço de educação dos sujeitos coletivos. Para isso, os autores buscam principalmente nas experiências em sala de aula mostrar como, por intermédio da cultura (em especial, da imagem), é possível outra leitura do mundo.
Com isso, concordamos com Kosik (1976) quando entende que compreender a vida para além da sociedade fetichizada − que toma a coisas no seu isolamento, adota a essência pelo fenômeno, a mediação pelo imediatismo−, é um exercício de apreensão da totalidade do cotidiano. Por isso, tendo em conta a pseudoconcreticidade com que o mundo se apresenta, os autores indicam que na sociedade capitalista, onde “o urbano passa a ser uma sucessão de imagens e sensações produzidas e reproduzidas pelos indivíduos que criam uma condição fragmentada da vida moderna” (p. 88), crianças, jovens e adultos buscam nas imagens divulgadas nas mídias (televisão e redes sociais) a construção de si mesmos e do mundo.
Na lógica do capital, a imagem exerce um papel importante na manutenção da hegemonia, impondo valores e transferindo os desejos da burguesia para a classe trabalhadora. Como constata um dos artigos, a “dissolução da forma burguesa mantém-se no contínuo da passividade dos sujeitos sociais, arraigando assim uma violência subjetiva terrorista, como reconhecer e alterar este mundo […] a colonização estética dos sentidos é perversa” (p. 160).
Sabemos que a educação é apropriada pelo capitalismo como formadora de consenso: “forma-mercadoria e forma estatal como princípio de organização da vida social, impregnando a subjetividade humana de práticas autorrepressivas no que diz respeito aos seus impulsos de felicidade e liberdade” (p. 170). A leitura do eixo “Cultura, educação e imagem” reforça que o “viés questionador, transformador e revolucionário da reflexão e da produção cultural podem possibilitar uma nova forma de ler do mundo” (p. 143). Os artigos nos ajudam a compreender que a imagem é uma potente ferramenta, constituindo-se como mediação tanto revolucionária quanto para manter o status quoda classe econômica e culturalmente dominante.
Por fim, no último eixo, “Cultura e cinema”, os autores nos convidam a conhecer a discussão acerca da cultura e da imagem com base em consistentes formulações teóricas que envolvem a produção do cinema e os seus nexos com as práticas escolares. Neste eixo, podemos destacar que é de grande importância a crítica direcionada às produções acadêmicas que corroboram para que a “análise de filmes seja percebida ainda como uma forma acessória de se atingir uma compreensão sobre a realidade social” (p. 231), ou seja, esse tipo de análise trata a produção do cinema como uma mera fonte de registro e que para compor uma análise da sociedade necessitam de outros tipos de fontes.
Em seus quatro artigos, o eixo “Cultura e cinema” procura demonstrar como a produção fílmica é uma fonte histórica de grande relevância para analisar a sociedade a partir de uma “concepção estético-política” (p. 232). Busca na interpretação do filme “Terra em Transe”, do diretor Glauber Rocha, elementos importantes para a leitura dos acontecimentos do golpe empresarial-militar de 1964 e as variadas interpretações do seu sentido nos dias atuais. O filme é “uma síntese devastadora do processo de luta de classes no Brasil e na América Latina dos anos 1960 como núcleo duro permeando todas as relações sociais reais, demole todos os discursos de legitimação dos projetos colonizadores” (p. 254). A produção em questão nos ajuda a compreender a potência do cinema na captação do real e de como a organização formal e estética em imagem e som nos auxilia na percepção das disputas de classe ocorridas no período.
A concepção de romper com um olhar naturalizado sobre a sociedade de classes é um dos intuitos das produções fílmicas alternativas, em especial na conturbada América Latina do século XX. Assim, o Nuevo Cine Latinoamericanomarcou o cinema latino-americano, buscando em produções militantes, conscientizar trabalhadores e trabalhadoras a sair das suas ‘zonas de conforto’. Essa concepção de cinema buscou possibilitar, como nos indica um dos artigos, “uma nova leitura do mundo, e uma nova forma de pensar a nossa realidade, características fundamentais para a transformação social” (p. 287).
Assim como os longas-metragens, os documentários também contribuem para narrar os conflitos de classe. Como sinaliza uma das autoras, o documentário tem o poder de relacionar a antropologia, a arte visual e a produção cinematográfica para contar uma história. Com isso, os documentários sustentam o “mito de origem de falarem a verdade” (p. 258). Todavia, o eixo nos leva a refletir: Qual verdade? Verdade para quem? O livro nos convida a encarar o documentário como um gênero de grande importância para a pesquisa social.
O rico debate teórico com base na materialidade da cultura alicerçada nas pesquisas dos autores, seja em sala de aula ou na análise de imagens e filmes, ajuda-nos a entender a profundidade do conceito de cultura e a sua potência como agente da transformação social. O livro nos elucida quanto à necessidade de que a classe trabalhadora se aproprie e interprete sua própria cultura, descolonizando-se da hegemonia cultural da burguesia, para assim buscar a sua emancipação plena.
O livro Cultura, politecnia e imagemé um prato cheio para quem busca superar a concepção idealista de cultura, compreendendo-a na sua totalidade, em diversos espaços-tempos históricos, tendo em conta as relações dialéticas entre economia, cultura e outras determinações sociais, e em especial as experiências coletivas da classe trabalhadora. Nos três eixos temáticos, o conjunto de autores desenvolve formulações teóricas com evidências empíricas de que a cultura e os processos educativos que a elegem como objeto de estudo e de compreensão da realidade podem fermentar os germes de projetos de transformação social.
Referências
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. [ Links ]
THOMPSON, Edward P. Tradición, revuelta y cons- ciência de classe. Barcelona: Crítica, 1979. [ Links ]
THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. [ Links ]
Luiz Augusto de Oliveira Gomes – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, Niterói, RJ, Brasil. E-mail: luiz.augusto1201@gmail.com
(P)
A particularidade na estética de Lukács (T), Instituto Lukács | Deribaldo Santos
“A particularidade na Estética de Lukács” de Deribaldo Santos, publicado pelo Instituto Lukács (IL), com primeira edição no ano 2017, trazendo os principais conceitos da obra de maturidade de György Lukács, elaborada de forma mais bem-acabada em a Estética 1. O autor se propõe a sistematizar as categorias lukacsiana contida na obra do filósofo, deixando-as mais acessíveis para o entendimento e direcionando-as para o público interessado no pensamento Lukács e para quem se interesse e estude estética. O estudioso da particularidade em Lukács tem publicado pela editora do IL “Estética em Lukács – A criação de um mundo para chamar de seu”, além deste, outros livros de cunho literário e na área de educação.
Em seu livro, Santos se propõe a expor os conceitos estéticos de Lukács de forma didática para seus leitores, preocupação coerente para um intelectual que tem sua formação em pedagogia e educação. Com essa preocupação do autor, temos em tela uma estrutura fluida e bem amarrada, dividida em três capítulos, tendo cada um em média quatro subcapítulos, que demonstram de forma sistemática transições entre categorias. Sendo assim, o primeiro capítulo tem o objetivo de mostrar como as categorias trabalho, cotidiano e arte tem suas materialidades efetivas na vida comum e como são formas de objetivação humana; articular o distanciamento e aproximações ente a arte e a ciência; por fim, qual é a gênese do desligamento dos reflexos estéticos na realidade. No segundo capítulo, o autor articula a centralidade da categoria da particularidade para a estética marxista, passando por uma demonstração teórico-metodológica desta, apontando para a importância de J.W. Goethe para a formulação da categoria em questão e o esclarecimento de sua peculiaridade. No terceiro e derradeiro capítulo, o autor trata da concepção de forma-conteúdo e essência-aparência, pontos cruciais para a compreensão da dialética da particularidade estética. O estudioso da particularidade em pouco mais de cem páginas coloca em tela sua proposta: demonstrar o movimento dialético interno das categorias lukacsiana, atreladas à realidade concreta.
Para Ranieri Carli, o conceito de particularidade para Lukács é elemento “imposto ao estético pela própria realidade objetiva” que “ocorre do fundamento terreno da arte: a criação de uma imagem aproximativa que traduza em destinos humanos concretos as forças sociais de época e lugar determinados” (CARLI, 2012, p. 117). Segundo esse outro estudioso, o filosofo húngaro defende que a partir da centralidade do particular a universalidade ganha caráter concreto, deixando de ser abstrato, tal qual o singular passa a ter um sentido, deixando de ser avulso. Assim, em sua Estética 1 “a situação do particular vem confirmar a não imediaticidade do reflexo estético” (CARLI, 2012, p. 117). O húngaro, para Carli, propõe-se à formulação de uma teoria estética marxista voltada para o caráter organizativo da particularidade na obra de arte, tendo como ponto de partida uma visão histórica e crítica do pensamento filosófico alemão, desde Kant, passando por Schelling, Hegel e Goethe, chegando a Marx e Engels.
Lukács até o fim de sua vida se dedicou a entender a obra de arte em relação à ciência, como essas duas formas de representação do mundo se relacionam entre si e expressam de formas diferentes a mesma realidade efetiva. Esse esforço é elaborado através das lentes teórico-metodológica marxistas. O que Santos nos mostra em seu livro é a importância da categoria de particularidade para a produção e entendimento das obras arte, assim como a importância dessa categoria para o método cientifico. O autor faz uma análise interna das obras de Lukács — Introdução a uma Estética Marxista e Estética 1 — em que se propõe mostrar a relação entre o Particular, o Singular e o Universal, levando em consideração as várias categorias que são essenciais para o movimento do particular ao universal nas obras artísticas e na ciência.
A categoria de particularidade para Santos é o que permite analisarmos a realidade concreta na sua mais complexa determinações, pois essa categoria é o ponto principal para o movimento dialético tanto da obra de arte como da ciência. Lukács, em uma das obras analisadas por esse estudioso, coloca da seguinte forma “para entender a diferença decisiva entre reflexo científico e reflexo estético, tivemos de sublinhar que o particular, que figurava no primeiro como ‘campo’ de mediação, deve se tornar no segundo o ponto central organizador” (LUKÁCS, 1978, p. 173), com isso fica claro a diferença da categoria de particular na metodologia de uma obra artística e essa categoria em relação à analise cientifica.
A categoria de reflexo estético é colocada no livro de Santos como fruto da realidade unitária, assim, a entrada para a representação da realidade a partir desse reflexo é o próprio cotidiano, onde ocorrem as objetivações superiores. Sendo na cotidianidade que ocorrem as contradições do mundo prosaico e nesta instância encontramos as características fundamentais da vinculação entre teoria e prática. O estudioso da particularidade nos mostra que Lukács coloca o cotidiano como preponderante sobre o pensamento científico e que desse solo partem as formulações de questões que serão resolvidas cientificamente. O autor nos mostra que, na visão do filósofo húngaro, a ciência e a arte entram na divisão social capitalista do trabalho, formando os vários campos das artes e da ciência modernas, e que nessa formação histórica da divisão social do trabalho isso é o que determina a divisão entre o pensar e o fazer, ou seja, somente com a consolidação da modernidade como um período histórico que detém maior complexidade de determinações há também a separação plena entre teoria e práxis.
Seguindo Lukács, Santos coloca que a existência do objeto a ser analisado cientificamente é independente da consciência do sujeito. Assim, partindo de um ponto de vista materialista dialético, que atribui cientificidade à historiografia, esta, por sua vez, tomaria a própria história como um processo real e efetivo, independente da consciência do historiador. Desse modo, a função da História como ciência seria o esforço de desantropomorfizar o objeto que está sendo pesquisado, tal como qualquer ciência modernamente estabelecida. A desantropomorfização, em termos gerais, é a retirada de características atribuídas humanamente ao objeto e que partem de um senso comum cristalizado. Com isso, o reflexo científico tem a função de representar a realidade tal como ela é em suas várias determinações inerentes, com realidade independente em relação ao conhecimento.
Em contraponto, o reflexo estético é a antropomorfização da realidade, isto é, tem a função de atribuir a ela maior gama de características humanas, deixando sua representação mais enriquecida, fazendo o movimento de articulação entre a inerência da obra de arte e a externalidade da realidade concreta. Toda a forma de reflexo — no caso, estético e cientifico —, são determinados, como demonstra o estudioso, partindo de Lukács, por um hic et nunc (aqui e agora) que já é histórico em sua gênese. O autor nos mostra que “cada reflexo, artístico ou cientifico, está carregado de ponderações materiais e temáticas impressas pelo espaço temporal de sua consumação” (SANTOS, 2017, p. 25). Com isso, demonstrando que há na interpretação de Lukács uma defesa da imanência do objeto, o qual é uma exigência insolúvel ao conhecimento científico.
Como imanência do objeto, o autor categoriza tudo aquilo que é indissociável do objeto investigado pelo cientista. Assim, à ciência, com o seu método, caberia se aproximar da realidade imanente a esse objeto, isto é, a ciência — em seu movimento interno — só é capaz de se aproximar da realidade e isso é uma forma necessária para que haja um processo de atualização constante dela mesma, determinado pelo objeto, sendo este independente da consciência do sujeito; no processo em questão, também se proporciona rastros a serem seguidos posteriormente, e esses rastros se estendem ad infinitum.
A Estética, relacionada à ciência do belo, enquanto efetividade sensorial [2] , ou seja, relativa aos cinco sentidos humanos, também tem a funcionalidade de analisar a sensação humana dentro dos vários âmbitos particulares da realidade cotidiana, o filósofo alemão G. W. F. Hegel coloca o termo estética em relação ao âmbito da arte dizendo
O nome estética decerto não é propriamente de todo adequado para este objeto, pois “estética” designa mais precisamente a ciência do sentido, da sensação [Empfinden]. Com este significado, enquanto uma nova ciência ou, ainda, enquanto algo que deveria ser uma nova disciplina filosófica, teve seu nascimento na escola de Wolff, na época em que na Alemanha as obras de arte eram consideradas em vistas das sensações que deveriam provocar, como por exemplo as sensações de agrado, de admiração, de temor, de compaixão e assim por diante (HEGEL, 2015, p. 27).
Santos irá diferenciar a arte da religião, para o autor a primeira tem como imanente o humano, assim, os seres humanos em sua atividade seriam o núcleo para a produção artística. No caso da segunda, a religião, o investigador demonstra que na concepção de Lukács ela também depende do homem para existir, porém a sua diferença com a arte e com a ciência está na sua orientação ao transcendental, ou seja, ela está para além do hic et nunc (aqui e agora). Podemos fazer a mesma relação com a ciência, que, assim como a arte tem como núcleo a atividade humana, e diferente da religião, não tem orientação ao transcendental. Desse modo a arte e a ciência tem como núcleo o mesmo objeto, o homem, e por esse mesmo núcleo ambas são desenvolvidas. Nessa concepção essas três formas de representação do mundo, arte, ciência e religião, para o filósofo húngaro dependem do sujeito para existir, ou seja, depende da pratica humana na sua forma mais aberta possível, essas representações estão totalmente atreladas, para Santos e Lukács, com a divisão social capitalista do trabalho.
A divisão social capitalista do trabalho é uma relação social que irá determinar as duas principais formas de reflexo do mundo, a arte e a ciência. Santos afirma que para Lukács essa divisão social historicamente determinada cria na representação do mundo um estreitamento. O autor defende que para Lukács os sentidos humanos, apesar de serem in natura, são desenvolvidos historicamente para atender necessidades socialmente constituídas, mas, com a divisão social do trabalho haveria um estreitamento da visão de mundo, o que direcionaria o foco para pontos isolados; isso se intensifica na sociedade moderna.
A partir da observação do fenômeno de estreitamento dos sentidos humanos, o estudioso constata que Lukács concebe o homem em duas formas: o “homem-inteiro” e o “homem-inteiramente”. O primeiro nada mais é que o homem que está vinculado diretamente ao seu cotidiano e que está inserido nele de forma inteira, pois esse sujeito é parte determinante e determinada pelas relações sociais. O segundo é o homem que tem acesso a um mundo qualitativamente distinto do próprio cotidiano, isto é, o homem que entra em contato com a obra de arte que expressa a universalidade mediante uma particularidade, esta última só pode ser humana e o contato com essa dimensão da experiência é o que proporciona ao homem não ser mais “inteiro”, mas sim estar no mundo “inteiramente”, pois ele teve acesso a uma particularidade que atinge universalidade e o coloca em contato com a natureza humana propriamente dita. Um exemplo desse processo seria a empatia, ou seja, reconhecer o sentimento do outro e se reconhecer neste.
Santos, partindo de Lukács, mostra-nos que há uma relação oposta entre as categorias de singular e universal, essa forma de interação só pode ser sanada pela categoria do particular, que faz o papel de mediação e proporciona a interação entre as duas primeiras categorias. Assim, o particular é colocado também como uma categoria que atinge o universal, dirá Lukács em Introdução a Estética Marxista: “o processo pelo qual as categorias se resolvem e se transformam uma na outra sofre alterações: tanto a singularidades quanto a universalidade aparecem sempre superadas na particularidade” (LUKÁCS, 1978, p. 161).
O estudioso atesta que em Lukács todo o fenômeno originário é igual à particularidade, que é o seu ponto de mediação entre o singular e o universal. Do mesmo modo o autor colocará que para os marxistas a prioridade se encontra na realidade objetiva, em que está o movimento real, o que é fundamental à dialética materialista, e nota ainda que já no âmbito da estética a particularidade é um ponto em movimento, como dirá Lukács
A descoberta de Goethe, sobre o papel da categoria de particularidade na estética, não tem aparentemente muita importância: o movimento no qual o artista reflete a realidade objetiva culmina, fixa-se, recebe forma no particular, e não como no conhecimento cientifico, de acordo com suas finalidades concretas — no universal ou no singular. O conhecimento ligado à pratica cotidiana se fixa em qual quer ponto, a depender de suas tarefas concretas e práticas. O conhecimento cientifico ou a criação artística (bem como a recepção estética da realidade, como na experiência do belo natural) se diferenciam no curso do longo desenvolvimento da humanidade, tanto nos limites extremos como nas fases intermediarias. (LUKÁCS, 1978, p. 161)
Essa concepção de relação entre particular e universal, tem forma unitária no tema da relação entre forma e conteúdo. Para Lukács “no interior da comunidade de conteúdo e forma, são também comuns[…], as categorias de singularidade, particularidade e universalidade” (LUKÁCS, 1978, p. 161). Santos, tomando esse posicionamento de Lukács, divide em sua exposição a forma na ciência, que tem a obrigação de se afastar de um senso comum, da forma na estética, que tem sempre de estar atrelada a um conteúdo. Assim, o autor defende que o “processo técnico é fundado tendo como base o conhecimento imanente das leis naturais que independem da consciência humana” (SANTOS, 2017, p. 71), dessa forma na ciência o desenvolvimento da técnica ganha uma afirmação, sua objetividade procura aproximar-se da realidade concreta, isso é pensado pelo filósofo como reflexo da realidade. O reflexo artístico em seu desenvolvimento tem a funcionalidade de representar os distintos particulares dos seres humanos e tem como proposta capturar a essência dos novos fenômenos que se efetivam nessa realidade objetiva e sua forma tem que, de alguma maneira, evocar a experiência cotidiana, assim, o típico irá representar a verdade da forma. No reflexo cientifico o conteúdo precisa se fixar e se aprofundar na imediaticidade sensível das formas fenomênicas. A ciência em A particularidade na estética de Lukács é o aprofundamento da dialética entre necessidade e contingencia. A categoria do particular, defendida nesse livro, tem a capacidade de abraçar o mundo na sua inteireza, interna e externa.
Uma das maneiras da ciência burguesa refletir a realidade, segundo Lukács e o autor que se propõe a estudá-lo, é excluindo a importância da particularidade no método cientifico e isolando o singular de sua relação com o universal, assim, essa ciência vigente exclui o centro móvel que ordena a relação entre singular e universal. Um exemplo disso é a visão historiográfica predominante na contemporaneidade, que retira a centralidade da luta de classes do processo histórico e obscurece o proletariado como particularidade da sociedade moderna, particularidade esta que é de fundamental importância para o entendimento do processo sob o qual se ergue essa formação social, pois é por sua submissão que se garante a conservação do sistema de divisão social do trabalho já consolidado, que é o sistema capitalista.
Deribaldo dirá que “o reflexo artístico, ao criar suas refigurações da realidade, transforma o ser em si objetivo em um ser para nós de um mundo representado unicamente na individualidade da obra de arte” (SANTOS, 2017, p. 101). Desse modo o autor nos coloca que para Lukács, o par forma e conteúdo, opera no campo estético para uma distinção entre consciência e autoconsciência. O autor colocará que somente na esfera da estética a autoconsciência ganha um valor substantivo e que se expressa em dois sentidos, o primeiro é como um valor pessoal do objeto representado e depois como valor pessoal do modo de representação dessa realidade. Essas qualidades, em seu livro, são colocadas como o que despertam a autoconsciência, ela é aberta com uma retomada dos caminhos da humanidade percorridos, que aparecem por meio da rememoração, ou seja, pela “memoria”. Dirá:
Como memoria, ou seja, como “recordação” do caminho que a humanidade, as pessoas e as situações percorreram ou irão percorrer; das virtudes e vícios do mundo interno e externo dos homens que, por sua vez, dá o ponto de partida para o desdobramento dinâmico, para o seio da contraditoriedade dialética, no qual o gênero humano levantou-se ao que hoje é e ao que poderá vir a ser (SANTOS, 2017, p. 102).
A autoconsciência da humanidade encontra na arte um modo adequado e evoluído dignamente, essa autoconsciência para o autor é “o correto reflexo do real, que existe independentemente da consciência individual, a imersão do sujeito na realidade, é o pressuposto imprescindível e fundamental de toda autoconsciência da humanidade” (SANTOS, 2017, p. 104).
Deribaldo Santos abordar sinteticamente a importância da categoria da particularidade para Lukács, partindo da análise interna do livro Estética 1. Isso é feito com uma exposição bastante didática do debate teórico-metodológico, o que ilustra bem a diferença entre a elaboração artística e a análise científica da realidade. Assim, o autor demonstra que as categorias abordadas no âmbito da filosofia lukacsiana, tais como: o reflexo; cotidiano; divisão social do trabalho; o objeto como independente da consciência do sujeito; antropomorfização e desantropomorfização; hic et nunc (aqui e agora); imanência; diferenciação entre a arte e a religião; homem-inteiro e homem-inteiramente; forma e conteúdo; em suas relações umas com as outras, são de grande importância para a apreciação da especificidade da categoria de particularidade como mediadora na análise científica, promovendo, nessa esfera, a articulação entre singular e universal, e na esfera da arte servindo como força organizadora interna das obras individuais. Por fim, o estudioso traz a possibilidade de entendimento da articulação entre as três categorias de singular, particular e universal para a história da filosofia da estética.
Nota
2. Ver mais em: GREUEL, Marcelo da Veiga. Da “Teoria do Belo” à “Estética dos Sentidos” – Reflexões sobre Platão e Friedrich Schiller. In Anuário de Literatura 2, 1994. pp. 147-155.
Referências
CARLI, Ranieri. 4. O Particular como Categoria central da Estética. In CARLI, Ranieri. A estética de György Lukács e o Triunfo do Realismo na literatura. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012.
GREUEL, Marcelo da Veiga. Da “Teoria do Belo” à “Estética dos Sentidos” – Reflexões sobre Platão e Friedrich Schiller. In Anuário de Literatura 2, 1994. pp. 147-155.
HEGEL, G. W. F. I. Delimitações da Estética e Refutação de Algumas Objeções contra a Filosofia da Arte. In HEGEL, G. W. F. Curso de Estética I. Tradução de Marco Aurélio Werle. 2º ed. rev. 1. Reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.
LUKÁCS, Georg. V – O Particular como categoria central do Estético In. Introdução a Estética Marxista. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder 2º edição. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1978.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In Critica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. 3º edição. São Paulo: Boitempo, 2013.
SANTOS, Deribaldo. A particularidade na Estética de Lukács. 1º Edição. São Paulo: Instituto Lukács, 2017.
Edson Roberto de Oliveira Silva – Mestrando na Pós-Graduação em História da UNESP de Assis – SP. Atualmente é bolsista CAPES. E-mail: edoliviera89@gmail.com
SANTOS, Deribaldo. A particularidade na estética de Lukács. São Paulo: Instituto Lukács, 2017. Resenha de: SILVA, Edson Roberto de Oliveira. A particularidade como eixo central na estética de Lukács. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 21, p. 184-190, jan./jun., 2019.
Visões e discursos sobre o “estar doente”: os papéis sociais estabelecidos pelas instituições de saúde, no século XX e início do XXI / Albuquerque: Revista de História / 2019
A alteridade como patologia: os discursos médicos e seus usos políticos
O dossiê Visões e discursos sobre o “estar doente”: os papéis sociais estabelecidos pelas instituições de saúde, no século XX e início do XXI chega aos leitores, num momento em que vivemos uma pandemia que já causou milhares de mortes e que tem agravado, não só uma crise econômica mundial, mas também, a desigualdade social em diversos países, inclusive no Brasil. O isolamento social, medida preventiva adotada, traz consigo uma série de questões sobre a desigualdade social que, há muito, vem sendo silenciadas e negligenciadas. Ações simples, que são verbalizadas e repetidas (quase) como palavras de ordem nos diversos veículos de comunicação e redes sociais, #LaveAsMãos e #FiqueEmCasa, revelam que aspectos básicos, como a moradia e o acesso à rede de saneamento básico, ainda são um privilégio a que muitos não têm acesso. Em que pese a relevância das discussões que podem surgir desse evento e seus desdobramentos, é importante salientar sua importância para compreender melhor a sociedade em que vivemos e os debates aqui propostos.
Ao investigar histórica e historiograficamente as relações de poder que perpassam o adoecer e o curar, não se pode deixar de pensar qual é o papel social da Medicina, seja no início do século passado ou deste, com suas transformações e permanências. De outra parte, cabe também a pergunta: como o Estado lidou (e tem lidado) com as diversas demandas da área da saúde pública? Embora a comunidade médica tenha feito parte de um projeto civilizador para o Brasil – tornando patológicos comportamentos socialmente “indesejáveis” – baseado em mecanismos de normatização e disciplinarização dos indivíduos, nem sempre houve as condições necessárias para combater e debelar as epidemias. Quanto às instituições responsáveis por implementar as medidas profiláticas, o improviso foi, muitas vezes, o único recurso disponível para lidar com o despreparo das equipes auxiliares, a escassez de recursos, mas também com os “alienados”, os doentes e os mais pobres. O que não quer dizer, que a população não protestasse contra as medidas implementadas, muitas vezes, de forma impositiva e violenta, como no caso (emblemático) da Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1904.
Nota-se, então, como o discurso médico e das instituições sanitárias e de saúde foi empregado em diversas ocasiões (e epidemias), pelo Estado, para justificar o controle sobre os indivíduos. Roberto Machado, ao publicar A Danação da Norma, constrói uma trajetória das políticas de saúde no Brasil e pontua que é no século XIX que o saber médico investiu sobre as cidades e as dinâmicas sociais ali presentes. O século XX representa, por sua vez, o momento em que o saber médico institucionalizado, com o aval do Estado, passa a alcançar diversos espaços sociais, dialogando com discursos provenientes de outras áreas do conhecimento, tais como a Educação, a Engenharia, a Arquitetura, o campo do Direito, por exemplo. Com isso, os discursos sobre o estar doente ganharam sentidos políticos que auxiliaram na elaboração e execução desses projetos. Também ajudaram a transformar o saber médico e consolidar sua relevância em diversos grupos sociais.
Nas primeiras décadas do século XX, por exemplo, o Estado autoritário brasileiro, alicerçado em uma política coronelística, utilizou a medicina para estabelecer uma divisão social entre os que, teoricamente, conseguiam compreender as políticas de saúde e os que não teriam condições para isso. Os elementos que sustentaram esse discurso médico-político, que culminou em projetos sanitaristas violentos, foram baseados na Antropologia Criminal de Cesare Lombroso, que auxiliou na consolidação dos discursos racistas durante a primeira metade do século. Com base em suas teorias, foi possível judicializar uma série de grupos que, não por acaso, eram formados por negros e mestiços, justificando assim, um projeto de branqueamento da população (muito mais mestiça e negra do que com traços europeus) que estava em curso desde o final do século XIX. Houve, também, uma brutal medicalização dos indivíduos fora dos padrões de normalidade pretendidos, bem como dos espaços frequentados por eles.
Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, as relações entre as ciências e o discurso político se estreitam, ganhando uma nova dimensão com a Marcha para o Oeste. O projeto político de “civilizar” o sertão teve como intuito a mudança cultural de diversos indivíduos, legitimado por discursos excludentes por parte do Estado. No entanto, havia outras ações previstas dentro dessa agenda política. É neste contexto que se inserem as discussões apresentadas por Diego Moraes, no artigo O discurso eugenista como instrumento político na transição das Repúblicas: a institucionalização do “Perigo Amarelo” no âmbito da Constituinte de 1934. O autor discute como, naquele momento, houve não somente a medicalização da diferença, mas também o uso do discurso médico e científico como argumento jurídico para desqualificar imigrantes asiáticos. Alcir Lenharo, em A Sacralização da Política, reforça a existência dessa mentalidade ao afirmar que medicina, engenharia e educação foram as bases do processo político varguista. Ao longo de quinze anos de um governo autoritário, foi possível trazer à luz projetos de sanitarização que funcionaram muito mais como controle do que benefício para as populações.
Nos anos 50, tendo em vista o segundo governo de Getúlio Vargas e seu projeto de modernidade para o país, houve a continuidade do discurso baseado na necessidade de uma pátria saudável para alcançar o progresso tão desejado. Para tanto, era preciso unir a nação por meio de uma sociedade com saúde, disciplinada ou medicalizada. Parte desse debate está presente no artigo O desenvolvimento das Instituições Psiquiátricas no Rio Grande do Sul até 1950 – O que sabemos pelas pesquisas historiográficas, no qual Lisiane Ribas Cruz situa o estado da arte sobre o tema naquele período. Trata-se de uma contribuição relevante, uma vez que articula esse projeto nacional e seus mecanismos, ao contexto regional.
Na década de 1960, durante o regime militar, surgiram novas discussões sobre o papel dos profissionais de saúde, sinalizando algumas mudanças. No entanto, a invisibilidade social que algumas doenças provocavam, como no caso da tuberculose ou da lepra (cujo nome fora mudado para hanseníase, na década de 1960, por causa do estigma ligado a ela) e, mais recentemente, da AIDS, indicam algumas permanências. Um exemplo disso são as discussões em torno do isolamento de soropositivos, nos anos 80; os inúmeros hospitais psiquiátricos que recolheram milhares de pessoas, mesmo que em graus menos severos, escondendo-os da sociedade. Neste grupo, também se enquadram as relações entre crime, violência e loucura, em uma sociedade violenta e que precisa lidar com sujeitos duplamente marginalizados: são infratores e loucos. Essas reflexões estão presentes no artigo Condenados da Margem: Luta Antimanicomial e o Louco Infrator em Goiás, de Éder Mendes de Paula.
Em Os povos alto-xinguanos e o modelo assistencial em saúde operacionalizado em contextos de intermedicalidade: encontros de saberes, negociações e conflitos, Reginaldo Silva de Araújo apresenta novos elementos, ampliando essa discussão, do ponto de vista temático. Ao mesmo tempo, atualiza sua temporalidade: os anos 2000. Do ponto de vista metodológico, o artigo evidencia as aproximações entre as ciências humanas e o fazer historiográfico, de modo a contribuir para o enriquecimento das reflexões propostas neste dossiê. Além das questões ligadas à posse de terras, que tem resultado em conflitos violentos e genocidas, as comunidades indígenas sofrem com a falta de médicos, recursos físicos e de equipamentos para assistência médica. Principalmente, com a falta de preparo das equipes para lidar com as especificidades culturais dessas comunidades.
Mais recentemente, também tem sido discutida a eficácia do isolamento compulsório para usuários de drogas ilícitas, mas também de pessoas cujos comportamentos são socialmente “indesejáveis” e que, por isso, também são considerados patológicos. Assim, ainda hoje, buscase homogeneizar (por meio de um mecanismo que é perpassado pelo discurso médico, jurídico, geopolítico, entre outros), uma população que é, por princípio, constituída por comunidades tão diversas em suas características, sociabilidades, sistema de crenças e práticas. Em tempos de pandemia, de divulgação em massa de informações falsas e da reiterada desvalorização do conhecimento científico, inclusive das recomendações da Organização Mundial de Saúde, corre-se o risco de pensar que a história se repete, o que, sabemos, é uma armadilha. No entanto, cabe a nós observar como esse mecanismo discursivo se manifesta hoje, e qual seu papel dentro do projeto político neste início de século. Boa leitura!
Referências
LENHARO, Alcir. Sacralização da Política. Campinas: Papirus, 1986.
MACHADO, Roberto. A Danação da Norma. Medicina Social e Constituição da Psiquiatria no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1978.
Carla Lisboa Porto (Centro Universitário Sagrado Coração)
Éder Mendes de Paula (Universidade Federal de Jataí)
Organizadores
PORTO, Carla Lisboa; PAULA, Éder Mendes de. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.11, n.22, 2019. Acessar publicação original [DR]
Experiências Estéticas Contemporâneas / Albuquerque: Revista de História / 2019
Experiências Estéticas Contemporâneas / Albuquerque: Revista de História / 2019
A revelação da experiência estética não precisa de uma formulação utópica, porque as obras de arte alcançadas não prometem a satisfação de um requisito absoluto de significado, mas nosso enriquecimento cognitivo em um sentido amplo. Trata-se de experimentar esteticamente o presente precário de nossa liberdade finita, não seu futuro ilusório. Quem quer liberdade também deve querer as decepções da experiência. Portanto, o conhecimento estético não substitui o pensamento conceitual fracassado. As virtualidades da experiência estética são as de uma crítica à experiência curta, omitida, escassa, reprimida.
– Daniel Innerarity
O dossiê Experiências Estéticas Contemporâneas tem como propositura debater acerca das dimensões estéticas entre o século XIX e o século XX, especialmente a partir das expressões produzidas pelas linguagens artísticas (literatura, cinema e música) e suas respectivas performances.
Consideramos a estética como uma modalidade cognitiva legítima capaz de acessar a realidade a partir de verbos criativos como o sentir, querer e pensar, o que caracterizaria o processo compreensivo da realidade proposto por Dilthey em Vida Y Poesia (1945). A estética, como remonta Susan Buck-Morss (2012, p. 157), em sua etimologia carrega consigo a dimensão corpórea, sinestésica – trata-se da percepção pela via sensorial – não restrita somente a arte, beleza e verdade, como os modernos quiseram, mas na captação da realidade em sua natureza material e corpórea, enquanto uma forma de cognição da vida.
Assim, nesse dossiê, nós organizadores, quisemos angariar textos que trouxessem à tona o potencial político de captação compreensiva da experiência social e política da cultura, a partir de aspectos caros a estética como profundidade, aparência, forma, conteúdo e, sobretudo, as mediações elaboradas pelos efeitos teóricos e práticos da relação entre arte, cultura e sociedade. Especialmente em um contexto em que a arte e a cultura tem sido alvo de ataques políticos e a estética é apropriada pela política, o que tem proporcionado, para setores conservadores, um efeito de satisfação artística no campo político e, por conseguinte, fazendo com que a arte busque empreender a politização de suas performances para enfrentar esses efeitos autoritários.
Esse “cogito” foi bem localizado por Walter Benjamin, no século XX, acerca dessas inserções da estética entre as práticas políticas do fascismo e os anseios do comunismo diante da obra de arte e sua reprodutibilidade técnica. Talvez, a esperança de Benjamin, em tal constatação, estivesse na relação ética entre arte e política, o que configura uma tarefa árdua para a estética na contemporaneidade que, segundo Buck-Morss, consiste em
desfazer a alienação do sensório corporal, restaurar a força instintiva dos sentidos corporais humanos em prol da autopreservação da humanidade, e fazê-lo não evitando as novas tecnologias, mas perpassando-as. (BUCK-MORSS, 2012, p. 156).
Dessa feita, o nosso desejo se faz quase apologético acerca da estética, no sentido de que devemos pensar esteticamente e, sobretudo, investigar as produções culturais enquanto calcadas e atravessadas pela realidade, não como “elucubrações supralunares”. No que se refere a dimensão estética da arte, concordamos com os pressupostos de Jauss e a estética da recepção, apontados por Daniel Innerarity, em que a “estética acentua de maneira particular a historicidade e o caráter público da arte, ao situar em sua centralidade o sujeito que percebe e o contexto em que elas são recebidas” (INNERARITY, 2002, p. 09). Interessa-nos aqui os processos históricos de significação, de atribuição de sentido e, como a estética trata do ordenamento cognitivo das possibilidades de estranhamento das formas de perceber a vida, bem como “daquelas que já foram vivas em alguma vez, ordenando-as de novo” (LUCKÁCS apud MACHADO, 2004, p. 12). Trata-se de pensar a forma (a vida dotada de sentido ético e estético), enquanto “absoluto em relação à caótica vida cotidiana” (MACHADO, 2004, p. 19).
As experiências estéticas são um campo aberto de experimentações de liberdade e fracassos capazes de, historicamente, renovarem e produzirem diversos sentidos às nossas formas de perceber a realidade em suas múltiplas interfaces. Nesse sentido, como aponta Daniel Innerarity, na introdução de Pequena apologia de la experiência estética, de Jauss:
A obra de arte alcançada oferece, aqui e agora, possibilidades de um encontro libertador com a própria experiência. Essa experiência reflexiva transgride as convenções da ação cotidiana, mas não para negar, em princípio, seu escopo e suas limitações, mas medir-se de forma modificável com as possibilidades e limites dessa prática. (INNERARITY, 2002, p. 24)
Diante desse propósito de pensar as experiências estéticas enquanto possibilidades abertas de atribuição e transformação de sentido ao longo do tempo, o presente dossiê é formado por seis artigos de pesquisadores que, de alguma maneira, lidam com objetos estéticos em sua dimensão histórica. O primeiro bloco se destina a experimentar análises acerca da relação entre estética e literatura, lidando com proposições estéticas em obras de Paul Celan, Charles Baudelaire, Francisco Candido Xavier e Nelson Rodrigues. O segundo bloco se incumbe de investigar as relações estéticas entre a crítica, história e cinema. O terceiro bloco se encarrega de pensar a estética musical.
Em A Neve das Palavras, texto que abre o dossiê e seu respectivo primeiro bloco, Maria João Cantinho trata da vida do poeta, romeno radicado na França, Paul Celan e, por conseguinte, analisa como os protocolos e referenciais de leitura dele desenvolveram uma “simultaneidade” estética entre política e literatura que, de certa forma, reverberaram em sua poesia. Para Celan, o poema, em sua dimensão estética encarnada na linguagem, é a forma em que as possibilidades “são um caminho: encaminham-se para um destino para um lugar aberto, para um tu intocável” (CELAN, 1996, p. 34). Nessa esteira da poesia, Marcos Antonio de Menezes, em Dandy: Uma criação das Metrópoles novecentistas, se acerca de compreender como se constrói a figura do Dândi, como aquele que desnuda e experimenta a vida parisiense em seus ápices de modernidade, no século XIX, sob as letras da escrita de Charles Baudelaire.
Ainda sobre os aspectos da literatura, mas sob a égide dos processos de recepção e circulação, Ana Lorym Soares, em Circulação E Recepção Da Literatura Psicografada A Partir Da Coleção A Vida No Mundo Espiritual (1944-1968), De Chico Xavier, mapeia e interpreta dentro de uma comunidade específica de leitores qual o percurso de significação que os romances psicografados por Chico Xavier e editados pela Federação Espírita Brasileira (FEB), na coleção A vida no mundo espiritual (1944-1968), percorreram historicamente. Isso, a partir das nuances do romance, história e ficção diante de determinado público leitor.
Em O Verdadeiro Casamento Rodriguiano: Apontamentos Sobre Amor E Desejo No Romance O Casamento (1966) De Nelson Rodrigues, Lays da Cruz Capelozi empreende notas analíticas sobre o único romance escrito por Rodrigues, a fim de abordar temas como amor e desejo, a partir da inferência da moral religiosa cristã quanto ao funcionamento do matrimônio. O livro analisado pela autora foi lançado em 1966, e figurava para Nelson Rodrigues como uma defesa ao casamento, mas para os censores tratou-se de uma crítica à família burguesa. Assim, percebe-se que os processos de significações que extrapolam o desejo do autor ao longo do tempo.
O segundo bloco se restringe ao artigo O Clássico E O Moderno: Eisenstein E Orson Welles Na Pena De Paulo Emílio Sales Gomes, de Rafael Morato Zanatto, que trata como as categorias de clássico e moderno são empreendidas pelo crítico e historiador Paulo Emílio Sales Gomes acerca do fenômeno cinematográfico, especialmente a partir de sua profícua atenção às produções estéticas do cineasta russo Serguei Eisenstein e do estadunidense Orson Welles. Nesse ensejo, Zanatto aponta que Paulo Emílio forjou um método próprio, capaz de condensar no âmbito da crítica e da história um procedimento que concilia o estudo da linguagem, do estilo e da expressão social das produções cinematográficas.
O último bloco conta com o texto que encerra o dossiê, Drogas, Festivais E Rock Na Imprensa Brasileira E Portuguesa – 1970 / 1975, de Paulo Gustavo da Encarnação. O autor articula música, eventos musicais – os festivais – e as drogas para compreender como esses elementos se tornaram um fenômeno de escala mundial e, conseguintemente, atraíram a atenção das imprensas brasileira e portuguesa. Dessa maneira, analisa como os veículos de imprensa abordaram, em suas respectivas páginas, a relação entre drogas, festivais e rock no período compreendido entre 1970 a 1975. Não obstante, apresenta a dimensão social, cultural e política dos festivais roqueiros em tempos de ditaduras, tanto em terras brasileiras quanto portuguesas.
Com a publicação do dossiê Experiências Estéticas Contemporâneas, a albuquerque: revista de história cumpre, mais uma vez, a sua proposta de divulgar os trabalhos de pesquisadores nacionais e estrangeiros, estabelecendo com os mesmos um diálogo de caráter interdisciplinar que configura o propósito do Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais da UFMS / CPAq que, inclusive, propõe em suas linhas de pesquisa reflexões sobre a estética acerca dos marcadores da diferença, identidade, etc.
Aquidauana, dezembro de 2019
Referências
BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter Benjamin. In: BENJAMIN, Walter; SCHÖTTKER, Detlev; BUCK-MORSS, Susan. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
CELAN, Paul. Arte poética: O Meridiano e outros textos. Lisboa: Cotovia, 1996.
DILTHEY, Wilhelm. Vida y poesia. México: Fundo de Cultura Econômica, 1945.
INNERARITY, Daniel. Introdución. In: JAUSS, Hans Robert. Pequeña apología de la experiencia estética. Barcelona: Ediciones Paidós, 2002.
MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. As formas e a vida: Estética e ética no jovem Luckács (1910- 1918). São Paulo: Editora UNESP, 2004.
Marcos Antonio de Menezes (UFJ)
Rafael Morato Zanatto (Doutor pela Unesp-Assis)
Robson Pereira da Silva (Doutorando em História pelo PPGHI / UFU)
Organizadores
MENEZES, Marcos Antonio de; ZANATTO, Rafael Morato; SILVA, Robson Pereira da. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.11, n.21, 2019. Acessar publicação original [DR]
Africanidades Transatlânticas | Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo | 2018
Africanidades Transatlânticas Cultura, história e memórias afro-brasileiras a partir do Espírito Santo
O presente número da Revista do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo é uma edição especial que tem por objetivo lançar o projeto de pesquisa “Africanidades Transatlânticas: cultura, história e memórias afro-brasileiras a partir do Espírito Santo”, a ser desenvolvido entre agosto de 2018 e dezembro de 2019. Este é um projeto institucional envolvendo parcerias entre a Secretaria de Estado da Cultura (Secult), o própro Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES) e a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Ele está sob a minha coordenação e tem como principal equipe o antropólogo Sandro José da Silva e o historiador Flávio Gomes. Leia Mais
América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções / Albuquerque: Revista de História / 2018
É com satisfação que apresentamos ao público mais um número de Albuquerque: Revista de História. Em sua vigésima edição a revista trás onze artigos produzidos por professores e pesquisadores brasileiros e argentinos, que compõem o dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções, correspondente ao resultado, ainda que parcial, do projeto “Associados de Pós-Graduações Brasil-Argentina (CAFB-BA)”.
Desenvolvido entre os anos de 2014 e 2017, sob avaliação e financiamento, no Brasil, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e, no caso argentino, pela Secretaria de Políticas Universitárias (SPU), o projeto “Associados de Pós-Graduações Brasil-Argentina (CAFB-BA)”, coordenado na Argentina e no Brasil, respectivamente, pelos professores Sebastián Valverde e Marco Aurélio Machado de Oliveira, buscou interligar, por meio do intercâmbio de pesquisadores desses dois países, o Programa de Pós Graduação em nível de Mestrado em Estudos de Fronteiriços (PPGMEF) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Instituição de Ensino Superior (IES) na Região Centro-Oeste do Brasil, e da Escola de Pós-graduação de Antropologia e Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (FFyL-UBA), Cidade Autônoma de Buenos Aires, República Argentina.
O aprofundamento da análise desse projeto aparece no artigo que abre o dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções, intitulado “Experiencias de intercambio entre Brasil y Argentina: contexto socioeconómico, cientificismo y abordajes críticos”, de autoria de Ivana Petz, pesquisadora ligada ao Consejo Nacional de investigaciones Científicas y Técnicas-CONICET / Universidad de Buenos Aires, à Facultad de Filosofía y Letras, ao Instituto de Ciencias Antropológicas e à Secretaría de Extensión Universitaria y Bienestar Estudiantil; María Cecilia Scaglia, professora do Instituto de Ciencias Antropológicas e integrante da Secretaría de Extensión Universitaria y Bienestar Estudiantil da Universidad de Buenos Aires; e Sebastián Valverde, pesquisador do Consejo Nacional de investigaciones Científicas y Técnicas-CONICET / Universidad de Buenos Aires e profesor do Instituto de Ciencias Antropológicas da Universidad Nacional de Luján, Departamento de Ciencias Sociales.
Frisando as diferenças de perfil da Universidade de Buenos Aires (UBA), historicamente mais acadêmico, e do Mestrado em Estudos Frnteiriços (MEF), de caráter profissionalizante, o artigo faz referências às experiências desenvolvidas a partir de pesquisas articuladas com transferência e / ou extensão, como as ações concretizadas no Centro de Inovação e Desenvolvimento para Ação Comunitária (CIDAC) – na zona sul da Cidade de Buenos Aires – ou por meio dos “Projetos de Desenvolvimento Tecnológico e Social (PDTS)”, em contraponto com a análise dos pontos comuns e as diferenças como o MEF-UFMS atua com as instituições que trabalham com os imigrantes na região de fronteira do estado do Mato Grosso do Sul (MS).
O dossiê prossegue com o artigo “Aportes a los estudios de frontera a partir de la valorizacion inmobiliaria reciente el caso del norte grande argentino”, no qual o geógrafo Sergio Iván Braticevic, vinculado ao Instituto Patagónico en Estudios en Humanidades y Ciencias Sociales da Universidade de Buenos Aires e pesquisador do CONICET-UNCo, apresenta os resultados de uma ampla pesquisa sobre o recente processo de alta dos preços da terra no norte argentino, impulsionado, de acordo com o autor, por fatores econômicos e institucionais, entre os quais destacam-se a expansão da fronteira agropecuária, as atividades turísticas e a especulação imobiliária.
A questão agrária na Argentina também é abordada pelas pesquisadoras do CONICET-UNCo Verónica Trpin e María Daniela Rodríguez, no artigo “Transformaciones territoriales y desigualdades en el norte de la Patagonia: extractivismo y conflictos en áreas agrarias y turísticas”. A partir de trabalho de campo realizado no norte da Patagônia, especificamente nos vales irrigados dos rios Negro e Neuquén e nas zonas de estepe e cordilheira da província de Neuquén, as autoras analisam as transformações territoriais em curso nas áreas agrárias e turísticas dessa região, observando que as dinâmicas dessas transformações se materializam na desapropriação de bens comuns como a terra e a água.
O bloco de três artigos seguintes articula o problema agrário face à questão indígena no Brasil e na Argentina.
No artigo intitulado “Capitalismo dependente empobrecimento indígena no Brasil rural”, o professor e pesquisador da Universidade de Brasília Cristhian Teófilo da Silva parte da premissa de que estudos sobre as formas de desigualdade e pobreza que afetam os povos indígenas contemporâneos devem estar fundamentados em uma perspectiva macro-histórica e micro-sociológica, a fim de que se possa construir uma definição de “pobreza indígena” sensível a sua diversidade e complexidade de manifestações. O autor apóia-se em contribuições etnográficas e denúncias de violação dos direitos humanos dos povos indígenas nas regiões da fronteira Sul do Brasil, bem como na conciliação dos debates sobre o capitalismo dependente e os processos socioeconômicos de integração dos povos indígenas a sistemas coloniais e capitalistas específicos, para demonstrar que tais processos não se desenrolaram de modo idêntico em cada lugar e tampouco de forma inalterada ao longo do tempo.
Em “Despojos de las poblaciones mapuches por parte del Estado Argentino. La frontera bonaerense y el caso de la comunidad mapuche Calfu Lafken de Carhué”, a pesquisadora Sofia Varisco investiga os processos de desapropriação territorial sofridos pelas comunidades indígenas mapuches através das diversas campanhas militares no norte da Patagônia, as quais produziram migrações forçadas e deslocamento de famílias para diferentes regiões do país. Focando sua análise na comunidade Mapuche Calfu Lafken da localidade turística de Carhué, situada no sudoeste da Província de Buenos Aires, a autora destaca de que forma o constante avanço do Estado sobre essa região, definida por alguns analistas argentinos como a “última fronteira bonaerense”, privou a população nativa de seus territórios, o que não só dificultou a comprovação da ocupação ancestral como, em muitos aspectos, tornou invisível a presença de indígenas na referida região.
A problemática da terra articulada à questão indígena na Argentina é retomada no artigo intitulado “Configuraciones espaciales a partir de la intervención estatal en territorios indigenas de Chaco” , no qual Malena Inés Castilla analisa o papel das políticas desenvolvidas pelos organismos governamentais na Província argentina do Chaco, as quais implementam e constroem fronteiras que determinam de forma prejudicial as comunidades étnicas locais. Para tanto, a autora concentra-se em explicar o contexto em que a expansão da fronteira agrária do Chaco foi consolidada durante a década de 1990, e como as ações posteriores das organizações governamentais impactaram as transformações socioeconômicas, territoriais e culturais naquela região.
Sasha Camila Cherñavsky, da Faculdade de Sociologia da Universidade de Buenos Aires, traz sua contribuição ao dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções com uma reflexão sobre a Educação Intercultural Bilíngue (EIB). Partindo do pressuposto de que a Educação Intercultural Bilíngue pode ser localizada no marco do paradigma epistemológico do “Sul” apoiado numa prática descolonizadora, no artigo “La Educación Intercultural Bilingue como aporte a un pensamiento heterárquico” a autora destaca a EIB como uma modalidade educativa, que parte de uma lógica oposta àquela aplicada pela matriz colonial moderna, de caráter cada vez mais discriminador e desigual. Enquanto modalidade educativa marginalizada pela educação tradicional, a Educação Intercultural Bilíngue tem sua gênese, como observa Sasha Cherñavsky a partir de pesquisa realizada com a comunidade Lma Iacia Qom radicada em San Pedro (Província de Missiones), nas demandas e ações levadas a cabo pelos próprios indígenas, com o objetivo de difundir sua cultura ancestral, de buscar o apoio às demandas territoriais, à luta contra a discriminação e à violação de outros direitos, em busca de uma sociedade inter e multicultural.
A questão urbana tem lugar, no presente dossiê, no artigo “Lugares de ciudadanía, experiencias de ciudadanización: investigaciones etnográficas en relación con el derecho a la vivienda en la Ciudad de Buenos Aires”, escrito por Maria Florencia Girola e Maria Belén Garibotti, ambas pesquisadoras vinculadas ao CONICET e à Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Nesse artigo as autoras analisam diferentes experiências de “cidadanização” registradas em duas áreas urbano-habitacionais da cidade de Buenos Aires, que se distinguem, entre outros aspectos, por seus contextos históricos de origem e por suas tipologias de construção e modalidades de povoamento: o Conjunto Urbano Soldati, um mega-conjunto residencial localizado no bairro de Vila Soldati proveniente de um processo de produção estatal de habitação social, e o Assentamento La Carbonilla, situado no bairro portenho de La Paternal, resultante de um processo popular de produção social do habitat. Recorrendo a um trabalho de sistematização de fontes e a uma pesquisa de campo de caráter etnográfico, construida em torno de atividades de observação / participação e entrevistas com moradores dos dois espaços urbanos-habitacionais citados, Maria Florencia Girola e Maria Belén Garibotti se dispõem, através do estudo das práticas e experiências ‘nativas’, de materialidades e significados concretos envolvendo sujeitos localizados, a avançar na análise comparativa de processos de conformação de cidadanias, ligados à aquisição do direito à moradia.
Em “Los caminos de la institucionalización de la economía popular en contextos neoliberales: aportes en clave de procesos hegemônicos”, Guadalupe Hindi e Matias Larsen, ambos da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, discutem a problemática da economia popular na Argentina como um processo de institucionalização, que se insere em um processo hegemônico neoliberal. Para tanto os autores dividem o texto em dois momentos tratando, primeiramente, dos eventos que se referem ao processo de institucionalização da economia popular, em particular o que diz respeito à sanção e regulamentação da Lei de Emergência Social e dos debates gerados em torno dela para, a partir daí, revisar as formas pelas quais se dá a renovação de um determinado debate em termos da “autonomia” das demandas populares em sua conexão com o Estado. Em contraposição a isso, os autores procuram revisar os eventos posteriores à regulamentação da Lei, com o objetivo de propor marcos de entendimento que localizem no centro da análise menos o consenso do que os sentidos que estão implicados, tanto nas ações do Estado como dos sujeitos organizados.
Os dois artigos finais foram produzidos por professores e pesquisadores brasileiros vinculados a três instituições públicas de ensino superior de Mato Grosso do Sul (UFMS. UFGD e UEMS), todos eles direta ou indiretamente ligados ao Programa de Mestrado em Estudos Fronteiriços, sediado no campus de Corumbá da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Neles a questão da migração na América Latina e os impactos ambientais na fronteira brasileira estão no centro das discussões.
Em “América Latina racionalizada na nova Lei de Migração (Lei nº 13.455 / 17: discursos e legitimidade”, Marco Aurélio Machado de Oliveira, Fábio Machado da Silva e Davi Lopes Campos trazem algumas reflexões relacionadas à imigração na América Latina, nos aspectos envolvendo os discursos e a legitimidade. Partindo da premissa de que é possível pensar a questão migratória nesse espaço dentro de um relacionamento legítimo e discursivo, os autores procuram apresentar algumas discussões teóricas sobre como são desenvolvidos os diálogos discursivos entre os atingidos pela nova lei de migração (lei nº 13.445 / 17), conferindo ou não legitimidade aos atores envolvidos. Dessa forma objetivam analisar criticamente o aspecto prático no discurso dos operadores do direito referente à migração, propondo um debate de como o direito pode limitar ou ampliar a questão social, histórica e cultural da migração na atualidade.
O dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções é encerrado com o artigo intitulado “Os impactos ambientais da IIRSA-COSIPLAN no Arco Central da fronteira brasileira”, escrito por Camilo Pereira Carneiro, Felipe Pereira Matoso e Katucy Santos. Destacando que o processo de integração sul-americano, que teve início no final do século XX, possibilitou a emergência de iniciativas de aproximação entre os países do subcontinente, com destaque para o MERCOSUL, a UNASUL e a IIRSA-COSIPLAN, os autores propõem uma análise, a partir das Relações Internacionais, dos impactos socioambientais da IIRSA-COSIPLAN no Arco Central da fronteira brasileira. A análise dessa iniciativa em particular justifica-se, segundo os autores, em razão da mesma ter gerado um importante impacto, materializado de modo especial em zonas de fronteira, ainda que os projetos de infraestrutura implementados se caracterizem pela falta de participação das comunidades locais, e a inobservância dos aspectos socioambientais quando da execução das obras tenha efeitos negativos nas esferas ambiental, social, econômica e cultural.
Com a publicação do dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções Albuquerque: Revista de História cumpre mais uma vez sua proposta de divulgar os trabalhos de pesquisadores nacionais e estrangeiros, estabelecendo com os mesmos um diálogo de caráter inter e transdiscipinar.
Aquidauana, verão de 2019.
Sebastián Valverde
Marco Aurélio Machado de Oliveira
Carlos Martins Junior
VALVERDE, Sebastián; OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de; MARTINS JUNIOR, Carlos. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.10, n.20, 2018. Acessar publicação original [DR]
Direitos Humanos dos Pacientes – ALBUQUERQUE (TES)
ALBUQUERQUE, Aline. Direitos Humanos dos Pacientes. Curitiba: Juruá Editora, 2016. 288p. Resenha de MALUF, Fabiano. Dignidade e respeito aos pacientes: o olhar dos Direitos Humanos. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.16, n.2, 2018.
Em tempos de judicialização da saúde, o livro Direitos humanos dos pacientes, de Aline Albuquerque, apresenta extenso arcabouço teórico dos direitos humanos e agrega importantes elementos à promoção e à defesa dos direitos dos pacientes. A obra tem como objetivo principal conjugar os conceitos dos direitos humanos ao âmbito dos cuidados em saúde dos pacientes tendo como base a normativa internacional sobre a temática.
O livro é dividido em três partes. A primeira, Aspectos gerais dos direitos humanos dos pacientes , é composta por dois capítulos. No primeiro capítulo, observa-se o cuidado em delimitar os conceitos de direitos humanos e de paciente. Parte da premissa de que os direitos humanos existem para concretizar a dignidade humana, de modo que todos os seres humanos, sem nenhuma distinção, possam desenvolver suas capacidades pessoais.
Aborda também o Sistema de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, sistemas aos quais se vincula o Estado brasileiro; e inclui o Sistema Europeu de Direitos Humanos por possuir este vasta jurisprudência no campo dos direitos humanos demarcando, dessa forma, as obrigações legais dos Estados contidas nesses três sistemas.
Define a tipologia obrigacional na qual os Estados têm as seguintes obrigações de direitos humanos: obrigações de respeitar, de proteger e de realizar – razão pela qual a falha em cumprir uma dessas obrigações acarreta séria violação dos direitos humanos.
Com relação à conceituação de ‘paciente’, deixa claro que o termo carrega dupla condição – de vulnerabilidade e de centralidade no processo terapêutico – e acolhe seu uso por ser utilizado pelos movimentos reivindicatórios dos direitos humanos; pela condição de vulnerabilidade expressada pelo termo e pela relação humana existente nos cuidados em saúde em detrimento aos termos ‘usuários’ e ‘consumidores’.
O segundo capítulo trata da teoria e dos princípios dos direitos humanos dos pacientes. Faz um resgate do panorama dos movimentos, organizações de pacientes e legislações acerca dos direitos dos pacientes, iniciando-se pelos Estados Unidos, passando pela Europa até chegar ao Brasil.
Destaca, ainda, a distinção entre o referencial dos Direitos Humanos dos Pacientes e as normas de direitos dos pacientes que, a despeito de se entrelaçarem, não são semelhantes. Os Direitos Humanos dos Pacientes derivam da dignidade humana inerente a todo ser humano, previstos em normas jurídicas de caráter vinculante, já as normas de direitos dos pacientes centram-se na perspectiva individualista do paciente sob bases consumeristas, dispostas em declarações, sem qualquer obrigatoriedade jurídica. Ressalta que o reconhecimento dos Direitos Humanos dos Profissionais de Saúde reverbera em benefício dos pacientes e contribui para disseminação de uma cultura de direitos humanos nos ambientes de cuidados em saúde.
Apresenta os pontos de convergência entre a Bioética e os Direitos Humanos dos Pacientes, porém reitera que ambos referenciais se expressam por meio de distintas linguagens e objetivos diferenciados, “a Bioética tem o escopo de refletir e prescrever moralmente, e o dos Direitos Humanos dos Pacientes, o de estabelecer obrigações juridicamente vinculantes aos atores governamentais com vistas à proteção dos pacientes” (p. 68). Evidencia os pontos de distanciamentos dos referenciais da Humanização da Atenção à Saúde notadamente em função da linguagem empregada, de cunho moral e motivacional, e do não reconhecimento do papel intransferível das autoridades estatais em prover condições dignas de cuidados em saúde para pacientes e de trabalho para os profissionais de saúde.
Nesse sentido, a obra traz à tona a discussão sobre a Abordagem Baseada nos Direitos Humanos aplicada à saúde ter como foco políticas e programas de saúde distantes da perspectiva do paciente. Assim, propõe uma inflexão no campo da bioética com o intuito de adotar uma perspectiva inclusiva, que recusa uma acepção atomista do indivíduo, ou seja, defende um conteúdo mínimo basilar do princípio da dignidade humana: “o de que cada ser humano possui um valor intrínseco que deve ser respeitado” (p. 77).
Albuquerque finaliza o capítulo abordando os princípios dos Direitos Humanos dos Pacientes: o Princípio do Cuidado Centrado no Paciente, notadamente o direito ao respeito pela vida privada e o direito à informação; o Princípio da Dignidade Humana que, apesar de polissêmico e complexo, assinala o papel fundamental para sua materialização na esfera dos cuidados em saúde dos pacientes; o Princípio da Autonomia Relacional, que enfatiza a interdependência do paciente com o meio relacional que o circunda, e o Princípio da Responsabilidade dos Pacientes, que corrobora que ao compartilhar informações e concorrer para a construção de seu plano terapêutico, o paciente reparte a responsabilidade pelo tratamento escolhido.
A segunda parte do livro, denominada “O conteúdo dos Direitos Humanos dos Pacientes”, compreende nove capítulos nos quais são tratados em profundidade os conteúdos de sete direitos humanos dos pacientes (do capítulo 3 ao 9): direito à vida; direito a não ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; direito à liberdade e segurança pessoal; direito ao respeito à vida privada; direito à informação; direito de não ser discriminado; e direito à saúde, todos detalhados posteriormente à apresentação da metodologia de levantamento e de desenvolvimento da jurisprudência internacional adotada (capítulos 1 e 2).
A abordagem dos direitos delimita-se a três aspectos: uma apresentação do assunto para melhor situar o leitor; as principais conexões entre o tema e o direito em análise e a exposição de casos ou relatórios sobre o tema. Busca-se extrair de cada direito humano outros, mais específicos, destinados a serem aplicados na esfera dos cuidados em saúde. O que se tem como maior contribuição do capítulo é a demonstração que “determinados direitos comumente atribuídos aos pacientes derivam de normas de direitos humanos e que a jurisprudência internacional em matéria de direitos humanos vem aplicando dispositivos de tal natureza com vistas a proteger o paciente” (p. 180).
A parte 3, intitulada “Aplicação dos direitos humanos dos pacientes”, defende a importância da figura do Agente do Paciente em seus diferentes contextos e condições específicas; ressalta a experiência normativa do Reino Unido, notadamente o sistema mais avançado em termos de direitos humanos dos pacientes e apresenta as normas brasileiras sobre os direitos dos pacientes sob a perspectiva dos direitos humanos, guardando especial atenção às legislações existentes em seis estados brasileiros.
Encerra o capítulo apresentando as justificativas para uma proposta de lei brasileira sobre os direitos dos pacientes sob a perspectiva dos direitos humanos, devido ao fato de não existirem políticas governamentais voltadas para a concretização de tais direitos e do vazio legislativo que concorre para a propagação de ações violadoras dos direitos humanos dos pacientes.
Nesse sentido, é oportuno ressaltar o Projeto de Lei nº 5559/16, em tramitação na Câmara dos Deputados, ao considerar que é dever do Estado zelar pela proteção das pessoas na condição de pacientes, adotar legislação condizente com sua situação específica de vulnerabilidade e que prevê os direitos dos pacientes com base nos documentos internacionais de direitos humanos e de bioética (SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA, 2017).
De modo geral, percebe-se que injustiças e tratamentos desumanos podem ocorrer mais frequentemente em localidades onde não se reconhecem os direitos humanos dos pacientes no discurso político e em legislações. Assim, é de fundamental importância a necessidade de se ter direitos que assegurem a oportunidade e a segurança de persegui-los e reivindicá-los.
De fácil leitura e compreensão, a obra convida os leitores a uma reflexão crítica ao lançar luz sobre a temática, incipiente no país, e contribuir para fortalecer, no Brasil, uma nova perspectiva, a da cultura dos direitos dos pacientes no âmbito dos cuidados em saúde. Desse modo, ser possuidor de direitos numa sociedade que assegura a vigência e a concretização dos direitos humanos dos pacientes é ao mesmo tempo uma fonte de proteção pessoal e uma fonte de respeito à dignidade humana.
Referências
SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA. Carta de Recife. Moção de apoio ao Projeto de Lei nº 5559/16 – Estatuto dos Direitos do Paciente. XII Congresso Brasileiro de Bioética. VI Congresso de Bioética Clínica. Recife, 28 de setembro de 2017. Disponível em: < http://www.sbbioetica.org.br/uploads/repositorio/2017_11_01/CARTA-DE-RECIFE.pdf> . Acesso em: 16 de março de 2018. [ Links ]
Fabiano Maluf – Universidade de Brasília , Departamento de Saúde Coletiva , Brasília , Distrito Federal , Brasil. E-mail: maluffabiano@gmail.com >
[MLPDB]
A ditadura espelhada: conservadorismo e crítica na memória didática dos anos de chumbo
Alípio da Silva Leme Filho – Mestre em Educação pela Universidade Nove de Julho. Professor Titular de Cargo da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e Coordenador na Escola Estadual Reverendo José Borges dos Santos Júnior. E-mail: alipio.filho@educacao.sp.gov.br
MAFRA, Janson Ferreira. A ditadura espelhada: conservadorismo e crítica na memória didática dos anos de chumbo. São Paulo: BT Acadêmica/Brasília: Liber Livro, 2014. Resenha de: LEME FILHO, Alípio da Silva. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 9, n. 18, p. 225-228, jul./dez., 2017.
Jamaxi | UFAC/ANPUH-AC | 2017
Jamaxi: Revista de História e Humanidades ([Rio Branco], 2017-) é um periódico eletrônico, semestral, editado sob a responsabilidade da área de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre e da Associação Nacional de História – ANPUH/Seção Acre, sem fins lucrativos, com o objetivo de propiciar o intercâmbio, circulação e difusão de estudos e pesquisas nas áreas de História e Ciências Humanas e Sociais.
Tem como objetivo mobilizar e envolver pesquisadores, professores e estudantes de pós-graduação de universidades dessa macro região, bem como manter relações com as experiências de professores da educação básica e de movimentos sociais das florestas e cidades amazônico-andinas.
As contribuições, na forma de artigos, entrevistas, ensaios e resenhas, poderão ser livres ou vinculadas a dossiês temáticos organizados por profissionais dos cursos de História e outras instituições.
Fatos da história naval – ALBUQUERQUE; FONSECA e SILVA (MB-P)
ALBUQUERQUE, Antônio Luiz Porto; FONSECA e SILVA, Léo Fonseca. Fatos da história naval. 2.ed. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 2006. 184p. Resenha de: [Autoria não identificada]. A importância do poder naval no curso da história. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.
A importância do poder naval no curso da história Em Fatos da História Naval, os autores afirmam que “(…) no passado o uso correto do mar – incluindo o emprego eficaz do poder naval – determinou a prosperidade de nações”; permitindo, assim, um estudo mais profundo das atividades marítimas no curso da história, demonstrando a importância dessas atividades no desenvolvimento e na manutenção da soberania das civilizações.
Nos três primeiros capítulos é traçada uma narrativa da utilização dos mares e rios pelos povos da antiguidade, fosse para o comércio ou para o ataque e logística durante os combates. Passa pela utilização do mar Mediterrâneo pelos povos ocidentais, até a navegação pelo oceano Atlântico, iniciando as grandes navegações; demonstrando o processo de evolução das embarcações, a busca por novas fontes de riquezas, e a alternância no domínio dos mares, pois, o fato de Portugal ter sido o precursor nas grandes navegações, não garantiu a sua hegemonia permanente nas novas rotas comerciais e colônias conquistadas, apontando, assim, a importância do poder naval, que é parte do poder marítimo, na consecução e manutenção dos objetivos e da soberania dos estados.
Nos quatro últimos capítulos, verifica-se que países, com poder militar tradicionalmente terrestre, pode alcançar um excelente poderio naval. A França, por exemplo, combateu, embora sem sucesso, com a Inglaterra, potência tradicionalmente marítima, na “(…) Batalha de Trafalgar, em 1805, a mais célebre batalha naval da marinha de velas, quando a Inglaterra derrotou, no mar, as pretensões de Napoleão I”. Aborda a Revolução Industrial, mencionando a utilização de máquinas a vapor na propulsão dos navios, a criação de encouraçados com canhões cada vez mais potentes, o “(…) advento do submarino. Surgido já na Guerra da Revolução Americana (1776-1783)”, e usado nas duas Grandes Guerras Mundiais; evidenciando, assim, a constante busca por inovações e suas aplicações nos meios navais, como posteriormente, o surgimento do porta aviões, do submarino nuclear, posicionando as nações em patamares diferentes. Cita o Brasil, com seu extenso litoral, apontando o surgimento da sua esquadra, a fim de consolidar a proclamação da independência por D. Pedro I, em 1822, comandada por oficiais ingleses, como “(…) Cochrane, assistido por outros oficiais oriundos da Royal Navy, como Taylor e Grenfell.” Destaca a utilização de navios a vapor e encouraçados na Guerra do Paraguai, a participação nas duas Guerras Mundiais, o teatro de operações navais; demonstrando a necessidade de adequação dos meios para cada momento dos conflitos, a importância do poder naval no desenrolar dos fatos, a renovação dos meios navais no pós-guerra e o incentivo ao desenvolvimento da indústria naval.
A obra busca transmitir ao leitor a importância do poder naval nos conflitos ao longo da história da humanidade; que se faz necessário um desenvolvimento constante do país, e em especial, dos meios navais; que o fato de o Brasil possuir um litoral com cerca de 7.000 km, há de possuir os meios navais necessários para dissuadir qualquer intento contra a sua soberania. Sendo assim, Fatos da História Naval cumpre um papel, não apenas informativo, mas esclarecedor e incentivador do desenvolvimento e manutenção do poder naval, disponibilizando as informações necessárias para forjar uma consciência marítima nos cidadãos desta nação, com grande potencial, que é o Brasil.
Sem autoria identificada.
Arquivo Público | RAPEES | 2017
A Revista do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (Vitória, 2017-) tem por objetivo fomentar a pesquisa em História, Arquivologia, Ciências Sociais, Geografia, Biblioteconomia, como áreas prioritárias da nossa linha editorial. Para isso, buscamos estabelecer parcerias com o meio acadêmico, no sentido de modernizar nossas atividades enquanto órgão do Governo do Estado do Espírito Santo, vinculado à Secretaria de Estado da Cultura, no que diz respeito às responsabilidades legais no âmbito da Gestão Documental. Além disso, visamos incentivar a utilização do nosso acervo como importante fonte para os estudos sobre a História do nosso Estado, bem como difundir e compartilhar o conhecimento produzido.
A RAPEES tem como principal contribuir para a construção do conhecimento, saber histórico e arquivístico, dentre outros, do e no Estado do Espírito Santo, priorizando pesquisas que tenham o acervo do APEES como fonte documental, visando, dessa forma, demonstrar a riqueza de informações existentes e disponíveis nesta instituição arquivística. Além de divulgar pesquisas de significativa contribuição e importância às áreas do conhecimento acima citadas, visando aproximar e estreitar os laços entre arquivistas, historiadores, bibliotecários, geógrafos e cientistas sociais, dentre outros, com a população capixaba.
Para o desenvolvimento deste projeto contamos com a parceria da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), por meio do Laboratório de Estudos em Teoria da História e História da Historiografia (LETHIS), do Departamento de História, e do Grupo de Pesquisa Cine Memória: salas de cinema do estado do Espírito Santo, do Departamento de Arquivologia, sendo seus respectivos representantes os professores, doutores, Julio Bentivoglio e André Malverdes, os quais são os Coordenadores Editoriais da nossa revista.
[Periodicidade semestral].
Aceso livre.
ISSN 2527-2136
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Ensino de Ciências Sociais | ABECS | 2017
Cadernos da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais: revista da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS) apresenta uma linha editorial clara sobre ensino de Ciências Sociais, ressaltando os seguintes temas:
- história do ensino de Ciências Sociais e de seus cursos;
- a prática de ensino de Ciências Sociais e a formação de professores de Ciências Sociais;
- as Ciências Sociais no ambiente escolar;
- legislação, conteúdos e currículos de Ciências Sociais;
- recursos e materiais didáticos no ensino de Ciências Sociais (inovações metodológicas) e;
- estudos comparados em experiências internacionais no campo do ensino de Ciências Sociais.
Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná | Maurilio Rompatto
Obra originária de pesquisa para obtenção do título de mestre em história-social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, o livro “Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná, tem temática que vira em torno das histórias da violência que ocorreram durante as décadas de 1950 até 1970 e conta as histórias de vidas de pessoas camponesas na luta pela posse das suas terras conquistadas como pioneiros na região do vale do Piquiri e mais especificamente em Nova Aurora/PR. O que Rompatto faz em sua pesquisa é dar voz a trinta trabalhadores do campo, captando as narrativas com grande sensibilidade e rigor metodológico que exige a postura da história oral.
Assim, história e memória vão se entrecruzando na trama dos acontecimentos fazendo emergir um tipo de história vista de baixo como pede a historiografia renovada, à lá Annales. Assim como dialoga diretamente com E.P. Thompson para ali encontrar os conceitos de economia moral, cultura camponesa, valores camponeses e classe camponesa. Este último conceito muito bem apropriado e operacionalizado na obra, na qual o leitor irá se deparar com essa categoria, por vezes, muito bem organizada na luta por seus direitos. Pode-se aferir que Rompatto chega a sugerir certa ideia de classe em si para os camponeses aqui narrado. Fazendo, dessa forma, implodir o sentido de trabalho e os valores dados à terra por esses camponeses pioneiros que vão travar uma epopeia agrária nos confins do oeste paranaense contra os grileiros sendo eles o Estado, a União e também empresas privadas como a Colonizadora Norte do Paraná S.A do paulista Oscar Martines.
Outro grande mérito da pesquisa é fazer da chamada história regional, do Norte do Paraná, Vale do Piquiri, uma história total, em que para explicar o micro cosmo de uma região “esquecida” nos dizeres do autor, este recorte a história estrutural para ali buscar o entendimento da questão agrária no Brasil, voltando á época do Brasil Imperial ao ano de 1850, quando é publicada a primeira lei agrária brasileira, a Lei de terras que passa a dar valor imobiliário a esse bem, que até então a terra era distribuída pela União via sesmarias. Depois a pesquisa ainda explica que com a Proclamação da República a terra passa a ter outros valores, bem como os Estados que agora substituem as províncias imperiais passam a ter a posse e o direito às terras e ao seu comércio. Por fim, Rompatto ainda nos revela outro aspecto da história do Brasil relacionada à questão agrária e seus complicadores em relação à posse dessa durante a fase politica do Estado Novo ditatorial implantado no Brasil pelo Presidente Getúlio Vargas que durou de 1939 até 1945. Este regime faz com que as terras de fronteiras sejam devolvidos para a União em razão da ideia de proteção das fronteiras. Vale dizer que o objeto de estudo aqui narrado é interdisciplinar num diálogo muito profícuo entre a história e geografia, a geo-história. Nesse quesito a obra é rica em mapas detalhados acerca da região do Vale do Piquiri, sua riqueza hidrográfica, com rios e fluentes que margeiam o Rio Piquiri. São num total de treze mapas, todos eles bem inseridos ao longo da narrativa e com caráter e função de melhor explicar o acontecimento dentro de uma regionalidade, assim como levar o leitor a viazualizar o lugar da história. Cabe também, nesse contexto do uso de imagens, ressaltar a sensibilidade do autor ao estampar fotos de algumas famílias pioneiras mostrando parte do seu cotidiano rural, perfazendo um total de quinze fotos de pessoas e residências. Dentre elas, a contra capa estampada a família Ballico cercada pelo arame farpado em delimitação das suas terras por empresa particular grileira.
Entender a história das lutas camponeses no Brasil é um processo muito complexo e angustiante em que o próprio historiador se depara com momentos de injustiça. Complexa porque as próprias fontes são escamoteadas ou se encontram em lugares de difícil acesso, e angustiante uma vez que os depoimentos trazem á toma memorias e relatos de camponeses sendo injustiçados, quer pelo poder público, quer pelas empresas privadas que tem interesse nas terras ditas devolutas que são também conceitos vazios meramente politico, haja vista que nunca houve terra devoluta, pois a princípio estas eram dos índios ou dos quilombolas que nela habitavam e produziam.
Como disse Peter Burke “ a função da história é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”. Rompatto cumpre nessa sensível e competente obra essa função de historiador profissional e comprometido com a história política e social vista de baixo. Dando voz aos camponeses para eles expressarem suas experiências e vivências. Numa trajetória de história local dialogando com a história total para o construto de uma narrativa coerente e explicativa. Temos aqui um livro de história do Brasil do período varguista e seus desdobramentos da politica nacionalista nos confins do oeste paranaense, um livro onde o local e o total se permeiam, dialogando com a escrita da história.
Depois de tudo que foi analisado acima cabe ainda uma última referência a outra imagem; a da capa que foi escolhida com grande sensibilidade e rigor teórico-metodológico ao se optar pela foto do Rio Piquiri, margeando o Vale e passando a impressão de calmaria e tranquilidade o que não se encontrará ao abrir o livro, longe disso, a narrativa que se lerá está muito mais próxima de uma história de faroeste, no sentido mesmo de velho oeste, o velho Oeste paranaense e suas disputas desleais entre homens grileiros fortemente armados contra camponeses com suas famílias ali estabelecidas há tempos.
Por fim o livro é recomendado a todos os amantes de uma boa narrativa e trama histórica, mas sobretudo para dois públicos específicos os historiadores e aos moradores do Vale do Piquiri em especial da cidade de Nova Aurora/PR.
Eduardo Martins – Doutor em História pela UNESP/ Assis e Docente do Curso de História do Campus de Nova Andradina, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
ROMPATTO, Maurilio. Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná. Curitiba: CRV, 2016. Resenha de: MARTINS, Eduardo. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 9, n. 17, p. 286-288, jan./jul., 2017.
História, democracia e diferenças: os direitos humanos na contemporaneidade / Albuquerque: Revista de História / 2017
É com grande satisfação que apresentamos ao público-leitor o dossiê “História, democracia e diferenças: os direitos humanos na contemporaneidade”. A proposta desse compêndio de artigos escritos por pesquisadores de diversas partes do mundo é construir, desde o campo acadêmico, um olhar mais aberto ao inventário social que estabelece a relação entre História e contemporaneidade. A partir de abordagens teóricas plurais, as discussões sobre temas centrais como racismo, política, território, memória, gênero, e episteme, compõem um mosaico cultural definidor do maior desafio do atual cenário político internacional: a defesa de certo sentido de democracia no que se convencionou chamar de “Direitos Humanos”
O debate sobre o lugar das minorias em situações de conflito como as vivenciadas no mundo contemporâneo revela a urgência com que a produção científica atual precisa não apenas se posicionar em relação a contextos de exceção, de resistência e de luta, mas também se debruçar sobre temas espinhosos que, de forma geral, fazem com que a História e as demais ciências humanas tenham algo a dizer sobre a visibilidade social e politica que determinados grupos reivindicam. O silêncio diante da opressão é algo que precisa ser superado e debatido amplamente, e nada melhor do que a reflexão acadêmica para trazer à discussão as questões que fundamentam diversas agendas sociais. A utilização de um espaço consolidado de análise como a Revista Albuquerque mostra que o propósito desse dossiê atinge não somente a sensibilidade dos grupos envolvidos nessas demandas, mas alcança um universo alargado de preocupações teóricas que extrapola as convenções científicas e obriga a universidade pública a se aproximar das tensões que nos definem desde o passado em direção ao presente.
Os artigos que fazem parte desse dossiê foram produzidos a partir dessas inquietações, e almejam fomentar o anseio de se compreender a importância do tema dos Direitos Humanos e reconhecer a necessidade de considerá-lo como uma conquista que não pode ser monopolizada politicamente em tempos difíceis como o que vivemos. Com esse espírito, por meio de um olhar abrangente sobre o tema, Agustín Ávila Romero e José Luis Silvaran mostram como a História deve ser definida a partir de um binômio singular: a diversidade biocultural e as ontologias espaciais na América Latina. Para tanto, os autores superam a tendência geral de se olhar para a História mexicana exclusivamente por meio de fontes escritas espanholas, demonstrando certa resistência epistemológica ao se debruçar sobre formas narrativas próprias dos maias tzeltales de Chiapas para se compreender valores e saberes que se sedimentam no chamado Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN). A defesa do olhar local sobre o citado movimento é reforçada por escolhas teóricas apropriadas e inovadoras, especialmente quando se recorre aos conceitos de colonialidade do saber e colonialidade do poder para se redefinir uma espécie de memória zapatista. No pulsante coração da América Latina, o exemplo epistemológico dos autores serve de modelo para que outros movimentos sociais no mesmo continente sejam lidos por um viés mais autêntico e fiel aos grupos locais do que a velha e mofada epistemologia clássica.
Ainda sobre as questões ligadas ao exercício da dominação cultural na teoria do conhecimento que se reproduz nas universidades ocidentais, José Marín destrincha o vínculo entre eurocentrismo, racismo e interculturalidade no mundo globalizado. Os problemas contemporâneos, em suas múltiplas faces, garantem a sobrevivência de aspectos das relações humanas que já deveriam ter sido extintos no trato entre as diferentes culturas. Um desses elementos nocivos, que reforçam a necessidade de discussão sobre os Direitos Humanos é a herança colonial europeia de se desqualificar o outro para oprimi-lo. Marín nomeia essa estratégia epistemológica de “perversão ideológica” fundadora do racismo e do nacionalismo que nos dias atuais, se transformam em políticas de massas. Não reduzindo sua reflexão à denúncia dos males, e estendendo suas conclusões em direção a caminhos que permitam a solução desses problemas, o autor apresenta a educação como principal ferramenta de conciliação entre valores universais e particularidades culturais. O primeiro passo, portanto, seria a validação da ideia de que a História da humanidade é a história de nossas migrações.
Já Bruno do Prado Alexandre e Raquel Gonçalves Salgado, em artigo sobre as narrativas de travestis, transferem o olhar do leitor para outro universo silenciado: o lugar desses indivíduos e de seus corpos no ambiente escolar brasileiro. A base teórica para essa análise seria o que os autores chamam de “estudos de gênero e pós- feministas”, o que por si só já conferiria a originalidade e a importância desse trabalho. O mapeamento da questão a partir das vozes de cinco jovens travestis de Rondonópolis, Mato Grosso, escancara pela ótica acadêmica o que se tenta ocultar pela opressiva caracterização de certa “normalidade” social O tempo da infância, o espaço escolar e a sociabilidade cotidiana são marcados por categorias emblemáticas da violência sofrida pelo “diferente”, traduzida em acepções como “viadinho”, “estranho” e até mesmo “corpo abjeto”. O resultado dessa dinâmica de opressão singular é a construção de estratégias de sobrevivência e resistência dentro de um espaço que deveria originalmente ser acolhedor e integrado como a escola. A dinâmica de violência do ambiente escolar em relação aos travestis tem um palco de atuação ainda mais central: o banheiro. É aqui que o “processo de negação e privação de direitos empreendidos sobre os corpos considerados grotescos certamente, a dimensão mais cruel das memórias escolares desses sujeitos formados pelos silêncios e pelas invisibilidades.
Outro universo a ser revelado pelas questões ligadas aos Direitos Humanos nesse dossiê é a luta pela terra como agenda global. Em seu artigo, Cassio Rodrigues da Silveira estabelece os parâmetros da reforma agrária como uma reivindicação social que transcende a demanda específica dos integrantes de um movimento organizado como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Em conflito não apenas com o latifúndio, mas também com o viés globalizante do capitalismo neoliberal, o combate pelo direito à terra defendido pelo MST confere uma dimensão social à questão agrária, já que passa a ser movida pela necessidade de sobrevivência, e não pela lógica do mercado fundiário. O problema da concentração da posse da terra, portanto, ultrapassa as fronteiras nacionais, pois o sistema econômico, o Estado e os interesses de classe são distintas dimensões de um debate assumido pelo MST como altermundialista. No entrecruzamento dessa questão estão as relações com os dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as expectativas construídas a partir do Fórum Social Mundial em 2001, e a luta anti-imperialista mundial, tudo expresso nas publicações do MST e na construção de um vocabulário político próprio em seus textos e redes de informação.
Mantendo-se no campo das lutas políticas em contextos de repressão, Aguinaldo Rodrigues Gomes apresenta o tema da resistência de intelectuais e estudantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro) ao regime militar brasileiro. O primeiro desafio enfrentado aqui é justamente contribuir com o recente debate historiográfico acerca do tema, que tem buscado pensar como esse acontecimento político, um dos mais dramáticos de nossa história, repercutiu fora dos centros de poder do país, especificamente o eixo Rio-São Paulo. O autor enfatiza no artigo as estratégias adotadas pelo PCB para a construção de uma luta pelos diretos civis no campo educacional por parte de estudantes e professores que ousaram enfrentar o regime em defesa das liberdades de expressão. No momento em que se discute o que foi a ditatura militar no Brasil, notória por seu completo desprezo aos Direitos Humanos mais fundamentais, estender o debate para outras partes do país é democratizar a luta contra um passado recente, além de ser também uma forma de resistência epistemológica que quebra a centralidade do Rio de Janeiro e de São Paulo no discurso sobre a memória política do Brasil contemporâneo.
Ainda em relação à resistência a ditadura militar em nosso país Ary Cavalcanti Junior nos traz uma narrativa sobre a resistência das mulheres ao regime a partir da trajetória da militante Diva Soares Santana que atuou em defesa dos direitos dos mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar no grupo Tortura Nunca Mais-Bahia. Utilizando a metodologia da história oral, o autor busca representar as memórias, seus confrontos e ressignificações a partir dos relatos de Diva Santana. Nas palavras de Cavalcanti Junior a inserção de Diva na militância ocorreu devido ao desaparecimento de sua irmã Dinaelza, mas uma vítima do regime ditatorial. Sua busca pelo corpo da irmã nos fornece um claro retrato da face perversa da ditadura na Bahia, a exemplo do que ocorreu em diversas regiões do país e que ainda estão por ser descortinadas pelas pesquisas acadêmicas, daí a importância do texto de Cavalcanti Junior.
Com os olhos voltados para um dos grandes ícones da cultura brasileira, Tadeu Pereira dos Santos analisa a condição de subalternidade do negro no Brasil pela biografia de Sebastião Bernardes de Souza Prata, conhecido como Grande Otelo. As representações sobre negros e atores na imprensa brasileira, fonte principal desse trabalho, coloca elementos depreciativos como definidores da carreira de Grande Otelo, como por exemplo, a estratégia constante de reforçar a presença do alcoolismo em sua biografia. Alguém realmente pode conceber que o excesso de consumo de álcool pode ser um elemento central na trajetória de uma figura marcante como Grande Otelo? Parece que para a imprensa e a sociedade civil brasileira, com seus preconceitos e estigmas, o artista negro merece destaque por aquilo que se espera de alguém como ele: instabilidade, vício e práticas religiosas abalizadas pela dubiedade. A malandragem e a astúcia, tomadas em determinados contextos como uma ação social pejorativa, passa a definir, no artigo de Tadeu Pereira dos Santos, uma estratégia de sobrevivência a ser exaltada. Não se trata apenas de discutir os Direitos Humanos como uma questão de ordem jurídica e moral, mas como mais uma expressão da necessidade de se humanizar determinados grupos marginalizados pela hierarquia social vigente.
Na esteira das reflexões sobre a marginalização dos negros a historiadora Priscila Xavier de Oliveira Scudder ancorada no mapa da violência 2016 e na obra “A democracia da Abolição” da filosofa Ângela Davis nos apresenta uma comparação entre as facetas do racismo nos Estados Unidos da América e no Brasil. Perscrutando a história brasileira e suas práticas racistas decorrentes do colonialismo que se apresenta em um viés duplo, a saber, no plano da organização social e da própria construção do saber acadêmico, denuncia assim, o apagamento / silenciamento das minorias no âmbito da esfera social e mesmo no campo das narrativas epistemológicas. Seu texto aponta para a necessidade de uma resistência intelectual e popular contra as práticas legitimadoras da subalternidade que favorecem a discriminação, as novas formas de escravização e, sobretudo o extermínio da população negra em nosso país.
Se falar em democracia e Direitos Humanos é, sobretudo, conferir humanidade aos destituídos dessa condição, o artigo de Eliete Borges Lopes e Luis Augusto Passos segue esse mesmo princípio ao dedicar-se à análise da população em situação de rua da chamada Ilha do Bananal, em Cuiabá. A noção de resistência abarca também estigmas sociais comuns no Brasil como a pobreza e a violência, alicerçados em um competente arcabouço metodológico composto por uma cartografia das ruas, uma pesquisa exploratória e uma interpretação-descrição dos fenômenos. Independente das condições de vida e marginalização desse território e de seus moradores, os autores se valem de uma sensibilidade acadêmica rara para identificar nos sujeitos de sua pesquisa aquilo que chamam de arte-fatos e afetos da vida da cidade, expressos na paisagem local negociada entre o patrimônio arquitetônico e os graffitis, além da visibilidade de certa performance da população em situação de rua. Há que se considerar, portanto o potencial de “educação popular” da Ilha do Bananal, em uma época em que a presença do poder público nesses espaços de marginalização se fortalece por meio de ações autoritárias e de políticas intervencionistas agressivas nomeadas como “higienização”
E por fim, contribuindo para o debate sobre as relações étnico-religiosas e as origens do discurso sobre os Direitos Humanos, Karina Arroyo e Murilo Sebe Bon Meihy trazem à tona a necessidade de se romper o monopólio ocidental sobre o discurso dos Direitos Humanos. O lugar do Islam, e especificamente de um de seus grupos mais perseguidos, os muçulmanos xiitas, é analisado nesse artigo por meio de uma espécie de aproximação dos valores da citada religião com a moralidade laica e universalista atribuída de forma unilateral ao Ocidente após o século XVIII. Neste artigo, da filosofia de Kant às interpretações dos textos religiosos do Islam por seus jurisprudentes, o caminho escolhido pelos autores é o de reforçar o diálogo entre culturas como precondição para o debate sobre a aplicação geral do legado dos Direitos Humanos. Os xiitas no Brasil são os atores centrais desta reflexão, o que obriga o leitor a considerar que se há um processo de identificação do Oriente Médio como o espaço de desrespeito flagrante aos pilares dos Direitos Humanos contemporâneos, não nos esqueçamos de que as principais vítimas desse tipo de violência são os próprios muçulmanos, especialmente grupos minoritários como os xiitas, tanto no Oriente Médio, como no Brasil.
Enfim, a Revista Albuquerque oferece a todos um mapa bastante detalhado do uso político e seletivo que se dá atualmente aos princípios democráticos e ao direito em geral. O contato com esse dossiê deve ser acompanhado desse espírito crítico. Em um mundo tão pouco democrático e desumanizado como o atual, ter acesso a esses textos é mais que uma atividade intelectual. Chega a ser um direito…
Boa leitura!
Murilo Sebe Bom Meihy – Professor de História Contemporânea do Instituo de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: meihy1@yahoo.com.br
Aguinaldo Rodrigues Gomes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em Educação do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: aguinaldorod@gmail.com
MEIHY, Murilo Sebe Bom; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.9, n.17, 2017. Acessar publicação original [DR]
História Indígena: o campo interdisciplinar renovado / Albuquerque: Revista de História / 2017
CASTRO, Iára Quelho de; VARGAS, Vera Lúcia Ferreira; MOURA, Noêmia dos Santos Pereira. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.9, n.18, 2017. Acesso apenas pelo link original [DR]
Patrimônio, Cultura Material e Imaterial: diálogos e perspectivas / Albuquerque: Revista de História / 2018
GIAVARA, Eduardo; FERREIRA FILHO, Aurelino José. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.10, n.19, 2018. Acesso apenas pelo link original [DR]
Les musulmans dans l’histoire de l’Europe. t. 1. Une intégration invisible / Jocelyne Dakhlia e Vincent
Cet ouvrage collectif ambitieux et novateur interroge, dans un premier tome, « une intégration invisible » des musulmans en Europe occidentale entre le xive siècle et le début du xixe siècle, avant de mettre en exergue, dans un second tome, les dynamiques intégratrices qui animent les sociétés de cet « entre-deux » qu’est l’espace méditerranéen. Les deux volumes partagent la même ambition d’éclairer les débats contemporains sur l’Europe, sa définition, ses contours, ainsi que ses relations avec l’islam et le monde de l’Islam. Alors que la question de la candidature de la Turquie à l’Union européenne ou le projet de l’« Euroméditerranée » ont suscité les passions et interrogé la notion même d’Europe, ces deux volumes offrent de nouvelles perspectives pour mieux remettre en cause la vision réductrice de deux mondes qui s’affrontent et dont les échanges, faits uniquement d’emprunts culturels ou de traités diplomatiques, n’auraient été que sporadiques, voire anecdotiques, avant les expériences coloniales du xixe siècle.
Aussi les deux volumes entendent-ils réviser un certain nombre de topoi pour mieux « restituer de la chair » (t. 1, p. 22) à l’histoire des relations de l’Europe occidentale avec l’islam. Il s’agit de battre en brèche la supposée ignorance islamique de l’Europe de la fin du Moyen Âge à l’époque moderne pour réévaluer des circulations méditerranéennes bien antérieures aux confrontations coloniales. Cette étude des circulations délaisse logiquement l’Europe sous domination ottomane pour privilégier les régions de frontière et les espaces de commerce, à savoir la Méditerranée, la façade atlantique ainsi que la frontière de l’empire des Habsbourg avec l’empire ottoman. L’introduction du premier tome propose un cadre méthodologique et théorique stimulant dans la perspective d’une histoire nécessairement connectée. Elle pose les termes de la réflexion et ses gageures, notamment la difficile identification des musulmans dans les sources, tout en s’interrogeant sur les raisons qui ont poussé l’historiographie à négliger les musulmans présents en Europe lors de la période couverte, jusqu’à les rendre quasiment « invisibles ».
Tout en s’appuyant sur la bibliographie la plus récente, le premier tome explore, de la côte Atlantique du Portugal jusqu’à Vienne, en passant par la France et la Grande-Bretagne, les circulations des musulmans ainsi que la nature de leur intégration sociale, voire sociétale, dans ces espaces. C’est à la recherche des formes d’accommodement à l’islam et aux musulmans, en dépit de contextes souvent conflictuels, que les chercheurs construisent leur apport, dans un souci historiographique et méthodologique constant. Selon cette perspective, la première partie est consacrée à un état des lieux de la présence musulmane en Europe, avant d’en tenter une reconstruction historiographique pour en proposer finalement une lecture dynamique. Au fil des contributions, c’est tout un monde de marchands, de serviteurs, d’esclaves, de diplomates, d’artisans ou de soldats, parfois convertis au christianisme, qui émerge pour sortir de l’ombre historiographique.
Le lecteur comprend que, selon les contextes, des stratégies de dissimulation ont pu être mises en place par les musulmans eux-mêmes tandis que les sociétés d’accueil ont parfois préféré se montrer indifférentes à une telle présence qui, parfois considérée comme banale, explique le silence des sources. Les chapitres proposent différents éclairages sur cet objet complexe, alternant entre des approches micro-historiques de groupes d’individus relativement réduits et l’exploration de présences plus massives. Le service des sœurs Ayche et Fatma à la cour de Catherine de Médicis permet à Frédéric Hitzel de réfuter le préjugé selon lequel l’empire ottoman n’aurait jamais « fourni aucun élément de population intéressant » au royaume de France (p. 33). Les itinéraires étudiés par Simona Cerutti d’un tailleur anatolien à Turin ou par Emanuele Colombo du fils du roi de Fez entré dans la Compagnie de Jésus mettent en lumière la question délicate de la frontière religieuse dans le processus d’intégration individuelle dans les sociétés d’accueil. Dans le cas de Livourne analysé par Guillaume Calafat et Cesare Santus, cette intégration, à la fois considérable et bien visible, a donné lieu à des interactions multiples dans la société portuaire cosmopolite. Ces différentes approches trouvent leur unité dans une commune réflexion sur les sources, leur analyse et leurs limites, ainsi que sur la possibilité d’y identifier des « musulmans » et leurs réseaux.
Le second tome est consacré à une étude renouvelée des passages et contacts en Méditerranée. Cet ouvrage dresse un état des lieux bibliographique, historiographique et épistémologique complet et actualisé sur la Méditerranée comme objet historiographique. Faruk Tabak en avait résumé la disparition dans le champ des études historiques [1]. L’inclusion de travaux en anglais, allemand, italien, espagnol, bosniaque, portugais, français, turc autorise une approche connectée stimulante. Dans l’esprit des areas studies, l’espace méditerranéen n’est pas pensé à travers une indéfinissable unité culturelle, politique, anthropologique ou sociale mais comme un espace de « l’entre-deux » connecté. Au-delà de la Méditerranée « homogène », selon les approches braudéliennes, ou « divisée », selon celles privilégiant le choc des civilisations, cette vaste enquête interroge ces « Méditerranées multiples » que l’on trouve chez Sanjay Subrahmanyam ou David Abulafia.
De la Méditerranée ottomane, européenne et maghrébine en passant par la Méditerranée insulaire, l’espace se dilate jusqu’à un au-delà méditerranéen incluant les colonies portugaises en Guinée. L’étude d’António de Almeida Mendes sur les Blancs de Guinée fait le trait d’union entre espaces méditerranéen et atlantique. Un espace également imbriqué, comme le montrent les présides ibériques au Maghreb et les possessions vénitiennes en Méditerranée islamique, et innervé par un vaste système d’interactions et de parcours.
Un concept clé et fructueux a été retenu dans ce second volume pour problématiser les liens tissés entre les différentes sociétés méditerranéennes, celui de « l’entre-deux ». Il permet de dépasser l’opposition entre une approche irénique et une approche conflictuelle des modalités d’interactions interculturelles ou intersociétales. Une réhabilitation du conflit est suggérée en l’interprétant non pas comme une fracture absolue mais comme une ligne de front et d’alliance, liée à la complexité des mouvements d’une rive à l’autre, où certains sont appelés à vivre un jour de l’autre côté. Wolfgang Kaiser démontre que le rachat des captifs faisait partie de l’ordinaire et non de l’extraordinaire dans la pratique du commerce méditerranéen. Islamiques ou européennes, musulmanes ou chrétiennes, les sociétés méditerranéennes sont traversées par des dynamiques d’exclusion et d’inclusion, de rupture et d’innovation, de rapports de force, d’ouverture et d’assimilation de l’altérité. Mathieu Grenet étudie l’exemple diasporique des sujets ottomans « Grecs de nation » tandis que Natalia Muchnik propose une étude commune des diasporas morisques et marranes pour montrer leur forte hétérogénéité sociale et religieuse.
L’entre-deux introduit un espace tiers, voire une culture et une altérité tierces encouragées par des acteurs qui jouent le rôle de véritables passeurs ou médiateurs entre cultures et langues. G. Calafat s’intéresse ainsi au rôle des interprètes de la diplomatie à Alger dans les années 1670-1680, même s’il n’est pas possible d’établir un idéal-type du médiateur interculturel. Étudier les formes d’interaction entre les sociétés islamiques et celles d’Europe occidentale suppose toutefois la singularisation de l’espace méditerranéen, trop souvent lu à l’aune du schème de conquête conceptualisé dans des contextes américains et hérité du modèle colonial atlantique. L’intercirculation séculaire en Méditerranée rend structurellement impensable une « première rencontre » ou un choc et, par conséquent, la reprise du concept de métissage, favorisant le rapport d’équivalence entre vaincus ou dominés et colonisés.
La question de l’islamophobie et de l’islamophilie savante est également posée concernant les passages de l’Islam en Europe, encore peu étudiés. Daniel Hershenzon souligne la fabrique de la Méditerranée jusque dans l’historiographie à travers la propagande chrétienne de la captivité. Il suggère une histoire connectée des formes de captivité et d’esclavage des musulmans en Europe et des chrétiens à l’intérieur de l’empire ottoman en montrant que les deux systèmes étaient étroitement reliés et interdépendants par le jeu des négociations. Il reconstitue de fait un cadre méditerranéen et non national, privilégié par le champ bourgeonnant des études sur la captivité, pour restituer les liens que la captivité a tissés entre le Maghreb et l’empire des Habsbourg.
L’entre-deux est lui-même invité à être dépassé ou nuancé par trois éléments : « espace liminaire ou hors lieu », il ne figure pas toujours comme un trait d’union entre deux sociétés mais parfois comme un espace plein et neutralisé, propre à la négociation. Il peut aussi s’agir d’un espace syncrétique modelé par des individus ou des groupes sans pour autant créer un tiers espace. Enfin, l’entre-deux n’est pas un monde en soi, un « middle-ground », du fait de l’état transitoire des processus d’intégration et d’assimilation, en recomposition permanente. Au-delà des phénomènes de porosité ou de transfert, un continuum véritable peut parfois émerger sans pour autant abolir les possibles adversités. Jocelyne Dakhlia l’illustre à travers le cas remarquable de Thomas-Osman Arcos. Chrétien renié et converti à l’islam, vivant à Tunis, membre de la République des Lettres, il plaide la possibilité d’être à la fois français et musulman tout en niant son acculturation tunisienne, pourtant bien fondée. M’hamed Oualdi étudie quant à lui l’économie générale de la mobilité des mamelouks des beys de Tunis entre le xviie et le xixe siècle.
Le brassage des cultures dans l’espace méditerranéen ne doit pas occulter les continuités culturelles entre toutes ces sociétés. C’est précisément cette familiarité structurelle qui explique l’aptitude des passeurs de frontières à maîtriser si rapidement les codes d’une société autre. Ce second volume invite donc, à travers de nombreuses études stimulantes, à repenser les sociétés méditerranéennes et les rapports entre l’Europe musulmane et chrétienne, islamique et occidentale.
Clarisse Roche
DAKHLIA, Jocelyne; VINCENT, Vincent (dir.). Les musulmans dans l’histoire de l’Europe, t. 1, Une intégration invisible. Paris: Albin Michel, 2011. 646p. Resenha de: ROCHE, Clarisse. Annales. Histoire, Sciences Sociales. Paris, n.4, 2016. Acessar publicação original [IF].
L’histoire des Juifs. Trouver les mots. De 1000 avant notre ère à 1492 / Simon Shama
En lisant cette Histoire des Juifs de Simon Schama, on est à la fois ébloui et irrité. Plus on progresse dans la lecture, plus l’admiration et l’irritation vont croissant. C’est d’abord l’admiration qui domine. Pour la stupéfiante performance de l’auteur. L’ouvrage, écrit en marge de la préparation d’une série télévisée, couvre quinze cents ans d’histoire, puisqu’il va des origines bibliques à 1492, année de l’expulsion des Juifs d’Espagne (un second volume devrait suivre, courant de 1492 à l’époque contemporaine). S. Schama n’a travaillé qu’à ses tout débuts sur des aspects de l’histoire juive et si le savoir qu’il met ici en œuvre est pour une large part de seconde main, il a effectué et assimilé des lectures d’une étendue proprement gigantesque.
Pour la période biblique et l’interprétation des données archéologiques, un sujet de débats passionnés en particulier depuis une quarantaine d’années, il s’est adressé à des spécialistes reconnus et a tracé sa voie – une voie moyenne, entre la parfaite confiance dans le récit biblique et le postulat de sa totale a-historicité. Surtout, pour les périodes postérieures, depuis l’Antiquité gréco-romaine, avant et après la destruction du Temple de Jérusalem en l’an 70, jusqu’à l’histoire des Juifs dans l’Europe du Moyen Âge tardif, en passant par le monde juif en terre d’islam, l’auteur a consulté les travaux de recherche les plus récents et les plus novateurs. L’information bibliographique, signalée dans les notes, n’est nullement ornementale : le texte principal s’appuie tout au long sur les dernières publications qui comptent, dont, soupçonne-t-on, les spécialistes, dans les différents domaines, n’ont pas eux-mêmes toujours su saisir ce qui fait leur surcroît d’utilité.
Schama donne un texte très enlevé, mais, comme on pouvait s’y attendre, il est à son meilleur dans les deux exercices où l’on sait qu’il excelle, et d’abord dans l’usage des archives visuelles et des données matérielles. Ainsi fait-il merveille lorsqu’il introduit l’exposé portant sur les déchirements internes de la société juive et les circonstances de la révolte des Maccabées par une description évocatrice du palais édifié, à l’est du Jourdain, par Hyrcan, petit-fils d’un Tobiah connu grâce aussi bien à ce que dit de lui Flavius Josèphe qu’à la documentation laissée par un intendant du ministre des finances de l’Égypte ptolémaïque, et représentant d’un milieu juif particulièrement hellénisé. Ou lorsque, pour montrer l’ouverture sur les cultures environnantes, aux iieet iiie siècles de l’ère chrétienne, du judaïsme diasporique mais aussi palestinien, S. Schama mobilise le témoignage des peintures murales de la synagogue de Doura-Europos en Syrie orientale et celui des mosaïques et des restes architecturaux de Sepphoris en Galilée. Ou encore lorsque, afin de souligner la prospérité des Juifs d’Égypte, ou en tout cas de certains d’entre eux, à l’époque, entre xe et xiie siècle, qu’éclairent les documents découverts dans la gueniza (la remise) d’une synagogue du Vieux Caire, il décrit les garde-robes que nous font connaître les papiers publiés et analysés par Shlomo-Dov Goitein et par Yedida Stillman.
L’ouvrage se distingue ensuite dans la façon qu’a S. Schama de faire du récit l’élément même dans lequel se coule une analyse. Le morceau le plus réussi à cet égard est peut-être la mise en perspective de la condition des Juifs, à la fois solide et précaire, dans l’Angleterre des années 1240-1270, à travers le récit d’une vie, celle d’une femme d’affaires avisée, Licoricia de Winchester. Les grincheux diront que l’auteur emprunte sa documentation à une monographie récente [1] [2] Certes. Encore fallait-il savoir, à partir de celle-ci, à la fois brosser un tableau et conduire une démonstration.
chama fait preuve, en chaque chapitre, d’une remarquable capacité à synthétiser les résultats de la recherche, la clarté de la discussion et sa densité faisant bon ménage. J’ai eu à plusieurs reprises le sentiment, en cours de lecture, que, sur telle ou telle question abordée, et sur laquelle j’ai eu moi-même à consulter une abondante littérature, je n’avais jamais lu de présentation ramassée aussi pénétrante, qui sache dégager ce qui compte, et permette de comprendre mieux ou autrement un épisode que je croyais bien connaître. Il faut espérer que la traduction française de l’ouvrage trouvera de nombreux lecteurs, et qu’en particulier un lectorat universitaire saura reconnaître qu’il dispose là d’une « histoire des Juifs » saisie dans toute son ampleur chronologique, qui cumule les avantages, puisqu’elle est exposée selon les critères de l’histoire savante, qu’elle est parfaitement accessible et présente en même temps toute garantie de fiabilité.
Mais l’irritation ? C’est qu’on ne voit aucune des questions fortes que l’histoire des Juifs appelle, on ne dit pas tranchées, mais seulement posées. Pour fil conducteur, S. Schama a pris le thème de la puissance des « mots » : les mots, c’est-à-dire l’exégèse d’une parole tenue pour révélée, et la réinvention constante du sens attribué à son dépôt (d’où le sous-titre : « Trouver les mots »). Ce sont ces mots, nous dit-on, qui donnent la clé d’une pérennité. Peu importe que la proposition ne pèche pas par excès d’originalité. L’ennui est surtout que, sur ces « mots », l’auteur n’est pas à son affaire. À propos de la littérature talmudique et midrashique, il reprend un discours rebattu, et qu’on espérait définitivement remisé, sur un fatras parcouru d’étranges lueurs. Il s’enthousiasme, en revanche, pour Moïse Maïmonide, sans que perce une véritable familiarité avec l’œuvre et ses problèmes. Il suffit à S. Schama de savoir que Maïmonide a tenté de réconcilier l’intérieur et l’extérieur, l’étude du donné révélé et la réflexion philosophique à l’horizon de l’universel, l’ancrage dans l’intime d’une culture et l’ouverture à des questionnements qui s’adressent à tout homme, par-delà les appartenances spécifiques, sur fond de raison partagée ; et de conspuer les adversaires de Maïmonide, obscurantistes obtus.
On ne nourrit pas nécessairement des préférences et des détestations différentes. Mais ces développements rappellent, par la combinaison de la fadeur de la pensée et du lyrisme du ton, un discours apologétique largement diffusé, au moins dans certains courants du judaïsme des lendemains de l’Émancipation. Il s’agit, aujourd’hui comme hier ou avant-hier, de montrer comment l’influence du judaïsme a profité à l’avancement de la rationalité, comment les deux causes, celle de l’identité juive et celle du progrès moderne, se rejoignent naturellement. Et si le texte atteste une baisse de tension et une dérive vers la banalité, non seulement à propos de Maïmonide (qu’à titre exceptionnel S. Schama professe admirer), mais chaque fois qu’il est question des évolutions intellectuelles et religieuses, c’est que « les mots », l’auteur non seulement les connaît mal (il n’a pour bagage que des souvenirs d’enfance et des lectures récentes peut-être pressées), mais, assez manifestement, ressent pour eux peu d’appétence, et qu’ils suscitent chez lui, d’emblée, le malaise plutôt que la curiosité.
Au point d’avoir, face à l’empire des mots, érigé un contre-modèle : celui que lui offre la vie des soldats juifs en poste à la garnison de l’île d’Éléphantine, à Assouan, que nous font apercevoir, pour l’époque de la domination perse en Égypte, des papyrus en araméen découverts à la fin du xixe siècle. L’auteur ouvre son livre sur l’existence au quotidien, longtemps sans histoires, de cette colonie aux coutumes si éloignées de celles qui prévalaient dans l’Israël biblique (ne serait-ce que parce que ces soldats ont érigé un temple, et ignoré ainsi la prescription deutéronomique qui réserve l’exclusivité du culte au Temple de Jérusalem).
De ce que lui apprennent les documents, qui portent sur la vie familiale et les transferts de biens, S. Schama tire cette leçon : « Comme dans tant d’autres sociétés juives implantées parmi les Gentils, la judéité d’Éléphantine était prosaïque, cosmopolite, vernaculaire (araméenne) plutôt qu’hébraïque, obsédée par la loi et la propriété, attentive à l’argent et soucieuse de la mode, très préoccupée par la conclusion des mariages et les ruptures, le soin des enfants, les subtilités de la hiérarchie sociale, sans oublier les délices et les fardeaux du calendrier rituel juif. Par ailleurs, elle ne semble pas avoir été particulièrement livresque. […] C’est le côté suburbain, ordinaire, de tout cela qui, l’espace d’un instant, paraît absolument merveilleux – un peu d’histoire juive sans martyrs ni sages, sans tourment philosophique, le Tout-Puissant grincheux pas très en vue ; un lieu d’une heureuse banalité, très préoccupé par les conflits de propriété, l’habillement, les mariages et les fêtes […] un temps et un monde innocents du roman de la souffrance » (p. 39).
Il est arrivé à Gershom Scholem de moquer une historiographie juive qui dépeignait parfois les patriarches bibliques comme de braves bourgmestres de Rhénanie [3]. Puis-je prendre exemple sur lui pour exprimer des doutes sur une caractérisation des « sociétés juives implantées parmi les Gentils » qui propose de promener d’une époque à l’autre l’histoire de réussite et les préoccupations typiques d’une upper middle class suburbaine ? On a dénoncé, d’ailleurs très injustement, une historiographie juive du xixe siècle trop souvent organisée autour du diptyque souffrances/élévation spirituelle, misère et grandeur. On conçoit que, en période post-moderne où les causes quelles qu’elles soient ne font ni vivre ni mourir, il paraisse judicieux d’écarter le passé de souffrances et de substituer aux récits trop inspirés le prosaïsme de l’épanouissement personnel. Et, après avoir dit sa détestation de l’histoire lacrymale, de réintroduire le malheur pour réagir contre les excès d’un discours devenu rituel de dénonciation de ce type d’histoire, mais surtout pour mieux souligner la présence continue d’une faculté éminemment contemporaine : le rebond, la résilience. Cela revient à remplacer des anachronismes ridicules par d’autres anachronismes ridicules, et à mener l’œuvre apologétique par d’autres moyens. L’entreprise peut au demeurant rencontrer l’adhésion : le livre se transformera alors en livre-cadeau, offert à des enfants qui ne le liront pas par des parents qui ne le liront pas non plus, puisqu’ils ne ressentiront pas le besoin de légitimer par des précédents historiques l’existence suburbaine d’aujourd’hui. Ce serait dommage : voilà un livre qui, malgré ces faiblesses essentielles, est une manière de chef-d’œuvre.
Notes
1. Faruk Tabak, The Waning of the Mediterranean, 1550-1870: A Geohistorical Approach, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2008.
2. Suzanne Bartlet, Licoricia of Winchester: Marriage, Motherhood and Murder in the Medieval Anglo-Jewish Community, Londres, Vallentine Mitchell, 2009.
3. Gershom Scholem, « Réflexions sur les études juives », no thématique « Gershom Scholem », Cahiers de l’Herne, 92, 2009, p. 133-145, ici p. 143
Maurice Kriegel
SHAMA, Simon. L’histoire des Juifs. Trouver les mots. De 1000 avant notre ère à 1492. Trad. par P. E. Dauzat, Paris, Fayard, [2013] 2016. 506p. Resenha de: KRIEGEL, Maurice. Annales. Histoire, Sciences Sociales. Paris, n.4, 2016. Acessar publicação original [IF].
L’économie de Dieu. Famille et marché entre christianisme, hébraïsme et islam / Gérard Denile
Sous un titre un brin paradoxal, Gérard Delille montre comment les trois grandes religions monothéistes issues du monde antique font système au sens structuraliste du terme, autrement dit comment elles entretiennent entre elles des rapports d’inversion qui sont corrélés à plusieurs niveaux de la réalité sociale. La parenté, au sens où l’entendent en général les anthropologues, sert de levier à l’auteur, lui-même historien, afin de brosser un large tableau du développement différentiel de l’Occident et du Moyen-Orient en fonction de la prédominance de telle ou telle religion. Au-delà de la parenté, l’argument mobilise de nombreux faits de nature théologique, juridique, dynastique, technique et, enfin, économique. Sa progression emprunte à différentes échelles d’analyse, allant de la micro-histoire, en se focalisant sur les communautés dont les archives recèlent de bonnes séries généalogiques – élément clé de la démonstration –, à la reprise critique des grandes synthèses historiques classiques. Au fond, bien que G. Delille s’en défende, son propos possède une indéniable tonalité wébérienne. Il renoue de même brillamment avec Karl Polanyi et sa fameuse thématique de l’émergence, en Occident à l’époque moderne, du marché comme domaine autonome, séparé de l’activité humaine.
La première partie du livre pose les jalons en mettant en relief ce qui différencie les règles matrimoniales dans les trois sphères respectives du judaïsme, de l’islam et du christianisme. Dans le judaïsme, le mariage entre oncle et nièce est préconisé, tandis que dans l’islam, c’est celui entre cousins germains patrilatéraux qui est érigé comme norme. Face à ces logiques d’endogamie s’oppose la règle que l’Église impose progressivement, à partir du haut Moyen Âge, à tout l’Occident chrétien. Ici, une exogamie très étendue, presque infinie, prévaut puisque est frappée d’interdit toute union en deçà du quatrième canon de parenté (extension considérable qui exclut comme conjoint potentiel jusqu’aux personnes issues des arrière-arrière-grands-parents).
Au total, on peut dresser le schéma suivant. À l’exogamie quasi absolue du christianisme s’oppose l’exogamie relative des systèmes juif et musulman. Ainsi que le rappelle G. Delille à la suite de nombreux auteurs, notamment à propos du mariage arabe, ces derniers exigent toujours un assez large degré d’exogamie pour « fonctionner » ; ils ne peuvent être entièrement endogames. Cela étant, leurs endogamies respectives les différencient dans la mesure où le mariage arabe renforce la patrilinéarité, là où les pratiques endogames des juifs (qui incluent le lévirat et le sororat) tendent à effacer l’opposition entre maternel et paternel. Les juifs se rapprochent à cet égard des chrétiens qui se situent du côté du cognatisme en matière de filiation.
La deuxième partie déplace l’argument sur le terrain de l’économie. Chez les musulmans, le système parental est signe de fermeture ; seule la guerre de conquête, synonyme de re-distribution à large échelle des richesses, y est un facteur de développement. Chez les juifs, l’alternance entre endogamie et exogamie parentale aussi bien que locale, associée au maintien de liens autant paternels que maternels, privilégie la constitution de réseaux aux ramifications étendues. Ceux-ci sont prédestinés à servir de support à des opérations commerciales à distance. Enfin, chez les chrétiens, l’exogamie forcée, mais aussi la monogamie et l’impossibilité d’adopter – ce qui revient à conférer à la filiation une sorte d’instabilité structurelle – se révèlent un atout considérable d’un point de vue psychosocial. Poussant à dépasser l’horizon de ses proches pour trouver un conjoint, intériorisant la fragilité des lignages, l’exogamie incite à une ouverture maximale d’un point de vue sociologique ; elle favorise, conceptuellement, la circulation au détriment de la thésaurisation. Assortie de l’interdiction, elle aussi d’origine théologique, du prêt d’usure, elle conduit en outre à rechercher d’abord dans le progrès technique la voie du développement des forces productives. Mais l’importance de la forme que prend la famille en Occident ne relève pas seulement d’un principe abstrait, d’une aspiration à exploiter l’ouverture et l’incertitude, autrement dit à « entreprendre » au sens contemporain du terme. Car si l’Église proscrit l’usure, elle tolère en revanche le prêt avec intérêt en cas de versement différé de la dot. Du coup, le mariage devient le lieu où s’articulent potentiellement circulation des femmes et spéculation monétaire.
Moins nourrie que les précédentes et plus classique dans ses assises théoriques, la troisième partie couronne la démonstration au niveau de l’exercice du pouvoir et de la construction de l’État. Elle oppose ainsi deux modèles, à savoir le despotisme oriental et la souveraineté royale prévalant en Europe (excluant un peu trop rapidement la question du politique dans le cas du judaïsme, alors qu’elle se pose aujourd’hui avec l’État d’Israël). D’un côté, il y a une absence de médiation entre l’État – incarné par un pouvoir centralisé, autocratique et, surtout, exclusivement patrilinéaire (le harem comme ruche procréative) – et les « sujets », que ces derniers soient des paysans attachés à la terre ou des marchands. État et société y vivent dans des sphères presque entièrement étanches, la première assurant le maintien de son existence matérielle et de son appareil militaire par le biais d’un tribut imposé à la seconde. De l’autre côté, le système politique de l’Europe occidentale repose au contraire sur une solidarité sociale assez large car fondée sur la reconnaissance des deux lignées, paternelle et maternelle, et l’exigence d’alliances les plus ouvertes possible. Une hiérarchie sociale existe mais à l’intérieur même de cette solidarité englobante. Là encore le mariage joue un rôle puisque, à travers le mécanisme de la dot, il autorise une légère hypergamie féminine.
L’économie de Dieu est un livre que nous attendions depuis longtemps. G. Delille y combine avec succès et générosité les démarches historiques et anthropologiques. Sa fresque embrasse des espaces, des temporalités et des thématiques extrêmement divers, qu’il parvient à relier avec une puissance heuristique peu commune aujourd’hui. Ce véritable tour de force rend malaisée la critique. Si nous devions toutefois en formuler une, elle porterait sur le primat accordé à la notion d’échange matrimonial.
Celle-ci a été forgée par Claude Lévi-Strauss dans le cadre de la théorie anthropologique, dont Marcel Mauss est l’initiateur, d’un lien social fondamental qui reposerait sur la force de la dette. L’auteur des Structures élémentaires de la parenté, non sans avoir mis entre parenthèses le mariage arabe, avait rangé l’Occident sous la rubrique d’« échange généralisé ». Ce faisant, il diluait tellement la notion d’échange qu’elle devenait synonyme de simple « circulation ». Or G. Delille, ici comme dans ses travaux antérieurs (dont d’ailleurs ce livre est également l’heureuse synthèse), utilise les notions d’échange et de réciprocité de façon, nous semble-t-il, trop rigide. On voit mal comment un dispositif, qui exclut la possibilité d’un « retour » du transfert de la femme concédée en mariage avant cinq générations, peut être globalement conçu sous le régime de la réciprocité, même différée. En l’espèce, et plus encore dans la perspective comparative adoptée ici d’un seul système, de nature transformationnelle, du mariage judéo-islamo-chrétien, il semble plus sage de se contenter du vocabulaire de l’endogamie et de l’exogamie, même si celui-ci apparaît moins « accrocheur » que celui de l’échange matrimonial. Au reste, il s’agit là d’une objection de fond qui n’entache aucunement l’admiration que nous portons à ce livre appelé à devenir rapidement un classique des sciences sociales. Un seul regret le concernant : un appareil de références extrêmement fastidieux à utiliser. L’absence de notes en bas de page, toutes rejetées en fin de volume, et de bibliographie générale se voit bien mal compensée par l’index, aussi exhaustif soit-il.
Emmanuel Désveaux
DENILE, Gérard. L’économie de Dieu. Famille et marché entre christianisme, hébraïsme et islam. Paris: Les Belles Lettres, 2015. 344p. Resenha de: DÉSVEAUX, Emmanuel. Resenha de: Annales. Histoire, Sciences Sociales. Paris, n.4, 2016. Acessar publicação original [IF].
História e Política / Albuquerque: Revista de História / 2016
“definir uma posição singular pela exterioridade de suas vizinhanças; mais do que querer reduzir os outros ao silêncio, (…)”[1]
A opção por História Política como tema central do presente dossiê não tem qualquer relação com uma tentativa de “reduzir” os outros campos da história ao “silêncio”. É preciso ressaltar que a História Política não é uma área fechada, com fronteiras rígidas e inflexíveis. Ao contrário, pautado numa postura interdisciplinar, seu pesquisador vale-se de métodos, técnicas, conceitos, vocabulários e problemas gerados (e germinados) do contato com outras disciplinas e / ou áreas do conhecimento. Desse modo, entendemos que o cultural, o econômico e o político se “influenciam mutua e desigualmente segundo as conjunturas, guardando ao mesmo tempo cada um sua vida autônoma e seus dinamismos próprios.”[2] E de acordo com René Rémond: “se o político tem características próprias que tornam inoperante toda análise reducionista, ele também tem relações com outros domínios.” Conferindo centralidade à postura interdisciplinar, Rémond salientou que o político “liga-se por mil vínculos, por toda espécie de laços, a todos os outros aspectos da vida coletiva.”[3] Portanto, o político “não constitui um setor separado: é uma modalidade da prática social.”[4]
É certo que a postura interdisciplinar contribuiu para o alargamento do campo da história e, particularmente, da chamada “história política renovada.”[5] Nas últimas décadas, objetos até então pouco pesquisados no Brasil passaram a despertar maior interesse dos estudiosos brasileiros. Mídia, intelectuais, opinião pública, discursos e cultura política são apenas alguns exemplos.[6]
Convém observar, igualmente, que a própria noção de política se ampliou. Como, então, definir a política? Sem a pretensão de oferecer uma resposta definitiva e inquestionável, podemos recorrer às formulações de René Remond: “Já que não se pode definir o político por uma coleção de objetos ou um espaço, somos levados a definições mais abstratas. A mais constante é pela referência ao poder.”[7] Por sua vez, Rosanvallon [8] sublinhou com relação ao político: “Pode ser definido como o processo que permite a constituição de uma ordem a que todos se associam, mediante deliberação das normas de participação e distribuição.” Ressaltou, ainda, que devemos considerar a “atividade política” como “subordinada à pluralidade da atividade humana.” [9]
Referências ao poder [10] e postura interdisciplinar são algumas das características dos onze textos reunidos no presente dossiê, além, é claro, de instigantes discussões e reflexões historiográficas sobre a própria constituição da história política como campo de estudos.
No primeiro artigo, o leitor encontrará uma discussão de cunho historiográfica. Em seu texto, Moisés Stahl abordou o chamado “retorno do político” discutindo as formulações de autores como Roger Chartier, Pierre Rosanvallon, Christian Edward Cyril Lynch e René Rémond.
Na publicação seguinte, Juliana Cristina da Rosa analisou a contribuição de Jürgen Habermas para a Nova História Política, enfocando, sobretudo, a relação entre Dignidade Humana e Direitos Humanos. De modo contundente, demonstrou como o teórico alemão criticou o “mau uso” dos direitos humanos como discurso legitimador para ações intervencionistas – e imperialistas – empreendidas por governantes dos Estados Unidos da América.
Já Raphael Silva Fagundes procurou analisar os discursos proferidos pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), descortinando peças de retórica que buscavam legitimar, a partir da noção de progresso, a presença da associação oitocentista no cenário político. Para tanto, enfocou pronunciamentos nas sessões de aniversário do IHGB.
No quarto texto, Pedro Henrique de Mello Rabelo e Cláudia Maria das Graças Chaves trataram da Abertura dos Portos (1808) e do comércio britânico no Brasil tendo como fonte a correspondência do cônsul estadunidense Joseph Rademaker com o governo luso. Refletiram, igualmente, sobre os conceitos de metrópole, colônia, império e sistema colonial.
As biografias acerca de D. Pedro II constituem o escopo do artigo veiculado na sequência. Nele, Mauro Henrique Miranda de Alcântara discutiu o trabalho da antropóloga Lilia M. Schwarcz (As Barbas do Imperador, 1998), bem como os livros dos historiadores José Murilo de Carvalho (D. Pedro II, 2007) e Roderick J. Barman (O Monarca-Cidadão, 2013).
Já os primeiros momentos da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial foram abordados por Paulo Sérgio da Silva e Honorato C. Chagas. Dentre outros temas, trataram da implantação e execução das medidas tomadas pelo governo de Getúlio Vargas em busca dos recursos financeiros, abastecimento de materiais, reorganização produtiva e treinamento da defesa passiva civil.
Os resultados obtidos em dois diferentes estudos ensejaram as reflexões de Douglas Souza Angeli e Marcos Jovino Asturian. No trabalho, os autores abordaram o papel exercido por jornais nas campanhas eleitorais no Rio Grande do Sul. A partir de periódicos de circulação local e / ou regional, analisaram as estratégias discursivas adotadas nas campanhas eleitorais de cidades gaúchas na década de 1950.
No oitavo artigo, Samuel da Silva Alves e Cleusa Maria Gomes Graebin examinaram um discurso de Leonel de Moura Brizola, proferido num evento organizado por acadêmicos da Faculdade de Ciência Política e Econômica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em meados de 1961, momento em que o político ocupava o cargo de governador do Estado.
Já no nono texto, os pesquisadores estabeleceram relações entre literatura, política e ditadura militar no Brasil. Marcio Luiz Carreri e Francislaine A. Carvalho discutiram a peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, escrita em 1933 e encenada, três décadas depois, no Teatro Oficina.
Rock e política compõem o mote para o texto publicado na sequência. Em seu artigo, Paulo Gustavo da Encarnação procurou abordar a relação entre rock e política interpretando versos e acordes de canções como O adventista (banda Camisa de Vênus) Fé nenhuma (banda Engenheiros do Hawaii) e Ideologia (Cazuza).
O último texto da presente edição foi redigido pela pesquisadora argentina Magdalena López. No artigo, López refletiu acerca da história política do Paraguai contemporâneo, buscando compreender, principalmente, os fatores que influenciam a formação e o modelo atual de democracia paraguaia.
Além dos onze artigos, publicamos uma entrevista realizada com a professora Alisolete Antônia dos Santos Weingartner. Na conversa, a pesquisador tratou dos estudos sobre o Movimento Divisionista, a Divisão do Estado de Mato Grosso e a criação de Mato Grosso do Sul. Dentre outros temas, também abordou o seu novo livro, intitulado “Mato Grosso do Sul: a construção de um Estado”.
Por fim, desejamos uma excelente leitura para todos / as que tenham interesse numa publicação de história sem, obviamente, abrir mão do contato com outras disciplinas e / ou áreas do conhecimento, como bem enseja à referência aos escritos de Michel Foucault na epígrafe aqui reproduzida.
Aquidauana-MS, 2016.
Notas
1. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 6.ed. Rio de Janeiro: Florense Universitária, 2000, p. 20.
2. RÉMOND, René. (org.) Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / FGV, 1996, p. 10.
3. Idem, ibidem, p. 35.
4. Idem, ibidem, p. 35-6.
5. BORGES, Vavy Pacheco. História e política: laços permanentes. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, n.º 23 / 24, set 91 / ago 92, p. 16.
6. Não se pretende afirmar que os pesquisadores brasileiros começaram a trabalhar com os objetos citados nos últimos anos. Tomemos, por exemplo, o caso da mídia. Há muito tempo a imprensa escrita é objeto de estudo para os historiadores, como podemos observar a partir dos estudos de SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 1966, CAPELATO, Maria Helena Rolim; PRADO, Maria Lígia. O Bravo matutino: imprensa e ideologia: o jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980 ou CAPELATO, Maria Helena Rolim. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista (1920- 1945). São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. Procuramos salientamos somente que os historiadores tem se ocupado com maior frequência de tais objetos.
7. RÉMOND, René. Do Político. _____. (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / FGV, 1996, p. 443-444.
8. Considerar a proposição do autor para uma história conceitual do político. Cf. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político. Revista Brasileira de História. v.15, n.º 30, p. 9-22, 1995.
9. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010, p. 42.
10. E aqui pensamos em poder também tendo em mente as formulações de Bourdieu. Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
Edvaldo Correa Sotana – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: sotana.ufms@gmail.com
Carlos Martins Junior – Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: martinscjr@gmail.com
Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: miguelrodrigues.snetto@gmail.com
SOTANA, Edvaldo Correa; MARTINS JUNIOR, Carlos; SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.8, n.15, 2016. Acessar publicação original [DR]
História e Linguagens / Albuquerque: Revista de História / 2016
É com imensa satisfação que apresentamos a@s leitor@s de albuquerque: revista de história o dossiê História & Linguagens, conjunto temático de textos proposto com vistas à socialização e debate de pesquisas referentes ao amplo campo de contato interdisciplinar dos estudos da História e das mais distintas Linguagens, em suas diferentes facetas e suportes.
A História, tomada como forma específica de se conhecer e compreender o mundo, passa por transformações, na medida em que a sociedade se transforma e ela não é outra coisa que não um produto humano. É possível que essa seja uma afirmação óbvia, entretanto, em um período como esse no qual estamos inseridos, tão afeito a naturalizações, talvez não seja algo ruim retomar algumas premissas.
A História tem sido elaborada muito próxima a outras formas de compreender o mundo, por vezes sendo confundida com elas. Não somos @s primeir@s, claro. Na construção das hegemonias no vasto campo do ato de conhecer o mundo as tensões entre pensador@s, suas escolhas, suas incursões até outros campos, são percebidas.
Assim, a História já esteve muito próxima das artes, da filosofia, de outras narrativas e ciências. Num rasgo de necessidade, entretanto, inseridos no processo de cientificização da sociedade ocidental característico de fins do século XVIII e do século XIX, seus artífices buscaram o afastamento. Retirados, se impunham a tarefa de elaborar as fronteiras do campo, acompanhado de seus modos específicos de analisar, compreender e narrar as sociedades humanas no tempo. E isso foi feito.
Entretanto, o interesse em dialogar com outros campos, de nos aproximarmos de outras leituras de mundo e suas ferramentas, tem sido uma constante. As fronteiras, que em um primeiro momento foram tomadas como muros servindo para nos separar, foram sendo modificadas e tornadas zonas de contato. ´
Em diálogo com as Ciências Sociais os conceitos foram ampliados, o conjunto de fontes foi tornado quase ilimitado. Tomar de empréstimo à Antropologia o seu largo conceito de Cultura possibilitou um século de avanços robustos na compreensão das ações humanas no seu embate cotidiano com a natureza e entre sujeitos. Os estudos da psiquê, aqueles da economia, da política e tantos mais foram sendo observados e, em alguma medida, apropriados no fazer histórico e historiográfico.
Quando observamos dessa maneira a elaboração do conhecimento histórico, não causa estranheza que, à medida em que novos objetos foram introduzidos no corpo social, eles foram também tomados como forma de acessar os sujeitos e suas ações, agregados a tantos outros que estavam ali há mais tempo. Historiador@s que utilizam a arte para elaboração de suas interpretações podem ser observados desde o século XIX, a exemplo de Jacob Burckhardt e sua Cultura do Renascimento na Itália.
Na produção histórica brasileira, entretanto, é possível perceber a partir de meados dos anos 1990 o aparecimento cada vez mais frequente de trabalhos elaborados a partir do diálogo com as Linguagens e / ou que tomaram / tomam objetos estéticos como corpus documental, exclusivo ou não.
A difusão de autores como Edward P. Thompson, Raymond Williams, Roger Chartier, entre outros, nos cursos de História, foi um movimento importante, responsável por parte dessa ampliação do paradigma histórico nestas plagas. Mas, a partir de fins dos anos 1990, esse tipo de produção historiográfica se torna mais comum no Brasil, possibilitando um continuado incremento desta zona de contato, alargada.
Assim ansiamos, nesse dossiê, verticalizar reflexões e debater teórica e metodologicamente a relação entre história e as linguagens artísticas, a produção virtual, os movimentos de cultura, em suas diversas temporalidades e feições e representações, e os embates intelectuais que de tais expressões surgem.
O dossiê História & Linguagens foi composto como segue: o texto de abertura é de Janaina Cardoso de Mello, intitulado Os crimes contra mulheres nas fontes do Arquivo Geral do Poder Judiciário em Sergipe (1878-1935): cotidiano de poder, denúncias e impunidade; fruto de pesquisa da autora baseada na análise e cotejamento de cinco documentos encontrados naquele arquivo e que possibilitam a compreensão de um cotidiano de violência contra mulheres e impunidade de seus algozes em Sergipe, na passagem do século XIX para o século XX.
O artigo seguinte, Turismo literário: uma análise sobre autenticidade, imagem e imaginário, de autoria de Fernanda Naves Coutinho, Diomira Maria Cicci Pinto Faria e Sergio Donizete Faria, foi escrito com vistas a ampliar o conhecimento sobre esse segmento turístico, inserindo-o em uma teia ampliada de relações advinda da produção, circulação, ressignificação, apropriação de bens culturais, materiais e imateriais.
Já Alessandro Henrique Cavichia Dias busca compreender o processo de travessia de Sérgio Reis de uma carreira de cantor romântico ligado à Jovem Guarda para o mundo do cancioneiro rural, alterando toda a sua performance, inclusa sua indumentária, mas, sobretudo, no que tange ao próprio ritmo, instrumentação, etc. No artigo “O caminho do sertão”: a construção e a concretização da imagem de Sérgio Reis como intérprete da moderna música rural, Dias analisa como uma nova estética caipira seria elaborada pelo cantor, aproximando campo e cidade.
Ceildes da Silva Pereira & Fernanda Correa Silveira Galli tomam como objeto de análise um dos mais relevantes acontecimentos da história recente do país, a aprovação da PEC 241 / 2016, por meio da qual foram limitados os gastos governamentais pelo prazo de vinte anos. Discursos da / na mídia digital: efeitos de sentido sobre a PEC 241 é a análise das autoras, baseada na Análise do Discurso de linha francesa, sobre a construção discursiva daquele fato.
O texto de Wallace Lucas Magalhães, O imaginário social como um campo de disputas: um diálogo entre Baczko e Bourdieu, volta-se para a compreensão teórica das ciências humanas e sociais a partir dos conceitos de imaginário social (de Baczko) e campo (de Bourdieu), inserindo tal processo nas transformações sociais e intelectuais a partir dos anos 1960 na Europa, considerando o permanente imbricamento entre o real e o simbólico.
O artigo de Elite Borges Lopes, intitulado Comunidade da Ilha do Bananal: auto-organização da população em situação de rua na cidade de Cuiabá-MT, encerra esse dossiê. A autora transita pelas ruas da Ilha do Bananal, no centro da capital mato-grossense, e percebe ali a organização da população em situação de rua por meio de seus arte-fatos. Uma bela análise de vivências expressas também na arte pouco observadas pela academia brasileira, ou, ainda, pouco observada por quem quer que seja.
Esperamos que @s leitor@s apreciem as presentes reflexões que reafirmam os diálogos entre as áreas do conhecimento que elaboram análises sobre as sociedades contemporâneas por meio dos mais distintos suportes e com várias nuances, considerando a produção intelectual e artística como expressão relevante da sociedade global.
Na Seção de Artigos Livres, estão quatro outros trabalhos.
Partindo da interpretação de que, desde o período imperial, notadamente a partir da guerra contra o Paraguai (1864-1870), a fronteira oeste se tornaria objeto de interesse e de políticas do Estado nacional, Carlos Alexandre Barros Trubiliano escreve seus Apontamentos sobre as frentes pioneiras na Zona da Mata Rondoniense (1970-2000).
Eduardo Giavara compreende a fronteira como espaço de tensionamento; considerando essa premissa, no artigo As fronteiras do desconhecido: civilização e barbárie no oeste paulista, analisa os processos migratórios do século XIX e as transformações sociais havidas no oeste paulista em decorrência delas, no período que vai da publicação da Lei de Terras (1850) até a aquele da reorganização política daquela região por meio da chegada dos trilhos na cidade de Salto Grande.
Cesar Magolin, no artigo Política operária no pré-64: história e crítica, busca compreender a construção de uma política operária a partir das formulações do Partido Comunista Brasileiro (PCB), inserindo tal fenômeno no amplo e complexo processo político nacional e internacional que precederia o golpe de 1964.
Finalmente, Isabel Camilo de Camargo analisa o processo de formação de Sant’Ana de Paranaíba baseada no âmbito da história ambiental, considerando os embates e apropriações do corpo social com a natureza no tempo, no artigo intitulado Fontes históricas e a ocupação de Sant’Ana de Paranaíba no século XIX: possibilidades para se pensar a História Ambiental.
Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: miguelrodrigues.snetto@gmail.com
Edvaldo Correa Sotana – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: sotana.ufms@gmail.com
Carlos Martins Junior – Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: martinscjr@gmail.com
SOTANA, Edvaldo Correa; MARTINS JUNIOR, Carlos; SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.8, n.16, 2016. Acessar publicação original [DR]
Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX / Samuel Albuquerque
Samuel Albuquerque / Foto: Conectando Com Jota /
Ao dar visibilidade no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX, Samuel Barros de Medeiros Albuquerque, professor da Universidade Federal de Sergipe, narrou neste livro as vivências e experiências da sergipana Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952), futura Dona Sinhá, durante sua estada no Rio de Janeiro com sua família, e sua preceptora alemã, Marie Lassius.
Tais memórias, arquivadas em textos, são fonte de informações preciosas sobre o cotidiano feminino, incluindo o trabalho de governantas, bem como as experiências e práticas culturais de meninas, moças e senhoras na sociedade carioca.
Assim, fazendo uma breve descrição dos familiares de Aurélia, da chegada de Marie Lassius no Brasil e na casa da jovem, ainda em Sergipe, Albuquerque buscou investigar
o universo de preceptoras europeias que viveram entre os grandes centros e a periferia do Império do Brasil e, para tanto, enveredo pelo cotidiano de uma típica família da nossa antiga elite política e econômica, buscando interpretar sobretudo, as práticas culturais femininas (2015, p. 17).
Para isso, Albuquerque abordou no primeiro capítulo, intitulado “Nas memórias de Aurélia”, as experiências e vivências dessa jovem sergipana, bem como das demais mulheres da família, inclusive de sua preceptora alemã.
Ao narrar a conjuntura que levou a família do deputado geral Antonio Dias Coelho e Mello (1822-1904), Barão da Estância, a se mudar para o Rio de Janeiro, e o cotidiano das mulheres da família, Albuquerque conseguiu estabelecer pontos de convergência entre a política e cultura do século XIX.
A ligação política do Barão da Estância rendeu às mulheres da família e à preceptora alemã, o acesso a espaços de sociabilidade típicos da corte carioca, como bailes, jantares, cerimônias políticas e religiosas, inclusive contato direto com a família imperial, por meio das visitas residenciais ou cerimônias específicas.
Além disso, tal ligação política também possibilitou identificar o cotidiano dessas mulheres e suas práticas culturais. Dentre essas práticas, Albuquerque destacou as experiências vivenciadas e narradas por Aurélia nos diversos espaços de sociabilidade em que frequentou com sua família e com sua preceptora.
A frequência nesses espaços possibilitava às mulheres da corte e da elite se conhecerem, trocarem informações e experiências sociais e culturais. Assim, Aurélia, as mulheres de sua família, e sua preceptora, conseguiram se inserir no cotidiano feminino carioca e se adaptarem nessa nova realidade sociocultural, uma vez que todas elas provinham de outras realidades culturais.
Quanto à ligação cultural existente no cotidiano da família sergipana, podemos observar a atenção que o autor deu aos indícios textuais de Aurélia sobre a educação recebida pela preceptora alemã.
Da gramática ao estudo de idiomas e de música, a jovem sergipana foi educada para tornar-se uma mulher culta e preparada para um bom casamento e, consequentemente, saber cuidar da casa, do marido, dos filhos e dos criados.
Sua vivência e experiências pela cidade do Rio de Janeiro, acompanhada por sua família e por Marie Lassius, fizeram de Aurélia uma moça atenta ao cotidiano feminino e aos espaços de sociabilidade por ela frequentados.
Guiado pelos indícios das práticas culturais e dos espaços de sociabilidade acessados por Aurélia, Albuquerque continuou explanando no segundo capítulo, intitulado “No Reino Encantado de Pedro II”, o cotidiano feminino pelo Rio de Janeiro durante o reinado de D. Pedro II.
A frequência nos ritos religiosos, no estabelecimento de modistas franceses, na confeitaria Paschoal, nas residências de políticos e damas da elite carioca, em teatros, museus, passeios públicos, jardins botânicos, zoológico, praias e demais endereços ilustram a diversidade de espaços de sociabilidade existentes na cidade do Rio de Janeiro, bem como os locais permitidos ao acesso feminino.
Toda vivência e experiência obtida durante a estadia no Rio de Janeiro, provavelmente proporcionou a Aurélia noções do cotidiano e das práticas femininas, além de prepará-la para a vida de esposa, mãe e dona de casa.
Assim, com o encerramento das atividades políticas do Barão da Estância no Rio de Janeiro em 1879, ele e sua família retornam a Sergipe, deixando para trás o amigo da família Gonçalo de Faro Rollemberg, futuro esposo de Aurélia, e a preceptora alemã, Marie Lassius que faleceu no mesmo ano.
Aurélia, já amadurecida, continuou escrevendo suas vivências e experiências, porém, não da mesma forma como antes. Diante de seus retornos ao Rio de Janeiro, de seu casamento, filhos que teve, permanecia em sua memória os ensinamentos, as práticas, as vivências e as experiências deixadas por sua preceptora.
Assim, se Samuel de Albuquerque buscou destacar em seu livro a importância da prática da preceptoria no Brasil para a formação feminina, em especialde Aurélia, ele também conseguiu dar visibilidade às experiências, vivências e práticas culturais no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX.
Everton Vieira Barbosa Correio – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Campus de Assis). Bolsista pelo processo 15555-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).E-mail: semusico@hotmail.com.
ALBUQUERQUE, Samuel. Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX. São Cristóvão: Editora UFS, 2015, 152p. Resenha de: CORREIO, Everton Vieira Barbosa. História histórias. Brasília, v.4, n.7, p.231-233, 2016. Acessar publicação original. [IF]
Outras eróticas e desejos possíveis (I) / Albuquerque: Revista de História / 2015
É com imensa satisfação que apresentamos a@s leitor@s de albuquerque: revista de história o dossiê Outras eróticas e desejos possíveis, conjunto temático de textos proposto com vistas à socialização e debate de pesquisas referentes ao amplo campo interdisciplinar dos estudos sobre a sexualidade e as performances de gênero em suas diferentes facetas e suportes.
Na história ocidental a sexualidade e sua relação como o poder, a política e a cultura, remontam à narrativa seminal do Gênesis. No Éden, o criador advertiu ao homem que deveria ter cuidado com a arvore da ciência do bem e do mal, pois se dela comesse haveria consequências negativas. Ali encontramos o cenário e o herói (Adão) originário da saga cristão-ocidental; faltava a vilã dessa história, e senhor resolveu criá-la, fazendo-lhe adjutora de Adão, Eva.
Quando o homem provou o fruto proibido no jardim do Éden, iniciou-se sua conturbada relação com seu corpo e sexualidade. Incitada pela serpente, Eva ousou tocar e provar da árvore que lhe parecia agradável e cujos frutos pareciam bons para serem comidos e os compartilha com Adão. Segunda a narrativa sagrada, o ato de Eva ocorreu em função da curiosidade e da ganancia humanas; os homens ansiavam se comparar a Deus e esperavam que isso ocorresse ao comer do fruto e conhecer o bem e mal; encontraram, entretanto, o castigo da decadência – oriunda do afastamento daquelas plagas e o impedimento de comer da árvore da vida, o que levaria à mortalidade.
Ao provar do fruto perceberam que estavam nus e se cobriram com a folha da figueira. O que antes, segundo a narrativa bíblica, era um mundo natural marcado pela relação harmoniosa entre o criador e a criatura, tornou-se uma experiência de dor, de negação do corpo, da sexualidade e do prazer sexual. O ato de desobediência foi punido severamente pelo criador que amaldiçoou a serpente, e condenou o homem a comer o pão com o suor do teu rosto até que retornasse ao pó e a mulher parir com dor os seus filhos e a desejar seu marido que a dominaria.
(Cumpre, aqui, abrir esse parêntesis, para retomar outra figura feminina, presente nas tradições babilônica e hebraica, associada a Adão: Lilith. Ela teria sido a primeira mulher, feita do mesmo barro que seu companheiro, não de sua costela. Em determinado momento, querendo ficar por cima de Adão durante o coito sexual, teria por isso sido expulsa do paraíso, perseguida por anjos. Enquanto fugia, copulava com animais e demônios, dando à luz outros seres. Teria se refugiado no mar, tornando-se sua senhora. É também associada à noite. Outra vez, a mulher é a transgressora, mas aqui, tendo “ofendido” seu companheiro com sua audácia erótica, sofre sozinha as consequências de seus atos.)
Retomando a passagem da expulsão de Adão e Eva, sobre qual se assenta a longa tradição ocidental de negação do corpo e do desejo, do exercício do poder patriarcal que subordina, explora e mata as mulheres e todos os demais sujeitos considerados inferiores ao homem branco, cristão e europeu. Foi, portanto, a partir da subordinação sexista, misógina e machista que se construiu o projeto de civilização no ocidente, bem como o projeto de colonização que se espalhou por diversas regiões do mundo, as quais, como apontou Michael Foucault, o cristianismo modificou o cenário, fazendo a ligação entre sexo e pecado da carne, distanciando-o da noção de desejo.
Foucault também afirma que a partir do século XVI, com reforço no XIX, o sexo foi incitado a se manifestar. O autor pensa a história do homem e do desejo e realiza uma genealogia de como o homem ocidental foi levado a se reconhecer como sujeito de desejo. A sociedade capitalista não obrigou o sexo a esconder-se. Contudo, ainda hoje, em pese o crescimento do consumo da pornografia, da prostituição (principalmente feminina), da divulgação de discursos de especialistas sobre o sexo e das experiências proporcionadas pelo ciberespaço, ainda lidamos mal com nosso corpo e nossa sexualidade. Ainda existem diversos tabus, sobretudo hoje, com a retomada conservadora em escala global que interdita a discussão sobre a sexualidade na família, na escola e no espaço público de maneira geral.
Assim ansiamos, nesse dossiê, verticalizar reflexões e debater teórica e metodologicamente, além da relação entre história e imprensa escrita, linguagens artísticas, produção virtual, os movimentos feministas, em suas diversas temporalidades e feições, a violência de gênero e os movimentos de afirmação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, bem como suas representações, a sexualidade e suas diversas expressões e representações (artísticas, corporais, sociais), notadamente aquelas divergentes da heteronormatividade e os embates sociais que de tais expressões surgem.
Além disso, debateremos ainda as novas possibilidades de expressão das performances de gênero, seja nas práticas sexuais efetivas ou ainda no ciberespaço. Há na contemporaneidade uma ênfase significativa nos valores e virtudes de instantaneidade e de descartabilidade, sendo importante a capacidade de abandonar rapidamente um sistema de valores e estilos de vida e construir imagens e personas que se moldem a diferentes situações, sobretudo nos ambientes virtuais, espaços nos quais ocorre uma reconfiguração das relações de sociabilidade, da sexualidade, dos corpos e das performances de gênero. Todas as dimensões da sexualidade são reelaboradas nesse ambiente. Corpos, prazeres, sensações eróticas são experimentadas numa nova relação corpo-máquina.
Organizamos esse dossiê em dois volumes, sendo o primeiro “Outras eróticas e desejos possíveis, volume I”, referente ao volume 7, número13 de albuquerque: revista de história, nos meses de janeiro a junho de 2015, o que segue.
Assim, no primeiro conjunto de textos @s autor@s voltam-se ao jornal O Lampião da Esquina, importante publicação sobre a cultura homoerótica no Brasil recente. Edvaldo Correa Sotana e Mellany de Oliveira Guimarães, no texto Ativismo político em traços de humor: as charges veiculadas no jornal O Lampião da Esquina (1978-1981), estabelecem relações entre imprensa escrita, ditadura militar brasileira, política e produção de charges, apresentando dados referentes ao levantamento de charges veiculadas no jornal entre os anos de 1978 e 1981 e indicando as charges como instrumento de ação política na resistência ao regime militar brasileiro. Débora de Sousa Bueno Mosqueira, no artigo “Então chegamos”: representações do feminino nas páginas d’O Lampião da Esquina (1978-1981), analisa as representações produzidas sobre a mulher por meio da categoria gênero no jornal que circulou no Brasil nos anos de 1978 até 1981. Já Victor Hugo da Silva Gomes Mariusso, no texto “Prendam, matam e comam os travestis”: a imprensa brasileira e seu papel na exclusão da população lgbt (1978-1981), busca compreender, a partir de algumas reportagens, como a imprensa brasileira constrói práticas de exclusão e destaca a importância d’O Lampião da Esquina não só como jornal alternativo, mas como ferramenta política que contribuiu para a visibilidade de tais questões em um período marcado pelo regime militar e por mudanças nas formas de atuações dos grupos tidos ali como “minoritários”.
Na segunda parte deste primeiro volume do dossiê “Outras eróticas e desejos possíveis”, os textos focalizam as reflexões acerca da sexualidade e das performances de gênero em suas múltiplas dimensões e representações estéticas, e ainda o gênero como categoria de análise e definidor de grupos sociais e seus movimentos.
Andrew Feitosa do Nascimento, no artigo Os primeiros grupos de afirmação homossexual no brasil contemporâneo, mapeia os grupos representativos do movimento lgbt no Brasil, bem como suas estratégias de visibilidade, a partir de levantamento realizado por meio da bibliografia especializada e dos sítios voltados à temática na rede mundial de computadores. Leonardo Nascimento, no texto Qual ideologia de gênero? A emergência de uma teoria religiosa fundamentalista e seus impactos na democracia, analisa e desconstrói os discursos religiosos fundamentalistas cristão e político-jurídico que circularam na mídia nas vésperas da aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), em 2014, por deputados conservadores, mobilizados por fundamentalistas cristãos dentro e fora do campo da representação política, contra o que foi definido por eles como “ideologia de gênero”. Em A mecanização do prazer: sexualidade e corpo no ciberespaço, Aguinaldo Rodrigues Gomes procura discutir o processo de mecanização do prazer propiciado pelo advento da Internet, identificando uma nova sociabilidade e uma reconfiguração dos corpos no ambiente virtual. Para tanto, recorro a depoimentos colhidos nos sites de “bate-papo”, buscando situá-los no debate teórico acerca da pós-modernidade. Finalmente, Miguel Rodrigues de Sousa Netto, no texto Miditiatização, representações, violência: paradoxos das experiências lgbt no Brasil contemporâneo, nos apresenta uma reflexão sobre as experiências da população formada por transgêneros, lésbicas, bissexuais e gays na história recente e presente do Brasil, indicando o paradoxo da visibilidade / midiatização e a permanência da violência. O autor manifesta sua perplexidade diante manutenção da violência em suas diversas formas, e ainda a manutenção de redes de sociabilidade e encontros eróticos e a midiatização / representação dos / sobre a população lgbt, apontando, finalmente, para a necessidade de ruptura com a cultura hegemônica heteronormativa e mantenedora do binarismo de gênero e da violência que disso advém.
Espera-se, por fim, que @s leitor@s apreciem as presentes reflexões que reafirmam a transversalidade das eróticas e das performances de gênero na sociedade contemporânea, bem como uma cultura que nega a violência de gênero em suas diversas formas e repõe as experiências libertárias dos usos dos corpos, de suas expressões e sociabilidades.
Para além, na Seção de Artigos Livres, Bruno Roberto Nantes Araujo, no artigo intitulado A historicidade do TILS – Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais: do anonimato ao reconhecimento, desenvolve sua análise histórica do aparecimento e transformações do sujeito tradutor e intérprete de Língua de Sinais, abordando também a legislação referente ao mesmo no Brasil. Mais uma vez, diferença e inclusão entram na pauta do dia.
Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: miguelrodrigues.snetto@gmail.com
Aguinaldo Rodrigues Gomes – Doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do Curso de História do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: aguinaldorod@gmail.com
SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.7, n.13, 2015. Acessar publicação original [DR]
Outras eróticas e desejos possíveis – volume II / Albuquerque: Revista de História / 2015
É com imensa satisfação que apresentamos a@s leitor@s de albuquerque: revista de história o dossiê Outras eróticas e desejos possíveis, conjunto temático de textos proposto com vistas à socialização e debate de pesquisas referentes ao amplo campo interdisciplinar dos estudos sobre a sexualidade e as performances de gênero em suas diferentes facetas e suportes.
Na história ocidental a sexualidade e sua relação como o poder, a política e a cultura, remontam à narrativa seminal do Gênesis. No Éden, o criador advertiu ao homem que deveria ter cuidado com a arvore da ciência do bem e do mal, pois se dela comesse haveria consequências negativas. Ali encontramos o cenário e o herói (Adão) originário da saga cristão-ocidental; faltava a vilã dessa história, e senhor resolveu criá-la, fazendo-lhe adjutora de Adão, Eva.
Quando o homem provou o fruto proibido no jardim do Éden, iniciou-se sua conturbada relação com seu corpo e sexualidade. Incitada pela serpente, Eva ousou tocar e provar da árvore que lhe parecia agradável e cujos frutos pareciam bons para serem comidos e os compartilha com Adão. Segunda a narrativa sagrada, o ato de Eva ocorreu em função da curiosidade e da ganancia humanas; os homens ansiavam se comparar a Deus e esperavam que isso ocorresse ao comer do fruto e conhecer o bem e mal; encontraram, entretanto, o castigo da decadência – oriunda do afastamento daquelas plagas e o impedimento de comer da árvore da vida, o que levaria à mortalidade.
Ao provar do fruto perceberam que estavam nus e se cobriram com a folha da figueira. O que antes, segundo a narrativa bíblica, era um mundo natural marcado pela relação harmoniosa entre o criador e a criatura, tornou-se uma experiência de dor, de negação do corpo, da sexualidade e do prazer sexual. O ato de desobediência foi punido severamente pelo criador que amaldiçoou a serpente, e condenou o homem a comer o pão com o suor do teu rosto até que retornasse ao pó e a mulher parir com dor os seus filhos e a desejar seu marido que a dominaria.
(Cumpre, aqui, abrir esse parêntesis, para retomar outra figura feminina, presente nas tradições babilônica e hebraica, associada a Adão: Lilith. Ela teria sido a primeira mulher, feita do mesmo barro que seu companheiro, não de sua costela. Em determinado momento, querendo ficar por cima de Adão durante o coito sexual, teria por isso sido expulsa do paraíso, perseguida por anjos. Enquanto fugia, copulava com animais e demônios, dando à luz outros seres. Teria se refugiado no mar, tornando-se sua senhora. É também associada à noite. Outra vez, a mulher é a transgressora, mas aqui, tendo “ofendido” seu companheiro com sua audácia erótica, sofre sozinha as consequências de seus atos.)
Retomando a passagem da expulsão de Adão e Eva, sobre qual se assenta a longa tradição ocidental de negação do corpo e do desejo, do exercício do poder patriarcal que subordina, explora e mata as mulheres e todos os demais sujeitos considerados inferiores ao homem branco, cristão e europeu. Foi, portanto, a partir da subordinação sexista, misógina e machista que se construiu o projeto de civilização no ocidente, bem como o projeto de colonização que se espalhou por diversas regiões do mundo, as quais, como apontou Michael Foucault, o cristianismo modificou o cenário, fazendo a ligação entre sexo e pecado da carne, distanciando-o da noção de desejo.
Foucault também afirma que a partir do século XVI, com reforço no XIX, o sexo foi incitado a se manifestar. O autor pensa a história do homem e do desejo e realiza uma genealogia de como o homem ocidental foi levado a se reconhecer como sujeito de desejo. A sociedade capitalista não obrigou o sexo a esconder-se. Contudo, ainda hoje, em pese o crescimento do consumo da pornografia, da prostituição (principalmente feminina), da divulgação de discursos de especialistas sobre o sexo e das experiências proporcionadas pelo ciberespaço, ainda lidamos mal com nosso corpo e nossa sexualidade. Ainda existem diversos tabus, sobretudo hoje, com a retomada conservadora em escala global que interdita a discussão sobre a sexualidade na família, na escola e no espaço público de maneira geral.
Assim ansiamos, nesse dossiê, verticalizar reflexões e debater teórica e metodologicamente, além da relação entre história e imprensa escrita, linguagens artísticas, produção virtual, os movimentos feministas, em suas diversas temporalidades e feições, a violência de gênero e os movimentos de afirmação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, bem como suas representações, a sexualidade e suas diversas expressões e representações (artísticas, corporais, sociais), notadamente aquelas divergentes da heteronormatividade e os embates sociais que de tais expressões surgem.
Além disso, debateremos ainda as novas possibilidades de expressão das performances de gênero, seja nas práticas sexuais efetivas ou ainda no ciberespaço. Há na contemporaneidade uma ênfase significativa nos valores e virtudes de instantaneidade e de descartabilidade, sendo importante a capacidade de abandonar rapidamente um sistema de valores e estilos de vida e construir imagens e personas que se moldem a diferentes situações, sobretudo nos ambientes virtuais, espaços nos quais ocorre uma reconfiguração das relações de sociabilidade, da sexualidade, dos corpos e das performances de gênero. Todas as dimensões da sexualidade são reelaboradas nesse ambiente. Corpos, prazeres, sensações eróticas são experimentadas numa nova relação corpo-máquina.
Organizamos esse dossiê em dois volumes, sendo o primeiro “Outras eróticas e desejos possíveis, volume I”, referente ao volume 7, número 13 de albuquerque: revista de história, nos meses de janeiro a junho de 2015, e o segundo volume (referente ao volume 7, número 14, nos meses de julho a dezembro de 20015) o que segue.
Assim, no primeiro conjunto de textos @s autor@s tomam como objeto de suas análises a produção literária. No primeiro artigo deste segundo volume do dossiê, Dilemas sentimentais e identidade homoerótica: uma leitura de Frederico Paciência de Mário de Andrade, Peterson José de Oliveira se debruça sobre o conto de Mário de Andrade escrito e reescrito por dezoito anos, no qual a amizade e o homoerotismo se desenrolam entre dois adolescentes. Um libelo ao desejo. Flávia Benfatti, em Identidade de gênero: a masculinidade hegemônica em Tropic of Capricorn, toma a obra de Henry Miller, publicada em 1961 (traduzida no Brasil em 1975) para acionar as categorias de sexo, gênero, sexualidade como construções sociais, analisando, em especial, o primado da masculinidade. George de Santana Mori, no artigo Queer, identidade e masculinidade em Giovanni, de James Baldwin, busca interpretar as principais personagens do romance publicado em 2008 a partir das questões de gênero e da teoria queer, notadamente a partir da construção identitária das masculinidades homossexual e heterossexual. O embate hegemonia versus diferença permeia sua narrativa. Encerrando esse primeiro conjunto de textos dedicados à literatura está o artigo de João Carlos Nunes Ibanhez, Cartografias homoeróticas: uma leitura de Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu. O autor, interdisciplinarmente, busca compreender a produção de espaços na obra literária de Caio Fernando Abreu, bem como as formas de apropriação de parte destes espaços, especialmente os marginais, por determinados grupos sociais, entre eles os homossexuais, transformando a margem em seu locus de atuação. Literatura, espacialidade e tensões sociais são o foco de Ibanhez.
No segundo conjunto de artigos que compõe o segundo volume do dossiê Outras eróticas e desejos possíveis, encontra-se o texto de Robson Pereira da Silva, “Nenhuma malícia será castigada”: eróticas no corpo e no palco de Ney Matogrosso, no qual o autor analisa aspectos do espetáculo Mato Grosso, de 1982, de Ney Matogrosso, compreendendo-o na conjuntura de sua produção, ou seja, no Brasil da abertura, da decadência da ditadura militar estabelecida por meio do Golpe de 1964, trazendo à baila os sujeitos marginais tornados arquétipos pelo artista, tais como índios, caipiras e malandros, carnavalizados, erotizados. Antonio Ricardo Calori de Lion, no artigo Ivaná: a grande dúvida no Teatro de Revista dos anos 1950, apresenta um belo estudo sobre as ambiguidades da representação de gêneros da transformista Ivaná, nos anos 1950, no Teatro de Revista da Companhia de Walter Pinto. A repercussão da dúvida sobre a performatividade de gênero do / a artista foi objeto de matérias na imprensa escrita, de capas de revista. Compreender esse impacto no Brasil dos anos 1950 é uma tarefa importante para o conjunto dos estudos Gays, Lésbicos e Transgênicos da atualidade. Encerrando o dossiê, Diego Aparecido Cafola, no texto Madame para uns, Satã para outros: uma leitura do corpo marginal em Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz, busca, a partir da interseccionalidade, compreender a personagem criada por Aïnouz e vivida nas telas pelo ator Lázaro Ramos, João Francisco dos Santos, e sua transformação em Madame Satã, uma das lendas da boemia e da malandragem cariocas. Aqui, a violência tornada linguagem, a navalha transformada em resposta.
Espera-se, por fim, que @s leitor@s apreciem as presentes reflexões que reafirmam a transversalidade das eróticas e das performances de gênero na sociedade contemporânea, bem como uma cultura que nega a violência de gênero em suas diversas formas e repõe as experiências libertárias dos usos dos corpos, de suas expressões e sociabilidades.
Para além, na Seção de Artigos Livres, Cássio Rodrigues da Silveira, no artigo intitulado Crise do regime de historicidade moderno, individualização e confiança: entre os movimentos e as mobilizações, analisa o tipo de indivíduo e de individualidade que têm sido produzidos na contemporaneidade, a partir de proposições de R. Koselleck e F. Hartog, avaliando suas implicações para a efetivação dos movimentos sociais. Mais uma vez, indivíduo, coletividades, diferença e tensionamentos sociais entram na pauta do dia.
Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: miguelrodrigues.snetto@gmail.com
Aguinaldo Rodrigues Gomes – Doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do Curso de História do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: aguinaldorod@gmail.com
SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.7, n.14, 2015. Acessar publicação original [DR]
O Golpe de 1964: Reflexos, Desdobramentos e Olhares Cinquenta Anos Depois / Albuquerque: Revista de História / 2014
O ano de 1964 mal havia se iniciado e, no seu horizonte, já se avistavam nuvens pouco alvissareiras. No ocaso de um mês de Março especialmente conturbado, um Golpe de Estado abalou a jovem república brasileira. Seus autores e mentores, militares e civis, representavam um vasto espectro das forças da direita no Brasil, desde os setores mais conservadores das forças armadas, da igreja e do latifúndio, até os grupos empresariais mais modernos e dinâmicos, da indústria, comércio ou mídia, frequentemente vinculados a interesses e capitais estrangeiros.
O Golpe, produto final de uma longa gestação conspiratória, mesmo que desordenada, e, cuja justificação era dada em termos de “defesa” da democracia contra o comunismo, foi desferido, paradoxalmente, contra um governo democraticamente eleito, mas cujo projeto econômico, político e social de cunho nacionalista, moderado e reformista não mais correspondiam aos anseios e interesses das elites dominantes.
Mais do que isso, o Golpe no Brasil também sinalizava aos países vizinhos que os modelos de desenvolvimento pautados na participação do Estado na economia, na substituição de importações e baseados no pacto social se encontravam à beira do colapso. No particular contexto histórico da Guerra Fria, tais governos se encontraram assimetricamente imprensados: pelo alto, sob a agressiva investida dos imperialismos, especialmente o estadunidense, no marco de ascensão de um novo regime de acumulação integral de capital; e, pela base, com a radicalização dos movimentos sociais contestatários inspirados nas recentes experiências revolucionárias, anti-imperialistas e de libertação nacional do mundo periférico. E conviria destacar, em especial, o caso de Cuba que, destarte o seu reduzido espaço geográfico e limitado poder ofensivo real, foi superdimensionada como uma ameaça ao poderio econômico-militar de Washington em todo o continente por tornar-se um exemplo de ousadia e resistência frente aos Estados Unidos e, cuja experiência revolucionária poderia ser, em tese, emulada em qualquer país latino-americano, desde a fronteira do Rio Grande, ao norte, até os confins patagônicos.
Neste ano de 2014, completa-se exatamente cinquenta anos do Golpe de Estado de 31 de Março / 01 de Abril de 1964. Os remanescentes e herdeiros ideológicos da ditadura ainda continuam a bradara desgastada cantilena de que o Golpe de 1964 foi uma “ação democrática” para “salvar o país” de uma pretensa ameaça do comunismo. Porém, tais acepções sobre o ocorrido em 1964 não recebem, nos dias de hoje, um eco similar ao que eles outrora receberam da sociedade em geral. Durante o seu longo período de duração, a ditadura brasileira (em especial) conseguiu forjar uma representação bastante positiva no imaginário social e político, apesar do emprego sistemático da violência institucional e das repetidas violações aos direitos humanos cometidos ao longo desses vinte e um anos (com intensidade variada, conforme necessidades conjunturais). Evidentemente que tal percepção “benévola” encontrava arraigo nos setores favorecidos com o regime, especialmente nas classes alta e média, mas não somente.
Apesar de suas particularidades nacionais, as Ditaduras de Segurança Nacional do Cone Sul utilizaram (em graus distintos) a lógica binária da “mão que bate é a mão que afaga” e empregaram o terror Estatal buscando combinar medo generalizado e terror pontual com recompensa material para ampliar uma base de apoio em determinados grupos sociais. Assim, os governos equacionaram o Terrorismo de Estado (simultaneamente seletivo e indiscriminado, o que lhe garante um efeito de irradiação social) com mecanismos de criação de consenso social. Consenso este que seria obtido, em parte, mediante concessões de benefícios materiais a setores da população. Mas, além disso, não podemos esquecer o peso exercido pela propaganda maciça exercida desde e para o Estado, por seus agentes, mas também por seus colaboradores (mídia, personalidades artísticas, lideranças civis, etc.), em combinação com instrumentos tais como a censura, a repressão, a desqualificação, a criminalização, a demonização e, em alguns casos, até o extermínio físico daqueles tidos como opositores mais perigosos.
A combinação e interação desses fatores não somente possibilitou a hegemonia do poder, como também delineou o nível de sucesso ou aceitação dos regimes ditatoriais do Cone Sul que aplicaram o terror de Estado, moldando o teor positivo ou negativo da sua imagem e garantindo a permanência desta construção tanto no plano subjetivo quanto na memória coletiva. Especificamente no caso brasileiro, não era incomum ouvirmos (e até ouvimos ainda!) em expressões orais e escritas do senso comum (ecoa até mesmo em meios acadêmicos), a percepção de que, apesar da violência, dos abusos e da corrupção da ditadura, o saldo do regime militar foi positivo, seja porque possuía um projeto de desenvolvimento que deixou um “legado” ao país, ou porque teve um relativo sucesso em matéria econômica, ou porque havia mais “ordem e segurança”…
Em outras palavras, pode se dizer que, em determinados grupos sociais se exerceu (e se exerce ainda) uma clara relativização do emprego sistemático do terror, das arbitrariedades e dos crimes cometidos pela ditadura, e nessa relativização (que ora beira a banalização, de tão grosseira), que se traduz em um mero “balanço” entre os crimes e as benesses do regime, os segundos terminam geralmente ofuscando os primeiros, de modo a gerar uma hierarquização um tanto inversa. Aqui no Brasil, o terror e o “milagre econômico” foram instrumentos de dominação e cooptação, em tese opostos, mas utilizados de modo complementar. Todavia, ao contrário de outros países vizinhos, o terror foi administrado de forma mais especifica e aplicado com precisão quase cirúrgica, principalmente se comparado com a extensão e a profundidade do terror estatal aplicado na Argentina.
Ao contrário da ditadura argentina, a ditadura brasileira soube focalizar precisamente na sua mira os sujeitos considerados alvos da repressão e, assim, direcionar verticalmente a aplicação dos mecanismos do terror. Entretanto, esse caráter pontual da violência repressiva no Brasil não significa que o regime tenha sido “brando”, se comparado aos outros regimes ditatoriais e, por extensão, “melhor” que eles. Se a ditadura brasileira torturou, assassinou e ocultou os cadáveres de seus oponentes em menor proporção do que a ditadura vizinha foi porque considerou que não havia necessidade concreta de fazê-lo em grande escala.
Assim sendo, independente das comparações “estatísticas” de contagem de mortos e / ou desaparecidos que possam ser efetuadas entre as ditaduras de Segurança Nacional para medir um suposto grau de brutalidade de tal ou qual regime, o que deve ser observado, em tais regimes, são características estruturais, tais como a sistematização e aplicação da tortura em grande escala, a racionalidade da repressão, a metodologia “científica” do terror, suas justificativas políticas e o arcabouço ideológico empregado foram muito similares em todas as ditaduras do Cone Sul.
Passados cinquenta anos, não se pode negar que o nosso país (em similar sintonia com o nosso subcontinente) passou por consideráveis mudanças históricas e que estas contribuíram para modificar a percepção da atual sociedade brasileira sobre aqueles tempos passados. No plano político-institucional, e especialmente nos últimos anos, com a assunção de governos mais identificados com as questões sociais e historicamente vinculados àqueles setores progressistas ou de esquerda e que participaram ativamente do polarizado cenário político dos anos 1960 e 1970 se reacendeu o debate sobre o incômodo passado recente, um debate postergado e ofuscado no imediato pós-ditadura. Em novembro de 2011, foi criada a Comissão Nacional da Verdade (CNV)1 , após anos de embates políticos entre militares e civis para definir alcances e limites de atuação que essa Comissão teria. Tal iniciativa, mesmo que tardia, exemplifica esse olhar atual do Poder Executivo com relação a medidas vinculadas à questão da memória e a busca da verdade histórica, em nome de uma reconciliação nacional efetiva.
No entanto, em função da condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no final de 2010, as ações do Estado brasileiro nesse sentido deveriam ser mais aprofundadas. No entendimento da CIDH, não basta apenas à criação da CNV ou facilitar o acesso à documentação repressiva pelas vítimas, seus familiares e também a pesquisadores em busca de informação antes proibida. O que é fundamental é que o Estado brasileiro remova todos os obstáculos jurídicos para poder “conduzir eficazmente a investigação penal dos fatos do presente caso, a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei disponha”2. E isto significa, segundo especialistas da área jurídica, começar pela anulação da Lei de Anistia de 1979 3.
Cabe recordar que, ao longo da década de 1980, o Estado brasileiro advindo “democrático” procurou colocar uma “pedra” sobre os crimes da ditadura. Certamente que a assimétrica Lei de Anistia, duramente negociada entre a ditadura (ainda na posse das rédeas do poder) e alguns setores da “elite” da oposição, no marco de um progressivo descontentamento geral da população com o regime (especialmente após evidenciar os limites do “milagre”) não deixava margem de manobra para tais discussões, o que redundou em “perdão incondicional” aos agentes da repressão e uma incontestável vitória dos setores da “linha dura” militar, que permaneceram impunes.
Por outro lado, deve se apontar que, sob a justificativa de não atravancar o processo de transição para um Estado democrático de direito, os governos civis evitaram enfrentar o poderio militar, bem como tocar no problema da sujeição das Forças Armadas às regras do jogo democrático. Por fim, não se pode obliterar que parte considerável da elite (em especial os políticos e empresários) e da classe média brasileira era também comprometida, direta ou indiretamente, e em maior ou menor grau, com o regime ditatorial pregresso, o que explicaria seu interesse em “esquecer” determinadas ações e alianças do passado que não lhe seriam adequadas nem favoráveis naquele ambiente de devir “democrático”. Nesse sentido, a “amnésia histórica” converteu-se em prática oportuna e corrente de distintos setores sociais.
Nos dias atuais, é possível evidenciar que o Estado brasileiro, pelo menos na figura do poder executivo, efetuou “um passo a frente” no sentido de responder às históricas demandas pelo direito à memória e à verdade. Mas, haverá por parte das outras instâncias do Estado um “segundo passo”? Isto é, como enfrentar a demanda por justiça? Esta questão primordial ainda carece de resposta efetiva. O poder judiciário, até o momento, tem recuado diante desta problemática, especialmente no que tange a revisão da Lei de Anistia, pois o Superior Tribunal Federal continua a ratificá-la, à revelia de instância jurídica internacional e em claro desrespeito aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário.
Neste sentido, porém, a demanda por justiça tem lugar na pauta da atual agenda das novas gerações que participam dos movimentos sociais. Se durante décadas as reclamações pelos crimes da ditadura se restringiram a círculos de vítimas e seus familiares, ex-presos políticos, militantes ou a organizações de direitos humanos, esta questão agora transcende este núcleo inicial, impregnando e polarizando o debate nos distintos âmbitos do tecido social. E neste contexto favorável à memória, não estranhamente, surgem as outrora silenciadas “memórias subterrâneas” dos sobreviventes desse passado traumático e que hoje encontram eco, tanto com a juventude, interessada em conhecer um passado que lhes foi “negado”, quanto com os historiadores (e outros pesquisadores das áreas humanas) interessados em produzir conhecimento sobre esses temas em meio a esse processo de emergência de antigas questões e revalorização das experiências daquele tempo passado. Ou seja, preocupados em compreender por que esse passado não elaborado “teima em passar”, aflorando em determinados contextos e nos relembrando permanentemente da sua vigência.
Ao encontro deste momento histórico tão significativo, a Revista Albuquerque dedica este Número 11 a temática das Ditaduras de Segurança Nacional no Brasil e Cone Sul, com o Dossiê intitulado: O Golpe de 1964: Reflexos, Desdobramentos e Olhares Cinquenta Anos Depois. Embora inicialmente focado na experiência ditatorial brasileira, em virtude da data a ser rememorada, este Dossiê pretende abordar a temática desde uma perspectiva mais abrangente. Não somente em termos de expressar a diversidade de olhares e enfoques possíveis sobre as ditaduras partindo de prismas teóricos e metodológicos distintos. Mas especialmente em termos de ampliar o recorte geográfico ao incluir pesquisas históricas sobre / ou os “nossos vizinhos” da região, por entender que existem interconexões, elementos em comum que, independente de particularidades, vinculam as distintas experiências ditatoriais do Cone Sul entre as décadas de 1960 e 1980.
O presente Dossiê inicia com o texto de Carlos Artur Gallo “Comissões da Verdade em Perspectiva: notas sobre a experiência uruguaia, chilena e argentina”, em que o autor, após historicizar sobre o período autoritário na Argentina (1976-1983), no Chile (1973-1990) e no Uruguai (1973-1985) nos estabelece, em escala comparativa, uma análise concisa sobre as distintas formas que os países do Cone Sul enfrentaram a problemática que encerra a trinômia memória, verdade e justiça, nos seus respectivos processos de democratização, na tentativa de fazer face aos problemas do “legado” do passado ditatorial.
O artigo de Jefferson Gomes Nogueira, “História, imprensa e a construção da realidade durante o regime militar no Brasil (1964 / 1985)”, aproxima-nos mediante o estudo da produção histórica sobre a imprensa e o regime militar no Brasil, dos mecanismos e agentes utilizados (censura, propaganda, censores, jornalistas, etc.) tanto pelo aparato estatal repressor, quanto pelos seus colaboradores privados para construir uma “realidade” parcial e conveniente que lhe possibilitasse atingir a hegemonia e o controle social pretendido. Desde uma perspectiva estadual, Cristina Medianeira Ávila Dias, discorre sobre “O terrorismo de Estado (TDE) no Rio Grande do Sul: perseguição, prisãoe tortura de militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)”, utilizando como ponto de partida, o surgimento de um grupo armado de esquerda, no extremo sul do Brasil, e estabelecendo a relação deste com o desenvolvimento e a consolidação da estrutura repressiva montada pelos órgãos de segurança para combater as atividades das forças que resistiam ao regime, bem como aborda a metodologia empregada pelo aparato repressivo.
Já Enrique Serra Padrós nos apresenta, em seu artigo, uma reflexão sobre um tema delicado e pouco abordado, aqui no Brasil em particular: “A guerra contra as crianças: práticas de sequestro, desaparecimento e apropriação de identidade no século XX”. Nesse artigo, focaliza as experiências do sequestro de crianças durante as ditaduras de Segurança Nacional da Argentina e do Uruguai, ocorridas entre as décadas de 1970 e 1980, uma das mais brutais práticas do Terrorismo de Estado platino inserido na lógica da captura do “butim de guerra” e vinculado aos projetos de “refundação” social trazidas no bojo ideológico de tais ditaduras. Além disso, Padrós contextualiza e estabelece uma relação desta prática criminosa com outras experiências correlatas (na Europa ocupada pelo nazismo, na Espanha de Franco e nos recentes conflitos armados da África), no transcorrer do século XX e início do XXI, apontando a persistência destes mecanismos de opressão social, os profundos traumas por eles gerados e como tais crimes se projetam ao longo do tempo, incidindo sobre diversas gerações.
O artigo de Ananda Simões Fernandes e Silvia Simões, “Apontamentos acerca da conexão repressiva entre as ditaduras brasileira e chilena”, perscruta a multifacetada e complexa rede de conexão repressiva entre as ditaduras brasileira e chilena, chancelada após a vitória do golpe de Estado chileno, em 11 de setembro de 1973. A pesquisa das autoras, baseada em fontes primárias, centra sua análise na atuação combinada de organismos brasileiros e chilenos nos mais diversos âmbitos (policiais, diplomáticos, etc.) em sua colaboração na luta contra a “subversão”, e como essa conexão se consolidou em direção à formalização de uma rede orgânica e transnacional de repressão extraterritorial, que envolveria o conjunto das ditaduras do Cone Sul, e que passaria para a história da região como a “Operação Condor”.
A autora Caroline Silveira Bauer, no texto “Um passado que não passa: a persistência do crime de tortura na democracia brasileira”, disseca uma das ferramentas mais amplas e intensamente utilizadas pelo Estado terrorista brasileiro, a tortura. No entanto, o trabalho não se restringe sua análise ao período ditatorial somente, pois a autora excede os limites temporais da ditadura e incursiona sobre a permanência de tal prática abjeta até os dias de hoje. Um tema que nos leva a refletir duplamente. Por um lado, sobre as continuidades das práticas dos regimes ditatoriais sob o manto democrático e, por outro, sobre o próprio caráter e o alcance da nossa democracia.
Seguindo na dinâmica dos processos de transição das ditaduras para os regimes democráticos, Claudia Wasserman nos apresenta “Democracia e ditadura no Brasil e na Argentina: o papel dos Intelectuais”. A autora, cuja densa narrativa nos transporta até a década de 1980, foca seu olhar nos intelectuais brasileiros e argentinos, comparando e analisando o papel representado por estes, enquanto sujeitos políticos, sociais e históricos, no contexto da chamada redemocratização. Um período promissor em termos de efervescência social e cultural permeado pela retomada da discussão política e pela possibilidade de retorno daqueles que haviam padecido o exílio; mas que também foi uma era impregnada pela “cultura do medo”, pela desconfiança mútua entre os que haviam permanecido e aqueles que haviam partido ou obrigados a partir, bem como profundamente marcada pelas então recentes cicatrizes provocadas pelas experiências autoritárias.
Mario Hugo Ayala, em “Los exiliados argentinos en Venezuela ante el inicio de latransición a la democracia en la Argentina”, também efetua seu recorte temporal no período da transição, porém, desde outra interrelação geográfica e transnacional: Argentina e Venezuela. Ele aborda especificamente o fenômeno do exílio dos argentinos (um dos mais numerosos exílios da região) perante às questões surgidas com a volta da democracia e os dilemas que esta apresentava, por exemplo, a possibilidade do regresso ao país, mas também o leque de problemas políticos, grupais e subjetivos que o “retorno” (ou desexilio) paradoxalmente gerava. O artigo de Ayala está embasado em ampla documentação, utilizando-se de testemunhos publicados e, principalmente, de materiais inéditos oriundos de fontes orais.
Encerra o nosso Dossiê a obra de Monica Piccolo Almeida, “Agentes e Agências no Ocaso da Ditadura Empresarial Militar e a Reedição do ‘Milagre’”. Nesse texto, a autora propôs-se a analisar as diretrizes que guiaram a política econômica da ditadura brasileira em sua derradeira etapa, o governo de João B. Figueiredo, utilizando como hipótese central que os intentos aplicados em matéria de política econômica pretendiam recuperar os níveis de crescimento da década anterior, buscando o ressurgimento do “milagre econômico”. No entanto, tais tentativas estiveram perpassadas por contradições inerentes ao próprio sistema capitalista e pelas formas que este adquiriu nas regiões periféricas e dependentes, bem como por disputas, em virtude de interesses diversos, dentre os grupos da classe dominante mediante a ação de agentes específicos, públicos e privados, inseridos diretamente ou não no seio do aparato estatal.
Desse modo, e seguindo uma perspectiva acadêmica plural e democrática, bem representada por esta diversidade e riqueza temática, assim como pelas distintas aproximações e análises do passado apresentadas pelos autores neste Dossiê (cada um partindo de abordagens teóricas e metodológicas diferenciadas), procuramos contribuir com a reflexão crítica e o debate histórico sobre o nosso passado recente e compartilhado aqui na região sul da América do Sul, promovendo o avanço do saber (dentro e fora da academia), bem como da produção historiográfica. Esperamos que o resultado final, este Dossiê Número 11 da Revista Albuquerque, agrade aos nossos leitores exigentes.
Notas
1. lei 12.528 / 2011. a cnv iniciou os seus trabalhos em maio de 2012.
2. cidh, caso gomes lund e outros (“guerrilha do araguaia”) vs. brasil, exceções preliminares, mérito, reparações e custas, sentença de 24 de novembro de 2010, série c, nº 219, parágrafo 256. citado por gomes, luis f. disponível em: http: / / www.conjur.com. br / 2011-mar-10 / coluna-lfg-lei-anistia-viola-convencoes-direitos-humanos
3. lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.
Jorge Christian Fernández – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Professor de História da América do Curso de História (Campus Campo Grande / MS) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: intbrig@yahoo.com.br
FERNÁNDEZ, Jorge Christian. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.6, n.11, 2014. Acessar publicação original [DR]
Escrita da História | GME | 2014
A Revista Escrita da História (Formiga – MG, 2014-) é um periódico científico independente [Grupo MultiAtual Educacional], de orientação marxista, organizado por pesquisadores que estão ou já estiveram vinculados a Programas de Pós-Graduação em Ciências Humanas nas condições de discente ou docente. Tem como objetivo publicar trabalhos acadêmicos inéditos no campo das Ciências Humanas, que devem contemplar o uso de fontes primárias e secundárias. [Apresentação Atual].
A Revista Escrita da História (2014-) tem por finalidade a publicação de trabalhos científicos inéditos na área das Ciências Humanas e Sociais, com o objetivo de promover a produção acadêmica, tanto de pesquisadores em início de trajetória quanto de investigações já consolidadas, desde que sejam trabalhos de fôlego analítico. [Apresentação em 2020].
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ISSN 2359 0238
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Fontes | UNIFESP | 2014
A Revista de Fontes (Guarulhos, 2014-) um periódico revisado por pares que divulga fontes documentais por meio da transcrição de documentos, da tradução de fontes para o português e da publicação de instrumentos de pesquisa, que desse modo ficarão disponíveis para todo o meio acadêmico, num suporte digital.
A Revista de fontes também tem como missão a publicação de textos autorais sobre tipos ou conjuntos documentais, proporcionando assim subsídios metodológicos para a exploração dessas fontes.
A transcrição e/ou tradução de documentação manuscrita ou mesmo impressa, paleográfica ou epigráfica, de todos os períodos históricos, ganha nessa troca de suporte um público amplo que poderá não só consultar esses textos, mas também fazer buscas por palavras ou expressões a partir das versões disponibilizadas on-line.
A transcrição, assim como a imagem numerizada, ou ainda a tradução nunca substituem completamente o material original. Mas o uso de normas estritas de transcrição permite que os documentos publicados na Revista de fontes realmente sirvam como instrumento de trabalho para historiadores e outros especialistas das ciências humanas e sociais.
A publicação de instrumentos de pesquisa inéditos visa divulgar, através de descrição sumária ou analítica, a composição de acervos, fundos, conjuntos, séries ou coleções documentais.
Esses instrumentos, sejam guias, catálogos, inventários ou índices, publicados na Revista de fontes, permitem que o historiador e o pesquisador de outras áreas das ciências humanas e sociais identifiquem e localizem os mais diversos tipos de documentos.
A Revista de fontes é uma iniciativa do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-Unifesp).
Periodicidade semestral.
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Impressões Rebeldes | UFF | 2013
A Revista Impressões Rebeldes (Niterói, 2013-) divulga, desde 2013, estudos sobre as resistências e os protestos, no Brasil ou em outros lugares. Qualquer tema relacionado ao fenômeno das rebeliões, seja onde for ou em qualquer tempo histórico, desde que fundamentado em pesquisas, será bem recebido.
Essa publicação é dirigida a estudiosos, professores e pesquisadores, mas também a leitores leigos, por isso buscamos empregar uma linguagem fluida e um texto com perfil mais curto e objetivo, prezando sempre por apresentar um conteúdo rigoroso.
A equipe editorial vai cuidar para que seu trabalho contribua da maneira mais ampla para os debates sobre história e ciências sociais.
Em 2022 esse periódico incorporou dezenas de artigos de colaboradores espalhados pelo Brasil e pelo exterior que, desde 2013, vinham sendo publicados na seção “Temas em Debate”, da antiga versão do atual site Impressões Rebeldes.
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Mídia e Política / Albuquerque: Revista de História / 2013
Toda história é presente e aos vivos ela pertence. Diversos historiadores disseram a mesma coisa com outras palavras, em tempos diversos e de diferenciadas maneiras. O importante, contudo, é consolidar a idéia de que o objeto de estudo da história é o homem, o seu tempo e as suas construções.
A revista Albuquerque, em sua nona edição, está viva e presente. A cada número que vem à luz, amadurece e solidifica a sua proposta original de divulgar estudos inovadores que revigoram a área de conhecimento da história, enfatizando temáticas regionais. Mas, como representação da produção histórica viva e presente no ambiente acadêmico contemporâneo, a revista assume também a forma apropriada de um caleidoscópio de temas e de abordagens balizadas sempre pelo critério de qualidade científica.
Dessa forma, em sua primeira parte estão publicados artigos completos e de diversas e interessantes abordagens: Impactos sobre o desenvolvimento regional decorrentes do Assentamento Itamarati, Ponta Porã (MS): 2001 -2010, de Maria de Fátima Lessa Bellé, Gilberto Luiz Alves e Celso Correia de Souza; Nacionalismo, antifascismo e internacionalismo nas Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola (1936 -1939) de Jorge C. Fernández; Do Tejo ao Rio das Mortes: sobre fazer-se “homem bom” na longínqua Vila de São João Del Rei. Séculos XVIII e XIX de Tarcisio Greggio e Relações de trabalho e industrialização recente na periferia de Vitor Wagner Neto de Oliveira.
Na segunda parte, a revista Albuquerque, com o Dossiê Mídia e Política, apresenta um painel significativo e oportuno, tendo como eixo a imprensa brasileira que ainda reflete os seus dilemas históricos na sua difícil convivência e articulação com outras esferas de poder, com as incertezas da crise de paradigmas do nosso século e mudanças sociais, econômicas e tecnológicas vertiginosas. De fato, debruçar sobre o passado para buscar a compreensão e a explicação do nosso mundo, do nosso tempo e dos processos históricos que os produziram, é a especial e principal responsabilidade dos historiadores, iniciantes e veteranos aqui representados vivos e presentes.
O Caderno Especial dedicado a divulgar documentos interessantes para a história regional, nesta edição, acompanha a temática dos trabalhos do Dossiê Mídia e Política, reproduzindo um artigo do jornal A Tribuna de Corumbá, de 1943. O autor, Lobivar de Matos, falecido prematuramente aos trinta e três anos de idade, foi um expoente da poesia moderna da língua portuguesa, apenas reconhecido recentemente por pesquisadores da literatura regional. Naquela oportunidade, Lobivar de Matos homenageou a figura do cidadão Pedro de Medeiros, também poeta, líder popular e corumbaense proeminente.
Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.5, n.9, 2013. Acessar publicação original [DR]
A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios entre o Brasil e o Paraguai – ALBUQUERQUE (RTF)
ALBUQUERQUE, José Lindomar Coelho. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010, 268p. Resenha de: BALLER, Leandro. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 2, jul.-dez., 2012.
De forma clara o autor no início do livro observa as suas relações com os su-jeitos, ou atores sociais da pesquisa, mostrando ao leitor a sua análise metodológica e teórica, sem perder de vista o seu metiê, que é a Sociologia, ou melhor, às Ciências So-ciais, sem, todavia, esquecer dos perigos que uma pesquisa no ambiente fronteiriço re-presenta ao pesquisador.
Isso posto, auxilia na compreensão do objetivo central do trabalho que está ligado a pensar as representações nacionais e as relações de poder entre o Brasil e o Paraguai, a partir dos discursos dos imigrantes, líderes camponeses paraguaios, jornalistas, empresários, religiosos, entre outros. Acredito que as tipologias de fontes utilizadas supriram os objetivos no tratamento da problemática, as entrevistas, as reportagens nos jornais e revistas, e os documentos analisados foram suportes para pensar tais representações, no recorte da análise.
Referente à bibliografia ela se mostrou variada tanto no tocante às explicações teóricas e do tema específico, percebi uma preocupação em aplicar a interdisciplinaridade especialmente na construção textual, mesmo compreendendo que tal preo-cupação é resultado imediato do trabalho de campo, ou seja, não basta utilizar a inter-disciplinaridade referindo-se apenas a autores e obras de outras áreas, mas sim, esta-belecer da melhor forma possível um diálogo interdisciplinar.
As fronteiras são conceituadas na pesquisa como um limite territorial nas migrações fronteiriças, quanto à presença de brasileiros no Paraguai, sem deixar de lado, as questões políticas, jurídicas e culturais. As representações abordadas pelo au-tor muitas vezes são negativas por meio de conflitos violentos e disputas de território, a imigração clandestina, o tráfico de drogas e o roubo de carros é uma das realidades reforçadas pela imprensa, não que isso seja mentira, mas auxilia na estigmatização acentuada dessas ocorrências. O fenômeno da imigração produz pluralidades de fronteiras, entre o material e o simbólico, a abordagem historiográfica como paradigma a ser seguido nos leva a aplicar grande parte de seus significados na Marcha para o Oeste, algumas vezes confundida até mesmo com a abordagem de Turner, como um mito fundacional da identidade que é elaborada pelos historiadores, a percepção da alteridade pelos antropólogos, sociólogos e geógrafos, que tentam explicar o movi-mento migratório no Brasil pelas frentes de expansão e frente pioneira. No caso dos Brasiguaios isso não se aplica nas migrações fronteiriças. O autor reconhece as diferentes perspectivas e inovações no cenário dos atuais estudos fronteiriços especial-mente etnográficos e históricos, e não apenas aqueles que se dão em relação aos estudos que refletem sobre locais privilegiados de análise, dessa forma encontramos nesses atores sociais o cruzador de fronteiras e o reforçador de fronteiras, tais processos po-dem ser vistos nas teorias pós-coloniais.
A articulação do autor entre as vertentes de pensamento se dá de maneira bastante clara, como por exemplo, com o que denominamos na historiografia de pós-moderno. “Os espaços de intercâmbio cultural não significam espaços de integração social. Hibridismo não é sinônimo de integração” (p. 51). O que parece ser uma característica do pesquisador em relação ao tema; quero dizer que a clareza entre correntes de pensa-mento é para mim um “trânsito” intelectual que coloca o autor em evidência na perspectiva dos estudos fronteiriços.
Seguindo como referência as teorias dos movimentos migratórios tradicionais – migrar do mais pobre para o mais rico – a tônica migracional do Brasil para o Para-guai está invertida, e a grande quantidade de brasileiros indo para o país vizinho a par-tir de 1960 e se acentuando na década de 1970 se explica por alguns fatores; como a proximidade geopolítica, a migração espontânea, as políticas de incentivo, a construção da Itaipu, e o boom do comércio fronteiriço.
O autor retoma os principais eventos históricos do século XIX para dar um ponto de partida à sua explicação e mostrar a ocorrência histórica do movimento migratório, bem como denota a situação política entre 1870 e 1932, um período entre guerras que o Paraguai sobreviveu entre golpes políticos. A abordagem que o pesquisador dá na retomada da articulação política entre os dois países após a Guerra da Tríplice Aliança, mostra um período de ditaduras, concessões e apoio, inclusive na construção de grandes projetos. O que se denominou de estratégias geopolíticas que mostrava o crescimento do Paraguai, era na verdade a legitimação do governo de Stroessner (1954-1989), com o Brasil atuando como expansionista e subimperialista naquele país, Stroessner facilitou a entrada e a compra de grandes extensões de terras nas zonas de fronteiras por estrangeiros, entre eles a maioria brasileiros.
No tocante ao comércio e o seu crescimento o autor denota a importância que é a baixa carga de impostos naquele país e o crescimento das cidades mais próximas ao Brasil, o que se percebe é a forma de fazer este comércio “ilegal” de exportação e importação entre os dois países (sacoleiros, muambeiros, camelôs, atravessadores, […]). O que se percebe é que a economia paraguaia se volta para fora do país e não ao seu interior, especialmente uma dependência para com o Brasil, frutos das políticas de expansão dos dois países que ultrapassa os territórios nacionais.
O quantitativo demográfico brasileiro no Paraguai não é exato, até pela diferente metodologia de controle que é exercida pelos dois países, mas por outro lado, é também fruto de interesses políticos e econômicos, seja do governo, da igreja, da imprensa em geral, etc. essa inexatidão não é neutra de valores, e quanto à ilegalidade e legalidade demográfica há um receio político nessas áreas de fronteiras, como, por exemplo, brasileiros “legais” ocupando cargos políticos, ou mesmo em questões mais diretas como a questão de votos e bases eleitorais em cidades nos dois países.
Os fluxos migratórios ao Paraguai são frutos de duas frentes, uma vinda do sul do Brasil – a maior – e outra do norte e nordeste – a menor. O que ocorre segundo o autor, são várias migrações internas no interior do Brasil e depois ultrapassa-se a barreira internacional, como percebemos nas fontes orais (p. 73/74/75), dessa forma há uma mescla migracional e de naturalidade no interior das famílias. O Paraná é uma das últimas fronteiras nacionais em direção ao Paraguai, desses dois fluxos migratórios.
O autor com o auxílio da bibliografia de Sprandel denota classificações ou estratificações sociais dos brasileiros no Paraguai em seis grupos diferentes (p. 76/77). Há outros autores como Oliveira que pensa essas classificações como categorias na-tivas, tendo assim um sentido histórico e analítico mais rico, do que um sistema de conceitos sociológicos. O autor “utiliza também as classificações dos próprios agentes sociais, que a todo instante estabelecem suas hierarquias sociais e as nomeiam de várias formas” (p. 78). Essa realidade é diversa e complexa para o autor, justamente porque a problemática estudada, em relação às identidades dos imigrantes que viera já de regiões distintas do Brasil.
No Paraguai a frente de expansão capitalista atua em antagonismo, pois en-riquece os de “fora”, ao mesmo tempo em que empobrece e expulsa os pequenos agricultores, o que provoca uma mudança nos sistemas políticos e econômicos, justamente por causa dos organismos de fomento – Bancos – com o fim das ditaduras, os agricultores pobres vislumbram novas possibilidades de propriedade no Brasil com o Pl-no Nacional de Reforma Agrária (PNRA), para muitos pesquisadores esse é o movimento que deu origem aos denominados Brasiguaios. Nesse mesmo contexto, os empresários e grandes agricultores se mantiveram no país e se fortaleceram, com outros incentivos, acordos e demandas, como por exemplo, com o Mercosul em 1995 (Tratado de Assunção), especialmente com o plantio de soja e a aplicação de novas tecnologias, sendo desse montante entre 70 e 80% responsáveis os imigrantes e desses em sua maioria brasileiros.
O autor denota alguns exemplos de como essa expansão é desigual no Paraguai. Por exemplo, ele cita a renda per capita no departamento de Alto Paraná no Paraguai que gira em torno de 14 mil dólares, enquanto no restante do país ela cai para aproximadamente 950 dólares. Os principais indicadores dessa expansão é a pre sença brasileira que se dá pelo plantio em larga escala de soja, pela Usina de Itaipu, e pelo comércio da Ciudad del Este, o que de certa forma legitima nesse contexto espacial um crescimento na zona fronteiriça, não descartando em momento algum a expansão em seus moldes para o interior daquele país. No interior do país ocorrem outras formas de vislumbrar essa expansão ocorrendo até mesmo atritos interclasses, haja vista que adentram as áreas dos Menonitas.
Esses atritos e conflitos fazem com que muitos empresários agrícolas, e grandes agricultores brasileiros voltem seus olhares para a aquisição de propriedades no Brasil comprando terras especialmente em MT, RN, PA, e GO. Por outro lado, quem permanece no Paraguai acaba aumentando seu poder econômico e político com a nacionalização dos filhos e descendentes, como ocorre em Santa Rita. “Nessa perspectiva, os estrangeiros seriam os porta vozes dos ideais da modernidade, enquanto os paraguaios seriam tradicionais e atrasados […]” (p. 90).
A influência cultural brasileira no Paraguai se dá muito em relação ao idioma português nas zonas fronteiriças, essa questão mexe com “todos” os aspectos culturais nacionais paraguaios desde as escolas, televisão, rádios, fachadas de lojas, letreiros públicos, entre outras formas. Tais aspectos acabam mesclando as culturas em um com-plexo, ambíguo e ambivalente movimento migratório, com seus conflitos, sejam “bons ou ruins”, em permanente desequilíbrio econômico de um país que se adapta no interior do outro.
O autor explora de maneira hábil as fontes a que se propõe sobre os conflitos na zona de fronteiras, mostrando a perspectiva bilateral das questões que envolvem brasileiros e paraguaios, e ainda que há outros imigrantes que não são brasileiros nestes locais. Existe até mesmo de maneira bastante visível uma tendência conflituosa entre paraguaios e indígenas naquele país, o que mostra que as relações de poder não são uníssonas. Aparecem nesse contexto de disputas de terras as várias narrativas coletadas pelo autor como a visão de paraguaios, brasileiros, jornalistas, autoridades, professores, motoristas, diretores de escolas, entre outros profissionais e segmentos. Muitos deles pela perspectiva do autor buscam mostrar a origem do movimento migratório para o Paraguai na “oferta” que se dava no período ditatorial em ambos os países.
Atualmente e na visão do autor ele percebe as formas de resistência nestas relações de poder, bem como se ordenam os discursos políticos de políticos brasileiros no Paraguai, e de discursos políticos paraguaios, ou seja, as decisões se dão na maioria das vezes obedecendo a conjunturas políticas da atualidade, e propósitos políticos lo-cais, sempre atuando sobre forte pressão, um exemplo, é a aprovação da Lei de Segurança Nacional Fronteiriça, que antes era defendida sob o jugo da questão territorial e não era aprovada, no momento de sua aprovação ela foi defendida enquanto propósito da identidade e do nacionalismo. E mais atualmente a criação do Mercosul deu espaços de infiltração multinacional nessas mesmas áreas. Considero as percepções do autor excelentes ao remeter muitas dessas questões atuais a um passado memoria-lístico dramático nas relações dos dois países, ou seja, mesmo em momentos de “apa rente” tranqüilidade, a disputa é um ponto efervescente em qualquer discussão entre pessoas desses dois países, seja nos meios políticos, intelectuais especialmente de es-querda, e muito mais ainda entre proprietários e campesinos, isto é, se estabelece na percepção do autor uma disputa cotidiana no senso comum. E este aspecto mostra co-mo o autor se relaciona com seus interlocutores, bem como, a maneira como explora a literatura em relação ao método da História Oral.
A narração histórica da nação na fronteira ocorre por recortes sincrônicos, sem uma perspectiva linear, dilemas que remontam aos impérios metropolitanos, sem-do primeiro por questões religiosas – Jesuítas – depois por questões de enfrentamento – Guerra da Tríplice Aliança – e por último a influência geopolítica – proximidade territorial – entre Brasil e Paraguai.
O autor percebe um discurso atual no Paraguai que os leva a uma imagem negativa da presença dos brasileiros, como os coloniais Bandeirantes, esses discurso se fortalece com a monumentalização dos locais de memória, que para as “pessoas comuns” possui um valor simbólico importante. A visualização é propagada por bispos que exercem forte influência política, além de religiosa em alguns Departamentos, por outro lado, estes discursos sofrem resistências internas por parte da imprensa que muitas vezes defende os brasileiros que ali residem. Nota-se que as fronteiras imprecisas do século XVII, fazem com que religiosos até hoje se vejam como guardiões das fronteiras, como ocorria, por exemplo, com as reduções indígenas, o Paraguai atual-mente herda excessivamente esse discurso, de proteção espanhola, seja na Argentina guaranítica, e nas margens dos grandes rios dessas regiões. O Brasil traz consigo o es-tigma de imperialista e/ ou expansionista, como se apresentavam os Bandeirantes do Século VXII, contra os indígenas convocados pelos espanhóis para defender esse território.
Outros defendem o progresso que os brasileiros levam ao Paraguai, podemos perceber isso como uma luta simbólica, em que o brasileiro está em permanente avanço silencioso no outro país, na visão de segmentos de esquerda. Não se negou em mo-mento algum a ressignificação da memória que se herdou das duas batalhas – Tríplice Aliança, e Guerra do Chaco. Bem como, os marcos simbólicos de ambas que se juntam num mesmo sentimento nas experiências bélicas do passado, reforçando com isso o nacionalismo paraguaio. Pelo lado brasileiro essas experiências segundo o autor podem ser denotadas pelos escravos, ou seja, as questões bélicas funcionam como um espécie de calvário para o Paraguai. Terminam-se os combates, mas continuam as lu-tas simbólicas de heróis e traidores. O autor retoma e conduz muito bem o revisionismo historiográfico do pós-guerra no Paraguai, especialmente com Leon Pomer, Ju-lio José Chiavenatto, e Francisco Doratioto, sem deixar de lado outras abordagens so-bre a questão, como uma que se apresenta nos livros didáticos do Paraguai em que a figura de Solano Lopes não é aceita como herói pelos próprios paraguaios.
Nesse ínterim a figura de Stroessner não demora à aparecer como o “pa-triarca do progresso”, sendo ele o principal personagem da imigração brasileira para o Paraguai, essa questão durante anos personificou sua imagem com o auxílio das forças armadas, às vezes se compara à outros heróis do passado surgindo lado-a-lado com outros famosos personagens. Em 35 anos de ditadura ele apoiou a entrada de capital estrangeiro e de imigrantes com o “intuito” de desenvolver o país, uma ditadura personalista que viu desde a ascensão com a construção da Usina de Itaipu Binacional, até a decadência com o final das ditaduras na América do Sul. Mas para o povo para-guaio apenas em 2008 se rompeu com o Partido Político Colorado e os ideais de Stroessner com a eleição do bispo Fernando Lugo, nota-se uma espécie de nostalgia a Stroessner no Paraguai, que o autor denota como a necessidade de uma construção identitária forte e coletiva espelhada no General, especialmente para pessoas que viveram naquele período, bem como pelos imigrantes brasileiros que foram favorecidos pelo seu sistema de governo.
“As lembranças dos momentos significativos servem para demarcar fronteiras políticas e culturais, e reafirmar identidades nacionais no confronto contemporâneo na zona fronteiriça […], as recordações do passado servem para reativar e alimentar os sentidos das lutas do presente” (p. 159). Percebe-se que de uma coletividade pode haver a reativação e intensificação dos ressentimentos, reafirmando inferioridades e superioridades nacionais.
O autor denota o “jogo” de representações que se configuram, nestas “fronteiras entre ‘nós’ e ‘eles’”, a partir de discursos classificatórios entre imigrantes brasileiros e os paraguaios, faz inclusive uma rememoração no tempo histórico na in-tenção de mostrar os caracteres do jogo identitário e de alteridade, desde o movimento migratório europeu para a América e em consequência para o Brasil e seus principais descendentes – italianos, alemães, portugueses, holandeses (…). Nesse sentido, muito do que é representado no Paraguai é o que se herdou desses discursos provindos da Europa, com ideologias prontas e que são reproduzidas no Paraguai, como por exemplo, a ideologia do trabalho, da limpeza, da organização, e a valorização dessa cultura considerada superior tanto por parcelas paraguaias, quanto por parcelas brasileiras. Esse ethos classificatório mostra na relação entre as pessoas dos dois países a gestação de preconceitos que também ganham força em outro tempo histórico – a Guerra da Tríplice Aliança no século XIX.
Tais analises valorativas mostradas por meio de suas fontes cria estigmas que provocam outras conseqüências, como as ondas nacionalistas nesses países e a construção de discursos de ambos os lados que fazem com que se generalizam aspectos culturais, sociais, agrícolas, econômicos, religiosos, entre outros, nos dois países. Esses aspectos estigmatizantes encontram teses que advém do período colonial, como já foi posto anteriormente. A relação de poder nessa construção de discursos encontra variá-veis que servem para denotar a realidade, ou para atender um objetivo atual ligado a questões políticas e de propriedade, o que o autor chama de figuração de poder, que está diretamente permeada nas relações de poder, momentos em que as construções das imagens são feitas, aparecendo geralmente o valorativo superior e inferior, isto é, é a produção das identidades que estão em disputa, em um meio bastante dinâmico que são os movimentos migratórios nas zonas fronteiriças e nesse contexto “todos” os fa-tores culturais estão atuantes.
Talvez a grande expectativa que o autor lançou e que é difícil de conferir em sua escrita clara e objetiva, é de como legitimar estes discursos, por se tratar, como ele mesmo afirma, de realidades heterogêneas, e de representações homogêneas, para isso o esforço do autor é interessante, pois a percepção desses discursos classificatórios neste contexto fronteiriço é um jogo de expressões que de certa forma explicam tais expectativas como disputas simbólicas, em que se percebe as resistências, as imposições, as micro relações sociais, as tensões culturais e especialmente como isso “tudo” é res-significado pelas pessoas, isso quer dizer “os termos estão em permanente mudança de sentido e são ativados conforme as relações conflituosas que se estabelecem no cenário das relações interculturais” (p. 191). As relações discursivas muitas vezes são produzidas pela imagem do espelho do ‘outro’, e este ‘outro’ não pode ser generalizado, seja em seu espaço, tempo, ou história. Enfim o que denota-se aqui é um Brasil com aspectos supe-riores, e um Paraguai inferiorizado.
Acredito que as identidades fronteiriças é o cerne da pesquisa do autor, o entrelaçamento das propostas que discute no decorrer do livro, é resultado de uma extensa pesquisa. Consolidar identidades a meu ver é impossível, em um ambiente fronteiriço e que envolvem práticas culturais discrepantes, e a latente sociabilidade co-mo percebe-se na coexistência entre brasileiros, paraguaios, e Brasiguaios, isso se torna ainda mais complexo, pois não existem construções/produções/processos humanos eternos, e a identidade faz parte desse jugo em meio as expressões e dos discursos pro-duzidos e que alimentam essas práticas e o seu cotidiano; como ocorre com a im-prensa, intelectuais, políticos, empresários, religiosos, camponeses, campesinos, entre outros grupos, sejam eles grupos étnicos, nacionais, de proprietários, comunidades, etc.
Percebe-se que são os vários conflitos de ordem objetiva e subjetiva que demonstram a complexidade da pesquisa, ao observar a tentativa de construção indentitária como algo que não age sem a resistência de grupos, comunidades, nações, etnias, ou seja, as relações de poder que o autor inúmeras vezes aborda é uma complexa rede de simbologias e concretudes que não se auto explicam, muito pelo comtrário servem para legitimar perspectivas despreparadas que não percebem a ambiva-lência que está alocada nos dois lados desses países, isto é, o olhar bilateral do autor nos leva a ver que a noção de cidadania se conquista e se perde ao longo do processo histórico que existe enquanto ocorrência histórica entre Brasil e Paraguai, e posterior-mente com os Brasiguaios. Uma história que tem genealogia próxima de meio século de ocorrência e que sofre interferências desde o século XVII, até a atualidade.
As práticas culturais que fazem parte da convivência de brasileiros e paraguaios considerados “puros” são claras, como por exemplo, a música, o tererê, o idio-ma, a moeda, as escolas, as famílias […]. Tais práticas corroboram na hibridação desse novo grupo e dos considerados “puros” como um processo inacabado. Por último concordo com a abrangência maior que o autor dá ao termo Brasiguaio, algo que já de-fendi em outros estudos, isso quer dizer que a compreensão em torno do que é ser brasiguaio é independente do entendimento desse grupo, como sentido de etnicidade; quero pensar que muitos estudos auxiliam a pensar esta perspectiva enquanto escolha teórica e metodológica em relação ao tema, mas que não dá conta da totalidade que representa a formação do grupo, bem como a sua manutenção no tempo presente, sem, todavia deixar de reconhecer a importância de outras abordagens, no ambiente fronteiriço, especialmente entre os conflitos harmoniosos ou de tensões que o Brasil mantem com os países vizinhos na América do Sul.
As hipóteses de futuras e prováveis pesquisas que o autor levanta no final do livro são riquíssimas, justamente por que não se pode cair em perspectivas generalizantes em relação às fronteiras e aos países e suas gentes que circundam o Brasil. Ou seja, cada caso possui suas especificidades. Acredito que a mobilidade do autor em re-lação às diferentes “correntes” de pensamento, seja na Sociologia, na Antropologia, na Geografia e na História, é importante para a que a obra não sofra classificações teóricas e metodológicas, quero dizer que a preocupação em abordar diferentes perspectivas como a pós-modernidade, o marxismo, a história do tempo presente, a história oral, a imprensa, entre outras sintetiza para o leitor não especialista no assunto uma realidade complexa da fronteira e que pode ser compreendida por meio das fontes trabalhadas, independente das questões simétricas ou assimétricas sobre a identidade. Esta resenha não substitui a leitura integral do livro, tem como objetivo, estabelecer pontos de reflexões e de abordagens que a pesquisa do autor denota.
Leandro Baller – Universidade Federal Mato Grosso do Sul. Centro de Ciências Humanas e Sociais Campus de Nova Andradina, Cidade Universitária Rodovia MS 134 Km 3. CEP 79750-000. Nova Andradina – MS – Brasil. E-mail: leandro.baller@ufms.br.
Liberdade | Jonathan Franzen
Mesmo antes de sair nos EUA, em setembro de 2010, Liberdade já era objeto de atenção. O livro anterior de Franzen, As correções, de 2001, fizera bastante barulho: ganhou, entre outros, o National Book Award, principal prêmio literário do país, e transformou Franzen numa das promessas mais auspiciosas da literatura americana. Mal começaram a sair as primeiras resenhas elogiosas de Liberdade, Oprah Winfrey incluiu-o em seu clube de leitura, o Guardian pespegou-lhe o epíteto de “livro do século” e a revista Time estampou na capa uma foto do escritor acompanhada da legenda: “O grande romancista americano”.
Parte do frisson em torno de Franzen tem a ver com essa obsessão pelo “Grande Romance Americano”. É um fetiche entre os autores de lá e uma espécie de santo graal da literatura: o grande autor é aquele que consegue transferir para o romance os pontos nevrálgicos da experiência do país. A trinca sagrada da prosa americana da segunda metade do século fez isso: John Updike, Phillip Roth e Saul Bellow devem boa parte de sua reputação ao modo como plasmaram a experiência dos EUA num determinado recorte de sua obra. Em As aventuras de Augie March (1953), de Saul Bellow, por exemplo, lê-se na primeira linha: “Sou americano, nascido em Chicago…” .De saída estamos diante da tentativa de responder a essa pergunta:o que é ser americano?
Essa é uma tradição francesa do século XIX, a do homem de letras empenhado em responder às grandes perguntas do seu tempo. Com a transformação dos EUA em grande potência no século XX, a função se torna estratégica em face de uma experiência cuja ressonância assume escala mundial.
Franzen disputa o posto de herdeiro dessa tradição. O barulho da mídia é também reflexo da expectativa de que ele possa assumir o bastão dessa linhagem nobre em nome da nova geração. É importante lembrar que nessa transição ocorreram os atentados de 11 de Setembro.
Não é, portanto, apenas o lugar do novo grande romancista americano que está vago, mas o lugar do grande romancista capaz de dar sentido a uma experiência traumática. Em certa medida, um evento como esse contribui para injetar vitalidade à atividade de escritor, de pronto convocado ao papel de intérprete de seu tempo.
É uma ideia complicada. O que se pode esperar da literatura como forma capaz de plasmar essa experiência? Como a competição com as humanidades e a indústria do cinema, da internet e da televisão interfere na capacidade da literatura em dar sentido a esse debate? Esse livro aspira à condição de grande romance, mas o frisson em seu redor, para ser compreendido, deve ser visto ao lado do prestígio alcançado pelo romance no século XIX e início do XX e da nostalgia em relação à centralidade de que já desfrutou um dia.
É simples identificar o que em Liberdade permite situá-lo como herdeiro dessa tradição. São setecentas páginas que procuram tocar os nervos da experiência americana dos últimos trinta anos. Os governos Reagan, Clinton e Bush, o terrorismo, a questão palestina, o crescimento econômico desgovernado, o aquecimento global, o conflito entre gerações, a mercantilização da cultura, a explosão do mercado financeiro, o sistema de saúde, o politicamente correto nas universidades. O cardápio é tão variado que por vezes lembra uma lista de tarefas a cumprir.
O que o salva da condição de manual é a habilidade de Franzen em atar esses temas às funções que desempenham na trama, que é bem urdida e evolui com naturalidade.
O fio é a transformação do casal Walter e Patty Berglund em ruína sentimental e moral. Ela vem de uma família liberal endinheirada de Nova York em que jamais se integrou. Não se interessava por livros ou política:era jogadora de basquete e se dedicava com ardor a isso, apesar do desprezo da mãe. Foi por ser jogadora que obteve uma vaga numa faculdade de segunda linha, em Minnesota, no início dos anos 1980.
Walter, seu colega na faculdade, era filho de pai alcoólatra e mãe trabalhadora, dona de motel de beira de estrada numa cidade do interior. Mas era o esforçado da família, o primeiro a fazer curso superior, o moço abstêmio, inábil com as mulheres e não particularmente bonito. Mas ele vence pelo cansaço, e eles se casam no fim dos anos 1980, têm um casal de filhos e adotam uma vida de família burguesa em Minnesota.
O fator de tensão entre os dois, desde a faculdade, é Richard Katz. Richard era o melhor amigo de Walter e ao mesmo tempo seu antípoda. Era bonito, sexy e inconsequente. Walter, por outro lado, era um exemplo de lealdade e um esteio para o desregramento do colega. Desde aqueles anos, Patty cultivava uma paixão por Richard que não se concretizava em razão da lealdade entre os amigos. Resignada, Patty cedeu aos apelos de Walter menos por amor do que por falta de opção.
Ao longo de todo o livro, Richard permanece uma sombra para o casal. Muitos anos depois, numa casa de campo, Patty e Richard passam dois dias juntos e transam, por insistência de Patty. Um pouco depois, ao cabo de anos tocando para pouca gente e amargando fracasso atrás de fracasso, Richard grava um disco de sucesso e se torna uma figura hype no mundo da música.
Os dias que Patty passa com Richard e o sucesso dele mudam tudo na vida dos Berglund. Walter, com ciúme, torna-se competitivo. Ressentido com o silêncio do amigo, que parecia se afastar dele nesse período de bonança, muda de emprego e se aproxima de políticos de má índole. Patty, depois do caso com o amigo do marido, cai em depressão.
Há ainda a relação conturbada com os filhos. Joey, o mais velho, sai de casa na adolescência para morar com a namorada, a vizinha Connie Monaghan. Isso para desespero de Patty, que odeia a mãe de Connie e sobretudo o namorado dela. O sujeito é um machão truculento, vidrado em carros, armas, e simboliza o protótipo do americano tosco, da direita mais empedernida. É essa figura que vira influência para Joey: depois de dois anos na casa do vizinho, ele vai cursar economia, sonha trabalhar em Wall Street, resgata suas raízes judaicas e vira um republicano envolvido com interesses de Bush na invasão do Iraque.
O que prende a atenção é essa espiral em direção à desintegração, ao fracasso da relação, à sucessão de passos em falso em que a vida do casal vai se transformando. A estrutura romanesca é essa. E o que Franzen consegue construir em redor dela constitui o espírito de época que o romance, de modo mais abrangente, tenta capturar em sua busca pela vaga de herdeiro da linhagem mais nobre da tradição literária americana.
A parte mais substancial é dedicada à era Bush: são os dilemas pós-11 de Setembro que aparecem com mais força e que Franzen procura examinar de modo detido. A trajetória de Joey é exemplar disso: a descoberta do judaísmo e a vontade de explorar essa identidade vêm num contexto de reação ao terrorismo, num movimento que parece acompanhar o renascimento da direita conservadora americana logo após 2001. Sujeito oportunista, frio e incapaz de afetividade, Joey é um retrato pouco lisonjeiro dos quadros que a causa republicana é capaz de cativar.
Vale o mesmo para a onipresença do discurso ambientalista. O sarcasmo é grande e ocupa boa parte da trajetória de Walter Berglund. Desafiado pelo sucesso de Richard, Walter deixa o emprego numa unidade de conservação em Minnesota para encarar uma enrascada em Washington. Ele assume o Fundo de Conservação da Mariquita-Azul, na verdade uma grande piada. O fundo é invenção de um bilionário do Texas, amigo de Bush e Dick Cheney, interessado em vender reservas para empresas que exploram a extração de carvão, nocivas e poluentes. O tal fundo é uma cortina de fumaça, uma licença para destruir tendo como álibi a preservação da espécie. Ingênuo e bem-intencionado, Walter cai na arapuca – e é o nome dele que vai parar no New York Times quando fica claro o que está por trás do fundo da mariquita-azul.
Franzen é ornitólogo e adora observar pássaros, mas o ambientalismo do século XXI aparece em seu livro como tolice de gente bem-intencionada. Há acidez no modo como ele trata o discurso em defesa do controle de carbono, contra o aquecimento global e o crescimento demográfico. A crítica aos republicanos e à direita é evidente, mas também o discurso politicamente correto é alvo de sarcasmo.
A Nova York dos círculos letrados e progressistas que ele retrata, da mesma maneira, está longe de ser ambiente estimulante. Estão todos munidos de smartphones e ipods, prontos para consumir as novidades do mercado cultural sob a forma de “autenticidade” ou “atitude”. O personagem de Richard Katz é o veículo das críticas disparadas ao intelectualismo bem-intencionado e ao cinismo dos liberais endinheirados nos rooftops de Tribeca e do Chelsea. Não há autenticidade possível. A decisão de Katz de voltar a ser trabalhador braçal mesmo depois do sucesso de seu disco aponta nessa direção.
Nova York é também a síntese do que Patty odeia em sua família. Democratas, judeus heterodoxos e de cabeça aberta, seus pais aparecem, logo no início do livro, a cometer uma enormidade: adolescente, Patty foi estuprada numa festa por um colega de escola. Mas o garoto era filho de doadores importantes da campanha eleitoral de sua mãe, de modo que os pais se reconciliam com a família do agressor.
Liberdade ganhou pecha de ingênuo, como se a crítica aos republicanos fizesse de Franzen um autor a serviço do bom-mocismo da era Obama. O livro não pende para um lado só do espectro político nem faz proselitismo fácil, com uma ou outra exceção, como o modo esquemático com que retrata o sistema público de saúde, pauta evidente demais nos editoriais da imprensa democrata para não esbarrar no artificialismo. Mas não é ao acusar Franzen de esquerdista ingênuo que se fará boa crítica de seu trabalho.
O ponto em discussão diz respeito à forma do livro. Desse ponto de vista, é uma obra convencional. Da mesma maneira que a imagem de “homem de letras” em nome da qual a revista Time elogiava o autor é do século XIX, também do ponto de vista formal Franzen se movimenta num registro antigo. Ele dialoga pouco com a tradição do romance do século XX. Esse é um repertório que a ele não interessou incorporar e que pode ser visto como fraqueza de certo ponto de vista crítico. Está claro, contudo, que não teria obtido essa ressonância se fosse autor de um livro experimental, e aí pode haver boa dose de cálculo.
Há dois exemplos a esse propósito. Um é o primeiro parágrafo, cartão de visitas para qualquer obra de ficção. Outro é a maneira quase imperceptível com que tenta variar a voz narrativa em situações que a estrutura parece pedir isso. As primeiras linhas do livro dizem o seguinte:
A notícia sobre Walter Berglund não circulou localmente – ele e Patty tinham se mudado para Washington dois anos antes e já não significavam nada mais para St. Paul -, mas o povo de Ramsey Hill não era leal à sua cidade a ponto de deixar de ler o New York Times. […] Seus ex-vizinhos tiveram dificuldade em conciliar os adjetivos com que o Times o qualificava (“arrogante”, “presunçoso”, “eticamente comprometido”) com o vizinho generoso, sorridente e corado que viam pedalando até a condução para o trabalho todo dia […] Se bem que sempre tinha havido algo estranho na família Berglund.
Esse primeiro parágrafo é poderoso. Todas as setecentas páginas seguintes são dedicadas a mostrar como se deu essa queda que levou a família exemplar até as páginas de escândalo do Times, coisa que só acontece ao fim do livro, quando Walter atua como laranja dos republicanos interessados na extração de carvão. Mas é também um truque romanesco dos mais convencionais: o autor puxa um elemento decisivo do fim da história para as primeiras linhas, de modo a prender a atenção do leitor até que essa isca, lançada logo de início, se mostre em sua totalidade.
Vale comparar com uma abertura célebre, a de Anna Karenina, de Tolstói:
Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.
Na segunda linha, já se sabe que o narrador vai passar as páginas seguintes a contar uma desgraça familiar. Mais que isso:uma desgraça particular, que só poderia ter sido vivida daquela maneira.
Não é casual a comparação com Tolstói. Algumas páginas de Liberdade são dedicadas a paráfrases de Guerra e paz, que Patty lê em seu retiro na casa de campo. Como nos grandes livros de Tolstói, em Franzen o centro é também o drama familiar. Assim como na obra do escritor russo, há uma capacidade de conferir humanidade aos personagens que por vezes parece suspender a mediação do autor, como se a própria realidade se escrevesse de forma espontânea diante de nossos olhos.
As variações da voz narrativa são uma fragilidade mais evidente. Franzen sabe bem que o romance contemporâneo não pode prescindir de questionamento sobre a forma de narrar. Compõe seu livro, assim, a partir de dois narradores: um é onisciente, em terceira pessoa, bem aos moldes do romance do XIX. Outros trechos, contudo, são narrados por Patty Berglund. Por sugestão de seu terapeuta, ela escreve uma autobiografia, que faz as vezes de segundo capítulo e ocupa cento e tantas páginas.
É de estranhar a pequena variação entre os trechos do narrador convencional e aqueles narrados por Patty. Ela também escreve em terceira pessoa, com raras referências à “autobiógrafa”. E escreve com brilho, com passagens que funcionam nas mãos de um escritor de talento como Franzen, mas que não convencem quando se tem em mente que a voz é de uma dona de casa deprimida e ex-jogadora de basquete. Franzen tenta marcar a diferença: assim que acaba a autobiografia, entram parágrafos imensos, sem ponto final, como a indicar essa mudança. Mas são ocorrências episódicas, que não marcam o andamento do texto e deixam essa incompletude no ar.
Franzen não é um romancista acabado e é saudável desconfiar da histeria em torno de seu livro. Mas isso não é o mesmo que lhe negar os méritos. Há um lugar vago para o grande intérprete literário da alma americana pós-11 de Setembro. O escritor que der sentido a ela por meio de uma imagem forte como a da família Berglund terá decerto destaque merecido.
É cedo para dizer se Franzen é essa figura, mas está sem dúvida entre aqueles capazes de aspirar a essa condição. Suas ambições de ser o Tolstói do século XXI podem suscitar desconfiança quanto à capacidade de renovar a forma do romance e também sugerem pouca disposição para uma discussão necessária sobre o papel que cabe hoje à ficção literária. Mas a intensidade com que essas ambições são praticadas em seus livros é rara e digna de nota. E elas só podem fazer bem para a literatura num momento em que sua morte é decretada a cada dia.
Flavio Moura – sociólogo.
FRANZEN, Jonathan. Liberdade. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: MOURA, Flavio. Ambição e Nostalgia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.93, Jul, 2012. Acessar publicação original
Tempo Presente | UPE | 2012
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Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos | Cyril Lionel Robert James
I. Sobre o Sr. Cyril Lionel Robert James [2]
O historiador, romancista e jornalista Cyril Lionel Robert James nasceu em janeiro de 1901 na ilha de Trinidad. Teve uma infância e juventude privilegiada, marcada por uma excelente formação escolar e pela prática esportiva do cricket. Com apenas 19 anos deu início a sua carreira docente, lecionando literatura, na Royal Queen’s College.
Em 1932, aos 31 anos, muda-se para a Grã-Bretanha, devido a sua paixão e conhecimento sobre cricket tornasse repórter esportivo do Manchester Guardian. Na terra da rainha, filia-se ao Partido Trabalhista Independente, (Independent Labour Party) e, em 1938, aderiu a IV Internacional Comunista, entrando em contato, mais intensamente, com as ideias de Leon Trotsky.
É notória a influência que as teses marxistas, em especial as interpretações trotskista, exercerão em suas obras “A Revolução Mundial 1917-1937”, publicada em 1937, e os “Jacobinos negros” de 1938. Vale destacar, que nesse período, a Europa passava por grande instabilidade política, devido à ascensão do nazi- -fascismo e pelo totalitarismo stalinista na URSS.
Por conta da Segunda Guerra Mundial, James refugia-se nos Estados Unidos, onde deu prosseguimento a suas atividades acadêmicas e políticas. Membro fundador do Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party ou SWP) publicou em 1948 o manifesto “Uma resposta revolucionária ao problema do negro nos Estados Unidos”.
Devido a sua militância, em 1953, James foi expulso dos Estados Unidos. Ele decidiu voltar à Inglaterra, onde permaneceu até 1958, quando, então, retorna a Trinidad. Em sua terra natal, envolve-se na luta pela libertação anti-colonialista britânica. Ainda na década de 1950 publica a obra “Navegantes, Renegados e Náufragos: Herman Melville e o mundo em que vivemos” em 1953.
A década de 1960 foi bem movimentada para o nosso autor, no campo político James se envolve nos movimentos de independência na África e em Trinidad, é entusiasta dos ideais do Pan-Africanismo e da integração das ilhas caribenhas em uma – Federação das Índias Ocidentais.
No tocante a carreira acadêmica e produção intelectual publica em 1960, “Política Moderna”, em 1962, “Partidos Políticos Livres nas Índias Ocidentais” e, em 1963, “Além da Fronteira”. Em 1968, vem o convite para lecionar na prestigiada Universidade de Columbia nos Estados Unidos.
Durante a década de 1970, James retorna para a Inglaterra e ainda encontra fôlego para publicar “Nkruma e a Revolução de Gana” em 1977. Na década de 1980 retorna para Trinidad aonde veio a falecer em 1989, deixando como legado, uma produção acadêmica respeitada e de referência para estudos nas ciências humanas, bem com, um exemplo de vida marcado pela entrega a militância e a seus ideais.
II. Sobre a obra: Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos
Em 1938 James, residindo em Londres, publica “Os jacobinos negros” (The black jacobins), a obra trás questões referentes à revolução negra de São Domingos e a sua relação com a sua principal liderança: Toussaint L’Ouverture. No Brasil o texto terá sua primeira tradução apenas em 2000, feita por Afonso Teixeira Filho, com uma edição revisada em 2007 pela Editora Boitempo. Em suas 400 páginas a estrutura física do livro está dividida em 13 capítulos acompanhados de um apêndice intitulado “De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro”.
Para maior compreensão do livro, temos que levar em conta o contexto em que foi escrito: descrédito do liberalismo, auge do nazi-fascismo e predominância das teorias eugênicas. Tal cenário acabou motivando o autor a escrever um texto, que denunciava o estado de opressão em que vivam os africanos e seus descendentes, seja na África ou em outras partes do globo, tornando a posteriori leitura obrigatória para estudos sobre a diáspora Africana.
Embora o ano de publicação date de 1938 James já havia escrito sobre o assunto antes, em 1932. O trabalho de levantamento bibliográfico e de fontes foi grandioso, sendo necessário até “importar da França livros que trataram seriamente desses eventos tão célebres na história daquele país.” [3]. A pesquisa também contou com correspondências e relatórios oficiais, compêndios de história do comercio colonial, narrativas de viajantes, dados estatísticos e biografias.
Ainda no tocante a função social da obra e sua importância para a interpretação histórica, James nos aponta, que a grande virtude contida no “Os jacobinos negros” é a ênfase dada ao protagonismo dos escravos no processo revolucionário, nas palavras do autor: “foram os próprios escravos que fizeram a revolução.” [4] , tendo especial destaque a figura do líder do movimento – “foi quase totalmente trabalho de um único homem: Toussaint L’Ouverture” [5] .
III. A tese central
A viabilização da revolução no Haiti deve-se, em parte, ao fato dos escravos já se encontrarem, em certa mediada, organizados e disciplinados, devido o sistema fabril, já implantada, no século XVIII, nas lavouras da ilha. Para o autor:
Trabalhando e vivendo juntos em grupos de centenas nos enormes engenhos de açúcar que cobriam a Planície do Norte, eles estavam mais próximos de um proletariado moderno do que qualquer outro grupo de trabalhadores daquela época, e o levante foi, por essa razão, um movimento de massas inteiramente preparado e organizado [6]. (Grifo nosso)
Observa-se que para o autor, já no século XVIII, havia entre os escravos do Haiti uma consciência de classe, que os permitiu se organizarem para combater a exploração colonial. Deve-se destacar também, que os revoltosos tinham o desejo de libertar-se da tirania a que eram submetidos, deste modo, se insurgiam contra os maus tratos, ainda nos navios negreiros – “Morriam não apenas por causa do tratamento, mas também de mágoa, de raiva e de desespero. Faziam longas greves de fome; desatavam as suas cadeias e se atiravam sobre a tripulação numa tentativa inútil de revolta.” [7]
III. Leitura Marxista Revolta escrava ou uma luta de classes?
Mesmo para os leitores que não tem contato com a biografia de James, a terminologia empregada por ele, deixa claro que se trata de uma leitura fundada no marxismo. Não são poucos os conceitos empregos em seu texto: proletariado, imperialismo, luta de classes, revolta das massas trabalhadoras, exploração dos escravos, dos trabalhadores – constituem a interpretação dado pelo nosso autor para o problema em que se dispões a analisar além das citações a Lênin e a Trotsky.
É possível afirmarmos, diante do seu livro, bem como de sua biografia, que James, como filiado ao Partido Trabalhista Independente, militante da IV Internacional, fundador do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) e integrante ativo de diversos movimentos sociais, de que demarcou sua interpretação sobre a História a partir de sua leitura da “teoria da revolução permanente” proposta por Leon Trotsky.
Respondendo a questão feita acima, se partirmos da leitura de nosso autor sobre o fato histórico que ocorreu no Haiti, foi à demonstração de uma luta de classes. Tal leitura recebeu diversa criticas, uma das mais conhecidas no Brasil foi feita pelo professor Dr. Jacob Gorender
As rebeliões, no começo do século XIX, no continente americano, só podiam ter caráter antiescravista e anticolonialista. No mundo atual, o cenário internacional é sacudido pelas lutas anticapitalistas e antiimperialistas. Trata-se de etapas históricas profundamente diversas. Não obstante, o anacronismo não prejudica o texto que se segue ao Preâmbulo.[]8
Não podemos deixar de mencionar a crítica feita pelo professor Jacob Gorender ao preâmbulo datado de 1980, em que James liga as rebeliões escravas no Haiti com as lutas operárias do século XX cometendo aquele que é considerado o maior dos pecados para o historiador: o Anacronismo. Todavia dentro de uma abordagem histórica e social, entendemos que devemos contextualizar o autor e sua obra com sua leitura de vida, nos parece que a escrita de “Os jacobinos negros” e o prefácio de 1980, antes de um texto acadêmico é um esforço militante, que tem como pretensão denunciar, conforme o próprio autor, a “perseguição e opressão” que vivem os africanos e os afro- descendentes.
VI. O caso Haiti
Em 1789, a colônia francesa das Índias Ocidentais de São Domingos representava dois terços do comércio exterior da França e era o maior mercado individual para o tráfico negreiro europeu. Era parte integral da vida econômica da época, a maior colônia do mundo, o orgulho da França e a inveja de todas as outras nações imperialistas. A sua estrutura era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos.[9]
Basta ligar a televisão, sintonizar o radio ou acessar a internet e entrar em contato com as notícias que vem do Haiti. Logo nos depararmos com as palavras: tragédia, caos, crise, fome, morte, doenças. Estas informações quando soam aos nossos ouvidos nos faz refletir – como uma colônia produtora de açúcar, café, anil, cacau, algodão, entre outros produtos, responsável por dois terços do comércio exterior da França, que em 1789, exportou 11 milhões de libras [10], fracassou no projeto de Estado-nação livre da miséria e das desigualdades? James propôs uma resposta.
Para o nosso autor, o fracasso do projeto Haiti não se deve apenas a falta de diversidade econômica, uma vez que, a produção primária dominava a paisagem, não havendo maiores perspectivas de geração de riqueza, em especial ao desenvolvimento industrial.
Na análise de James o isolamento ou quarentena imposta pelas potências imperialistas e até mesmo as nações latino-americanas, foram responsáveis pelo atrofiamento econômico da ilha caribenha, não permitindo o desenvolvimento de uma economia mais sólida, tendo por consequência o agravamento das desigualdades históricas já bem conhecidas pela massa trabalhadora do Haiti.
V. Considerações finais
Compreendemos o texto de Cyril Lionel Robert James, como sendo um esforço para responder questões que não se restringem somente ao caso da independência do Haiti, mas como uma leitura sobre a exploração do trabalho escravo e as formas de relação do sistema escravista e colonial na América.
Para finalizarmos, podemos dizer que ainda hoje, o texto serve como instrumento de análise para entendermos as relações de trabalho em muitos países latino-americanos, onde encontramos cada vez mais latente essa realidade apregoada pelo método capitalista de exploração, proposta pela manutenção dos grandes latifúndios, das monoculturas de exportação e da exploração da mão de obra dos trabalhadores do campo.
Notas
2. Informações extraídas da comunicação feita pelo doutorando, Unesp/Franca, Rubens Arantes no curso “A escravidão na cultura ocidental”; e pela comunicação de: SILVA, Tiago Hilarino Christophe da. Um marxista caribenho: o pensamento e a práxis de Cyril Lionel Robert James. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
3. JAMES, C. L. R. Op. cit., p. 11.
4. Idem, p. 14.
5. Idem, p. 15.
6. Idem, p. 99.
7. Idem, p. 23.
8. GORENDER, Jacob. O épico e o trágico na história Haiti. Estudos Avançados. V. 18, n. 50, 2004, p. 296.
9. JAMES, C. L. R. Op. cit., p. 15.
10. Idem.
Carlos Alexandre Barros Trubiliano1 – Doutorando em História Política da Universidade Julho de Mesquita (Unesp – Campus Franca)/ Bolsista FAPESP. E-mail: trubiliano@hotmail.com
JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2010. Resenha de: TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 4, n. 7, p. 225-230, jan./jun., 2012.
História e Literatura / Albuquerque: Revista de História / 2012
A revista Albuquerque cumpre mais uma vez o seu compromisso de divulgar a produção acadêmica de qualidade, representando a área de História e suas articulações com as demais Ciências Humanas. Nesta edição de número oito, em seu quarto ano de teimosa existência sob o seu formato em papel e a despeito das dificudades inerentes à publicação tradicional de artigos, a Albuquerque apresenta o dossiê História e Literatura.
Os trabalhos aqui publicados atenderam à chamada pública através de edital espefícico, submetidos à avaliação e aprovação de conformidde com os seus critérios e normas. Entretanto, neste caso, os responsáveis pela resvista se surpreenderam com o resultado desta chamada, prontamente atendida com a afluência de bons trabalhos e em quantidade que extapolou as expectativas desta edição.
Entende-se, dessa forma, que a Albuquerque se fortalece e se consolida, buscando sempre atrair os pesquisadores que elegeram a área da História para focar seus estudos e que escolheram também a forma convencional de revista acadêmica, editada como brochura. Isso não sinifica uma reação conservadora diante das ferramentas eletrônicas, das redes sociais e demais instrumentos de divulgação via internet que, sem dúvida nenhuma, socializam a produção científica de forma muito mais rápida e democrática. Muito ao contrário, acredita-se que em breve a Albuquerque será editada também em versão eletrônica, sem excluir a sua forma tradicional.
Como bem demonstram os artigos do dossiê que seguem publicados, a escrita, o texto e a literatura, expressada sob as suas mais diversas modalidades e através dos diálogos possíveis com a ciência da História, remetem à tradição da pena, do papel e da prensa que produziram epístolas, documentos, códices e livros. Essa tradição é ainda muito importante e o prazer que proporcionam aos leitores e pesquisadores jamais será superado pelas inovações tecnológicas por mais fantásticas que se apresentem.
Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.4, n.8, 2012. Acessar publicação original [DR]
A invenção do Nordeste e outras artes – ALBUQUERQUE JÚNIOR (RTF)
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4 ed. Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009. 340 p. Resenha de: MARTINELLO, André Souza. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 5, n. 1, jul-dez., 2011.
“O Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais, políticos ou econômicos apenas, mas, principalmente, construções imagético-discursivas, constelações de sentido.” Durval Muniz de Albuquerque Jr. (1999, p.307).
No ano de 2009 tivemos uma década da publicação da tese de doutoramento em História, defendida por Durval Muniz de Albuquerque Junior na Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP. Torna-se oportuno trazer novamente ao debate algumas abordagens e temáticas lançadas pelo autor, na obra intitulada: “A Invenção do Nordeste e outras artes”. Como registra a primeira edição do livro, o historiador recebeu com essa pesquisa, no concurso promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, a classificação de melhor trabalho de História no Concurso Nelson Chaves de Teses sobre o Norte e Nordeste brasileiro, no ano de 1996. Nesses últimos dez anos, desde a publicação da premiada pesquisa, Durval tem se tornado autor cada vez mais conhecido e se destacado no campo da historiografia brasileira e das ciências humanas de maneira geral; entre suas obras mais recentes, uma aborda a pesquisa, a escrita e as teorias da História, “História: arte de inventar o passado”, publicado pela Edusc (em 2007)1 e um livro da série “Preconceitos” da Cortez editora: “O preconceito contra a origem geográfica e de lugar.” (2007)2 De maneira geral, pode-se dizer que Durval tem-se preocupado com temas que envolvam o pensamento e a utilização das reflexões de Michel Foucault, por vezes relacionada à escrita da História, e também outra temática de seus textos está no que poderia ser denominado de História dos Espaços. Além de fazer parte do corpo docente do Departamento de um Programa de Pós-Graduação concentrado na abordagem “História e Espaço” na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Durval vem realizando pesquisas e publicando trabalhos articulando literatura, (crítica à) identidade regional, discursos constitutivos de espaços, regionalismos e vínculos territoriais, como fez, por exemplo, no Encontro Nacional de História-ANPUH realizado em 2007, na conferência intitulada: “O Tempo, o Vento e o Evento: história, espaços e deslocamentos nas narrativas de formação do território brasileiro”.3 Leitor assíduo (e conhecedor) da literatura brasileira, em “A invenção do Nordeste”, Durval se lança a compreensão de como ao longo do tempo, obras e diferentes autores, de épocas e escolas diversas, descreveram o Nordeste brasileiro e inscreveram essa região no país. Mas a literatura que Durval se utiliza como fonte, não é apenas aquela entendida como “ficcional”, como romances ou novelas, mas inclui textos (sociológicos) de Gilberto Freyre, por exemplo. Quais formas, nomeações e descrições constituíram o Nordeste brasileiro? Passando por João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Rachel de Quiroz; e “outras artes”, subtítulo do livro, também são utilizadas por Durval, com intenção de apontar em um conjunto diverso de massa documental como se identificaram determinadas representações no e do nordeste, seja literatura ou não. Luiz Gonzaga, Candido Portinari, Glauber Rocha, Di Cavalcanti, Dorival Caymmi, José Lins do Rego, Josué de Castro, Luis da Camara Cascudo e Euclides da Cunha.
O que há em comum nesse conjunto tão variado de personagens descritos nesse livro está justamente, na forma peculiar com que cada um realizou suas obras, de maneira a constituir (e inventar) a nordestinização de uma parte do Brasil, como um espaço Outro em relação ao centro-sul, centro-oeste ou norte do país: p.311) “[…] o Nordeste quase sempre não é o Nordeste tal como ele é, mas é o Nordeste tal como foi nordestinizado.” A idéia principal presente no livro, parece apontar a constituição do nordeste enquanto espaço da negação, o Outro do sul maravilha que se construía em alteridade e paralelo, cada vez colocado mais distante do sul. É como se ao longo do tempo tivesse ocorrido um constante e profundo afastamento das regiões nordeste e sul, afastamento que foi se constituindo por diversos olhares, interpretações e sentidos.
Vários apelos e constatações de artistas, escritores, nordestinos e intelectuais do país, formaram uma geografia do nordeste; justifica Durval da sua opção em abordar algumas fontes por ele eleita como vozes privilegiadas e edificadoras de determinados espaços e características como sendo nordestinas. A busca por uma distinção por parte do sul, em relação ao nordeste, também contribuiu na invenção desse último. p.307) “O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste.” Linguagens constituíram uma forma espacial de sentidos e de uma comunidade imaginada, (p.23) as diversas formas de comunicação, cinema, literatura, teatro, pintura, música, produção acadêmica, poesia são exemplos de linguagens que não apenas representam o real, como instituem o mesmo. Enquanto alguns propuseram fórmulas de alterações das realidades sócio-ambientais nordestinas, para resgatá-las de certa condição de atraso ou subdesenvolvimento, outros cantavam a tristeza da seca e suas conseqüências, como a partida dessa região sofrida. Para quem emigrou, o nordeste torna-se um espaço da saudade, com embalo de muitas melodias, poesias, danças e tradições inventadas para o constantemente lembrar o que é ser nordestino.
Poesias tratavam de registrar a sensação de ter de migrar forçosamente em direção a outros espaços, o exterior, o longínquo, o fora dali; já no cinema e na pintura, pensava-se estar documentando a realidade das condições de retirantes, da natureza agreste, tórrida e cada vez mais inabitável ou desumana. Todos, diz o autor, construíram argumentação que levou a nordestinização de um espaço que está pretensamente localizado ao nordeste de um Outro. Se há uma referência como sendo a central, torna-se assim viável a visualização de um nordeste. Ou seja, a constituição, ao longo de mais de duzentos anos, do nordeste e dos nordestinos (o espaço como gente), foram vistos e caracterizados como um problema: (p.20) “O que podemos encontrar de comum entre todos os discursos, vozes e imagens […] é a estratégia da estereotipização.” As artes que mapearam ou apresentavam o nordeste como temática, tornaramse monumentos que atuaram na constante alimentação de imagens que nos chegam até aos nossos dias, como tradutoras e representantes do nordeste e de uma identidade de nordestino, seja ela física (corporal), lingüística (sotaque, expressões), econômica, moral e social. Há um conjunto variado de categorias e formas, nas quais se tornam possíveis encontrar e apontar características de nordestinos e do espaço desse povo, e isso pode ser observado nos diferentes produtores de sentidos que Durval traz em cena para falar dessa região ou criá-la como uma região, no sentido de ser homogênea, ter uma mesma identidade, uma mesma história e expressar uma única cultura, por isso, é que o autor afirma que se trata de uma invenção, entre outras, pela criação de uma imagem homogênea de uma parte do Brasil.
Não devemos esquecer também que anteriormente a essa obra de Durval, a doutora em Ciência Política, Iná Elias de Castro, havia apontado, analisando, entre outras documentações, discursos de políticos eleitos e representantes de Estados do nordeste no Congresso Nacional, entre 1946 e 1985, o processo de construção e cristalização do Nordeste como em posição de constante necessidade, frente às demais regiões do país. Inclusive, muitas das críticas e questões levantadas por Durval, já haviam sido lançadas por Iná de Castro em 1992 na obra “O Mito da Necessidade.
Discursos e práticas do regionalismo nordestino”,4 o que sugere possíveis (e quem sabe, interessantes) possibilidades de comparação entre a tese defendida na História por Durval e na Ciência Política por Iná. É claro que utilizando fontes e documentação diferentes, por si própria, já nos sugerem resultados não propriamente semelhantes, somado a isso à perspectiva disciplinares e o referencial teórico diferente mobilizado por ambos. Iná também buscou dialogar com aspectos e obras sobre regionalismos, e Durval deixa claro que sua intenção está mais por se afastar dessa temática e aproximar sua análise a instituições e construções de identidades. É claro que ainda há outras possibilidades de comparação, utilização e iniciação do debate das críticas presentes sobre interpretações do nordeste brasileiro. Principalmente quando se publica recentemente, novas re-edições do livro “A Invenção do Nordeste”.
1 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru (SP): Edusc, 2007.
2 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007.
3 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. “O Tempo, o Vento e o Evento: história, espaços e deslocamentos nas narrativas de formação do território brasileiro”. Conferência realizada XXIV Simpósio Nacional de História – ANPUH, História e Multidisciplinariedade: territórios e deslocamentos, julho 2007. Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/otempo ovento o evento.pdf.
André Souza Martinello – Universidade Federal de Santa Catarina.
Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional – ALBUQUERQUE JR (HH)
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional. Recife: Bagaço, 2008, 514 p. Resenha de: VIDAL e SOUZA, Candice. O Nordeste: algumas narrativas de lugares, gentes e modos de vida. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.228-233, março 2011.
Para os analistas dos discursos sobre a nação (historiadores, antropólogos ou sociólogos), a primeira tarefa é compreender sobre que lugares e formas sociais o autor do texto ou imagem sobre o Brasil ou alguma de suas partes está se referindo. As fronteiras internas da nação, sua caracterização geográfica e sociológica, sua explicação histórica, são marcadas exemplarmente nos textos do pensamento social brasileiro ou na vasta literatura referida a locais de fato existentes Brasil afora (LIMA 1999; VIDAL E SOUZA 1997; IBGE 2009; SENA 2003; COSTA 2003).
O historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., há muito tempo, explora a invenção discursiva da região Nordeste, procurando capturar os cenários históricos e os modos de apresentação das vozes dos políticos, dos literatos, dos historiadores e dos estudiosos da cultura popular (cf. ALBUQUERQUE JR.
1988 e 2001). A coletânea em questão reúne ensaios que incidem sobre a mesma temática das formas e processos de construção das “dizibilidades e visibilidades” do Nordeste. O ponto de partida interpretativo mantém-se em torno de Michel Foucault, o qual formula os objetos e o léxico empregado na análise de falas e de imagens presentes em romances, biografias, ensaios e fotografias. Certamente, a demarcação coerente do campo de análise e das referências de apoio bibliográfico é uma qualidade constante nos ensaios. Além disso, como se pretende enfatizar posteriormente, essa fixidez impede que outras perspectivas contemporâneas sobre as narrativas das identidades nacionais ou regionais sejam incorporadas e submetidas ao debate acerca dos “poderes e saberes”. Do mesmo modo, a insistência sobre a especificidade da construção da região Nordeste afasta o autor da comparação com as formas de narrar outras regiões brasileiras, exercício fundamental para a compreensão dos mecanismos de invenção das fronteiras intranacionais e dos significados em torno da produção de alteridades/outridades.
Os vinte e dois ensaios que compõem a coletânea são distribuídos em três partes: “História e Espaços”, “História e Identidade Regional”, “História, Espaço e Gênero”. As abordagens apresentadas, em cada um deles, são diversas quanto à temática específica (o espaço como objeto da história, a visão tropicalista do Nordeste, a história regional, o Nordeste de Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, os romances de José Lins do Rêgo e a representação da mudança, as imagens de gênero formuladas nos textos etc.), mas são reiterativas quanto ao ponto de vista interpretativo. Como os ensaios apresentam graus variados de elaboração das discussões, faltam as indicações sobre a data da primeira publicação, sobre o formato da primeira versão, como parâmetro para compreensão da “temporalidade” do pensamento do autor.
Sustenta-se que a articulação dos ensaios está ligada às seguintes ideias, apresentadas por Durval Muniz de Albuquerque Jr.: Existe uma realidade múltipla de vidas, histórias, práticas e costumes no que hoje chamamos Nordeste. É o apagamento desta multiplicidade, no entanto, que permitiu se pensar esta unidade imagético-discursiva. Por isso, o que me interessa aqui não é este Nordeste “real”, ou questionar a correspondência entre representação e realidade, mas sim, a produção desta constelação de regularidades práticas e discursivas que institui, faz ver e possibilita dizer esta região até hoje. Na produção discursiva sobre o Nordeste, este é menos um lugar que um topos, um conjunto de referências, uma coleção de características, um arquivo de imagens e textos (ALBUQUERQUE JR. 2008, p. 129, grifos do autor).
A gênese da nomeação da região, genericamente chamada de Norte, até as primeiras décadas do século XX, é acompanhada pelo autor em diversos eventos, falas e textos. Nessa demarcação do Nordeste, intelectuais como Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Ascenso Ferreira, Ariano Suassuna, José Lins do Rêgo e outros tantos são considerados como caracterizadores do Nordeste em seus aspectos históricos, sociais, culturais e geográficos. É notável que apenas seis estados sejam tomados como o núcleo da identidade nordestina (Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e Sergipe), tal como nomeia a convocação de Joaquim Inojosa no Congresso Regionalista do Recife, realizado em 1926 (ALBUQUERQUE JR. 2008, p. 140). Percebe-se que em Pernambuco a centralidade simbólica de sua capital (no sentido de SHILS 1992) e da sua civilização, em torno do engenho, serão o cenário modelar dessa configuração geo-simbólica, em torno do qual gravitam as representações sobre o sertão da seca, do banditismo, do messianismo e da religiosidade popular.
O material analisado pelo autor narra sobre os aspectos históricos, os costumes e as paisagens desses estados. Mesmo que ele mencione visões alternativas de outros intelectuais sobre a região, como, por exemplo, Djacir Menezes em seu livro “O Outro Nordeste” (1937), a produção ensaística ou literária dedicada a falar do Nordeste através das sub-regiões excluídas nas narrativas mestras ou situada nos estados excluídos na definição do centro da identidade nordestina não é pesquisada ou explorada pelo autor. Se a intenção é elaborar uma crítica das formas de representação do Nordeste, as fontes empíricas da análise deveriam incluir o discurso das margens da região, representativo de outras visões dos intelectuais sobre o seu lugar. Desse modo, o historiador crítico não escapa das fronteiras impostas pelo campo intelectual que ele pretende pôr em revista.
Quando analisa os textos de Câmara Cascudo sobre o Rio Grande do Norte e seu sertão, Durval Muniz oferece pistas sobre essas possibilidades de investigação da heterogeneidade das representações acerca do Nordeste quando observa: Chamou-nos a atenção como, em muitos de seus textos, Cascudo vai fazer esta aproximação entre a história do Ceará, da Paraíba e do Rio Grande do Norte e como vai procurar diferenciá-las da história de Pernambuco. […] Na base desta definição poderia estar a vinculação de Cascudo a um lugar de fala distinto daquele de onde foi enunciado inicialmente o discurso regionalista nordestino e de onde foi inventado o Nordeste. […] Se o Nordeste, elaborado pelas elites pernambucanas, teve São Paulo como o espaço outro, o espaço do qual se diferenciar, o Nordeste das elites cearenses, das elites norte-rio-grandenses e das elites paraibanas, talvez em menor grau, deveria se diferenciar do Nordeste elaborado pelas elites pernambucanas […] (ALBUQUERQUE JR. 2008, p.190).
Possivelmente, a incorporação das discussões sobre identidades nacionais e narrativas que se engloba, hoje, sob a denominação de estudos pós-coloniais e subalternos permitiria escapar e ir além da desconstrução foucaultiana das representações regionalistas. Ainda que seja válido compreender a solidificação de modos de falar e de ver um povo e um lugar e a sua clara vivacidade e plasticidade no presente, a consciência das relações de exclusão e subalternização no interior das representações do Nordeste só pode contribuir para o confronto com as falas autorizadas se as vozes de pensadores “menores” também forem colocadas em cena.
As dinâmicas complexas do campo intelectual, as filiações, as linhas de entendimento dos processos históricos e sociais que se movem de acordo com os contextos de enfrentamento dos debates (Para quem se fala? Com quem interage?), sugerem que o analista precisa situar os sujeitos da fala e sobre quem ele fala. Se essa exigência para o esclarecimento do leitor cumprese para autores como Luís da Câmara Cascudo, Gilberto Freyre ou José Lins do Rêgo, quando se dirige aos historiadores do regional, destaca-se, contudo, que tal indicação é imprecisa e genérica. Em vários momentos, o autor faz menção à história regional como a reprodução e a legitimação de formas tradicionais de compreender o Nordeste. No entanto, suspeita-se que a prática da pesquisa histórica chamada de regional persiste como contraposição à invisibilidade que se produz em relação a eventos locais no âmbito de uma história “nacional”. Não se faz história regional apenas no Nordeste e o abandono da denominação “regional” não anula as características de hierarquização do campo historiográfico quanto aos objetos e aos locais de ensino e pesquisa. O autor coloca-se contra essas autolimitações de objeto e perspectiva: […] achamos que devemos questionar a chamada ‘História regional’, porque por mais que se diga crítica do regionalismo, do discurso regionalista, está presa ao seu campo de dizibilidade. […] Ao invés de questionar a própria ideia de região, sua identidade e a teia de poder que a instituiu, ela questiona apenas determinadas elaborações da região, pretendendo encontrar a verdadeira (ALBUQUERQUE JR., 2008, p. 223).
Há pertinência relativa na observação do autor, mas ela pode ser vista como demasiado extensiva e sem referência temporal: toda a história local se faz de modo tão acrítico quanto aos efeitos de produção da realidade estudada? Quais obras e quais historiadores podem ser nomeados como parte da operação de busca da “verdadeira” região? Para esse momento da coletânea e em outros, a indicação precisa do ponto de vista, com citações diretas, por exemplo, do discurso analisado, poderia nuançar polarizações como a que aparece no ensaio sobre tradicionalistas e tropicalistas e suas formas de falar a respeito do Nordeste.
As fronteiras espaciais imaginadas, pelos mais diversos atores do campo intelectual, mais ou menos próximos do seu polo elitizado, são o ponto de reflexão mais instigante do livro. A insistência em trazer o espaço como problema da pesquisa histórica e não como um dado óbvio, um cenário no qual os acontecimentos humanos desenrolam-se, aparece na primeira parte do livro e reaparece em inúmeras passagens. Nesse aspecto, a articulação entre espaço e gênero, trabalhada na terceira parte, surpreende quanto às possibilidades de leitura de trabalhos já visitados, ora relidos sob a perspectiva de gênero.
Notavelmente articulada como constructo em torno da masculinidade, as ideias sobre o Nordeste e o nordestino colocam à margem o feminino, mas mantém em seu subtexto a presença do homossexual masculino, o contraponto forte aos exemplos de macheza e de virilidade tão associados ao sertão. Segundo o autor, “nas fronteiras que traçam os limites do ser nordestino não está inscrita a possibilidade de ser homossexual” (ALBUQUERQUE JR. 2008, p. 446). De fato, nenhum constructo sobre a região ou a nação, simbolicamente dependente das ideias de reprodução e continuidade, assenta-se sobre a tese de uma fundação homossexual de um lugar. No entanto, outras representações da região reconhecem a presença e a participação feminina, mesmo em condição englobada pelo masculino, na formação das características distintivas de um grupo (cf. a noção de “matriarcado mineiro” em VIDAL E SOUZA & BOTELHO 2001).
Na configuração das nações e de suas regiões, importa conhecer sobre a nomeação das alteridades e das descontinuidades internas, do mesmo modo que a imputação da fronteira externa. Especialmente no caso da interpretação do pensamento social, a pluralização das leituras é o antídoto contra a repetição dos modos de ver tradicionais por meio da própria análise sociológica. Outra perspectiva interessante é a de captar as comparações entre regiões efetivadas dentro das obras (cf. sobre os arranjos de família em VIDAL E SOUZA & BOTELHO 2001). Na miríade de discursos letrados sobre as regionalidades brasileiras é notável, certamente, a invenção do Nordeste; ainda que poderosa e duradoura, pode ser comparada em seus mecanismos discursivos e representacionais, assim como na sociologia de seus enunciadores e contextos de enunciação, com a goianidade, a mineiridade, o norte-mineiro, o paulista etc.
O tom geral da coletânea trata os discursos regionais como visões conservadoras. No entanto, essa compreensão uniformiza a intencionalidade dos autores individuais, como no caso de Josué de Castro, cuja abordagem sobre a fome no Nordeste tem uma visão transformadora. E, ao me colocar como parte do mesmo “nós” que o autor se inclui, lanço dúvidas sobre a validade política da destruição das identidades regionais e suas imagens hoje, quando é exatamente uma visão turística e elitista do Nordeste que quer ocultar a persistência do Nordeste da fome, da desigualdade aberrante, dos corpos mutilados e dos aleijões gerados pela pobreza denunciados em algumas falas e imagens analisadas pelo autor. O reconhecimento disso deve ser proclamado agora mais para dentro do que para plateias externas. O desejo do autor é destruir os regionalismos, “colocando no horizonte a possibilidade de vivermos sem estas prisões identitárias” (ALBUQUERQUE JR. 2008, p. 29). O olhar para o presente, no entanto, demonstra como a máquina de produção de estereótipos estigmatizantes sobre o Nordeste e os nordestinos está em franca atividade, assim como os sentimentos de pertencimento vinculados a lugares não desapareceram do horizonte dos grupos sociais. O projeto da interpretação do presente pela história ou pelas ciências sociais deve ser movido pelos universos representacionais e práticos dos sujeitos concretos. A relevância dos mundos construídos é dada pela sua própria existência e por sua disseminação, trata-se de fenômenos que inquietam o espírito investigativo.
Nesse impulso, seria proveitoso que o ímpeto desconstrucionista dessa coletânea se expandisse para temas e materiais atuais de formulação da identidade nordestina e que a colocasse em diálogo com formas positivas e destrutivas de formulação das fronteiras entre grupos que se registra no Brasil e alhures. Estabelece-se, assim, o dilema de quem analisa a nação ou a região: abdicar de pensar o que há em nome do dever ser.
Referências
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 2001.
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino – de problema à solução (1877-1920).
Campinas: UNICAMP, 1988 (Dissertação de mestrado em História).
ATLAS DAS REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DE REGIÕES BRASILEIRAS. Sertões Brasileiros I, vol. 2. Rio de Janeiro: IBGE, 2009.
COSTA, João Batista de Almeida. Mineiros e baianeiros: englobamento, exclusão e resistência. Brasília: Departamento de Antropologia/ UnB, 2003. (Tese de doutorado em Antropologia Social).
LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: REVAN/ IUPERJ, 1999.
SENA, Custódia Selma. Interpretações dualistas do Brasil. Goiânia: Editora UFG, 2003.
SHILS, Edward. Centro e Periferia. Lisboa: Difel, 1992.
VIDAL E SOUZA, Candice. A pátria geográfica. Sertão e litoral no pensamento social brasileiro. Goiânia: Editora UFG, 1997.
VIDAL E SOUZA, Candice e BOTELHO, Tarcísio R. Modelos nacionais e regionais de família no pensamento social brasileiro. Estudos Feministas Vol 9, n. 2: p. 414-433, 2001.
Filme, história e narrativa Film, history and narrative ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes / Os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010, 264 p.
Candice Vidal e Souza – Professora Adjunta Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais candice.vidal@yahoo.com.br Av. Itaú, 505, Prédio Emaús, 3º andar – Dom Bosco 30730-280 – Belo Horizonte – MG Brasil Enviado em: 14/2/2011 Aprovado em: 24/3/2011 228 As formas de narrar a nacionalidade brasileira, em variadas modalidades de representação, (ensaísmo, cinema, artes visuais e literatura) convergem na apresentação de diferenças e descontinuidades internas à nação. De fato, no esforço de diversos intérpretes do Brasil, nota-se a ideia da fragmentação, da pluralidade cultural, ambiental, socioeconômica. As inquietações intelectuais e políticas geradas por essa diversidade ocupam muito mais os intelectuais fixados em pensar a nação do que a eventual reflexão comparativa com outras nações.
Trilhas da História | UFMS | 2011
Trilhas da História (Três Lagoas, 2011-) foi pensada e elaborada com o objetivo de promover o debate acadêmico, tendo o propósito de enriquecer as pesquisas em andamento, tal como agregar produções de outros lugares, instituições e sujeitos.
Com esse objetivo, esperamos alcançar, além de professores da universidade e da rede pública e privada de ensino, alunos graduandos de nosso curso [de História – Três Lagoas/MS] e de outras universidades, tendo por intuito incentivar novas pesquisas e a busca por conhecimentos produzidos pela História e áreas afins.
Se a proposta é interdisciplinar, disciplinas como a Filosofia, Geografia, Ciências Sociais, Antropologia, Arqueologia, entre outras, encontrarão espaço para veicular as suas produções, desde que concernentes aos temas sugeridos pela Revista. A Revista se constitui de Dossiês; Artigos livres; Ensaios de Graduação; Resenhas e Fontes.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2238 1651
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A cidade como objeto de reflexão interdisciplinar (II) / Albuquerque: Revista de História / 2011
Mesmo enfrentando as dificuldades inerentes à publicação de um periódico acadêmico e superando o descrédito de alguns que não acreditam que os cursos de história da UFMS podem ter uma vitrine de pesquisas, não somente de seus docentes mas também dos pesquisadores de outras instituições, a Revista Albuquerque chega ao seu terceiro ano. Assim, consolida-se cada vez mais este projeto editorial e também mostra a relevância das atividades desenvolvidas pela Base de Pesquisas Históricas e Culturais das Bacias dos Rios Aquidauana e Miranda / BPRAM / DHI / CPAQ / UFMS.
Neste número estão incluídos na seção “Artigos” dois textos inovadores, frutos de pesquisas dos professores Bruno Torquato Silva, Luciene Lemos de Campos e Luciano Rodrigues. O artigo “Acerca dos problemas enfrentados pela burocracia do Exército na introdução do sorteio militar no Estado de Mato Grosso (1916-1945)”, insere-se no terreno da chamada Nova História Militar e contempla um problema central enfrentado pelo Exército Brasileiro, em Mato Grosso, no tocante à reposição de seus quadros efetivos. Ao mesmo tempo aponta fontes que possibilitem discussões sobre as implicações estratégicas da presença militar na região, sobretudo no concernente à defesa das fronteiras ocidentais, à manutenção da coesão nacional e da ordem social.
A seção é encerrada com “Migrantes e migrações: entre a história e a literatura”, texto no qual, a partir da interface da História com a Literatura, os autores discutem o fenômeno da migração, enfatizando os significados contidos nos fluxos populacionais, bem como o papel que os migrantes exerceram e exercem na formação sócio-cultural de diversas etnias.
A Revista Albuquerque, neste número, também dá continuidade na seção “Dossiê” ao assunto “A cidade como objeto de reflexão interdisciplinar”, iniciado no número anterior. Assim, os textos selecionados para este dossiê, produzidos por especialistas vinculados a variadas áreas do conhecimento, as problemáticas da cidade são delineadas como questões significativas, nas quais emergem temáticas variadas que vão desde representações urbanas sobre a modernidade, até a presença de um léxico urbano para nomear e dar significados aos lugares e às gentes.
Finalmente, na seção “Caderno Especial” está inserido um precioso documento, raro e inédito, do frei Mariano de Bagnaia, que vivenciou um momento difícil em sua passagem pela fronteira sul de Mato Grosso, quando foi prisioneiro dos paraguaios durante a Guerra com o Paraguai. Este documento faz parte do acervo histórico do arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul e foi gentilmente cedido para a sua reprodução nesta revista. São importantes informações sobre as consequências da guerra que retratam os danos financeiros e materiais das igrejas de Corumbá, Miranda, Nioaque, Albuquerque e da Missão Bom Conselho.
Com certeza, a Revista Albuquerque, mais uma vez, contribui como um veículo apropriado à divulgação da produção científica na área da história, para uma profícua reflexão sobre temas históricos e culturais.
Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.3, n.5, 2011. Acessar publicação original [DR]
Guerra com o Paraguai / Albuquerque: Revista de História / 2011
O ano de 2011 teve um significado especial para os estudos históricos pela comemoração do centenário de nascimento de Nelson Werneck Sodré, historiador, professor e ideólogo que influenciou gerações de estudantes e professores de história, pesquisadores e historiadores. A festiva programação foi intensa, com discussões, simpósios, reedições e publicações de seus livros que enriqueceram a historiografia brasileira. A Revista Albuquerque não poderia ficar alheia a estes eventos. Assim, honrosamente, traz aos seus leitores um interessante artigo de Olga Sodré, sua filha. Este texto enfoca a participação do historiador Nelson Werneck Sodré no polêmico Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB, e conta a sua luta pelo desenvolvimento de uma cultura nacional, popular e democrática.
As questões relativas á historiografia regional , um dos objetivos de divulgação da Albuquerque, encontram-se representadas nos artigos de Marcos Hanemann, Valmir Batista Corrêa, Lúcia Salsa Corrêa e Alvaro Neder. O primeiro enfoca a criação do Tribunal de Relação em Mato Grosso e a fragilidade da aplicação da justiça, motivada pela falta de pessoas formadas que quisessem servir na região. O segundo traça um perfil da historiografia mato-grossense, a partir da segunda metade do século XIX, e a marcante influência de Augusto Leverger na formação dos historiadores regionais. O terceiro enfatiza a importância dos documentos históricos para o estudo das epidemias recorrentes em Corumbá, no período de 1856 e 1922. O quarto texto produz uma instigante reflexão sobre a canção popular urbana, tendo como cenário a cidade de Campo Grande – MS.
Na seção “Dossiê”, a Revista Albuquerque abriu espaço ao III Encontro Internacional de História sobre as Operações Bélicas da Guerra da Tríplice Aliança, promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, em parceria com o Comando Militar do Oeste. Foi uma rara e instigante oportunidade de reunir pesquisadores e interessados sobre este conflito bélico, nacionais e estrangeiros. Neste dossiê são apresentados três trabalhos: no primeiro, Bruno Mendes Tulux discute a gênese da formação do espaço fronteiriço e os entendimentos que mantiveram as partes litigiosas, representando os interesses coloniais de Portugal e de Espanha, em diversos momentos, até a eclosão do conflito com os paraguaios em 1864; no segundo, Edgley Pereira de Paula, estuda o uso de caricaturas publicadas na imprensa da época como estratégia de guerra, tanto da parte brasileira como da paraguaia; o texto de Maria Teresa Garritano Dourado propõe-se a analisar as questões relativas a fome, as doenças e as penalidades durante a guerra, vistas sobre o olhar de um soldado comum. Sem dúvida, são trabalhos que contribuem para a compreensão da história da guerra com o Paraguai, abrindo um painel para a releitura crítica do episódio, de suas fontes e de seus desdobramentos.
O encerramento do sexto número dá-se, como nos números anteriores, com o Caderno Especial. Nesta oportunidade, esta seção traz dois textos, também apresentados no III Encontro Internacional de História sobre as Operações Bélicas da Guerra da Tríplice Aliança. O texto de abertura desta seção, de Hildebrando Campestrini, é a apresentação do evento, revelando uma visão peculiar da Guerra da Tríplice Aliança, acrescido de um Referencial Teórico apresentado como indicador aos participantes do evento. O propósito, neste caso, é resguardar o espaço do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul na historiografia regional, proporcionado um saudável diálogo entre historiadores acadêmicos e diletantes.
Para fechar a sua seção especial, a Revista Albuquerque edita, prazeirosamente, uma entrevista com o ex-governador e político Wilson Barbosa Martins.
A Revista Albuquerque em seu sexto número e terceiro ano, em última instância, simboliza o esforço, misto de teimosia e de quixotismo de seus coordenadores e colaboradores, tendo por princípio divulgar e estimular a produção historiográfica em nossa região, mediante os critérios de relevância e de qualidade. Modestamente, acredita-se que estes princípios seguem contemplados nesta edição.
Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.3, n.6, 2011. Acessar publicação original [DR]
O Jogo da Dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil – ALBUQUERQUE (Tempo)
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da Dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2009, 319 p. Resenha de: GOMES, Tiago de Melo. Dissimulação e outros jogos. Tempo v.15 no.29 Niterói jul./dez. 2010.
“‘Saber o seu lugar’ é uma dessas expressões capazes de traduzir regras de sociabilidades hierarquizadas que, sendo referendadas ou contestadas, atualizam-se cotidianamente. É construindo e conhecendo tais ‘lugares’ que as pessoas estabelecem relações, reconhecem formas de pertencimento e estruturam disputas próprias ao jogo social. Mas quais seriam os sentidos imprimidos a essa expressão no contexto das mudanças políticas e sociais das últimas décadas do século XIX? Em que medida a desarticulação da escravidão fundamentava as leituras que os contemporâneos faziam dos diferentes lugares naquela sociedade?” (p. 33).
Essa é a maneira pela qual Wlamyra R. de Albuquerque define a problemática de seu livro em sua introdução. O tema central de O Jogo da Dissimulação é uma interrogação a respeito da reorganização das hierarquias sociais com o fim da escravidão, um dos pilares centrais de todo um sistema de dominação que dava sentido àquela sociedade. Sendo esse alicerce removido, como os senhores poderiam manter suas políticas de domínio? E como os dominados poderiam buscar uma nova inserção em um mundo sem a presença da escravidão? Sobre tais questões, Albuquerque constrói seu O Jogo da Dissimulação.
O livro possui, dessa maneira, uma ancoragem muito sólida na história social, algo que é mantido com coerência pelos quatro capítulos do livro. Os quais, por sinal, a despeito de interligados, podem ser lidos em separado sem maiores prejuízos para o leitor. Mas o livro não carece de unidade: a problemática enunciada na citação acima é perseguida da primeira à última página, de modo que o que se tem não é uma coleção de artigos, mas um livro com início, meio e fim.
Segundo a autora, o primeiro capítulo seria centrado “nas dissensões flagrantes nos meetings e ações dos abolicionistas, diante das atitudes da população de cor” (p. 39). No entanto, não é uma definição particularmente feliz. Os abolicionistas só entram em cena com o capítulo bem adiantado, na terceira (e última) parte. Através deles, a autora nos mostra que para Salvador valia algo que outros autores já haviam demonstrado para Rio de Janeiro e São Paulo: abolicionismo não é incompatível com racismo. E naquele contexto não era raro as duas coisas andarem juntas, pois muito do abolicionismo de elite era fundado exatamente no desejo de se livrar dos negros para substituí-los por imigrantes brancos.1 Albuquerque nos mostra isso com competência, o que, embora não seja propriamente original, nunca deixa de ser relevante, principalmente com a exaltação que muitos ainda se ocupam de fazer a figuras como Joaquim Nabuco2.
Mas o que efetivamente vale a leitura do capítulo são suas primeiras duas partes. A partir da chegada de dezesseis africanos em 1877, com intenção de se estabelecer em Salvador como comerciantes, a autora nos conduz por uma história incrível. Embora livres e portadores de passaportes ingleses, o grupo é proibido de se estabelecer e mandado de volta para a África. Um episódio que gerou um pequeno choque diplomático com os ingleses e envolveu o chefe de polícia da cidade, o governador da província, chegando à alta instância do Conselho de Estado. Mais admirável é que Albuquerque nos mostra não ter se tratado de fenômeno isolado. Pode ser mais bem definido como parte de um esforço consciente do Estado brasileiro de impedir a entrada de imigrantes de cor sem que houvesse a necessidade de recorrer a uma legislação específica. Ao mostrar outros casos com a mesma problemática e o mesmo final, Albuquerque deixa claro que o Estado brasileiro lutou em várias frentes pelo embranquecimento da nação. Não apenas se esforçou para trazer imigrantes que clareassem o Brasil, mas deliberadamente impediu africanos e afrodescendentes de outras nacionalidades de entrar no país.
O que é uma importante contribuição para inserir de forma mais consistente o papel do Estado brasileiro na promoção da desigualdade racial. A ausência de legislação discriminatória tem feito com que historiadores não deem ao Estado um papel de destaque nesse processo.3 Estudos sobre ações semelhantes em outros contextos, aliados ao trabalho de Albuquerque, fornecem elementos impossíveis de serem ignorados, que apontam claramente nessa direção.4
O segundo capítulo, centrado no contexto imediatamente anterior e posterior ao 13 de maio, é um dos pontos altos do livro. Albuquerque nos conduz por um intenso jogo de reconstrução de sentidos causado pela remoção de um dos pilares sobre o qual se construía a sociedade brasileira até então. Sem a escravidão, os senhores percebiam a derrocada de toda uma política de domínio longamente estabelecida, e o medo do caos social se disseminava (para não mencionar as consequências econômicas, em especial para uma província já decadente). Do lado dos subalternos, a excitação ante a possibilidade da reconstrução de todo um contexto social em termos que lhes fossem mais favoráveis.
Em meio às festividades e desafios políticos que os dominados promoviam, ou a tentativas desesperadas e eventualmente patéticas de manter a antiga ordem social por parte dos dominantes, Albuquerque nos introduz a repensar algo há muito consagrado sobre aquele período. Há uma tendência a pensar na década de 1880 como uma desagregação definitiva da escravidão, e no 13 de maio como apenas o último ato de uma situação praticamente já consolidada. Mergulhando em bairros negros de Salvador, em engenhos do recôncavo e em vilas afastadas no interior, Albuquerque nos lembra com muita intensidade o quanto a escravidão ainda era naquele momento a peça-chave de todo um sistema de dominação que era intensamente presente no cotidiano daquela sociedade.
Já o terceiro capítulo tem um brilho menor. Contém uma ideia muito interessante, e que em certos momentos consegue fascinar o leitor: a de que a racialização da visão de mundo do universo dominante de fins do século XIX não se deve apenas à influência do ideário racista europeu, mas também deve ser vista como uma tentativa de reorganização das hierarquias a partir do declínio da escravidão. Uma ideia das mais interessantes, mas que às vezes é soterrada no capítulo por discussões menos originais. Pintar republicanos como essencialmente brancos bem educados de classe média e alta, em contraposição a uma paixão popular (e sobretudo negra) pela monarquia, por exemplo, é algo que hoje já se transformou em lugar-comum. Muitas páginas são dedicadas a essa questão, sem trazer ganhos palpáveis a uma discussão que, se perseguida de forma mais sistemática por todo o capítulo, poderia ter resultado em uma discussão do mais alto interesse.
Já o quarto e último capítulo muda o rumo da discussão, se embrenhando em uma discussão aberta há muitos anos por Beatriz Góis Dantas,5 mas que poucos tentaram prosseguir. Trata-se da imagem da Bahia como capital afro-brasileira, ideia em grande parte referendada em uma determinada africanidade (a jeje-nagô), que nessa visão seria mais “pura” ou até mesmo “superior” às outras áfricas que aportaram em território nacional.
Se Albuquerque segue o trabalho de Dantas ao se ocupar da visão de atores como Nina Rodrigues, Manoel Querino, Édson Carneiro e Artur Ramos (fundadores e difusores daquela imagem), inova ao acrescentar um dado novo: os próprios africanos e afro-brasileiros que viveram aqueles anos. No capítulo, podemos ver os portadores daquela cultura afro-brasileira que foi alvo de tantos escritos representando a si próprios e a própria África. Aprendemos que não era apenas na faculdade de medicina de Salvador ou nas publicações de literatos que o tema estava na ordem do dia. Blocos carnavalescos, terreiros, batuques, bancas de jogo do bicho, qualquer espaço parecia bom naquele momento para pensar a relação entre África e Bahia.
E o mínimo que se pode dizer a partir da leitura do capítulo é que naquele contexto havia uma multiplicidade de representações disponíveis sobre o continente africano, que não aparecia apenas como espaço da barbárie. Havia outros elementos a ele associados, tais como resistências ao imperialismo europeu. Disso resulta que era evidente o conflito de significados associados àquele continente, com evidentes implicações político-raciais. Áfricas diferentes também significavam diferentes percepções sobre o lugar de seus descendentes em território brasileiro.
O último capítulo de O Jogo da Dissimulação é um convite para que o tema da construção de uma determinada leitura da capital baiana seja mais problematizado por historiadores. O capítulo não é propriamente conclusivo, trazendo mais perguntas do que respostas. De toda forma, desperta a curiosidade do leitor para o tema sobre o qual se debruça, o que é sem dúvidas um mérito dos mais relevantes.
Um pequeno reparo que deve ainda ser feito em uma leitura global do livro se refere ao título. Que poderia ser ótimo, se fosse adequado ao seu conteúdo. Mas a verdade é que não temos em mãos um livro sobre dissimulação. O termo só aparece no primeiro capítulo, para descrever as tentativas do Estado brasileiro de barrar a entrada de africanos e afrodescendentes no país, sem recorrer a uma racialização explícita. No mais, o que temos são confrontos, projetos, choques de visão de mundo, mas nunca dissimulação.
O Jogo da Dissimulação, ao fim, mostra-se um livro instigante, que deixa no leitor uma vontade de saber mais sobre o assunto. É de esperar que sua publicação contribua para que as questões discutidas possam avançar. São temas muito importantes e nem sempre tratados como deveriam pela historiografia brasileira.
Gostaria de encerrar com uma questão de caráter mais geral que o livro levanta: o papel da escravidão na trajetória posterior dos afro-brasileiros. Albuquerque nos lembra de algo muito importante: o destino dos afro-brasileiros após 1888 poderia ter sido muito diferente. A escravidão não pode ser vista, portanto, como uma origem que explica toda uma trajetória posterior de desigualdades raciais. Vemos claramente no livro como o encaminhamento da “questão servil”, desde o momento em que a abolição afigurou-se como inevitável, foi conduzido de forma a produzir desigualdades em um mundo sem escravidão. Vemos os grupos dominantes buscando na racialização uma maneira de reorganizar as hierarquias de forma a manter a existência de senhores, mesmo em um mundo sem escravos. Em um momento em que essa questão está na ordem do dia, Albuquerque nos lembra com muita propriedade o quanto essas diferenças e hierarquias se reconstroem permanentemente. Somos todos atores desta história.
1 O trabalho seminal sobre o assunto é Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites – século XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
2 Novamente é preciso lembrar o trabalho de Célia Azevedo, em textos como “Quem Precisa de São Nabuco?”, Estudos Afro-Asiáticos, vol. 23, nº 1, Rio de Janeiro, 2001, p. 85-97.
3 Uma exceção importante é o trabalho de Anthony Marx, em obras como “A Construção da Raça e o Estado-Nação”, Estudos Afro-Asiáticos, nº 29, Rio de Janeiro, 1996, p. 9-36 e Making Race and Nation: a comparison of the United States, South Africa and Brazil, Cambridge-New York, Cambridge University Press, 1998.
4 Episódios semelhantes foram documentados na década de 1920, ver Teresa Meade e Gregory Alonso Pirio, “In Search of the Afro-American ‘Eldorado’: attempts by North American blacks to enter Brazil in the 1920s“, Luso-Brazilian Review, vol. 25, nº 1, Madison, 1988, p. 85-110; Tiago de Melo Gomes, “Problemas no Paraíso: a democracia racial brasileira frente à imigração afro-americana (1921)”, Estudos Afro-Asiáticos, vol. 22, nº 2, Rio de Janeiro, 2003, p. 307-331; Jair de Souza Ramos, “Dos Males Que Vêm Com o Sangue: as representações raciais e a categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 1920”, in: Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (orgs.), Raça, Ciência e Sociedade, Rio de Janeiro, Fiocruz-CCBB, 1996, p. 59-82.
5 Beatriz Góis Dantas, Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1988.
Tiago de Melo Gomes – Professor Adjunto da Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-mail: melogtiago@hotmail.com.
Tempo Presente | UFS | 2010
O Grupo de Estudos do Tempo Presente – GET, ligado ao Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, responsável pela revista eletrônica semestral dos Cadernos do Tempo Presente (São Cristóvão, 2010-), informa a todos os interessados em apresentar artigos e resenhas para publicação que continua recebendo artigos e resenhas em fluxo contínuo e de acesso aberto.
Seguindo a própria composição do GET, serão bem-vindas produções de historiadores, geógrafos, cientistas sociais, filósofos, jornalistas, economistas, psicólogos, estudiosos das relações internacionais, dos meios de comunicação e demais áreas das ciências humanas.
Periodicidade semestral.
Acesso livre
ISSN 2179-2143
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História, Cultura e Linguagens / Albuquerque: Revista de História / 2010
Manter um periódico no Brasil não é tarefa das mais fáceis, especialmente no que se refere a publicações no campo das Ciências Humanas. Apesar de todas as dificuldades impostas aos cursos de história da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, materializadas, sobretudo, na sua pulverização em seis dos dez campi mantidos por essa instituição no interior do estado, o que vem inclusive obstando a construção de um Programa de Pós-Graduação na área, a Revista Albuquerque, graças ao empenho de seus colaboradores, dos membros de seu Conselho Consultivo e de seus editores, tem sustentado o desafio de apresentar à comunidade acadêmica os resultados de estudos de profissionais vinculados ao campo da História e áreas correlatas, do país e do exterior.
O saldo desse empenho revela-se na profícua troca de experiências que os profissionais da área de História da UFMS têm estabelecido entre si, bem como com professores e pesquisadores de diferentes áreas das Ciências Humanas que atuam nas mais diversas instituições de ensino e pesquisa nacionais e internacionais, permitindo não só a abertura de novas possibilidades de estudos, mas a constante ampliação do debate acadêmico, tido pelos editores da Revista Albuquerque como elemento essencial para o amadurecimento do conhecimento histórico.
Exatamente por isso, o periódico, dirigido e organizado por docentes dos cursos de graduação em História da UFMS, tem merecido o apoio de professores das várias instituições que compõem o Conselho Consultivo. Também a coordenação e os pesquisadores atrelados à Base de Pesquisas Históricas e Culturais das Bacias dos Rios Aquidauana e Miranda (BPRAM) assumem, a partir desta edição, papel importante para a manutenção da revista. Criada em março de 2009 como uma Unidade Técnica de Apoio ligada ao Departamento de História do Campus de Aquidauana da UFMS, a BPRAM é hoje um dos órgãos responsáveis pelas atividades científicas e culturais de interesse da UFMS. Entre as suas diversas atribuições constam o estímulo à pesquisa de caráter teórico e empírico visando ao aprofundamento e avanço do conhecimento da ciência histórica e de seus campos correlatos, o apoio e fortalecimento dos grupos e linhas de pesquisa, o estimulo e o apoio aos pesquisadores no tocante à publicação e divulgação de suas produções científicas. Nascidas ao mesmo tempo e agora juntas, a Revista Albuquerque e a BPRAM constituem-se em elementos fundamentais para a expansão da pesquisa histórica na UFMS.
Procurando manter e consolidar sua trajetória de instrumento de divulgação e debate acadêmico entre professores, pesquisadores e pessoas ligadas à produção do conhecimento, e seguindo uma proposta mais específica de sua linha editorial, a seção Artigos deste terceiro número da Revista Albuquerque acolhe importantes trabalhos referentes às regiões platinas e mato-grossenses. Os desdobramentos do encontro entre as cosmovisões do colonizador espanhol e dos indígenas americanos são examinadas por Raúl Prada Alcoreza no artigo Poder, Saber y Subjetividad en los Movimientos Indígenas. Já a memória e cultura das Comitivas, bem como o registro do cotidiano do peão pantaneiro, é tema abordado por Eron Brum em Cenários do Pantanal: o Gado, os Peões e as Comitivas. A seguir, um artigo de Ely Carneiro de Paiva contempla as expedições do explorador alemão Karl Von den Steinen, considerado o iniciador da investigação científica dos povos indígenas da América do Sul no final do século XIX. A seção se encerra com texto Charqueadas: uma alternativa na economia pecuária do sul de Mato Grosso (1880-1930 / 40), no qual Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa Corrêa analisam papel das charqueadas na economia regional do sul de Mato Grosso.
Trilhando o caminho aberto no número anterior, esta edição da Revista Albuquerque apresenta o dossiê “História, Cultura e Linguagens”, que traz, em sua abertura, o artigo de José D’Assunção Barros intitulado Um caminho percorrido e perspectivas sobre os novos tempos. Nele, seu autor busca compreender a tarefa do historiador no tratamento que dá às fontes polifônicas, baseado no dialogismo inerente à própria forma contemporânea assumida pela narrativa histórica. D’Assunção Barros aponta para as transformações na historiografia a partir de meados do século XIX e, sobretudo, a partir da aproximação entre a História e outras disciplinas do campo das Humanidades no segundo quartel do século XX. Importa ao autor a constituição de uma historiografia dialógica incrementada a partir da absorção das linguagens artísticas como fontes possíveis para a interpretação dos historiadores.
Se este dossiê é inaugurado por uma reflexão de caráter teórico metodológico, ele segue com o estudo de caso apresentado por Marcos Antonio de Menezes em Baudelaire, a mulher e “o amor que não ousa dizer seu nome”. Tal reflexão baseia-se na interpretação de alguns dos poemas de As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, especialmente naqueles que apresentam temas antes não atingidos pela leitura do historiador, como o erotismo lésbico. Ali, o historiador se encontra com o crítico literário e a junção de ambos oferece ao leitor uma visão pormenorizada da maneira como a sociedade parisiense de meados do século XIX interpretava os desejos que figuram além da heteronormatividade.
Se a margem social experimentada pelas discípulas de Safo nos é apresentada por Marcos Antonio Menezes, a composição de outra margem acadêmica é proposta por Peterson José de Oliveira. No artigo intitulado Novela: um gênero polêmico, o autor aponta para uma crítica literária canônica que negligenciou tal gênero em seus estudos, considerando-o menor. Para além desta constatação advinda da revisão da bibliografia especializada, Peterson José de Oliveira nos leva para outro campo, aquele do esfacelamento dos gêneros literários na contemporaneidade, ao mesmo tempo em que as convenções nominativas dos gêneros permanecem.
A sessão é finalizada com o artigo Movimento Divisionista e as diversas interpretações na historiografia: análise do Movimento Guaicuru, de Thaís Leão Vieira e Aline Xavier Cana Verde. As autoras se voltam para o Movimento Cultural Guaicuru e a reconstrução que tal movimento – posteriormente à divisão do Estado de Mato Grosso e o surgimento do Estado de Mato Grosso do Sul – faz da memória do indígena Guaicuru e sua distribuição espacial que, em última análise, apontaria para a existência de uma unidade espacial autônoma bem antes da divisão do Estado. Se outros suportes já foram utilizados para construir / compreender uma possível identidade sul-mato-grossense, para Vieira e Cana Verde importam o pensamento e a produção artística aqui estabelecidas nos anos 1980 e seguintes.
O dossiê “História, Cultura e Linguagens” constitui-se, portanto, de trabalhos das áreas de História e Crítica Literária, bem como do encontro das duas áreas, e, ainda, de historiadores que assimilam, em sua produção, as linguagens artísticas como fonte privilegiada de análise, no que se irmanam a um esforço da historiografia brasileira das duas últimas décadas, renovando o campo de interpretação das ações humanas no tempo e no espaço.
Finalmente, a seção Caderno Especial traz o documento intitulado Viagens a Mato Grosso (1887 / 88). Segunda Expedição ao Xingu, por Peter Vogel, traduzido pela Professora Doutora Maria Alvina Krähenbühl.
Esperamos que essa nova edição da Revista Albuquerque contribua para que o espaço por ela conquistado até aqui seja mantido e mesmo expandido.
Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.2, n.3, 2010. Acessar publicação original [DR]
A cidade como objeto de reflexão interdisciplinar (I) / Albuquerque: Revista de História / 2010
Com o lançamento do quarto número, a Revista Albuquerque completa seu segundo ano de existência. Possibilitando aos pesquisadores a divulgação dos resultados de suas pesquisas, propiciando aos estudantes e professores o amplo acesso a informações e à produção acadêmica mais recente, acreditamos que nesse período desempenhamos um papel fundamental, não só para o processo de socialização do conhecimento, mas também para o desenvolvimento científico da área de história, das humanidades e de áreas afins, em Mato Grosso do Sul e no restante do país. Por isso, o número que ora vem a público assume um significado especial, pois representa o momento de consolidação deste periódico, que reafirma seu compromisso de publicar textos de qualidade e relevância científica.
Neste quarto número da Revista Albuquerque, a seção “Artigos” se abre com três textos de suma importância para a compreensão do processo de ocupação colonial dos territórios situados ao longo do rio Paraguai, a rigor uma extensa área de fronteiras indefinidas até praticamente o século XIX, da qual fazem parte os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Partindo da constatação de que o controle daquele território fazia parte dos projetos expansionistas portugueses e espanhóis, no texto intitulado “Mato Grosso e Concepción, uma experiência de fronteira no período colonial (século XVIII)”, Ney Iared Reynaldo debruça-se sobre as estratégias adotadas pelas monarquias ibéricas para ocupar e salvaguardar suas áreas de domínio na região platina, então povoada por diferentes populações indígenas.
Em “Curumaí: uma povoação no caminho de Xerez”, Paulo Cezar Vargas Freire coloca em evidência a povoação de Curumiaí, um pueblo colonial espanhol formado por indígenas guaranis e fundado por religiosos franciscanos na década de 1580, cuja localização ainda é desconhecida. Partindo da proposição de que as escolhas dos locais de moradia, nesta parte da América do Sul, estão imbricadas com os traçados dos caminhos pré-coloniais, que durante os séculos XVI e XVII foram utilizados nos deslocamentos com igual ou maior constância que as vias fluviais, o autor objetiva, de um lado, contribuir para a localização do sítio da povoação de Curumiaí e, de outro, analisar a importância de considerar os caminhos pré-coloniais como um dos elementos para compreender a sucessão de deslocamentos das aldeias, dos pueblos ou das villas numa região em que as transmigrações das populações coloniais foram acentuadas.
A temática de Xerez é retomada por Sandra Nara da Silva Novais e Aguinaldo Rodrigues Gomes em “Campos de Xerez: palco de lutas e conflitos pela exploração da mão-de-obra indígena”, texto no qual os autores propõem apresentar os fatores históricos que inviabilizaram a perpetuação do projeto assuncenho- -castelhano no atual território sul-mato-grossense, abrangendo especificamente a região que na toponímia colonial foi denominada “Campos de Xerez”.
Seguindo a trajetória iniciada com a publicação de seu segundo número, o presente volume da Revista Albuquerque traz o Dossiê “A cidade como objeto de reflexão interdisciplinar”. Dado o volume de artigos apresentados, os editores resolveram dividí-los em duas partes, uma no presente volume e a segunda no volume seguinte. Reconhecendo as cidades como elementos constitutivos da trama cultural e histórica, podendo, portanto, ser observadas como espaços que condicionam múltiplas experiências pessoais e coletivas, tecidos de memórias do passado e de impressões recolhidas ao longo das diversas experiências urbanas, nos textos selecionados para este dossiê, produzidos por especialistas vinculados a variadas áreas do conhecimento, as problemáticas da cidade são delineadas como questões significativas, nas quais emergem temáticas variadas que vão desde representações urbanas sobre a modernidade, até a presença de um léxico urbano para nomear e dar significados aos lugares e às gentes.
Por fim, a seção “Caderno Especial” apresenta dois documentos importantes como contribuição para a compreensão histórica da fronteira oeste. O primeiro, “A retomada de Corumbá vista pelos paraguayos”, é um extrato do Album Graphico de la Republica del Paraguay, de Arsenio Lopez Decoud, e que traz uma visão diferente deste fato importante da Guerra com o Paraguai. O outro, “Repressão ao contrabando no Apa. Instruções. 1917”, demonstrou a preocupação das autoridades alfandegárias em legislar o combate aos descaminhos característicos da região fronteiriça.
Assim, a Revista Albuquerque segue superando os obstáculos comuns de um veículo de divulgação de produção histórica, matendo a sua regularidade e a qualidade de seus artigos.
Editores. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.2, n.4, 2010. Acessar publicação original [DR]
Fronteiras guaranis: com um estudo sobre o idioma guarani, ou ava-ñe-ê | José de Melo e Silva
Fronteiras Guaranis: com um estudo sobre o idioma guarani ou ava-ñee-ê, de autoria de José de Melo e Silva, foi publicada em 1939, dois anos após a instauração do Estado Novo (1937-1945) e no princípio de uma guerra mundial. Tornou-se mais acessível ao público com o lançamento da segunda edição em 2003 [1]. O responsável por essa edição foi o Professor Hildebrando Campestrini [2].
Influenciado pelo contexto histórico que colocava a necessidade de nacionalizar a fronteira, Melo e Silva realizou um estudo sobre a fronteira com o Paraguai, ou seja, sobre uma fronteira que era brasileira, de direito, mas, segundo ele, culturalmente guaranizada, daí denominá-la “fronteira guarani”, para propor uma reforma de sua organização econômica e social. Daí, também, o título do livro. Sua crítica mais incisiva recai sobre três questões: a cultura, o trabalho e a educação.
Nascido no ano de 1892, em Missão Velha, no Estado do Ceará, Melo e Silva foi seminarista e auxiliou nos trabalhos das missões franciscanas no Pará, em meados da década de 1910 [3]. Formou-se pela Faculdade de Direito do Ceará, concluindo o curso em 1919 e em 1932, foi aluno da primeira turma do Curso de Doutorado, criado pelo decreto federal n°.19.852, pela mesma Instituição. Em 1933, foi contratado pelo Governo do Estado de Mato Grosso para exercer o cargo de juiz de direito na fronteira com o Paraguai. No final da década de 1940, foi transferido para o Território Federal de Guaporé, hoje Estado de Rondônia. Em Mato Grosso do Sul ele é Patrono da Cadeira n°.14 do Instituto Histórico Geográfico. Escreveu outra obra que incorpora temática sobre a fronteira, denominada de Canaã do Oeste, publicada em 1948.
A primeira parte foi construída, segundo o autor, para estudar aspectos da cultura guarani a fim de compreender os costumes que vinham influenciando a fronteira brasileira [4]. Foi dividida em cinco capítulos: I- O Guarani versus Tupi; II As reduções de Guairá; III- República ou Confederação dos guaranis em Paraguai; IV- Destruição da República dos guaranis; V- O jesuíta e sua obra – opiniões e confrontos – comunismo cristão e doutrina de Marx
Nessa primeira parte, Melo e Silva realiza um diálogo com a historiografia acerca dos guarani, discutindo a formação da “raça”, suas origens e a influência da educação jesuítica na transformação dos costumes indígenas. De fato, evidencia a necessidade de o autor travar um combate ideológico dirigido a uma corrente de escritores hispano-americanos, marxistas, segundo ele, que reivindicavam o “verdadeiro” sentido da civilização guarani [5]. São textos muito ricos que mostram a singularidade desse autor combativo por dialogar mais incisivamente com intelectuais, algo pouco comum na historiografia regional.
A Segunda Parte apresenta cinco capítulos: VI- Aspecto geral da fronteira: o solo e suas riquezas, clima, condições sanitárias, chuvas, elementos povoadores, nacionais e estrangeiros, descendentes guaranis; VII- Remanescentes de famílias indígenas na fronteira: vias de comunicação, regime de segurança; VIII – Os guaranis nas fronteiras: costumes, deturpação da língua, música, dansas e festas, religiosidades, tabus, práticas místicas, abusões e crendices; IX- Situação econômica das fronteiras: meios de produção, pecuária, agricultura, aversão do descendente guarani pelo amanho da terra, carestia de vida, regime alimentar deficiente, indiferença pela caça, sistemas de habitação, de trajar e de transporte, corrida de cavalos; X- Aspectos morais: a honra da mulher, desrespeito à condição de virgem, amor livre e casamento. Nela, o autor discute as condições da fronteira em sua época, a geografia, as condições naturais, trata dos guarani “modernos” e dos problemas econômicos encontrados pelo homem.
Quatro capítulos compõem a Terceira Parte: XI – Município de Bela Vista; XII- Município de Dourados; Município de Porto Murtinho; XIV- Município de Ponta Porã – Companhia Mate Laranjeira e sua organização. Nessa parte são expostos dados sobre cada um dos municípios da fronteira, com descrição sobre rendas, escolas, população, economia, dentre outros.
A quarta parte é organizada em dois capítulos: XV- Colonização e nacionalização das fronteiras; XVI- Medidas indispensáveis à colonização e conseqüente nacionalização das fronteiras. Nessa parte, o autor retoma todos os problemas apontados no decorrer da obra para apresentar um projeto de nacionalização para a fronteira.
Finalmente, a quinta e última parte, também denominada de Parte Especial, é dividida em 15 pequenos títulos em que o autor denominou de capítulos e neles são discutidas “noções da língua guarani”. Para ele aprender o guarani era “armar-se de um excelente meio para transmitir o conhecimento da língua portuguesa” [6]. Daí a inclusão de um estudo sobre essa língua.
Importante observar que em Fronteiras Guaranis o critério adotado para a definição dos limites da fronteira é cultural. Para Melo e Silva, as “lindes guaranis” eram delimitadas pelos municípios de Ponta Porã, Bela Vista, Dourados e Porto Murtinho, locais marcados, segundo ele, pela influência da civilização guarani [7].
A fronteira, na sua consideração, era um Brasil à parte; tudo lá era diferente: “costumes, língua e, nalguns pontos, o próprio caráter do povo sofreu grande modificação” [8].
Dominada pela população paraguaia, a fronteira teria sido influenciada por modos de vida incompatíveis com os costumes nacionais. Essa população, numerosa e desconhecida oficialmente, com os seus costumes tão arraigados influenciava toda a população lindeira. Todavia, para Melo e Silva, o que seriam os costumes dessa população “guaranizada”? O autor aponta várias características no decorrer da obra, mas a que se sobressai é a “aversão ao trabalho” [9].
Ainda que reconhecesse que a fronteira era servida por muitas dádivas da natureza, apontada que a vida lá era caríssima, quase tudo era importado de São Paulo e de Campo Grande [10]. Além disso, não existiam adequados meios de transporte e de comunicação, bem como incentivos financeiros que atraíssem o elemento nacional, inclusive outros estrangeiros mais adaptados ao trabalho sistematizado. Para ele, era necessário, então, implantar uma nova organização de trabalho na fronteira. Contudo, como introduzir novos elementos sem incentivos?
Nesse sentido, o autor parece ter escrito a obra para chamar a atenção para essa parte “esquecida” do Brasil. E, ainda que a crítica ao trabalho seja central em sua obra, o autor reflete sobre todos os problemas da região: educação, saúde, comunicação, meios de transporte, produção, dentre outros, e clama pela atenção do Governo Federal. Melo e Silva traçou uma plataforma para a fronteira e considerou ser necessária a mão forte do Estado para resolver os problemas apontados.
A publicação de Fronteiras Guaranis ocorreu após a tomada das primeiras medidas orquestradas pelo Governo Vargas visando à centralização das políticas de desenvolvimento. Mas, apesar da formulação dessas políticas centralizadoras, inclusive para a fronteira, Melo e Silva as considerava não satisfatórias à época [11].
A escolha de Monte Arraes [12] como prefaciador da obra sugere pistas que permitem identificar a aproximação de Melo e Silva com a vertente do pensamento nacionalista autoritário, que estabeleceu como critério definidor da Nação a unidade étnica e lingüística. É evidenciada por seu prefaciador, inclusive, a sintonia de Melo e Silva com essa corrente de pensamento expressa e determinada, segundo Arraes [13], pela Constituição de 1937, especialmente quando defende o controle das fronteiras pelo Governo Federal.
Para expor sua tese – a necessidade de nacionalização da fronteira –, o autor analisou a região em todos os seus pormenores, e deu preferência ao estudo do homem fronteiriço, o guaranizado, problema máximo da fronteira.
Mas, de fato, quem era esse homem? Melo e Silva ora o denomina paraguaio guarani, ora descendente guarani, ora paraguaio. Segundo ele, os homens da fronteira não eram “puros”, pois haviam se misturado, “em parte já fundidos com representantes de etnias européias e hispano-americanas, e modificados pela influência da civilização dos nossos dias” [14]. Melo e Silva reconhece, também, que muitos brasileiros possuíam os mesmos hábitos desses guaranizados, pois misturados, descendentes de paraguaios. Para ele, a cultura dos guaranizados prevalecia e, devido aos casamentos “livres”, seus costumes multiplicavam-se entre a população [15]. Ou seja, para o autor, não fazia diferença se esse trabalhador era nascido no Brasil ou no Paraguai. O que importava eram seus costumes, sobretudo se a mãe fosse guarani ou mestiça: “se guarani ou mestiça a mãe, e apenas brasileiro o pai, este pouco influe na educação dos filhos, mesmo porque entre os guaranis há resíduos bem patentes de matriarcado” [16]. Na realidade, é o trabalhador que preocupa Melo e Silva e a quase totalidade dos trabalhadores fronteiriços eram paraguaios ou descendentes. Era preciso, na visão do autor, fazer um “caldeamento em que preponderem os bons elementos” [17].
Grande parte de Fronteiras Guaranis é reservada ao estudo da denominada dissolução de costumes. Para discuti-la, Melo e Silva traça um panorama minucioso dos costumes indígenas da fronteira e, para tanto, usa autores ligados ao estudo da antropologia [18], da psicanálise [19] e da psiquiatria [20]. Mas, é necessário frisar, sua preocupação é demonstrar de que forma os costumes fronteiriços, como por exemplo, o lazer, festas, músicas, carreiradas [21], etc., acabavam interferindo na vida dos homens, ocasionando prejuízos ao desenvolvimento do trabalho. Se há uma preocupação racista em Melo e Silva, ela se torna secundária ao observar que é o trabalho a questão que o move.
De fato, os hábitos e costumes dos trabalhadores, resistências tão abominadas por Melo e Silva, eram manifestações culturais do trabalhador fronteiriço e estavam ligadas ao tipo de trabalho desenvolvido na região. Grande parte desses trabalhadores empregava-se no trabalho de elaboração da erva-mate, organizado nos moldes da manufatura. Na fronteira, o trabalho era manufatureiro, isto é, ele ainda não sofrera o suficiente a divisão do trabalho para baratear as mercadorias. Nas atividades mais atingidas pela especialização, como era o caso da erva mate, significa dizer que o trabalho ainda não fora suficientemente objetivado.
Para resolver o conjunto de problemas apontado, Melo e Silva sugeria que os homens fronteiriços fossem ensinados por culturas diferenciadas, próprias dos nacionais, como os nordestinos, por exemplo, acostumados ao trabalho metódico, diferentemente dos guaranizados, que não tinham noção de propriedade nem de nacionalidade e viviam no sul de Mato Grosso como se fosse sua própria terra, comportamento que, segundo ele, ocorria em todo território sul americano [22].
É necessário observar que ainda que a questão relativa ao trabalho fosse determinante, observa-se a incorporação de teorias racistas, responsáveis por uma interpretação preconceituosa e idealizada do homem da fronteira. Fronteiras Guaranis incorpora noções discutíveis e atrasadas, do ponto de vista da ciência, por meio das idéias de Oliveira Vianna, estudioso que desenvolveu conceitos como o do apuramento da raça brasileira.
Incorpora, também, as motivações de nacionalização associadas às políticas de centralização do Governo Vargas, que se transformaram em projetos, em planos de colonização e em movimentos tal como a Marcha para Oeste, e, ao mesmo tempo, é expressão de como interpretava a realização mais apropriada dessas políticas na região de fronteira onde vivia. A partir da década de 1930, em razão das medidas de centralização do Governo Vargas foram adotadas novas políticas de controle, impondo a centralização do poder. A Companhia Matte Larangeira, monopolizando a exploração ervateira, sofreu perseguição do Governo Vargas que a obrigava a empregar trabalhadores nacionais em dois terços de sua força de trabalho. Além disso, estava sendo pressionada a desocupar o arrendamento do qual ocupara há quase 50 anos.
Mas, Melo e Silva não incorporou o discurso nacionalista contra a Companhia Matte Larangeira. Importante frisar que melo e Silva foi o único historiador a defender abertamente, à época, a referida empresa [23]. O “nacionalismo” encontrado na referida obra parece estar mais ligado a uma concepção de desenvolvimento capitalista na qual se fazem presentes as idéias de modernização e de maior presença do Estado na economia.
A incorporação do neotomismo, por meio de Alceu de Amoroso Lima, também é evidente na obra, sobretudo para fazer o combate ideológico ao comunismo, revelando seu posicionamento conservador. Ideologicamente, portanto, o autor mesclou idéias que postulam uma forma mais avançada de desenvolvimento do capitalismo na fronteira, o neotomismo e o racismo do século XIX.
Outra observação se faz necessária. Ainda que Melo e Silva tenha incorporado ideologias racistas em seus textos e que, em alguns momentos, essas idéias tenham sido incisivas, o autor acreditava, também, na possibilidade de modificar a cultura fronteiriça pela educação.
Em Fronteiras Guaranis, a educação é vista de forma mais ampla, como processo de socialização. Melo e Silva defende uma educação que pudesse modificar os costumes dos guarani em relação ao trabalho. Para tanto, acreditava na “lição do exemplo”. A educação teria um papel fundamental, homogeneizando a cultura, inserindo novos hábitos no trabalho, eliminando, assim, as diferenças. Para ele, a introdução de colonos brasileiros na fronteira poderia causar um impacto na educação dos trabalhadores guaranis ou mestiços, pois criaria a possibilidade de que absorvessem um novo modo de encarar e de fazer o trabalho.
Sugeria, sim, a modificação em seus costumes graças ao contato com outros povos, sobretudo o nordestino, trabalhador que poderia lhes dar “a lição do exemplo” [24]. Além disso, para que esses trabalhadores permanecessem na fronteira deveriam permitir que seus descendentes, nascidos no Brasil, fossem educados “à moda brasileira”. Mas não era qualquer tipo de educação que resultaria em modificação para o autor. Essa educação teria como princípio a moral cristã, o mesmo princípio dos missionários jesuítas [25].
Seguramente, Fronteiras Guaranis é referência imprescindível para o estudo da fronteira de Mato Grosso, no período em que esta região passava por um controle mais rigoroso do Governo ditatorial de Vargas (1937-1945). É uma obra que se destaca por ser a primeira da historiografia mato-grossense que faz uma análise com maior profundidade e riqueza de detalhes sobre a fronteira paraguaia. Mas sua importância não reside apenas nisso, pois é, também, expressão regional de um contexto de grandes mudanças no país; é fruto desse momento histórico em que a “nação” e a “raça” tornam-se uma preocupação central de muitos intelectuais conservadores.
Notas
1. A obra pode ser acessada, também, no site do Instituto: www.ihgms.com.br
2. Co-autor de História de Mato Grosso do Sul (2003) e autor de Breve Memória da Justiça Sul-Mato-Grossense (1987) e Santana do Paranaíba (2003), hoje Campestrini é Presidente do Instituto Histórico Geográfico de Mato Grosso do Sul – IHG-MS e membro da Academia Sul-mato-grossense de Letras.
3. MELO E SILVA, José de. Id., ibid., p. 170.
4. Id.., ibid., p.93.
5. Id. ,ibid., p. 21.
6. Id., ibid., p. 292.
7. Estranha-se a não inclusão de Nioaque e de Corumbá, municípios em que a presença de trabalhadores paraguaios era elevada. Sobre Nioaque o autor nada menciona, mas no caso de Corumbá, negava a influência da cultura guarani. A princesa do Paraguai, afirmava, tinha quase todas as características de uma cidade moderna, de sentido “spengleriano”. Id.,ibid.,p. 99.
8. Id., ibid., p. 116.
9. Id., ibid., p. 272.
10. Id., ibid., p. 148.
11. Id., ibid., p. 117.
12. Raymundo de Monte Arraes nasceu no Ceará em 1888 e faleceu no Rio de Janeiro em 1965. Arraes foi advogado autodidata. Foi, juntamente com Francisco Campos e Azevedo de Amaral, um dos três teóricos do Estado Novo. Quando deputado federal ingressou em várias comissões técnicas, sobressaindo-se na Comissão de Educação do Ministro Capanema (PAULA, 1987). Segundo a neta de Arraes, a escritora Vânia Moreira Diniz (2004), logo após a instituição do Estado Novo, em 1937, o Presidente Vargas teria lhe oferecido um cartório. Seu avô, conforme ela, resistira inicialmente, mas acabara aceitando por insistência de seus amigos. Após a década de 1950, seus escritos passam a criticar a revolução de 1930 e o regime ditatorial de Vargas.
13. MELO E SILVA, José de. Op. cit.
14. Id., ibid., p. 121.
15. Id., ibid., p. 122.
16. Id., ibid.
17. Id., ibid., p. 175.
18. D´Orbigni. Evreux, Levy-Bruhl, Martius, Metraux, Nordenskiaeld, Frazer, Estevão Pinto.
19. Freud, por exemplo.
20. Franco da Rocha e Nina Rodrigues.
21. Corridas de cavalo.
22. MELO E SILVA, José de. Op. cit., p. 121.
23. Id., ibid., p. 257/262.
24. Id., Ibid., p. 275.
25. Id., ibid., p. 179.
Carla Villamaina Centeno – Doutora em Filosofia e História da Educação. UEMS. UNIDERP. E-mail: carla.centeno@uol.com.br
MELO E SILVA, José de. Fronteiras guaranis: com um estudo sobre o idioma guarani, ou ava-ñe-ê, São Paulo: Imprensa Metodista, 1939. Resenha de: CENTENO, Carla Villamaina. A fronteira referida à nação. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 237-244, jan./jun., 2009.
Mato Grosso do Sul: o universal e o singular | Gilberto Luiz Alves
“Agora a nossa realidade se desmorona.
Despencam-se deuses, valores, paredes…
Estamos entre ruínas.
A nós, poetas destes tempos, cabe falar dos morcegos que voam dentro dessas ruínas.
Dos restos humanos fazendo discursos sozinhos nas ruas.
A nós cabe falar do lixo sobrado e dos rios podres
que correm por dentro de nós e das casas.”
Manoel de Barros
Se ao poeta destes tempos cabe alertar sobre a fragmentação da sociedade e, sobretudo, sobre a fragmentação que atinge nossa visão sobre a mesma – tarefa cumprida com maestria pelo cantador do Pantanal, Manoel de Barros -, a perspectiva do pesquisador é procurar compreendê-la. Em outras palavras, como mesmo aponta Gilberto Luiz Alves na obra Mato Grosso do Sul: o universal e o singular, a importância do conhecimento está exatamente em captar a condição humana que nos aproxima, em sua relação com os singulares nos quais esta humanidade vem se expressando, em diferentes espaços e momentos da história.
Esta é a proposta central desta obra: discutir o movimento histórico de como se constituem, em permanente relação, o universal de nossos tempos, a sociedade capitalista, e suas diferentes expressões singulares, marcadas pelas particularidades próprias ao desenrolar da constituição histórica do capital em diferentes paisagens sociais. Ao adentrar tal caminho, contudo, o autor acaba por confrontar-nos com discussões centrais na historiografia atual, de interesse não só àqueles que se dedicam à temática educacional e regional, nas quais Alves tem concentrado seus trabalhos de pesquisa1.
Mais que isso, o autor nos brinda com uma reflexão acerca do próprio significado epistemológico e da importância heurística destas duas categorias, universal e singular, dentro do campo teórico marxista. Com isso, apresenta uma discussão profícua para que sejam discutidos os particularismos que ainda hoje se apresentam no campo teórico das Ciências Humanas, ainda mais quando as manifestações de um regionalismo estreito têm impregnado diferentes análises, sob o invólucro da defesa do direito à diferença.
Neste sentido, Alves rejeita qualquer análise que desconsidere o singular e sua importância enquanto espaço de manifestação das leis gerais que operam na sociedade capitalista. Já que o universal, nunca é demais lembrar, encontra aí seu espaço de materialização histórico-social; mas também alerta para o perigo de autonomizar-se o movimento do particular, tornando-o auto- explicativo, perdendo a perspectiva de que seu móvel encontra-se no próprio movimento do todo, encontra-se na sociedade capitalista do qual é parte constituinte. Como forma específica de realização do universal, portanto, os distintos singulares presentes na realidade social estão a ela subordinados, e somente nesta relação dialética serão encontradas as chaves para seu entendimento.
Tais reflexões tornam-se ainda mais interessantes quando ao exercício teórico somam-se os resultados das pesquisas de campo realizadas pelo autor, momento em que expõe seu enfrentamento com os problemas concretos trazidos pela necessidade, imperiosamente colocada ao teórico marxista, de considerar adequadamente a relação universal/singular. Necessidade esta, diga-se de passagem, que vai além do campo meramente explicativo, mas que tem raízes na própria práxis do profissional engajado nos embates sociais de seu tempo.
Como resultado deste confronto, vemo-nos frente a quatro trabalhos, escritos em distintos momentos da vida acadêmica do autor, mas alinhavados teoricamente, como declara este último, pela proposta metodológica de destacar como o marxismo se posiciona frente à relação entre o universal e o singular, objeto de suas reflexões no primeiro texto desta coletânea (Universal e singular: em discussão a abordagem científica do regional). Para a apresentação de suas conclusões, nada melhor do que evidenciar a própria trama de que resulta o processo de formação e consolidação da sociedade capitalista, materializada nas expressões singulares que conformaram esta mesma sociedade no Novo Mundo. Estas últimas são trazidas à cena histórica, por um lado, fazendo menção àquilo que universaliza a ação humana nesta parte do globo, ou seja, as manifestações do capital enquanto elemento inerente e essencial no processo societário em curso; por outro, este capital, na sua dinâmica concreta, encontrou sua materialidade nas formas distintas por meio das quais expressou-se nesta parte do mundo, manifestas na atividade jesuítica, nas diferentes formas de colonização das Américas, na maneira como se deu a utilização da força de trabalho índia, negra ou imigrante, ou mais modernamente, como se expressou no continente a doutrina de segurança nacional.
O autor destaca, contudo, a necessidade de que sejam desveladas, neste esforço teórico-metodológico, as representações ideológicas que reforçam o estranhamento entre os povos americanos, na medida em que desviam a atenção do pesquisador da relação dialética necessária entre o singular e o universal. Na verdade, os regionalismos, os nacionalismos, em seus diferentes matizes, levam ao esquecimento da necessidade de se enfatizar a subordinação dos distintos singulares ao movimento universal da sociedade capitalista, uma vez que estes singulares são formas de realização desta mesma sociedade. Na práxis política, destaca ainda, isso significa a construção das bases para uma ação política significativa para o conjunto da humanidade, isto é, capaz de colaborar para o projeto emancipatório do homem hodierno.
O segundo texto (Nacional e regional na historiografia educacional brasileira: uma análise sob a ótica dos estados mato-grossenses) promove um balanço da historiografia educacional produzida no e sobre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, entre os anos 70 e 90. O critério a partir do qual esta parcela da historiografia regional será analisada está centrado na relação universal/singular, desta feita discutida a partir de algumas das expressões desta singularidade, a questão regional e a questão educacional.
Com base nestas premissas é discutida a historiografia sobre esta região do país, tanto aquela que teve a educação como objeto como aquela que, embora não centrada nos fenômenos educativos, é essencial para que se compreenda a constituição do processo capitalista nesta parte do Brasil. Revelam-se assim, no exercício cotidiano da pesquisa em História da Educação, os liames que permitem reconstituir os processos educativos em curso naquela determinada região do país, em determinado momento de sua história, a partir da reconstituição das relações que os processos em foco guardam com a totalidade da sociedade capitalista.
Para esta exposição, são retomadas as obras da historiografia educacional diletante, marcadas essencialmente pelo registro e reconstituição factual da história. Entre estes trabalhos que antecederam a produção acadêmica destaca-se a obra de Melo e Silva, único intelectual a lançar-se à análise do momento histórico que era foco de suas preocupações – a década de 40 do século XX, em especial na fronteira sul do então estado de Mato Grosso, obra que ainda permanece como um desafio para a historiografia regional, dada esta sua especificidade.
O surgimento da produção acadêmica a partir dos anos 70, fortalecida na década seguinte pelo aparecimento dos primeiros cursos de pós-graduação naqueles estados, dá ensejo não só ao maior conhecimento e problematização da questão educativa regional, como à sua incorporação no debate nacional. A formação de coletivos de pesquisa, o levantamento de fontes para a pesquisa, a organização de arquivos, centros de documentação, entre outras iniciativas, fortaleceu a discussão sobre os entraves representados pelo regionalismo, e a necessidade do fortalecimento da discussão acerca da relação universal/singular, no entendimento das formas assumidas pelo processo educativo nos dois estados.
Além disso, mais recentemente, como o demonstra este próprio texto, escrito por ocasião do I Congresso Nacional de História da Educação, realizado sob os auspícios da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), as reflexões sobre a historiografia educacional mato-grossense e sul-mato-grossense, na medida em que desvele as singularidades assumidas pelo processo educativo nestas regiões do Brasil, pode contribuir para iluminar a produção historiográfica sobre o tema em todo o país, em dois sentidos. Primeiro, ao levantar hipóteses de trabalho sobre como fenômenos produzidos nacionalmente, fruto do processo de expansão capitalista, singularizam-se nestes estados, e de como estas singularidades podem ou não tornarem-se expressões presentes em outras regiões do Brasil. Segundo, colaborando para que certas idéias que se tornaram comuns na historiografia educacional brasileira sejam confrontadas com sua materialidade, o que pode favorecer a crítica científica de certos equívocos que vem se perpetuando entre os estudiosos da área.
O terceiro texto retoma a mesma discussão sobre o singular e o universal, desta feita ao tratar sobre A trajetória histórica do grande comerciante dos portos em Corumbá: 1857-1929.
Tendo como preocupação central analisar o surgimento da casa comercial em Corumbá, na segunda metade do século XIX, o autor demonstra, em um texto de rara inspiração, os liames que fazem desta uma expressão, no distante Mato Grosso, do período de transição da fase manufatureira para aquela centrada na Revolução Industrial, ou seja, na produção de bens industrializados, no interior da etapa concorrencial do capitalismo.
Alves demonstra, recorrendo a exemplos relativos ao mesmo fenômeno em outras partes do continente sul-americano, como se deu a formação, o desenvolvimento e, posteriormente, o ocaso desta atividade comercial que marcou tão intensamente a vida daquela região de Mato Grosso2. O autor destaca ainda como essas marcas provocaram a cosmopolitização da vida em Corumbá, dando ensejo a manifestações culturais e sociais até hoje presentes naquele município fronteiriço, como é o caso do conjunto arquitetônico denominado Casario do Porto. No momento em que se discutem propostas de revitalização destas e de outras edificações em Corumbá, nada mais importante do que se ter sob os olhos este passado, base para as reflexões presentes sobre o seu uso continuado e, acima de tudo, centrado nos interesses de construção de uma sociedade cidadã.
No quarto e último texto o autor volta suas preocupações aos primórdios da atividade que, em momento histórico posterior ao comércio, virá a ser determinante na região pantaneira. Estamos falando da pecuária na segunda metade do século XIX, e sobre um de seus principais mentores no Pantanal neste período, temas do trabalho José de Barros: a formação de um pioneiro.
Sobre os destaques deste texto, é interessante assinalar, primeiramente, a utilização sistemática da obra de cronistas e viajantes para descrever aspectos da região neste momento histórico, destacando a forma como se davam as relações humanas nesta etapa da sociedade capitalista no Pantanal. Em outras palavras, como se singularizou, na região da Nhecolândia, uma determinada forma de expressão, particular a este espaço e momento histórico, da sociedade capitalista.
Num segundo momento, Alves demonstra ainda como os limites materiais impostos a esses homens neste processo de formação e consolidação das fazendas de gado levaram-nos a determinadas soluções no processo de recolonização da região. Neste sentido, por exemplo, embora valorizasse o ensino formal, – traço este que parece ter destacado a sua família frente a outros pioneiros -, José de Barros teve que abandonar a escola regular, após ter aprendido os seus fundamentos (ler, escrever e realizar as quatro operações aritméticas), dados os precários recursos materiais de sua família.
As necessidades impostas pelas dificuldades inerentes ao trabalho com a família lhe impuseram continuar sua formação na “escola do trabalho”, aquela que lhe permitiria, junto aos conhecimentos e hábitos adquiridos graças à escola regular, alguns anos depois, criar as condições concretas para o sustento e a formação de uma vasta prole, criada e ambientada na região pantaneira.
À guisa de conclusão, consideramos aqui as palavras iniciais do autor quando, na página de abertura da obra Mato Grosso do Sul: o universal e o singular, dedica seu trabalho ao poeta Manoel de Barros, “poeta que se universalizou ao cantar o Pantanal.” Da mesma forma, cremos que Alves, partindo de uma discussão centrada na temática regional, – intenção claramente exposta desde o início no próprio título dado a este trabalho, – tenha alcançado seu intento de demonstrar e discutir questões que são de interesse para pesquisadores de todas as áreas do conhecimento. Em outras palavras, o autor também se universaliza, trazendo a baila um trabalho que, pelo rigor com que discute uma questão central no universo metodológico marxista, contribui para o debate teórico enfrentado pelos estudiosos de hoje, sejam quais forem seus recortes temáticos específicos. Neste sentido, torna-se uma obra importante para quantos tenham interesse de trabalhar, teórica e ou praticamente, a relação entre o singular e o universal na pesquisa científica.
Notas
1. Eis, a título de exemplo, algumas das obras do autor nestes campos temáticos: ALVES, Gilberto Luiz. Educação e história em Mato Grosso: 1719-1864. 2.ed. rev. Campo Grande: UFMS, 1996.; Id. Mato Grosso e a história: 1870-1929 (Ensaio sobre a transição do domínio econômico da casa comercial à hegemonia do capital financeiro). Boletim Paulista de Geografia, São Paulo, v. 2, n. 61, p. 5-81, 1984; Id. O pensamento burguês no Seminário de Olinda: 1800-1836. 2. ed. rev. Campo Grande: UFMS; Campinas: Autores Associados, 2001.; Id. A produção da escola pública contemporânea. Campinas: Autores Associados, 2001.
2. Trata-se aqui do estado de Mato Grosso antes do processo de divisão, ocorrida em 1979, que deu origem a duas unidades federativas: Mato Grosso e Mato Grosso do Sul
Silvia Helena Andrade de Brito – Departamento de Ciências Humanas e Sociais. CCHS/UFMS. E-mail: shbrito@terra.com.br
ALVES, Gilberto Luiz. Mato Grosso do Sul: o universal e o singular. Resenha de: BRITO, Silvia Helena Andrade de. Reconstituindo as teias da relação entre o universal e o singular. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 229-235, jan./jun., 2009.
Albuquerque – Revista de História | Campo Grande, v.1, n.1, 2009 / v. 10 n. 20, 2018.
Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 10 n. 20, 2018.
Dossiê: América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções
Dossiê
Apresentação | Sebastián Valverde, Marco Aurélio Machado de Oliveira, Carlos Martins Junior |
- Experiências de intercâmbio entre Brasil e Argentina: contexto socioeconômico, cientificismo e abordagens críticas | Ivanna Petz, María Cecilia Scaglia, Sebastián Valverde |
- Aportes aos estudos de fronteira a partir da valorização imobiliária recente: o caso do Norte Grande Argentino | Sergio Ivan Braticevic |
- Transformações territoriais e desigualdade no norte da Patagônia: extrativismo e conflitos em áreas agrárias e turísticas | Verónica Trpin, María Daniela Rodríguez |
- Capitalismo dependente e empobrecimento indígena no Brasil ruralista | Cristhian Teófilo da Silva |
- Miudezas das populações mapuches pelo Estado argentino. A fronteira de Buenos Aires e o caso da comunidade mapuche Calfu Lafken de Carhué | Sofía Micaela Varisco |
- Configurações espaciais baseadas na intervenção estatal em territórios indígenas do Chaco | Malena Ines Castilla |
- A Educação Bilíngue Intercultural como contribuição para um pensamento heterárquico | Sasha Camila Cherñavsky |
- Locais de cidadania, experiências de cidadanização: pesquisa etnográfica em relação ao direito à moradia na cidade de Buenos Aires | María Florencia Girola, María Belen Garibotti |
- Os caminhos da institucionalização da economia popular nos contextos neoliberais: contribuições na chave dos processos hegemônicos | Guadalupe Hindi, Matias Jose Larsen |
- América Latina racionalizada na nova Lei de Migração (Lei nº 13.445 / 17): discursos e legitimidade | Marco Aurélio Machado de Oliveira, Fábio Machado da Silva, Davi Lopes Campos |
- Os impactos ambientais da IIRSA-COSIPLAN no Arco Central da fronteira brasileira | Camilo Pereira Carneiro, Felipe Pereira Matoso, Katiucy Santos |
Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 10 n. 19, 2018.
Dossiê: Patrimônio, cultura material e imaterial: diálogos e perspectivas
Dossiê
Apresentação – Dossiê Patrimônio, cultura material e imaterial: diálogos e perspectivas | Eduardo Giavara, Aurelino José Ferreira Filho |
- Da Tradição à Cultura: problemas de investigação nos estudos das ocupações indígenas no Planalto Meridional Brasileiro | Marcel Mano |
- Indígenas no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – MG: Sítios arqueológicos e patrimônio | Aurelino José Ferreira Filho |
- Diálogos Transversais: A História Indígena e a educação patrimonial no protagonismo das ações educativas no Triângulo Mineiro | Gabriela Gonçalves Junqueira, Daniella Santos Alves |
- A força da fala está no encontro, o poder do conhecimento está na interlocução: contribuições dos estudos pós-coloniais para as ciências humanas e sociais | Luana Carla Martins Campos Akinruli |
- De Monumento Nacional à Patrimônio Mundial: uma análise comparativa entre o Monumento Nacional Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos e os engenhos dominicanos da Rota dos Escravos | Rodrigo Christofoletti |
- O jongo nas comemorações do 13 de maio em São Luiz do Paraitinga | Ricardo Mendes Mattos |
- O papel da educação patrimonial no diálogo com os agentes sociais do conselho municipal de combate a discriminação e o racismo (COMCEDIR) de Araraquara: repensando representações sociais nos espaços museais de Araraquara-SP | Robson Rodrigues, Dulcelaine Lopes Nishikawa, Talita Mara Catini, Ana Patrícia Ferreira Silva |
- Percepções locais do patrimônio: A Escola SENAC de Marília | Rodrigo Modesto Nascimento |
Artigos
- Boca de cantar, canto de gritar: Violência, racialização e juventude | Ari Madeira Costa |
- A tessitura da mulher-professora em uma narrativa autobiográfica do brincar da criança com deficiência | Simone de Paula Rocha Souza |
- Amor e paixão nos bastidores de uma missão religiosa católica no sertão do extremo norte de Goiás (atual norte tocantinense): Quinto Tonini e Teresinha Foli em seus relatos de memória | Raylinn Barros da Silva
Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 9 n. 17,2017.
Dossiê: História, Democracia & Diferenças: os Direitos Humanos na contemporaneidade
Editorial | Editores de albuquerque: revista de história
Dossiê: História, democracia e diferenças: os Direitos Humanos na contemporaneidade
- Apresentação do dossiê | Murilo Sebe Bom Meihy, Aguinaldo Rodrigues Gomes |
- Perspectivas descoloniales en el Chiapas actual: Juan López y Votan Zapata como referentes rebeldes epistemológicos desde el sur | Agustín Ávila Romero, José Luis Sulvarán López |
- Eurocentrismo, racismo e la estigmatización del diferente no contexto da Globalização | José Marin |
- Corpos que “não cabem”: memórias de escola nas narrativas de travestis | Bruno do Prado Alexandre, Raquel Gonçalves Salgado |
- MST, altermundialismo, democracia e direitos humanos | Cássio Rodrigues da Silveira |
- Estudantes e intelectuais do PCB: a luta por liberdades democráticas durante a ditadura | Aguinaldo Rodrigues Gomes |
- Grande Otelo/Sebastião e a luta dos negros no Brasil | Tadeu Pereira dos Santos |
- O abolicionismo como resistência ao extermínio da população negra | Priscila de Oliveira Xavier Scudder |
- Ilha do Bananal: resistência e auto-organização da população em situação de rua na cidade de Cuiabá-MT | Eliete Borges Lopes, Luiz Augusto Passos |
- Direitos Humanos, Islam e Xiismo: a universalidade do caso brasileiro | Karina Arroyo, Murilo Sebe Bon Meihy |
- Preconceito, ideologia e antipetismo nas páginas de direita do Facebook no ano eleitoral de 2014 | Eliana Batista Ramos |
- “Luto por justiça, pelo fim da impunidade, pela democracia, igualdade, liberdade e justiça”: a luta e a resistência de uma baiana pela anistia | Ary Albuquerque Cavalcanti Junior |
Artigos
- O cemitério de Campo Grande: de Campo Santo à Cemitério Municipal de Santo Antônio | Fabio William de Souza |
- A serviço da Coroa: Política e administração do vice-rei D. Vasco Mascarenhas na América Portuguesa (1663-1667). | Michelle Samuel Silva |
- Memória política de José de Resende Costa Filho: imaginário do burocrata e Inconfidência Mineira (1789-1813) | Wederson de Souza Gomes, Cláudia Maria das Graças Chaves |
Resenhas
- ROMPATTO, Maurilio. Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná. Curitiba: CRV, 2016. | Eduardo Martins |
Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 8 n. 16, 2016.
Dossiê: História & Linguagens
Apresentação – Dossiê História & Linguagens | Miguel Rodrigues de Sousa Netto, Edvaldo Correa Sotana, Carlos Martins Junior | 1-5 |
- Os crimes contra mulheres na fontes do Arquivo Geral do Poder Judiciário em Sergipe (1878-1935)cotidiano de poder, denúncias e impunidades | Janaina Cardoso de Mello | 6-31 |
- Turismo literáriouma análise sobre autenticidade, imagem e imaginário | Fernanda Naves Coutinho, Diomira Maria Cicci Pinto Faria, Sergio Donizete Faria | 32-50 |
- “O caminho do sertão”a construção e a concretização da imagem de Sérgio Reis como intérprete da moderna música rural | Alessandro Henrique Cavichia Dias | 51-76 |
- Discursos da/na mídia digitalefeitos de sentido sobre a PEC 241 | Ceildes da Silva Pereira, Fernanda Correa Silveira Galli | 77-91 |
- O imaginário social como um campo de disputasum diálogo entre Baczko e Bourdieu | Wallace Lucas Magalhães | 92-110 |
- Comunidade Ilha do Bananalauto-organização da população em situação de rua na cidade de Cuiabá-MT | Eliete Borges Lopes | 111-126 |
Artigos
- Apontamentos sobre as frentes pioneiras na Zona da Mata Rondoniense (1970-2000) | Carlos Alexandre Barros Trubiliano | 127-146 |
- A fronteira do desconhecidocivilização e barbárie no oeste paulista | Eduardo Giavara | 147-165 |
- Política operária no pré-1964história e crítica | César Mangolin | 166-190 |
- Fontes históricas e a ocupação de Sant’Ana de Paranaíba no século XIXpossibilidades para se pensar a História Ambiental | Isabel Camilo de Camargo | 191-208 |
Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 8, n. 15, 2016.
Dossiê: História Política
- Apresentação – Dossiê História Política | Edvaldo Correa Sotana, Carlos Martins Junior , Miguel Rodrigues de Sousa Netto | 1-5 |
- História política, história do políticoostracismo, retorno e debate | Moisés Stahl | 6-23 |
- As contribuições para a Nova História Política de Jürgen Habermasa relação entre Dignidade Humana e Direitos Humanos no tempo presente | Juliana Cristina da Rosa | 24-41 |
- O novelo de lão Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o fio da História no labirinto da política | Raphael Silva Fagundes | 42-66 |
- Um mercado entre dois Impériosa abertura dos portos e o comércio britânico no Brasil sob a visão de um cônsul estadunidense | Pedro Henrique de Mello Rabelo, Cláudia Maria das Graças Chaves | 67-88 |
- A trajetória de uma vidaanalisando as construções de temporalidade nas biografias de D. Pedro II | Mauro Henrique Miranda de Alcântara | 89-107 |
- A participação brasileira na Segunda Guerra Mundialprimeiros movimentos (1942-44) | Paulo Sérgio Silva, Honorato Crispiniano Chagas | 108-128 |
- Mobilização eleitoral na imprensa local e regionaldois estudos sobre o rio grande do sul (década de 1950) | Douglas Souza Angeli, Marcos Jovino Asturian | 129-156 |
- A marginalização do Rio Grande do Sul em discurso de Leonel de Moura Brizola (1961)condições de produção e interdiscurso | Samuel da Silva Alves, Cleusa Maria Gomes Graebin | 157-173 |
- Entre Abelardos e Manoéisditadura, exploração e censura em “O rei da vela”, de Oswald de Andrade | Marcio Luiz Carreri, Francislaine Aparecida Carvalho | 174-189 |
- “Eu não acredito no futuro do Brasil”rock e política no Brasil dos anos 1980 | Paulo Gustavo da Encarnação | 190-208 |
- Paraguaipassado e presente. Uma revisão desde a história política | Magdalena López | 209-228 |
Entrevistas
- Fotografar, olhar e criar histórias do cotidianoentrevista com a professora Alisolete Weingartner | Edvaldo Correa Sotana | 229-239 |
Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 7, n. 14, 2015.
Dossiê: Outras eróticas e Desejos possíveis, volume II
Apresentação – Dossiê Outras eróticas e Desejos possíveis, volume II | Miguel Rodrigues de Sousa Netto, Aguinaldo Rodrigues Gomes | 1-5 |
- Dilemas sentimentais e identidade homoeróticauma leitura de Frederico Paciência de Mário de Andrade | Peterson José de Oliveira | 6-27 |
- Identidade de gêneroa masculinidade hegemônica em Tropic of Capricorn | Flávia Andréa Rodrigues Benfatti | 28-46 |
- Queer, identidade e masculinidade em Giovanni, de James Baldwin | George de Santana Mori | 47-64 |
- Cartografias homoeróticasuma leitura de Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu | João Carlos Nunes Ibanhez | 65-82 |
- “Nenhuma malícia será castigada”eróticas no corpo e no palco de Ney Matogrosso | Robson Pereira da Silva | 83-102 |
- Ivanáa grande dúvida no teatro de revista dos anos 1950 | Antonio Ricardo Calori de Lion | 103-120 |
- Madame para uns, Satã para outrosuma leitura do corpo marginal em Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz | Diego Aparecido Cafola | 121-141 |
Artigos
- Crise do regime de historicidade moderno, individualização e confiançaentre os movimentos e as mobilizações | Cássio Rodrigues da Silveira | 142-171 |
Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 7, n. 13, 2015.
Dossiê: Outras eróticas e Desejos possíveis, volume I
- Apresentação – Dossiê Outras eróticas e Desejos possíveis, volume I | Miguel Rodrigues de Sousa Netto, Aguinaldo Rodrigues Gomes | 1-5 |
- Ativismo político em traços de humoras charges veiculadas no jornal O Lampião da Esquina (1978-1981) | Edvaldo Correa Sotana, Mellany Oliveira Magalhães | 6-24 |
- “Então chegamos”representações do feminino nas páginas d’O Lampião da Esquina (1978-1981) | Débora de Souza Bueno Mosqueira | 25-43 |
- “Prendam, matam e comam os travestis”a imprensa brasileira e seu papel na exclusão da população lgbt (1978-1981) | Victor Hugo da Silva Gomes Mariusso | 44-61 |
- Os primeiros grupos de afirmação homossexual no Brasil contemporâneo | Andrew Feitosa do Nascimento | 62-84 |
- Qual ideologia de gênero?A emergência de uma teoria religiosa-fundamentalista e seus impactos na democracia | Leonardo Nascimento | 85-100 |
- A mecanização do prazersexualidade e corpo no ciberespaço | Aguinaldo Rodrigues Gomes | 101-122 |
- Midiatização, representações, violênciaparadoxos das experiências lgbt no Brasil contemporâneo | Miguel Rodrigues de Sousa Netto | 123-148 |
Artigos
A historicidade do TILS – tradutor e intérprete de lingua de sinaisdo anonimato ao reconhecimento | Bruno Roberto Roberto Nantes Araujo | 149-163 |
Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 6, n. 12, 2014.
Apresentação | Carlos Martins Júnior
Artigos
- A passagem dos revoltosos por Ponta Porã: um exame de escalas em narrativas coincidentes | Paulo Cezar Vargas Freire |
- A pecuária como determinante econômico da ocupação de Campo Grande, Mato Grosso do Sul: 1870-1929, | Elisa de Ávila Silvestre, Isa Maria Formaggio Marques Guerini |
- Indústrias mineradoras no desenvolvimento de Corumbá | Tchoya Gardenal Fina do Nascimento |
- Os árabes em Corumbá: uma rede de cooperação | Michelle Rosa, Raul Asseff Castelão |
- Migrantes, fronteira, comércio e religião: termos para a fé | Marco Aurélio Machado de Oliveira, Davi Lopes Campos |