Teoria da história e história da historiografia: debates e desafios no século XXI / Canoa do Tempo / 2018

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. [1]

A imagem do anjo da história interpretada por Benjamin nas teses Sobre o Conceito de História (1940) ainda representa não apenas o fardo, mas também uma série de desafios que o século XXI tem apresentado aos historiadores. Para Benjamin, a produção de conhecimento histórico é vibrante e reverbera em direção ao passado a partir das reivindicações feitas no presente. Nesse sentido, a rememoração e a redenção são conceitos chave para a teoria da história benjaminiana e, ambos, apresentam um convite para se pensar sobre o papel fundamental da história para a formação integral dos cidadãos em uma democracia republicana.

Em um contexto fortemente marcado pelo refluxo das utopias, a perspectiva teórica benjaminiana inscreve, assim, o campo da Teoria da História em uma perspectiva social e política porque necessária e fundamental para a problematização da produção do conhecimento histórico, permitindo que personagens e questões consideradas mortas e enterradas possam ser compreendidas, reivindicadas e reinseridas no contexto contemporâneo. Como hóspedes efêmeros do tempo, Benjamin nos convida a desenvolver um comportamento crítico em relação à ingênua perspectiva implantada pela noção de progresso. Essa postura conservadora adotada por positivistas e alguns historicistas recusava abordar as reivindicações e lutas de resistência empreendidas por pessoas comuns. Sendo assim, as atividades culturais e políticas cotidianas permaneciam abandonadas por clivagens conceituais enrijecidas e presas a formulações teóricas cientificistas e, ingenuamente, empiristas. Como pensarmos outra história?

A escrita da história: viradas de século, viradas teóricas

A batalha conduzida por Benjamin tampouco foi concluída, perspectivas empiristas continuam fascinando uma parcela considerável de historiadores que, nesse início de século, acreditam e trabalham arduamente na proposição de um cientificismo ironicamente sustentado por projetos políticos ultraconservadores. É exatamente porque os embates pela escrita da história se adensam novamente que os historiadores progressistas devem estar atentos às diferentes facetas assumidas pelas lutas de resistência propostas pelos trabalhadores ao longo da história, uma vez que, propositalmente, foram abandonadas pela historiografia escrita pelos vencedores e seus herdeiros. Quando investigadas e interpeladas pelos historiadores, defende Benjamin, as práticas de resistência empreendidas no passado podem se tornar “centelhas de esperança” para as sociedades contemporâneas. Exercida criticamente, a história pode transformar reivindicações populares aniquiladas no passado em centelhas capazes de contagiar as novas gerações em um “tempo saturado de agoras”.

Ao invés de ser tomada como um círculo vicioso tal qual “as contas de um rosário” – com começo, meio e fim já previamente definidos –, a história ganha na proposta teórica de Benjamin um contorno ativo no qual interessa reconstruir o passado em diálogo franco e aberto com a elaboração do tempo presente e também de novas perspectivas para o futuro. De maneira geral, verificamos continuidade desse problema levantado por Benjamin na constatação trazida pelo historiador britânico Eric Hobsbawm, muito cabível perante a proposta apresentada nesse dossiê:

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. [2]

Podemos recuar ao ano de 1874 para nos vincularmos ao chamado “mal-estar da história”, situação que guarda paralelos, por exemplo, com os ataques sofridos pela disciplina nos últimos anos no Brasil. Desde Nietzsche contamos com a possibilidade de um posicionamento moderno que se situa como que, em uma metáfora espacial, em situação de fronteira: aquela posição em que é possível se ver como Outro, “de fora”. Nietzsche criticou a modernidade historicista com tal olhar, ao apresentar sua conhecida II Consideração Intempestiva.  [3] Nesse mesmo horizonte, porém em uma perspectiva temporal, o conceito de contemporâneo guarda o significado igualmente atribuído pelo filósofo alemão ao adjetivo “intempestivo” (fora do tempo, anacrônico). Agamben afirmaria, nesta mesma direção:

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. [4]

Trata-se, efetivamente, de outra relação com o tempo, tanto mais ética. Era isso que Benjamin reivindicava. Passado e futuro articulados a partir dos dilemas do presente. Um compromisso com os mortos, firmado com o olhar voltado a um futuro possível, mais humano e justo. É sobre um tempo, o nosso, igualmente saturado de “agoras”, que nos fala o historiador François Hartog. Em hipótese de trabalho já significativamente discutida e criticada, ele aponta para o predomínio de uma dimensão presentista em nossa experiência de tempo contemporânea. A perspectiva inaugurada pelo “presentismo” teria consolidado socialmente, para este autor, uma percepção do tempo muito diferente daquela proposta por Benjamin. O presente teria se expandido tanto em direção ao passado quanto rumo ao futuro, ao ponto de grande parte das pessoas já não guardarem qualquer conexão mais profunda com as diferenças marcadas em outras temporalidades. Em outras palavras, o presente teria se tornado onipresente, comprometendo a capacidade das pessoas de estabelecerem relações temporais. [5] Se a hipótese do historiador francês é discutível, como complemento e meio de torná-la mais complexa, podemos considerar as transformações nas experiências humanas após o avanço das novas tecnologias. [6] No entanto, é também Hartog quem situa a historiografia em outro momento epistemológico. Considerando as transformações políticas e sociais bem como as mudanças no interior da própria disciplina, sobretudo, após a década de 1970, percebe-se que a história ingressou em outro momento, definido por Hartog como “movimento reflexivo”.  [7] A partir dessa fase, houve a aproximação, entre os historiadores, dos termos epistemologia e historiografia. Envolvidos com novos problemas, abordagens e objetos, os profissionais da área passaram a enfrentar indagações colocadas pelos diferentes contextos históricos e historiográficos.

Ainda que estejamos falando de um movimento reflexivo com mais de quatro décadas de duração, a atualidade da discussão confirma-se, por exemplo, no atual debate pertinente ao ensino de história. Da ampla discussão filosófica acerca do conceito de tempo e suas variantes (cujas obras do filósofo alemão Martin Heidgger e do filósofo francês Paul Ricoeur aparecem como algumas das mais conhecidas e significativas que cobrem o século XX, guardadas as suas diferenças), na modernidade, história e ensino de história permaneceram, em certa medida, desconectadas no que se refere àquela discussão conceitual. [8] Embora o diálogo das teorias da história com a filosofia, de maneira geral, e com a epistemologia, em particular, tenha se desenvolvido, a pluralidade e complexidades dos debates acerca das temporalidades apenas tangenciaram as discussões didático-pedagógicas da história apreendida como ensino. Diante disso, no caso brasileiro, tem havido esforço por parte de uma nova geração de historiadores no sentido de integrar a história ensinada às investigações epistemológicas. Fernando de Araújo Penna é um dos pesquisadores mais atentos e propositivos, neste aspecto. Penna, dentre as muitas frentes de sua atuação na pesquisa, no ensino e, sobretudo, na extensão que visa ao debate acerca do papel social do historiador, critica fortemente certa acepção dominante sobre o que é a epistemologia da história. Segundo Penna, a “operação historiográfica”, clássica noção desenvolvida por Michel de Certeau, em A escrita da história (1975), não considera as dimensões pedagógicas e sociais do conhecimento histórico. [9] Ainda de acordo com o pesquisador, inclusive a releitura da concepção, levada a cabo por Ricoeur, não supera o problema básico de entender os termos “epistemologia da história” como restrito à produção do conhecimento, excluindo qualquer consideração relativa à função social desse conhecimento e ao seu ensino: “o objetivo primordial da História pode até não ser o ensino escolar, mas ignorar esse aspecto constituiria uma limitação prejudicial”. [10]

Os imperativos de uma cultura histórica e mesmo de uma consciência dita histórica atribuem às categorias que circundam o conceito de tempo e que o torna inteligível papel central (por exemplo: sentido, processo, experiência, orientação, narrativa, memória, etc.). [11] Muitas dessas categorias, como se pode perceber, não pertencem exclusivamente ao conhecimento histórico. Elas fazem parte de diversas áreas e saberes e, sobremaneira, ao espaço público, ao âmbito político. Jörn Rüsen, historiador alemão, tem insistido na necessidade dos historiadores prestarem atenção nas dimensões práticas do saber que produzem. Em Rüsen, percebemos certo movimento na direção de examinar o problema da cultura histórica articulando as noções de consciência histórica e de ensino de história. Em alguma medida, é o que Penna tem chamado a atenção dos historiadores brasileiros: “o diálogo entre uma Epistemologia da História voltada para a produção do saber e uma Didática preocupada com a transposição e o ensino desses saberes é inquestionavelmente profícuo para ambos os campos de pesquisa. [12]

Os autores presentes nesse dossiê trazem, a partir de diferentes perspectivas, outros exemplos de como os historiadores trabalham com suas fontes e constroem suas interpretações do e no tempo, e, também, entre temporalidades diferentes, contribuindo com algumas respostas possíveis aos problemas que nos cercam atualmente. Todos, no entanto, são unânimes em criticar a tese de que caberia ao conhecimento histórico apenas uma avaliação objetiva e neutra de fatos ocorridos. Afinal, para quê, para quem e porquê investir esforços na formação em teoria da história? Em que medida as teorias da história podem contribuir para uma reflexão mais apurada da história e, por sua vez, para um combate concreto contra as discriminações, para a conquista de uma democracia econômica e social e uma emancipação efetiva dos sujeitos históricos?

Questões como estas demonstram que não somente a produção e a divulgação das pesquisas são essenciais, mas é preciso ainda que a teoria da história faça parte do trabalho dos professores nas salas de aula da educação básica. Um programa educacional que vise à conquista de autonomia por parte dos alunos e compreenda-os enquanto sujeitos históricos protagonistas em seu próprio tempo, não pode ignorar as problematizações conduzidas pela teoria da história. A tão comentada autonomia só pode ser conquistada concretamente, como afirma Saviani ao apresentar as fundamentações teóricas da Pedagogia Histórico-Crítica, se o aluno compreender como os conhecimentos são produzidos, inclusive o histórico, e quais são os meandros do processo de sua confecção, os ingredientes teóricos e as questões políticas implicadas nesse trabalho reflexivo. [13]

Para Michel Löwy, o materialismo de Benjamin estava preocupado em reabrir cada presente como um portal para a tomada de decisões, sendo o historiador um “apanhador de centelhas de esperanças”. [14] Uma das premissas que motivou a organização do presente dossiê foi justamente a possibilidade de fomentar o debate em torno de pesquisas no campo da teoria da história empreendidas hoje que, imbuídas do desafio de perscrutar o passado, também permitam aos leitores palmilhar a seara da produção do conhecimento histórico e compreender o quanto o manejo dessas questões é fundamental para o entendimento de como a própria história é escrita.

Possíveis respostas

O dossiê apresentado por esta breve reflexão teórica e historiográfica, assim, traz uma série original de artigos que contribui em grande medida para as reflexões próprias ao campo de conhecimento compreendido pela teoria da história, inscrevendo Canoa do Tempo em um manancial nacional de debates. Nesse sentido, o presente dossiê apresenta artigos que estão empenhados em demonstrar como a epistemologia da história é base fundamental e necessária para a compreensão dos processos de produção do conhecimento histórico e da formação dos historiadores e professores de história. A teoria permitiu aos autores a abordagem de objetos variados, demonstrando como os historiadores, em meio a diferentes perspectivas, desenvolvem um raciocínio próprio ao seu ofício e responsável pela análise das ações e suas personagens no tempo.

Patrícia Marciano de Assis discute em seu texto a concepção de Estado no âmbito de obras específicas dos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari. A proposta diferenciada a partir da qual ambos sugerem possibilidades alternativas de apropriações da história como recurso para exame das condições de acesso ao conhecimento são exploradas pela autora bem como situa sua leitura da perspectiva micropolítica. Segundo Assis, ao abrirem mão do ponto de vista tradicional, que prima pela representação, em nome de outro, calcado na diferença, Deleuze e Guattari nos trazem possibilidades variadas para pensarmos não apenas o Estado, mas todos os mecanismos que o fazem existir (com vistas para sua transformação).

O artigo de Diego José Fernandes Freire é fruto de um estudo que procurou investigar a produção historiográfica no Brasil com ênfase na década de 1970, evidenciando aspectos relativos à sua historicidade. Trata-se de um ensaio teórico que tem o mérito de reivindicar a importância desse período da historiografia brasileira como essencial para a compreensão de um contexto no qual os historiadores acadêmicos – em processo de profissionalização – passaram a produzir propostas teóricas que rivalizavam com outras perspectivas já existentes. O artigo demonstra como a historiografia acadêmica, inclusive aquela produzida no Departamento de História da USP, passou a construir a legitimação de suas pesquisas a partir da crítica aos modelos de reflexão historiográfica praticados anteriormente, evidenciando, contudo, que essa estratégia indicava também a existência de disputas intelectuais que iam muito além das questões teóricas.

O estudo de Júlio Ferro Silva da Cunha Nascimento enfrenta corajosamente um tema ainda muito tangenciado pela historiografia, qual seja: a militância e o protagonismo político e intelectual de pessoas transexuais, trangêneros e travestis. Apenas recentemente nossa área tem voltado sua atenção aos problemas de gênero e, infelizmente, ainda há preconceitos que acabam por subestimar tais discussões, de central relevância acadêmica e política. A área de Teoria e História da Historiografia tem assumido, ainda que timidamente, o compromisso perante o que é trazido no artigo de Nascimento, mas ainda há longo caminho a ser trilhado. Nesse sentido, o texto constitui marca significativa em um dossiê que pretende apontar para discussões relevantes a serem ampliadas neste século.

A contribuição de Jacson Schwengber parte do conceito de crítica desenvolvido pelo filósofo francês Michel Foucault para pensar formas alternativas de se examinar a modernidade. Partindo de uma interessante discussão acerca da ideia de crise na história, o historiador explora a questão para encaminhar aquilo que tanto Foucault como o historiador alemão Reinhart Koselleck ajudaram a explicar: a ideia de crise está ligada à certa forma a partir da qual o mundo moderno percebe e se relaciona com as mudanças temporais desde os seus primórdios. Pierre Bayle é tomado como fio condutor para problematizar e compreender tal hipótese a partir de olhares que nos são contemporâneos.

Eduardo Antonio Estevam Santos traz importante contribuição ao presente dossiê, tendo em vista que parte do diálogo com intelectuais africanos para confrontar a questão da exclusão da história africana pela historiografia europeia ocidental. Ao explorar o conceito de razão etnográfica, o historiador demonstra como o discurso científico europeu, no século XIX, impossibilitou a construção de historiografias africanas ao deslocar todas as suas diversidades para além das fronteiras do que poderia ser (re)conhecido dentro do rígido e unitário estatuto daquele discurso. A análise parte de um exame do historicismo europeu, particularmente alemão, para, em seguida, explorá-lo por meio de investigações de estudiosos africanos. Santos demonstra, ainda, que havia historiadores africanos desde o século XIX, mas o avanço do historicismo, no decorrer do século, acabou por impor determinada perspectiva que tornou a África e os africanos invisíveis, constatação que tem exigido e merece profundas reflexões nos dias de hoje.

O trabalho de Rafael Terra Dall’agnol é fruto de um estudo que procurou compreender o papel que a biografia desempenhou no regime de escrita da história no Brasil oitocentista, quando funcionava como importante modo de elaboração de experiências do passado. Trata-se de um ensaio cujo objetivo principal é investigar como Pereira da Silva utilizou a biografia para empreender a escrita da obra Plutarco Brasileiro. O texto tem ainda o mérito de passar em revista à biografia como problema historiográfico. Nesse sentido, discute-se como a história biográfica tem como um dos aspectos positivos compreender melhor a relação entre história e biografia, destacando ainda como o projeto biográfico proposto por Barbosa para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), possuía particularidades ligadas ao seu contexto histórico. O artigo apresenta, assim, uma contribuição significativa para o debate e a reflexão em torno da teoria do conhecimento histórico, em particular, para o desenvolvimento de uma leitura crítica em relação ao modo como os chamados “grandes homens” da história eram parte essencial dos projetos biográficos presentes no âmbito do IHGB. Em particular, a reflexão sobre o papel conferido à biografia de narrar a história da nação, permite compreender como ela e a história se encontravam e se confundiam para defender que o passado deveria ensinar através dos “grandes homens” e de seus feitos.

Fernando Cauduro Pureza convida os historiadores “a entrarem numa festa que não foram convidados e, de forma crítica, serem os ‘desmancha-prazeres’ que vão questionar justamente os jogos eletrônicos e suas narrativas a partir de seu métier”. O artigo é fruto de um estudo que procurou compreender as representações produzidas em narrativas históricas “gameficadas”, dedicando atenção especial para o modo como alguns games que tratam de temas históricos naturalizam a passagem do feudalismo para o capitalismo e as próprias relações capitalistas de produção. Ao partir dos games enquanto fonte para discutir a invisibilidade pública existente em torno da origem do capitalismo, Pureza apresenta os meandros de uma problematização fundamental para a teoria marxista da história: a historicidade do próprio sistema capitalista. Trata-se de um ensaio que tem o mérito de reivindicar, ainda, uma ampliação do espaço de discussão e intervenção pública a ser realizada pela ação dos historiadores.

Rogério Lopes Pinheiro de Carvalho propõe um artigo desafiador que instiga os historiadores a pensarem a teoria marxista da história tendo como base seu valor heurístico. Ao mesmo tempo, o autor critica aqueles que consideram o materialismo histórico um procedimento metodológico estéril, denunciando a superficialidade e os interesses nitidamente políticos de algumas proposições que procuram anular o seu potencial teórico e interpretativo. Além disso, a preocupação de Carvalho tem por intuito revelar a articulação intrínseca existente entre os pressupostos epistemológicos e políticos presentes no materialismo histórico. Nesse sentido, o autor destaca a importância de se compreender o significado de conceitos chave para a teoria marxista da história, tais como o de crítica da economia política e o de totalidade. Através deste último, Carvalho enfatiza a importância de pensá-lo como uma “intensa relação entre economia, classe social e política”, capaz de permitir ao historiador investigar os fenômenos sociais a partir de suas raízes e contradições profundas. O grande mérito deste artigo está em demonstrar como o conceito de totalidade é central para o materialismo histórico e também primordial para a elaboração de uma história capaz de combater o avanço das práticas empiristas, explicitando o ultraconservadorismo que as sustentam.

Por fim, antes de desejarmos uma excelente leitura a todas e a todos, gostaríamos de ressaltar nossa satisfação com o resultado do trabalho coletivo que se apresenta neste número de Canoa do Tempo. A reunião de textos que concretiza o dossiê que se segue chama a atenção pela pluralidade temática, institucional e regional. Há artigos de pesquisadores das regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Sul, o que garante uma abrangência e uma abertura sem iguais para a área de Teoria e História da Historiografia. Além disso, evidencia o crescimento da área em regiões diversas e distantes dos conhecidos centros especializados do País. É seguro afirmar que temos muito a ganhar, coletivamente, com essa dinâmica de produção que, ao mesmo tempo em que dialoga com pesquisas de ponta – nacionais e internacionais –, traz, pouco a pouco, os anseios e projetos particulares de diferentes espaços à vista da comunidade historiadora brasileira. Com votos de continuidade nessas aproximações, desejamos ótima leitura!

Notas

1 Tese IX “Sobre o conceito de história” de Walter Benjamin. Ver: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

2. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 13.

3. NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

4. AGAMBEN, Giogio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009, p. 58-59.

5. HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

6. PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei. Reconfigurações do tempo histórico: presentismo, atualismo e solidão na modernidade digital. Revista UFMG, Belo Horizonte, vol. 23, n. 1 e 2, p. 270-297, jan./dez. 2016.

7. HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

8. HEIDEGGER, Martin. Temporalidade e historicidade. In: Ser e Tempo. Tradução revisada de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Volume Único. Petrópolis: Vozes, 2006; RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2007.

9. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

10. PENNA, Fernando de Araújo. A relevância da didática para uma epistemologia da história. In: MONTEIRO, Ana Maria et. all. (Orgs.). Pesquisa em ensino de história: entre desafios epistemológicas e apostas políticas. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2014, p. 51.

11. RÜSEN, Jörn. O que é a teoria da história? In: Teoria da história: uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora UFPR, 2015.

12. PENNA, Fernando. Op. cit., p. 51.

13. SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica – primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2005.

14. LÖWY, Michael. Op. cit..

Referências

AGAMBEN, Giogio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-232.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiência do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

HEIDEGGER, Martin. Temporalidade e historicidade. In: Ser e Tempo. Tradução revisada de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Volume Único. Petrópolis: Vozes, 2006.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

PENNA, Fernando de Araújo. A relevância da didática para uma epistemologia da história. In: MONTEIRO, Ana Maria et. all. (Orgs.). Pesquisa em ensino de história: entre desafios epistemológicas e apostas políticas. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2014, p. 41-52.

PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei. Reconfigurações do tempo histórico: presentismo, atualismo e solidão na modernidade digital. Revista UFMG, Belo Horizonte, vol. 23, n. 1 e 2, p. 270-297, jan./dez. 2016.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2007.

RÜSEN, Jörn. O que é a teoria da história? In: Teoria da história: uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora UFPR, 2015.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica – primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2005.

Evandro Santos – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Teoria da História no Departamento de História do Centro de Ensino Superior do Seridó – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CERES-UFRN).

Glauber Cícero Ferreira Biazo – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Teoria da História no Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

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[DR]

África e Amazônia: experiências missionárias da “tutela” e da “promoção humana” / Canoa do Tempo / 2018

Este dossiê propõe-se problematizar a emergência do princípio da “Promoção Humana”, que se origina nos anos 60 do século XX com a orientação das missões AD GENTES (para todos os povos e culturas), como uma resposta à crítica ao colonialismo na África e na Ásia e do envolvimento das Igrejas cristãs com esse processo. A “Promoção Humana” seria a tradução cristã da ideia de autodeterminação dos povos e propiciou importantes diálogos no campo religioso sobre o que seria o fim da tutela colonial e o favorecimento das reivindicações e das singularidades dos povos não brancos que eram cristãos.

Neste processo de importantes experiências de interação com a sociedade civil e com espaços missionários africanos e da América Latina, se enriqueceram as práticas pastorais e a emergência de novos protagonistas na ação evangelizadora. Diálogos em torno da “Promoção Humana” surgiram em espaços religiosos propiciados por diferentes congregações missionárias, dentre as quais destacamos aqui a Congregação do Espírito Santo, que tem presença em Tefé e também em espaços missionários do Sul de Angola, entre outras áreas na África e no Brasil atendidas pela ação desta instituição. Investigar esses diálogos possíveis entre experiências missionárias em espaços amazônicos e africanos, pós Concilio Vaticano II, é o desafio lançado para os artigos que compõem este número da Revista.

O tema das experiências missionárias tornou-se muito importante para uma compreensão das trajetórias históricas do Brasil e da África, para além dos estudos da escravidão atlântica e do pós abolição no Brasil. Fazer missão e a atenção às chamadas populações nativas no século XX trouxe, para o estudo da história das Igrejas cristãs, todo um arcabouço conceitual e teórico que influenciou os processos de formação dos estados africanos nos anos 60 do século XX, e traçou novos rumos para a participação social civil no Brasil da democratização e da Nova República. Neste sentido, é fundamental apontarmos para as transformações que a ideia e a ação missionária sofreram ao longo do século XX, fundamentadas em dois importantes aspectos: o princípio da “Tutela” que durou até os anos 60, e o da “ Auto-determinação dos Povos”, que vem do universo político e que ganhou um equivalente religioso, denominado “Promoção Humana”.

A ação missionária cristã católica, até o fim da Primeira Guerra Mundial, estava profundamente imbricada no projeto de expansão da civilização europeia ocidental e pela perspectiva de negação ou de aceitação das estruturas sociais e religiosas indígenas da África e América. A Missão era, concretamente, o processo de mudança da paisagem e da estrutura social, da corporiedade das populações englobadas por esta ação, que visava construir uma estrutura material, económica e espiritual que marcasse a inserção do território e dos seus habitantes na esfera católica, tutelada por uma nação europeia apoiadora daquele projeto religioso.

As populações tuteladas nas relações religiosas e nos regimes de trabalhos forçados fariam uma necessária transição da barbárie para a civilização, que havia se tornado sinônimo de se tornar também cristão. Nas experiências missionárias africanas e na América, o Estado colonial incorporava os territórios missionários e coexistiam as estruturas religiosas com a administração colonial. Em alguns setores, como na área da educação e da saúde, as Igrejas Cristãs forneciam os hospitais e escolas que tornaram-se também instituições dos diferentes regimes coloniais. Na região que hoje corresponde à Amazônia brasileira, no século XVIII quase todas as localidades da sociedade colonial eram missões antes da expulsão dos jesuítas e a criação dos “diretórios” por Marquês de Pombal.

No entanto, o desenvolvimento desta ação de civilização, que pressupunha a inserção religiosa ao mesmo tempo na estrutura do controle do trabalho e da administração dos territórios, exigiu um sistema educacional que preparasse para o trabalho e que acabou por levar ao fim da herança escravista nas relações de trabalho, tornando-as “modernas”, “civilizadas” e “ocidentais”. O que se perceberá neste dossiê é que essas ações disciplinadoras dos trabalhadores africanos, por parte da pedagogia missionária do trabalho (com o desenvolvimento de escolas artesanais, de institutos de artes e ofícios, criação de escolas e universidades técnicas) se estendeu para além dos espaços missionários africanos, controlados por administrações estrangeiras, e também foram utilizadas em áreas missionárias do Brasil e da América Latina, notadamente entre as populações indígenas. Suas gentes e terras precisavam na lógica de Estados republicanos que os definiam como povos e territórios tutelados. O trabalho e a lógica da organização dos espaços precisavam ser orientados para essa nova organização política, que os colocava dentro de fronteiras nacionais e lhes atribuia um papel histórico subalterno que, no caso brasileiro, surgiu a partir de 1889.

Os missionários que chegaram nas áreas amazônicas no início do século XX, trouxeram no horizonte mental e nas experiências de ação as formas de controle e de educação das chamadas populações indígenas africanas. Além disso, apostavam na educação artesanal, no desenvolvimento das artes e ofícios e na cristianização dos espaços e das relações, para que as missões pudessem produzir na experiência brasileira um espaço civilizado para a República do Brasil. Percebe-se nos artigos apresentados que, da década de 1910 até os anos de 1960, a tutela era a ação esperada para os povos considerados indígenas em suas próprias terras, e que tais estruturas de educação podiam circular em espaços considerados tão diversos porque tinham a perspectiva de conduzir seres diversos a uma estrutura de Estado que era considerada universal, homogeneizadora e civilizada.

No entanto, se no desenho da ação civilizadora missionária dos estatutos do indigenato em África estava prevista a negação da relação de pertença dos territórios indígenas, o que deveria garantir populações mais dóceis e passíveis de serem tuteladas, a realidade das estruturas missionárias era mais complexa. Estas se revelaram frágeis ante os sistemas sociais africanos, o que suscitou uma série de negociações, conflitos e acomodações entre os agentes religiosos e os sistemas de chefaturas locais. O cristianismo permaneceu em grande parte das sociedades africanas porque também se tornou africano, ou seja, houve um processo de reapropriação e reelaboração das experiências religiosas e cosmogônicas, no qual o cristianismo que persistiu foi o que necessariamente tornou-se também uma religião local, uma forma de compreensão do processo de ocidentalização do mundo, e um caminho de reatualização e de preservação dos cultos de ancestrais. Com relação a este aspecto, temos a contribuição de um importante artigo que analisa os processos de descrição missionária e de produção de sentidos dessa interação, através do estudo sobre os rituais e a celebração do Boi Sagrado no sul de Angola, de Josivaldo Pires de Oliveira.

É importante destacarmos aqui a grande importância da atuação do chamado catequista nativo. Se ao missionário branco cabia a fundação da missão, a benção da capela e a ação dos sacramentos, ao catequista cabia toda a comunicação e tradução possível de discursos e símbolos que circulavam entre os universos dos missionários estrangeiros e das populações locais. Se o missionário estrangeiro circula, é o catequista não branco que permanece, organiza, faz reuniões, mobiliza, prepara as populações para os sacramentos e que garante, portanto, a construção de um espaço missionário de fato, pelo qual transitam pessoas, línguas de contato, hierarquias e estruturas de poder.

As escolas artesanais e os institutos de artes e ofícios ganharam também importantes significados locais, que extrapolaram a educação tutelar missionária. Tornaram-se signos de distinção social, requalificação de antigas hierarquias locais e de um novo empoderamento que garantiu a autoridade para que agentes dos sistemas de chefaturas pudessem negociar com as autoridades missionárias e coloniais os termos dos processos de recrutamento e das hierarquias nos postos de trabalho. Os espaços africanos sofreram o impacto da presença missionária cristã, mas as Igrejas cristãs e suas sedes e hierarquias foram afetadas também por essas dinâmicas, o que torna complexo o seu complexifica os estudos sobre as dinâmicas coloniais africanas e quando observados e analisados, trazem mais informações do que foi o sistema de administração colonial indireta, que foi majoritário durante o colonialismo no continente africano no século XX.

As populações indígenas da área amazônica deram também contornos e expressões especiais para as estruturas de educação artesanal e agrícola trazidas pelos missionários, e também permitiram, com a sua ação, a construção de uma experiência católica local que não poderia ser reduzida à perspectiva homogeneizadora tanto do catolicismo quanto do Estado republicano brasileiro. Esse dinamismo próprio reconfigurou antigas hierarquias sociais, como por exemplo no caso da experiência missionária em Tefé, Amazonas, dos anos 1940, onde também investiu as antigas relações de poder, dando às mesmas um forte poder mobilizador e de negociação com o Estado brasileiro e as demais entidades sociais. Havia portanto o cristianismo africano, como também um brasileiro e, dentro desses universos, diversas outras formas de vivências sociais e políticas, nas quais as missões e demais espaços religiosos se tornaram, tanto para missionários quanto para missionados, importantes espaços e veículos de negociação, de formação de hierarquias e elites regionais, produzindo as vozes públicas que tiveram importantes papéis políticos de intervenção e reivindicação.

O fim da Segunda Guerra Mundial trouxe um abalo a essas estruturas missionárias centradas nas ações de tutela e de controle de territórios. Nas experiências africanas, os estatutos de indigenato foram extintos e as guerras coloniais trouxeram novos horizontes de renegociação de poder, mas também a tensão de serem inseridas numa nova situação histórica desconhecida. Neste processo, diversas ordens e congregações missionárias católicas e igrejas protestantes foram expulsas da África. A partir da criação da ONU e da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, a tutela foi denunciada como colonialismo, como ações de violação dos direitos humanos. Nos anos 60, a atuação de Claude Lévi-Strauss na UNESCO consolidou uma importante reflexão sobre as culturas do mundo que incluiu a crítica do colonialismo europeu enquanto violador do princípio do respeito às culturas e, com ela, da humanidade e dos antigos povos coloniais.

A crise do paradigma da missão foi profunda. Para as Igrejas cristãs denunciadas por intelectuais e políticos africanos como “agentes do colonialismo”, era preciso repensar tudo o que havia ocorrido. Os missionários retornados à Europa, às suas antigas dioceses e cidades, estavam deslocados. A Europa que deixaram para ir à África não era mais a mesma, e os territórios de missão não os queriam. Diante desta situação, eles se colocaram a seguinte pergunta: os cristianismos africanos morreram com a expulsão dos missionários? Esta questão foi fundamental por ocasião da convocação do Concilio Vaticano II em 1961 pelo Papa João XIII, e que teve prosseguimento com o Papa Paulo VI. Em face da crise missionária, o Concilio reconheceu que existia um catolicismo africano transformado e reorganizado de acordo com as dinâmicas locais. Além disso, os rituais católicos passaram a ser realizados nas línguas nacionais e a forma ‘africana’ de celebração da missa, chamada de “Rito Zairense” em homenagem ao antigo Reino do Congo e aos primeiros cristãos da África, passou a existir junto com o ritual romano da missa.

Tais transformações foram de grande importância para o reconhecimento das Igrejas africanas cristãs e para a formação do alto clero do continente, que passou a participar das decisões do catolicismo mundial em Roma e a ter a possibilidade de lançar candidatos ao papado. Essas mudanças contribuíram para o retorno dos missionários nos anos 1960, momento histórico das lutas anticoloniais, e com isso as Igrejas foram desafiadas a se incorporar nos projetos de construção das novas nações africanas. Para isto, um pressuposto do Concílio foi de fundamental importância: o reconhecimento do pluralismo religioso e o desafio de ser uma religião que coexistiria com as demais, desenvolvendo uma atitude de presença e de diálogo nas nações, não mais a colonização de territórios missionários. Neste dossiê temos uma importante contribuição de Nuno Falcão sobre as visões da Santa Sé sobre as missões, as transformações que ocorreram em torno da autodeterminação dos povos nos ano 60 e as mudanças no paradigma missionário, que aprofunda os temas colocados nesta apresentação.

Com o fim da visão da missão de tutela dos povos missionados e a colocação de que as mesmas se dirigem a povos livres e autodeterminados, os paradigmas da ação missionária em África e no Brasil foram transformados pela crítica colonial, e os missionários passaram a enfrentar o dilema de serem uma presença religiosa num universo político laico pós guerras de libertação nacional, e no caso da América Latina, pós ditaduras fascistas. Junto com as mudanças na ação pastoral, promoveu-se também a ação de salvaguardar a memória não só da missão, mas das Igrejas nos antigos locais missionados. Os registros das ações pastorais e dos  movimentos leigos são de inestimável valor de pesquisa, e temos neste dossiê a contribuição de Jubrael Mesquita de Oliveira e Tenner Inauhiny de Abreu a respeito dos documentos do arquivo da Prelazia de Tefé, no Amazonas, que se referem às primeiras décadas do século XX e que nos ajudam a refletir sobre outros contextos missionários do Brasil, da América Latina e da África.

Também na perspectiva da produção da musealização e da memória das missões e dos povos missionados, temos neste dossiê o artigo de Janaína Cardoso de Mello, que analisa a trajetória dos Frades Capuchinhos da Umbria no Amazonas e as interfaces com o processo de musealização dessa experiência no Museo Missionario Indios (MUMA) da Umbria, Italia.

Sobre os acervos documentais e patrimônios artísticos produzidos pelos missionários, Santos aponta:

Temos a compreensão de que a ação missionária produziu um espectro bastante amplo de artefatos, textos, edificações e diferentes tipos de fontes escritas e audiovisuais que nos levam a aprofundar a perspectiva da análise do processo de mediação também como uma ação de produção de patrimônios materiais do Cristianismo, que precisam ser abordados de forma diferenciada e que merecem projetos específicios de trato documental, análise e contribuição para o estudo da ação dos missionários na África e a constituição das cristandades locais do final do século XVIII ao XX. (SANTOS, Patricia Teixeira, FALCÃO, Nuno e SILVA, Lucia Helena, 2015, p.19)

Os anos 60 do século XX foram marcados pela emergência de um catolicismo social que dialogava com a vida e as experiências de populações antes vistas como tuteladas, mas que passaram a ser consideradas como partes da Igreja, como protagonistas no desenvolvimento da vida eclesial e comunitária. Em tais espaços produziram-se importantes vozes públicas que tiveram expressão na transformação das condições materiais da vida social. Em Tefé, Amazonas, foi fundada em 1963 a Rádio Educação Rural de Tefé que, seguindo o exemplo da Rádio Sutatenza, da Colômbia, levou a evangelização e a educação popular para lugares distantes da selva, reunindo povos indígenas e seringueiros, antes dispersos pela economia da borracha, em novas comunidades ribeirinhas mais próximas dos centros urbanos. Tendo como referência a pedagogia de Paulo Freire, o Movimento de Educação de Base em Tefé durou 40 anos ajudando a formar cidadãos, movimento sociais e instituições a partir de um viés de diálogo e valorização das tradições e identidades regionais. Essa dimensão do catolicismo social também pode ser vista num artigo deste dossiê que analisa o reconhecimento do Quilombo da comunidade de Boa Vista, no Pará, de Karl Heinz Arenz.

Com este dossiê propomos, então, percorrermos os desafios da compreensão das experiências missionárias no contexto contemporâneo, as aproximações que são possíveis de serem realizadas através dos paradigmas da “Tutela” e após anos 60, do princípio da “Promoção Humana”. Tais análises nos fazem repensar as relações entre Estados e Instituições  Missionárias, e a continuidade das ações missionárias e da produção de vozes públicas são fatos que suscitam a seguinte pergunta: porque as missões persistem? Um dos caminhos interpretativos pode passar pela importância que os Estados contemporâneos atribuem à mediação dos missionários para se chegar a populações periféricas, não incluídas na vida e participação cidadã plena. Outra possibilidade pode ser a importância da produção e salvaguarda de vozes públicas que questionam os Estados e suas políticas de exclusão. O fato é que esse fenômeno ainda é muito forte na experiência contemporânea das sociedades originárias dos antigos sistemas coloniais nas Américas e em África (SANTOS, Patrícia Teixeira, 2015, pp. 71-74). Esperamos poder contribuir com essas problematizações.

Referências

SANTOS, Patricia Teixeira, FALCÃO, Nuno, SILVA, Lucia Helena Oliveira. Fontes e pesquisas da História das missões cristãs na África: arquivos e acervos, in: Africania Studia 23. Experiências Missionárias: Trajetórias coloniais e pós coloniais em África. Porto: CEAUPHumus Editorial, 2015. PP. 15-23

Patrícia Teixeira Santos (UNIFESP) – Professora de História da África do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo. Pesquisadora colaboradora do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM-Universidade do Porto).

Guilherme Gitahy de Figueiredo (UEA – Tefé) – Professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH), do PARFOR e do curso de Pedagogia do Centro de Estudos Superiores de Tefé da Universidade do Estado do Amazonas.

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Disputando espaço constituindo sentidos. Vivências, trabalho e embates na área da Manaus Moderna (Manaus – AM – 1967-2010) | Patrícia R. Silva

Com alguma frequência, ainda em nossos dias, através das mídias: sites, jornais televisionados ou impressos, há menções em torno das disputas sobre o uso do espaço conhecido Manaus Moderna, um local que abrange porto, feiras, lojas das mais diversos artigos, barracas improvisadas de vendedores ambulantes às margens do Rio Negro e suas proximidades, no Centro da cidade de Manaus. O trabalho da professora Patrícia Rodrigues da Silva recentemente publicado, “Disputando espaço constituindo sentidos. Vivências, trabalho e embates na área da Manaus Moderna (Manaus – AM – 1967-2010) [1] ” traz grande contribuição ao desvelar as disputas em torno dos projetos para Manaus desde a década de 1960 até o ano de 2010.

A autora perscrutou o desenvolvimento do “Projeto Manaus Moderna”, que tinha o objetivo de modificar a capital do Amazonas, a partir da efetivação da Zona Franca de Manaus. Silva explica que dentro desse grande projeto de modificação da capital, houve atenção para a adequação do espaço às margens do Rio Negro, com a construção de Avenida Beira Rio – hoje denominada Avenida Lourenço da Silva Braga –, a construção da Feira Coronel Jorge Teixeira conhecida popularmente como a Feira da Manaus Moderna, e passagens de acesso entre a praia e a Avenida. Chama a atenção, pois o Projeto Manaus Moderna se estabelece a partir do caráter higienizador da Prefeitura de Manaus e do Governo do Estado do Amazonas, estes empenhados em dinamizar o transporte de material utilizado no Distrito Industrial que são descarregados na área portuária, e o desenvolvimento do comércio na área central da cidade.

Dentro das projeções do Governo do Estado do Amazonas para a área, as formas como estas adequações vão ganhando expressivas notas – às vezes de maneira ambígua – nos jornais diários da cidade, e nas denúncias e manifestações dos trabalhadores da Manaus Moderna é onde Silva vai delineando os contextos das disputas pelo espaço.

A obra de Silva se insere na concepção da História que, “procura entender o fazer-se dos homens, mulheres, crianças etc., e sua cultura, entendida como todo um modo de vida, ou seja, seus valores, tradições, esperanças, conflitos, perspectivas e práticas sociais [2] ”, como propõe a autora, concepção esta que é inspirada em autores difundidos amplamente durante a década de 1980 nas Universidades brasileiras, como os ingleses Edward Palmer Thompson e Eric Hobsbawm preocupados em uma análise mais profícua em tornos dos sentidos e ações constituídos pelos trabalhadores, ampliando os diálogos das experiências dos sujeitos.

Patrícia Rodrigues da Silva com sensibilidade vai tecendo as análises a partir das narrativas dos trabalhadores da Manaus Moderna, aproximando do administrador da Feira Coronel Jorge Teixeira, professor (ex-camelô), carregadores, lojista, e moradores da região, aí encontra-se uma grande contribuição da autora para a historiografia regional que utiliza as fontes orais como ponto norteador para observar os conflitos, resistências dos trabalhadores mediante a imposição do Projeto Manaus Moderna sem nenhuma consulta pública, impactando a dinâmica do cotidiano de trabalhadores e moradores. A autora por meio das narrativas dos trabalhadores que lhes cederam entrevistas busca compreender os significados desses sujeitos a partir das experiências e memórias, apontando que a busca de significados não se refere a um caráter homogêneo das memórias e experiências construídas pelos sujeitos: “Assim, o sujeito se mostra, ao mesmo tempo, um ser individual e social [3] ”. Dentro dessa compreensão em torno dos significados e experiências dos indivíduos, Silva dialoga com referências importantíssimas das fontes orais e memória como, Alessandro Portelli [4], Michael Pollak [5], Alistair Thomson [6], que carregam em suas obras aspectos de como se forjam as memórias, e como elas estão carregadas de subjetividades, elemento de grande importância para a análise dos historiadores.

As disputas pelas memórias estavam também dentro das Instituições, onde Silva identifica um dos embates entre a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico (SPHAN) que aponta uma série de problemas para a construção da Avenida Beira Rio (Avenida Lourenço da Silva Braga), observando que a mesma traria impactos prejudiciais ao prédio do Mercado Municipal Adolpho Lisboa, e aos trabalhadores e moradores das proximidades, ponto que o Governo do Estado, como executor do Projeto e a Prefeitura de Manaus elaborador do Projeto não consideraram, pois para estes, as adequações feitas estavam alinhadas com o desenvolvimento urbano e econômico previstos no Projeto. Silva vai mais afundo quando analisa que mesmo que a SPHAN tenha suas justificativas nos embargos feitos à obra, esta deixa a desejar ao buscar o entendimento genérico de Patrimônio, idealizando o histórico a partir das “edificações, o meio físico”, e não inserindo preocupação ao que tange “aos anseios e demandas de moradores e usuários do espaço”. O entendimento de “patrimônio esvaziado” destacada no livro para a SPHAN advém das reflexões que a autora tem a partir da concepção de Nestor García Canclini, no que este chama de tradicionalismo substancialista, onde Canclini critica esta noção de que “patrimônio está constituído por um modo de formas excepcionais, onde não contam as condições de vida e trabalho de quem os produziu [7] ”.

O papel dos jornais no período do Projeto Zona Franca de Manaus é constantemente na obra uma ponta de lança para análise do quanto os jornais como o A Crítica, apoiador do Projeto Zona Franca de Manaus, e de vários projetos que vão se desenvolvendo paralelo às normativas do capitalismo, se atrelando ao discurso do Estado e da elite quanto às modificações da área da Manaus Moderna reforçando o caráter saneador e de desenvolvimento econômico, mesmo que por vezes, aponte os problemas que o projeto vai causando para os trabalhadores e moradores. O Jornal A Crítica em várias notas corrobora os aspectos higienizadores, como atenta Silva para a legenda de uma das fotos do A Crítica, 13 de Agosto de 1980, “consumada a limpeza da escadaria”, em referência a retirada dos comerciantes. O jornal “A Notícia” de circulação diária inaugurado no período da Ditadura Militar expunham em suas páginas a retirada dos moradores da cidade Flutuante, na Escadaria dos Remédios com a seguinte notícia no dia 11 de Agosto de 1980: “Capitania e prefeitura acabam hoje com a “vergonha” da escadaria dos Remédios”.

Destacam-se como referências metodológicas para análises das matérias jornalísticas, as obras da historiadora Heloísa de Faria Cruz, que se direciona a abordar a cultura letrada e o viver urbano, no sentido de que a imprensa é uma “prática social e momento de constituição /instituição dos modos de viver e pensar [8] ” em São Paulo nos fins do século XIX e início do XX. A historiadora Maria Luiza Ugarte Pinheiro, também é uma grande contribuição para Silva, pois Ugarte coloca a imprensa como possibilidade de aprender “múltiplas dimensões do viver social [9] ”, no Amazonas nos fins do século XIX e início do XX.

Com muito esmero a autora se debruça em analisar as fotografias a partir de referências como Boris Kossoy [10] e Pilippe Dubois [11]. Silva menciona que a fotografia, “sendo uma produção cultural, carrega elementos da subjetividade e requer um trato específico, uma reflexão sobre a natureza e a forma como deve ser tratada dentro do trabalho, como quaisquer fontes que possamos utilizar”. Neste sentido, a obra segue destacando a atenção para as fotografias expostas nos jornais, publicadas na internet, revistas e acervo pessoal de alguns feirantes, e algumas publicadas em livros de memorialistas. Silva denota que as fotografias oriundas da imprensa devem ser “compreendidas como força atuante na configuração e difusão da notícia [12]”, e inspirada em Gisèle Freund [13] – autora que metodologicamente sobre o uso das fotografias dispostas em jornais – aponta que o fotojornalismo funciona a partir de interesses, se convertendo em meio de propaganda e manipulação.

Silva sinaliza que os usos de termos como “limpar” significava o “esvaziamento dos modos de viver e morar naquela espacialidade [14]”. Esses termos eram percebidos pelos entrevistados que apontavam os momentos que foram expulsos os camelôs e feirantes, e as maneiras como eram identificados pelos jornais, autoridades e parte da sociedade manauara como “responsáveis pelas falta de estrutura da feira”, “foco de doenças como a cólera”, articulando um sentido pejorativo para a favela, e “a favela como lugar de não trabalho”. A polícia muitas vezes, como mostra a obra de Silva, vai participar das retiradas de trabalhadores e moradores da área, e novamente, atentos aos modos que são pensados pelas autoridades, tanto os camelôs quanto os feirantes apanhavam da polícia, eram perseguidos e reprimidos com a apreensão de mercadorias – violência que se agravou com a chegada de Arthur Virgílio Neto à Prefeitura de Manaus, em 1989. Em alguns momentos, a “guerra do lugar”, como Silva chama a disputa pela espacialidade se relacionava às demandas dos atacadistas que eram defendidos pelos jornais como grupos importantes ao abastecimento da cidade, sendo defendidos, também, pela Secretaria Municipal de Abastecimentos, Marcados e Feiras – SEMAF [15], que disponibilizava para os atacadistas boxes da feira, quando na verdade, eram destinados aos permissionários, “Lei Municipal n°123, de 25 de novembro de 2004”. As possibilidades encontradas das narrativas dos trabalhadores e moradores da área da Escadaria dos Remédios e da Cidade Flutuante constituíram significados para suas experiências individuais e aquelas que foram compartilhadas socialmente, interpretando as práticas e sentidos que fiscais da feira adotavam com os empresários, compactuando se não com a retirada de uma só vez dos trabalhadores e moradores, aos menos, tinham aprendido a fazer de outras maneiras, como ceder o espaço que daria para três ou quatro permissionários para um empresário. Alessandro Portelli nos direciona à reflexão da importância da subjetividade, da reflexão, e da trajetória que segue a memória do entrevistado,

Pois, não só a filosofia vai implícita nos fatos, mas a motivação para narrar consiste precisamente em expressar o significado da experiência através dos fatos: recordar e contar já é interpretar. A subjetividade, o trabalho através do qual as pessoas constroem e atribuem o significado à própria experiência e à própria identidade, constitui por si mesmo o argumento, o fim mesmo do discurso. Excluir ou exorcizar a subjetividade como se fosse somente uma fastidiosa interferência na objetividade factual do testemunho quer dizer, em última instância, torcer o significado próprio dos fatos narrados [16].

A memória de muitos trabalhadores ficou marcada pela exclusão, pela a perda total ou quase total de suas mercadorias e de seus rendimentos, mesmo depois de deslocados para outras feiras que ficavam em áreas distantes do Centro dificultando que os trabalhadores tivessem contato com os clientes antigos e tivessem vigor em suas vendas. Quando podiam comprar suas mercadorias, e quando podiam contar com outros trabalhadores, os feirantes articulavam o retorno à Manaus Moderna, reivindicando direitos e denunciando as manobras das Secretarias ligadas à Prefeitura para atender as demandas de empresários. Os sujeitos que vivenciaram os momentos de lutas, e tiveram suas barracas/casas destruídas pelo poder público, e depois por um incêndio ocorrido em 1991, nas entrevistas contidas no livro revelam memórias sobre a violência que viveram com a perda do espaço de trabalho, da sobrevivência, e o surgimento de necessidades que começam ou pioram ao enfrentarem o fim de seus modos de vida.

A continuidade do Projeto Manaus Moderna ficou sob responsabilidade, em 1993, do prefeito Amazonino Mendes, que Silva vai identificar como político que desperta admiração de vários trabalhadores, pois oferece boxes da feira Coronel Jorge Teixeira aos feirantes, mas não abrange a todos que foram retirados anteriormente. Ao tempo que alguns dos entrevistados de Silva guardam fotos de Amazonino, ou atribuem ao ato dele chamar os feirantes aos boxes da Manaus Moderna como um ato de solidariedade aos trabalhadores, outros atribuem a ele outro significado, como um político que usa as necessidades alheias para conseguir votos.

As tensões sobre a espacialidade da Manaus Moderna ganham novos contornos, novos sujeitos se estabelecem enquanto trabalhadores, a espacialidade vai entre alguns anos sendo modificada. A obra de Patrícia Rodrigues da Silva nos leva aos mundos de possibilidades de projetos permeados de disputas, e os trabalhadores estão inseridos enquanto construtores de projetos para a área portuária, afinal, suas resistências como permanecerem, voltarem, reivindicarem marcam também o quanto os trabalhadores e moradores não estavam dispostos a serem engolidos por planos alheios às suas expectativas, às suas experiências, as redes de sociabilidades e principalmente às suas memórias.

Notas

1. SILVA, Patrícia Rodrigues da. Disputando espaço constituindo sentidos. Vivências, trabalho e embates na área da Manaus Moderna (Manaus – AM – 1967-2010). Manaus: EDUA, 2016.

2. SILVA, Patrícia Rodrigues da. Disputando espaço constituindo sentidos. Vivências, trabalho e embates na área da Manaus Moderna (Manaus – AM – 1967-2010), p. 16-17.

3. SILVA, Patrícia Rodrigues da. Disputando espaço constituindo sentidos. Vivências, trabalho e embates na área da Manaus Moderna (Manaus – AM – 1967-2010), p. 42.

4. PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Dossiê Tempo, Rio de Janeiro, v.1, n.2, p. 59-72, 1996. ___________________Forma e significado na história oral: a pesquisa como um experimento de igualdade. Projeto História, São Paulo, Departamento de História da PUC/SP, n. 14, p. 07-24, fev. 1997.

___________________ O momento em minha vida: funções do tempo na história oral. In: KHOURY, Yara Aun et al. Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho D’Água, 2004.

5. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Revista de Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

6.  THOMSON, Alistair. Quando a memória é um campo de batalha: envolvimentos pessoais e políticos com o Exército Nacional. Projeto História, São Paulo, Departamento de História da PUC/SP, n 16, 1998.

7. CANCLINI, Nestor García. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, IPHAN, n.23, p. 95-115, 1994.

8. CRUZ, Heloísa de Faria. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana – 1980-1915. São Paulo: Edusc, 2000.

9. PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: letramento e periodismo no Amazonas (1890-1920). 2001. Tese (Doutorado em História) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.

10. KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo. Cotia, SP: Ateliê, 2007.

11. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas, SP: Papirus, 1993. (Série Ofício de Arte e Forma).

12. SILVA, Patrícia Rodrigues da. Disputando espaço constituindo sentidos. Vivências, trabalho e embates na área da Manaus Moderna (Manaus – AM – 1967-2010), p. 37.

13. FREUND, Gisèle. La fotografia como documento social. Barcelona: Gustavo Gilli, 2008.

14. SILVA, Patrícia Rodrigues da. Disputando espaço constituindo sentidos. Vivências, trabalho e embates na área da Manaus Moderna (Manaus – AM – 1967-2010), p. 238.

15. SILVA, Patrícia Rodrigues da. Disputando espaço constituindo sentidos. Vivências, trabalho e embates na área da Manaus Moderna (Manaus – AM – 1967-2010), p.277. Esse aspecto, é mencionado por um entrevistado de Silva, no sentido de que o entrevistado ciente da Lei existente não se conforma com as práticas da SEMAF.

16. PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Dossiê Tempo, Rio de Janeiro, v.1, n.2, 1996, p. 60

Rafaela Bastos de Oliveira – Mestre em História pela Universidade Federal do Amazonas. E-mail: [email protected]


SILVA, Patrícia Rodrigues da. Disputando espaço constituindo sentidos. Vivências, trabalho e embates na área da Manaus Moderna (Manaus – AM – 1967-2010). Manaus: EDUA, 2016. Resenha de: OLIVEIRA, Rafaela Bastos de. Sobrevivendo à Manaus moderna. Canoa do Tempo. Manaus, V. 9, n. 1, p. 166-171, dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

Planet/Cuba: Art, Culture, and the Future of the Island – PRICE (A-EN)

PRICE, Rachel. Planet/Cuba: Art, Culture, and the Future of the Island. London: Verso Books, 2015. Resenha de SALMISTRO, Renan. Price, Rachel. Planet/Cuba: Art, Culture, and the Future of the Island1. Alea, Rio de Janeiro, v.19 n.3, sept./dec., 2017.

Publicado em novembro de 2015, Planet/Cuba: Art, Culture, and the Future of the Island oferece uma visão profundamente inovadora da arte e da cultura cubanas contemporâneas. Desde a Revolução de 1959, Cuba ocupou o imaginário mundial como um território fechado, condição agravada pelo embargo econômico de 1961, que isolou literalmente o país numa ilha em meio a um mar capitalista. A revolução, a oposição ao capitalismo americano e a relação com a antiga URSS contribuíram para sustentar o mito da excepcionalidade cubana, sob a imagem de uma ilha congelada e fixa, deslocada do mundo.

Porém, o retrato oferecido por Rachel Price (professora associada da Universidade de Princeton) apresenta um país que, longe de parar no tempo, esteve em contínua transformação. Na introdução “A treasure map for the present”, ela descreve como o colapso da URSS em 1991 acrescentou àquela visão da ilha a imagem de uma terra arrasada, isolada pelo oceano e permeada por árvores, carros antigos, pouca tecnologia, escassez de alimentos e arquitetura destruída. Na verdade, para Price esse momento é o início de uma década distinta de todas as outras em Cuba, uma vez que o fim do apoio soviético impôs ao governo cubano a necessidade de encontrar novas diretrizes para o futuro, de repensar velhas ideologias e de abrir espaço a novos atores sociais.

Os anos finais do século XX, portanto, deram origem a uma nova realidade, que passou não só pela substituição do leninismo soviético, como pela superação do internacionalismo do governo de Fidel Castro. O aspecto épico da ascensão do governo revolucionário em 1959 atraiu a atenção mundial, espalhando expectativas que colocaram sobre a ilha obrigações internacionais, fosse como país comunista, latino americano ou do terceiro mundo. Tais expectativas muitas vezes foram assumidas pelos próprios cubanos, como indica a autodenominação nos anos 1960 como “primeiro território livre das Américas”. Mas, segundo Price, as dificuldades posteriores ao colapso dos países do leste impuseram ao governo e ao povo cubano a necessidade de pensar os problemas locais numa perspectiva nacionalista. A ascensão de Raúl Castro ao poder em 2008, no entanto, direcionou o nacionalismo dos anos 1990 a um processo de internacionalização, que passaria pela abertura da economia cubana à globalização.

Embora Price tenha concluído seu estudo antes da normalização das relações entre Cuba e EUA em 17 de dezembro de 2014, a perspicácia demonstrada em suas análises permite perceber que uma mudança radical não só estava prestes a ocorrer, como se fazia absolutamente necessária. Com exímio conhecimento das transformações sociais, políticas e econômicas em Cuba, Price explora a intersecção entre arte e ambiente, desconstruindo aquela imagem convencional de uma ilha separada do resto do mundo. Sua proposta é superar essa visão construída nos últimos cinquenta anos, de modo que o título não seja lido como uma oposição Planet/Cuba, planeta ou Cuba, mas uma espécie de divisão pela qual as questões globais encontram respaldo na sociedade cubana.

O estudo foca nas produções artísticas cubanas das últimas décadas – abordando desde romances e poesias, até intervenções artísticas, arte digital e videogames como forma de arte -, com o intuito de demonstrar como as crises globais emergentes orientam a nova visão da realidade representada pelos artistas. Para Price, na arte cubana contemporânea, a preocupação particular com o país, lugar comum no imaginário cubano desde os anos 1990, coincide com as preocupações presentes em outros lugares do globo. Assim suas análises são desenvolvidas em torno de problemas que ultrapassam as fronteiras de qualquer nação, como o desmatamento, o aquecimento global, a escassez de recursos naturais, as formas de organização do trabalho e a obsessão com a segurança.

A originalidade do estudo aparece logo nos capítulos iniciais, pela forma como neles são retomados arquétipos binários na arte cubana – como rizomas e árvores – a partir de uma perspectiva global. Os dois primeiros capítulos – “We Are Tired of Rhizomes” e “Marabusales” – abordam questões ligadas à agricultura, à crise do meio ambiente e ao pensamento ecológico. Price descreve a substituição da imagem deleuziana do rizoma (utilizada para se referir à coletividade democrática) pelo símbolo mais estável da árvore. Esta superação envolveria a falência da economia baseada na indústria açucareira, procurando formas de lidar com as consequências da industrialização da agricultura, como a destruição das plantas nativas e o empobrecimento do solo.

Embora o governo de Fidel Castro tenha investido no reflorestamento, conseguindo recuperar mais de 30% do território, além de criar leis para regulamentar a exploração da natureza, a forte campanha pela adoção do modelo industrial soviético que, além de outras coisas, envolvia a industrialização da agricultura, permanece como um alerta quanto ao potencial de destruição da indústria emergente nesta nova fase de globalização. Por isso, os artistas cubanos reagem com hesitação às novas diretrizes adotadas para o desenvolvimento da ilha.

marabú, planta não nativa que chegou a ocupar mais de 50% do território abandonado pela indústria açucareira, representa a reação paradoxal dos cubanos quanto ao futuro. A planta adquire um aspecto negativo conforme se espalha pelo território, contribuindo para destruir o que restou da vegetação nativa. Na obra Modelo de expansión: marabú, dos artistas Ernesto Oroza e Gean Moreno, o marabú não só indica a falência das políticas agrícolas e ecológicas, como escancara a crise ambiental e o enfraquecimento do sistema capitalista. Por outro lado, seu crescimento e disseminação são mais complexos, à medida que avança sob o território abandonado pelas usinas, devolvendo nitrogênio ao solo destruído pela monocultura.

A ambivalência da metáfora do marabú está em destruir os resquícios da Cuba açucareira que não prosperou, ao mesmo tempo em que prepara a terra para um futuro incerto. Mas a proposta de interpretação do imaginário cubano sob um aspecto global leva Price a analisar as incertezas em relação ao futuro como um fato característico da cultura contemporânea em geral. Essa perspectiva fica ainda mais evidente nos dois capítulos seguintes, que tratam da preocupação em torno da escassez dos recursos naturais.

Se o derretimento das geleiras polares é mais alarmante a todos os países que possuem fronteiras marítimas, no caso de uma ilha como Cuba esse fenômeno pode gerar expectativas desoladoras em relação ao futuro. No capítulo “Havana Under Water”, Price traça as mudanças na abordagem de um velho tema cubano: o mar. Nos últimos tempos, o mar surge no imaginário cubano como uma imagem desagradável, indicadora de perigo. A água não só está envolvida nas mudanças climáticas, como carrega a poluição da vida urbana e industrial. Nas obras de arte, ela contribui para a construção de uma visão apocalítica do futuro, como no trabalho Tsunami, de Humberto Díaz, e no romance Habana Underguater, de Erick Mota.

A insegurança quanto ao futuro também reforça a preocupação com a escassez dos recursos naturais. Entre as maiores preocupações dos governantes contemporâneos, inclusive cubanos, está a busca pela independência energética. Nesse aspecto, a água também está presente, uma vez que representa a última fronteira entre o homem e as principais reservas de petróleo, além de ser a metáfora mais adequada à representação de um fenômeno intrínseco ao capitalismo: a circulação (de mercadorias, capital e pessoas).

Sob essa perspectiva, Price discute com muita acuidade, no capítulo “Post-Panamax Energies”, todo o processo de exploração do petróleo, desde sua regulamentação com base no sistema de posse do direito romano até as deliberações mais recentes dos direitos de exploração. No entanto, este capítulo contribui à tese da autora (sobre a presença marcante dos problemas globais no imaginário cubano) quando reconhece que, embora as descobertas de petróleo não sejam significativas em Cuba a ponto de mudar sua economia ou estrutura energética, a sua centralidade no mundo faz dele um tema constante na arte cubana contemporânea.

Após abordar a preocupação com as reservas de energia como um dos problemas mais recorrentes do mundo globalizado, Price volta-se a um dos temas que nas últimas décadas pareceu distinguir a Cuba comunista do resto do mundo capitalista: a relação entre trabalho, produtividade e tempo livre. O penúltimo capítulo, “Free Time”, oferece uma análise fina de como questões relativas à ocupação, ao desemprego, ao jogo e à falta de produtividade estão presentes no cotidiano da ilha. Enquanto na maioria dos países de capitalismo avançado o tempo livre é visto como antídoto ao trabalho, Price entende que a preocupação do Estado cubano voltada ao bem-estar social dedicou o trabalho estatal à subsistência, de modo que o tempo livre costuma ser direcionado a trabalhos mais lucrativos. Contudo, o avanço da economia informal não é interpretado como um aspecto particular da sociedade cubana, uma vez que também está presente na maioria dos países capitalistas.

Além do mercado informal, outro aspecto da relação entre o homem contemporâneo e o ócio, que repercute em Cuba, é o modo como a cultura de massa modela a construção da subjetividade a partir do tempo livre e do jogo. Uma parte significativa do capítulo é dedicada à abordagem da relação entre a indústria dos games e a colonização do tempo livre, o que parece ser um tema de grande interesse da autora. Embora o acesso à internet ainda seja um problema em Cuba, por ser demasiadamente lento e escasso, ele faz parte da nova política de Raúl Castro de “eliminar proibições”, que também liberou a venda de computadores pessoais, celulares e televisores. Para Price, tal abertura contribuiu para a progressiva distinção entre a vida cotidiana na ilha e a “retórica estatal” dos últimos cinquenta anos. O grande responsável por esta transformação seria o acesso às produções audiovisuais estrangeiras, de grande conhecimento especialmente por parte dos artistas cubanos.

A ênfase no desenvolvimento dos recursos tecnológicos engloba inclusive a obsessão do Estado moderno com o problema da segurança. Nessa linha, Price destaca no último capítulo, “Surveillance and Detail in the Era of Camouflage”, obras performáticas, como da artista Tania Bruguera, e experimentais, como a adaptação do modelo de prisão descrito por Jeremy Bentham (pan-óptico) para o videogame, realizada por Rodolfo Peraza em Jailhead.com. A abordagem do aperfeiçoamento de um sistema de segurança cada vez mais invasivo – que tem a tecnologia como principal aliada -, a partir de artistas que adotam recursos tecnológicos como estratégia de representação, foi um grande lampejo da autora para defender que as formas de vigilância e controle não estão encerradas nos centros de correção ou nas instituições, mas sim disseminadas pelos lugares mais diversos da vida cotidiana.

Ao colocar no horizonte da arte cubana os problemas globais, Price consegue desmistificar algumas consequências do isolamento político das últimas décadas, como a sensação de que Cuba é uma ilha-planeta com uma realidade própria. Apesar de ter que lidar com os problemas globais respeitando as particularidades de seu processo histórico, a Cuba de Price passa por múltiplas transformações que se confundem com os dilemas do mundo atual. Dessa forma, a promessa presente no título de discutir o futuro da ilha (“… and the Future of the Island”) não pode ser entendida literalmente, uma vez que as expectativas quanto ao futuro na ilha são tão incertas, duvidosas e angustiantes quanto em qualquer outro lugar do planeta. A abordagem dos impactos das transformações globais na ilha definitivamente recoloca Cuba numa perspectiva global, menos como ilha-planeta e mais como país.

Renan Salmistraro – Doutorando em Teoria e História Literária na UNICAMP. E-mail[email protected]

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Corpo, gênero e sexualidade no Caribe / Revista Brasileira do Caribe / 2017

Corpo – gênero – sexualidade no Caribe / Revista Brasileira do Caribe / 2017

O corpo é a expressão material e biológica da existência humana. Mas haveria um corpo material preexistente à experiência cultural? Na tradição ocidental há muito tempo cristalizou-se a ideia essencialista de um binarismo corpo/alma, corpo/espírito, corpo/mente, natureza/cultura. Entretanto, é impossível pensar o ser humano separado da cultura. Nesse sentido, o corpo não pode ser separado da cultura, em uma preexistência, como algo já dado em que se inscreve a experiência social e cultural. Portanto, o corpo é um produto histórico e cultural, e também produtor de cultura, status, identidades e sexualidades.

Se admitirmos que o corpo seja produto e produtor de identidades, então as identidades de gênero são mesmo performances sociais contínuas, nem verdadeiras ou falsas, nem reais ou aparentes, nem originais ou derivadas. Por conseguinte, as sexualidades também constituem disposições, representações e práticas voltadas para a experiência do desejo que contribuem na formação das identidades de gênero e de outra ordem. Por outro lado, a sexualidade também pode ser vista como um dispositivo normativo para controle da dissipação das energias, para o estabelecimento de normas e valores, enfim, para o controle e a docilidade dos corpos.

O trinômio corpo, gênero e sexualidade como produto e produtor das experiências culturais, históricas, políticas e sociais, tem produzido relações de poder em que o masculinismo e a heterossexualidade aparecem como hegemônicos e naturalizados, muitas vezes, marginalizando, excluindo, perseguindo e silenciando outras formas identidárias de gênero e de sexualidade.

Por essas razões, foi organizado para este número da Revista Brasileira do Caribe, um dossiê intitulado “Corpo, gênero e sexualidade no Caribe”, com o objetivo de debater as experiências históricas, artísticas, políticas e sociais dessas três categorias no Caribe. Como corpo, gênero e sexualidade se articulam no Caribe para formar identidades, relações de poder, desejo? O dossiê se inicia com o artigo “El amor en tiempos de Sidentidades: eros y thanatos en las “autohistorias” de Pedro Lemebel y Reinaldo Arenas” de Massimiliano Carta. Nesse artigo, Carta analisa como a obra de Reinaldo Arenas e Pedro Lemebel, no contexto sanitarista da pandemia da AIDS, nos EUA do final do século passado. O texto aborda a questão do amor, da morte, das identidades latino-americanas e LGBTQI (Lésbica, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers e Intersexuais) na formação de identidades, mais especificamente as sidentidades proposta por Llamas.

O segundo artigo, “La metáfora de la libertad: el discurso del cuerpo en la literatura de Zoé Valdés” de Brigida Pastor trata de uma análise do romance La nada cotidiana da escritora cubana exilada em Paris, Zoé Valdés. Pastor aborda em seu artigo o uso da linguagem do corpo utilizada pela escritora Zoé Valdés como instrumento e “estratégia feminina/feminista” de resistência da mulher a qualquer forma de repressão.

O terceiro artigo, “Big Bang o el uso de los cuerpos en la poesía de Severo Sarduy”, de Denise León, trata da obra Big Bang de Severo Sarduy, que explora em sua poesia a divulgação científica, restos literários em uma linguagem minimalista, bem como o papel dos corpos no universo do desejo erótico e sua ambígua trajetória, onde o importante é ter algo ou alguém a quem desejar. São corpos que, nas palavras de León, se quebram sem limites e se abrem em infinita expansão.

No artigo “Corpo e negritude no discurso do rap cubano e do rap brasileiro: diálogos (d)e resistência”, Yanelys Abreu Babi analisa, por meio da análise de discurso de Pêcheux, como as condições de produção, formação ideológica e formação discursiva são usadas na construção de sentidos em torno do corpo negro. Para tanto, o artigo analisa seis letras de rap, compostas por rappers negros de Havana e São Paulo no período entre 2000-2012.

O artigo de Clara Heibron trata da representação da mulher Mokaná. A autora reúne na sua análise uma documentação variada constituída por crônicas, imagens do artesanato local que evidencia o constituir feminino na comunidade Mokaná, especialmente, da mulher mohana, a mulher guerreira.

A seção Outros Artigos abre-se com o artigo “Legal and Extra-Legal Measures of Labor Exploitation: Work, Workers and Socio-Racial Control in Spanish Colonial Puerto Rico, c. 1500-1850” de Jorge Chinea. O artigo analisa e debate a conexão entre trabalho, regimes de trabalho e o desenvolvimento da colônia espanhola de Porto Rico de 1500 até a metade do século XIX, em que os exploradores buscaram extrair o máximo de trabalho da população alvo ao mínimo custo possível para reduzir despesas operacionais e maximizar os lucros em seus empreendimentos de mineração, criação de gado e agricultura, bem como controlar essa população.

O artigo “Convenios laborales de las personas de origen africano y afrodescendientes en el valle de Toluca, siglos XVI y XVII”, de Georgina Flores, Maria Guadalupe Zárate Barrios e Brenda Jaqueline Montes de Oca, também trata da temática do trabalho. Com base na documentação histórica do Arquivo Geral de Notarías do Estado do México as autoras debatem parte da história laboral de homens e mulheres africanos e afrodescendentes que habitaram o vale de Toluca durante o período colonial. O artigo apresenta a forma na qual os escravos alcançaram a liberdade, as atividades realizadas, as relações sociais e econômicas entre os grupos étnicos, os contratos laborais pactuados entre indivíduos de diferentes qualidades etc.

Por sua vez, no seu artigo, “A Revolução Cubana e o perfil ideológico do Movimento 26 de Julho”, Rafael Saddi analisa o perfil ideológico do Movimento 26 de Julho na luta contra a ditadura de Fulgêncio Batista e algumas de suas consequências para a Revolução Cubana após a tomada do poder.

Fechando a seção de outros artigos, “Bob Marley: memórias, narrativas e paradoxos de um mito polissêmico”, de Danilo Rabelo, debate por meio da biografia de Marley as várias representações e discursos elaborados sobre Bob Marley durante sua vida e após a sua morte, estabelecendo significados, apropriações, estratégias políticas e interesses em jogo, bem como as contradições e paradoxos da sociedade jamaicana quanto ao uso das imagens elaboradas sobre o cantor.

Por último, a resenha sobre a obra de Elzbieta Sklodowska “Invento, luego resisto: El Período Especial en Cuba como experiencia y metáfora (1990-2015)” de Marcos Antonio da Silva. O autor nos convida a ler essa importante obra sobre a História do tempo presente em Cuba e as grandes mudanças do fim de século após o desaparecimento do campo socialista e os reflexos dessas transformações no cenário social e cultural da ilha caribenha.

Na oportunidade, agradecemos aos autores e autoras que contribuíram para a publicação deste fascículo e desejamos aos nossos leitores e leitoras uma ótima e proveitosa leitura.

Danilo Rabelo Isabel Ibarra


RABELO, Danilo; IBARRA, Isabel. Corpo, gênero e sexualidade no Caribe. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.18, n.35, jul./dez. 2017. Acessar publicação original. [IF].

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A ditadura espelhada: conservadorismo e crítica na memória didática dos anos de chumbo

Alípio da Silva Leme Filho – Mestre em Educação pela Universidade Nove de Julho. Professor Titular de Cargo da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e Coordenador na Escola Estadual Reverendo José Borges dos Santos Júnior. E-mail: [email protected]


MAFRA, Janson Ferreira. A ditadura espelhada: conservadorismo e crítica na memória didática dos anos de chumbo. São Paulo: BT Acadêmica/Brasília: Liber Livro, 2014. Resenha de: LEME FILHO, Alípio da Silva.  Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 9, n. 18, p. 225-228, jul./dez., 2017.

Acesso apenas pelo link original [DR]

As quatro partes do mundo, história de uma mundialização – GRUZINSKI (BMPEG-CH)

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo, história de uma mundialização. Mourão, Cleonice Paes Barreto; Santiago, Consuelo Fortes. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Edusp, 2014. 576p. Resenha de: SÁ, Charles. Os quatro cantos do mundo: história da globalização ibérica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.12 no.2, mai./ago. 2017.

Historiador francês, especialista no estudo das mentalidades, Serge Gruzinski já é conhecido há algum tempo em relação aos quadros historiográficos brasileiros. Suas obras abordam as múltiplas facetas da colonização espanhola na América, particularmente aquelas ligadas ao estudo da história do México. Ele desenvolve pesquisas que discutem a construção de um mundo novo pelos espanhóis e a intercessão de novos padrões culturais no mundo Ocidental a partir das conexões estabelecidas entre os mais diferentes povos dominados pelo Império Espanhol. Esse fenômeno, fruto do aparecimento de uma nova sociedade por meio da conquista espanhola da América e de outras regiões do globo, emergiu da junção entre pessoas de diferentes paragens do globo, unificadas pela imposição do Império castelhano durante a Idade Moderna.

Com livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras, seu último trabalho, lançado em 2004, na França, ganhou tradução brasileira no ano de 2014 pelas editoras da Universidade Federal de Minas Gerais (Editora UFMG) e da Universidade de São Paulo (Edusp).

A obra “As quatro partes do mundo” apresenta discussão assaz interessante sobre a junção do planeta pela égide espanhola. Ao estudar, de modo particular, o mundo dominado por Felipe II até Felipe IV, dialoga com a colonização ibérica nos quatro cantos do globo. Do México, ponto fulcral dos estudos, para a África, do Brasil para a Ásia, de Goa para o Japão e daí para Lisboa e Madri, muitas são as junções que o autor se propõe a analisar. O livro está dividido em quatro partes: mundialização ibérica; cadeia dos mundos; as coisas do mundo; e a esfera de cristal. Possui gama generosa de ilustrações, mapas e fotografias de objetos dos séculos XVI e XVII.

Seu trabalho realça vozes que sempre ficam esquecidas nos estudos mais clássicos e tradicionais. Ao invés de líderes, generais, vice-reis, governadores, conquistadores, entre tantos outros ‘grandes homens’, vê-se, aqui, povos, pessoas subalternas, mestiços. Ao invés de focar em conceitos, como exploração, colonização, dominantes e dominados, ele aborda o período a partir da ideia de ‘mestiçagem’. Este conceito, segundo Gruzinski, é o elemento que ganha força para que se entenda e se explique o desenvolvimento do mundo ibérico no Novo Mundo e em outras partes do globo. Da união entre povos de culturas distintas, resultante da imposição das leis, da religião, dos modos de vestir, do trabalho e do viver inerentes ao mundo ibérico, surgiu uma sociedade não europeia e nem indígena: mestiça.

Esse conceito é assim definido: “As mestiçagens são, em grande parte, constitutivas da monarquia. Estão aí onipresentes. São fenômenos de ordem social, econômica, religiosa e, sobretudo, política, tanto senão mais que processos culturais” (p. 48). Na América colonial, não há mais um mundo ameríndio, tampouco ibérico, o que ecoa é um universo multiétnico e plural. Essa diversidade aponta para caminhos e fronteiras que serão parte constitutiva do mundo contemporâneo. A Modernidade e os questionamentos do século XXI sobre identidade e direitos dos povos podem olhar para o Império ibérico e perceber nele semelhanças com os debates que aconteciam no mundo dos Felipes. Nesse sentido, o diálogo hoje existente sobre o direito à identidade dos povos tem um de seus prelúdios nos primórdios da colonização ibérica em terras americanas. A necessidade de compreender o outro no período filipino foi feita por funcionários, clérigos e intelectuais, isso, porém, nem sempre significou tolerância ou respeito para com outras culturas.

Outro conceito interessante para aqueles que estudam a colonização ibérica é o de ‘mobilização’. Mais do que uma expansão, cuja ideia eurocêntrica tende a ver este povo como os mais destacados no processo de formação do Novo Mundo, a ideia defendida pelo autor para a colonização é a de uma mobilização em profundidade, a qual “provoca movimentos e entusiasmos imponderados que se precipitam, uns e outros, sobre todo o globo” (p. 53), fenômeno este que não pode ser controlado pelos seres humanos, nem mesmo pelos poderosos. Ele escapa das mãos daqueles que governam, bem como dos governados, da mistura desse processo dialético, que exclui e também agrega, tudo é mesclado e se espalha. Mesmo os micróbios são internacionalizados. Para o autor, “esse movimento não conhece limites” (p. 53).

A mundialização promovida pelo império ibérico disseminou valores, ideias, pensamentos, costumes, trabalho. Artesãos indígenas começaram a fazer uso de técnicas europeias; materiais feitos na América passaram a ser utilizados na África e na Ásia. Em pouco tempo, a habilidade dessas pessoas superava a dos europeus: roupas, alimentos, casas, pinturas, metais, temperos, tudo era assimilado e reproduzido. Mesclavam-se aos saberes ibéricos aqueles provenientes do mundo indígena, assim como valores vindos da África e da Ásia. Novos conhecimentos e produtos eram feitos. No entanto, quando pressentiam que estavam perdendo o saber para os mestiços, os europeus impunham, então, sua força: se não podiam dominar por meio do conhecimento, passavam a ter o controle da fabricação. Artesãos e trabalhadores eram cooptados pelos espanhóis para suas oficinas. O trabalho braçal e o fruto do saber mestiço foram dominados pelos castelhanos.

O mundo ibérico fez circular livros e saberes. O local e o global passaram a dialogar. Um indígena no Novo México falava das lutas e das disputas referentes ao trono espanhol. Um monge português apresentava sua visão sobre a Índia. Povos africanos eram explicados nas cortes europeias por viajantes vindos da América portuguesa, enquanto nas igrejas e em conventos da América meninos oriundos de aldeias ou assentamentos indígenas desenvolviam os saberes e os valores da religião transmitida da Europa.

Nesse cenário de povos e de culturas, as revoltas foram componentes intrínsecos ao sistema imperial. Membros da Igreja e governadores travavam embates pelo domínio dos novos espaços de conquista. Na Europa, a crise econômica da coroa espanhola no século XVII, consequência da guerra contra a França e a Holanda, fez com que as reformas propostas pelo ministro e cardeal Duque de Olivares encontrassem forte oposição na população mestiça no Novo Mundo. O aumento de impostos e a retirada de privilégios desse grupo, que não era composto nem por indígenas nem por espanhóis, fez com que a cidade do México entrasse em convulsão. Conexões envolvendo a mundialização de povos e economias tornaram-se parte do cotidiano da sociedade, a qual, por sua vez, não era harmônica ou subserviente. Desse modo, a contestação às leis e às ordens foi uma constante no mundo colonial ibérico.

Outro elemento que a mundialização erigida pelo Império ibérico estabeleceu foi a relativização do saber antigo. O mundo não mais se concebia como sendo plano ou com seres demoníacos em suas águas. Povos, bem como a fauna e a flora dos quatro continentes, são entendidos como pertencentes a uma mesma natureza. A difusão dos saberes e dos conhecimentos da Antiguidade foi o contraponto à sua relativização. Nas quatro partes do mundo, ouvia-se falar da Grécia e de Roma e, dessa maneira, a história europeia difundia-se entre povos não europeus, com as implicações que esse tipo de visão eurocêntrica trouxe para a compreensão da própria historicidade dos povos dominados pelos ibéricos. Da cidade do México a Goa, bebia-se dos valores da Antiguidade e dos padres da Igreja Católica. Uma sociedade paternalista, patriarcal e culturalmente judaico-cristã foi aí forjada, valores fundamentais para a cultura local foram realocados ou então dizimados, juntamente com os povos que o professavam.

Em um mundo que se globaliza cada vez mais, o pertencimento a um lugar continua sendo um item considerável. Ao se tornarem cidadãos do mundo, os ibéricos nem por isso deixavam de ser habitantes dessa península, pois o conhecimento por eles produzidos tinha em sua formação católica e europeia a base segundo a qual as relações e as novas concepções de mundo eram efetuadas. Os experts eram compostos por indivíduos europeus ou mestiços que pensavam esse novo mundo. Estes, por sua vez, eram oriundos da Igreja ou dos quadros administrativos do Império e dialogavam, por meio de seus livros e de viagens com esse novo universo que se abria para eles. Nesse contexto, emergiam novas elites: soldados, mulatos, comerciantes, fazendeiros, pessoas da pequena nobreza. Por meio do trabalho realizado em diversas partes do Império, efetivavam com suas ações e ideias o amálgama que concede unidade em meio à diversidade e ajudavam a compor as costuras que forjavam o império filipino.

As ideias e concepções vindas da Europa encontravam solo fértil no Novo Mundo, na África e na Ásia. Aristóteles e o tomismo da escolástica eram ensinados, debatidos e reproduzidos nos colégios e espaços acadêmicos do Império. Franciscanos, Jesuítas, Dominicanos, entre outras ordens religiosas, divulgavam e faziam com que se conhecessem as ideias advindas da Antiguidade grecoromana. Quadros, pinturas, poemas, tratados, esculturas e muitos outros objetos de arte reproduziam a concepção cristã e Ocidental de mundo.

Da mesma maneira que as artes e a fé se globalizavam, a língua também seguia o mesmo ritmo. Latim, português e castelhano tornaram-se o meio oficial de comunicação entre povos diversos. No entanto, estas línguas sofriam por um processo de hibridização: ao serem faladas por povos de outras regiões do globo, incorporavam elementos desses novos grupos. No Brasil, a Língua Geral, mescla da língua portuguesa com a língua tupi, foi o veículo pelo qual seus habitantes se comunicavam até a segunda metade do século XVIII.

Fé e linguagem uniram-se nas tentativas que jesuítas e demais ordens religiosas empreenderam para a propagação da Igreja Católica. Ao tentarem ver, nas crenças e nos valores dos povos que buscavam converter, elementos que possibilitassem exemplificar os ensinamentos de Cristo, houve, em muitos momentos, resultados inesperados. A partir do diálogo com crenças e cultos estrangeiros, alguns religiosos terminaram por adentrar em áreas que beiravam à heresia.

Em sua obra, Serge Gruzinski desenvolve a todo o momento uma escrita que direciona o leitor ao diálogo com outra época. Na tentativa de dominar as quatro partes do mundo, a monarquia católica da Espanha quase conseguiu seu intento. O tempo, esse monstro voraz, e as condições políticas e econômicas da Europa, bem como as resistências enfrentadas na África e na Ásia, contribuíram para que esse projeto não se concretizasse. Ainda assim, o contexto e as ideias da mundialização ibérica vicejam ainda hoje em nossa sociedade contemporânea, quer seja em seus filmes, obra de artes, romances, na linguagem e em atitudes que estão presentes em uma parte significativa do planeta.

A abordagem que se pretende na obra peca em um ponto: apesar de escrever sobre as diversas partes que compunham o Império espanhol, nota-se, ao longo de toda a obra, maior desenvolvimento de conceitos e de fatos circunscritos ao universo mexicano. Outras partes da América espanhola são menos abordadas do que a área do antigo império asteca. Nesse sentido, nota-se o olhar do especialista, já que Gruzinski tem como principal área de pesquisa o estudo da sociedade mexicana colonial.

Entender a globalização ibérica nos séculos XVI e XVII pode nos levar a refletir sobre a globalização capitalista em nossos dias. Ao adentrar em um mundo que se foi, percebe-se sua permanência. Discussões que foram aventadas na Espanha dos Felipes seguem ainda presentes nas sociedades da pós-modernidade. Dessa forma, a leitura da obra pode revelar formas de diálogos que devem ser buscadas na sociedade atual, bem como mecanismos de exploração que, ao persistirem, devem ser combatidos e extirpados. Boa leitura!

Charles Sá – Universidade do Estado da Bahia. E-mail: [email protected]

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O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades – OLIVEIRA FILHO (BMPEG-CH)

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. 384p. Resenha de: ROSA, Marlise. O nascimento do Brasil: releituras a partir da antropologia histórica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.12, n.2, mai./ago. 2017.

O livro “O nascimento do Brasil e outros ensaios: ‘pacificação’, regime tutelar e formação de alteridades”, organizado pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho, reúne artigos de sua autoria, escritos em diferentes momentos de sua carreira. Professor-titular de Etnologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), com mais de quatro décadas de experiência em pesquisas sobre povos indígenas da Amazônia e do Nordeste, nos últimos anos vem desenvolvendo estudos relacionados à antropologia do colonialismo e à antropologia histórica, concentrando-se, principalmente, no processo de formação nacional, na historiografia, em museus e em coleções etnográficas. Nesta obra, resultado destas reflexões, o autor nos apresenta, além de um denso prefácio, outros nove textos, nos quais busca “[…] reexaminar criticamente as interpretações atribuídas à presença indígena, explicitando as múltiplas formas de agência e participação que as populações autóctones tiveram na construção da nação” (p. 7). Por meio deste exercício, João Pacheco de Oliveira Filho chama a atenção para a inexistência de uma história indígena singular e contínua, demonstrando haver uma multiplicidade de histórias, com experiências e temporalidades diversas.

A reflexão introdutória, de certo modo, consiste em um capítulo à parte, no qual o autor não somente problematiza as formas de incorporação dos índios à história e a participação deles à formação do Brasil, mas também critica o próprio fazer antropológico, que negligenciou os modos pelos quais, mesmo em um contexto de dominação, os indígenas resistiram, organizaram-se e continuaram a atualizar sua cultura. Afirma, portanto, que houve uma anistia aos aspectos violentos da colonização por parte de intelectuais não indígenas, ao fazerem do relativismo a ferramenta única de seu horizonte ideológico e inviabilizarem a elaboração de etnografias sobre a tutela. Fala, ainda, sobre os múltiplos regimes de memória e a necessidade de entender a presença indígena em cada um dos contextos históricos em que tais representações foram formuladas. Nestes regimes, os indígenas são relatados como portadores de características variáveis, que podem, inclusive, ser antagônicas em contextos diferentes e sucessivos, pois cada fala corresponde a um regime específico. Por isso, o pesquisador não pode se fixar em apenas um deles, devendo também se beneficiar de pesquisas antropológicas e históricas contemporâneas.

No primeiro capítulo – “O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma etnográfico” –, como o título sugere, o autor propõe uma revisão do paradigma historiográfico utilizado, a fim de compreender a presença indígena no Brasil atual, que, segundo ele, é baseado em categorias coloniais e em imagens reificadoras, sem utilidade à pesquisa e ao aumento do protagonismo indígena. Tais narrativas apresentam três grandes equívocos: 1) independentemente do período histórico, de região ou de etnia, os discursos sobre os indígenas passam pela polaridade proteção versus extermínio, legitimando, assim, a tutela; 2) a paz, enquanto objetivo da ação colonial, corresponde a um estado jurídico-administrativo que reflete apenas o ponto de vista dos colonizadores, negligenciando os modos como os indígenas recepcionam e se utilizam destas normas; 3) há o estabelecimento de uma clivagem radical entre índios e não índios, inspirado no modelo religioso de pagão versus cristão, que, diferentemente da questão do negro, não admite misturas, sobreposições ou alternâncias. Estes discursos, portanto, legitimam e naturalizam a ação tutelar, inviabilizando formas de resistência cultural e omitindo situações de incorporação de indígenas a famílias brancas.

Na sequência, com o artigo “As mortes do indígena no Império do Brasil: indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, Oliveira Filho constrói uma reflexão sobre narrativas e imagens de indígenas produzidas no século XIX, sobretudo durante o Segundo Reinado, momento no qual os ‘índios bravos’, por representarem empecilho para a expansão colonial, tornaram-se o centro do regime discursivo. As manifestações artísticas e expressões populares analisadas pelo autor indicam um conjunto de seis eixos geradores de sentido: 1) o nativismo; 2) a nobreza pretérita dos indígenas; 3) a morte gloriosa dos guerreiros; 4) o índio como elemento exterior à fundação do país; 5) a morte como o destino trágico dos indígenas; 6) a morte ‘quase vegetal’ do indígena. Em todas estas narrativas e imagens, a morte como elemento central tem efeitos sociais que implicam o esquecimento da presença indígena na construção da nacionalidade, relegando ao índio um lugar na história anterior ao Brasil.

No capítulo três – “A conquista do Vale Amazônico: fronteira, mercado internacional e modalidade de trabalho compulsório” –, contrapondo-se ao que denomina como “história geral” da borracha na Amazônia, Oliveira Filho propõe que o seringal seja pensado como uma fronteira, “[…] isto é, como um mecanismo de ocupação de novas terras e de sua incorporação, em condição subordinada, dentro de uma economia de mercado” (p. 118). O pesquisador demonstra que, devido às condições favoráveis do mercado internacional da borracha em meados do século passado, o ‘seringal de caboclo’ transformou-se no ‘seringal do apogeu’, instaurando uma nova modalidade de trabalho compulsório e de usos distintos da terra e dos recursos naturais. Diante disso, defende que a história da Amazônia, ao ser escrita a partir da fronteira, contemplaria não somente a heterogeneidade deste processo histórico, mas também a pluralidade de sentidos assumidos pelos agentes que lhe foram contemporâneos.

A ideia de fronteira continua sendo seu objeto de análise no capítulo seguinte – “Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia: uma perspectiva processual da fronteira” –, voltado para a análise das representações sobre as populações indígenas amazônicas e sobre a expansão da fronteira nesta região. Para o autor, a singularidade histórica da Amazônia só pode ser entendida quando são analisadas as diferentes formas de fronteiras que ocorreram no Brasil, com características e temporalidades distintas. Sua reflexão é iniciada com a problematização dos dois modelos de colonização vigentes na América portuguesa – a colônia do Brasil e a do Maranhão e Grão-Pará –, abordando, na sequência, as representações sobre o primeiro encontro nas “costas do litoral atlântico e no interior do vale amazônico” até chegar ao cerne do artigo, apresentando “[…] diferentes temporalidades, narrativas e regimes que singularizam essa trajetória histórica das populações autóctones da Amazônia até o momento atual” (p. 185).

No capítulo cinco, Oliveira Filho muda o foco para os povos indígenas do Nordeste, apresentando o artigo “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, trabalho muito conhecido, escrito em 1997 para o concurso ao cargo de professor-titular do MN-UFRJ. Nele, o autor problematiza a ‘emergência’ de novas identidades étnicas no Nordeste, chamando a atenção para o fato de que, embora este fenômeno seja recente, a população se considera originária – são coletividades indígenas convertidas ao cristianismo e que, hoje, vivem como camponeses, parceiros e assalariados. Sua reflexão perpassa questões referentes à formação do objeto de investigação – os ‘índios do Nordeste’ –, discute conceitos-chave para a análise da etnicidade e, por fim, debate a respeito do americanismo, refletindo sobre as perspectivas para o estudo de populações tidas como culturalmente ‘misturadas’.

O capítulo seguinte – “Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação de fronteiras étnicas” – consiste na análise, a partir de três aspectos específicos, de materiais quantitativos produzidos sobre os povos indígenas. O primeiro é o aspecto demográfico, apresentado por meio de censos nacionais e outros levantamentos; o segundo é o aspecto econômico, representado por meio de dados sobre terras, recursos naturais e conflitos fundiários; e o terceiro é representado pelas divergências em torno da compreensão da presença indígena nos dias atuais. Conforme o autor, o ato de contar sujeitos e processos sociais traz, implícito, os procedimentos de comparação e de normatização; o primeiro como parte do processo cognitivo e o outro como parte do ordenamento político. O ato de contar, portanto, quando realizado por um sujeito que detém algum tipo de poder ou autoridade sobre aqueles a quem observa, arbitra sobre direitos e, no que toca aos povos indígenas, “atropela as alteridades e engendra os subalternos” (p. 230).

Tais dados, contudo, “[…] sugerem um novo perfil demográfico, em que as unidades societárias e a situação de contato dos índios brasileiros já não mais correspondem às antigas interpretações sobre frágeis microssociedades isoladas na floresta amazônica” (p. 265). Por isso, no capítulo seguinte – “Regime tutelar e globalização: um exercício de sociogênese dos atuais movimentos indígenas no Brasil” –, Oliveira Filho analisa o processo de formação do movimento indígena brasileiro, identificando algumas estratégias, alianças e projetos que compõem o universo político contemporâneo. Sinteticamente, o autor agrupa as estratégias políticas dos indígenas a partir de três rótulos: índios funcionários, lideranças e organizações indígenas. Estas estratégias têm em comum a luta por uma cidadania indígena, construída por meio do território étnico; porém, divergem no que toca ao fortalecimento da sociedade civil e à defesa de interesses corporativos.

No oitavo capítulo – “Sem a tutela, uma nova moldura de nação” –, a reflexão tem como tema os dispositivos jurídicos que tratam das populações indígenas. O autor fala sobre os embates de forças durante o processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, destacando a importância atribuída aos índios, bem como o protagonismo indígena, com presença massiva nas audiências públicas, em subcomissões e no debate diário com os parlamentares. Destaca, ainda, a originalidade da nova Constituição, quando comparada a outros marcos jurídicos voltados à regularização da presença indígena na história do Brasil. Em diálogo com a ciência política e a história, o artigo demonstra que a questão indígena impacta não somente os próprios índios, estendendo-se à estruturação do Estado e ao processo de construção de uma identidade nacional.

Para concluir, Oliveira Filho apresenta o texto “Pacificação e tutela militar na gestão de populações e territórios”, cuja proposta é refletir sobre alguns usos, presentes e passados, da categoria ‘pacificação’. A sua intenção é analisar como esta categoria, por cinco séculos empregada apenas para a população autóctone, foi divulgada e celebrada como intervenção do poder público nas favelas cariocas. Em sua concepção, há uma clara analogia entre as ‘pacificações’ contemporâneas e as coloniais, pois ambas fazem referência à intervenção dos poderes públicos em áreas que antes escapavam ao seu domínio, recuperando “[…] a retórica da missão civilizatória da elite dirigente e dos agentes do Estado” (p. 338). Assim como os índios bravos da época colonial, os moradores das favelas são pensados como uma alteridade totalizadora, situada nos limites da criminalidade, por isso não são tratados como cidadãos comuns, sendo sujeitados a uma tutela de natureza exclusivamente militar e repressiva, implementada por meio das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

A intenção do autor, nesta obra, foi abordar os fenômenos sociais a partir de uma postura etnográfica e dialógica, conjugando o olhar antropológico e a crítica historiográfica. Esse movimento rumo à chamada ‘antropologia histórica’, como ele mesmo destaca, reúne um conjunto de antropólogos, de diferentes países, que convergem no desconforto com relação ao antigo olhar imperial da disciplina e, por isso, propõem novos objetos de investigação e novas abordagens.

A inserção de Oliveira Filho nessa seara não se dá com o intuito de contrapor a história nacional, mas sim de – ao contemplar situações históricas e eventos em que agentes com interesses antagônicos interagem – demonstrar que, conjuntamente, esses sujeitos constroem instituições, significados e estratégias. Em outras palavras, é perceber que os sujeitos imersos nesse encontro colonial estão, apesar das assimetrias do contato, igualmente envolvidos no processo de intercâmbio cultural. Ele chama a atenção, portanto, para a necessidade de revermos, de forma crítica, os modos de construção de uma história nacional e as etnificações produzidas pelo saber colonial.

Por tudo isso, os diferentes eventos, personagens e momentos da história dos indígenas no Brasil analisados nesta obra, bem como as particularidades dos olhares empregados, fazem de “O nascimento do Brasil e outros ensaios” uma leitura fundamental, não somente para os estudiosos do tema, mas também para aqueles que se interessam por uma outra história de nosso país, que reconheça e problematize a dissonância entre os fatos concretos e as grandes interpretações.

Marlise Rosa – Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades – OLIVEIRA FILHO (BMPEG-CH)

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. 384p. il. color, ISBN: 978-85-7740-206-9.

O livro “O nascimento do Brasil e outros ensaios: ‘pacificação’, regime tutelar e formação de alteridades”, organizado pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho, reúne artigos de sua autoria, escritos em diferentes momentos de sua carreira. Professor-titular de Etnologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), com mais de quatro décadas de experiência em pesquisas sobre povos indígenas da Amazônia e do Nordeste, nos últimos anos vem desenvolvendo estudos relacionados à antropologia do colonialismo e à antropologia histórica, concentrando-se, principalmente, no processo de formação nacional, na historiografia, em museus e em coleções etnográficas. Nesta obra, resultado destas reflexões, o autor nos apresenta, além de um denso prefácio, outros nove textos, nos quais busca “[…] reexaminar criticamente as interpretações atribuídas à presença indígena, explicitando as múltiplas formas de agência e participação que as populações autóctones tiveram na construção da nação” (p. 7). Por meio deste exercício, João Pacheco de Oliveira Filho chama a atenção para a inexistência de uma história indígena singular e contínua, demonstrando haver uma multiplicidade de histórias, com experiências e temporalidades diversas.

A reflexão introdutória, de certo modo, consiste em um capítulo à parte, no qual o autor não somente problematiza as formas de incorporação dos índios à história e a participação deles à formação do Brasil, mas também critica o próprio fazer antropológico, que negligenciou os modos pelos quais, mesmo em um contexto de dominação, os indígenas resistiram, organizaram-se e continuaram a atualizar sua cultura. Afirma, portanto, que houve uma anistia aos aspectos violentos da colonização por parte de intelectuais não indígenas, ao fazerem do relativismo a ferramenta única de seu horizonte ideológico e inviabilizarem a elaboração de etnografias sobre a tutela. Fala, ainda, sobre os múltiplos regimes de memória e a necessidade de entender a presença indígena em cada um dos contextos históricos em que tais representações foram formuladas. Nestes regimes, os indígenas são relatados como portadores de características variáveis, que podem, inclusive, ser antagônicas em contextos diferentes e sucessivos, pois cada fala corresponde a um regime específico. Por isso, o pesquisador não pode se fixar em apenas um deles, devendo também se beneficiar de pesquisas antropológicas e históricas contemporâneas.

No primeiro capítulo – “O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma etnográfico” –, como o título sugere, o autor propõe uma revisão do paradigma historiográfico utilizado, a fim de compreender a presença indígena no Brasil atual, que, segundo ele, é baseado em categorias coloniais e em imagens reificadoras, sem utilidade à pesquisa e ao aumento do protagonismo indígena. Tais narrativas apresentam três grandes equívocos: 1) independentemente do período histórico, de região ou de etnia, os discursos sobre os indígenas passam pela polaridade proteção versus extermínio, legitimando, assim, a tutela; 2) a paz, enquanto objetivo da ação colonial, corresponde a um estado jurídico-administrativo que reflete apenas o ponto de vista dos colonizadores, negligenciando os modos como os indígenas recepcionam e se utilizam destas normas; 3) há o estabelecimento de uma clivagem radical entre índios e não índios, inspirado no modelo religioso de pagão versus cristão, que, diferentemente da questão do negro, não admite misturas, sobreposições ou alternâncias. Estes discursos, portanto, legitimam e naturalizam a ação tutelar, inviabilizando formas de resistência cultural e omitindo situações de incorporação de indígenas a famílias brancas.

Na sequência, com o artigo “As mortes do indígena no Império do Brasil: indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, Oliveira Filho constrói uma reflexão sobre narrativas e imagens de indígenas produzidas no século XIX, sobretudo durante o Segundo Reinado, momento no qual os ‘índios bravos’, por representarem empecilho para a expansão colonial, tornaram-se o centro do regime discursivo. As manifestações artísticas e expressões populares analisadas pelo autor indicam um conjunto de seis eixos geradores de sentido: 1) o nativismo; 2) a nobreza pretérita dos indígenas; 3) a morte gloriosa dos guerreiros; 4) o índio como elemento exterior à fundação do país; 5) a morte como o destino trágico dos indígenas; 6) a morte ‘quase vegetal’ do indígena. Em todas estas narrativas e imagens, a morte como elemento central tem efeitos sociais que implicam o esquecimento da presença indígena na construção da nacionalidade, relegando ao índio um lugar na história anterior ao Brasil.

No capítulo três – “A conquista do Vale Amazônico: fronteira, mercado internacional e modalidade de trabalho compulsório” –, contrapondo-se ao que denomina como “história geral” da borracha na Amazônia, Oliveira Filho propõe que o seringal seja pensado como uma fronteira, “[…] isto é, como um mecanismo de ocupação de novas terras e de sua incorporação, em condição subordinada, dentro de uma economia de mercado” (p. 118). O pesquisador demonstra que, devido às condições favoráveis do mercado internacional da borracha em meados do século passado, o ‘seringal de caboclo’ transformou-se no ‘seringal do apogeu’, instaurando uma nova modalidade de trabalho compulsório e de usos distintos da terra e dos recursos naturais. Diante disso, defende que a história da Amazônia, ao ser escrita a partir da fronteira, contemplaria não somente a heterogeneidade deste processo histórico, mas também a pluralidade de sentidos assumidos pelos agentes que lhe foram contemporâneos.

A ideia de fronteira continua sendo seu objeto de análise no capítulo seguinte – “Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia: uma perspectiva processual da fronteira” –, voltado para a análise das representações sobre as populações indígenas amazônicas e sobre a expansão da fronteira nesta região. Para o autor, a singularidade histórica da Amazônia só pode ser entendida quando são analisadas as diferentes formas de fronteiras que ocorreram no Brasil, com características e temporalidades distintas. Sua reflexão é iniciada com a problematização dos dois modelos de colonização vigentes na América portuguesa – a colônia do Brasil e a do Maranhão e Grão-Pará –, abordando, na sequência, as representações sobre o primeiro encontro nas “costas do litoral atlântico e no interior do vale amazônico” até chegar ao cerne do artigo, apresentando “[…] diferentes temporalidades, narrativas e regimes que singularizam essa trajetória histórica das populações autóctones da Amazônia até o momento atual” (p. 185).

No capítulo cinco, Oliveira Filho muda o foco para os povos indígenas do Nordeste, apresentando o artigo “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, trabalho muito conhecido, escrito em 1997 para o concurso ao cargo de professor-titular do MN-UFRJ. Nele, o autor problematiza a ‘emergência’ de novas identidades étnicas no Nordeste, chamando a atenção para o fato de que, embora este fenômeno seja recente, a população se considera originária – são coletividades indígenas convertidas ao cristianismo e que, hoje, vivem como camponeses, parceiros e assalariados. Sua reflexão perpassa questões referentes à formação do objeto de investigação – os ‘índios do Nordeste’ –, discute conceitos-chave para a análise da etnicidade e, por fim, debate a respeito do americanismo, refletindo sobre as perspectivas para o estudo de populações tidas como culturalmente ‘misturadas’.

O capítulo seguinte – “Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação de fronteiras étnicas” – consiste na análise, a partir de três aspectos específicos, de materiais quantitativos produzidos sobre os povos indígenas. O primeiro é o aspecto demográfico, apresentado por meio de censos nacionais e outros levantamentos; o segundo é o aspecto econômico, representado por meio de dados sobre terras, recursos naturais e conflitos fundiários; e o terceiro é representado pelas divergências em torno da compreensão da presença indígena nos dias atuais. Conforme o autor, o ato de contar sujeitos e processos sociais traz, implícito, os procedimentos de comparação e de normatização; o primeiro como parte do processo cognitivo e o outro como parte do ordenamento político. O ato de contar, portanto, quando realizado por um sujeito que detém algum tipo de poder ou autoridade sobre aqueles a quem observa, arbitra sobre direitos e, no que toca aos povos indígenas, “atropela as alteridades e engendra os subalternos” (p. 230).

Tais dados, contudo, “[…] sugerem um novo perfil demográfico, em que as unidades societárias e a situação de contato dos índios brasileiros já não mais correspondem às antigas interpretações sobre frágeis microssociedades isoladas na floresta amazônica” (p. 265). Por isso, no capítulo seguinte – “Regime tutelar e globalização: um exercício de sociogênese dos atuais movimentos indígenas no Brasil” –, Oliveira Filho analisa o processo de formação do movimento indígena brasileiro, identificando algumas estratégias, alianças e projetos que compõem o universo político contemporâneo. Sinteticamente, o autor agrupa as estratégias políticas dos indígenas a partir de três rótulos: índios funcionários, lideranças e organizações indígenas. Estas estratégias têm em comum a luta por uma cidadania indígena, construída por meio do território étnico; porém, divergem no que toca ao fortalecimento da sociedade civil e à defesa de interesses corporativos.

No oitavo capítulo – “Sem a tutela, uma nova moldura de nação” –, a reflexão tem como tema os dispositivos jurídicos que tratam das populações indígenas. O autor fala sobre os embates de forças durante o processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, destacando a importância atribuída aos índios, bem como o protagonismo indígena, com presença massiva nas audiências públicas, em subcomissões e no debate diário com os parlamentares. Destaca, ainda, a originalidade da nova Constituição, quando comparada a outros marcos jurídicos voltados à regularização da presença indígena na história do Brasil. Em diálogo com a ciência política e a história, o artigo demonstra que a questão indígena impacta não somente os próprios índios, estendendo-se à estruturação do Estado e ao processo de construção de uma identidade nacional.

Para concluir, Oliveira Filho apresenta o texto “Pacificação e tutela militar na gestão de populações e territórios”, cuja proposta é refletir sobre alguns usos, presentes e passados, da categoria ‘pacificação’. A sua intenção é analisar como esta categoria, por cinco séculos empregada apenas para a população autóctone, foi divulgada e celebrada como intervenção do poder público nas favelas cariocas. Em sua concepção, há uma clara analogia entre as ‘pacificações’ contemporâneas e as coloniais, pois ambas fazem referência à intervenção dos poderes públicos em áreas que antes escapavam ao seu domínio, recuperando “[…] a retórica da missão civilizatória da elite dirigente e dos agentes do Estado” (p. 338). Assim como os índios bravos da época colonial, os moradores das favelas são pensados como uma alteridade totalizadora, situada nos limites da criminalidade, por isso não são tratados como cidadãos comuns, sendo sujeitados a uma tutela de natureza exclusivamente militar e repressiva, implementada por meio das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

A intenção do autor, nesta obra, foi abordar os fenômenos sociais a partir de uma postura etnográfica e dialógica, conjugando o olhar antropológico e a crítica historiográfica. Esse movimento rumo à chamada ‘antropologia histórica’, como ele mesmo destaca, reúne um conjunto de antropólogos, de diferentes países, que convergem no desconforto com relação ao antigo olhar imperial da disciplina e, por isso, propõem novos objetos de investigação e novas abordagens.

A inserção de Oliveira Filho nessa seara não se dá com o intuito de contrapor a história nacional, mas sim de – ao contemplar situações históricas e eventos em que agentes com interesses antagônicos interagem – demonstrar que, conjuntamente, esses sujeitos constroem instituições, significados e estratégias. Em outras palavras, é perceber que os sujeitos imersos nesse encontro colonial estão, apesar das assimetrias do contato, igualmente envolvidos no processo de intercâmbio cultural. Ele chama a atenção, portanto, para a necessidade de revermos, de forma crítica, os modos de construção de uma história nacional e as etnificações produzidas pelo saber colonial.

Por tudo isso, os diferentes eventos, personagens e momentos da história dos indígenas no Brasil analisados nesta obra, bem como as particularidades dos olhares empregados, fazem de “O nascimento do Brasil e outros ensaios” uma leitura fundamental, não somente para os estudiosos do tema, mas também para aqueles que se interessam por uma outra história de nosso país, que reconheça e problematize a dissonância entre os fatos concretos e as grandes interpretações.

Marlise RosaUniversidade Federal do Rio de Janeiro([email protected])

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. Hum. vol.12 no.2 Belém May/Aug. 2017.

 

As quatro partes do mundo: história de uma mundialização – GRUZINSKI (BMPEG-CH)

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Edusp, 2014. 576p. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Resenha de: SÁ, Charles. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas. vol.12 no.2 Belém May/Aug. 2017.

Historiador francês, especialista no estudo das mentalidades, Serge Gruzinski já é conhecido há algum tempo em relação aos quadros historiográficos brasileiros. Suas obras abordam as múltiplas facetas da colonização espanhola na América, particularmente aquelas ligadas ao estudo da história do México. Ele desenvolve pesquisas que discutem a construção de um mundo novo pelos espanhóis e a intercessão de novos padrões culturais no mundo Ocidental a partir das conexões estabelecidas entre os mais diferentes povos dominados pelo Império Espanhol. Esse fenômeno, fruto do aparecimento de uma nova sociedade por meio da conquista espanhola da América e de outras regiões do globo, emergiu da junção entre pessoas de diferentes paragens do globo, unificadas pela imposição do Império castelhano durante a Idade Moderna.

Com livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras, seu último trabalho, lançado em 2004, na França, ganhou tradução brasileira no ano de 2014 pelas editoras da Universidade Federal de Minas Gerais (Editora UFMG) e da Universidade de São Paulo (Edusp).

A obra “As quatro partes do mundo” apresenta discussão assaz interessante sobre a junção do planeta pela égide espanhola. Ao estudar, de modo particular, o mundo dominado por Felipe II até Felipe IV, dialoga com a colonização ibérica nos quatro cantos do globo. Do México, ponto fulcral dos estudos, para a África, do Brasil para a Ásia, de Goa para o Japão e daí para Lisboa e Madri, muitas são as junções que o autor se propõe a analisar. O livro está dividido em quatro partes: mundialização ibérica; cadeia dos mundos; as coisas do mundo; e a esfera de cristal. Possui gama generosa de ilustrações, mapas e fotografias de objetos dos séculos XVI e XVII.

Seu trabalho realça vozes que sempre ficam esquecidas nos estudos mais clássicos e tradicionais. Ao invés de líderes, generais, vice-reis, governadores, conquistadores, entre tantos outros ‘grandes homens’, vê-se, aqui, povos, pessoas subalternas, mestiços. Ao invés de focar em conceitos, como exploração, colonização, dominantes e dominados, ele aborda o período a partir da ideia de ‘mestiçagem’. Este conceito, segundo Gruzinski, é o elemento que ganha força para que se entenda e se explique o desenvolvimento do mundo ibérico no Novo Mundo e em outras partes do globo. Da união entre povos de culturas distintas, resultante da imposição das leis, da religião, dos modos de vestir, do trabalho e do viver inerentes ao mundo ibérico, surgiu uma sociedade não europeia e nem indígena: mestiça.

Esse conceito é assim definido: “As mestiçagens são, em grande parte, constitutivas da monarquia. Estão aí onipresentes. São fenômenos de ordem social, econômica, religiosa e, sobretudo, política, tanto senão mais que processos culturais” (p. 48). Na América colonial, não há mais um mundo ameríndio, tampouco ibérico, o que ecoa é um universo multiétnico e plural. Essa diversidade aponta para caminhos e fronteiras que serão parte constitutiva do mundo contemporâneo. A Modernidade e os questionamentos do século XXI sobre identidade e direitos dos povos podem olhar para o Império ibérico e perceber nele semelhanças com os debates que aconteciam no mundo dos Felipes. Nesse sentido, o diálogo hoje existente sobre o direito à identidade dos povos tem um de seus prelúdios nos primórdios da colonização ibérica em terras americanas. A necessidade de compreender o outro no período filipino foi feita por funcionários, clérigos e intelectuais, isso, porém, nem sempre significou tolerância ou respeito para com outras culturas.

Outro conceito interessante para aqueles que estudam a colonização ibérica é o de ‘mobilização’. Mais do que uma expansão, cuja ideia eurocêntrica tende a ver este povo como os mais destacados no processo de formação do Novo Mundo, a ideia defendida pelo autor para a colonização é a de uma mobilização em profundidade, a qual “provoca movimentos e entusiasmos imponderados que se precipitam, uns e outros, sobre todo o globo” (p. 53), fenômeno este que não pode ser controlado pelos seres humanos, nem mesmo pelos poderosos. Ele escapa das mãos daqueles que governam, bem como dos governados, da mistura desse processo dialético, que exclui e também agrega, tudo é mesclado e se espalha. Mesmo os micróbios são internacionalizados. Para o autor, “esse movimento não conhece limites” (p. 53).

A mundialização promovida pelo império ibérico disseminou valores, ideias, pensamentos, costumes, trabalho. Artesãos indígenas começaram a fazer uso de técnicas europeias; materiais feitos na América passaram a ser utilizados na África e na Ásia. Em pouco tempo, a habilidade dessas pessoas superava a dos europeus: roupas, alimentos, casas, pinturas, metais, temperos, tudo era assimilado e reproduzido. Mesclavam-se aos saberes ibéricos aqueles provenientes do mundo indígena, assim como valores vindos da África e da Ásia. Novos conhecimentos e produtos eram feitos. No entanto, quando pressentiam que estavam perdendo o saber para os mestiços, os europeus impunham, então, sua força: se não podiam dominar por meio do conhecimento, passavam a ter o controle da fabricação. Artesãos e trabalhadores eram cooptados pelos espanhóis para suas oficinas. O trabalho braçal e o fruto do saber mestiço foram dominados pelos castelhanos.

O mundo ibérico fez circular livros e saberes. O local e o global passaram a dialogar. Um indígena no Novo México falava das lutas e das disputas referentes ao trono espanhol. Um monge português apresentava sua visão sobre a Índia. Povos africanos eram explicados nas cortes europeias por viajantes vindos da América portuguesa, enquanto nas igrejas e em conventos da América meninos oriundos de aldeias ou assentamentos indígenas desenvolviam os saberes e os valores da religião transmitida da Europa.

Nesse cenário de povos e de culturas, as revoltas foram componentes intrínsecos ao sistema imperial. Membros da Igreja e governadores travavam embates pelo domínio dos novos espaços de conquista. Na Europa, a crise econômica da coroa espanhola no século XVII, consequência da guerra contra a França e a Holanda, fez com que as reformas propostas pelo ministro e cardeal Duque de Olivares encontrassem forte oposição na população mestiça no Novo Mundo. O aumento de impostos e a retirada de privilégios desse grupo, que não era composto nem por indígenas nem por espanhóis, fez com que a cidade do México entrasse em convulsão. Conexões envolvendo a mundialização de povos e economias tornaram-se parte do cotidiano da sociedade, a qual, por sua vez, não era harmônica ou subserviente. Desse modo, a contestação às leis e às ordens foi uma constante no mundo colonial ibérico.

Outro elemento que a mundialização erigida pelo Império ibérico estabeleceu foi a relativização do saber antigo. O mundo não mais se concebia como sendo plano ou com seres demoníacos em suas águas. Povos, bem como a fauna e a flora dos quatro continentes, são entendidos como pertencentes a uma mesma natureza. A difusão dos saberes e dos conhecimentos da Antiguidade foi o contraponto à sua relativização. Nas quatro partes do mundo, ouvia-se falar da Grécia e de Roma e, dessa maneira, a história europeia difundia-se entre povos não europeus, com as implicações que esse tipo de visão eurocêntrica trouxe para a compreensão da própria historicidade dos povos dominados pelos ibéricos. Da cidade do México a Goa, bebia-se dos valores da Antiguidade e dos padres da Igreja Católica. Uma sociedade paternalista, patriarcal e culturalmente judaico-cristã foi aí forjada, valores fundamentais para a cultura local foram realocados ou então dizimados, juntamente com os povos que o professavam.

Em um mundo que se globaliza cada vez mais, o pertencimento a um lugar continua sendo um item considerável. Ao se tornarem cidadãos do mundo, os ibéricos nem por isso deixavam de ser habitantes dessa península, pois o conhecimento por eles produzidos tinha em sua formação católica e europeia a base segundo a qual as relações e as novas concepções de mundo eram efetuadas. Os experts eram compostos por indivíduos europeus ou mestiços que pensavam esse novo mundo. Estes, por sua vez, eram oriundos da Igreja ou dos quadros administrativos do Império e dialogavam, por meio de seus livros e de viagens com esse novo universo que se abria para eles. Nesse contexto, emergiam novas elites: soldados, mulatos, comerciantes, fazendeiros, pessoas da pequena nobreza. Por meio do trabalho realizado em diversas partes do Império, efetivavam com suas ações e ideias o amálgama que concede unidade em meio à diversidade e ajudavam a compor as costuras que forjavam o império filipino.

As ideias e concepções vindas da Europa encontravam solo fértil no Novo Mundo, na África e na Ásia. Aristóteles e o tomismo da escolástica eram ensinados, debatidos e reproduzidos nos colégios e espaços acadêmicos do Império. Franciscanos, Jesuítas, Dominicanos, entre outras ordens religiosas, divulgavam e faziam com que se conhecessem as ideias advindas da Antiguidade grecoromana. Quadros, pinturas, poemas, tratados, esculturas e muitos outros objetos de arte reproduziam a concepção cristã e Ocidental de mundo.

Da mesma maneira que as artes e a fé se globalizavam, a língua também seguia o mesmo ritmo. Latim, português e castelhano tornaram-se o meio oficial de comunicação entre povos diversos. No entanto, estas línguas sofriam por um processo de hibridização: ao serem faladas por povos de outras regiões do globo, incorporavam elementos desses novos grupos. No Brasil, a Língua Geral, mescla da língua portuguesa com a língua tupi, foi o veículo pelo qual seus habitantes se comunicavam até a segunda metade do século XVIII.

Fé e linguagem uniram-se nas tentativas que jesuítas e demais ordens religiosas empreenderam para a propagação da Igreja Católica. Ao tentarem ver, nas crenças e nos valores dos povos que buscavam converter, elementos que possibilitassem exemplificar os ensinamentos de Cristo, houve, em muitos momentos, resultados inesperados. A partir do diálogo com crenças e cultos estrangeiros, alguns religiosos terminaram por adentrar em áreas que beiravam à heresia.

Em sua obra, Serge Gruzinski desenvolve a todo o momento uma escrita que direciona o leitor ao diálogo com outra época. Na tentativa de dominar as quatro partes do mundo, a monarquia católica da Espanha quase conseguiu seu intento. O tempo, esse monstro voraz, e as condições políticas e econômicas da Europa, bem como as resistências enfrentadas na África e na Ásia, contribuíram para que esse projeto não se concretizasse. Ainda assim, o contexto e as ideias da mundialização ibérica vicejam ainda hoje em nossa sociedade contemporânea, quer seja em seus filmes, obra de artes, romances, na linguagem e em atitudes que estão presentes em uma parte significativa do planeta.

A abordagem que se pretende na obra peca em um ponto: apesar de escrever sobre as diversas partes que compunham o Império espanhol, nota-se, ao longo de toda a obra, maior desenvolvimento de conceitos e de fatos circunscritos ao universo mexicano. Outras partes da América espanhola são menos abordadas do que a área do antigo império asteca. Nesse sentido, nota-se o olhar do especialista, já que Gruzinski tem como principal área de pesquisa o estudo da sociedade mexicana colonial.

Entender a globalização ibérica nos séculos XVI e XVII pode nos levar a refletir sobre a globalização capitalista em nossos dias. Ao adentrar em um mundo que se foi, percebe-se sua permanência. Discussões que foram aventadas na Espanha dos Felipes seguem ainda presentes nas sociedades da pós-modernidade. Dessa forma, a leitura da obra pode revelar formas de diálogos que devem ser buscadas na sociedade atual, bem como mecanismos de exploração que, ao persistirem, devem ser combatidos e extirpados. Boa leitura!

Charles Sá – Universidade do Estado da Bahia ([email protected])

Historia comparada de las literaturas argentina y brasileña. Tomo I: De la colonia a la organización nacional (1808-1845) – CROCE (A-EN)

CROCE, Marcela (Dir.). Historia comparada de las literaturas argentina y brasileña. Tomo I: De la colonia a la organización nacional (1808-1845). Villa María: Eduvin, 2016. Resenha de: COUTINHO, Eduardo. Alea, Rio de Janeiro, v.19 n.1, jan./apr., 2017.

Embora as relações entre o Brasil e os países hispano-americanos estejam constituindo cada vez mais objeto de estudo, em especial nos planos econômico, social e político, essas relações ainda são muito tímidas no que diz respeito à esfera da cultura, e, mais particularmente, da produção literária. Sente-se falta de textos que abordem mais de perto a literatura brasileira e a dos diversos países hispano-americanos, focalizando, por uma perspectiva comparatista, suas semelhanças e diferenças, de modo a estabelecer-se um verdadeiro diálogo entre essas vozes. Têm surgido, nas últimas décadas, histórias literárias voltadas para a América Latina como um todo, que deixaram clara, pelo próprio uso do termo, sua preocupação em incluir o Brasil no conjunto – citem-se aqui as belíssimas séries Palavra, literatura e cultura (1993), organizada por Ana Pizarro, e Literary Cultures of Latin America: A Comparative History (2004), coordenada por Mario Valdés e Djelal Kadir. E lembre-se que, já na década de 1940 (mais precisamente em 1945), Heríquez Ureña expressou essa preocupação ao publicar a sua Corrientes literarias de América Latina, que incluía o Brasil. No entanto, o que prevalece em todas essas histórias é a noção mais ampla de “continente”, recorte adotado que não só justifica, como requer a referida inclusão.

É verdade que o conceito de “nação”, identificado a “estado-nação”, é hoje um conceito que não mais se sustenta do ponto de vista ontológico, como quiseram os adeptos do Iluminismo, mas que ainda tem uma existência sólida como construção discursiva e que se acha presente na maioria das instâncias da vida contemporânea, desde a configuração política dos países no contexto internacional, até os aspectos mais banais da vida cotidiana, como as competições desportivas e as festas que celebram aspectos que se dizem próprios da cultura de um povo. A nação política como construção calcada em interesses específicos do grupo que a constituiu continua atuando como referência nos discursos em voga nas mais variadas áreas do conhecimento, e o conceito segue desempenhando um papel crucial no panorama internacional. Na História, e mais especificamente na História Cultural e Literária, ele é muitas vezes complementado por outros conceitos, como o de “região cultural”, mas não é em momento algum abandonado. A “nação” permanece no contexto internacional como um conjunto que difere de outros por singularidades que, embora provisórias e plurais, atuam como marcas de diferenças. E são esses traços que, mesmo em sua variedade e provisoriedade, devem ser estudados ao abordar-se a produção de um país.

Historia comparada de las literaturas argentina y brasileña, que Marcela Croce organizou, e para a qual contribuiu também com a redação de diversos capítulos, sozinha ou em colaboração com outro estudioso da questão, é, nesse sentido, uma contribuição extraordinária e pioneira para o estudo da produção literária dos dois países. O Brasil e a Argentina são duas nações geograficamente vizinhas, que passaram por processos de colonização semelhantes, mas com diferenças também importantes, que obtiveram a independência política mais ou menos numa mesma época, mas continuaram dependentes do ponto de vista cultural e econômico, e que chegaram à modernidade com uma série de aspectos que as aproximam e, ao mesmo tempo, as distanciam. Essas semelhanças e diferenças em seu processo de constituição são o objeto de estudo dessa história literária que, entre seus muitos méritos, busca romper a barreira que infelizmente ainda perdura entre os dois países, e para a qual contribuiu inegavelmente a diferença idiomática, sobretudo quando comparamos com o que ocorreu entre os diversos países da América Hispânica.

Na estruturação do volume, que é, aliás, o primeiro de uma série de seis, a organizadora e seus colaboradores optaram por uma metodologia comparatista perfeitamente adequada ao diálogo que pretendiam estabelecer: a relação de semelhanças e diferenças entre as produções dos dois contextos. Foi feita uma seleção de textos literários que contribuíram para a formação de cada nação, e de pontos de encontros e desencontros na história cultural dos dois países, e construiu-se um contraponto rico e instigante, sempre baseado em fatores históricos concretos, que deu origem a uma discussão bastante frutífera entre vozes nem sempre pensadas pelo que tinham em comum, como é o caso de Hidalgo, Ascasubi e Hernández, de um lado, e de Fagundes Varela, de outro, ou de José Bonifácio de Andrada e Silva e Juan María Gutiérrez, os dois últimos lidos pelo autor do capítulo como intelectuais orgânicos na terminologia de Gramsci. Observe-se, contudo, que em todos esses casos foi levada em conta a relação entre os aspectos culturais e histórico-políticos, evitando-se sempre qualquer tipo de arbitrariedade nas aproximações estabelecidas.

O fato de tratar-se de uma história literária que tem como objeto dois países da América Latina já constitui por si só uma grande inovação, na medida em que se rompe com o modelo tradicional desses estudos, quase sempre voltados para a fórmula Europa/América do Norte x América Latina, em prol de um comparatismo intra-americano, mas o mais relevante, no caso, é o abandono da perspectiva hierarquizadora, presente, por exemplo, nos estudos de fontes e influências, e sua substituição por uma visão crítica apurada em que põe por terra qualquer sentido de superioridade ou inferioridade de um dos termos da comparação, adotando-se, em seu lugar, um tratamento em pé de igualdade. Não se trata, nas palavras da organizadora, de “avaliarem-se inovações nem de se estabelecerem prioridades no tempo, mas de se mostrarem as variantes que alguns modelos externos adquirem em cada país”. É assim que o Indianismo brasileiro de um Gonçalves Dias, que idealiza o índio, é confrontado com o Romantismo argentino, que o aborda como um sujeito sem identidade; ou o mito rural na poesia gauchesca, no qual o tipo regional adquire voz, que é estudado lado a lado à figura do negro no século XIX brasileiro, visto antes como objeto do que como sujeito.

Sem nenhuma pretensão de construir-se uma história literária de caráter totalizador, o recorte adotado pela organizadora toma como ponto de partida um momento que considera fundamental na história dos dois países – a recepção local da Revolução Francesa e suas consequências mais representativas, que têm como corolário a constituição das pátrias argentina e brasileira. A partir daí, são traçados paralelos que nem sempre correspondem a uma cronologia rígida e nem a uma equivalência exata no que concerne ao objeto – autores ou obras, por exemplo, são, por vezes, comparados a movimentos literários -, mas esse aspecto, longe de constituir problema, revela, ao contrário, a flexibilidade do método comparatista e a riqueza que este método permite na abordagem do fenômeno. Daí a forma de ensaio que a história literária apresenta, mas de um ensaio que não deixa jamais de lado a dimensão histórica, instituindo-se antes como um conjunto orgânico, uma produção sistemática cuja articulação fica assegurada, nas palavras da própria organizadora, “pela avaliação e relevância que os fatos adquirem nos textos e a maneira com que logram articular-se em uma construção discursiva”.

Eduardo F. Coutinho – Doutor pela Univ. Califórnia (Berkeley, EUA). É Professor Titular de Literatura Comparada da UFRJ e pesquisador I A do CNPq. Tem sido Professor Visitante em diversas universidades no Brasil e no exterior. É membro fundador e ex-presidente da ABRALIC, Vice-Presidente da AILC (Associação Internacional de Literatura Comparada) e consultor científico de diversas agências de fomento à Educação. Publicou grande número de ensaios em revistas e periódicos especializados do Brasil e do exterior e é autor e organizador de diversos livros, dentre os quais The Synthesis Novel in Latin América: a Study of J. G. Rosa’s Grande sertão: veredas (1991), Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande sertão: veredas (1993), Literatura Comparada na América Latina: ensaios (2003), publicado também em espanhol (Colômbia, 2003), e Literatura Comparada: reflexões (2013). E-mail: [email protected]

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Jamaxi | UFAC/ANPUH-AC | 2017

JAMAXI Jamaxi

Jamaxi: Revista de História e Humanidades ([Rio Branco], 2017-) é um periódico eletrônico, semestral, editado sob a responsabilidade da área de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre e da Associação Nacional de História – ANPUH/Seção Acre, sem fins lucrativos, com o objetivo de propiciar o intercâmbio, circulação e difusão de estudos e pesquisas nas áreas de História e Ciências Humanas e Sociais.

Tem como objetivo mobilizar e envolver pesquisadores, professores e estudantes de pós-graduação de universidades dessa macro região, bem como manter relações com as experiências de professores da educação básica e de movimentos sociais das florestas e cidades amazônico-andinas.

As contribuições, na forma de artigos, entrevistas, ensaios e resenhas, poderão ser livres ou vinculadas a dossiês temáticos organizados por profissionais dos cursos de História e outras instituições.

[Periodicidade semestral].

Acesso livre.

ISSN 2675-0724

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Fatos da história naval – ALBUQUERQUE; FONSECA e SILVA (MB-P)

ALBUQUERQUE, Antônio Luiz Porto; FONSECA e SILVA, Léo Fonseca. Fatos da história naval. 2.ed. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 2006. 184p. Resenha de: [Autoria não identificada]. A importância do poder naval no curso da história. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

A importância do poder naval no curso da história Em Fatos da História Naval, os autores afirmam que “(…) no passado o uso correto do mar – incluindo o emprego eficaz do poder naval – determinou a prosperidade de nações”; permitindo, assim, um estudo mais profundo das atividades marítimas no curso da história, demonstrando a importância dessas atividades no desenvolvimento e na manutenção da soberania das civilizações.

Nos três primeiros capítulos é traçada uma narrativa da utilização dos mares e rios pelos povos da antiguidade, fosse para o comércio ou para o ataque e logística durante os combates. Passa pela utilização do mar Mediterrâneo pelos povos ocidentais, até a navegação pelo oceano Atlântico, iniciando as grandes navegações; demonstrando o processo de evolução das embarcações, a busca por novas fontes de riquezas, e a alternância no domínio dos mares, pois, o fato de Portugal ter sido o precursor nas grandes navegações, não garantiu a sua hegemonia permanente nas novas rotas comerciais e colônias conquistadas, apontando, assim, a importância do poder naval, que é parte do poder marítimo, na consecução e manutenção dos objetivos e da soberania dos estados.

Nos quatro últimos capítulos, verifica-se que países, com poder militar tradicionalmente terrestre, pode alcançar um excelente poderio naval. A França, por exemplo, combateu, embora sem sucesso, com a Inglaterra, potência tradicionalmente marítima, na “(…) Batalha de Trafalgar, em 1805, a mais célebre batalha naval da marinha de velas, quando a Inglaterra derrotou, no mar, as pretensões de Napoleão I”. Aborda a Revolução Industrial, mencionando a utilização de máquinas a vapor na propulsão dos navios, a criação de encouraçados com canhões cada vez mais potentes, o “(…) advento do submarino. Surgido já na Guerra da Revolução Americana (1776-1783)”, e usado nas duas Grandes Guerras Mundiais; evidenciando, assim, a constante busca por inovações e suas aplicações nos meios navais, como posteriormente, o surgimento do porta aviões, do submarino nuclear, posicionando as nações em patamares diferentes. Cita o Brasil, com seu extenso litoral, apontando o surgimento da sua esquadra, a fim de consolidar a proclamação da independência por D. Pedro I, em 1822, comandada por oficiais ingleses, como “(…) Cochrane, assistido por outros oficiais oriundos da Royal Navy, como Taylor e Grenfell.” Destaca a utilização de navios a vapor e encouraçados na Guerra do Paraguai, a participação nas duas Guerras Mundiais, o teatro de operações navais; demonstrando a necessidade de adequação dos meios para cada momento dos conflitos, a importância do poder naval no desenrolar dos fatos, a renovação dos meios navais no pós-guerra e o incentivo ao desenvolvimento da indústria naval.

A obra busca transmitir ao leitor a importância do poder naval nos conflitos ao longo da história da humanidade; que se faz necessário um desenvolvimento constante do país, e em especial, dos meios navais; que o fato de o Brasil possuir um litoral com cerca de 7.000 km, há de possuir os meios navais necessários para dissuadir qualquer intento contra a sua soberania. Sendo assim, Fatos da História Naval cumpre um papel, não apenas informativo, mas esclarecedor e incentivador do desenvolvimento e manutenção do poder naval, disponibilizando as informações necessárias para forjar uma consciência marítima nos cidadãos desta nação, com grande potencial, que é o Brasil.

Sem autoria identificada.

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Arquivo Público | RAPEES | 2017

Arquivo Minas Gerais Jamaxi

A Revista do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (Vitória, 2017-) tem por objetivo fomentar a pesquisa em História, Arquivologia, Ciências Sociais, Geografia, Biblioteconomia, como áreas prioritárias da nossa linha editorial. Para isso, buscamos estabelecer parcerias com o meio acadêmico, no sentido de modernizar nossas atividades enquanto órgão do Governo do Estado do Espírito Santo, vinculado à Secretaria de Estado da Cultura, no que diz respeito às responsabilidades legais no âmbito da Gestão Documental. Além disso, visamos incentivar a utilização do nosso acervo como importante fonte para os estudos sobre a História do nosso Estado, bem como difundir e compartilhar o conhecimento produzido.

A RAPEES tem como principal contribuir para a construção do conhecimento, saber histórico e arquivístico, dentre outros, do e no Estado do Espírito Santo, priorizando pesquisas que tenham o acervo do APEES como fonte documental, visando, dessa forma, demonstrar a riqueza de informações existentes e disponíveis nesta instituição arquivística. Além de divulgar pesquisas de significativa contribuição e importância às áreas do conhecimento acima citadas, visando aproximar e estreitar os laços entre arquivistas, historiadores, bibliotecários, geógrafos e cientistas sociais, dentre outros, com a população capixaba.

Para o desenvolvimento deste projeto contamos com a parceria da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), por meio do Laboratório de Estudos em Teoria da História e História da Historiografia (LETHIS), do Departamento de História, e do Grupo de Pesquisa Cine Memória: salas de cinema do estado do Espírito Santo, do Departamento de Arquivologia, sendo seus respectivos representantes os professores, doutores, Julio Bentivoglio e André Malverdes, os quais são os Coordenadores Editoriais da nossa revista.

[Periodicidade semestral].

Aceso livre.

ISSN 2527-2136

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Política de Saúde Pública na América Latina e no Caribe / História Ciências Saúde — Manguinhos / 2017

Neste último número de 2017 temos a satisfação de entregar-lhes um cardápio variado de artigos de diferentes áreas do conhecimento, campos temáticos, abordagens, temporalidades e geografias, sempre procurando privilegiar a perspectiva histórica, que confere identidade a este veículo transdisciplinar que é História, Ciências, Saúde – Manguinhos. A diversidade, que não é exclusividade desta edição, teve reconhecimento na recente avaliação quadrienal de periódicos pela Capes. A revista manteve-se como A1 nas áreas de História; Interdisciplinar; Sociologia; e Educação. Foi classificada como A2 em Arquitetura; Urbanismo e Design; Ciência Política e Relações Internacionais; Ensino; Planejamento Urbano e Regional / Demografia; e Serviço Social. Nosso periódico passou a ser classificado também em novas áreas: Artes (A2); Comunicação e Informação (A2); e Direito (B2).

Certamente isso é motivo de particular satisfação, pois a capacidade de dialogar com campos disciplinares tão variados representa uma virtude, mas também impõe desafios em termos de política editorial, os quais implicam lidar com o paradoxo de manter essa interface com diversas áreas do conhecimento sem comprometer a identidade do periódico, que, em certa medida, obedece a parâmetros disciplinares. As escolhas nesse sentido são estratégicas, pois apontam para a revista que queremos ter no complexo cenário de início de século e para o potencial de manter-se longeva. Por ora, parece-nos que o enfrentamento da complexidade envolvida nos diversos dilemas contemporâneos requer exatamente a articulação de conhecimentos para superar barreiras disciplinares. Sem respostas ainda claras, temos agido pragmaticamente no intuito de favorecer a qualidade, que não é um parâmetro claramente delimitado, porque envolve subjetividades, mas é a bússola que nos orienta, assim como o amparo de nosso conselho de editores, e, acima de tudo, dos avaliadores. Não podemos deixar de prestar a estes últimos, no derradeiro número de 2017, um profundo e sincero agradecimento, por encontrarem tempo, em meio a rotinas acadêmicas cada vez mais atribuladas e burocratizadas, para examinar com cuidado os manuscritos que nos chegam em números crescentes e com variedade temática cada vez mais ampla.

O julgamento final deste complexo critério chamado “qualidade” é sempre conferido por vocês, leitores, a quem também expressamos gratidão por terem se mantido fiéis este ano, seja pela leitura de nossas edições impressas e digitais, seja pelo acompanhamento de nossos blogs e mídias sociais. Tal agradecimento é extensível aos autores, publicados ou não, que vislumbraram em nossas páginas um veículo atraente para divulgação de pesquisas, comentários e pontos de vista.

A perspectiva latino-americana, bastante presente nos artigos desta edição, é reforçada e ganha nuances caribenhas com o dossiê “Política de Saúde Pública na América Latina e no Caribe”, coordenado pela historiadora Henrice Altink, da Universidade de York (Inglaterra), pela pesquisadora Magali Romero Sá, da Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz (Brasil), e pela professora Debbie McCollin, da University of the West Indies (Trinidad e Tobago). Os artigos resultam das apresentações de três encontros promovidos por cooperação entre a Casa de Oswaldo Cruz e a Universidade de York financiada pela British Academy. Os encontros ocorreram em 2014, 2015 e 2016 em York, Rio de Janeiro e Port of Spain, respectivamente. Os cinco trabalhos que compõem o dossiê trazem um rico panorama das dinâmicas envolvendo saúde pública, política e cultura em países como Haiti, Cuba, Jamaica, Brasil, Peru e Bolívia, e as redes de circulação de saberes com Europa e EUA.

Este número traz também debate sobre a epidemia de zika, travado quando a doença suscitou uma série de anseios, em virtude dos enigmas que ainda pairavam em torno de sua transmissão, patofisiologia e correlação com a microcefalia que acometia bebês de mulheres infectadas pelo vírus na gravidez. Apesar da virose de certa forma ter retrocedido do debate público, permanece uma ameaça concreta, ainda mais às vésperas do verão, quando seu vetor, o Aedes aegypti, alastra-se pelos centros urbanos, instaurando verdadeiro caos sanitário. O debate representa excelente registro das percepções de especialistas dedicados a pensar a doença em seus condicionantes sociais, econômicos e culturais.

Não podemos deixar de registrar nestas linhas que já se estendem nossa inquietude com os recentes ataques à liberdade e à autonomia do pensamento acadêmico no Brasil. Ataques revestidos de nebuloso autoritarismo querem censurar aquilo que destoa da agenda proposta para o país por segmentos fundamentalistas. Já assistimos ao cerceamento da expressão na arte, com argumentos de ordem pseudomoralista, mobilizados para defender a família – sempre este ente abstrato e flexível, que junto com Deus e a liberdade pôs nas ruas milhares de pessoas clamando por intervenção autoritária na véspera do golpe de 1964. No campo da educação, há algum tempo ganha vulto o movimento “Escola sem Partido”. Não tem faltado ataques a professores e alunos atinados com o debate contemporâneo de gênero e sexualidade e outras temáticas de cariz progressista. Na Universidade Federal da Bahia, professores e estudantes que pesquisam questões relacionadas a gênero foram ameaçados de morte. Notícia bastante recente (22 de novembro de 2017) veiculada na Folha de S.Paulo dá conta que artigo da área de educação, avaliado por pares, foi retirado da página do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, a contragosto da editora responsável, abrindo uma crise entre pesquisadores do campo. Aos colegas e instituições, nossa solidariedade.

O fascismo, de definição ampla e heterogênea, mas de percepção bastante clara quando diante de nossas faces, avança a passos largos. Mantenhamo-nos atentos, na esperança de que, no próximo ano, a sociedade brasileira possa manifestar nas urnas suas aspirações em eleições plenamente democráticas.

A todos uma boa leitura e um 2018 mais auspicioso!

André Felipe Cândido da Silva – Editor científico

Marcos Cueto – Editor científico


CUETO, Marcos; SILVA, André Felipe Cândido da. Carta dos editores. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.24, n.4, out. / Dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de Ciências Sociais | ABECS | 2017

enino de ciencias sociais Jamaxi

Cadernos da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais: revista da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS) apresenta uma linha editorial clara sobre ensino de Ciências Sociais, ressaltando os seguintes temas:

  • história do ensino de Ciências Sociais e de seus cursos;
  • a prática de ensino de Ciências Sociais e a formação de professores de Ciências Sociais;
  • as Ciências Sociais no ambiente escolar;
  • legislação, conteúdos e currículos de Ciências Sociais;
  • recursos e materiais didáticos no ensino de Ciências Sociais (inovações metodológicas) e;
  • estudos comparados em experiências internacionais no campo do ensino de Ciências Sociais.

Periodicidade semestral

Acesso livre

ISSN 2594-3707

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Ofícios de Clio | UFPEL | 2017

OFICIOS DE CLIO UFPEL Jamaxi

A Revista Discente Ofícios de Clio (Pelotas, 2017-) é um projeto ligado ao Laboratório de Ensino de História (LEH), e ao Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), ambos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

A Revista objetiva proporcionar aos nossos graduandos e pós graduandos, bem como aos alunos de áreas afins e/ou de outras Instituições, um espaço qualificado de debate e de incentivo ao incremento da pesquisa.

Como se sabe, um grande número de revistas acadêmicas não aceitam artigos de alunos não formados e, em alguns casos, apenas de portadores de título de Mestrado. A Ofícios de Clio almeja oportunizar aos discentes o incremento de seus currículos, visando seu futuro desenvolvimento acadêmico e profissional.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2527-0524

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L’Époque romaine ou la Mediterranée au nord des Alpes | Flutsch

No final do século V a.C. os celtas ocuparam o território da atual Suíça, sobrepondo-se às antigas populações lacustres, agrícolas e de pastores. Nova invasão ocorreu no final do séc. II a.C., quando os helvécios – também celtas – liderados por Divico, avançaram do sul da Germânia em direção à Gália. Em 61, então já estabelecidos no território alpino, que os romanos englobavam no nome genérico de gaulês, prepararam-se para nova migração em direção ao oeste, comandados por Orgétorix, migração fracassada pelo assassinato do líder. Entretanto os romanos já haviam dominado parcialmente esse território, isto é, todo o sul da Gália, e o conflito foi inevitável, terminando com a vitória dos romanos sobre os helvécios em 58 a.C.. Tomando partido desse fato Júlio César obriga os helvécios a permanecer na região alpina e dá início à conquista completa da Gália. Estas e outras circunstâncias, afirma Flutsch, têm impedido os suíços contemporâneos de reconhecer Divico ou Orgétorix como heróis nacionais, e leva o autor a falar da cultura ou do legado da romanização mais em termos de galo-romanos (mais abrangente) do que helveto-romanos – mais restrito e discutível, já que os helvécios não defenderam uma “pátria” contra os romanos, mas foram por eles impedidos de sair de onde se tinham estabelecido. Após a vitória sobre os helvécios os romanos iniciaram o estabelecimento de colônias e legiões: por volta de 44 a.C. foi criada a Colonia Julia Equestris (atual Nyon, próximo a Genebra, na margem do lago), e por volta de 20 a. C. começaram as construções na Colonia Raurica, em território dos rauraques, outra população celta – é a atual Augst, próxima a Basiléia, cujos vestígios estão hoje em muito bom estado de recuperação. Portanto no I século a.C. a presença romana embora marcante deixava quase total independência às populações alpinas. Com a chegada do Império as terras da atual Suíça foram ocupadas pelas legiões e pelas instituições políticas e administrativas romanas, que, contudo, não eliminaram as estruturas sociais e a organização dos vários grupos celtas. Nessa fase o território estava dividido por cinco distintas províncias romanas: o norte pertencia à Germânia Superior, o oeste à Narbonense, o sul aos Alpes e à Itália, e o leste à Récia. Ao destacar este fato Flutsch faz notar que a romanização, embora não tenha contribuído para criar uma consciência de unidade no que veio a ser o povo suíço, definiu a “cantonização” que hoje constitui a Confederação Helvética (em que pese a dubiedade deste termo, que ele evitou). De fato, na confederação o norte e centro é de língua alemã, o oeste de língua francesa, o sul de língua italiana, e o sudeste romanche. Depois do seu apogeu no século II d.C. o Império Romano entrou em decadência e em meados do séc. III a crise econômica da Itália atingiu as províncias: as guerras e a anarquia, aliadas aos impostos escorchantes fizeram os agricultores desistir da lavoura, e engrossar as turbas de ociosos e bandidos. Fome e peste provocaram a baixa demográfica, e os germanos, aproveitando-se da fraqueza imperial, começaram a atacar as fronteiras e fazer suas primeiras incursões em território alpino. Apesar da recuperação sob Diocleciano, e depois sob Constantino, os romanos continuaram a sofrer os embates com os invasores, e repetidas vezes os alamanos (354, 365, 375) atacaram as legiões e penetraram no território rauraque. Mas o território dito gaulês, ou helvécio, da posterior Suíça não recebeu, antes do séc.VI, invasões maciças germânicas, mesmo quando as legiões abandonaram o território em 401. Quando os Borguinhões, em 443, se instalaram na região de Genebra, rapidamente se incorporaram à cultura galo-romana. Já os alamanos, que ocuparam o norte no século seguinte, impuseram seu idioma germânico, que se mantém até hoje. Depois dessa revisão histórica do período romano (I a.C. a V d.C.) que ocupa metade do livro, o autor dedica um capítulo à “globalização econômica”, ou seja, às marcas deixadas pela romanização no modo de vida material. A incorporação das regiões alpinas gaulesas e helvéticas à economia do Império trouxe estruturas administrativas eficientes; todos os tipos de produção usual da época floresceram, novas profissões surgiram, estradas foram construídas – definindo em seus cruzamentos e passagens quase todas as principais cidades suíças da atualidade. A ligação dos Alpes com o Mediterrâneo (razão do subtítulo da obra) não só exportava os produtos locais, mas propiciava à população das montanhas consumir produtos até então desconhecidos ou reservados à elite celta: vinho, azeite, frutas e conservas de peixe passaram a estar ao alcance de grande parte da população alpina. Percorrendo diversos aspectos da vida comum, desde a tecnologia de construção à produção agrícola, Flutsch vai mostrando como o período romano lançou as bases da sociedade suíça; contudo adverte: a romanização operou-se principalmente nos centros urbanos, enquanto nas regiões rurais a cultura celta permaneceu; por outro lado, após o desmoronamento do Império muitas de suas características desapareceram, como certos tipos de bens de consumo e de conforto, que só voltaram à Suíça no séc. XX. Se ao falar de economia Flutsch mostra sua formação e pendor de arqueólogo, apoiando-se freqüentemente nos vestígios materiais da romanização, o último capítulo – “o casamento das culturas” – é ainda mais objetivo e concreto na apresentação de elementos materiais: para comprovar a importância das construções civis e da urbanização como modeladoras e ao mesmo tempo indicadores da vida social; ao trazer inscrições latinas que denotam peculiaridades da continuidade da cultura celta, inclusive familiar, sob capa romana, ou a presença das mulheres nas atividades da elite; receitas médicas evidenciando a introdução da medicina greco-romana; mosaicos e esculturas caseiras mostrando a aceitação da mitologia e da religião romanas; a completa alteração dos hábitos de alimentação pela importação de muitos produtos e dos modos de cozinhar mais sofisticados. Os exemplos que aduz são muitos bastando completá-los com os traços referentes ao que é menos material: as crenças. Uma cabeça de touro tricórnio celta esculpida em estilo romano; as inúmeras estatuetas de Lug disfarçado de Mercúrio; Caturix, deus protetor dos helvécios, que surge como Marte Caturix; Taranis empunhando o raio de Júpiter; o culto às novas divindades orientais que tinham entrado no Império, inclusive o cristianismo, cuja presença em território suíço é atestada desde o final do séc. IV, ou ainda os costumes celtas de velório e sepultamento modificados pelos romanos. Na conclusão, intitulada “um parêntese que não se fechou” o autor retoma e resume as principais aportações da romanização à Helvécia galo-romana desde o latim e a telha ao gato doméstico e ao alho, para defender as suas teses, entre as quais destacamos: 1. a arqueologia é uma ciência bem fundamentada em técnicas de interpretação de vestígios materiais, mas não está imune a influências doutrinais e ideológicas, nem à percepção do antigo pelos olhos da atualidade; é assim que discretamente alude à integração alpina na cultura mediterrânica e na globalização imperial para sugerir (129) que essa antiga abertura conduz a Suíça à integração na União Européia; 2. a romanização lançou os fundamentos do modo de vida suíço da atualidade, mas não construiu uma consciência de nacionalidade unificada, que é muito recente; daí as suas críticas às alusões do passado como criador dessa identidade de povo, que ele considera um erro de interpretação que falseia a própria visão da Suíça – aliás o autor continuamente se dirige a seus patrícios, pois usa muito o termo “nós” e “nosso” para falar da região. Deste modo, um pequeno volume de introdução a um período histórico é de fato, como toda a coleção Savoir Suisse, um chamado à revisão da percepção que os suíços têm de si mesmos e do seu papel na atualidade. De alguma forma a arqueologia de Laurent Flutsch, diretor de escavações, de exposições e do Museu romano de Lausanne-Vidy, é uma ciência de intervenção política.

João Lupi – Departamento de Filosofia UFSC. E-mail: [email protected]


FLUTSCH, Laurent. L’Époque romaine ou la Mediterranée au nord des Alpes. Lausana: Presses polytechniques; Universitaires romandes, col. Le Savoir Suisse, 2005. Resenha de: LUPI, João. A Suíça e o Mediterrâneo. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.7, n.1, p. 101-103, 2007. Acessar publicação original [DR]

Matar e morrer na Idade Média / Brathair / 2017

Nesse dossiê da revista Brathair – Matar e Morrer na Idade Média – abordamos esses temas como o cruzamento de duas esferas, a cultural e a natural, a partir da sua instância mais básica: o corpo. Embora seja um “objeto natural”, o corpo humano também é produto cultural, tanto que a educação, disciplina e mesmo valores comuns nos levam muitas vezes a contrariar nossos instintos mais básicos, como quando partimos para a guerra, para matar ou morrer. Discutir a forma de apresentação, narração e problematização dessa temática em seus estereótipos associadas a conceitos como honra-desonra, coragem-covardia, masculino-feminino é uma questão a ser problematizada em um amplo recorte espaço-temporal e nas relações – e valores – atribuídos às populações germânicas e seus vizinhos, amigos e inimigos no medievo.

Mas os textos aqui reunidos não se restringem apenas ao contexto de batalhas, com o qual a temática do matar e morrer (e desertar, fugir etc) medieval é amplamente identificada e que há bastante tempo, e ainda hoje, é campo privilegiado para as pesquisas nessa área []1. Igualmente importante é a discussão sobre a questão da morte e das reações frente a ela: buscar ou fugir da morte? Embora durante a Idade Média o suicídio seja considerado um pecado, a morte voluntária a serviço de uma causa ou testemunho – como o martírio – era considerada um ato de virtude, equiparado mesmo à categoria de imitatio christi [2]. Esse paradoxo, do ponto de vista secular e ocidental moderno, pode ser compreendido se pensarmos no medievo como um momento dominado pela violência – uma civilização da agressão, como define Duby. E embora a violência não seja, de modo algum, exclusiva do período medieval, a apologia da violência e seu uso amplo e quase irrestrito, a banalização da violência – parafraseando Hannah Arendt – é uma das características distintivas desse período. Não por acaso a palavra em alemão para violência – Gewalt – serve também para designar o poder. Por exemplo a expressão “unter jemandes Gewalt zu sein” pode ser traduzida como “estar sob o poder (ou autoridade) de alguém”, o que nos coloca diretamente em contato com a Idade Média quando indivíduos que exerciam poder – senhores, pais, esposos etc – podiam frequentemente agir de forma violenta, inclusive ao matar aqueles sob seu domínio, em alguns casos sem qualquer tipo de punição [3].

O que nos leva à pergunta: O que temos em comum com os homens e mulheres do passado? O que pode ser dito da experiência essencial do ser humano? Há muitas respostas para essas perguntas, mas certamente uma delas está relacionada com a questão da morte. Matar e morrer é algo comum aos humanos e animais, assim como as atitudes – passivas e ativas, em grande parte instintivas como correr e fugir ou ficar e lutar – frente a essa questão. Mas o refletir sobre a morte, sobre o matar e morrer é algo tipicamente humano, em todas as épocas. Nos testamentos da cidade de Colônia do século XV encontramos muitas vezes variações em torno da fórmula “dat nemand dem doede untghain noch entflien mach” (“porque ninguém pode escapar nem fugir da morte” [4] ), assim como disposições sobre onde deveriam ser depositados os restos mortais e a realização das missas ad aeternum, esse último um tema abordado, entre outros, por Chiffoleau [5] .

A preocupação com a morte e a preparação adequada – e os auxílios – para esse evento crucial na vida humana em geral, e cristã em particular, são abordados nesse dossiê por Klaus Militzer em seu artigo sobre a criação – e significados – atribuídos à santa Úrsula de Colônia “intercessora por uma morte suave” e por Dominique Santos e Alisson Sonaglio no texto que analisa a obra Ars moriendi do século XV, um manual para uma “boa morte”, com suas implicações e desdobramentos. O professor Militzer discute não só a construção da lenda de Úrsula e o seu significado para a cidade de Colônia, mas também a sua ampla divulgação em diferentes reinos medievais. Demonstra também as transformações sutis na imagem de Úrsula em vários campos – como as fraternidades medievais – e períodos, que culminam com a construção “definitiva” de Úrsula como a santa indicada para garantir uma boa morte, tema abordado juntamente com as questões sobre as percepções – e medo – da morte e a necessidade de intercessão dos santos

O medo da morte, a presença da morte e a “comunicação e […] aproximação entre os vivos e os mortos” é discutida no texto de Amanda Basílio Santos, que tem como fonte as tumbas-cadáveres e a escultura funerária medieval inglesa, exemplos muito nítidos da realidade que todos vamos morrer. O uso do medo da morte (por exemplo a partir da prática da execução exemplar) e o direito a matar, aplicar a pena de morte é discutido no texto de Marta de Carvalho Silveira, “Um olhar jurídico sobre a morte: uma análise comparativa do Fuero Juzgo e do Fuero Real”, que, abordando essas fontes de direito, analisa o “uso legal da morte” na Península Ibérica sob o domínio visigodo e na Castela do século XIII.

Mas se a morte era uma penalidade, cumprindo uma função punitiva, ela também poderia ser uma arma de propaganda: esse uso propagandístico da morte – da morte violenta em nome de uma causa santa, o martírio [6] – é analisado no texto de Dionathas Moreno Boenavides que discute a questão do martírio no século XIII dentro do contexto das disputas em torno das ordens mendicantes. A atuação e figura de religiosos – bispos em especial – é tratada nos artigos de Bruno Álvaro e Mathias Weber. Bruno discute – a partir da figura literária de Don Jerónimo, modelo de bispo guerreiro no Poema de Mio Cid – a questão da atuação militar do clero em uma realidade ibérica marcada pelas guerras. Mathias Weber discute o problema da má e da boa morte nas descrições de mortes de bispos nos Decem Libri Historiarum de Gregório de Tours, com destaque para o “bem morrer” como um morrer pacífico, na cama, cercado pela sua congregação, o que deixa claro os diferentes parâmetros para a atuação e interpretações do clero ao longo da Idade Média.

A discussão sobre os diferentes significados – e possibilidades – do matar e morrer são habilmente exploradas no texto de Gabriel Castanho que questiona o “Morrer pelo quê? Fugir de quê?” bem como a visão tradicional dos monges como aqueles que “fogem do mundo” demonstrando que, “longe de ser uma fuga”, o abandono do mundo pelos monges-eremitas Cartuxos pode ser pensado como forma de combate, uma luta pela alma, considerada o bem maior. Neste sentido religioso, o texto de Renata Cristina e Sousa Nascimento apresenta uma discussão acerca dos mártires e guerreiros, concluindo que “[o] modelo de mártir almejado faz parte de um longo processo de criação de memórias, relativas à busca de um grau elevado de santidade, atingido através de elaborações discursivas especiais”.

O texto de Mario Jorge da Mota Bastos e Eduardo Cardoso Daflon discute o problema da violência senhorial durante a Idade Média como parte das relações de poder e dominação entre senhores e camponeses e traça paralelos com a situação destes no Brasil atual, no qual as lutas pela terra continuam ocasionando mortes e devastação. E por fim, o texto de Chiara Benati explora magistralmente fontes primárias, em parte ainda não editadas, que demonstram a continuidade de elementos pagãos da tradição germânica das fórmulas de bênçãos e encantos de proteção contra armas e inimigos em situações de guerra, de perigo e mesmo em confrontações na disputa por direitos. Os ideais de coragem e bravura, tão arraigados tanto nas sociedades germânicas quanto tradição épica medieval, convivem, dessa forma, com a preocupação com a morte, o morrer e mesmo a prisão em situações de batalha, considerada por vezes tão temível quanto a própria morte. Dessa forma evidencia que coragem e bravura não significam necessariamente a ausência – ou supressão – do medo, mas sim o enfrentamento do medo de morrer – as diferentes formas de morte que são abordadas nos textos desse dossiê – e, enfim, a disposição para o sacrifício, se necessário, em nome de um bem maior que a própria vida.

Notas

1. Como o livro organizado por Jörg Rogge: ROGGE, J. (Ed.). Killing and Being Killed: Bodies in Battle, Perspectives on Fighters in the Middle Ages, Bielefeld, Transcript Verlag, 2017.

2. Vide, por exemplo, TAVEIRNE, Maarten. Das Martyrium als imitatio Christi: Die literarische Gestaltung der spätantiken Märtyrerakten und -passionen nach der Passion Christi. In: Zeitschrift für Antikes Christentum, 18 (2014), p. 167–203; VAUCHEZ, André. La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge: d’après les procès de canonisation et les documents hagiographiques. Rome: École française de Rome, 1988, p. 179; FEISTNER, Edith. Historische Typologie der deutschen Heiligenlegende des Mittelalters von der Mitte des 12. Jahrhunderts bis zur Reformation. Wiesbaden: Dr. Ludwig Reichert Verlag, 1995, p. 119s.

3. Vide, por exemplo, MORIN, Alejandro. Matar a la adúltera: el homicidio legítimo en la legislación castellana medieval. In: Cahiers de linguistique et de civilisation hispaniques médiévales, Vol. 24 Nr. 1, 2001, p. 353-377. O texto de Mario Jorge e Eduardo Daflon nos remetem à essa questão também na realidade brasileira, uma forma triste de pensar em possíveis desdobramentos do conceito da longa Idade Média.

4. Como no testamento de Johann VI. von Hirtze, de 21 de abril de 1475, Test. H 3 / 695. In: HAStK (Historisches Archiv der Stadt Köln).

5. CHIFFOLEAU, Jacques. Sur l’usage obsessionnel de la messe pour les morts à la fin du Moyen Âge, In: VAUCHEZ, André. (Org.). Faire croire: Modalités de la diffusion et de la réception des messages religieux du XIIe au XVe siècles. Table Ronde organisé par l’ École française de Rome, 1981, Paris, p. 235-256.

6. Um tema já longamente explorado por André Vauchez em La Sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge: d’après les procès de canonisation et les documents hagiographiques. Rome: École française de Rome, 1988.

Cybele Crossetti de Almeida – Professora Adjunta UFRGS. E-mail: [email protected]

Daniele Gallindo Gonçalves Silva – Professora Adjunta UFPel. E-mail: [email protected]


ALMEIDA, Cybele Crossetti de; SILVA, Daniele Gallindo Gonçalves. Editorial. Brathair, São Luís, v.17, n.1, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Celtas e Germanos – encontros e desencontros / Brathair / 2017

A construção da Europa foi o resultado de um complexo processo de entrechoques e intercâmbios, étnicos, culturais, religiosos e políticos, muitos deles conflituosos, outros de colaboração guerreira e intelectual, e de fusão étnica, outros de empréstimos e adoções. Esse conjunto, que começou a se fazer durante o Império Romano, e se estabilizou por volta do ano mil, quando grande parte dos escandinavos e eslavos aderiu ao cristianismo como religião, ao direito romano como base política e ao latim como língua franca. Nesse momento, formava-se a Cristandade, e criada a Europa, o “adolescente” da civilização ocidental. Dentre todos esses inúmeros embates de e pelo poder, além de permutas culturais, avultam as relações entre os povos germânicos e os celtas. De fato, quando os germanos começaram a se infiltrar no mundo greco-romano, já os celtas estavam em sua maioria romanizados (com exceção de alguns, como os irlandeses e escoceses, e os celtas balcânicos). Entre as muitas confluências e miscigenações podemos lembrar a dos suevos com os galegos, a dos francos com os gauleses, e a dos boios com os germanos, origem dos bávaros. Quando o Grupo de Estudos Celtas e Germânicos Brathair nasceu em 1999 a nossa intenção, ainda pouco explícita, mas em fase de definição, era aprofundar essas relações entre celtas e germanos. O presente número temático da revista obedece a esta intenção histórica de dezoito anos atrás, mas os colaboradores passaram além das pretensões dos editores. Três artigos tratam de questões medievais das Ilhas Britânicas: o de Isabela Albuquerque sobre a Era Viking, o de Maria Nazareth C.A. Lobato sobre as florestas reais, e o de João P. Charrone sobre a missão de Agostinho de Cantuária. Neles descreve-se e interpreta-se o encontro de três povos: anglo-saxões, bretões e escandinavos, e em todos eles descortinamos os procedimentos legais, religiosos e guerreiros pelos quais uns dominaram os outros. O artigo de Edmar C. de Freitas e Tomás A. Pessoa sobre a realeza merovíngia, e o de Ana Paula T. Magalhães sobre a ciência do século XIII permanecem no âmbito medieval, mas enquanto um discute a realeza germânica, o outro trata dos intelectuais franciscanos, dois tipos de poder, político e científico, que, para além de questões étnicas, demonstram a existência de uma cultura medieval de âmbito europeu. O artigo de Margarida G. Ventura sobre o Velho do Restelo, o de Andréia Cristina L. F. da Silva sobre o filme do Conclave, e o de Maria Izabel B.M. Oliveira sobre Bossuet prolongam a cultura medieval para além dos seus limites cronológicos. O filme O Conclave, refere-se a 1458, data da eleição do sucessor de Calixto III (Afonso Borgia), e coloca as questões do poder civil dentro da Igreja hierárquica; o episódio d´Os Lusíadas sobre o Velho do Restelo discute as várias interpretações sobre o sentido das viagens e comércio de Portugal com a Índia depois de 1498; e o de Oliveira mostra como Bossuet (1691) aborda a História Universal: uma Teologia da história, ao modo agostiniano, em que a Providência é o motor das ações coletivas, das monarquias e das nações. Nestes três últimos artigos já estamos plenamente numa Europa definida e construída, em que os povos formadores já se fundiram, e criaram novos problemas de conflitos de poder: a Europa projeta-se sobre o mundo, sua História confundindo-se com a História Universal, e a religião que aglutinou os povos formadores é motivo de discórdia, e necessita de discursos justificativos. Já não se distinguem mais celtas, germanos e eslavos… ou será que eles estão apenas recobertos por um véu ideológico, e vão reaparecer? Tais questões e possíveis respostas, suscitadas pelos artigos ora arrolados, ficam a cargo dos pesquisadores, a fim de que novas reflexões sobre celtas e germanos continuem a demonstrar a perenidade dos estudos acadêmicos da Brathair!

João Eduardo P. B. Lupi – Professor adjunto de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected]

Álvaro A. Bragança Júnior – Professor Associado III da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Setor de Alemão e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História, UFRJ. E-mail: [email protected]

Os Editores


LUPI, João Eduardo P. B.; BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro A. Editorial. Brathair, São Luís, v.17, n.2, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná | Maurilio Rompatto

Obra originária de pesquisa para obtenção do título de mestre em história-social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, o livro “Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná, tem temática que vira em torno das histórias da violência que ocorreram durante as décadas de 1950 até 1970 e conta as histórias de vidas de pessoas camponesas na luta pela posse das suas terras conquistadas como pioneiros na região do vale do Piquiri e mais especificamente em Nova Aurora/PR. O que Rompatto faz em sua pesquisa é dar voz a trinta trabalhadores do campo, captando as narrativas com grande sensibilidade e rigor metodológico que exige a postura da história oral.

Assim, história e memória vão se entrecruzando na trama dos acontecimentos fazendo emergir um tipo de história vista de baixo como pede a historiografia renovada, à lá Annales. Assim como dialoga diretamente com E.P. Thompson para ali encontrar os conceitos de economia moral, cultura camponesa, valores camponeses e classe camponesa. Este último conceito muito bem apropriado e operacionalizado na obra, na qual o leitor irá se deparar com essa categoria, por vezes, muito bem organizada na luta por seus direitos. Pode-se aferir que Rompatto chega a sugerir certa ideia de classe em si para os camponeses aqui narrado. Fazendo, dessa forma, implodir o sentido de trabalho e os valores dados à terra por esses camponeses pioneiros que vão travar uma epopeia agrária nos confins do oeste paranaense contra os grileiros sendo eles o Estado, a União e também empresas privadas como a Colonizadora Norte do Paraná S.A do paulista Oscar Martines.

Outro grande mérito da pesquisa é fazer da chamada história regional, do Norte do Paraná, Vale do Piquiri, uma história total, em que para explicar o micro cosmo de uma região “esquecida” nos dizeres do autor, este recorte a história estrutural para ali buscar o entendimento da questão agrária no Brasil, voltando á época do Brasil Imperial ao ano de 1850, quando é publicada a primeira lei agrária brasileira, a Lei de terras que passa a dar valor imobiliário a esse bem, que até então a terra era distribuída pela União via sesmarias. Depois a pesquisa ainda explica que com a Proclamação da República a terra passa a ter outros valores, bem como os Estados que agora substituem as províncias imperiais passam a ter a posse e o direito às terras e ao seu comércio. Por fim, Rompatto ainda nos revela outro aspecto da história do Brasil relacionada à questão agrária e seus complicadores em relação à posse dessa durante a fase politica do Estado Novo ditatorial implantado no Brasil pelo Presidente Getúlio Vargas que durou de 1939 até 1945. Este regime faz com que as terras de fronteiras sejam devolvidos para a União em razão da ideia de proteção das fronteiras. Vale dizer que o objeto de estudo aqui narrado é interdisciplinar num diálogo muito profícuo entre a história e geografia, a geo-história. Nesse quesito a obra é rica em mapas detalhados acerca da região do Vale do Piquiri, sua riqueza hidrográfica, com rios e fluentes que margeiam o Rio Piquiri. São num total de treze mapas, todos eles bem inseridos ao longo da narrativa e com caráter e função de melhor explicar o acontecimento dentro de uma regionalidade, assim como levar o leitor a viazualizar o lugar da história. Cabe também, nesse contexto do uso de imagens, ressaltar a sensibilidade do autor ao estampar fotos de algumas famílias pioneiras mostrando parte do seu cotidiano rural, perfazendo um total de quinze fotos de pessoas e residências. Dentre elas, a contra capa estampada a família Ballico cercada pelo arame farpado em delimitação das suas terras por empresa particular grileira.

Entender a história das lutas camponeses no Brasil é um processo muito complexo e angustiante em que o próprio historiador se depara com momentos de injustiça. Complexa porque as próprias fontes são escamoteadas ou se encontram em lugares de difícil acesso, e angustiante uma vez que os depoimentos trazem á toma memorias e relatos de camponeses sendo injustiçados, quer pelo poder público, quer pelas empresas privadas que tem interesse nas terras ditas devolutas que são também conceitos vazios meramente politico, haja vista que nunca houve terra devoluta, pois a princípio estas eram dos índios ou dos quilombolas que nela habitavam e produziam.

Como disse Peter Burke “ a função da história é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”. Rompatto cumpre nessa sensível e competente obra essa função de historiador profissional e comprometido com a história política e social vista de baixo. Dando voz aos camponeses para eles expressarem suas experiências e vivências. Numa trajetória de história local dialogando com a história total para o construto de uma narrativa coerente e explicativa. Temos aqui um livro de história do Brasil do período varguista e seus desdobramentos da politica nacionalista nos confins do oeste paranaense, um livro onde o local e o total se permeiam, dialogando com a escrita da história.

Depois de tudo que foi analisado acima cabe ainda uma última referência a outra imagem; a da capa que foi escolhida com grande sensibilidade e rigor teórico-metodológico ao se optar pela foto do Rio Piquiri, margeando o Vale e passando a impressão de calmaria e tranquilidade o que não se encontrará ao abrir o livro, longe disso, a narrativa que se lerá está muito mais próxima de uma história de faroeste, no sentido mesmo de velho oeste, o velho Oeste paranaense e suas disputas desleais entre homens grileiros fortemente armados contra camponeses com suas famílias ali estabelecidas há tempos.

Por fim o livro é recomendado a todos os amantes de uma boa narrativa e trama histórica, mas sobretudo para dois públicos específicos os historiadores e aos moradores do Vale do Piquiri em especial da cidade de Nova Aurora/PR.

Eduardo Martins –  Doutor em História pela UNESP/ Assis e Docente do Curso de História do Campus de Nova Andradina, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).


ROMPATTO, Maurilio. Piquiri o vale esquecido: História e memória da luta pelas terras do “grilo Santa Cruz” na colonização de Nova Aurora, oeste do Paraná. Curitiba: CRV, 2016. Resenha de: MARTINS, Eduardo. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 9, n. 17, p. 286-288, jan./jul., 2017.

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História, democracia e diferenças: os direitos humanos na contemporaneidade / Albuquerque: Revista de História / 2017

É com grande satisfação que apresentamos ao público-leitor o dossiê “História, democracia e diferenças: os direitos humanos na contemporaneidade”. A proposta desse compêndio de artigos escritos por pesquisadores de diversas partes do mundo é construir, desde o campo acadêmico, um olhar mais aberto ao inventário social que estabelece a relação entre História e contemporaneidade. A partir de abordagens teóricas plurais, as discussões sobre temas centrais como racismo, política, território, memória, gênero, e episteme, compõem um mosaico cultural definidor do maior desafio do atual cenário político internacional: a defesa de certo sentido de democracia no que se convencionou chamar de “Direitos Humanos”

O debate sobre o lugar das minorias em situações de conflito como as vivenciadas no mundo contemporâneo revela a urgência com que a produção científica atual precisa não apenas se posicionar em relação a contextos de exceção, de resistência e de luta, mas também se debruçar sobre temas espinhosos que, de forma geral, fazem com que a História e as demais ciências humanas tenham algo a dizer sobre a visibilidade social e politica que determinados grupos reivindicam. O silêncio diante da opressão é algo que precisa ser superado e debatido amplamente, e nada melhor do que a reflexão acadêmica para trazer à discussão as questões que fundamentam diversas agendas sociais. A utilização de um espaço consolidado de análise como a Revista Albuquerque mostra que o propósito desse dossiê atinge não somente a sensibilidade dos grupos envolvidos nessas demandas, mas alcança um universo alargado de preocupações teóricas que extrapola as convenções científicas e obriga a universidade pública a se aproximar das tensões que nos definem desde o passado em direção ao presente.

Os artigos que fazem parte desse dossiê foram produzidos a partir dessas inquietações, e almejam fomentar o anseio de se compreender a importância do tema dos Direitos Humanos e reconhecer a necessidade de considerá-lo como uma conquista que não pode ser monopolizada politicamente em tempos difíceis como o que vivemos. Com esse espírito, por meio de um olhar abrangente sobre o tema, Agustín Ávila Romero e José Luis Silvaran mostram como a História deve ser definida a partir de um binômio singular: a diversidade biocultural e as ontologias espaciais na América Latina. Para tanto, os autores superam a tendência geral de se olhar para a História mexicana exclusivamente por meio de fontes escritas espanholas, demonstrando certa resistência epistemológica ao se debruçar sobre formas narrativas próprias dos maias tzeltales de Chiapas para se compreender valores e saberes que se sedimentam no chamado Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN). A defesa do olhar local sobre o citado movimento é reforçada por escolhas teóricas apropriadas e inovadoras, especialmente quando se recorre aos conceitos de colonialidade do saber e colonialidade do poder para se redefinir uma espécie de memória zapatista. No pulsante coração da América Latina, o exemplo epistemológico dos autores serve de modelo para que outros movimentos sociais no mesmo continente sejam lidos por um viés mais autêntico e fiel aos grupos locais do que a velha e mofada epistemologia clássica.

Ainda sobre as questões ligadas ao exercício da dominação cultural na teoria do conhecimento que se reproduz nas universidades ocidentais, José Marín destrincha o vínculo entre eurocentrismo, racismo e interculturalidade no mundo globalizado. Os problemas contemporâneos, em suas múltiplas faces, garantem a sobrevivência de aspectos das relações humanas que já deveriam ter sido extintos no trato entre as diferentes culturas. Um desses elementos nocivos, que reforçam a necessidade de discussão sobre os Direitos Humanos é a herança colonial europeia de se desqualificar o outro para oprimi-lo. Marín nomeia essa estratégia epistemológica de “perversão ideológica” fundadora do racismo e do nacionalismo que nos dias atuais, se transformam em políticas de massas. Não reduzindo sua reflexão à denúncia dos males, e estendendo suas conclusões em direção a caminhos que permitam a solução desses problemas, o autor apresenta a educação como principal ferramenta de conciliação entre valores universais e particularidades culturais. O primeiro passo, portanto, seria a validação da ideia de que a História da humanidade é a história de nossas migrações.

Já Bruno do Prado Alexandre e Raquel Gonçalves Salgado, em artigo sobre as narrativas de travestis, transferem o olhar do leitor para outro universo silenciado: o lugar desses indivíduos e de seus corpos no ambiente escolar brasileiro. A base teórica para essa análise seria o que os autores chamam de “estudos de gênero e pós- feministas”, o que por si só já conferiria a originalidade e a importância desse trabalho. O mapeamento da questão a partir das vozes de cinco jovens travestis de Rondonópolis, Mato Grosso, escancara pela ótica acadêmica o que se tenta ocultar pela opressiva caracterização de certa “normalidade” social O tempo da infância, o espaço escolar e a sociabilidade cotidiana são marcados por categorias emblemáticas da violência sofrida pelo “diferente”, traduzida em acepções como “viadinho”, “estranho” e até mesmo “corpo abjeto”. O resultado dessa dinâmica de opressão singular é a construção de estratégias de sobrevivência e resistência dentro de um espaço que deveria originalmente ser acolhedor e integrado como a escola. A dinâmica de violência do ambiente escolar em relação aos travestis tem um palco de atuação ainda mais central: o banheiro. É aqui que o “processo de negação e privação de direitos empreendidos sobre os corpos considerados grotescos certamente, a dimensão mais cruel das memórias escolares desses sujeitos formados pelos silêncios e pelas invisibilidades.

Outro universo a ser revelado pelas questões ligadas aos Direitos Humanos nesse dossiê é a luta pela terra como agenda global. Em seu artigo, Cassio Rodrigues da Silveira estabelece os parâmetros da reforma agrária como uma reivindicação social que transcende a demanda específica dos integrantes de um movimento organizado como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Em conflito não apenas com o latifúndio, mas também com o viés globalizante do capitalismo neoliberal, o combate pelo direito à terra defendido pelo MST confere uma dimensão social à questão agrária, já que passa a ser movida pela necessidade de sobrevivência, e não pela lógica do mercado fundiário. O problema da concentração da posse da terra, portanto, ultrapassa as fronteiras nacionais, pois o sistema econômico, o Estado e os interesses de classe são distintas dimensões de um debate assumido pelo MST como altermundialista. No entrecruzamento dessa questão estão as relações com os dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as expectativas construídas a partir do Fórum Social Mundial em 2001, e a luta anti-imperialista mundial, tudo expresso nas publicações do MST e na construção de um vocabulário político próprio em seus textos e redes de informação.

Mantendo-se no campo das lutas políticas em contextos de repressão, Aguinaldo Rodrigues Gomes apresenta o tema da resistência de intelectuais e estudantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro) ao regime militar brasileiro. O primeiro desafio enfrentado aqui é justamente contribuir com o recente debate historiográfico acerca do tema, que tem buscado pensar como esse acontecimento político, um dos mais dramáticos de nossa história, repercutiu fora dos centros de poder do país, especificamente o eixo Rio-São Paulo. O autor enfatiza no artigo as estratégias adotadas pelo PCB para a construção de uma luta pelos diretos civis no campo educacional por parte de estudantes e professores que ousaram enfrentar o regime em defesa das liberdades de expressão. No momento em que se discute o que foi a ditatura militar no Brasil, notória por seu completo desprezo aos Direitos Humanos mais fundamentais, estender o debate para outras partes do país é democratizar a luta contra um passado recente, além de ser também uma forma de resistência epistemológica que quebra a centralidade do Rio de Janeiro e de São Paulo no discurso sobre a memória política do Brasil contemporâneo.

Ainda em relação à resistência a ditadura militar em nosso país Ary Cavalcanti Junior nos traz uma narrativa sobre a resistência das mulheres ao regime a partir da trajetória da militante Diva Soares Santana que atuou em defesa dos direitos dos mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar no grupo Tortura Nunca Mais-Bahia. Utilizando a metodologia da história oral, o autor busca representar as memórias, seus confrontos e ressignificações a partir dos relatos de Diva Santana. Nas palavras de Cavalcanti Junior a inserção de Diva na militância ocorreu devido ao desaparecimento de sua irmã Dinaelza, mas uma vítima do regime ditatorial. Sua busca pelo corpo da irmã nos fornece um claro retrato da face perversa da ditadura na Bahia, a exemplo do que ocorreu em diversas regiões do país e que ainda estão por ser descortinadas pelas pesquisas acadêmicas, daí a importância do texto de Cavalcanti Junior.

Com os olhos voltados para um dos grandes ícones da cultura brasileira, Tadeu Pereira dos Santos analisa a condição de subalternidade do negro no Brasil pela biografia de Sebastião Bernardes de Souza Prata, conhecido como Grande Otelo. As representações sobre negros e atores na imprensa brasileira, fonte principal desse trabalho, coloca elementos depreciativos como definidores da carreira de Grande Otelo, como por exemplo, a estratégia constante de reforçar a presença do alcoolismo em sua biografia. Alguém realmente pode conceber que o excesso de consumo de álcool pode ser um elemento central na trajetória de uma figura marcante como Grande Otelo? Parece que para a imprensa e a sociedade civil brasileira, com seus preconceitos e estigmas, o artista negro merece destaque por aquilo que se espera de alguém como ele: instabilidade, vício e práticas religiosas abalizadas pela dubiedade. A malandragem e a astúcia, tomadas em determinados contextos como uma ação social pejorativa, passa a definir, no artigo de Tadeu Pereira dos Santos, uma estratégia de sobrevivência a ser exaltada. Não se trata apenas de discutir os Direitos Humanos como uma questão de ordem jurídica e moral, mas como mais uma expressão da necessidade de se humanizar determinados grupos marginalizados pela hierarquia social vigente.

Na esteira das reflexões sobre a marginalização dos negros a historiadora Priscila Xavier de Oliveira Scudder ancorada no mapa da violência 2016 e na obra “A democracia da Abolição” da filosofa Ângela Davis nos apresenta uma comparação entre as facetas do racismo nos Estados Unidos da América e no Brasil. Perscrutando a história brasileira e suas práticas racistas decorrentes do colonialismo que se apresenta em um viés duplo, a saber, no plano da organização social e da própria construção do saber acadêmico, denuncia assim, o apagamento / silenciamento das minorias no âmbito da esfera social e mesmo no campo das narrativas epistemológicas. Seu texto aponta para a necessidade de uma resistência intelectual e popular contra as práticas legitimadoras da subalternidade que favorecem a discriminação, as novas formas de escravização e, sobretudo o extermínio da população negra em nosso país.

Se falar em democracia e Direitos Humanos é, sobretudo, conferir humanidade aos destituídos dessa condição, o artigo de Eliete Borges Lopes e Luis Augusto Passos segue esse mesmo princípio ao dedicar-se à análise da população em situação de rua da chamada Ilha do Bananal, em Cuiabá. A noção de resistência abarca também estigmas sociais comuns no Brasil como a pobreza e a violência, alicerçados em um competente arcabouço metodológico composto por uma cartografia das ruas, uma pesquisa exploratória e uma interpretação-descrição dos fenômenos. Independente das condições de vida e marginalização desse território e de seus moradores, os autores se valem de uma sensibilidade acadêmica rara para identificar nos sujeitos de sua pesquisa aquilo que chamam de arte-fatos e afetos da vida da cidade, expressos na paisagem local negociada entre o patrimônio arquitetônico e os graffitis, além da visibilidade de certa performance da população em situação de rua. Há que se considerar, portanto o potencial de “educação popular” da Ilha do Bananal, em uma época em que a presença do poder público nesses espaços de marginalização se fortalece por meio de ações autoritárias e de políticas intervencionistas agressivas nomeadas como “higienização”

E por fim, contribuindo para o debate sobre as relações étnico-religiosas e as origens do discurso sobre os Direitos Humanos, Karina Arroyo e Murilo Sebe Bon Meihy trazem à tona a necessidade de se romper o monopólio ocidental sobre o discurso dos Direitos Humanos. O lugar do Islam, e especificamente de um de seus grupos mais perseguidos, os muçulmanos xiitas, é analisado nesse artigo por meio de uma espécie de aproximação dos valores da citada religião com a moralidade laica e universalista atribuída de forma unilateral ao Ocidente após o século XVIII. Neste artigo, da filosofia de Kant às interpretações dos textos religiosos do Islam por seus jurisprudentes, o caminho escolhido pelos autores é o de reforçar o diálogo entre culturas como precondição para o debate sobre a aplicação geral do legado dos Direitos Humanos. Os xiitas no Brasil são os atores centrais desta reflexão, o que obriga o leitor a considerar que se há um processo de identificação do Oriente Médio como o espaço de desrespeito flagrante aos pilares dos Direitos Humanos contemporâneos, não nos esqueçamos de que as principais vítimas desse tipo de violência são os próprios muçulmanos, especialmente grupos minoritários como os xiitas, tanto no Oriente Médio, como no Brasil.

Enfim, a Revista Albuquerque oferece a todos um mapa bastante detalhado do uso político e seletivo que se dá atualmente aos princípios democráticos e ao direito em geral. O contato com esse dossiê deve ser acompanhado desse espírito crítico. Em um mundo tão pouco democrático e desumanizado como o atual, ter acesso a esses textos é mais que uma atividade intelectual. Chega a ser um direito…

Boa leitura!

Murilo Sebe Bom Meihy – Professor de História Contemporânea do Instituo de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

Aguinaldo Rodrigues Gomes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em Educação do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]

MEIHY, Murilo Sebe Bom; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.9, n.17, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História Indígena: o campo interdisciplinar renovado / Albuquerque: Revista de História / 2017

CASTRO, Iára Quelho de; VARGAS, Vera Lúcia Ferreira; MOURA, Noêmia dos Santos Pereira. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.9, n.18, 2017. Acesso apenas pelo link original [DR]

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Patrimônio, Cultura Material e Imaterial: diálogos e perspectivas / Albuquerque: Revista de História / 2018


GIAVARA, Eduardo; FERREIRA FILHO, Aurelino José. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.10, n.19, 2018. Acesso apenas pelo link original [DR]

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A invenção dos direitos humanos: uma história | Lynn Hunt

A autora de A invenção dos direitos humanos, Lynn Avery Hunt, nasceu em 1945 no Panamá e cresceu no estado de Minnesota nos Estados Unidos da América. Atualmente, leciona História europeia na Universidade da Califórnia e utiliza os pressupostos da História Cultural em suas produções acadêmicas.

Vinculada à História Cultural, em A invenção dos direitos humanos Lynn Hunt salienta a importância de abordar as transformações das mentes individuais ao trabalhar os processos históricos. Sendo assim, nos capítulos iniciais do livro a autora busca elucidar as novas formas de compreensão de mundo surgidas no século XVIII que possibilitaram a construção de pressupostos como os presentes na Declaração de Independência Americana (1776) e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

A Declaração de Independência dos Estados Unidos, ao se desfazer da subordinação política para com a Coroa Britânica, fez uso das idéias iluministas ao declarar verdades auto-evidentes como igualdade de todos os homens e seus direitos inalienáveis: “Vida, liberdade e busca da felicidade”. Já a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi adiante e traçou que todos os homens são iguais perante a lei e que todos possuem o mesmo direito independente de sua origem ou nascimento. Pressupôs-se, então, a tolerância religiosa e a liberdade, além da autonomia e da independência dos homens.

Para as declarações, os direitos eram universais e iam além de classe, cor ou religião. No ato da escrita, já se partia da idéia de auto-evidência dos direitos, o que aponta para uma mudança radical nos pensamentos ao longo do século XVIII e insere uma problemática: se os direitos são auto-evidentes por que precisam ser declarados? Ao responder a essa questão Hunt salienta que a construção dos direitos é contínua.

As declarações são a materialização das discussões que haviam interpelado o século XVIII e rompiam com a estrutura tradicional de sociedade. Um novo contrato social foi forjado, centrado nas relações entre os próprios homens sem contar com o intermédio religioso: era o fim do absolutismo e a desconstrução do Direito Divino dos Reis de Jacques Bossuet. O fundamento de toda a autoridade se deslocou de uma estrutura religiosa para uma estrutura humana interior: o novo acordo social se dava entre um homem autônomo e outros indivíduos igualmente autônomos.

A montagem dessa nova estrutura só é possível devido a uma nova visão do homem: agora visto como alguém livre que tem domínio de si, que pode tomar decisões por si e viver em sociedade. A autonomia individual nada mais é do que a aposta na maturidade dos indivíduos. A partir dessa nova visão, nasce-se uma nova vertente educacional: modelada pelas influências de Locke e Rousseau, a teoria educacional deixa de focar na obediência reforçada pelo castigo para o cultivo cuidadoso da razão para formar esse novo homem crítico e independente.

Paralelo a isso, nasce-se uma nova visão de corpo. O corpo passa a ser algo de domínio privado, individual e não mais como algo pertencente ao corpus social ou religioso. Os corpos também se tornaram autônomos, invioláveis, senhores de si e individualizados.

Como um importante mecanismo de transformação, Hunt aponta a popularização dos chamados romances epistolares. As cartas enviadas pelas protagonistas abordam as emoções humanas para todos os leitores. As lutas de Clarissa e Pâmela, criadas por Richardson, além das questões de Júlia, escrita por Rousseau, fizeram com que os leitores reconhecessem que todos tem seus sonhos, almejam tomar suas próprias decisões e dirigir a própria vida. O desenvolvimento de um sentimento de empatia tornou possível a construção de pressupostos básicos como a autonomia, a liberdade e a independência, além da igualdade.

Outro exemplo de transformação social ocorrida no século XVIII foi a campanha contra a tortura. Hunt cita o caso Callas como disparador de um processo que espelhou a nova visão de corpo na sociedade francesa do século XVIII. Para Hunt, ler relatos de tortura ou romances epistolares causou “mudanças cerebrais” que voltaram para o social como uma nova forma de organização.

Houve uma queda na visão do pecado original, na qual todos são pecadores e duvidosos, para a ascensão do modelo de homem rousseauniano que aposta na bondade de cada indivíduo. Essa concepção, aliada ao novo conceito de corpo, agora dentro do limite privado, formulou um posterior novo código penal que gradualmente aboliu a tortura e deu ênfase à ressocialização do indivíduo. O corpo já não era punível com a dor para vingar o social e estabelecer um exemplo ao restante da população. O corpo agora era privado e o foco se tornou a honra social do indivíduo.

Após abordar as transformações que tornaram possíveis as declarações, Lynn Hunt se ateve às aplicações e ao processo de formação das sociedades ao tentarem aplicar esses direitos. Uma assertiva importante que a autora faz nesse capítulo é que declarar é um ato político de alteração da soberania: esta passou a ser nacional, pautada no contrato entre homens iguais perante a lei, sem intermédio da religião. Declarar significava consolidar o processo de mudanças que vinham ocorrendo ao longo do século.

Mesmo dizendo que naquele momento os direitos já eram auto-evidentes, os deputados criaram algo inteiramente novo que era a justificatição de um governo a partir de sua capacidade de garantir os direitos universais. Entretanto, nessa fase encontram-se os problemas inerentes a aplicação desses conceitos generalistas: declarar os direitos universais significava conceder direitos políticos às mais variadas minorias, e proclamar a liberdade colocava em cheque a escravidão colonial.

A partir daí muitos direitos específicos começaram a vir à tona na esteira: liberdade de culto aos protestantes significava direito religioso também aos judeus, bem como participação política; o mesmo acontecia com algumas profissões, além da situação das mulheres, defendida de maneira inovadora por Condorcet e Olympe de Gouges. Os direitos foram sendo concedidos gradualmente, a liberdade religiosa e os direitos políticos iguais às minorias religiosas foram concedidos no prazo de dois anos, bem como a libertação dos escravos.

A discussão da universalidade dos direitos foi caindo ao longo do século XIX. Alguns grupos assumiram as lutas políticas do século seguinte às declarações como os trabalhadores e as mulheres. O nacionalismo foi um protagonista importante da luta por direitos ao longo do século XIX, os pressupostos franceses internacionalizados pela expansão napoleônica surtiram o efeito inverso.

Após a dominação que caracterizou o período napoleônico, nos territórios ocupados se criou uma aversão a tudo que viesse dos franceses em detrimento do que simbolizasse uma identidade nacional. Com o tempo o nacionalismo foi tomando características defensivas e passou a ser xenófobo e racista, baseando-se cada vez mais em inferências de caráter étnico.

Teorias da etnicidade representaram um enorme retrocesso ao ideal de igualdade pois partiam para determinação biológicas da diferença, montando hierarquias e justificando a subordinação, e, por conseguinte, o colonialismo. Houve uma falência do novo modelo educacional, visto que dentro da nova ideologia social só algumas raças poderiam chegar à civilização rompendo também com o ideal de universalidade.

O ápice dessa visão nacionalista e racista foi a Segunda Guerra mundial, que com os milhões de civis mortos representou a falência dos direitos humanos, principalmente com os seis milhões de mortos por intolerância religiosa e discurso de raça. As estatísticas assombrosas e o julgamento de Nuremberg trouxeram à tona a necessidade de um compromisso internacional com os direitos humanos.

Apesar de reconhecimento da urgência desse compromisso, foi preciso estimular as potências aliadas a assinar a Declaração dos Direitos Humanos, visto que havia um receio de perder colônias e áreas de influência. Sendo assim, a Declaração de 1948 só foi assinada porque deixava claro que a Organização das Nações Unidas (ONU), ali criada, não influenciaria nos assuntos internos de cada país. Ao longo do tempo, as Organizações Não-Governamentais foram mais importantes para a manutenção dos direitos humanos ao redor do mundo do que a própria ONU.

A discussão acerca dos direitos humanos feita por Hunt termina por ressaltar o quão paradoxal é esse tópico, além da dificuldade de conter “atos bárbaros” até os dias atuais. Hunt (2009, p. 214) fala de “gêmeos malignos” trazidos pela noção de direitos universais: “A reivindicação de direitos universais iguais e naturais estimulava o crescimento de novas e às vezes até fanáticas ideologias da diferença”. Há uma cascata contínua de direitos repleta de paradoxos como o direito da mãe ao aborto ou o direito do feto ao nascimento.

Para Hunt, a noção de “direitos do homem”, bem como a própria Revolução Francesa, abriu espaço para essa discussão, conflito e mudanças. A promessa de direitos pode ser negada, suprimida ou simplesmente não cumprida, entretanto jamais morre.

Anny Barcelos Mazioli – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo; bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo. E-mail: [email protected].


HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 288p. Resenha de: MAZIOLI, Anny Barcelos. Um panorama da história dos direitos humanos: uma construção necessária. Revista Ágora. Vitória, n.25, p.142-145, 2017. Acessar publicação original [IF].

Carnaval e Ritmo / Revista Brasileira do Caribe / 2017

¡A RITMO CARIBE!

Los carnavales caribeños son expresiones culturales de síntesis y pugnas, en donde lo simbólico y lo material se dan cita una vez por año para restaurar memorias festivas, irónicas, tradicionales y ampliamente populares a través de sus músicas, bailes, trajes, juegos, personajes, escenificaciones mitológicas y espectáculos característicos. El presente número de la Revista Brasileira do Caribe tiene como objetivo abrir un diálogo regional en torno al complejo mosaico que configuran los carnavales caribeños contemporáneos.

Pese a que muchas veces asumimos o vivimos los carnavales como espacios de total libertad o de disolución de las fronteras sociales, lo cierto es que los festejos carnavaleros han enfrentado históricamente una serie de construcciones normativas, morales, económicas, políticas y patrimoniales, fenómenos que en nuestros días han redundado en toda suerte de reglamentaciones a sus desfiles, estandarizándolos como espectáculos exóticos de alto costo.

Así, ciertos festejos de la escena latinoamericana y caribeña se han homogeneizado y elitizado, convirtiendo una celebración de origen predominantemente disidente, diversa y popular, en un espectáculo mayoritariamente hegemónico y con un alto nivel de exclusión.

Entendemos la hegemonía como el estado en el cual los grupos dominantes ejercen una dirección ideológica sobre la manera en la que los sectores dominados conciben el mundo para legitimar y mantener el poder. Funciona desde la subordinación política, social y económica, más lo hace por consentimiento, permitiendo la coexistencia “pacífica” de heterogéneos e incluso antagónicos sectores sociales en un mismo espacio social. El rol de la hegemonía es garantizar la reproducción de una sociedad jerarquizada. Sin embargo, ella no es ni estable ni fija. Al contrario, parte de su eficacia radica en su capacidad de actualización y reproducción permanentes.

La disidencia por su parte, a diferencia de la rebelión, no confronta directamente a los detentores del poder. Se trata de acciones cotidianas y concretas que intentan detener los procesos de homogenización hegemónicos. Las respuestas disidentes suelen tener un origen sutil, poco visible, pero trascendentales en la medida en que logran realizarse históricamente, proyectarse socialmente y mantenerse en el tiempo, pudiendo configurarse como respuestas contra-hegemónica, es decir, de disputa directa al papel ideológico, sociopolítico y/o económico de los sectores dominantes.

En este marco, las grandes fiestas públicas aparecen como espacios privilegiados para la expresión de resistencias simbólicas y respuestas disidentes o contra-hegemónicas frente a la cultura dominante, aun cuando el festejo y su vistosidad expresiva puedan volcarse al poder o al mercado, al punto de desdibujar la politicidad de sus posiciones.

Como veremos a lo largo de los artículos de este dossier, el carnaval caribeño contemporáneo sigue siendo un espacio político en el que las identidades y relaciones sociales de clase, “raza”, etnia y género, se dan cita para reivindicarse, contestarse y reconfigurarse, transformando también al carnaval oficial en una vitrina simbólica de contradicciones sociales. O bien, generando respuestas autogestivas, en forma de carnavales no oficiales, a los diferentes tipos de dominaciones económicas y políticas al festejo.

Todas estas dinámicas, están además enmarcadas en políticas multiculturales del turismo global y la institucionalidad patrimonializadora, que vuelven un terreno aún más complejo y ambiguo al carnaval, haciendo de lo tradicional un espectáculo contemporáneo, y de lo popular una alegoría festiva que muchas veces queda excluida de su propio festejo.

Abordamos el carnaval caribeño contemporáneo desde sus rincones más vistosos, pero también más difusos, desde sus múltiples dimensiones y formas, así como también desde sus significaciones escondidas, camufladas. Cada artículo es una vitrina que permite afinar nuestra mirada, instándonos a abrir nuevas preguntas y posibilidades interpretativas sobre las especificidades y rasgos compartidos de los muchos carnavales caribeños, como también sobre las fricciones y conflictos latentes en su festejo: tensiones entre espectador y participante activo; adaptaciones de danzas y músicas “tradicionales” a un gusto “global”; reivindicaciones políticas y valorizaciones estéticas en resistencia que conviven con presiones económicas tendientes a su homogeneización; negociaciones y reivindicaciones de identidades invisibilizadas; y la constante pugna entre control y reglamentación del festejo, y su insistente subversión impúdica, satírica, creativa y organizativa.

En concordancia con la línea editorial de la Revista, comprendemos geográfica y simbólicamente el Caribe desde una amplia perspectiva territorial, como un dinámico espacio social, cultural, geopolítico y económico, que va más allá de las Antillas, abarcando las costas del Circuncaribe en centro, norte y sur América, lo que nos permite incluir reflexiones sobre expresiones de carnaval en “los caribes” colombiano, venezolano y mexicano. Asimismo, extendemos nuestra comprensión sobre “lo caribeño” a aquellos lugares donde el legado de la diáspora afrodescendiente y mestiza, producida durante la esclavitud colonial por los procesos de trata trasatlántica y comercio triangular, son parte fundamental en la cultura y la so ciedad caribeña contemporánea. Así, además de los territorios antillanos considerados –Haití, Cuba, Trinidad y Tobago y República Dominicana–, abordamos ejemplos situados en Brasil, en diálogo con Jamaica o EE.UU., o incluso coordenadas ampliamente lejanas de su propia geografía, resultantes de procesos migratorios contemporáneos, donde aparecen el Carnaval en Melbourne, Australia, o el recientemente inaugurado Carnaval Multicultural Migrante en Santiago de Chile. Dinámicas festivas caribeñas que en ese flujo dinámico y migrante, terminan siendo recreadas, actualizadas y adoptadas como propias.

El dossier abre con la sección Hegemonía y carnaval en el Caribe contemporáneo el cual incluye dos artículos de autoría de las dos organizadoras. En ellos se discuten las aproximaciones eurocéntricas, hoy clásicas, sobre el carnaval, para proponer rutas teórico-metodológicas propias, adaptadas a las especificidades de la escena carnavalera latinoamericana y caribeña. Después de habitar, desde la investigación festiva, diferentes expresiones del carnaval en la región, fue evidente que los planteamientos de Peter Burke, Julio Caro Baroja y Mijail Bakthin (tantas veces citados), no eran ya suficientes para explicar las complejidades y particularidades de los carnavales caribeños contemporáneos, considerados en su perspectiva histórica. Además, muchos de los procesos de mercantilización, significación política, subversión simbólica, reivindicación identitaria, (in)visibilización, disciplinamiento, resistencia y patrimonialización que identificamos, desbordan ampliamente las explicaciones clásicas del fenómeno carnavalesco. A partir de esta constatación Lorena Ardito desde la apropiación, deconstrucción y resignificación de la teoría cultural de Raymond Williams, y Laura De la Rosa desde la actualización metodológica propuesta por Michael Houseman, desarrollan su propuesta a la luz de dos ejemplos histórico-concretos del carnaval circuncaribeño. Esta sección cierra con el artículo de Danny González quien a través de sus análisis de imágenes (propias y de archivo) del Carnaval de Barranquilla, Colombia, nos ofrece un ejemplo de cómo una hegemonía estética se va construyendo y afianzando a través del lente fotográfico.

A continuación, cuatro artículos en la sección Disputas y horizontes en la escena de la calle discuten las tensiones entre hegemonías, contra-hegemonías y disidencias que tienen lugar en el espacio público. Las calles que se suponen comunes, colectivas, se vuelven espacios de confrontación entre el afán de control y reglamentación “desde arriba” del “orden” establecido por las élites y la reapropiación creativa de los sectores subalternos que responden desde el propio carnaval, como un espacio para la reivindicación, la ironía, la autoafirmación y la disputa.

El primer caso es expuesto por Mathilde Pèrivier, quien hace un contraste entre las notas periodísticas que muestran las “bandes-a-pie” del Carnaval de Puerto Príncipe en Haití, como “destructoras del espacio público”, y los datos recogidos en su trabajo de campo que demuestran la potencia en los procesos de re-significación política y articulación social comunitaria de los territorios habitados por las prácticas festivas de los grupos de jóvenes Seguidamente, Karen Gómez analiza la transformación patrimonial de uno de los blocos afrobrasileros más representativos del movimento musical, social y político del Samba Reggae, Ilê Aiyê, luego de haber irrumpido en el desfile de 1974, ser perseguido por la policía y recibir el apelativo de “bloco racista” por la prensa y las élites locales. Utilizando como bandera el ritmo de los terreiros de candomblé, la formación instrumental de las Escolas de Samba, la consciencia musical del reggae jamaiquino y la inclusión de los procesos reivindicativos afronorteamericanos del Black Power, Ilê Aiyé logró instalar un proceso de autoafirmación etnica e institucionalizar un espacio educativo propio en el entorno del barrio “de periferia”, utilizando como tribuna al propio carnaval que antaño le fuera negado.

Karina Smith, por su parte, traslada la discusión de la disputa por el derecho a las calles que tiene lugar en los festejos carnavaleros de Australia. En este caso, una comunidad negra anglófona venida del Caribe, encuentra en el desfile Moomba su espacio de visibilización en una sociedad que, aunque se declara multicultural, no se reconoce como multirracial.

Para cerrar esta sección central del dossier sobre disputas y escenificaciones carnavaleras en la escena de la calle, presentamos el trabajo de Priscilla Stilwell, quien realiza una comparación entre el arte callejero y festividades públicas masivas –dentro de las que considera al carnaval–. Su principal eje analítico es el uso social que adquiere el espacio público en tales manifestaciones, reiterando el poder de las calles como escenarios de expresión política popular, así como su potencial de reivindicación y disputa, cuya relevancia en América Latina y el Caribe radica en nuestras profundas condiciones de desigualdad social, conflicto y exclusión.

Finalmente, el dossier cierra con la sección Caribe a contracorriente el cual incluye dos trabajos histórico-sociales sobre los carnavales de Santiago de Cuba y Cartagena de Indias, territorios plenamente insertos en las dinámicas globales del colonialismo, la expansión capitalista, la trata trasatlántica esclavista, y sus formas conexas de organización social y simbólica, racializada y sexualizada, de la desigualdad. En ambos, se constata la ineludible impronta eurocéntrica en la formación de la sociedad y la cultura caribeñas, no obstante, también se evidencian los procesos de interconexión, respuesta y resistencia “desde abajo” que disputan el derecho a re-fundar un Caribe con voz propia.

Daniela Quintanar nos remite a la enorme influencia de la migración haitiana en el oriente cubano desde finales del siglo XVIII, empujada como consecuencia de la Revolución Francesa. Procesos globales que se actualizan en lo local, en este caso, como expresión de diversidad e interconexión que se manifiesta en los carnavales, músicas, danzas y formas de organización social (los cabildos de nación), adoptadas y adaptadas en Santiago de Cuba, como parte de una historia común diversa en las Antillas.

En el artículo de cierre del dossier Milton Moura propone una lectura irónica, desde el espíritu carnavalesco de la ciudad de Cartagena de Indias, al afán de control imperial español, recapitulando códigos normativos y cartas apostólicas, que pretendieron en el siglo XVIII constreñir la fiesta popular sin éxito, escandalizándose por la tozuda insolencia de sus protagonistas negros, pobres y artesanos.

Fuera del Dossier, en Otros artículos, Massimiliano Cartas describe el fenómeno de las artistas que afiliaron sus imágenes a la religión afro caribeña.

Invitamos a nuestros lectores y lectoras a recorrer las calles de este Caribe ampliado, danzando sus rasgos históricamente hegemónicos, contra-hegemónicos y disidentes, al ritmo de sus comparsas, disfraces, grupos musicales y cantos satíricos.

Agradecemos a todas las autoras y autores cuyas miradas enriquecen y entregan nuevas perspectivas a los planteamientos iniciales del presente dossier, como también a Olga Cabrera, por su infinita paciencia y compromiso con desenterrar de la Cuaresma a estos carnavales caribeños contemporáneos.

Laura de la Rosa Solano Lorena Ardito


SOLANO, Laura de la Rosa; ARDITO, Lorena. Carnaval e Ritmo. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.19, n.34, p.9-14, jan./jun., 2017. Acessar publicação original. [IF].

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Arquivos literários: teorias, histórias, desafios – MARQUES (A-EN)

MARQUES, Reinaldo. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. Resenha de: COELHO, Haydée Ribeiro. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2015. Alea, Rio de Janeiro, v. n.  jan./apr. 2017.

Arquivos literários, comparativismo e outras navegações

O livro que resenhamos, do professor e pesquisador Reinaldo Marques, decorre de reflexões teóricas, da prática de pesquisa em acervos e de sua experiência administrativa como diretor do Centro de Estudos Literários e Culturais da Faculdade de Letras da UFMG. Quatro dos nove ensaios que compõem o livro trazem nos títulos o termo “arquivos literários”. Qual o sentido de arquivo literário? Como conceituá-lo? Na “Apresentação”, o autor afirma ser um conceito que “resultou numa ficção teórica para ficar num registro borgiano” (p.10) e “como produto de uma atividade especulativa (…) remete a um objeto mais imaginado e ideal nem sempre localizável no mundo empírico” (p. 11).

Na exposição sobre o arquivo e a Literatura Comparada (“Arquivos Literários e reinvenção da Literatura Comparada”), parte da perspectiva de Spivack diante dos rumos da Literatura Comparada na contemporaneidade, destacando, entre outros, aspectos como a tradução e o diálogo transdisciplinar, o que o leva a ressaltar ainda o sentido da literatura comparada como “multilíngue”. A partir das questões do comparativismo, propõe pensar no “arquivo literário” e “no pesquisador comparatista no arquivo” (p. 18). Em relação ao primeiro aspecto, são objeto de consideração os sentidos topológico e monológico do arquivo; sua desterritorialização e reterritorialização (que se dá na passagem do privado ao público) e o limiar do privado ao público. A “feição heterogênea” dos “fundos documentais” e a abordagem transdisciplinar, que requer metodologias da arquivologia, da museologia e biblioteconomia, são alguns dos pontos que propiciam o estudo do “arquivo literário” sob a perspectiva do comparativismo.

A reflexão teórica sobre o arquivo, advinda de saberes diferentes como Filosofia, Política e, ainda, Estudos culturais, suscita a noção de “arquivo literário” como “espaço aberto e inacabado, zona de contato e relações entre distintas temporalidades e subjetividades, capaz de percorrer descontinuidades e estranhamentos em relação ao tempo presente, a ativar anacronismos potencialmente problematizadores da racionalidade arcôntica, estatal e científica, da evidência histórica, que normalmente rege o arquivo” (p. 22).

Se, por um lado, o arquivista é responsável por zelar pelos documentos, normalizar, hierarquizar, armazenar e recuperar os dados nos arquivos, cabe ao pesquisador comparatista “desconstruir a ordem estabelecida (…) a intencionalidade que a estruturou” (p. 25). Tornando-se um “anarquivista”, o pesquisador comparatista está atento aos jogos que envolvem o poder e o saber, torna-se um “genealogista” (o que remete ao sentido de arquivo para Michel Foucault). É importante salientar que a proposta do autor dos ensaios, conforme esclarece em nota, anarquizar não corresponde a “bagunçar” o arquivo, mas interpretar os documentos, estabelecendo outras lógicas, outros deslocamentos que podem ser realizados com base nas tendências do comparativismo contemporâneo.

O segundo ensaio do livro, “Arquivos literários, entre o público e o privado”, está dividido nas seguintes seções: Arquivos de escritores: desterritorializações e reterritorializações; O público e o privado: rasuras; O arquivo do escritor no espaço privado; e O pesquisador, o arquivo, a lei. Nos primeiros parágrafos do estudo, há o questionamento da crítica textual, tendo em vista outras abordagens como a pós-estruturalista e aquela desenvolvida pelos estudos culturais. Essas tendências, aliadas aos estudos já existentes sobre os arquivos, podem trazer contribuições inovadoras, como fica comprovado ao longo dos nove ensaios de Arquivos literários: teorias, histórias, desafios.

Ao ser evidenciada a diferença entre a noção de “arquivo literário” daquela de “arquivo do escritor”, é ressaltado que este “ganha visibilidade na cenografia do arquivo literário, exibindo máscaras da persona autoral” (p. 35). Na comparação entre posições críticas (de Michel Foucault e de Jacques Derrida), é observado que a concepção de arquivo para o primeiro é “mais acentuadamente discursiva” (p. 36). Para o segundo filósofo, o princípio institucionalizador do arquivo está marcado pelo “lugar de consignação”. O poder arcôntico da interpretação faz com que Reinaldo Marques trate das relações entre a retórica e os arquivos. A explicitação dos sentidos de “mal de arquivo” expõe as singularidades da teoria derridiana.

A noção de “arquivo do escritor” suscita reflexões sobre o público e o privado, abrindo espaço para um campo amplo de indagações. O autor do estudo toma como referência textos básicos da teoria política moderna (A condição humana, de Hannah Arendt e Mudança estrutural da esfera pública, de Jürgen Habermas). No contexto do mundo globalizado, há um “encolhimento do espaço público” (p. 49), havendo repercussões sob o ponto de vista ético. Ao abordar o arquivo do escritor no espaço privado, muitas são as ideias que Reinaldo Marques deixa semeadas no caminho de nossa leitura, cartografada por ele: a institucionalização da vida privada pela difusão da leitura e da escrita; a biblioteca como refúgio, gerando um duplo afastamento (público e civil); o mundo privado da escrita em comunicação com o público; a relação entre a vida privada e o mundo burguês; o “indivíduo privado” buscando os “holofotes da publicidade”; o “entre-lugar” habitado pelo escritor e “a prática de arquivamento de si”. Esse último ponto é exemplificado com base na correspondência trocada entre Abgar Renault e Carlos Drummond de Andrade, escritores mineiros, cujas missivas são abordadas também em outro estudo do livro, tendo em vista o conceito “locação”, associado ao moderno “nos níveis literário, cultural, político e dos afetos” (p. 174).

Ainda no segundo ensaio, na seção destinada ao pesquisador, ao arquivo e à lei, é salientado, entre outros aspectos, no âmbito do público e do privado, o diálogo entre a arquivologia e o direito. Ao mostrar que o trabalho bemsucedido com os arquivos se realiza pela publicação dos resultados, o autor do livro em destaque, menciona dois exemplos de pesquisa “em acervos literários, um de êxito, outro de dificuldades”. No primeiro caso, refere-se aos trabalhos realizados e publicados a partir dos arquivos de Henriqueta Lisboa e, no segundo, ao “Diário alemão”, texto que foi traduzido e mantido inédito por questões jurídicas. Nessa exposição, fica claro que o arquivo e a memória representam um “campo de lutas políticas” (p. 83). É oportuno ressaltar que “Grafias de coisas, grafias de vida” (outro ensaio do livro) aborda justamente o “Diário alemão”, de Guimarães Rosa. O caráter heterogêneo dos “seis cadernos de anotações de João Guimarães Rosa” demandou um trabalho que abarca diferentes questões tratadas nos itens: leitura e escritura como coleção; a memória das coisas: breve biografia de um documento e biografias entrecruzadas.

No início desta resenha, mostrei que o termo “arquivo literário” aparece nos quatro primeiros ensaios do livro em destaque. No volume publicado, como no conto de Jorge Luis Borges, os artigos de Reinaldo Marques se imbricam e se bifurcam. Nesse sentido, a seguir, tratarei de aspectos que se interceptam e que criam outras possibilidades de análise dos arquivos, levandose em consideração o que já foi exposto e outros caminhos apresentados, no livro, sobre os arquivos.

A importância da imagem na cena contemporânea implica o estudo das representações do escritor, como este se encena nos “arquivos literários”. Tomando como referência o texto de Philippe Artières, Reinaldo mostra que, nas sociedades letradas, a existência dos indivíduos se faz pelo registro escrito. Ao utilizar o conceito de “arquivamento do escritor”, ele revela um duplo movimento que está associado ao arquivamento de papéis e ao arquivamento do próprio escritor que produz imagens de si mesmo, ao arquivar. Nos acervos literários, encontra-se uma variedade de imagens de escritores (“grafemáticas, fotográficas, plásticas, entre outras”). Exemplos ilustrativos, de imagens pictóricas, depreendidos do “Acervo de Escritores Mineiros”, dominam parte do ensaio destinado às imagens do escritor e aos arquivos literários. Os aspectos assinalados permitem que o leitor estabeleça conexões com outro texto do volume. Refiro-me ao artigo “O arquivamento do escritor” em que são assinalados “aspectos apontados por Philippe Artières, na constituição de arquivos pessoais” em confronto com “práticas de arquivamento” de escritores mineiros.

O pesquisador, que anarquiza o arquivo, não perde de vista os “restos” dos arquivos. Como dar conta dos “restos e ruínas”? Para essa travessia, Reinaldo se vale teoricamente das noções de “resíduos e farrapos da história”, de Walter Benjamin; da noção de “resto”, de Giorgio Agamben; e das considerações de Jeanne Marie Gagnebin, explicitadas na apresentação do livro do filósofo italiano – O que resta de Auschwitz. Na esteira da História, não faltam ainda em Arquivos literários: teorias, histórias e desafios, comentários sobre as relações entre arquivos literários e a formação do Estado Nacional; sobre o discurso e o saber sobre a literatura “capitaneado pela universidade”; sobre o papel pioneiro da Academia Brasileira de Letras, e a respeito das histórias locais e os arquivos literários brasileiros.

No último ensaio do livro, Reinaldo mostra que Terry Cook, ao abordar a questão dos arquivos, fornece elementos para se pensar na “dimensão subjetiva e de intervenção do arquivista”. Essa vertente da subjetividade, aliada ao conceito de “imaginação construtiva” (termo utilizado por Robin George Collingwood), evidentemente institui uma ligação intrínseca com o conceito de “arquivo literário” decorrente de uma “ficção teórica”. Apoiado na “imaginação construtiva”, que não perde de vista o “faro para a ‘estória’”, o autor do livro oferece múltiplas navegações em rede. Por essa e por outras razões explicitadas, a publicação comentada constitui uma referência fundamental para o estudo dos arquivos.

Haydée Ribeiro Coelho Professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Possui Graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1973); Mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais (1981); Doutorado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (1990) e Pós-Doutorado pela Universidad de la República, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o exílio de Darcy Ribeiro no Uruguai. Dedica-se, atualmente, às interlocuções culturais, literárias e críticas entre o Brasil e a América Latina. Atualmente, é coordenadora do GT ANPOLL Relações Literárias Interamericanas. E-mail: [email protected]

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Debates, polêmicas e conflitos: relações entre estabelecidos e ‘outsiders’ no ocidente tardo antigo e medieval / Ágora / 2017

O dossiê temático desta edição, intitulado “Debates, polêmicas e conflitos: relações entre estabelecidos e outsiders no Ocidente tardo antigo e medieval”, teve como proposta, e objetivo principal, reunir trabalhos que discutam a História do Ocidente tardo antigo e medieval, incluindo estudos sobre o pensamento. Foram aceitos trabalhos sobre todos os tipos de debates, polêmicas e tensões entre poderes em conflito, maioria e minorias, Igreja e dissidentes, que enfoquem os temas tratados.

O primeiro artigo é de autoria de Álvaro Alfredo Bragança Júnior e versa sobre um gênero literário, a Narrenliteratur (literatura dos insensatos), cujo principal objetivo era advertir o homem de então dos perigos de uma nova instância reguladora do orbe, não sendo a Igreja. Sebastian Brant com seu Das Narrenschiff (A nau dos insensatos) critica os desvios de então, personificando os agentes sociais como insensatos, que se deixam levar por novos modelos de comportamento. O espaço é o Sacro Império e o o recorte temporal é o século XV.

O segundo artigo é de autoria de Ana Paula Tavares Magalhães (USP), que também coordena este dossiê e trata do franciscanismo, um tema que tem reaparecido e gerado interesse na academia e na sociedade. Como ela explica, trata-se de uma “[…] controvérsia fundamental no interior da Ordem Franciscana ao longo do século XIII e parte do século XIV que opôs duas formas de interpretação da regra: ao passo que os “Conventuais” eram defensores de uma observância ampla, os “Espirituais” preconizavam a observância estrita, conforme o que imaginavam ser o projeto original de Francisco”.

O terceiro artigo nos vem do Paraná e também trata do franciscanismo. É de autoria de Angelita Marques Visalli e seu tema enfoca um dos espirituais franciscanos, nos apresentando uma abordagem sobre o personagem Jacopone de Todi (1236- 1306) a partir das relações de poder tanto institucionais (relação com o papado) como pessoais. Alocado na Itália medieval, no século XIII e início do XIV e no auge do conflito entre conventuais e espirituais. Faz, portanto um conjunto, com o artigo anterior, pois elabora um estudo de caso meticuloso, com análises de textos em italiano medieval e reflexões inéditas sobre este personagem.

O quarto texto é de um colega que colabora como nosso grupo de pesquisa há mais de uma década, sendo especialista em Inquisição e autor de alguns livros. Trata-se de Geraldo Magela Pieroni (UTP/PR) em conjunto com Alexandre Martins, doutorando em Filosofia (PUC/PR). O artigo denominado “Heréticas à margem: os estabelecidos inquisidores e as bruxas outsiders” faz um interessante contraponto entre a teoria de Elias e Scotson e as inter relações entre inquisidores e as mulheres acusadas de bruxaria. Como nos dizem os autores: “Muitas mulheres foram acusadas de práticas desviantes que maculavam a ortodoxia religiosa. Quem determinava estas condutas consideradas fora da lei? O que legitima a criminalização de um grupo acusado de heterodoxo? As leis são filhas do tempo no qual foram produzidas e, portanto, é inequívoco o embate entre duas visões de mundo, de um lado, a concepção erudita dos juristas e teólogos os quais definem situações e comportamentos como “certos” ou “errados”; e do outro, a da cultura popular do povo supersticioso”.

O quinto artigo nos vem de um dos discípulos do homenageado neste dossiê, que atingindo a titulação de doutor, pode homenagear seu mestre e amigo com esta publicação. Trata-se de Germano Miguel Favaro Esteves (UNESP/Assis) com seu artigo: “Entre a fé e o pecado: o olhar feminino na Incipit Obitvs cvivsdam Abbatis Nancti” que através da análise de um clássico da hagiografia do período visigótico, a obra “Vida dos Santos Padres de Mérida” faz uma análise da aguda misoginia clerical do personagem Nanctus. O tema é muito contemporâneo, mesmo sendo da Antiguidade Tardia e espacialmente alocado no reino visigótico, pois mostra a visão eclesiástica da malignidade da mulher e dos riscos que elas apresentam a um homem santo.

O sexto artigo, alocado na História das Mulheres enfoca a contribuição de uma mulher à cultura medieval, mostrando a participação destas na sociedade. O artigo vem do nordeste e é de autoria de Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne (UFPB) e se denomina: “As memórias de Leonor López de Córdoba (1362/23-1430): inaugurando linhagens”. Nas palavras da autora trata-se de: “[…] obra escrita nos primeiros anos do século XV e considerada a primeira autobiografia em castelhano. Dada a importância desta obra, tanto do ponto de vista histórico, quanto literário, o estudo busca evidenciar a contribuição das mulheres nos estudos sobre gêneros autobiográficos […]”.

O sétimo artigo é de Mario Jorge Mota Bastos (UFF/Niterói/RJ) e se denomina: “Estabelecidos e outsiders na medievalística contemporânea”, nos traz reflexões sobre o tema no âmbito da historiografia. O autor visita a escrita da história recente, nos colocando a percepção dos europeus, em relação aos medievalistas de outros continentes e suas contribuições. Indaga e reflete sobre a visão de quem vive nos espaços outrora medievais, em relação a nós e outros como nós, e a nossa obra desenraizada, já que não tivemos medievo. Mário questiona, provocando a polêmica: “[…] Mas, será que de fato lhes pertence, de alguma forma superior ou específica, o “passado” em questão? Seremos, todos nós ‘outros’, outsiders ao promovermos a medievalística desde as “periferias” do mundo contemporâneo?”.

O oitavo artigo também vem da UFF (RJ) e é de autoria de Renata Vereza e se denomina: “Revendo a ideia de tolerância: os contornos da marginalização das comunidades mudéjares castelhanas no século XIII”. Um artigo que busca refletir sobre as relações dos castelhanos cristãos com os muçulmanos dos territórios ‘reconquistados’ pelos reis Fernando III e Afonso X, além de outros anteriores e posteriores. A autora revisita o conceito da ‘convivência’ tão caro aos historiadores no período da celebração dos 500 anos da reconquista/descoberta da América (1491/1992). Tenta demonstrar que já havia conflitos e tensões no século XIII e que se tornarão mais fortes no século XVI.

O nono artigo nos traz o segundo discípulo de nosso homenageado, que foi seu primeiro doutorando a defender na UNESP/Assis. Trata-se de Ronaldo Amaral (UFMS – Campo Grande) e que nos apresenta um artigo denominado: “Entre a longa-duração e a ruptura: a consciência mítica medieval apreendida pela dialética do eu e do outro no mesmo”. Traz no artigo uma ampla reflexão da compreensão de mundo no período tardo antigo ( e diria também medieval). Como nós, hoje, podemos entender o homem do passado? Seus códigos, sua concepção do mundo são vistos, por nós através das lentes do presente. O autor sugere: “Contudo, não havendo a possibilidade de encontrar o pensamento e o modus desse pensar do homem do pretérito por ele e nele mesmo, só poderemos apreendê-lo a partir de nós, no interior de nosso próprio espírito, e por meio de uma dialética entre a alteridade e a identidade, quando, sobretudo esta última poderá sobreviver ainda que obnubilada e ressignificada pela primeira”.

O décimo e último artigo é de minha autoria, como coordenador deste dossiê, não poderia deixar de homenagear Ruy de Oliveira Andrade Filho com um texto, mesmo se humilde demais, para tal missão. Como nos conhecemos estudando Isidoro de Sevilha e o reino visigótico de Toledo, não poderia ser outro o texto que agregaria a esta coletânea de autores para homenagear Ruy. Meu texto se denomina: “A ética e a concepção religiosa de Isidoro de Sevilha: o livro das Sentenças”. O artigo analisa a concepção de mundo isidoriana, na qual o mundo é um palco do confronto entre o bem e o mal, Deus e o diabo, chegando a se aproximar de um dualismo inaceitável para a Igreja. Nas palavras do autor, o artigo: “[…] pretende descrever e analisar a visão de mundo isidoriana, vista através do prisma da luta do Bem e do Mal, do confronto entre as boas ações e os pecados, que emana desta obra. A vida humana é o palco da luta das virtudes contra os vícios/pecados (De pugna virtutum adversus vitia). Tudo o que for prazer carnal, é definido como uma armadilha, uma tentação que leva o homem a cair nos braços do Diabo. Para vencer as tentações do Diabo e da carnalidade deve se elevar aos céus, a Deus”.

Ana Paula Tavares Magalhães

Sergio Alberto Feldman

Organizadores.

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Mythos | UEMASUL | 2017

Mythos Jamaxi

Mythos – Revista do Núcleo de Estudos Multidisciplinares de História Antiga e Medieval (Imperatriz, 2017-),  originou-se do interesse de investigação de docentes e discentes sobre mundo antigo e medieval. As civilidades antigas, sejam orientais, sejam ocidentais, bem como a sociedade do ocidente medieval, são as matrizes culturais da sociedade contemporânea e revelam muitos aspectos das origens do nosso comportamento social. Olhar para o passado é, em certo sentido, olhar para si mesmo. A revista tem como objetivo divulgar e estimular o desenvolvimento de novas pesquisas acerca das sociedades antigas e medievais. Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão – UEMASUL

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN:  2527-0621

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Trabalhismo, populismo e democracia na América latina / Canoa do Tempo / 2017

Diante de um quadro político marcado pelo avanço de uma onda conservadora e por sucessivos ataques à democracia, não apenas no Brasil, mas também pelo mundo afora, propusemos um dossiê intitulado “Trabalhismo, Populismo e Democracia na América Latina”. O objetivo central foi buscar subsídios para compreender a conjuntura política atual e a crise radical das instituições democráticas brasileiras, fazendo uma reflexão sobre os fenômenos do Populismo e do Trabalhismo bem como sobre as experiências democráticas nesses países.

Para iniciar essa discussão, apresentamos o artigo A flexibilização da legislação trabalhista brasileira: a redução dos direitos garantidos pela Consolidação das Leis do Trabalho ao longo do tempo, de Alisson Droppa. Nesse trabalho, o autor busca fazer uma relação entre as modificações ocorridas na Consolidação das Leis do Trabalho a partir do golpe civil-militar de 1964, apresentadas como uma “primeira onda liberal” e a atual investida sobre a legislação trabalhista e a nova onda de ataques sobre os direitos sociais.

Em Da harmonia ao conflito: a Delegacia Regional do Trabalho em Alagoas (1956- 1959), Anderson Vieira Moura se propõe a analisar atuação de Edson Falcão na Delegacia Regional do Trabalho (DRT) em Alagoas, destacando os conflitos e disputas que acabaram acarretando um desgaste de sua figura junto com os O autor faz uso de vasta documentação, utilizando de atas sindicais, reportagens de jornais, processos trabalhistas e até uma entrevista feita com seu primogênito.

Amaury Oliveira Pio Jr busca discutir as relações políticas que se desenvolvem no estado do Amazonas a partir da implantação da Revolução de 30 e do novo modelo sindical proposto por Getúlio Vargas. Para isso, analisa o periódico Tribuna Popular, jornal inicialmente vinculado ao Partido Trabalhista Amazonense (PTA) e que representava um importante veículo de divulgação do projeto varguista no estado. No artigo Jornal Tribuna Popular e a construção de um ideário “proto-trabalhista” no Amazonas, o autor percebe o surgimento de uma proposta trabalhista em um estágio embrionário já na década de 30 no estado.

No artigo Conflitos, solidariedade e formação de classe – “nacionais” e estrangeiros nos primórdios da mineração de carvão do Brasil (1850-1950), Clarice Speranza analisa as relações entre trabalhadores brasileiros e imigrantes na construção nas minas de carvão do Sul do Brasil. Discutindo o processo de migração e sua importância para o o desenvolvimento das minas de carvão, destaca ainda a resistência desses trabalhadores, suas formas de organização e a tensão percebida entre uma identidade de ofício calcada na coesão e na solidariedade e a existência de espaços de segregação entre os trabalhadores.

Cremos que esse seja um momento extremamente apropriado para discutir temas como as investidas sobre a legislação trabalhista, os ataques sobre os direitos sociais e as estrategias de resistência e organização dos trabalhadores. Que a leitura dos artigos do dossiê possa contribuir para o debate e a reflexão sobre o tema. Agradecendo a excelente contribuição dos autores, desejamos uma boa leitura.

César Augusto Bubolz Queirós – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail: [email protected]

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Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina – MARTÍNEZ-PINZÓN; URIARTE (A-RAA)

MARTÍNEZ-PINZÓN, Felipe; URIARTE, Javier (Editores). Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 2016. Resenha de: JARAMILLO, Camilo. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.27, jan./abr. 2017.

“En el principio fue la guerra y todo en América Latina tiene la marca de esa experiencia bélica fundacional, el big-bang que habría hecho posible la independencia, naciones, realidades políticas, [y] soberanías” (p. 88). Esta certera oración, escrita por Álvaro Kaempfer en la colección de ensayos que este texto reseña, es la idea estructural del reciente libro editado por Felipe Martínez-Pinzón y Javier Uriarte, Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina. Aunque informado por discusiones políticas e históricas, Entre el humo y la niebla busca reflexionar, sobre todo, y como su título lo dice, acerca del campo de las representaciones culturales y las maneras en las que estas han pensado y teorizado la guerra y, de paso, reforzado o desestabilizado lo que se entiende por ella. Al enfocarse en la literatura, la fotografía u otras formas de prácticas culturales, el libro llena un vacío en la producción académica latinoamericana, a la vez que extiende el diálogo con otras publicaciones de algunos de los autores también incluidos en la colección de ensayos, como los de Julieta Vitullo, Martín Kohan y Sebastián Díaz-Duhalde1. Uno de los hallazgos fundamentales del libro está en trascender la idea de la guerra como acto político e histórico y preguntar, como lo hacen los editores, “de qué hablamos cuando hablamos de guerra” (p. 24). Así, pensada a partir de sus representaciones culturales, la guerra se revela como una maquinaria cultural que moviliza las maneras en las que se entienden y construyen los espacios: la guerra, nos convence este libro, es un acto de espacialización. Estas representaciones permiten entender la guerra como una maquinaria y “epistemología estatal” (p. 11), y pensar las continuidades y similitudes entre los actos de hacer la guerra y constituir el Estado. Pero, sobre todo, y este es uno de los puntos neurálgicos del libro, se revela la guerra como laboratorio de representación y de ficción que lleva a los límites al lenguaje, a la forma y a sus significados: nos presenta la guerra como una “tecnología discursiva” (p. 5). Al hacer todo esto, Entre el humo y la niebla señala un corpus de representaciones culturales sobre la guerra y consolida un inicio para pensar el tema como eje de la cultura del continente.

El punto de partida es, más que la definición, la discusión de la indefinición del concepto de guerra y la delimitación de lo que se entiende por ella. Los editores parten de la idea de esta como “práctica militar y discursiva que da forma a la existencia/inexistencia del Estado-Nación moderno” (p. 12) y proponen “pensar la guerra como manera de entender las dinámicas de poder que constituyen el Estado, y que espacializan la geografía imaginada de las naciones y las regiones que componen América Latina” (p. 26). Este posicionamiento sobre lo que se entiende por guerra se amplía y complica a lo largo de los catorce ensayos mediante una reflexión sobre la cercanía de la guerra con la idea de la revolución (ver, por ejemplo, los ensayos de Juan Pablo Dabove y Wladimir Márquez-Jiménez incluidos en el libro), y se problematiza con reflexiones sobre esa nueva forma de hacer guerra como “condición permanente” (p. 10) entre Estados y sujetos en conflicto continuo, como es el ejemplo que expone el ensayo de João Camillo Penna sobre las favelas de Río de Janeiro. A través del recorrido de los ensayos presentes en la edición queda en evidencia la variedad de formas en las que la guerra se ha manifestado en Latinoamérica y, de ahí, su dificultad para teorizarla. A propósito de esto, Entre el humo y la niebla, aunque no la contesta, prepara el terreno para una pregunta por la transformación radical de la idea de guerra en los Estados neoliberales contemporáneos (y la transformación de la idea de Estado como tal) atravesados, en el caso particular de Colombia y México, por la guerra contra el narcotráfico.

Frente a la relación entre la guerra y el Estado, los editores se preguntan “si hacer estado es hacer la guerra” (p. 23) y señalan el acto bélico como una de las maneras más emblemáticas de visibilidad y praxis de este. Pensando en las maneras en las que se visibiliza y teoriza la guerra, cabe resaltar el ensayo de Álvaro Kaempfer, “El crimen de la guerra, de J. B. Alberdi: ‘Sólo en defensa de la vida se puede quitar la vida'”, que ofrece un análisis de cómo esta, constituida como excepción, termina, sin embargo, volviéndose la “matriz política, económica, social y cultural” del continente (p. 86). El ensayo, a través de un análisis del discurso político de Alberdi, identifica uno de los posibles precedentes para pensar la guerra desde y para Latinoamérica. Extendiendo la reflexión sobre el estado de excepción como categoría constitutiva del poder del Estado, aparece y reaparece a lo largo de los ensayos la teorización de la guerra alrededor de las teorías de biopolítica y excepcionalidad de Giorgio Agamben, resaltadas a partir de estudios sobre la animalidad y sobre criaturas umbrales que señalan los límites entre el ser social y el ser animal (ver, por ejemplo, los ensayos de Gabriel Giorgi y Fermín A. Rodríguez). Las reflexiones de Entre el humo y la niebla invitan a pensar la guerra como mecanismo para constituir, garantizar, manipular y abusar el pacto social entre el Estado y el ciudadano, y revelar así su contradictoria operación desde la normatividad y la prevalencia de sus, sólo en apariencia, momentos de excepción. La literatura se presenta entonces, ante esto, como índice de denuncia y reflexión sobre esta contradicción.

La guerra es también una cuestión de espacio: “Guerrear es […] reconocer, mirar, distinguir, ubicarse en el espacio, en ocasiones para apropiarlo, en otras para destruirlo, a veces para ‘liberarlo’, o para volverlo mapeable, legible” (p. 14). No en vano, la geografía es un conocimiento que resulta del ejercicio de “guerrear”, verbo que “crea el mismo espacio que quiere conquistar” (p. 15). En relación con esto, Martín Kohan analiza en su ensayo que la guerra -el texto sobre la guerra- se convierte, sobre todo, en una experiencia en y sobre el espacio; la guerra se transforma en un asunto inaudito de percepción, distancia, movilidad, visibilidad e invisibilidad, en donde la expresión de pronto encima articula la acción como experiencia y entendimiento del espacio y la (im)posibilidad de ver o no en él. En la lectura que hace Kohan de La guerra al malón (1907) y de Conquista a la Pampa (1935, póstumo) del comandante Manuel Prado, la guerra no es una experiencia bélica sino un factor que determina la representación de la Pampa y la negociación con esta. Por otra parte, en “La potencia bélica del clima: representaciones de la Amazonía en la Guerra con Perú (1932-1934)”, Felipe Martínez-Pinzón piensa la guerra como una práctica que se ejerce contra el espacio mismo. Así, la guerra aparece como mecanismo de integración de la selva al imaginario y a la economía de la nación, y como recuperación de un espacio-tiempo que amenaza con corroerlo todo. Guerrear es así, también, ordenar y rescatar. Del ensayo de Martínez-Pinzón hay que resaltar la inclusión y el análisis de una mirada poco frecuente en la literatura, aquella que se da desde el avión. También como maquinaria de guerra, el avión posibilita otra manera de relacionarse y dominar el espacio. Contrario al de pronto encima que analiza Kohen, el avión es una manera de hacer, de ver y de espaciar la guerra desde la distancia, una distancia que ayuda a obnubilar y desaparecer la ética que se pone en juego en la guerra. (Para más sobre la relación entre guerra y espacio, ver el ensayo de Kari Soriano Salkjelsvik incluido en el libro).

La guerra es también maquinaria de tiempo: aparece, por ejemplo, en la emergencia de las ruinas tras la guerra de Canudos, que analiza Javier Uriarte; en las fotografías que son índice de muerte, en el ensayo de Sebastián J. Díaz-Duhalde, o en el tiempo corroedor de la selva que se contrasta con el tiempo productivo de la nación, y hasta en el de pronto encima que trabaja Kohen. Pero si bien Entre el humo y la niebla deja claro que la guerra es cuestión de espacio, deja abiertas preguntas sobre la guerra como un mecanismo que impone, produce u oculta ciertas temporalidades. Cabría preguntarse, entonces, por cuál es la temporalidad de la guerra y por el tipo de temporalidades que impone. En el discurso de la nación, la guerra hace parte de la puntuación de la Historia, y, junto con sus formas de ejercitar poder y de crear espacios y geografías, impone una narrativa de tiempo en aquello que Benjamin llama “a homogeneous, empty time” (2014, 261). Visto así, la guerra produce y participa de una cierta idea (hegeliana) del tiempo como Historia, de la cual habría que generar una distancia crítica. Por otra parte, el trauma de la guerra se recuerda, no sólo en la conmemoración del museo, como lo analiza M. Consuelo Figueroa G. en su ensayo sobre la celebración de guerras en Chile, sino como memoria traumática que se personaliza, se revive, se recuenta, se negocia, y en su proceso se fragmenta en la temporalidad del yo.

Pero más allá de la reflexión sobre el Estado, el espacio o el tiempo, el epicentro del libro está en lo que, imitando las palabras de los editores, la guerra le hace al lenguaje. Uno de los más sólidos aportes del libro radica en la propuesta de la guerra como mecanismo de reflexión sobre la representación y como laboratorio de producción literaria. Como explican los editores, la guerra, “a la vez que produce lenguaje y es producida por el lenguaje, lo trastoca, lo cambia, transformando a quienes nombra o deja de nombrar” (p. 25). En otras palabras, la guerra nos acerca al límite del lenguaje y de la representación, a “su indecibilidad e inestabilidad” (p. 25). Es por eso que la guerra, como tal, casi no está. Está su antes, su después, su espera o su mientras tanto, pero no la guerra en su bulla y su acción. De ahí, entonces, que la guerra sea aquello que está entre el humo y la niebla, en esas zonas difusas que la guerra quiere aclarar, y entre esos humos que deja la batalla: “el Estado concibe la guerra como una disipación de zonas de niebla que distorsionan su mirada al permanecer impenetradas por ella” (p. 8). Pero a su vez, “el humo […] es también la huella, el trauma, el conjunto de los discursos que acompañan y suceden al conflicto” (p. 9).

A los límites del lenguaje y de lo indecible nos lleva el ensayo de Javier Uriarte sobre Os sertões (1902) de Euclides da Cunha, incluido en Entre el humo y la niebla. En su lectura sobre los acontecimientos de Canudos, en Brasil (1897), la guerra emerge como una lucha con el lenguaje y la imposibilidad de este de decir, de dar cuenta de. Dice el autor:

Creo que el logro más importante de Os sertões no radica en las férreas certezas del narrador, sino en el derrumbe de las mismas. Se trata de la textualización de una incomprensión: es el dejar de reconocerse o el reconocerse como otro, como incapaz de entender del todo, el desnudar la guerra como imposibilidad de la mirada. Al mismo tiempo que hace presente este límite y reconoce la insuficiencia de la mirada del narrador, Os sertões presenta la lucha de este último con su propia capacidad de decir. Es en gran medida un libro sobre el propio lenguaje llevado a sus límites máximos, en lucha consigo mismo. (p. 139)

En la narrativa cultural de Brasil, la guerra de Canudos marca un antes y un después. El texto de da Cunha desestabiliza y redefine la manera en la que la nación se piensa en el siglo XX. Es, se puede decir, el temprano antecedente sine qua non del modernismo brasilero y la redefinición de su identidad poscolonial moderna. Al identificar la guerra como un momento en el que el lenguaje entra en crisis, Uriarte apunta, aunque no lo diga, a la guerra como el momento en el que se forja la reinvención del lenguaje del Brasil moderno. Esto, más que organizar la historiografía literaria de Brasil, alerta sobre el poder de la guerra de desmantelar y reinventar un lenguaje para el Estado, la nación y su identidad. En otras palabras, la guerra es laboratorio de la nación y de su lenguaje. Esto también lo extiende el ensayo de Roberto Vechi incluido en el libro.

A los límites del lenguaje y de la voz también nos lleva el ensayo de Gabriel Giorgi, “La rebelión de los animales: cultura y biopolítica”. En su lectura de la voz animal -la voz y su sentido distinguen y conceden el reconocimiento político del cuerpo-, Giorgi nos lleva a un análisis del lenguaje en la guerra por partida doble. Por un lado, su enfoque vuelve al animal y a su voz para complicar las fronteras de la inscripción política y de la soberanía, y por otro, reflexiona sobre la cualidad del lenguaje en la guerra y los límites de su decibilidad. En otras palabras, nos lleva a pensar en el aullido de guerra y su in/constancia como lenguaje de la batalla y en la batalla. Dice Giorgi que:

[…] en los textos de las rebeliones animales, ese espacio de incertidumbre en torno a lo oral es una zona poblada de ruidos, aullidos, gruñidos, que marca el límite no ya entre el lenguaje y no lenguaje, sino el umbral de la virtualidad del sentido; del sentido como inmanencia, como pura potencialidad. La pregunta ahí no es ¿quién habla? o ¿quién tiene derecho a hablar? sino, más bien, ¿qué es hablar? o ¿qué constituye un enunciado? (p. 210)

La guerra, pues, se presenta como momento de rearticulación de la voz, el lenguaje, y rearticulación de las políticas que determinan su legibilidad y sentido.

Me interesa resaltar el ensayo de Sebastián J. Díaz-Duhalde, “‘Cámara bélica’: escritura e imágenes fotográficas en las crónicas del Coronel Palleja sobre el Paraguay”. Este ensayo introduce la cultura visual como parte fundamental del corpus de representaciones culturales sobre la guerra. Como rastro de la muerte, la fotografía visibiliza la guerra sólo cuando esta ya no está; aparece, como dice el autor del ensayo, “como un resto” (p. 64). Es decir, aunque la hace visible, al registrar eso que ya no está presente, la ubica de nuevo en el humo y en una ambigua categoría temporal. Por otra parte, el ensayo de Díaz-Duhalde extiende la reflexión sobre los límites de la representación al proponer que en los escritos del coronel Pallejas, la fotografía entra a renovar y transformar el discurso narrativo, generando un “nuevo sistema representacional” (p. 74) en el que el lenguaje “echa mano de procedimientos fotográficos para ‘hacer visible’ la guerra” (p. 69); de nuevo, la guerra como laboratorio de una literatura que busca salirse de sus convenciones. En relación con la cultura visual y el campo de los estudios interdisciplinares, habría que notar la ausencia en el libro de estudios sobre la guerra en el cine. Películas como La hamaca paraguaya de Paz Encina (2008), sobre la guerra del Chaco; La sirga de William Vega (2013), sobre el conflicto armado colombiano, o incluso Tropa de élite de José Padilha (2007), sobre las favelas de Río de Janeiro, son algunos ejemplos de producciones fílmicas que en los últimos diez años han pensado la guerra, la violencia y la nación en formas similares a las que los ensayos de Entre el humo y la niebla elaboran críticas del tema. Queda la pregunta abierta: ¿cómo ha aparecido la guerra en el cine latinoamericano?

Los aciertos de Entre el humo y la niebla son muchos. El libro está informado por, y a la vez extiende, debates contemporáneos relacionados con la soberanía del Estado y sus límites, la biopolítica, los estudios animales y, en general, sus reflexiones sobre el rol de la literatura y los estudios literarios para darles continuación o interrupción a los aconteceres políticos del continente. La capacidad de la literatura como herramienta que obliga a generar una distancia crítica frente a la guerra, y de paso, también, frente a los discursos nacionalistas se ve con claridad en el ensayo de Julieta Vitullo sobre la guerra de las Malvinas (de 1982) incluido en Entre el humo y la niebla: “La guerra contenida: Malvinas en la literatura argentina más reciente”. Vitullo afirma, por ejemplo, que “la ficción se impuso como interrupción de los discursos sociales y mediáticos sobre la guerra, constituyéndose como saber específico, con estatuto y reglas propias” (p. 272). El libro, editado por Felipe Martínez-Pinzón y Javier Uriarte, identifica un corpus de producciones corporales y consolida un campo de estudio amplio, sólido y relevante. El libro expone y desarrolla aquello que indica Vitullo: las representaciones culturales se constituyen como un saber específico que nos obliga a generar una distancia crítica respecto al fenómeno de la guerra y sus consecuencias. El libro es, pues, un punto de partida clave para el campo de estudios que inaugura.

Notas

1Me refiero a los libros Islas imaginadas: la guerra de las Malvinas en la literatura y el cine argentinos (2012) de Julieta Vitullo, El país de la guerra (2015) de Martín Kohan y La última guerra: cultura visual de la guerra contra el Paraguay (2015) de Sebastián Díaz-Duhalde

Referencias

Benjamin, Walter. 2014. “Theses on the Philosophy of History”. En Illuminations: Essays and Reflections, 253-267. Nueva York: Schocken Books. [ Links ]

Díaz Duhalde-Sebastián. 2015. La Última Guerra. Cultura Visual de la Guerra contra Paraguay. Buenos Aires y Barcelona: Sans Soleil Ediciones. [ Links ]

Kohan,-Martín. 2014. El país de la guerra. Buenos Aires: Eterna Cadencia. [ Links ]

Martínez Pinzón -Felipe y Javier Uriarte, eds. 2016. Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana. [ Links ]

Vitullo-Julieta. 2012. Islas imaginadasLa Guerra de Malvinas en la literatura y el cine argentinos. Buenos Aires: Corregidor [ Links ]

Camilo Jaramillo – Profesor de Spanish and Latin American Literature, Universidad de Wyoming. Entre sus últimas publicaciones están: “Green Hells: Monstrous Vegetations in 20th-Century Representations of Amazonia”. En Plant Horror: Approaches to the Monstrous Vegetal in Fiction and Film, editado por Angela Tenga y Dawn Keetley, 91-109. Palgrave Macmillan, 2017. [email protected]

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Patrimónios de influência portuguesa: modos de olhar – RIBEIRO (A-EN)

RIBEIRO, Margarida Calafate; ROSSA, Walter (Org). Patrimónios de influência portuguesa: modos de olhar. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Niteroi: Editora da UFF, 2015. Resenha de: PÉCORA, Alcir. Alea, Rio de Janeiro, v.18 n.3, dez., 2016.

I

Acaba de ser lançado em Portugal e no Brasil, em coedição da Imprensa da Universidade de Coimbra, da Fundação Calouste Gulbenkian e da Universidade Federal Fluminense, o trabalho mais abrangente já produzido em português sobre a noção de Patrimônio – em suas várias dimensões éticas, estéticas, técnicas, culturais, sociais, históricas, políticas etc. –, no bojo dos estudos e contextos pós-coloniais, que tanto apõem desconfianças e dificuldades, como abrem veredas ainda pouco exploradas e, por vezes, sequer pensadas antes entre nós, digo, os que se podem identificar como sendo de culturas de influência portuguesa.

Pretendo comentar a grandeza desse trabalho, de um lado, fazendo sínteses rápidas, necessariamente esquemáticas (mas espero que não estúpidas), dos vários textos do livro, que cobrem questões muito novas em relação ao Patrimônio português nos vários países e regiões que os partilharam, modificaram, contaminaram etc.; de outro, propondo-lhes questões gerais que pensam o conjunto e apontam desafios a ser considerados na sua continuação.

Há um gesto de coragem no início desse projeto: sem esconder ou amenizar as assimetrias contundentes no âmbito do processo colonial, ele se propõe como gesto concreto de integração do patrimônio das diferentes culturas, países e territórios envolvidos. Como alertam os organizadores, não se trata de gesto de nostalgia romântica, mas de ação intelectual cujo propósito é subsidiar políticas de ação favoráveis à cidadania.

Em particular, o projeto pretende integrar a noção de Patrimônio à ideia de sustentabilidade cultural (não apenas social, econômica e ambiental), o que implica entendê-lo como plataforma para interação de áreas de preservação e de ação político-cultural em favor da construção da paz, da cooperação e do reconhecimento da cultura do outro.

Enquanto trabalho interdisciplinar análogo aos dos critical heritage studies, de inspiração anglo-saxônica, os estudos de Patrimônio aqui levados a cabo têm como pressuposto a crítica do eurocentrismo. Os seus dois desafios básicos são o reconhecimento das alteridades no interior de uma comunidade ampla e diversificada, e a imaginação de caminhos do desenvolvimento sustentável de cada uma delas.

Supor um Patrimônio plural significa admitir uma pluralidade de olhares e contatos, que, muita vez, obriga a questionar a ideia de “influência portuguesa”. Como dizem os organizadores do volume, a noção de influência, aqui, é basicamente entendida como um “operador histórico”, estruturado pela língua e ativado por Portugal, mas dinamizado por outras geografias e tempos diversos. O resultado pretende ser mais uma celebração de diferenças numa rede de territórios que a identificação de uma essência comum.

Também é obrigatório dizer que o livro não é uma coletânea de textos avulsos, mas uma coleção interdisciplinar cuidadosamente organizada, nascida dos debates empreendidos por duas reuniões gerais, em Bolonha e Coimbra. Está composto em duas partes separadas por uma entrevista dos organizadores com o conhecido crítico português Eduardo Lourenço, que já teve várias passagens pelo Brasil, incluindo uma bastante marcante para mim no Instituto de Estudos da Linguagem, da UNICAMP.

A primeira parte discute criticamente os conceitos tradicionalmente afeitos ao patrimônio como memória, herança, identidade, comunidade, colonialismo, origem, influência etc. e a segunda trata das disciplinas envolvidas e dos novos instrumentos de investigação propostos por elas. Passo, pois, a referir muito sinteticamente o escopo de cada um desses textos.

II

A abertura dos estudos coube a Helder Macedo, que discutiu as noções de língua, comunidade e conhecimento para indicar inicialmente que eles não compõem uma sequência lógica. Nem a língua é indispensável para definição de uma comunidade, nem esta precisa significar um conhecimento efetivamente partilhado, uma vez que, mesmo dentro de um país, as populações podem ter um persistente desconhecimento mútuo. No sentido contrário, diz o autor, escritores africanos que escrevem em línguas europeias podem eventualmente ter mais em comum com os pares europeus do que com as comunidades de origem.

O contato com a língua do poder pode efetivamente levar ao desaparecimento de línguas nativas, pois a central tende à manipulação das outras culturas e conhecimentos em favor próprio, reduzindo-as a um lugar periférico –, o que é reforçado pelo que o autor chama de “solipsismo de centro”, isto é, enxergando-se apenas a si próprio, não pensa a língua senão como instrumento de um imperialismo nacional.

Em oposição a essa política de distinção entre centro e periferia, o autor imagina a possibilidade de um centro sem lugar definido, revitalizado por alternativas não centralizadas e pela emergência de novas potências nacionais, antes periféricas, como, por exemplo, Índia, China e Brasil – países nos quais a língua portuguesa teve lugar histórico, conquanto diverso.

Tal redistribuição democrática de lugares não precisaria significar uma ameaça a nenhuma das línguas de origem, pois, para o autor, quanto mais integrada e segura da sua própria cultura, mais uma língua pode contribuir para a sobrevivência de outras, num mundo de diversidades coexistentes – pensamento que me trouxe à lembrança a afirmação pessoana de que quanto mais forte a identidade de um povo, maior a sua capacidade de importar ideias de outros.

A seguir, Renata Araújo, Professora do Departamento de Artes e Humanidades da Universidade do Algarve, discute os conceitos de influência, origem e matriz. Na de influência, enxerga menor peso hierárquico e, portanto, maior possibilidade de incorporar noções de reciprocidade e de postular um futuro para o passado que dê menos margem a mistificações nacionalistas.

A autora também observa que a ideia de Patrimônio refere “o que fica do pai”, vale dizer, guarda certo caráter fúnebre: objetos de rememoração associados a restos mortais. Daí que a necrópole seja o monumento por antonomásia: o que lembra a morte do antepassado e, ao mesmo tempo, assegura a continuidade da comunidade.

Numa perspectiva cosmopolita e contemporânea, outros pontos de vista se abrem para o enfrentamento dos fantasmas do passado: culturas híbridas, traduzidas umas das outras, que produzem polissemia e maior consciência ética das diferenças entre elas. Daí também a ideia da “tradução” como metáfora do Patrimônio, segundo a qual culturas em contato podem se tornar mutuamente Inteligíveis, sem sacrifício da sua diferença.

Uma nova geografia de difusão influente teria de ser mais centrífuga que centrípeta; menos matricial e mais ambígua, cuja vantagem decisiva está em pensar trocas, resistências e hibridações imprevisíveis em contraste com os aspectos mais coercitivos da ideia de matriz. Nesse novo registro, espera-se tanto a superação do mito étnico, como a admissão de processos de contaminação recíprocos, nos quais os mortos de comunidades diversas se enterram como “parentes” e dão margem à partilha das heranças.

Roberto Vecchi, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Bolonha, trata dos conceitos de identidade, herança e pertença. Propõe uma virada na concepção de identidade, entendendo-a na relação com o Outro, de tal modo que, analogamente, o Patrimônio seja pensado não como igual, mas como “em-comum”, o que também implica redefinição da ideia de comunidade. De uma identidade integral usualmente nostálgica passa a referir uma comunidade incompleta, não homogênea, estruturada pela falta: em construção.

Patrimônio, aqui, teria de perder a essência identitária em favor de singularidades que pactuam novas comunidades. O laço da tradição perderia força para um traço transformador, no qual as culturas são entendidas como traduções sempre incompletas e os espaços da língua portuguesa não são homogêneos, nem têm centro, admitindo mesmo a dispersão como um ganho em relação à noção tradicional de lusofonia.

Assim, contra a ideia de um poder soberano, pleno, central, apresenta-se o que o autor chama de “força débil”, assentada em projetos compartilhados sobre bens culturais “em-comum”, que não admitem grandes narrativas, mas obrigam a repensar o campo inteiro do Patrimônio. Este abandonaria os seus aspectos de museificação e monumentalização de restos dos passados, cuja narração atual já não é capaz de obter identificação de nenhuma comunidade, para se reapresentar como Patrimônio de arte residuária, menos deslumbrante e eloquente: arte modesta feita de indícios, que deve repensar a monumentalidade fora da violência e de categorias plenas. Vale dizer, como contramemória: patrimônio do outro.

Antonio Sousa Ribeiro, professor do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, trata da questão da memória, avançando na mesma direção de modos contra-hegemônicos, em que a memória representa tanto uma crítica do presente como uma estratégia de produção do contemporâneo.

Para ele, o campo de estudos da memória abriga uma visão transdisciplinar, favorável à evidência dos seus quadros sociais, não em termos de um sujeito coletivo romântico, mas antes como memória pública capaz de valorizar o reverso das histórias dominantes: um trabalho de memória consciente das histórias catastróficas do século XX. Ganham força aí os estudos da violência, do holocausto e os estudos pós-coloniais, nos quais se é obrigado, muitas vezes, a considerar patrimônios de silêncio, imateriais.

Não se imagina que essa memória seja consensual, mas sim recoberta por tensões e conflitos. Ter-se-ia de pensar numa transnacionalização da memória, o que inclui fenômenos de deslocalização e de lógicas interculturais ambivalentes.

Outro conceito relevante aqui seria o de “pós-memória pública”, que refere a relação da segunda geração de descendentes em relação a essas experiências conflitantes. A ideia a acentuar é a de que a memória tem uma dimensão multidirecional, nas quais as diferenças não se anulam, articulam-se.

Miguel Bandeira Jerónimo, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, trata do colonialismo moderno e sua justificativa usual como “missão civilizadora”, vale dizer, como empresa de “elevação moral dos povos atrasados”. Talvez o mais duro dos textos do livro, mostra como as leis imperiais evidenciavam um “racismo institucionalizado” a operar como legalização do trabalho forçado. A finalidade última delas seria a autoperpetuação, a preservação do Império, ainda que as ideologias imperiais se recobrissem de certa plasticidade que lhe permite, por vezes, tomar a forma de uma ação benevolente, como a supressão da escravatura, do tráfico, e mesmo incorporar motivações religiosas e humanitárias. Tais ideologias também podem tomar a forma de inevitabilidade histórica ou de consequência natural da superioridade europeia ou ocidental, numa variante da seleção natural, e mesmo de uma tutela progressista, que avança até o momento descolonizador.

As múltiplas doutrinas de missão civilizadora promoveram o que autor chama de “racialização” do mundo imperial, com diferentes políticas de enquadramento das populações nativas, e com diferentes lógicas de assimilação seletiva e de discriminação racial.

Outro aspecto examinado é a propaganda da missão portuguesa nos manuais de administração colonial, nos quais a educação, muitas vezes tratada com o apanágio de ciência, constituía-se sempre como educação para o trabalho.

Ou seja, abuso do trabalho nativo, racialização social, política discriminatória, ausência de estruturas educativas, escassez da presença eclesiástica, insuficiência de desenvolvimento econômico são elementos de continuidade histórica do império colonial que obrigam a refletir judiciosamente sobre o que pode receber o estatuto de patrimônio linguístico e cultural numa situação de afirmação da independência e de tratamento igualitário das antigas colônias. Diante desse quadro duro, mas realista, composto pelo autor, o que se pede é um debate sobre Patrimônio que seja, como diz, “menos etéreo”.

Francisco Bethencourt, professor do Departamento de História no King’s College, investiga os sentidos de colonização e pós-colonização, destacando tanto o processo de coisificação do colonizado pelo colonizador, em que cada um deles habita mundos excludentes, como a interiorização da repressão pelo oprimido. Tais fatos acabam relativizados pela crítica pós-moderna que observa interstícios importantes de negociação e de resistência no colonizado, ou seja, formas de sobrevivência cultural e social mesmo em situação repressiva. Seriam trocas desiguais, mas capazes de produzir formas de articulação entre tradições locais e modos de domínio.

Já a crítica pós-colonial, que avança análises de teor marxista em sociedades não europeias, produz novas análises das consequências do domínio colonial, com destaque tanto para a ideias de emancipação dos povos colonizados da mentalidade de oprimido, como para as contradições no cerne das perspectivas anti-colonialistas, como a realidade desigual do exercício do poder nos países independentes, a apropriação do aparelho do estado por pequenos grupos, a irrupção de neopatrimonialismos e clientelismos etc.

Derivam daí questões cruciais para se pensar os patrimônios da presença portuguesa em outros continentes, a começar pelo emprego de uma terminologia geralmente tributária do passado colonial. O termo “influência”, por exemplo, no dicionário Morais, está associado ao sentido de domínio, de uma submissão pessoal a quem tem direito sobre nós – o que parece produzir uma espécie de retorno do recalcado já no título do volume. De fato, não é crível que, no atual estado dos debates, seja possível não incorrer nessas contradições que são exatamente o foco dos trabalhos aqui reunidos.

O autor examina os empregos históricos de termos como colono, colonização, colonialismo, e também anticolonial e anticolonialista; detém-se no sentido de “descolonização”, onde, paradoxalmente, o domínio do território pela potência em expansão ofusca o papel das lutas das populações submetidas. Em especial, a noção de “retirada” aí implícita perpetua uma visão histórica centrada nas potências colonizadoras. Ou seja, os povos coloniais, ainda depois da independência, são “desapossados” de seu orgulho de conquista da autonomia, como se esta existisse, no limite, por capricho do colonizador.

Nessas circunstâncias, mais uma vez, como pensar o patrimônio? Para o autor, qualquer resposta deve entender que, enquanto relativo à memória coletiva, o Patrimônio é resultado de uma luta pela memória no bojo de lutas sociais e de projetos políticos divergentes.

Em sua breve intervenção, Eduardo Lourenço observa que Camões não teria escrito Os Lusíadas que escreveu se não tivesse empreendido a viagem às Índias, e é este o primeiro poema europeu a ver ou interpelar a Europa de fora. E, em outra de suas brilhantes intuições, observa que, no caso do Brasil, o Império só existiu a título póstumo: reivindicado por D. Pedro I, quando da independência. Em termos portugueses, a centralidade imperial estaria na Índia.

Conquanto o empreendimento imperial português seja do Rei, e da Nação, diversamente da Espanha cuja expansão se deu pela iniciativa privada, de comerciantes, para ele, Portugal nunca chegou a ter uma ideologia imperial, mas apenas religiosa. Como missão religiosa justificaram-se as viagens portuguesas e, em particular, como missão jesuítica, que se institui como ordem cosmopolita destinada a salvar almas para Deus.

No caso do Império do XIX, que distingue essencialmente da primeira expansão fundacional, considera que ele se dá num período em que boa parte das nações europeias tornaram-se colonizadoras, sendo que boa parte delas colonizadoras mais eficazes que Portugal.

Ainda, a reflexão sobre as colônias, no conjunto da sua obra, surge como um esforço de imaginar que não está totalmente perdido o que se perdeu. No Brasil, mais facilmente, porque a ausência de insurreição permite uma ideia de continuidade e de passado português que o inclui. Já em relação à África, há uma tragédia, cuja marca inapagável é a promoção do reino pela escravidão dos povos em contato e o fato de que os agentes decisivos dela não têm qualquer cultura humanística ou fascínio estético que permita sublimar a brutalidade da conquista, a superficialidade das trocas, ou sequer reivindicar a grandeza de uma interpelação das próprias contradições imperiais, como é a de Camões.

A segunda parte dos estudos, denominada Discursos e Percursos, começa com o estudo de uma das organizadoras do volume, Margarida Calafate Ribeiro, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Para ela, uma vez que as literaturas de língua portuguesa foram impostas a todo o Império, trata-se de verificar como uma lei do poder colonial admite a inscrição de diferenças ou a sua reversão como instrumento de emancipação – onde o fluxo também dá lugar ao refluxo.

Nas primeiras narrativas do novo mundo, eurocêntricas e religiosamente motivadas, a autora observa que tanto procuram descrever o novo mundo, o que lhes dá a oportunidade de ver a Europa de fora, como o fazem por meio de uma retórica descritiva que tem a marca do olhar europeu, uma visão por analogia ou semelhança, construída pela fabulação. Tais equivalências assimétricas insinuam um confronto do olhar: dúvidas e questionamentos das realizações imperiais. Ou seja, no desejo de poder e expansão também se manifesta um valor dinâmico de descoberta de autoanálise e do Outro, como se dá em Fernão Mendes Pinto.

Para a autora, a condição moderna de Portugal provém justamente dessa condição de mediadora de mundos, num registro planetário, cujo gesto cosmopolita não apenas torna a Europa um agente de transformação, mas um resultado dela, pois o Atlântico sul não se torna apenas passagem, mas lugar de circulação.

Na carta de Caminha, a autora observa não interiorização do Outro, mas espanto e dificuldade diante da diferença: uma hesitação entre a visão idílica e o comprometimento religioso. A despeito de si mesmo, o poder vinculado à língua imperial é também testemunho de um encontro. Portanto, numa perspectiva crítica contemporânea, trata-se, para a autora, de resgatar discursos nas margens do discurso colonial. De gerar o resgate de identidades rasuradas e histórias silenciadas: levantar inscrições de diferenças na língua portuguesa que rompem o risco de uma história única.

Trata-se de tomar a língua como plataforma de uma conversa possível, pois a hegemonia do poder colonial nunca é completa e a língua do colonizador acaba construindo a base da promoção de um diálogo. No caso africano, a subalternização das línguas nacionais pelo português oficial não impede o que a autora chama de “reescrita da libertação”: a assunção da língua escrita que seleciona e rearranja as suas partes de modo a produzir novos olhares discursivos e interdiscursivos.

Em vez de recusar a herança e o patrimônio literário da língua portuguesa, a questão está em habilitar novos herdeiros. Discutir transferências culturais, num trabalho de tradução, isto é, sem rejeição, mas também sem aceitação passiva, pois os novos cânones ainda têm de ser construídos. Em termos portugueses, trata-se de admitir que a história das literaturas das colônias são também parte da história de Portugal, e que as imagens múltiplas de culturas singulares contribuem para um desenvolvimento mais harmônico do conjunto.

Francisco Noa, professor de Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, vem a seguir. Tratando das narrativas em língua portuguesa, em particular no âmbito de Moçambique, o autor considera que a literatura colonial oficial tende a produzir igualmente um imaginário colonial, de rebaixamento dos povos dos territórios conquistados. Insurgir-se contra ela significou revelar pluralidades que, como tais, eram ameaças às formas de controle.

Desde o início, os autores africanos sabiam que o poder comunicacional e transformador das narrativas é exercício de gestação de poder, que toma por vezes a forma de denúncia e de confrontação, mas que tem também um projeto fundacional. Assumido pelos escritores, tal projeto estava associado à obrigação de não esquecer e de narrar uma catástrofe coletiva, culminada nas guerras de África.

Aqui, narrar a violência e a morte são aspectos necessariamente implicados na afirmação de um patrimônio moçambicano, que apenas desta forma conquista singularidade, o que implica em apropriações, rejeições, sínteses e, enfim, diálogos entre meios e tempos distintos.

Sílvio Renato Jorge, professor de Letras da UFF, retoma a piada do brasileiro Osvald de Andrade segundo a qual só a Antropofagia nos une, para dizer que da deglutição do estrangeiro depende a constituição do diferente. Retomando os concretistas junto a Derrida, afirma o princípio de tradução e de transcriação entre as culturas, quando traduzir significa reconhecer multiplicidades irredutíveis ou equivalências sem identidade.

Numa cena político-literária de traduções, a violência é inerente: o privilégio de um aspecto implica na redução de outro. O gesto interpretativo observa espaços de negociação e de fricção, entre-lugares nos quais se favorecem processos de cisão e de hibridização que forneceriam a base dos Patrimônios de influência portuguesa, a valorizar ambivalências.

No horizonte de uma poética de descontinuidades, também a citação ocupa lugar destacado, pois no deslocamento de sentido há descontextualização e recontextualização, procedimentos marcados por uma noção de sujeito, o percurso de uma existência, os pontos de passagem numa relação tensa entre passado e presente.

Se o ponto de partida incontornável dessa poética está na língua portuguesa imposta, o ponto de chegada é o resultado de conflitos de econômicos, políticos, culturais que podem ser pensados pela metáfora da antropofagia como estratégia singular de lidar com a cultura do colonizador, de reler tradições diversas e de situar uma dinâmica própria das diferenças.

Graça dos Santos, professora da Universidade Paris Ouest Nanterre, trata dos Patrimônios de emigração, tomando por base a situação dos portugueses que foram para a França nos anos 60 e que passaram a viver um duplo deslocamento: da origem para o novo destino, e também o inverso, isto é, do novo país em relação à identidade de origem.

Como atriz e encenadora bilíngue, a autora considera haver uma imaginação própria das línguas, explorada pelo grupo de teatro Cá e Lá, criado por imigrantes portugueses na França, no âmbito da Marcha pela Igualdade e contra o Racismo de 1985. Os temas da dupla cultura, dupla pertença, de comportamentos defasados face aos de modelo francês constituem o núcleo das representações do grupo, no qual o humor é estratégia para rir de si como para levar a sério a questão de uma “cultura bastarda”.

O propósito a mover o grupo não é o de desenraizar, mas o de conceber a raiz de modo menos sectário e mais inclusivo, o que só julga possível por meio da tomada de consciência de automatismos da cultura e de sua superação.

Maria Fernanda Bicalho, professora de História da UFF, trata de novos recortes do objeto historiográfico a partir das décadas de 80 e 90, sobretudo originados de estudos anglo-americanos que ofereceram novas perspectivas em relação à historiografia anterior cuja base era o Estado-nação. Ganharam relevo tanto a História Atlântica – o complexo banhado pelo Atlântico e seu sistema de trocas econômicas, sociais, culturais etc. –, como a História Global, que estuda relações internacionais e processos que transcendem regiões, Estados e nações.

Nessas obras, estudam-se conexões até então pouco visíveis entre Portugal e os territórios ultramarinos, e isto não apenas em relação aos sistemas econômicos, mas à apropriação de espaços, reorganização de territórios, disseminação de povos, dinâmicas sociais, configurações temporais do império e práticas de identidade. São estudos que demandam novos conceitos, como o de “rede”, isto é, instrumentos de comunicação entre vários espaços, com descontinuidade territorial, pluralismo institucional e jurídico, bem como coexistência de diferentes lógicas políticas.

A consequência desse novo olhar foi, por exemplo, a percepção de que rotas imperiais eram muitas vezes controladas a partir de áreas periféricas. A noção de Império é afetada pela sua vinculação a famílias empresariais até então insuspeitas ou improváveis. Surgem, enfim, novas histórias que rompem o modelo único da transferência da trajetória europeia para as análises de outras realidades. O comércio, por exemplo, passa a admitir uma versão não-unidirecional, no qual o comparatismo eurocêntrico sofre a concorrência de um novo modo de conectar histórias, de estabelecer negociações potenciais e imprevistas de autoridade, que valorizam relações locais e regionais.

Luís Filipe Oliveira, professor do Departamento de Artes e Humanidades da Universidade do Algarve, recapitula a grande mudança sofrida pela Historiografia nos últimos anos decorrente da crítica do valor instrumental atribuído por ela aos documentos e ao monopólio da História como investigação científica do passado. Quando os documentos deixaram de ser vistos como naturais, que falavam por si mesmos, outros agentes interpretativos, até então considerados subalternos, ganharam estatuto investigativo, como a arquivística, a paleografia, a diplomática, a heráldica e a sigilografia.

A própria natureza dos arquivos entrou em causa com o debate em torno dos objetivos políticos de sua constituição, muitas vezes sob encomenda da Coroa. A partir daí, a história da nação passa a exigir a ampliação de sua investigação aos arquivos familiares e pessoais. Valorizaram-se inventários variados, textos literários, narrativas. Torna-se decisiva a questão da seleção e interpretação dos fatos pelo historiador, bem como as questões relativas a culturas, ideologias e mentalidades.

No período pós-moderno generaliza-se a desconfiança em relação aos grandes temas, que se pulverizam e passam a ser substituídos por estudos de caso, que demandam uma pluralidade de pontos de vista. Vem para o primeiro plano a consciência da metaposição do observador como alguém vinculado ao presente e, por isso mesmo, suscetível a teorias e modelos das ciências sociais.

Hoje, o caráter discursivo e construído das representações do passado estão no centro da investigação histórica, de tal modo que o historiador sofre a concorrência de críticos literários, arquivistas, antropólogos, sociólogos, jornalistas etc. As regras do ofício estão na berlinda, e nada diz mais a respeito disso do que a mudança do estatuto dos documentos. Longe de, isoladamente, entregar o mundo para o historiador, dão-lhe termos parciais, suspeitos, que precisam ser dispostos em séries, confrontados com outros indícios, informações, testemunhos, além de gestos, imagens e vestígios arqueológicos.

Há ainda o reconhecimento da dimensão monumental dos documentos, que expressa a determinação de criar leituras específicas do passado, de modo a impô-las aos pósteros. A percepção crítica dos arquivos documentais, que passam a ser entendidos como espaço de poder sobre o passado e a memória, obriga a uma maior atenção do investigador a suportes, escribas, cópias, ou seja, aos documentos percebidos como objetos sociais plenos e não apenas como fontes. O interesse pela materialidade dos documentos é uma evidência do conjunto desse processo crítico.

Se os arquivos são espaços de poder, lugar da construção de um discurso sobre o passado, outras dimensões deles passam a ser estudadas, como sua existência numa pragmática social, suas técnicas nunca neutras de organização, seus rearranjos segundo linhagens específicas. O arquivo já não é um depósito estático e alheio à vida. Revela-se em movimento e articulação permanente com a história, que tanto garante a memória, como se dispõe a ocultá-la, assegurando estatutos e privilégios, já que invariavelmente os territórios pior documentados são sempre os mais distantes dos centros de poder.

Em seguida, Sandra Xavier e Vera Marques Alves, antropólogas e professoras do Departamento de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, observam que, com o pós-modernismo, cresceram as críticas aos trabalhos antropológicos de campo, seja pela falta de polifonia dos dados, seja pelo questionamento de oposições como nativo e não nativo, seja ainda pelas relações de poder pouco discutidas em relação à própria investigação.

Admitindo a crítica, mas acentuando a importância de se manter a fronteira entre crítica textual e relações intersubjetivas em presença, as autoras traçam o surgimento de novas práticas etnográficas, com manutenção das exigências de pesquisa quotidiana, conhecimento informal e de envolvimento com as comunidades estudadas. No âmbito dessa etnografia reformada, entendem que a sua contribuição ao projeto “Patrimônios de Influência portuguesa” dá-se em termos da superação de oposições esquemáticas entre colonizador e colonizado, em favor de um olhar mais sutil para o complexo colonial, fazendo emergir vozes dissonantes, narrativas divergentes, conflitos de interesse, políticas incompletas de modo a entender o encontro colonial como efeito de processos dinâmicos.

Nesse novo ambiente, os estudos pós-coloniais, centrados na crítica textual, e as novas práticas antropológicas, de dimensão intersubjetiva, podem agir de modo articulado, com base numa “viragem material”, isto é, no estudo das formas materiais de diversos mundos sociais, cujos objetos não apenas significam ou simbolizam, mas influenciam o campo de ação social. A fotografia, por exemplo, passa a ser entendida como lugar de interações sociais e não apenas como consumo visual passivo.

Neste ponto, trata-se de descolonizar os patrimônios, antes dados como processos monolíticos ou homogêneos, dentro de uma etnografia descentrada, colaborativa, polifônica.

Mirian Tavares, professora de Cinema na Universidade do Algarve, considera, inicialmente, que os filmes de modelo hollywoodiano são uma representação simulada do real contra a qual se opõe uma cinematografia divergente, pensada tanto como lugar possível de poesia quanto como revelação de uma história periférica, mantida invisível. No entanto, constata que essa produção, no contexto do cinema africano, é usualmente tratada como world cinema, como se fosse etnografia e não propriamente cinematografia.

Mesmo visões simpáticas a ele tendem a reproduzir a visão da África como “paraíso da etnografia”, aprisionada à tradição. Ao fazê-lo, negam-lhe subjetividade real, pois ela se dissolve em traços comunitários a ser preservados como memória à beira da extinção. Ou seja, não veem o cinema ou a filosofia africana como lugar de pensamento de indivíduos independentes, com capacidade de abandonar o lugar de objeto para o de sujeitos íntegros de seu próprio presente. No fundo, trata-se sempre de uma ideia condescendente, que confirma o discurso hegemônico: defender uma cultura que não pode sobreviver sozinha.

Considerando que o cinema moçambicano, numa primeira fase pós-independência, estabeleceu-se como propaganda do novo regime, observa que, posteriormente, deu lugar a uma filmografia variada, com consequente diminuição do apoio estatal. É um cinema de resistência, uma “insanidade”, com desejo de criar alternativas, de apropriar-se da cidade fragmentada como espaço múltiplo. Cinema marginal, disruptivo, que não replica o cânone, que não se resolve na questão da memória, mas produz reflexão sobre o que vê de forma a promover ação transformadora no presente.

Ana Maria Mauad, professora do Departamento de História da UFF, observa que a ideia corrente da fotografia como realista obscurece as mediações e escolhas que se dão no ato fotográfico entre o sujeito que olha e a imagem elaborada. Uma análise fotográfica consequente também deve considerar o valor atribuído pela sociedade à imagem, bem como a grande capacidade que ela tem, como diz a autora, de potencializar a matéria e engendrar narrativas. Ademais, no caso de fotografias públicas, há que se considerar todo o processo de agenciamento, que diz respeito à sua publicação, arquivamento e guarda.

A fotografia pública, definida como registro de situações associadas ao Estado, à memória visual do poder público ou, enfim, à dimensão social dos fatos, interessa à autora como redefinição de formas de acesso aos acontecimentos históricos e de sua inscrição na memória por meio da produção de imagens com ressonância no campo social. Pode-se então falar propriamente de uma prática artística, de expressão autoral do fotógrafo (que não existe apenas como paciente de um registro realista) e também de uma prática documental, na qual se observam as condições de vida de determinados setores sociais. Tal prática, no âmbito do Patrimônio, pode recobrir informes sobre o passado, mas também a sua própria instauração como monumento, enquanto esforço deliberado de construção de símbolos a ser lançados para o futuro.

Ao analisar um álbum de fotografias realizado em 1938, em Luanda, depois publicado pela Agência Geral de Colônias, a autora observa que ele revela dois objetivos em disputa: a inauguração da exposição, que atendia aos interesses da elite local de Angola, e o registro da visita do presidente português, que atendia aos interesses do governo central de demonstrar a sua presença nas colônias. É um exemplo de como uma pluralidade de discursos pode comparecer nessas fotografias públicas, cuja função é a construção imaginária da nação. Como tais, são patrimônios visuais valiosos: não apenas registros factuais, mas lugar de manifestação de políticas de memória pública.

Luísa Trindade, professora de História da Arte na Universidade de Coimbra, trata da imagem desenhada como instrumento das áreas de Patrimônio, no tocante à arquitetura e ao urbanismo. Limitando o seu enfoque aos séculos XV-XVI e aos territórios de ação portuguesa, observa que o desenho era entendido como representação gráfica, geralmente feito na presença do objeto, com propriedade de verossimilhança. No caso das imagens de cidade, pode ser focado na urbs, vale dizer, a materialidade física dela, ou na civitas, sua comunidade humana ou genius loci.

Em qualquer dos casos, o resultado nunca é cópia fiel, mas nem por isso menos verdadeira. Há necessariamente artifício, quando o desenho tem de descrever detalhes e também propor uma inteligibilidade do todo. É sempre retórico, pois atende a uma encomenda e visa a um propósito. Pode ter a função de demonstração para a Corte de certas soluções propostas ou de ilustração de narrativas; pode ser útil na guerra, em suas formas de cartografia de defesa.

Há uma eloquência própria dos mapas, uma linguagem de poder ali articulada. A moldura técnica partilha da moldura político-social. Por exemplo, nota a autora que, no caso de representação da civitas, apenas Lisboa é desenhada, o que obviamente associa a ideia de cidade à de centro de poder.

Tais observações validam a necessidade de tratar o desenho num quadro interpretativo interdisciplinar, em que têm parte a Literatura, a Geografia, a História, a Arquitetura, a História da Arte etc. Ademais, o desenho pode ser tanto entendido como patrimônio em si mesmo, além de meio para outros fins.

José Pessôa, professor de Arquitetura na UFF, observa que é justamente do campo da arquitetura a prerrogativa de ter sido o objeto principal das construções do patrimônio histórico nacional, desde o século XIX – entendendo-se por monumento histórico sobretudo a arquitetura do passado, com suas igrejas, palácios, castelos etc. Em termos gerais, entende-se o monumento arquitetônico como o que fornece identidade às nações e também o que, enquanto documento histórico, é objeto de restauro e de ações de conservação. Nessa perspectiva tradicional, tem mais peso na ideia de patrimônio a qualidade plástica do edifício do que o valor histórico da arquitetura.

Na Carta de Veneza, de 1964, talvez o documento mais importante para o patrimônio arquitetônico, a ideia de monumento histórico é alargada até alcançar, além da arquitetura erudita, também a arquitetura vernacular, relativa a prédios mais modestos, urbanos e rurais.

No tocante à ideia de restauro é importante entender que ela se aproxima da de recriação: uma reinterpretação do passado pela consolidação de determinada imagem arquitetônica privilegiada em determinado momento histórico, segundo determinada concepção de Patrimônio. Como diz o autor, não é possível lembrar sem inventar.

No caso brasileiro, em que são raras as imagens de cidades anteriores ao século XIX, a recuperação da arquitetura colonial muitas vezes opera por meio de uma imagem idealizada que toma por analogia edifícios similares de outras regiões ou lugares. Dá o exemplo da Capela do Padre Faria, em Ouro Preto, refeita não pela descoberta de sua planta original, mas segundo o modelo da capela contemporânea de S. João Batista. Evidentemente, o procedimento é controverso: refaz-se o passado com base numa ideia de linguagem arquitetura comum, que não é rigorosamente demonstrável.

Nesse contexto, como falar de uma Patrimônio arquitetônico comum aos países de língua portuguesa? Para um arquiteto como Lúcio Costa, há uma mistura de influência e de autonomia nos edifícios coloniais de modo que, no final, os modos de ser portugueses ali encontrados, diz ele, “foram sempre brasileiros” – o que naturalmente (digo eu, não o autor) trai um princípio nacionalista bastante duvidoso para ser aplicado ao período colonial.

Ao autor do estudo, entretanto, interessa mais destacar a existência de uma dialética entre influência portuguesa e mútua influência, na qual aos modelos somam-se soluções autônomas (como a casa de taipa de pilão paulista) e adaptações locais de soluções trazidas de Portugal.

Fecha o volume o texto de Walter Rossa, um dos organizadores do volume e professor do Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra. Após considerar que apenas culturas urbanas sobrevivem e que o mundo em 2008, pela primeira vez, tornou-se mais urbano que rural, o grande desafio é produzir uma alteração de paradigma que permita evoluir de um estado cada vez mais comum de aglomeração para uma nova conceptualização de cidade, capaz de a reinventar como ecossistema ideal.

Para isso, julga que será preciso observar a complexidade total do fenômeno da cidade, que hoje vai muito além do antigo limite muralhado ou da ordem disposta a partir do centro. Os processos de urbanização, que têm a ver com a construção física mas também com a vivência das gentes, admitem um estudo em tríade, composta de estrutura (parte mais perene), forma e imagem (a mais volátil), concentrando na primeira as ações mais comuns do Patrimônio.

Após considerar que a Unesco, em 1972, passou a incorporar uma vertente urbana associada à noção de paisagem (tanto natural como cultural), a área ganhou um alento interdisciplinar, consolidado em 1992, com a categoria de “paisagem cultural”, que ultrapassa a noção de centro histórico para representar sítios culturais articulados à vida presente e não apenas à ruína arquitetônica. No entanto, para o autor, os doutrinários da Unesco são apegados a clichês patrimoniais que impedem um salto epistemológico que descolaria a noção de Patrimônio das teorias de conservação e restauro de bens artísticos autônomos, sem nexo com o território e a cidade. O salto, até agora, tem-se dado em torno do conceito de paisagem urbana histórica, ou HUL (Historic Urban Landscape), aprovado apenas como “recomendação”.

Trata-se de uma evolução da ideia de Patrimônio urbanístico, pois possibilita uma abordagem integradora do patrimônio com a cultura e o dia a dia dos cidadãos. Um conceito desse tipo pode também ser aplicado a comunidades distintas, mas com afinidades culturais, como as de influência portuguesa. No entanto, diferentemente de entender essas comunidades como projeção colonial da cultura europeia, o HUL concebe formas de expressão comuns de um conjunto cultural com matizes diversas, valorizando as suas contaminações, e em franca oposição à exclusiva remissão delas às regras de um modelo fundador.

III

Isto dito, e tendo-me já desculpado de antemão pela inépcia de minhas traduções de tantos trabalhos, cuja intensidade não deveria senão aplaudir agradecido e depois calar-me, não me furto, porém, a deixar aqui três questões breves que, ademais, são uma forma de agradecer intelectualmente o grande trabalho testemunhado pelo livro ora lançado.

A questão da teoria

A primeira diz respeito ao fato de que, entendido como está sendo feito aqui, o Patrimônio tende, em certa medida, a desmaterializar-se e, por isso mesmo, passa a exigir uma teoria, ou a depender de uma teoria. Não se trata mais de conservar obras particulares, com qualidade estética ou histórica, mas de formular um campo teórico em que o patrimônio se reinventa, estendendo-se das obras aos conceitos, mais que dos conceitos às obras. Isso é perfeitamente lógico no contexto atual, mas é também ineludivelmente problemático, já que a própria interdisciplinaridade proposta aqui é, antes de mais nada, transferência das disciplinas para um espaço de modelagem teórica, em que a prática delas perde passo para a conceitualização metalinguística e metateórica.

Se essa operação de modelagem é produtiva e pode levar a dissolver vários enganos da política patrimonial do passado, é também um processo de abstratização do patrimônio, que, em determinados momentos, parece depender mais da imaginação do estudioso que da existência histórica das formas e estruturas. E o problema da imaginação do estudioso é que ele imagina por paradigmas redundantes, de tal forma que a teoria é ao mesmo tempo nova e repetida.

Não fiz um levantamento estatístico, mas é evidente que alguns autores comparecem sistematicamente no livro. E um bom autor pode ser bom, claro, mas muitas vezes um mesmo bom autor pode ser redundante ou dar a impressão de que é pouco o que se tem efetivamente à vista ou nas mãos. Acaba dando uma cara comum a uma invenção que, para ser real, precisa ser selvagem, em alguma medida, isto é, enfrentada no corpo a corpo, a cada vez, pelos diferentes pesquisadores, cujas armas interpretativas são mais fortes conforme se ajustam a sua própria experiência e estudo. Uma grande teoria brandida dezenas de vezes pelos pesquisadores mais diversos, em relação a objetos igualmente diversos, dá a impressão menos da força dessa teoria do que do exame exíguo da singularidade da obra.

A questão dos estudos culturais

Além da precedência teórica, os estudos deixam entrever uma perspectiva culturalista, usualmente edificante, isto é, que mostra boa vontade geral diante das relações assimétricas entre os povos recobertos pela ideia de influência portuguesa, e que favorece quase como parti pris as ideias de multiplicidade, pluralidade, diferença etc. Esse é um problema que diria que é inerente aos estudos culturais, e que comprometem as teses pós-colonialistas: nascem de perspectivas que têm um grande sentido de justiça e de ética do tratamento das diferenças e pluralidades das diversas comunidades, mas, no final das contas, além ou aquém dessa boa vontade, estão as obras, as cidades, as culturas, que em geral existem na contradição, na concorrência por vezes insolúvel entre as partes, e, mais ainda, no terreno minado da globalização.

Se é óbvio que todos esses trabalhos não querem bater bumbo para o passado nacionalista, também é importante que não incorram numa espiral de idealismo que se desprenda do solo duro em que todos vivemos e no qual invariavelmente predominam políticas muito parciais, senão muito toscas. Ou seja, se não queremos mais que a questão do Patrimônio seja uma epopeia do colonialismo, temos de estar muito atentos para não fazer dos estudos pós-coloniais uma épica da globalização, como suspeito que usualmente fazem os norte-americanos.

A questão estética

Por fim, um terceiro e talvez o ponto mais importante que deixaria aqui para ser pensado é que é evidente o recuo da estética nessa nova perspectiva integradora do Patrimônio. Se cresce a atenção aos direitos e diferenças, diminui na mesma intensidade a nossa capacidade crítica de avaliação do que se postula como diferente. Pois que categorias seriam adequadas para um juízo estético – e como sequer postular a noção de valor advinda de uma experiência estética — quando o patrimônio se associa sobretudo à criação de comunidades plurais com direito a partilhar um espaço até então ocupado exclusivamente pelas culturas de um centro hegemônico que nunca foi nem um pouco compreensivo?

Desse ponto de vista, fico pensando, incomodado, se o custo das teorias da partilha deve significar necessariamente o sacrifício do estético, do objeto, e, enfim, da forma (pois os conteúdos se dobram mais facilmente ao bom mocismo). Quando a forma – esta, que é o cerne de qualquer questão artística que não se esgote nas conciliações culturais edificantes – deixa de ser decisiva, pode-se ter comunidades de direito, sociedades justas e que convivem bem, mas desgraçadamente já não há Patrimônio artístico.

Nesse caso, para encerrar, gostaria de ecoar aqui a consideração da autora que reivindicou para o cinema moçambicano não uma etnografia, mas uma cinematografia: não a admissão do testemunho de uma memória coletiva em extinção, mas realmente a construção de um cinema contemporâneo, que, por isso mesmo, tenha direito a receber um juízo crítico como qualquer outro cinema. Nesse caso, se o julgarmos digno de ser proclamado mau não será um gesto de reconhecimento maior do que o julgarmos bom por condescendência ou por amor ao folclore?

São questões graves, que formulo não como crítica direta aos ensaios que tentei apresentar aqui, mas como desdobramento do momento tumultuado em que vivemos de que o Patrimônio, prova-o sobejamente o livro, revela justamente seus impasses, contradições e dilemas mais entranhados.

Recebido: 21 de Maio de 2016; Aceito: 14 de Junho de 2016

Alcir Pécora é Professor Titular de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1A. Tem Mestrado em Teoria Literária, pela UNICAMP (1980) e Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP (1990). Livre-docente, pela UNICAMP, em 2000. Pós-doutorado no Dipartamento di Studi Romanzi della Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (2004-5).

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Capitalismo tardio e os fins do sono – CRARY (A-EN)

CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de QUEIROZ, Luciana Molina. Alea, Rio de Janeiro, v.18 n.3, sept./dec., 2016.

No primeiro episódio da série da BBC Black Mirror, chamado The National Anthem, o primeiro ministro britânico é chantageado pelos sequestradores de um membro da família real e obrigado a realizar em rede nacional um ato absolutamente constrangedor e degradante, sob a pena de ser responsável pela execução da Princesa Susannah caso não cumprisse as exigências por eles colocadas. Enquanto todos os habitantes do país são mostrados em torno de televisores acompanhando de maneira horrorizada a coragem e decisão do primeiro ministro, a Princesa anda por ruas completamente desertas, sem que ninguém fosse capaz de constatar que ela já havia sido liberada por seus raptores. O argumento dos sequestradores (e, portanto, do episódio) é um dos aspectos mais interessantes abordados por Jonathan Crary em seu livro 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono: o modo como experiências de gerações inteiras são completamente moldadas a partir da programação da cultura de massa. Um grande evento, como a Copa do Mundo, e mesmo as grandes tragédias, como a morte de um ídolo pop ou o recente ataque ao Charlie Hebdo, assim como a catástrofe do 11 de setembro, são exibidos e acompanhados com viva atenção em escala global. Nesse sentido, a história pessoal de um indivíduo é filtrada por aparelhos.

Tal como Black Mirror, o ensaio de Crary por vezes parece ficção científica. O próprio autor admite que parte de casos extremos para demonstrar a relação entre sono e capitalismo tardio, tais como acidentes industriais noturnos que vitimaram várias pessoas enquanto dormiam. Esses exemplos, que parecem parte de uma distopia ou de um cenário catastrófico num universo cyberpunk, podem facilmente levar o leitor de simpatias tecnofóbicas a desejar voltar a um mundo basicamente pré-capitalista e rural, no qual máquinas não mediavam nossas vidas. É verdade que, hoje, a tecnologia é tão bem aceita dentre os habitantes da cidade grande que qualquer crítica a ela sempre está sob suspeita de ter motivação conservadora ou nostálgica sem mais. Por isso, é vital estarmos alertas à identificação da agenda política e das bases teóricas em que se firmam as críticas à técnica. É necessário lembrar, por mais trivial que possa parecer, que a crítica marxista em geral deixa claro que se opõe ao uso da técnica feito pelo capital, e não à técnica por si, algo ambivalente no discurso de Crary, por vezes mais ansioso em denunciar a alienação do sujeito derivada da dissolução das noções de comunidade e pertencimento existentes nas sociedades tradicionais do que propriamente em esmiuçar a coisificação do sujeito em uma sociedade em que o capital adquire inúmeras vantagens quando aliado à técnica.

Apesar dos exageros de tom apocalíptico, algo subjaz de terrivelmente verdadeiro na exposição de Crary: a preocupação com a tendência do capitalismo a tudo colonizar e instrumentalizar. “Existem agora pouquíssimos interlúdios significativos na existência humana (com a exceção colossal do sono) que não tenham sido permeados ou apropriados pelo tempo de trabalho, pelo consumo ou pelo marketing” (CRARY, 2014: 24), argumenta. Há, então, incompatibilidade entre as demandas do mercado e as necessidades de uma vida humana saudável. Em uma época marcada pelo estranhamento e pela reificação, em que se sedimenta a crença de que não se pode encontrar prazer no trabalho, o tempo/espaço referente ao trabalho e o referente ao lazer são reinseridos em um continuum, talvez ainda mais pernicioso, posto que ainda se caracteriza pela alienação, e não tem ruptura ou escapatória. Nesse sentido, compreendemos as altas taxas de adoecimento físico e psíquico exibidas pelos professores universitários. Não só porque também se encontram subsumidos nesse mesmo imperativo categórico do publish or perish, mas também porque a mercadoria-fetiche por excelência do acadêmico, o conhecimento, e suas configurações em livros, cursos on-line e transmissões ao vivo do evento sobre comunismo em Bogotá ou Istambul parecem multiplicados pelas indicações realizadas pelos bancos de dados das lojas online e pelas atualizações das redes sociais. Em meio a curtidas de fotos do bebê do colega de trabalho, aparecem para ele inúmeras indicações de leitura. A todo instante se exige do acadêmico que esteja up-to-date, e em seus aspectos regressivos isso implica que ele deve se inteirar das novidades do mundo intelectual, sejam essas importantes ou frívolas. Faz parte do funcionamento da indústria acadêmica a existência de intelectuais pop star como o Žižek e de best sellers da economia como O capital no século XXI, de Thomas Piketty, pois eles são marcas da impotência do acadêmico para ignorar informações. Pertencer à comunidade acadêmica é algo que ironicamente reduz o tempo do intelectual junto às suas próprias inquietações teórico-existenciais, no corpo a corpo de seu objeto de pesquisa, e o reinsere na lógica capitalista – menos um intelectual autônomo e mais um autômato 24/7.

O horror da tese de Crary nos persuade porque mesmo o sono, esse último reduto do ser humano contra a produtividade capitalista, vem sendo progressivamente desguarnecido. Se há alguns anos o sonho ainda era visto como uma zona impassível de ser ocupada pelo capitalismo, o autor demonstra, através da análise da cultura de massas, que até ele aparece em filmes como A Origem, de Christopher Nolan, como algo passível de ser entendido por critérios de rentabilidade. É como se no imaginário popular já estivesse consolidado o desejo de eliminar o que Crary considera a última barreira para a expansão capitalista: o sono e o descanso. Isso o leva a empreender uma crítica a um só tempo corajosa e selvagem ao pai da psicanálise, que teria em sua primeira formulação a respeito dos sonhos afirmado que todo sonho é a realização de um desejo do sonhador (afirmação que ganharia um ad hoc quando Freud se colocou com a devida atenção a questão do sonho traumático). Para o estadunidense, essa formulação do sonho como algo existente somente como anseio individual, somada à crítica de Freud aos movimentos gregários em sua análise da psicologia das massas, teria acarretado graves equívocos teóricos e práticos. Freud nunca teve o interesse explícito e primordial de se comprometer com algum partido ou ideário político ao erguer as bases de seu trabalho. Mas Crary defende que subterraneamente haveria ali uma concepção de desejo ideologicamente favorável à manutenção desse estado de coisas, em que o privatismo dos gadgets pessoais se tornaria um sintoma externo do individualismo crescente. Para ele, “a privatização dos sonhos por Freud é apenas um sinal de uma supressão maior da possibilidade de seu significado transindividual. Por todo o século XX, pensou-se que os anseios estivessem ligados exclusivamente a desejos individuais – desejar a casa dos sonhos, o carro dos sonhos ou férias” (CRARY, 2014: 118).

Contudo, ainda parece ser a psicanálise, aliada às ciências sociais, o principal ferramental teórico para se compreender o desejo individual manifesto no sonho como algo formulado no estado de vigília a partir de vivências historicamente situadas. Nesse sentido, é útil voltar à “indústria cultural”, conceito cunhado por Adorno e Horkheimer. Ao nos chamar a atenção para o grande número de experiências compartilhados pelas mídias, Crary poderia ter ido além, e especulado como que essas experiências também moldam desejos e, combinando aspectos da teoria dos sonhos de Freud e da exposição de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, poderíamos então nos questionar se a indústria cultural, ao contrário do que ele pensa, já não foi capaz de entrar no terreno insondável do sonho, submetendo-o ao menos em parte à lógica do capitalismo tardio. Afinal, um aspecto comum ao sonho e à mercadoria é justamente o modo como ambos são expressão de um desejo. Ainda que as pessoas sejam capazes de se associar a padrões de consumo diversificados, é inegável que muitas necessidades são moldadas pelo fetichismo da mercadoria, esse “passe de mágica” pelo qual de repente nos vemos absolutamente ávidos em adquirir determinado objeto convencidos de que há nele algo capaz de mudar nossas vidas. A cultura de massas, que engloba a publicidade, a imprensa e os meios de comunicação, bem como suas trocas com a indústria do entretenimento e do lazer, participa de uma equação na qual os desejos individuais tornam-se cada vez menos idiossincráticos, tendo em vista que são em alguma medida formados por uma estrutura totalizadora que é recebida coletivamente. Se isso vem ocorrendo, então os desejos já são em certo sentido transindividuais – sem dúvida não do jeito que pretende Crary, mas sim a partir de uma massificação dos objetos desejados e da própria faculdade de apetecer, que também pode ter como princípio algum anseio de ordem local, nacional ou mesmo mundial. As grandes detentoras dos meios de comunicação que buscam influenciar politicamente uma eleição ou sugerir para o público como deve se sentir e pensar a respeito de uma manifestação política ou sobre a possibilidade do país sediar uma Copa ou as Olimpíadas são capazes de atestar isso. Torna-se claro, então, que a questão que deve ser colocada não é a de se é possível sustentar algum desejo coletivo, mas antes se deve ter como foco o modo como esse desejo pode se dar.

Se Crary não desejava que sua crítica aos meios de comunicação e novas tecnologias fosse confundida com mera tecnofobia, teria feito bem em especificar de maneira mais rigorosa as diferenças entre individualismo e individualidade, pois, diante de sua argumentação, por vezes temos a impressão de que a única solução para o que observamos seria voltar a um modelo de sociedade pré-moderna, em que não havia possibilidade para a constituição forte de sujeito. Falta a ele ter uma visão mais dialética da coletividade, pois em seu ensaio retorna como falta o principal impasse relativo à cultura de massas (já presente no debate marxista, e mais especificamente nas disputas entre adornianos e benjaminianos): a relação entre o individual e o coletivo. Apontada como contribuintes do individualismo social, a cultura de massas no entanto reproduz uma estrutura que é recebida coletivamente, e que tem força suficiente para em alguma medida homogeneizar as massas em relação a uma visão de mundo e a um comportamento a favor do capitalismo. O blockbuster hollywoodiano, por exemplo, não só nos provê firmes noções de beleza e de erotismo, como também as associa a objetos e mercadorias específicos, tornando-se assim uma instância capaz de formar desejos associados ao estilo de vida existente no capitalismo. O sujeito não só se autodefine e se comporta como um consumidor como também naturaliza esse comportamento. Marcuse inteligentemente disse que, no capitalismo de hoje, a indústria cultural muitas vezes viria a substituir a lei paterna. Como construir utopias e desejos coletivos se a cultura de massas justamente opera a partir da falta de autonomia individual? Trata-se de uma das tarefas fulcrais da práxis política hoje: construir uma coletividade que se baseie não num comportamento comumente associado às massas, de irracionalidade quase animalesca (no retrato de Freud) ou de rebanho (como já aparecia na obra de Nietzsche), mas sim num comportamento em que as individualidades, de egos fortes e críticos, não se tornem facilmente massa de manobra de uma personalidade carismática e autoritária, como demonstram os usos feitos pelo nazismo da técnica, mas possam antes se agregar em torno da construção de uma utopia comum de motivações emancipadoras.

Luciana Molina Queiroz. Mestra em Filosofia pela UFMG e doutoranda em Teoria e História Literária pela Unicamp.E-mail: [email protected]

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Earth Beings. Ecologies of Practice Across Andean Worlds – De La CADENA (A-RAA)

De La CADENA Marisol Jamaxi
Marisol de la Cadena. www.rigabiennial.com.

De La CADENA M Earth Beings. Ecologies of Practice Across Andean Worlds JamaxiDe La CADENA, Marisol. Earth Beings. Ecologies of Practice Across Andean Worlds. Durham: Duke University Press, 2015. Resenha de: MORENO, Javiera Araya. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.26, set./dez., 2016.

A veces la lectura de un trabajo etnográfico da la impresión de que este se refiere a diversas y múltiples tradiciones teóricas, al asociarlas de manera más o menos deliberada con partes específicas del trabajo de campo. El relato etnográfico parece entonces responder a la literatura de las ciencias sociales, sin que la reflexión pueda en efecto ilustrar, desafiar, refutar o sustentar algunas de las corrientes teóricas a las que apela de forma fragmentada. Pareciera que el autor no compromete por entero su investigación con determinadas corrientes teóricas e impide así que la dimensión empírica del terreno pueda cuestionar o tensionar plenamente los supuestos teóricos que de manera parcial lo estructuran.

El trabajo de Marisol de la Cadena sobre el que trata esta reseña es un ejemplo de todo lo contrario. A través de su lectura no solo aprendemos sobre las constantes luchas de una comunidad indígena en Perú -contra la hacienda como institución productiva que esclavizaba a sus miembros, contra las corporaciones y sus planes de extracción mineral en sus territorios, contra la policía peruana y su arbitraria aplicación de la ley y, en resumen, contra la pobreza en la que se encuentran- sino que también vemos cómo la autora moviliza su trabajo de campo para interpelar dos grandes corrientes teóricas que marcan la antropología contemporánea. Por un lado, aquélla que denuncia la especificidad colonial de la producción de conocimiento sobre un “otro” y, por otro lado, aquélla que postula la existencia de una diferencia ontológica -y no solo epistemológica- con el “otro” que se quiere conocer.

Respecto a la primera discusión teórica, la autora nos invita a comprender la lucha de la comunidad en su irreductibilidad a las claves de lectura occidentales y eurocéntricas. Respecto a la segunda, De la Cadena constata que ahí donde algunos ven una disputa legal por derechos respecto a la propiedad de un terreno o una movilización campesina por una distribución más justa de las riquezas generadas por la explotación agrícola, otros -precisamente sus protagonistas en la comunidad- ven algo distinto, o más bien algo más. Habitan un territorio que no es solo tierra, sino también un conjunto de relaciones entre seres cuya condición de “humanos” solo puede ser atribuida a una parte de ellos. Efectivamente, en la comunidad indígena de Pacchanta, y retomando los términos en quechua, runakuna (humanos) y tirakuna (no humanos o seres de la tierra) establecen relaciones entre sí y entre ambos. Para los miembros de esta comunidad, lo que pasa allí necesariamente incluye a estos seres no humanos. El lugar emerge necesariamente de estos vínculos que exceden la manera en la que usualmente se piensa en una montaña (por ejemplo) como cosa, sea esta como tierra que puede ser explotada o como espacio natural que debe ser conservado.

¿Cómo producir conocimiento sobre un otro que es tan “otro” que no adhirió a la distinción ontológica -y moderna (Latour 1993)- entre sociedad y naturaleza? ¿Cómo hacerlo de tal manera que este conocimiento producido sea susceptible de reconocer historicidad, es decir trascendencia, relevancia y sentido, a experiencias que parecen solo adquirir pertinencia cuando se insertan en modelos de interpretación que son familiares para el observador occidental, como el de la liberación campesina, del chamanismo andino o del multiculturalismo? ¿Cómo integrar los seres no-humanos, sus intereses y capacidad de acción en conflictos medioambientales y en general en la toma de decisiones políticas que afectan a la comunidad a la que pertenecen? Marisol de la Cadena reflexiona respecto a estas preguntas y ofrece una escritura precisa, honesta y que refleja un esfuerzo logrado por explicar cuestiones complejas con palabras simples. Las descripciones son a la vez suficientes y densas y las repeticiones, que a veces llaman la atención por su abundancia, contribuyen a la comprensión del texto.

El libro está compuesto, además de un prefacio y de un epílogo, por siete narraciones (stories) y dos interludios que presentan las vidas de Mariano Turpo y de Nazario Turpo respectivamente, amigos e informantes de De la Cadena. En la primera narración la autora despliega el arsenal teórico con que escribirá su etnografía y un concepto predominante en todo el libro será el de “conexiones parciales” (Strathern 2004 [1991]), según el cual el mundo no está dividido en “partes” agrupadas a su vez en el “todo”, sino que -como en un caleidoscopio- el “todo” incluye a las “partes”, las que a su vez incluyen el “todo”. Esta imagen permitirá a la autora justificar la idea de que similitud y diferencia pueden existir simultáneamente -en Pacchanta, en Cusco y también en Washington D.C., donde uno de los informantes participa en una exposición-, de que los mundos no tienen que excluirse para poder existir de manera diferenciada.

Por ejemplo, el primer interludio nos cuenta cómo Mariano Turpo, en virtud de sus capacidades para negociar tanto con el hacendado como con los seres de la tierra, fue elegido para encabezar la lucha de la comunidad por liberarse de la hacienda Lauramarca1. Se trataba más bien de “caminar la queja” o “hacer que la queja funcione” (queja purichiy), lo que incluía una serie de interacciones con la burocracia urbana peruana -en Cusco y en Lima- para que esta reconociera de forma legal los abusos del hacendado y eventualmente los derechos de la comunidad sobre la tierra. En uno de sus viajes a Cusco, Mariano Turpo pasa a la catedral a explicar a Jesucristo cómo llevará a cabo su misión, encomendada por su comunidad y que incluye entonces la voluntad de Ausangate, la gran montaña a cuyas faldas se encuentra Pacchanta. Esa mezcla, que en realidad no es mezcla ni sincretismo puesto que no anula cada una de las partes, entre elementos de la religión Católica y el rol de la voluntad de un ser de la tierra -atribuido por la comunidad indígena-, daría cuenta de una de las muchas “conexiones parciales” que identifica Marisol de la Cadena.

Con esta conceptualización presente a lo largo de todo el libro, la autora continúa su análisis describiendo en detalle, en la segunda y la tercera narración, cómo los runakuna “caminaron su queja” y llegaron en la década de los ochentas a distribuir las tierras entre ellos y a ejercer plena propiedad sobre ellas. Basada en autores como Trouillot (1995), Guha (2002) y Chakrabarty (2000), De la Cadena construye un marco de análisis que da pie para pensar un “líder indígena” que, al mismo tiempo que efectivamente lidera la movilización, no es tal. De hecho, para los runakuna Mariano Turpo no era un representante de la comunidad, sino que hablaba desde ella y no solo con humanos. El conjunto de documentos que Mariano Turpo había reunido respecto a la queja y que al momento de ser contactado por De la Cadena le sirve para hacer fuego, adquiere el estatus de archivo o más bien de “objeto límite” -una especie de materialización de una conexión parcial- entre el mundo de la burocracia estatal centrada en lo escrito y el mundo indígena principalmente unilingue quechua, en el cual pocas personas saben leer y escribir a pesar de los esfuerzos de la comunidad por tener escuelas frente a la oposición de la hacienda. ¿Cómo conferir evenemencialidad, algo así como capacidad para ser algo más que parte del paisaje y alterar el desarrollo de los hechos en la lucha por el territorio, tanto a los runakuna como a seres de la tierra? De la Cadena responde a esta pregunta en la cuarta narración.

El segundo interludio avanza según la cronología de la situación en Pacchanta en las últimas décadas. Nazario Turpo, hijo de Mariano Turpo y también capaz de comunicar con seres no-humanos, es el protagonista principal de la segunda parte del libro. En ella, aprendemos que la situación de abandono en que se encuentra la comunidad de los Turpo no ha cambiado a pesar del relativo éxito de la lucha por la tierra, de la reforma agraria o del multiculturalismo promulgado por el presidente Toledo (2001-2006). Y cuando De la Cadena habla de abandono lo hace citando a Povinelli (2011), es decir apuntando a un proyecto sistemático por parte del Estado peruano según el cual la vida de los runakuna se conjuga siempre en pasado o en futuro anterior, pero nunca en presente, de tal manera que sus muertes no gozan de evenemencialidad. La muerte de Nazario Turpo en un accidente de carretera en el bus que lo transportaba a Cusco, donde ejercía como chamán para una agencia turística, es quizás -insinúa la autora- el resultado de las malas condiciones de las carreteras de la zona, las que no se limitan solo a los caminos, sino que también se extienden a escuelas y hospitales y contribuyen a la situación de pobreza y de carencias en un altiplano afectado por sequías e inviernos helados.

La quinta narración nos explica cómo Nazario Turpo llegó a obtener el trabajo de chamán en una agencia turística y cómo este puesto es el resultado de la mercantilización de las prácticas indígenas en el Perú; mercantilización más bien de las prácticas y sus significados que se imputan a los runakuna y que no necesariamente tienen. De hecho, De la Cadena comenta que el rol de “chamán” no existe para los runakuna -quienes identifican en cambio a un paqu, algo parecido, pero diferente- y para quienes prácticas como los despachos ofrecidos a seres de la tierra, traducidos por lo general como “ofrendas”, no hacen ni pueden hacer referencia a una espiritualidad por cuanto los seres de la tierra no tienen ni son espíritus, solo son.

La venta del “chamanismo andino” como producto turístico benefició a nivel económico a Nazario Turpo y a su familia y le valió una invitación a Washington D.C. para participar en una exposición organizada por el National Museum of the American Indian, en tanto parte del equipo de curadores de la exhibición y en tanto él mismo como indígena parte de la muestra. La sexta narración se centra en esta colaboración entre Nazario Turpo y el museo y describe múltiples “equivocaciones” en el sentido desarrollado por Viveiros de Castro (2004), es decir como intentos aceptadamente errados de traducción de la realidad de otro, ontológicamente diferente de la propia. Una de estas refiere, por ejemplo, a la imposibilidad por parte de los organizadores de la exposición de comprender el rol que juegan los seres de la tierra en Pacchanta.

En esta sexta y última narración, De la Cadena discute cómo se distribuye algo así como el “poder” en la comunidad y en sus relaciones con el Estado peruano, aunque ni la autora ni sus informantes utilizan esa palabra. Descubrimos que una misma palabra en quechua –munayniyuq, traducida por la antropóloga como “dueño de la voluntad”- aplica tanto para la hacienda, el Estado peruano y Ausangate, la montaña. Así, el capítulo final del libro incluye descripciones de las rondas campesinas organizadas por la comunidad y de la manera en que algunos de sus miembros obtuvieron cargos políticos representativos en el gobierno local, además nos introduce en la propuesta con que Marisol de la Cadena cerrará el libro en su epílogo: la “cosmopolítica” como una manera de enfrentarse epistemológicamente a otro, sobre todo como un enfoque normativo que permitiría concebir políticamente las diferencias entre mundos ontológicamente distintos.

Al basarse en autores como Blaser (2009) y Haraway (2008) y constatando que las movilizaciones por la protección del medio ambiente frente a la explotación corporativa de recursos naturales reivindican la distinción entre naturaleza y sociedad, invisibilizando así a los seres no-humanos como ríos, montañas y lagos en su capacidad de acción y relaciones que establecen con la comunidad, De la Cadena -leyendo a Stengers (2005)- afirma que Mariano y Nazario Turpo, así como su comunidad en Pacchanta, pusieron en práctica una manera de relacionarse con otros en la cual la igualdad ontológica no era un requisito y en que la “parcialidad de las conexiones” era posible. En palabras de la autora (mi traducción): “sostengo que, al discrepar ontológicamente con la partición establecida de lo sensible, los runakuna proponen una cosmopolítica: las relaciones entre mundos divergentes como una práctica política decolonial que no tiene otra garantía que la ausencia de igualdad (sameness) ontológica” (p. 281). Que la cosmopolítica practicada por los runakuna sea tal es brillantemente demostrado por De la Cadena a lo largo de su obra, sin embargo aquí se introduce una crítica a su trabajo y es que el carácter decolonial en él no se revela tan nítidamente.

Una de las principales fortalezas de esta etnografía es precisamente su capacidad para convertirse en un estudio empírico que a la vez moviliza y desafía las literaturas ligadas tanto al ámbito de la ontología política como a los estudios postcoloniales. Sin embargo, mientras que De la Cadena nos presenta una respuesta completa, teórica y aplicada a la pregunta por cómo aprehender las diferencias ontológicas, la noción de “poder” -en sus versiones más o menos elaboradas, siempre inherente a cualquier reflexión desde la decolonialidad- no alcanza a constituir una respuesta satisfactoria a la pregunta por cómo estudiar a quienes están “en la sala de espera de la historia” (Chakrabarty 2000). Al fin y al cabo, y según los relatos reportados por De la Cadena, esta “sala de espera” no es solo un lugar donde lo que los runakuna hacen y creen no es conocido ni re-conocido, sino que también es un lugar donde la comunidad se está muriendo de hambre y de frío, donde no tiene acceso adecuado a escuelas o a hospitales y donde es continuamente abusada por otros.

La “cosmopolítica” que puedan poner en práctica tanto los runakuna como la antropóloga no es suficiente -aunque quizás en ningún caso prescindible- para otorgar dignidad epistemológica e histórica a la comunidad de Mariano y Nazario Turpo. ¿Cómo dar cuenta de la discrepancia ontológica con el proyecto moderno que encarnan los seres de la tierra en Pacchanta y, al mismo tiempo, de la igualdad política a la que sin embargo los mismos runakuna parecen aspirar? ¿Cómo dar cuenta, simultáneamente, de la diferencia ontológica entre mundos y de la participación en un mismo mundo desigual? El libro de Marisol de la Cadena ofrece ciertamente un trabajo de terreno fascinante, una escritura impecable y una reflexión rigurosa para pensar estas preguntas que inquietan a la antropología contemporánea.

Comentario

1 La situación en Pacchanta, cuyos orígenes se remontan a la colonización española, es el resultado de la tensión entre la entrega de títulos hacendales sobre territorios indígenas a colonos, lo que obligaba a las comunidades que vivían y trabajaban las tierras de la hacienda a pagar tributos a sus dueños, y las sometía a múltiples abusos. La hacienda Lauramarca, que controlaba la zona y que ha tenido distintos dueños a lo largo del siglo pasado, estuvo vigente hasta 1970, cuando luego de muchos conflictos que incluyeron diferentes matanzas de indígenas, ésta se convirtió en una cooperativa agraria. En los años 1980, la comunidad indígena expulsa a los administradores estatales de la cooperativa, deshaciéndola y redistribuyendo la tierra entre las familias indígenas.

Referencias

Blaser, Mario. 2009. “Political Ontology.” Cultural Studies23 (5): 873-896.         [ Links]

Chakrabarty, Dipesh. 2000. Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference.Princeton: Princeton University Press.         [ Links]

Guha, Ranajit. 2002. History at the Limit of World History. Nueva York: Columbia University Press.         [ Links]

Haraway, Donna. 2008. When Species Meet. Minneapolis: University of Minnesota Press.         [ Links]

Latour, Bruno. 1993. We Have Never Been Modern. Cambridge: Harvard University Press.         [ Links]

Povinelli, Elizabeth. 2011. Economies of Abandonment. Social Belonging and Endurance in Late Liberalism. Durham: Duke University Press.         [ Links]

Stengers, Isabelle. 2005. “A Cosmopolitical Proposal.” En Making Things Public: Atmospheres of Democracy, editado por Bruno Latour y Peter Weibel, 994-1003. Cambridge: MIT Press.         [ Links]

Strathern, Marilyn. 2004 [1991]. Partial Connections. Nueva York: Altamira.         [ Links]

Trouillot, Michel-Rolph. 1995. Silencing the Past: Power and the Production of History.Boston: Beacon.         [ Links]

Viveiros de Castro, Eduardo. 2004. “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation.” Tipití2 (1): 3-22.         [ Links]

Javiera Araya Moreno – Magister y estudiante de doctorado en Sociología, Universidad de Montreal. Entre sus últimas publicaciones están: coautora en “Pluralism and Radicalization: Mind the Gap!”. En Religious Radicalization and Securitization in Canada and Beyond, editado por Paul Bramadat y Lorne Dawson, 92-120, 2014. Toronto: University of Toronto Press. Coautora en “Desigualdad y Educación: la pertinencia de políticas educacionales que promuevan un sistema público”. Docencia. Revista del Colegio de Profesores de Chile 44 (XVI): 24-33, 2011. E-mail: [email protected]Marisol de la Cadena. 2015. Earth Beings. Ecologies of Practice Across Andean Worlds. Durham: Duke University Press

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Unearthing Conflict: Corporate Mining, Activism and Expertise in Peru – LI (A-RAA)

LI, Fabiana. Unearthing Conflict: Corporate Mining, Activism and Expertise in Peru. Durham y Londres: Duke University Press, 2015. Resenha de: CARMONA, Susana. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.26, set./dez., 2016.

En Unearthing Conflict: Corporate Mining, Activism and Expertise in Peru (Desenterrando el conflicto: minería corporativa, activismo y experticia en Perú1), Fabiana Li explora la proliferación de conflictos en torno a la minería en el Perú desde una perspectiva que pone énfasis en la agencia de elementos no humanos en las controversias. El texto parte de una contextualización histórica para desarrollarse a través de una rica etnografía de agradable lectura, en la cual se analizan con detalle los conflictos mineros en los cuales los más diversos actores entran en escena.

Al igual que otros países en América Latina, las reformas neoliberales de los noventas en el Perú significaron un énfasis en las actividades extractivas y su vinculación con la idea de “desarrollo” y “progreso”. Al mismo tiempo, la oposición social a la minería se incrementó a pesar de los esfuerzos de gobiernos y corporaciones por manejar los conflictos con planes de manejo, estudios técnicos y un despliegue de conocimiento experto que se analiza en el texto. El libro está escrito a partir de dos casos específicos: primero, el de la ciudad de La Oroya en donde se encuentra desde hace más de noventa años un complejo metalúrgico, caso que se desarrolla en el primer capítulo; segundo, la minera Yanacocha en la región de Cajamarca, caso que ocupa el resto del libro.

Unearthing conflict es el resultado de dos años de trabajo etnográfico de la autora en Perú, principalmente en la ciudad de Cajamarca. Como es usual con este tipo de estudios etnográficos, los lugares de observación son muy variados e incluyen no solo la tradicional permanencia con las comunidades, sino también la asistencia a reuniones entre comunidades, empresas y Estado, la visita de inspección a un canal de riego, los espacios de revisión y difusión de un Estudio de Impacto Ambiental (EIA), entre otros. La autora habla de un vínculo especial con la organización social Grufides, que tuvo un papel importante en los conflictos con la minera Yanacocha. El seguimiento a esta organización le permite a la autora dar cuenta de la criminalización de la protesta por parte del Estado, de la separación entre lo “técnico” y lo “político” y, finalmente, de las críticas -externas, pero también desde adentro- a la transformación de una organización social en un partido político.

El objetivo del libro es analizar los elementos que las tecnologías de minería “moderna” (representadas en la minera Yanacocha) han traído al escenario político peruano y que se diferencian de la “vieja” minería (representada en el libro con el caso de La Oroya). La autora se pregunta por la forma en que elementos no-humanos, como la contaminación (pollution) y el agua, se han convertido en los principales puntos contenciosos en los conflictos entre comunidades locales y corporaciones mineras.

Li retoma el concepto de controversias de Latour (2004), que se define como el momento en que las cosas dejan de ser “hechos” (matters of fact) para convertirse en “asuntos de preocupación” (matters of concern). Esto ocurre con la contaminación, con el agua y con otra serie de entidades que son desenterradas por la minería. Según la autora, estos elementos no-humanos se entienden mejor como elementos que no se agotan en un único punto de vista, sino que son construidos desde múltiples perspectivas. Esta construcción es el efecto de relaciones entre actores y su existencia se debe a prácticas específicas que los producen, como por ejemplo estudios técnicos, foros de debate, alianzas y mesas de concertación, movilizaciones sociales, entre otros.

La autora devela en su etnografía lo ambiguas y contradictorias que resultan ser las relaciones entre las empresas y las comunidades, llenas de alianzas, colaboraciones inesperadas y rupturas. Esto la lleva a ampliar la noción de conflicto y a reformularla como relaciones cambiantes entre lugares, personas y cosas, así busca trascender la noción que los conflictos en torno a la minería son un resultado de la falla del Estado o de la actuación corporativa. En palabras de la autora: “no trato a las redes de activistas y a las redes corporativas como antagonistas ideológicas, sino que enfatizo en las alianzas cambiantes entre varios actores y las maneras en que trabajan al mismo tiempo con y en contra de intereses corporativos” (2015, 6). Para su análisis la autora retoma los Estudios de Ciencia y Tecnología (ECT), la ecología política y los estudios críticos del paisaje; de este último, se incluye una perspectiva del paisaje no solo en sus cualidades materiales sino también como agente. Retoma igualmente la idea de los conflictos por extracción de recursos naturales como conflictos ontológicos sobre la producción de mundos y, de esta forma, logra “examinar el cómo cosas como la polución toman forma y se vuelven tangibles, cuándo estas importan y para quién son políticamente significativas” (Li 2015, 21).

El libro es un interesante ejercicio etnográfico en que se contemplan elementos poco comunes a la hora de pensar conflictos mineros en América Latina. Lo más interesante es la atención que pone la autora a las prácticas corporativas que se enmarcan dentro de la “Responsabilidad Social Corporativa” y que incluyen la participación comunitaria, los estudios de impacto ambiental, la rendición de cuentas, la adhesión a estándares internacionales, entre otras. Estas prácticas surgen como respuesta a los movimientos de oposición a la minería y a un interés global en asuntos ambientales y de derechos humanos, sobre los cuáles la antropología apenas recientemente ha posado su interés. Li describe estas prácticas como parte de una “lógica de equivalencia” que busca, mediante procesos de conmensuración y con un despliegue de conocimiento experto técnico-científico, saldar deudas sociales y ambientales. Las equivalencias tienen el efecto de desparecer el aspecto político de los conflictos y poner en términos técnicos las soluciones. Sin embargo, se trata de acuerdos temporales y negociaciones constantes en que las comunidades no se sienten compensadas, pues son intentos de conmensurar lo inconmensurable. Las prácticas corporativas, el activismo y la lógica de equivalencia son rastreados etnográficamente a lo largo de cinco capítulos y un apartado final de conclusión.

La primera sección del libro se titula “Minería, pasado y presente” y en su primer capítulo “Legados tóxicos, activismo naciente” se concentra en el caso de la ciudad de La Oroya, que le permite a la autora presentar la historia minera del país y la agencia de elementos no-humanos, en este caso “los humos”, en el surgimiento de conflictos. Cuando en 2006 una organización norteamericana nombró a La Oroya como uno de los diez lugares más contaminados del mundo, la contaminación en esta ciudad se convirtió en un “asunto de preocupación” global. Para este momento la compañía incrementó sus programas con el fin de contrarrestar las emisiones toxicas, se llevaron a cabo estudios por parte de ONG activistas y de la misma compañía, se implementaron mesas de concertación y se involucró a la comunidad en el manejo de los problemas ambientales.

Muy interesante en este capítulo es la descripción de la forma en que la compañía transforma su obligación de rendir cuentas por sus acciones (corporate accountability) en “responsabilidades compartidas”. Esto último se logra al concentrar esfuerzos en el monitoreo de la salud de los habitantes, el control del riesgo en los puestos de trabajo, el monitoreo comunitario y la promoción de “hábitos saludables”. Estas acciones hacen parte de nueva dinámica en la cual las empresas buscan posicionarse como representantes de la minería moderna y sostenible. La trasformación de elementos no-humanos en asuntos de preocupación y por lo tanto en objetos de conocimientos, se repite a lo largo de los distintos conflictos analizados en el texto: una montaña, canales de irrigación o lagunas. La diversidad de visiones frente a estos elementos es lo que analiza la autora en el resto del libro, al poner énfasis en las prácticas corporativas de generación de equivalencia y en las prácticas de activistas que apelan a argumentos no técnicos.

En este punto la autora pasa al caso de la minera de oro Yanacocha, en cuyo contexto se enfoca en el resto del libro. El capítulo dos “mega-minería y conflictos emergente” narra la historia de la minería en el Perú y su giro hacia la mega-minería. A pesar de las promesas de progreso y de pertenecer al nuevo paradigma de “Responsabilidad Social Corporativa” que generaron enormes expectativas en las comunidades, los efectos de Yanacocha sobre el agua han disparado una enorme oposición a la empresa y a la minería.

A través del análisis de un estudio de la calidad del agua elaborado por una mesa de concertación entre la industria minera, el Estado y las comunidades la autora muestra cómo se producen colaboraciones entre actores y cómo los resultados son usados e interpretados de formas diversas. En este contexto se comienza a hacer evidente que la “percepción” de las personas no se considera un argumento legítimo y que solamente en el marco de un discurso técnico, desde el Estado y la empresa, se habla de compensación y de las preocupaciones sociales, políticas y éticas por el agua.

Tras haber introducido el agua como elemento central de la disputa, la autora pasa en la segunda parte del libro “Agua y Vida” a analizar la forma en que el agua se convierte en un elemento central de la política, generando protestas y movilización internacional en contra de la minería. En el capítulo tres, “La hidrología de una montaña sagrada”, la autora muestra la controversia por el proyecto de explotación a cielo abierto en el Cerro Quilish. Tras mostrar que el cerro es un objeto múltiple que carga al mismo tiempo identidades como depósito de oro, acuífero y montaña sagrada, la autora concluye que en este tipo de conflictos la multiplicidad con que se miran elementos de la naturaleza permiten dar al cerro relevancia política de forma que se “excede la política tal como la conocemos” (De la Cadena 2010). Sin embargo, los argumentos técnicos relacionados con la importancia del cerro como depósito de agua predominaron en la disputa. Esto lleva a la autora a profundizar, en el siguiente capítulo, sobre la lógica con que opera la compañía minera.

En el capítulo cuatro, “Irrigación y equivalencias impugnadas”, la autora analiza de forma detallada la “lógica de equivalencia”. A partir de la historia de unos canales de irrigación afectados por la minería de oro, se narra cómo la empresa llegó a acuerdos de compensación con los campesinos que consistían en dinero en efectivo, contratos de trabajo y asistencia para el desarrollo. La autora muestra el choque de formas de conocimiento y la imposición de los criterios técnico-científicos en las negociaciones. Expone también cómo la equivalencia discrepa con los arreglos políticos preexistentes y por tanto genera conflictos internos a las comunidades. Además, presenta cómo aparecen nuevas dinámicas que hacen proliferar los conflictos, por ejemplo el incremento inusitado del número de usuarios del canal que buscan compensaciones.

No obstante, hace falta un mayor énfasis etnográfico en el cara a cara de la negociación entre los campesinos y los funcionarios de la empresa, así como incorporar el análisis de uno de los elementos más intrigantes de los modelos de desarrollo que llegan con la Responsabilidad Social Corporativa y que la autora no menciona en el texto: el deseo de las personas de hacer parte de sus proyectos. Sin desconocer que efectivamente la lógica de equivalencia opera en la negociación y que los criterios técnicos predominan frente a otras formas de conocimiento, no se explicita el por qué y el cómo los campesinos llegan a este tipo de acuerdos, los aceptan y desean su continuidad.

La forma en que está escrito el texto y los elementos sobre los que se hace énfasis, dejan la sensación de que se trata de una imposición de la corporación malévola y desestiman la agencia de los campesinos en esta negociación. Sin embargo, la etnografía es rica en mostrar el cambio de las relaciones de la gente con el canal de riego y las desigualdades que genera la presencia de la mina en la comunidad.

Finalmente, en la última parte del libro “activismo y experticia”, la autora se concentra en el análisis de un dispositivo corporativo que ha entrado a dominar la escena política en torno a la minería: el EIA. Según Li, los EIA forman parte de una estructura regulatoria que facilita la extracción de recursos y son una de las banderas de la rendición de cuentas corporativas. La autora se concentra en los efectos del EIA y concluye que los impactos identificados son solo aquellos que pueden ser manejados técnicamente, que los procesos de participación y divulgación circunscriben los espacios de oposición al documento y que los procedimientos y formatos asociados al documento son más importantes que su mismo contenido. Esto último lleva a las personas a buscar nuevas estrategias políticas como “salirse del documento”, mediante la no-participación en las instancias oficiales. Una versión preliminar de dicho capítulo de encuentra publicada en Li (2009).

En la conclusión del libro se retoma otro conflicto en torno a la minera Yanacocha. Se trata del proyecto “Minas Conga”, el cual afectaría cuatro lagunas que emergen como los focos de la disputa. Según la autora, el conflicto por Minas Conga encapsula la política de la extracción que se ha mostrado a lo largo del libro, situación que es aprovechada para resumir las conclusiones principales de cada capítulo. Las reflexiones finales se refieren a la hegemonía del conocimiento experto, en este punto la autora deja entrever cierto desconcierto y en un tono de resignación afirma que no se puede negar la fuerza del Estado y el rol de la violencia corporativa y estatal para suprimir la oposición y limitar las posibilidades de acción política; sin embargo, el libro concluye con una reflexión sobre las posibilidades del activismo. Para Li los actores no humanos que se desentierran con la minería moderna, han permitido a los opositores hacer oír sus demandas y desestabilizar visiones dominantes en que la naturaleza es vista como un conjunto de “recursos” que deben ser administrados. Estos objetos, en casos como los que se presentan en el libro y se observan cotidianamente en muchos contextos mineros de América latina, abren nuevos espacios de resistencia.

El libro es una interesante reconstrucción de las dinámicas en torno a la minería desde una perspectiva que permite ver más allá de una tradicional lucha entre actores hegemónicos y no hegemónicos. La atención a las relaciones entre personas y cosas evidencia cómo elementos no humanos llevan a los actores -tanto comunitarios como corporativos- a movilizarse, ya sea para defender un modo de vida tradicional que se ve amenazado o para hacer viable por medio de lógicas de equivalencia una actividad económica extractiva.

Comentario

1 Traducción propia.

Referencias:

De la Cadena, Marisol. 2010. “Indigenous Cosmopolitics in the Andes: Conceptual Reflections beyond ‘politics.’” Cultural Anthropology25 (2): 334–370.         [ Links]

Latour, Bruno. 2004. Politics of Nature: How to Bring the Sciences into Democracy. Cambridge: Harvard University Press.         [ Links]

Li, Fabiana. 2009. “Documenting Accountability: Environmental Impact Assessment in a Peruvian Mining Project.” PoLAR: Political and Legal Anthropology Review32 (2): 218–236.         [ Links]

Li, Fabiana. 2015. Unearthing Conflict: Corporate Mining, Activism, and Expertise in Peru. Durham y Londres: Duke University Press.         [ Links]

Susana Carmona – Antropóloga, magíster en Estudios Socioespaciales de la Universidad de Antioquia, magíster en Antropología y estudiante del doctorado en Antropología en la Universidad de los Andes. Entre sus últimas publicaciones están: coautora en “Números, Conmensuración y Gobernanza en los Estudios de Impacto Ambiental”. Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad 10 (30), 2015. “La Percepción de los Impactos Sociales de la Producción de Petróleo: el Caso de Casanare, Colombia”. Southern Papers Series/Working Papers Sur-Sur 21, 2015. E-mail: [email protected]

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Modo “cartonero” de reprodução e circulação para a literatura (A-EN)

Modo “cartonero” de reprodução e circulação para a literatura. Resenha de: FANJUL, Adrián Pablo. Malha fina cartonera: novidade e projeto formador. Alea, Rio de Janeiro, v.18, n.2, p.369-374, ago. 2016.

Em agosto de 2015, em São Paulo, começou suas atividades uma nova editora independente: a Malha Fina Cartonera. Como seu nome já antecipa, trata-se de um empreendimento “cartonero”, que vem somar-se às centenas de selos editoriais desse tipo que surgiram no mundo, e muito especialmente na América Latina, desde o início deste século. No caso, Malha Fina Cartonera é iniciativa de professores e estudantes do curso de Letras de Universidade de São Paulo, sendo a professora Idalia Morejón Arnaiz e a pós-graduanda Tatiana Lima Faria suas inspiradoras iniciais e quem têm garantido um vínculo acadêmico para as atividades da nova editora. Encontramos Malha Fina Cartonera na web no seguinte endereço: <https://malhafinacartonera.wordpress.com/>.

Entrando ao blog da editora, podemos apreciar imediatamente o logotipo, criado com base na forma de uma folha de barbear. O desenho é do artista cubano Enrique Hernández. No blog lemos, a respeito, que

Tal como, de modo geral, as lâminas revelam as faces por detrás das barbas, inclusive às vezes revelam novas faces para rostos já conhecidos, a Malha Fina Cartonera pretende revelar para o seu público tanto escritores da FFLCH que permanecem inéditos quanto obras latino-americanas pouco conhecidas do público brasileiro.

Nosso principal objetivo aqui é resenhar o trabalho editorial de Malha Fina Cartonera, sua inserção na tradição das editoras denominadas “cartoneras” da América Latina, distinguindo de maneira especial seu projeto cultural focado na interseção dos universos linguístico-culturais hispânicos e brasileiros e destacando também o importante papel que esta iniciativa pode ganhar na formação de diversos profissionais, inclusive de educadores, no campo da linguagem.

Em 2002, em Buenos Aires, dá seus primeiros passos o que logo seria a editora Eloísa Cartonera. O poeta Washington Cucurto e o artista visual Javier Barilaro vinham trabalhando em um projeto de edição que já tinha o nome “Eloísa”. Para viabilizar economicamente as edições, começam a comprar o papelão (em espanhol, “cartón”) vendido por catadores que, na Argentina, são conhecidos como “cartoneros” porque recolhem e vendem papel e papelão. Cucurto, Barilaro, e os que participavam do projeto, compravam o papelão a um preço maior que o que pagavam as empresas que exploravam o trabalho dos catadores. A relação com os “cartoneros” e a participação deles no processo de produção dos livros foi crescendo, já que os editores montaram uma oficina onde os livros se armavam, encadernavam e pintavam artesanalmente. Assim surgiu “Eloisa Cartonera”, primeira editora com essas características, que começou a funcionar no início de 2003, em um local onde também se vendiam verduras e legumes. No início, se acrescentou a curadora de arte Fernanda Laguna.

Vemos, então, que o modo “cartonero” de reprodução e circulação para a literatura surge das condições do atual capitalismo nos espaços urbanos, porém, mais especificamente, dos processos de resistência (nas mais diversas acepções do termo) contra o neoliberalismo. Com efeito, “Eloisa Cartonera” não é imaginável fora do contexto de empreendimentos autogestivos que percorreram todas as áreas de economia na crise que levou à insurreição argentina de 2001 e cujas penúrias econômicas se prolongaram por alguns anos mais. Não apenas a rebeldia, mas sobretudo a criação de fortes redes solidárias caracterizaram esse histórico processo mediante o qual os argentinos deixaram atrás a desintegração provocada pelo neoliberalismo e recuperaram o crescimento econômico. Em relação à produção industrial de bens surgiram as empresas comunitárias geridas pelos próprios trabalhadores (PETRAS & VELTMEYER, 2002). Mas, como explica Palomino, os próprios movimentos massivos de assembleias de bairros e de desempregados que povoaram o espaço público desenvolveram, além do protesto, “huertas comunitarias, venta directa de la producción a través de redes de comercialización alternativas, elaboración y manufactura artesanal e industrial de productos frutihortícolas, panaderías, tejidos y confecciones artesanales e industriales, etc” (PALOMINO, 2003: 119). Sem dúvida, esse entorno de sociabilidade contribuiu para que se pudesse visualizar o possível ganho mútuo nessa iniciativa solidária específica que foi a edição “cartonera”.

Não casualmente, o manifesto de Eloisa Cartonera − que aqui citamos de sua reprodução em Akademia Cartonera: A Primer of Latin American Cartonera Publishers (2009) − começa localizando seu nascimento nesse contexto e determinado por ele:

Nació en el 2003, por aquellos días furiosos en que el pueblo copaba las calles, protestando, luchando, armando asambleas barriales, asambleas populares, el club del trueque, ¿se acuerdan del club del trueque?, ¡Cómo pasa el tiempo de este lado de la tierra! Por aquellos días, hombres y mujeres perdieron sus trabajos, y se volcaron masivamente a las calles en busca del pan para parar la olla, como se dice, y conocimos a los cartoneros. (BILBIJA & CELIS CARABAJAL, 2009: 57)

A editora, como fariam de modo geral as muitas cartoneras que depois surgiram, combinava alguns autores novos com textos inéditos de autores consagrados, alguns dos quais, como Ricardo Piglia, César Aira, Rodolfo Fogwill e Tomás Eloy Martínez doaram obras breves.

Nos doze anos que se passaram, as editoras cartoneras se multiplicaram rapidamente. Segundo dados no blog de Malha Fina, elas já existem em 21 países e há mais de 300 editoras do tipo reconhecidas na América Latina. No Brasil, a primeira cartonera foi Dulcinéia Catadora, fundada em 2007, em São Paulo, por Lucia Rosa e Peterson Emboava. De modo geral, a elaboração dos livros pelas cartoneras é artesanal e cada exemplar é pintado individualmente com tinta guache. Muitas cartoneras e os coletivos que as sustentam oferecem oficinas de edição, como é o caso também desta nova Malha Fina, que, como veremos, já organizou atividades desse tipo.

Quando foi criada a primeira editora cartonera do Brasil, “Dulcineia Catadora”, o nome “Dulcinéia” era o de uma catadora próxima dos fundadores. Porém, como eles não deixaram de perceber, é também remissão a uma figura memorável das literaturas hispânicas. É que a edição cartonera no Brasil mostra uma particular vinculação com os espaços de língua espanhola e uma indagação em determinadas relações possíveis entre os universos linguístico-culturais brasileiros e hispânicos. Concordamos a respeito com Flávia Krauss (2015), quem encontra na prática editorial cartonera um lugar propício para o “entremeio”, termo que adota de María Teresa Celada (2010) para significar as relações de proximidade e diferenciação incompleta entre ambas as línguas, e a vivência de instabilidade semântica de circular entre elas.

Não casualmente, um dos primeiros livros publicados por Dulcinéia Catadora no seu primeiro ano de funcionamento foi Uma flor na solapa da miséria, de Douglas Diegues, escritor que produz na forma interlingual que ele denomina “portunhol selvagem” (com instabilidade na grafia da própria denominação). Essa obra já tinha sido publicada em 2005 pela Eloisa Cartonera. Diegues, em 2007, deu início também a uma editora cartonera, Yiyi Jambo, que funciona na cidade de Ponta Porã, fronteira entre o Brasil e o Paraguai. E são numerosos, dentre os títulos publicados pelas cartoneras de países do Cone Sul, os que correspondem a traduções do espanhol para o português e vice-versa.

Nesse contexto, a aparição de Malha Fina Cartonera, por envolver em ampla proporção professores, pesquisadores e alunos da área de Espanhol da USP, promete ser um espaço que reflita e amplie esse lugar da edição como cenário privilegiado para diversas formas de relação, no discurso literário, entre os dizeres e as identidades linguísticas brasileiras e hispano-americanas.

Não é raro, para quem observa listas e coleções de editoras cartoneras, encontrar que algumas delas se desenvolvem no âmbito universitário ou em colaboração com grupos dessa extração. Embora não tenha sido essa sua origem, é compreensível que tenha acontecido esse direcionamento, já que a crítica acadêmica, marcada por uma relação com as práticas de pesquisa, tende a cumprir, em relação ao campo literário, um papel simultaneamente consagrador e desestabilizador, atento às novas formas de produção.

Malha Fina surge como uma das editoras cartoneras que começam no âmbito universitário. No caso, do curso de Letras da Universidade de São Paulo, e com uma forte interação inicial com um selo editorial (La Sofía Cartonera) vinculado à Universidad Nacional de Córdoba, Argentina, com a qual a área de Espanhol da USP mantém diversos intercâmbios desde tempo atrás.

Já na seção “Quem somos?” do seu blog, Malha Fina Cartonera sinaliza essa relação com a universidade, vínculo que, mais que como institucional, se apresenta como o de um espaço de práticas letradas:

A Malha Fina Cartonera é um selo editorial que resulta de um desejo incessante pelo novo. Busca estimular a produção e vida literárias no âmbito universitário de modo não convencional e autônomo, proporcionando um espaço de atuação e mobilização dos estudantes de Letras. Nesse primeiro ano serão publicados autores latino americanos em traduções inéditas e também outros livros de autores vinculados à Universidade de São Paulo. Nossa equipe é composta por professores, alunos e colaboradores. Está sempre de capas abertas à espera de interesse e entusiasmo.

Malha Fina, nos seus cinco meses de existência, tem promovido oficinas sobre design editorial e sobre como editar livros cartoneros. Esse tipo de atividades, junto com as que necessariamente fazem parte de um projeto editorial, tais como a investigação literária, a tradução e a arte de desenho, têm, no âmbito universitário e sob a proposta de um modo de produção autônomo, uma grande potencialidade formadora sobre profissionais das letras e da linguística. Não apenas no campo da edição, também nos da tradução e do ensino das literaturas e mesmo das línguas, se levarmos em conta o modo como a diversidade linguística do espanhol e os sentidos que resultam de sua enunciação no espaço do português brasileiro podem fazer parte da materialidade dessa realização. Do lugar que nos cabe nas ciências da linguagem e na formação de professores de espanhol no Brasil, cremos que uma impronta “cartonera” pode contribuir grandemente para desestabilizar estereótipos sobre as línguas e culturas com que trabalhamos.

Não faremos aqui uma leitura crítica dos quatro livros já publicados por Malha Fina, dos quais há uma boa resenha no próprio blog da editora (SOUSA, 2015), mas os descreveremos brevemente.

O livro 22 poemas, de Fabiano Calixto, foi publicado em parceria com a já mencionada Yiyi Jambo, de Ponta Porã. É, como o próprio título indica, uma seleção de poemas desse autor de origem pernambucana, radicado em São Paulo, que já conta com vasta obra publicada, inclusive um livro pela editora Cosac Naify, e traduções do poeta dominicano León Félix Batista.

Também poesia, Pretexto para todos os meus vícios, de Heitor Ferraz Melo, autor de São Paulo embora nascido na França, apresenta textos inéditos. Ferraz Melo tem ao menos cinco livros de poesia publicados previamente, além de muitas colaborações com a revista CULT como crítico literário.

Outro dos livros, Os olhos dos pobres, de Julián Fuks, narrador conhecido por títulos como Histórias de literatura e cegueira (Record, 2007) ou o recente romance A resistência (Companhia das Letras, 2015), reúne dois contos: o homônimo e “O jantar”, que já foram publicados em espanhol em 2014 pela editora La Sofía Cartonera.

Diálogos e incorporações, de Juliano Garcia Pessanha, circula entre modulações literárias e ensaísticas no tipo de vozes que cria e põe em cena. Dividida em quatro partes, cada uma delas tem como centro de referência um escritor ou um filósofo. O autor tem sua obra anterior recentemente recopilada em uma edição de Cosac Naify, Testemunho transiente.

Para concretizar outra das suas ambições, que é divulgar produção literária de estudantes de graduação e pós-graduação da Universidade de São Paulo, Malha Fina Cartonera realizou uma convocatória pública que está em andamento. Um comitê formado por reconhecidos críticos e editores selecionará duas propostas dentro das modalidades de poesia e/ou narrativa. As obras selecionadas serão publicadas em formato cartonero, inicialmente em cem exemplares.

Finalizando, embora Malha Fina Cartonera não seja a primeira editora desse tipo no país, é sim, a primeira que surge no âmbito dos estudos hispânicos no Brasil, e isso não é pouco. Sua potencialidade como espaço para mostrar relações pouco visíveis entre as línguas, literaturas e culturas da América Latina encontrará, sem dúvida, terreno fértil em uma Faculdade como a de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em especial na sua área de Espanhol, onde a experimentação, a reflexão e a pesquisa sobre esses “entremeios” já tiveram expressões pioneiras.

Por isso, cremos também que pode atingir uma boa projeção sobre o conjunto do hispanismo brasileiro e de modo geral sobre aqueles que, na universidade, tentam pensar a América Latina a partir das suas práticas literárias e culturais. Para sua abordagem no século XXI, é cada vez mais evidente que a modalidade cartonera deve integrar o repertório de estudos.

Referências

BILBIJA, Ksenija & CELIS CARABAJAL, Paloma (Ed.). Akademia Cartonera: A Primer of Latin American Cartonera Publishers. Winconsin: Paralell Press, 2009. [ Links ]

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Adrián Pablo Fanjul é professor no Departamento de Letras Modernas da USP e doutor em Linguística pela Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara. É bolsista de produtividade nível 2 do CNPq. Publicou os livros Espanhol e português brasileiro: estudos comparados (Parábola, 2014), em coautoria com Neide González, e Português e Espanhol: línguas próximas sob o olhar discursivo (Claraluz, 2002), e, nos últimos anos, artigos nas revistas Bahtiniana, Cadernos de Letras da UFF, Lingua(gem) em Discurso e Letras de Hoje.

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Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada | Jacques Le Goff

O livro A la recherche du temps sacré ou, na edição brasileira, Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada foi uma das últimas obras produzidas pelo historiador Jacques Le Goff a ser traduzida para o português. Lançada originalmente em francês no ano de 2011, a produção foi mais uma contribuição do autor para os estudos medievais. O texto foi traduzido e publicado no Brasil apenas em 2014, pela editora Civilização Brasileira.

Jacques Le Goff é considerado pela comunidade acadêmica como um dos principais historiadores do século XX. Foi diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales – sucedendo Fernand Braudel – e, ao lado de nomes como Georges Duby, Pierre Chaunu, Le Roy Ladurie, entre outros, esteve à frente da chamada terceira geração da Escola dos Annales. No campo bibliográfico, Le Goff desenvolveu uma vasta produção – entre artigos, capítulos, livros, etc. – dentre a qual podemos mencionar, apenas para citar alguns títulos já traduzidos para o português: Os Intelectuais na Idade Média; O nascimento do purgatório; São Francisco de Assis; Homens e mulheres na Idade Média; A Civilização do Ocidente Medieval. Como reconhecimento de sua atuação, recebeu, em 2004, o prêmio Dr. A. H. Heineken de História, atribuído pela Academia Real das Artes e Ciências dos Países Baixos. Leia Mais

Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente | Jacques Le Goff

Jacques Le Goff, um dos historiadores mais influentes do século XX, trouxe com seus mais de 40 livros, novos olhares sobre a Idade Média, não só no meio acadêmico mas entre aqueles interessados em outras perspectivas sobre o Medievo, além de tratar da religiosidade e das tendências econômicas, usou a Antropologia Histórica no Ocidente Medieval, além da Sociologia e Psicanálise, buscou a cultura e a mentalidade do homem do Medievo, visitando o imaginário não somente das grandes personalidades, mas também daqueles que faziam parte do cotidiano desse período.

Vemos, em sua trajetória nessa seara de possibilidades, a análise do Medievo em várias frentes, desde a econômica em sua primeira obra de 1956, Mercadores e Banqueiros na Idade Média, e A Bolsa e a Vida, de 1997, à religiosidade em O Nascimento do Purgatório, de 1981 e São Francisco de Assis, de 2001, passando pelo imaginário na obra O Imaginário Medieval, de 1985, chegando a aspectos como trabalho, cultura e o tempo. Leia Mais

A História deve ser dividida em pedaços? | Jacques Le Goff

Em um dos seus últimos trabalhos, Jacques Le Goff discute a propriedade ou não de se dividir a História em períodos ou, como consta do título, em pedaços. O livro encontrase distribuído em doze itens: Preâmbulo (pp.7-9); Prelúdio (pp.11-14); Antigas Periodizações (pp.15-23); Aparecimento Tardio da Idade Média (pp.25-32); História, ensino, períodos (pp.33-43); Nascimento do Renascimento (pp.45-58); O Renascimento atualmente (pp.59-73); A Idade Média se torna “os tempos obscuros” (pp.75-95); Uma Longa Idade Média (pp.97-129); Periodização e Mundialização (pp.131-134); Agradecimentos (pp.135-136) e Referências Bibliográficas (pp.137-149).

Nesse trabalho, Le Goff postula claramente a favor da ideia de uma Longa Idade Média e/ou, se desejarmos, uma Idade Média Tardia, que seria encerrada com as chamadas “revoluções” Industrial e Francesa no século XVIII. Em contrapartida, contesta a ideia de um Renascimento que teria rompido com o período medieval nos séculos XV e XVI. Leia Mais

Manifestações culturais em Afro América, conexões, continuidades transnacionais / Revista Brasileira do Caribe / 2016

[…] Yoruba soy, cantando voy, llorando estoy, y cuando no soy Yoruba, soy Congo, Mandinga y Carabalí […] (GUILLEN, 1974, p.231)

El número 33 de la Revista Brasileña del Caribe corresponde al Dossier titulado Manifestaciões culturais em Afro América, conexões, continuidades transnacionais. La discusión central del número aborda las tradiciones ancestrales africanas articuladas en diferentes lugares del continente. Las rutas transatlánticas de comercio de esclavos, como parte de la expansión económica de Europa sobre las Américas, dieron inicio en el siglo XVI a esas relaciones culturales. Este expansionismo exigió el abastecimiento de esclavos para las plantaciones y los ofi cios domésticos (BLACKBURN, 1998; MARQUESE y PARRÓN, 2011; ORTIZ, 1940). La mayoría de estos esclavizados fueron capturados en el litoral occidental del continente africano, procedentes de lugares como Nigeria, Congo, Dahomey, Angola, Mozambique, entre otros. Los puntos de enclave y recepción fueron básicamente las islas de Cabo Verde, el puerto de Badagri y Santo Tomé. Como resultado del sometimiento esclavo, estas comunidades mantuvieron vínculos con otros grupos procedentes no sólo de África, sino también de Asia y de los contextos de anclaje. De acuerdo a esto, las expresiones culturales en contacto fueron diversas y complejas. Las relaciones o las conexiones entre los diferentes condujo a lo que, Fernando Ortiz denominó, para el caso cubano, transculturación. En muchos países del continente los componentes yoruba y bantú se erigieron como plataformas culturales representativas, dando como resultado diversas expresiones religiosas como el Shangó Cult, candomblé, la santería-Ifá y el palo monte (BARNET, 1997; MARTÍNEZ MONTIEL, 2005; MATORY, 2005).

Este número de la Revista describe el escenario que posibilitó en el período colonial, en palabras de Fernando Ortiz, el ajiaco criollo, metáfora que alude a los procesos culturales que se produjeron en el Caribe. Sin embargo, durante los períodos republicanos, la transnacionalización de estos procesos de transición identitaria, han ido en aumento. Fue justamente Edouard Glissant (2005), quien defi nió la creolización como producto de los vínculos sociales que se construyen entre grupos culturales mediados por intercambios de imaginarios tradicionales. Ese concepto de creolización ha sido sostenido también por Sidney Mintz y Richard Price (1976) en lugar del de aculturación propuesto por Gonzalo Aguirre en los años 60´s y el de transculturación presentado por Fernando Ortiz en los años 50´s. Todos ellos destacan la importancia de las áreas culturales como extensiones simbólicas, tal cual es representada por la diáspora africana en Iberoamérica. Estas áreas culturales pueden ser entendidas a través de la metáfora Atlántico Negro, propuesta por Paul Gilroy (1993), cuya intención es la de localizar procesos históricos de negritud en los territorios compartidos por la esclavitud. Este autor inglés, utiliza la metáfora del Atlántico negro para entender el diálogo entre África, América y Europa.

Siguiendo con la discusión sobre áreas culturales, Patricia Pinho (2004), menciona que los años 30´s fueron signifi cativos para estos movimientos de reivindicación debido a la recuperación de la memoria africana en las colonias americanas mediante las artes literarias, la música y otras expresiones de carácter reivindicativo. En los años 60´s, la música se convirtió en uno de los canales de difusión más amplio, como manifestación que pretendía el regreso simbólico a África. Más tarde, tuvieron mayor resonancia los movimientos políticos identitarios afroamericanos (Black Power), ocurridos entre las décadas de los 60´s y 70´s en Estados Unidos. A propósito, Stefania Capone, en su trabajo titulado De la santería cubana al orisha-voodoo norteamericano (2008), considera una discusión importante el estudio de la ancestralidad de los New Afrikans. Argumenta cómo los imaginarios afroamericanos se constituyeron a partir de una serie de procesos de reivindicación política, siendo la religión un pilar importante en la legitimación e institucionalización de signifi cados que provocaban el retorno simbólico a África (back to black). Esta búsqueda de la memoria histórica, se encuentra dispersa entre actores y contextos que pretenden localizar aspectos de conexión imaginaria de la africanía en la diáspora, sobre todo porque “las culturas negras más que ser resultado de una herencia africana original, también se han construido a partir de procesos dinámicos ocurridos en el interior del Atlántico Negro” (PINHO, 2004, p.28).

Los enfoques contemporáneos sobre estudios afroamericanos consideran las perspectivas teórico-metodológicas en movimiento, es decir, aquellas que se interesan por localizar fenómenos en procesos transnacionales. En estos tiempos durante los cuales se cruzan y entrecruzan una serie de plasticidades simbólicas, las tradiciones originarias están incorporándose a nuevos escenarios a partir de la globalización de las culturas. Estos procesos se encuentran mediados por campos sociales (LEVITT & GLICK-SCHILLER, 2004) de ensamblaje global (ONG, 2005) que se relacionan con diversos paisajes étnicos (APPADURAI, 2001) entre los que se encuentran religiones a la carta (DE LA TORRE & GUTIÉRREZ, 2005). También podrían ser considerados como parte del tráfi co transnacional de signifi cados (FERGUSON, 1999) que se legitiman e institucionalizan en los nuevos hábitats, incorporados por comunidades que representan características de lo local y lo global en espacios cada vez más difusos de creollización (HANNERZ, 1987, 1996). La relevancia metodológica en este tipo de enfoques es justamente pensada desde la noción de simultaneidad (MAZZUCATO, 2009), en la contextualización de escenarios y paisajes que permiten la localización de las tradiciones multisituadas (MARCUS, 1995).

Los trabajos reunidos en este Dossier responden interrogantes sobre etapas de la articulación de comunidades afrodescendientes en diferentes lugares del continente. Estas consideraciones vistas desde diferentes perspectivas científi cas, enmarcan un discurso más amplio sobre lo negro y la negritud en la búsqueda de signifi cados culturales. De manera que tanto la imagen fetichista del negro, como sus tradiciones transformadas en reliquias coloniales, narrativas sobre el culto a los ancestros y entidades procedentes de África, forman parte de un discurso más amplio que articula procesos históricos, económicos y culturales, articulados en países de predominio del ancestro africano, pero también en aquellos lugares de concentración migrante considerados como hábitats de signifi cados diferentes.

El artículo de Leonardo Vidigal, Transculturalidades redescobrindo as conexões ancestrais, relaciona hallazgos transculturales en dos lugares geográfi camente distantes como son Brasil y Jamaica. Esto corresponde a situar temporalidades históricas de conformación identitaria en ambos lugares, sobre todo por la infl uencia colonial portuguesa en el caso de Brasil y británica en Jamaica. El autor se vale de argumentos sobre áreas culturales, concebidas por Gilroy como Atlántico Negro. Sostiene cómo la negritud en estos dos polos, se encuentra vinculada a procesos simbólicos de incorporación política, económica y cultural, siendo las expresiones tradicionales resaltadas mediante la música popular, el lenguaje y las relaciones de proximidad.

El aporte metodológico consiste en la incorporación de un vasto trabajo de campo desarrollado a través de fuentes primarias, audiovisuales (documentales) y entrevistas. Lo cual hace relevante no sólo la propuesta del manuscrito, sino también, la síntesis obtenida mediante la información y su interpretación.

Negras y mulatas en el noroeste de Nueva España: la transgresión de la norma entre las parteras de San Miguel de Culiacán, de Fuensanta Baena Reina, hace un importante aporte historiográfi co al situar el intercambio de conocimientos y saberes ancestrales de parteras mulatas entre mujeres españolas, mestizas e indígenas que se aproximaban al parto. Estas retiraban las reliquias o artefactos que se apoyaban en las creencias católicas ofi ciales, mientras utilizaban elementos, amuletos y talismanes, así como ceremonias de invocación, libaciones y uso de hierbas, consideradas heréticas. La transgresión de la norma provocó la acusación del Clero, etiquetando a las parteras de hechiceras, debido al uso de elementos y conocimientos tradicionales. La relevancia metodológica consiste en la revisión de archivos, situando un nuevo sujeto histórico como parte de un relato en el cual se manifi estan fenómenos de diferente ancestralidad.

Haití en Martí. Lo negro y el vudú en el Diario de Montecristo a Cabo Haitiano de Mónica María del Valle Idárraga, sostiene una interesante refl exión sobre cómo José Martí objetiva des-exorcizar el negro en el Caribe a partir de sus experiencias en Haití. Martí confronta con la imagen fetichista que se tenía de los esclavizados y sus tradiciones religiosas, etiquetadas de extravagantes y peligrosas y que podían aún ser utilizadas para provocar repulsión con fi nes políticos en la guerra de independencia. El vudú es reconocido por Martí como creación histórica de conformación identitaria que se corresponde a una tradición no dogmática que lograría la unifi cación de estructuras más amplias y complejas en el interior de sus prácticas. El aporte metodológico que hace este manuscrito se apoya en el minucioso trabajo de archivo histórico, principal método del historiador y estrategia elemental en la conexión (búsqueda) del pasado con repercusión en el presente.

El artículo de Denilson Lima Santos, Yorubas y bantúes: apuntes de las tradiciones africanas en las obras de Abdias do Nascimento y Manuel Zapata Olivella, hace un amplio análisis de dos obras literarias que surgen en diferentes temporalidades y espacialidades que se basan en códigos culturales ancestrales africanos. La discusión se centra en el contrapunteo de tradiciones religiosas recreadas desde la diáspora (ensambladas en Afro- América), como parte de procesos complejos que refi eren la colonización de África y la trata negrera en la Colonia. El resultado de expresiones culturales diversas sirve de escenario en la incorporación de discursos literarios en ambos autores.

El autor del artículo se aproxima a una discusión de la negritud mediante el análisis literario de dos obras, lo cual deja bastante claro la importancia de la interpretación densa en los estudios culturales. De manera que la literatura puede ser pensada como “estructura discursiva [de] categorías, imágenes y formas de ver el mundo en su contenido cultural” (SALDÍVAR, 2015:48).

Yoel Enríquez Rodriguez, en El Otá de Obbatalá, describe un emocionante relato sobre una piedra caliza cultuada como el oricha Obatalá en Melena del Sur, Provincia Habana, Cuba.

El autor se vale de información histórica sobre la llegada de esclavizados africanos y funcionamiento de ingenios azucareros en la zona, acompañado de la descripción del ensamblaje de tradiciones religiosas yorubas procedentes de regiones subsaharianas. Como bien señala el autor, la característica principal en la práctica de la santería, es justamente la otá o piedra, elemento simbólico que desempeña un rol importante al concebirse como representación material del oricha. Sin embargo, la Piedra de las Mercedes podría mostrar ciertos rasgos distintivos en la conexión con el tradicionalismo, al concebir el objeto como tótem de culto natural, tal cual sigue manifestándose en las prácticas religiosas de África. La metodología utilizada es cualitativa, muestra narrativas etnográfi cas producidas durante la investigación de campo.

En Reglas de palo, reglas de muerto: reconfi guración de la familia en la práctica palera caleña, Luis Carlos Castro Ramírez hace una relevante discusión sobre la práctica del palo monte cubano en Calí, Colombia, a través de lo que el autor denomina como religiones de inspiración afro. Muestra una serie de rasgos que caracterizan las ramifi caciones procedentes del Congo, tales como, mayombe, kimbisa, vrillumba, musunde y quirimballa.

Sostiene cómo dicha tradición ha permanecido diferente al sincretismo que identifi ca a otros sistemas religiosos como la santería. Sin embargo, ha sido justamente la Regla de Ocha e Ifá, la que ha incorporado simbólicamente algunas entidades pertenecientes a otros panteones religiosos, como es el caso de Ochún/Mamá Wengue, Chango/Siete Rayos, Oyá/Centella Ndoki, entre otros. Se trata de un sistema complejo de interacción que circula alrededor del culto al ancestro, representado por diversas etapas estructuradas de evolución espiritual. El aporte metodológico deviene de la antropología, en cuanto a la posición de historias orales y entrevistas en profundidad que muestran un carácter singular de la información, matizada en el texto como pretexto etnográfi co.

¡Oh mío Yemayá! Difusión, masifi cación y transnacionalización de la santería cubana en Bolivia, de Juan M. Saldívar, muestra la articulación de la religión en dicho país sudamericano como parte de un proceso transnacional más amplio que involucra aspectos políticos, económicos y culturales locales. El autor resalta la incorporación de signifi cados religiosos por comunidades de practicantes indígenas y afro-bolivianos que legitiman e institucionalizan la práctica a través de intereses el regreso simbólico a África. Además, se muestran hallazgos relacionados con la circulación de objetos y extensión de un mercado religioso popular de ciudades como La Paz, Cochabamba y Santa Cruz. El aporte metodológico se apoya en las estrategias etnográfi cas, con un enfoque multisituado/multilocal que caracteriza los estudios comparativos de fenómenos que rebasan fronteras geográfi cas.

El último artículo del dossier de Diana Cano Miranda, Santería cubana en la ciudad de México: Estudio de caso en una colonia popular al sur de la Ciudad de México, hace referencia al anclaje de la santería mediada por una serie de procesos históricos que vinculan a las industrias culturales del cine y la música en México. La autora muestra un estudio de caso haciendo referencia a la masifi cación de la santería en diferentes sectores populares de la Ciudad de México, así como también la extensión y conexión con otros imaginarios religiosos procedentes de la Nueva Era y tradiciones originarias. Es sin duda un estudio sociológico que se concentra en la clasifi cación de los rasgos de comportamiento entre sociedades que incorporan, legitiman e institucionalizan prácticas ajenas a sus contextos culturales. La aproximación metodológica del estudio muestra la entrevista en profundidad como principal herramienta de recolección de información, así como también, la observación e intervención directa.

En Otros artículos, Iuri Cavlaken en Liberdade, Socialismo e Subdesenvolvimento: A História da Guiana, ofrece una discusión sobre dos momentos históricos importantes en la conformación del país. El primero se remite al siglo XIX, con la abolición de la esclavitud africana, a partir de 1838. El segundo, ocupa la segunda mitad del siglo XX durante la construcción del socialismo e instauración del Partido Progresista del Pueblo.

Es a partir de los episodios antes comentados que ocurrren los acontecimientos políticos que marcaron la historia del país. La esclavitud fue un proceso complejo así como la emancipación de comunidades de afrodescendientes. Éstos fueron introducidos primero por la colonización holandesa, después, la inglesa. Más tarde, el socialismo, en un país con um mosaico de poblaciones diferentes, fue iniciado durante el gobierno de Cheddi Jagan, ,logrando el reconocimiento de la independentista en mayo de 1966 por parte de Gran Bretaña. El aporte teórico-metodológico es justamente la propuesta de historia política de reivindicación social con la que se encaran los argumentos, precisando fechas importantes a través del estudio circunstancial de los eventos referenciados.

El último artículo del número, La poesía de Gertrudis Gómez de Avellaneda en Antologías Colectivas (1846-1893), de Ángeles Ezama Gil trae una excelente discusión sobre poesía latinoamericana, destacando diferentes etapas históricas y estilos literarios. Gertrudis Gómez de Avellaneda, considerada como poetisa del romanticismo hispanoamericano, también es conocida como precursora de la novela hispanoamericana.

Finalmente, la atractiva reseña de Marcos Antonio da Silva, A Revolução Ilhada: uma análise de Cuba: Revolução e Reforma, versa sobre las estrategias de la transición socialista en Cuba. El autor argumenta cómo dicha conexión política se basa en una serie de elementos incorporados del socialismo soviético.

Referencias

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SADÍVAR, Juan M. Manifestações culturais em Afro América, conexões, continuidades transnacionais. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.17, n.33, p.7-16, jul./dez. 2016. Acessar publicação original. [IF].

Juan M. Saldívar – Universidad de Los Lagos. Osorno, Chile.

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Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos – CAMARGO; VILLAR (BMPEG-CH)

CAMARGO, Eliane; VILLAR, Diego. Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. 304p. Resenha de: REITER, Sabine. Acabou o tempo dos mitos? Uma historiografia caxinauá moderna. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.11, n.2, mai./ago. 2016.

O livro “Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos” é uma coletânea trilíngue (em caxinauá1, português e espanhol) de textos com relatos sobre o passado remoto e mais recente dessa etnia indígena que vive na região fronteiriça entre o Brasil e o Peru. Foi organizado por Eliane Camargo e Diego Villar, uma linguista e um antropólogo, em colaboração com Texerino Capitán e Alberto Toríbio, dois caxinauás de diferentes comunidades do rio Purus, localizadas no lado peruano da fronteira. Com cerca de 2.400 integrantes, o grupo étnico no Peru é menos extenso em número do que seus mais de 7.500 parentes no lado brasileiro, mas – devido ao maior isolamento na primeira metade do século XX – todos ainda falam a língua nativa, comparados aos caxinauás brasileiros, entre os quais há uma parte que fala apenas português2.

Apesar da presença de missionários em suas aldeias, a partir dos anos 1960, os caxinauás peruanos também conseguiram manter viva maior parte da cultura tradicional, enquanto, no Acre, os caxinauás – que conviviam com uma população não indígena nos seringais desde a época da borracha – perderam quase por completo os antigos costumes. Foi nesse grupo peruano que Camargo começou a pesquisar há mais de 25 anos e, principalmente, entre 2006 e 2011, quando levantou e arquivou dados de língua e cultura desse povo no âmbito do programa Documentation of Endangered Languages (DOBES, 2000-2016), com projeto de documentação sediado no Instituto Max-Planck de Antropologia Evolutiva (MPI-EVA), em Leipzig, e na Université X de Paris, em Nanterre (DOBES, 2000-2016).

Neste livro, publicado em 2013, Camargo foi responsável pelas transcrições e traduções ao português dos textos orais, em boa parte provenientes do acervo digital do projeto DOBES. Villar, que é pesquisador adjunto do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas na Argentina e especialista de culturas pano, por sua parte, responsabilizou-se pela versão espanhola dos textos. Além disso, os dois organizadores restringiram-se a elaborar algumas frases introdutórias e comentários aos textos narrativos em notas de rodapé, onde explicam ao leitor o contexto narrativo, construções linguísticas e conceitos culturais. A escolha dos textos assim como a sua edição para formato escrito, no entanto, coube a uma equipe de jovens caxinauás, coordenada por Texerino Capitán, professor de escola bilíngue, e Alberto Toríbio, principal assistente de pesquisa do projeto DOBES. O livro, como informa Bernard Comrie, então diretor do departamento de linguística do MPI-EVA, na apresentação, é um dos produtos do projeto de documentação da iniciativa DOBES, que, através da perspectiva própria de um povo, “nos fornece uma visão diferente do mundo e a compreensão de nós mesmos” (Comrie, 2013, p. 23-25). Até hoje, é uma das poucas publicações que deixa falar – na sua totalidade – os próprios integrantes de um povo indígena amazônico.

O livro consiste em cinco partes principais. Nelas, os caxinauás informam sobre os hábitos dos seus antepassados, lembrados por alguns idosos e presentes na memória coletiva. Eles falam sobre os encontros com outras etnias pano, inclusive com aquelas encontradas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 2008, celebradas pela mídia internacional como “os últimos selvagens”3, e sobre os primeiros contatos com os ‘nauás’, os outros, não indígenas de origem europeia. Relatam sobre as suas experiências em território alheio e nas grandes cidades, e sobre a história de migração e dispersão do próprio grupo, que se iniciou nos tempos míticos com uma briga entre o criador Txi Wa e seu parente Apu, e continuou com acontecimentos em consequência dos primeiros contatos com brasileiros nos seringais. O anexo que segue as partes principais do livro apresenta uma nota sobre a grafia utilizada e um léxico trilíngue extraído dos textos em caxinauá e de termos significativos.

As fontes das narrativas são diversas: cinco dos 25 textos provêm do livro “Rã-txã hu-ni kuï: grammatica, textos e vocabulário caxinauás. A lingua dos caxinauás do rio Ibuacú, affluente do Murú (Prefeitura de Tarauacá)”, de João Capistrano de Abreu (1914), o historiador brasileiro que – em inícios do século XX – montou uma primeira coletânea de mitos, textos históricos e de outros gêneros, em conjunto com dois jovens caxinauás da região do rio Murú, no Acre. A grande maioria dos textos é composta por depoimentos e memórias polifônicas, gravadas dos anos 1990 para cá, e informações obtidas por meio de entrevistas com pessoas mais idosas – todas do grupo peruano, um segmento da população caxinauá que fugiu de um seringal brasileiro no início do século XX. No Peru, esses caxinauás e seus descendentes viviam afastados da sociedade e só foram ‘redescobertos’ ao final dos anos 1940; contato que foi documentado pelo fotógrafo Harald Schultz, em 1951, constituindo um acervo de aproximadamente 80 fotografias, com imagens de uma pescaria e de uma festa.

Uma variedade de trabalhos desse fotógrafo teuto-brasileiro, mostrando cenas cotidianas daquela época, assim como imagens de objetos coletados por ele – que hoje se encontram no acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) –, ilustra o livro, junto com fotografias recentes e desenhos feitos por integrantes do grupo especialmente para esta publicação. Entre eles encontramos os kene, grafismos tradicionais reproduzidos na tecelagem, na pintura corporal, em objetos e desenhos de cenas das narrativas, da vida cotidiana e de rituais. O que chama a atenção é que esses desenhos, produzidos em várias épocas, têm uma estilização própria: veem-se pessoas e objetos ‘deitados’ em uma vista de pássaro, para poder mostrar mais do que seria perceptível por meio do simples olhar de um espectador humano.

Todo o material recolhido neste livro foi selecionado pela equipe caxinauá, com o intuito de informar aos seus descendentes (filhos, netos) sobre a própria cultura, sendo veiculado na própria língua, a fim de manter viva a memória e uma identidade própria, como os dois colaboradores caxinauás escrevem no seu prefácio, que termina assim: “por esse motivo quisemos elaborar este livro. Dessa forma podemos todos juntos ler e aprender claramente a tradição” (Capitán; Toribio, 2013, p. 31). Ao mesmo tempo, o livro é um passo importante em direção a uma verdadeira participação dos povos indígenas na sociedade moderna através dos seus próprios discursos. Em uma época em que presenciamos ameaça cada vez mais forte à vida tradicional de povos indígenas em toda a América Latina, é essencial que um público maior tome conhecimento da história desse grupo, a qual reflete, de maneira exemplar, desenvolvimento ocorrido em muitos outros grupos, repetindo-se até hoje. Isso ocorreu desde o primeiro contato desses povos com a sociedade nacional, representada notadamente por bandeirantes/ coronéis, soldados da borracha, viajantes, missionários e pesquisadores, resultando em interferência cultural. Nas palavras dos caxinauás (traduzidas para o português), essa interferência se lê assim: “já nos tornamos nauás com suas roupas e comida. […] já não somos mais caxinauás! […] O governo diz que somos todos peruanos. É assim que falam” (2013, p. 227).

Ao mesmo tempo, a citação deixa bem claro que essa é uma visão de fora, a qual não reflete necessariamente a opinião do falante. A língua pano consegue expressar essas diferentes perspectivas de maneira elegante, através de marcadores de evidencialidade (no caso, -ikiki em akikiki, 2013, p. 226) que indicam, para os membros da comunidade de fala, o compromisso epistemológico com a informação dada. Essa técnica linguística pode até ser interpretada aqui como relevante indício de uma resistência clandestina e de uma mera adaptação superficial.

Uma atitude de ‘acostumação’, longe de ser assimilação por completo, também se manifesta em outro depoimento. Um caxinauá descreve como chegou a trabalhar como mecânico para um missionário americano: “um dia quebrei um parafuso e ele ficou furioso. […], achava que iria me bater. Achei isso porque me tratava assim. […] Depois eu me acostumei com ele. […] com suas palavras fortes” (2013, p. 203). Este trecho mostra mais um aspecto interessante do livro, a abertura para uma perspectiva intercultural: nós, os nauás, ficamos sabendo algo sobre como somos percebidos pelos caxinauás – como pessoas ameaçadoras pelo simples tom da voz! Ao passo que as narrativas exibem, em diferentes partes, uma visão caxinauá, o livro em si já é uma manifestação aberta da luta para a preservação de uma identidade própria.

Comparado com outras manifestações escritas na língua caxinauá, principalmente com a obra do grande historiador brasileiro do começo do século XX, este livro se destaca como marcador de uma mudança na percepção e no tratamento do elemento ‘indígena’ na sociedade. Enquanto o livro de Capistrano possui, sobretudo, relatos míticos, este é uma historiografia, em grande parte, de fatos vividos pelos caxinauás nos últimos 100 anos. Quem escolheu o material de “Rã-txã hu-ni ku-ï” foi o próprio Capistrano, tendo os dois caxinauás como fornecedores de informação e tradutores; aqui, os agentes principais são caxinauás, que selecionaram os textos baseados em critérios de informatividade a um público caxinauá atual e jovem4. Os textos de Capistrano também já eram traduzidos para o português na época, e existia uma explicação de ortografia destinada ao leitor brasileiro erudito. Porém, aquela tradução palavra por palavra deixou o texto original parecer ‘desajeitado’ ao leitor brasileiro monolíngue. Certamente, não fornece uma base para ser elaborada hoje em dia na educação bilíngue indígena, já que a ortografia desenvolvida pelo historiador autodidata em linguística não reflete bem a estrutura morfofonêmica da língua, não sendo legível para os caxinauás de hoje. A mesma crítica da ortografia inadequada pode se fazer a várias publicações recentes nessa língua indígena no Brasil. A maioria dos livros em caxinauá publicada, tanto no Brasil como no Peru, porém, é dirigida ao ensino nas escolas bilíngues, enquanto este livro pode ser de interesse de um público diversificado, mono e bilíngue, jovem e adulto, estudante e professor, leigo e acadêmico, voltado aos caxinauás e a cada pessoa que tenha curiosidade de conhecer outra perspectiva do mundo. Além de valorizar a cultura caxinauá, ele representa uma restituição ao grupo de coleta de relatos históricos, efetuada por pesquisadores, contribuindo igualmente para a difusão da diversidade do patrimônio cultural imaterial da Amazônia indígena.

Notas

1 O caxinauá pertence à família linguística pano.

2 Esses são os números oficiais do Instituto Socioambiental (Ricardo, B.; Ricardo, F., 2011, p. 12), que divergem consideravelmente de números informados em outras fontes, por exemplo, no site Ethnologue (Lewis et al., 2016). Segundo o Ethnologue, atualmente todos os caxinauás adquirem a língua nativa. Como o nível de conhecimento da língua indígena é uma questão política no Brasil, há diferenças entre os números oficiais em relação ao que se pode observar in situ.

3 Veja, por exemplo, Seidler; Lubbadeh (2008).

4 Neste contexto, pode-se questionar se o resultado realmente representa o ‘olhar caxinauá’, já que a equipe consiste de caxinauás escolarizados, parcialmente trabalhando na educação infantil, que, portanto, internalizaram um discurso padrão para texto escrito.

Referências

CAPISTRANO DE ABREU, João. Rã-txa hu-ni-ku-ï: grammatica, textos e vocabulário caxinauás. A lingua dos caxinauás do rio Ibuacú, affluente do Murú (Prefeitura de Tarauacá). Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu, 1914. [ Links ]

CAPITÁN, Tescerino Kirino; TORIBIO, Alberto Roque. Prefácio. In: CAMARGO, Eliane. VILLAR, Diego (Org.). Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. p. 31. [ Links ]

COMRIE, Bernard. Apresentação. In: CAMARGO, Eliane. VILLAR, Diego (Org.). Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. p. 17-19. [ Links ]

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LEWIS, M. Paul; SIMONS, Gary F.; FENNIG, Charles D. (Ed.). Ethnologue: languages of the world. 19. ed. Dallas, Texas: SIL International, 2016. Disponível em: <http://www.ethnologue.com>. Acesso em: 8 abr. 2016. [ Links ]

RICARDO, Beto; RICARDO, Fany (Ed.). Povos indígenas no Brasil: 2006-2010. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011. [ Links ]

SEIDLER, Christoph; LUBBADEH, Jens. Neuentdeckter Indianerstamm: “Das kann der Anfang vom Ende sein”. Spiegel Online, 30 maio 2008. Disponível em: <http://www.spiegel.de/wissenschaft/natur/neuentdeckter-indianerstamm-das-kann-deranfang-vom-ende-sein-a-556720.html>. Acesso em: 8 abr. 2016. [ Links ]

Sabine Reiter – Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected]

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[MLPDB]

 

Pienso, luego creo: la teoría Makuna del mundo – CAYÓN (A-RAA)

CAYÓN, Luis Abraham. Pienso, luego creo: la teoría Makuna del mundo. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología e Historia, 2013. Resenha de: BARBOSA, María Alejandra Rosales. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n. 25, maio/ago., 2016.

(…) o fato de que o Pensamento seja uma forma de criar e gerar a realidade, colocando à humanidade em um lugar fundamental para a manutenção da vida no planeta, nño é uma ideia de pouco porte. Em um sentido, acredito que os Makuna estño propondo que a realidade que vemos é como uma projeção holográfica do Pensamento, o qual explicaria por que as propriedades fractais, as de diferenciação e simultaneidade, as de multiplicidade na unicidade, e as de constituição mutua, da sua teoria do mundo, atravessa, a constituição do espaço, o tempo e os seres.
(Cayón 2010, 392)

Este fascinante livro merecedor do Prêmio Nacional de Antropologia na Colômbia (2012) e publicado em idioma espanhol pela editora do Instituto Colombiano de Antropología e Historia (ICANH) em 2013, é uma versño da Tese de Doutorado em Antropologia Social defendida na Universidade de Brasília (UnB) no ano de 2010. A partir de uma longa e intensa investigação etnográfica entre os índios Makuna ou ide masñ (gente de água), que habitam às margens do rio Comeña, Apaporis e Pirá-Paraná, ao sul da regiño do Vaupés, Luis Cayón estuda o complexo sistema de conhecimento xamânico deste grupo étnico tukano da Amazônia colombiana. Na tese de doutorado -versño original do livro-, o jovem antropólogo identificou e analisou uma ontologia nativa, com conceitos como ketioka (pensamento) e he (yurupari), ambos fundamentais para compreender e estabelecer premissas para uma teoria própria “do mundo Makuna”.

A célebre frase de Descartes “penso, logo existo” serve possivelmente de inspiração para o título da obra desse talentoso pesquisador colombiano. Descartes como sabemos, pensava que “o mundo” e a “realidade” estavam formados por duas entidades: a espiritual -portadora inclusive do pensamento- e a material -ator passivo da existência- Dessa maneira, segundo Descartes, “pensamos porque existimos”, e parafraseando Cayón, também “pensamos porque acreditamos”.

Apesar de ser uma tese de antropologia enquadrada nos estritos termos acadêmicos, o texto e a narrativa possuem uma estrutura e estilo de escrita bem peculiar, com prosas ora mais técnicas, ora mais livres; provavelmente por ser resultante de uma “etnografia compartilhada” e, como diria Roy Wagner (2010), decorrente de uma “antropologia reversa” que institui um tratamento mais “simétrico” ao sujeito e objeto da pesquisa, no sentido dado por Bruno Latour (1994). Essa combinação vem trazendo inúmeras contribuições e resultados positivos no que se refere às reinvindicações dos povos indígenas brasileiros, sendo inclusive uma ferramenta metodológica privilegiada, muitas das vezes apropriada pelos nativos para seu próprio benefício. Em outras palavras, discutir com os nativos os termos da investigação e, “hacerlos partícipes de la co-teorización” (Rappaport 2007). Portanto, segundo o próprio autor do livro, “el trabajo de campo, además de implicar el trabajo solicitado por los indígenas, se convierte en un lugar de pensamiento, reflexión y critica” (Cayón 2013, 56).

O livro Pienso, luego creo. La Teoria Makuna del Mundo apresenta-se com uma introdução e mais sete capítulos e um epílogo, oferecendo uma sequência intrigante, que desvela aos poucos o profundo pensamento Makuna. Na “Introdução”, Cayón contextualiza a sua pesquisa em uma regiño e com grupos amplamente estudados desde o processo de ocupação colonial, que inicia no século XVIII, dando maior ênfase na segunda metade do século XX. Descreve também, com emocionantes detalhes a sua trajetória de campo e a forma como os seus interesses pessoais e teóricos foram se transformando, alcançando o que ele mesmo define como uma verdadeira etnografía compartida.

No primeiro capítulo intitulado “El blanco en el mundo de los índios”, o autor explica o processo histórico do contato interétnico, dilucidando as consequências da política imperial e republicana para os grupos daquela regiño. No segundo capítulo “Unidades Cosmoproductoras” explica quem sño os makuna e como funciona a rede de conexño do sistema regional que fazem parte. Nesse capítulo, encontraremos a análise do parentesco e as unidades sociais dessa etnia, sem cair em excessos técnicos que dificultariam a leitura para um público mais leigo.

O terceiro capítulo, “La fuente de la vida”, começa com um trecho inicial do célebre escritor argentino Jorge Luís Borges, O Aleph (1998). A figura do “Aleph” em Borges e na etnografia realizada por Luis Cayón, constitui-se no ponto que congrega todo o universo, é uma imagem literária, relacionada com a multiplicidade do conhecimento e é justamente dessa forma que o autor nos adentra no pensamento Makuna, por meio das manifestações do Jurupari.

No quarto capítulo, “La maloca cosmo”, a narrativa é mais teórica e epistemológica, ao analisar o conceito nativo de ‘espaço’ como sendo a estrutura do universo. Espaços, territórios e lugares com nome, todos interconectados com ketioka (o pensamento). Já o quinto capítulo intitulado “Los componentes del mundo”, trata o conceito “tempo”, enfatizando o cuidado com os lugares sagrados e cumprimento do ciclo ritual, pois todos os processos de geração de vida sño indissociáveis do tempo e dos espaços.

O sexto capítulo “Personas de verdade”, desenvolve com intensidade e profundidade a noção de “pessoa”, tomando em conta o conceito nativo de doença, a composição interna dos seres humanos e principalmente, como algumas substâncias e objetos podem ser importantes na constituição relacional dos Makuna com o universo.

No último e talvez mais relevante capítulo chamado “Cosmoproducción” –termo criado pelo autor- Cayón explica a maneira como o “pensamento” Makuna entra em agenciamento, dando vitalidade e ânimo aos seres humanos e nño humanos. Entendido como resultado de um processo de fabricação e construção do universo. E finalmente, o livro conclui com uma narrativa etnográfica em forma de epílogo, destacando alguns aspectos relevantes da teoria Makuna do mundo e ilustrando com autorretrato do autor.

Segundo Luis Cayón (2010; 2013), os Makuna ou “Gente de água” contam na atualidade com uma população aproximada de 600 pessoas, habitando as selvas do Vaupés colombiano, a 150 km da fronteira brasileira. Pertencem à família linguística Tukano Oriental, que se localiza fundamentalmente, na regiño central do noroeste amazônico, cercado pelas bacias dos rios Vaupés e Apaporis, assim como no alto rio Negro e seus afluentes no Brasil. Interessante notar que, esse grupo compartilha esse amplo território com outras famílias linguísticas como: arawak, carib e makú-puinave, apresentando inclusive, grandes similitudes na sua organização social e vida ritual no geral.

Para essa “Gente de Água”, a realidade está construída por três estados ou dimensões de existência que sño simultâneos: o estado primordial a partir do qual se originaram todos os seres, a dimensño invisível em que os seres possuem diferentes formas e manifestações e, o estado físico ou material que tem a ver com a dimensño visível que normalmente percebemos (Cayón 2010). Sem dúvida que, essa forma de explicar o mundo e tudo o que há nele, está intimamente relacionado com o complexo sistema xamânico dessas sociedades, transcendendo todas as dimensões da vida cotidiana, sendo crucial o seu estudo.

A noção ketioka ou pensamento, grande destaque na ontologia Makuna, é definida por Cayón (2010; 2013) de forma polissêmica, é o conocimiento-saber-poder-hacer, conceito que apresenta nño apenas diversos sentidos, mas também agências. Ketioka é ao mesmo tempo tudo o que os Makunas fazem, dando sentido a sua existência: pensar, curar, falar bem, dançar e se divertir. Também pode ser entendido como elementos do universo e dos ornamentos ritualísticos. Em um sentido mais amplo, é entendido também como a força que impregna e comunica a todos os poderes xamânicos existentes no universo.

Desse modo, na teoria makuna do mundo, toda forma tangível e física é mais do que aparenta e, a experiência ordinária percebida pelos sentidos possui uma dimensño invisível e intangível, que eles chamam de He. Arhem et al. (2004, 55) explica”: “‘He’, es el mundo de espíritus poderosos y de las deidades ancestrales. En esta otra dimensión, las rocas y los ríos están vivos y las plantas y animales son personas. Conocido por el mito y controlado por el ritual, He contiene los poderes primordiales de la creación que gobierna, en última instancia, el presente”. Nesse sentido, os Makuna nño fazem distinção entre o visível e o invisível, pois ambos sño dimensões interconectadas, como se fossem uma única manifestação da “realidade”.

Hoje, os Makuna na Colômbia, lutam por manter sua forma de viver frente às diversas pressões da “sociedade nacional” colombiana, que constantemente ameaçam a integridade e direitos já adquiridos de seus territórios, seja com grandes empreendimentos extrativistas, ou com figuras político-administrativas e de proteção, estabelecidas pelo próprio Estado e sem consulta prévia. E como diz Cayón (2008): “un poco más de un siglo de contacto directo debilitó el pensamiento y la forma de vida de este grupo, pero no logró exterminarlos. (…) por ejemplo, la mitología y las curaciones chamánicas se han enriquecido por ello. No hay nada más pristino y estático en el pensamiento makuna”. É por isso que, nesse difícil contexto, cada vez mais faz-se necessário o diálogo entre a disciplina antropológica e as epistemologias nativas, na tentativa de proporcionar um melhor entendimento da situação atual e dos desafios futuros desses povos, na realização de como diz Ramos (2010), um verdadeiro diálogo intercultural e sem assimetrias.

Gostaria de encerrar esta resenha, com a seguinte afirmação: a maneira profunda como os ameríndios em geral, percebem, manejam e explicam o mundo, vai mais além do que o pensamento abstrato e concreto normalmente alcança, desafiando até o próprio pensamento antropológico. Podemos dizer que é um tipo de conhecimento sensorial e de relações de várias ordens, uma perspectiva sob a lógica de uma complexa epistemologia de conhecimento própria, que nesse caso, foram bem “traduzidas” na linguagem etnológica e etnográfica por Luis Abraham Cayón[1]. Uma escrita como ele mesmo chama, intimista e transformadora, uma escolha que muitos dos seus leitores saberemos agradecer sempre.

Comentarios

1 A Tese de Doutorado do antropólogo Luis Cayón, teve importante repercussño no mundo acadêmico e fora dele, contribuindo para que a Unesco em 2011 declarasse o xamanismo Makuna e de seus grupos vizinhos, como patrimônio intangível da humanidade.

Referências

Århem, Kaj, Luis Cayón, Gladys Angulo e Maximiliano García. 2004. Etnografía Makuna: tradiciones, relatos y saberes de la Gente de Agua.Bogotá: Acta Universitatis Gothenburgensis e Instituto Colombiano de Antropología e Historia (ICANH).         [ Links]

Borges, Jorge Luis. 1998. Obras Completas 1.Espanha: Editora Globo.         [ Links]

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Cayón, Luis. 2013. Pienso, luego creo. La teoría Makuna del mundo.Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología e Historia.         [ Links]

Latour, Bruno. 1994. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34.         [ Links]

Ramos, Alcida Rita. “Revisitando a Etnologia à brasileira”. EmHorizontes das Ciências Sociais no BrasilAntropologia, editado por Luis Fernando Dias Duarte, 25-49. Petrópolis: Vozes.         [ Links]

Rappaport, Joanne. 2007. “Más allá de la escritura: la epistemología de la etnografía en colaboración”.Revista Colombiana de Antropología 43:197-229.         [ Links]

Wagner, Roy. 2010. A invenção da cultura. Sño Paulo: Cosac Naify.         [ Links]

María Alejandra Rosales Barbosa – Universidade Federal de Roraima, Brasil. Doutoranda em Antropologia Social/Etnologia Indígena da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Docente no Instituto INSIKIRAN de Formação Superior Indígena. Dentre as últimas publicações destaca-se: “Fotoetnografia: uso da fotografia na pesquisa antopologica”. Em Anais do V Seminário de Integração de Práticas Docentes e II Colóquio Internacional de Práticas Pedagógicas e Integração. Boa Vista: Editora da UFRR, 2013. “Medicina popular em Curitiba (1899-1912): curandeirismo ou feitiçaria?” Textos e Debates 8: 129-151, 2005. [email protected] e [email protected].

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Gallina de Angola. Iniciación e identidad en la cultura afro-brasileña – VOGEL; SILVA MELLO (A-RAA)

VOGEL, Arno; SILVA MELLO, Marco Antônio da; BARROS, José Flávio Pessoa de. Gallina de Angola. Iniciación e identidad en la cultura afro-brasileña. Buenos Aires: Editorial Antropofagia, 2015. Resenha de: CARBONELLI, Marcos Andrés. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.25, maio/ago., 2016.

Dentro del campo de estudios afrobrasileños, Gallina de Angola se sitúa como una de las etnografías más complejas y de mayor potencialidad teórica, a partir de su propuesta de articulación de descripciones minuciosas de los ceremoniales del candomblé y debates teóricos de la antropología y sociología contemporáneas. Resulta un aporte esencial a la hora de examinar el lugar de lo religioso en procesos de definición de identidades individuales y colectivas, y en la resolución de los conflictos que dirimen el estatus de la otredad y de la identidad comunitaria.

El prefacio, a cargo de Antonio Olindo, anticipa el núcleo de esta obra, centrado en la importancia del candomblé en la trama cultural brasilera, a partir de un desplazamiento intencional de las fronteras entre lo sagrado y lo profano, lo individual y lo colectivo. De allí que las reflexiones de Olindo recuperen al mercado como síntesis de la proximidad entre la cultura navegante lusitana y las prácticas africanas, ya que ambas enlazan el intercambio de cosas con la comunicación con lo divino.

En el prólogo, los autores presentan la metodología argumentativa que desplegarán en los capítulos siguientes. Cada descripción densa de los ritos que componen la iniciación en el candomblé (con sus ceremonias, participantes, objetos, fórmulas y cantos) es apuntalada por una explicación solventada en los aportes de los antecedentes más destacados de la materia, el andamiaje conceptual de los clásicos (Weber, Durkheim, Lévi-Strauss, Mauss, Turner, entre otros) y las narrativas de mitos propios de la cultura afro, y también de mitos ajenos a ésta. Todos estos materiales se disponen para responder a los enigmas que encierra cada ritual del candomblé, y se encuentran hilvanados por una hipótesis maestra: la Gallina de Angola constituye el símbolo nodal, el puente ineludible que permite sumergirse en los meandros culturales del litoral brasileño.

El primer capítulo, “El mercado”, abre la cronología del proceso de iniciación. El veterano y el iniciado realizan compras piadosas, que serán los insumos imprescindibles de sus ritos de iniciación.En la selección cuidadosa de elementos como animales, frutas y santos se ponen en juego marcas de pertenencia, códigos de nobleza y disputas por el honor. Así, en su búsqueda de vitalidad y de la reproducción del linaje, la esfera ritual sortea los muros del terreiro1 y hace del mercado un campo de acción, donde cada uno de ellos compite por ser el más prestigioso, el más decorado, aquel que consigue mayor cantidad de filhos-de-santo (adeptos al candomblé). Este capítulo también prefigura la Gallina de Angola como símbolo sacrificial, en cuanto ofrenda preferida de casi todas las divinidades del universo candomblé y protagonista ineludible de sus mitos fundantes.

La descripción y el análisis del Borí, primer rito de iniciación del candomblé, ocupan el segundo capítulo. Vogel, Da Silva Mello y Pessoa de Barros lo consideran el primer paso en el viaje cósmico de los iniciados, y tiene lugar en la casa del sacerdote jefe. Allí, el novicio se adentra en el misterio del contacto con los dioses, a partir de una ceremonia, intensa, casi privada, donde acontece el sacrificio de la Gallina de Angola y de un palomo, y la unción del iniciado con la sangre de éstos. La profundidad de estos signos se devela a la luz del mito del Alfarero distraído, que los autores recuperan para señalar la importancia en la cosmología candomblé de la obediencia de los hombres a los dioses. El sacrificio es símbolo de un mandato ancestral, del debido respeto que los hombres deben guardar por los dioses, y la síntesis de los movimientos que estructuran la vida: calma (palomo)-agitación (Gallina de Angola).

Si el Borí es una fiesta íntima, despojada, marcada por el sacrificio y la austeridad, la ceremonia del Orúko es su necesario reverso. Brillo, pompa, lujos y publicidad son los marcadores de una fiesta descrita en el tercer capítulo, donde se da a conocer el nombre que adquieren los iniciados ante los ojos de otros terreiros. En sentido estricto, la fiesta del Orúko (la más pública e importante del candomblé) reporta la presentación en sociedad de los filhos-de-santo. Es también la instancia donde cada casa-de-santo escenifica su poder, su capacidad de generar nuevos hijos y reproducir en el tiempo sus jerarquías. Para ilustrar su centralidad, los autores retoman la noción de rito de pasaje (acuñada por Van Gennep y luego perfeccionada por Turner), no para marcar un simple tránsito entre etapas de la vida, sino para realzar un momento de transformación ontológica: de seres inanimados, perdidos, débiles, los iniciados se transfiguran en sujetos revestidos de la presencia de lo transcendente a partir de la concesión de un nombre.

La teatralización de una secuencia de tres pasos (donde los novicios aparecen primero como seres desprotegidos y torpes para luego emerger como sujetos equipados de adornos, vestimentas finísimas y rostros radiantes) traza una analogía meridional entre los iniciados y la Gallina de Angola. Mitológicamente, ella también fue beneficiada por el beneplácito divino, y así, pasó de ser un animal de andar inseguro y de colores opacos a transformarse en un ave multicolor y dotada de una gracia sin igual.La ceremonia del Orúko, también es el momento en que se visibilizan las jerarquías y las normas de cada terreiro. Si en el Borí se acentúa la obediencia a los dioses, en el Orúko este precepto se refuerza con la debida disciplina de cada iniciado a su casa-de-santo. En este sentido, se entiende que “la Gallina de Angola no es sólo el símbolo-patrón del ritual. También es el patrono del sujeto del rito” (164), en la medida en que su fidelidad y su prestancia a los dioses imprimen una ética que cada nuevo filho de santo debe desplegar en relación con su casa de pertenencia.

El tercer capítulo, “Romería”, se destaca por ser el de mayor voltaje político y el que de manera más profunda se inserta en la cuestión de la identidad afrobrasileña, sus tensiones y estrategias de mantenimiento. Una pregunta estructura esta sección: ¿Por qué los iniciados, luego de los ritos descritos, deben cumplir con el precepto de asistir a una misa? Para responder dicho enigma, los autores revisan la noción de sincretismo, tomando distancia de un doble problema conceptual: dicha noción no resulta un atavismo propio de culturas primitivas ni un artilugio que los sectores dominados orquestan para birlar los controles de la hegemonía cultural. Tampoco se contentan con la imagen que la sociedad brasileña brinda de sí misma, según la cual la convivencia y  el diálogo entre ritos católicos y candomblés reportan un modus vivendi marcado por la armonía y la conciliación.

Sus respuestas se estructuran en torno a la idea del sincretismo como artificio sociológico, como una hechura social donde los diferentes grupos conciertan o imponen acuerdos que invisibilizan (temporariamente) formas de poder. En este sentido, Vogel, Da Silva Mello y Pessoa de Barros establecen que los iniciados en el candomblé van a misa para venerar a sus propios orixás en la figura de los santos católicos, pero también para desafiar la manera católica de imponerse en la esfera pública, y sus intentos de clausurar la participación de otros credos en la identidad brasileña. La postura desafiante de los adeptos al candomblé también encierra la ponderación de la arrogancia como una virtud que deben cultivar y exhibir; entendida ésta no como petulancia y olvido de las normas, sino como orgullo comunitario que resulta el mejor antídoto frente a las coerciones, explícitas e implícitas, que imponen las instituciones dominantes de la sociedad brasileña. A la luz de esta controversia final, los autores ensayan una hipótesis sobre la configuración dialéctica de la identidad afrobrasileña, tensionada permanentemente entre los polos de la (pretendida) pureza y el mestizaje.

Este capítulo, al mismo tiempo que deja al descubierto toda la capacidad hermenéutica de los autores, también desnuda uno de sus principales escollos. En su énfasis por la descripción meticulosa de cada ritual, adoptan una perspectiva sincrónica que ofrece pocas herramientas para pensar las tensiones visitadas y las transformaciones de los rituales mismos, en otros escenarios y, fundamentalmente, en otros tiempos. En concreto, el déficit radica en marginar del análisis las condiciones políticas, culturales y hasta económicas que hacen posibles los diálogos y tensiones entre una forma religiosa hegemónica y otra desafiante. En otras palabras: ¿Qué procesos históricos, que exceden al campo religioso, son los que habilitan este tipo de enfrentamientos velados? ¿Qué circunstancias históricas los gestaron? ¿Qué elementos permitirían un cambio? Estos interrogantes estructurales permanecen sin respuesta en un pasaje clave del texto. Sólo se mencionan brevemente las diferencias existentes entre la cultura lusitana y su orientación mercante con el barroquismo español, pero esta alusión se torna insuficiente para alumbrar las complejidades de estas interacciones y sus posibilidades (o no) de reproducción.

A modo de recapitulación, y para reforzar argumentativamente la conjetura acerca de la centralidad simbólica de la Gallina de Angola, el último capítulo, “Mirabilia Meleagrides, o los creados y la secta”, retoma el análisis mitológico en la cultura candomblé, esta vez para marcar la presencia de la Gallina de Angola en la creación del mundo y su gravitación, no sólo en el momento de la iniciación sino en todo el itinerario biográfico de los hijos del candomblé. La Gallina de Angola comprende así la armadura moral e identitaria de esta adscripción religiosa. Cabe destacar que la edición de Antropofagia cuenta en sus páginas finales con un glosario detallado, el cual constituye una herramienta de lectura indispensable para todos aquellos no familiarizados con la terminología candomblé.

En suma, Gallina de Angola resulta un estudio nodal para la aproximación antropológica a las tensiones propias de la reproducción jerárquica del lazo social y la producción de identidades. Éste es su principal aporte, no sólo para los estudiosos del candomblé y cultos afros, sino también para el vasto campo de análisis cultural enfocado en rituales religiosos y seculares. Esta obra ilumina con minuciosidad el diálogo tenso entre los simbolismos de una forma religiosa minoritaria y la sociedad que la abriga. Invita a revisar contextualmente categorías sacralizadas de la antropología, (tales como sincretismo, rito de pasaje y liminaridad), para establecer su eficacia en un ejercicio permanente de interpretación, donde se privilegian los hallazgos etnográficos por encima dela aplicación irreflexiva de conceptos.

Sin pretender clausurar el campo de análisis, la obra de Vogel, Da Silva Mello y Pessoa de Barros constituye un punto de referencia por su capacidad para sintetizar debates antecedentes y resignificarlos mediantenuevas aproximaciones.

Comentarios

* La versión original en portugués es: Galinha D´Angola Iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. 1993. Río de Janeiro: Pallas Editora.

1 Terreiro alude al espacio donde se celebra los cultos. Casa-de-santo es un sinónimo de terreiro.

Marcos Andrés Carbonelli – Universidad de Buenos Aires, CEIL CONICET, Argentina. Doctor en Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires, Argentina. Investigador Asistente CONICET. Docente en la carrera de Ciencia Política y en la maestría en Investigación Social, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires. Docente regular en el Instituto de Ciencias Sociales de la Universidad Nacional Arturo Jauretche, Argentina. Entre sus últimas publicaciones están: “Valores para mi País. Evangélicos en la esfera política argentina 2008-2011”. Dados 58 (1): 981-1015, 2015. Coautor de “Igualdad religiosa y reconocimiento estatal: instituciones y líderes evangélicos en los debates sobre la regulación de las actividades religiosas en Argentina (2002-2010)”. Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales225: 133-160, 2015. E-mail: [email protected]

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A Evolução do Capitalismo | Maurice Dobb

O presente texto tem por objetivo construir uma análise da obra de Maurice Dobb, A Evolução do Capitalismo. Buscaremos, para isto, destrinchar os capítulos que compõe o livro afim de apresentar ao leitor a tese principal do autor. Para isso, pretendemos aqui equacionar o mais erudito da obra com o mais popular, para que este não se torne apenas um material a mais na elucidação do processo de desenvolvimento científico.

Como veremos em seu prefácio, o autor critica sua obra de forma a mostrar que um especialista, se for o caso chamarmos assim, como um historiador pode passar despercebidos alguns informes sobre a Economia; e isso se estende como réplica, pois ao olhar somente do economista pode passar a ideia de amadorismo historiográfico. Leia Mais

Hipátia | IFSP | 2016

Hipatia3 Jamaxi
Hipátia de Alexandria / Desenho de Jules Maurice Gaspard (1862–1919). Reprodução Wikimedia Commons /

A Hipátia – Revista Brasileira de História, Educação e Matemática  (São Paulo, 2016-) – Qualis B2 na área de Ensino -, conforme sugere seu nome, aceita trabalhos de História da Matemática, Educação Matemática e de Matemática (pura e aplicada).

Artigos de Educação também serão aceitos para apreciação. A revista foi oficialmente criada em 8 de março de 2016. Duas concepções principais nos norteiam:

  1. ajudar a ampliar a participação da mulher na ciência no Brasil;
  2. abrir um espaço para jovens pesquisadores (mestres, doutorandos ou doutores que tenham obtido título há, no máximo, cinco anos).

Isso significa que procuramos dentro da composição de nosso Conselho Editorial, Conselho Científico e em nossas edições, obter uma maioria de pesquisadores ou de trabalhos cujos autores atendam a pelo menos um desses quesitos.

É salutar destacar que, no entanto, contribuições de outros pesquisadores continuam sendo de grande valia. Não é cobrado qualquer valor sobre o envio e processamento dos artigos.

Periodicidade semestral

[Acesso livre]

ISSN 2523 2686

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Devagar e simples: Economia, Estado e vida contemporânea | André L. Resente

“Devagar e simples: Economia, Estado e vida contemporânea” é a obra do economista neoclássico André Lara Rezende, publicada em 2015 pela editora Companhia das Letras. O filho do escritor Otto Lara Rezende participou da elaboração do Plano Real, foi presidente do BNDES no governo FHC e fez parte da última campanha de Marina Silva à presidência da República. O livro dispõe de uma coletânea de trabalhos selecionados ao longo dos últimos anos distribuído em três capítulos, tendo como eixo central a desvalorização da política e a necessidade de repensar o Estado em prol da revalorização da vida pública. Entrelaçada com esta questão o leitor encontra uma aguda discussão sobre o crescimento econômico enquanto elemento associativo ao bem-estar social.

Para o autor o Estado precisa urgentemente caminhar devagar e (re) pensar os seus ápices de crescimento acelerado, porque talvez a simplicidade de dar um passo de cada vez possibilite o caminho mais seguro para uma sociedade cujo bem-estar seja ao menos vislumbrado para todos. Dentro deste escopo indica ainda a necessidade de usarmos da lógica cartesiana, não para sabermos o que é real, mas por meio da experimentação racional descobrirmos o que é falso: que o avanço científico aliado a um crescimento econômico acelerado não se apresenta como o único caminho para o bem-estar da civilização. Leia Mais

Estabelecidos e outsiders no Ocidente tardo antigo e medieval / Ágora / 2016

Com muita satisfação apresento o dossiê “Estabelecidos e outsiders no mundo tardo antigo e medieval”, no qual nos propomos a homenagear o Dr. Celso Taveira que está se aposentando da Ufop, universidade com a qual temos relações especiais. A homenagem a este emérito professor, pesquisador e ser humano raro, deixei ao Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho (Unesp – Campus de Assis).

Proponho-me apresentar os textos recebidos e aprovados para o dossiê. Eles foram distribuídos de maneira cronológica: um texto de história antiga, que optamos por aceitar, mesmo que amplie o escopo da proposta inicial, por acharmos que enriqueceria nossos estudos com o mesmo; no recorte cronológico da Antiguidade Tardia temos oito (8) artigos; já no recorte cronológico do medievo temos seis (6) artigos, totalizando quinze (15) artigos.

O artigo localizado no período da Antiguidade é de autoria do Dr. Osvaldo Luiz Ribeiro (Faculdades Unidas – Vitória/ES) denominado “Yahweh como um deus outsider: duas hipóteses explicativas para a introdução do culto de Yahweh em Israel”, que analisa as fontes escritas e a cultura material e direciona a reflexão para a hipótese de que o deus de Israel e Judá seja um outsider, importado de povos vizinhos.

Antiguidade Tardia

O artigo que abre este período é de autoria do Dr. Ronaldo Amaral (UFSL – Sete Lagoas/MS) denominado “As raízes platônicas do Mal como princípio moral e antropológico no cristianismo da Antiguidade Tardia”, que analisa as concepções do mal no mundo tardo-antigo e a construção da presença do Diabo no mesmo período.

O segundo artigo é de dupla autoria, sendo escrito por Dra. Renata Rozental Sancovsky e sua doutoranda, Cristiane Vargas Guimarães (ambas da UFRRJ – Seropédia/ RJ), denominado “O estranho: a construção da marginalização judaica na narrativa de De fide catholica de Isidoro de Sevilha”. As autoras analisam a construção de um preconceito relativo ao judeu na obra isidoriana e direcionam a reflexão para o estabelecimento de um fenômeno de longa duração, que seria o antijudaísmo medieval e especificamente ibérico.

O terceiro artigo, de autoria de Dra. Raquel de Fátima Parmegiani (UFAL – Maceió/ AL), denominado “Jeronimo de Estridão: vida à margem?”, analisa a vida e a obra do exegeta e tradutor da Bíblia, enfocando os problemas desta tradução e as críticas desta no seu contexto e na posteridade.

O quarto artigo é de autoria de um recém-doutor, José Mário Gonçalves (Faculdades Unidas/Ufes – Vitória/ES), e intitula-se “O conflito entre católicos e donatistas no Sermo ad Caesariensis ecclesiae plebem de Agostinho de Hipona”. No texto, o autor analisa as relações entre o bispo Agostinho e os hereges donatistas no âmbito do Norte da África, no Baixo Império, sob o signo de intensa repressão imperial aos outsiders.

O quinto artigo, de autoria de um doutorando, Fabiano Souza Coelho (UFRJRJ), denominado “Testemunho de Agostinho e Jerônimo sobre as mulheres na Antiguidade Tardia a partir de missivas cristãs” analisa as representações do feminino na obra destes dois Padres da Igreja no período tardo-antigo e a influência destas percepções no medievo.

O sexto artigo, denominado “A celebração de um novo tempo: o ideal unitário na Crônica de João de Bíclaro”, é de autoria de um doutorando, Luís Eduardo Formentini (Ufes/PPGHis – Vitória/ES), o qual analisa a obra do Biclarense e enfoca os ideais de unidade entre a monarquia e a igreja no reino visigótico de Toledo, no período próximo ao III concílio de Toledo (589), sob o prisma deste clérigo e cronista.

O sétimo artigo é de autoria de uma mestra, Cynthia Valente (NEMED/UFPR – Curitiba/PR) e intiula-se “O judeu, outsider no reino visigodo de Toledo”. O texto aborda a construção da representação negativa do judeu no reino visigótico de Toledo, com um recorte no período que sucede o III concílio de Toledo (589), a partir de obras do episcopado e da legislação canônica ou monárquica.

O oitavo artigo, de autoria de um mestrando, Raphael Leite Reis (Ufes/PPGHis – Vitória/ES), denominado “O epistolário agostiniano e os concílios de Cartago e de Mileve (416 d.C.): uma polêmica sobre identidade e diferença, heresia e ortodoxia” analisa as relações de poder entre o cristianismo católico e uma das vertentes, definidas pelos “estabelecidos”, como heréticas: o pelagianismo em suas diversas manifestações no século VI.

Este conjunto traz uma diversidade de temas com ênfase nas relações entre estabelecidos, em especial a Igreja e outsiders, a saber, judeus, hereges, e outros.

Período medieval

Este conjunto traz seis artigos, também variados e multifacetados sobre as relações entre estabelecidos e outsiders no período medieval.

O primeiro artigo, de autoria da Dra. Ana Paula Tavares Magalhães (USP – São Paulo/SP), denominado “A ordem franciscana e a sociedade cristã: centro, periferia e controvérsia” analisa a transição da ordem franciscana, da condição de outsider e motivadora de crítica ao poder papal e pontifício, para ser inserida no sistema e se tornar estabelecida e defensora da hierarquia, da ortodoxia e do sistema.

O segundo artigo, de autoria da Dra. Adriana Zierer (UEMA – São Luís/MA) denominado “Religiosidade, perdição da alma e salvação na sociedade portuguesa medieval (séc. XIV-XVI)” analisa a lenta evolução dos conceitos de pecado, desvio e danação na sociedade medieval portuguesa e que herdamos através de nossas raízes portuguesas.

O terceiro artigo é de autoria da doutoranda Kellen Jacobsen Follador (Ufes/PPGHis – Vitória/ES) e intitula-se “Os judeus como a personificação do mal: a relação entre os judeus e os pecados capitais no medievo cristão”. Este artigo dialoga de maneira interessante com o segundo artigo, ao refletir sobre a forma que os estabelecidos, estigmatizam uma minoria, neste caso os judeus, espelhando nestes um amplo rol de pecados e catalisando uma imagem ou representação negativa destes na sociedade castelhana.

O quarto artigo, de autoria da doutoranda Ludmila Noeme Santos Portela (Ufes/ PPGHis – Vitória/ES), denominado “Estigma e tolerância: Afonso X e os judeus em Castela (séc. XIII)” analisa as relações de poder entre o monarca letrado e culto com a minoria judaica no reino de Leão e Castela, no período que seguiu as amplas conquistas de Fernando III e de seu filho e herdeiro Afonso X. Reflete, também, sobre as contradições da lei e da justiça, da necessidade dos judeus na administração do reino ampliado pelo avanço na Andaluzia, e a mescla de estigma e tolerância.

O quinto artigo, de autoria da mestranda Anny Barcelos Mazioli (Ufes/PPGHis – Vitória/ES), denominado “Corpo, sexo, pecado e condenação no baixo-medievo: o papel das confissões na efetivação do domínio clerical sobre a vida dos casados” reflete sobre o controle do corpo, do desejo e da sexualidade dos casados leigos pelo estamento clerical. Analisa as políticas de controle e repressão efetivadas sob o signo de que o sexo é permitido apenas entre os cônjuges, se tiver a intenção da reprodução.

O sexto e último artigo é de autoria do Dr. Sergio Alberto Feldman (Ufes/ PPGHis – Vitória/ES), coordenador e editor deste dossiê, denominado “Contaminação: a lenta construção do estigma judaico numa análise de longa duração”, que analisa a percepção dos judeus como uma minoria estigmatizada e que gera contaminação na sociedade majoritária cristã, através de uma reflexão de longa duração.

Sergio Alberto Feldman–  Organizador.

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[DR]

Pesquisa (Auto)Biográfica | ABPAB | 2016

Pesquisa Autobiografica Jamaxi

A Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (Salvador, 2016-) é um periódico quadrimestral, publicado pela Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (BIOgraph), que tem por principal objetivo a publicação de artigos acadêmico-científicos inéditos, que aprofundem e sistematizem a pesquisa empírica com fontes biográficas e autobiográficas, assim como de caráter epistemológico, teórico-metodológico, visando a fomentar e promover o intercâmbio entre pesquisadores brasileiros e de outros países, no âmbito do movimento biográfico internacional, como política de socialização de estudos vinculados à pesquisa (auto)biográfica em Educação.

Periodicidade quadrimestral.

Acesso livre.

ISSN 2525-426X

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História e Política / Albuquerque: Revista de História / 2016

“definir uma posição singular pela exterioridade de suas vizinhanças; mais do que querer reduzir os outros ao silêncio, (…)”[1]

A opção por História Política como tema central do presente dossiê não tem qualquer relação com uma tentativa de “reduzir” os outros campos da história ao “silêncio”. É preciso ressaltar que a História Política não é uma área fechada, com fronteiras rígidas e inflexíveis. Ao contrário, pautado numa postura interdisciplinar, seu pesquisador vale-se de métodos, técnicas, conceitos, vocabulários e problemas gerados (e germinados) do contato com outras disciplinas e / ou áreas do conhecimento. Desse modo, entendemos que o cultural, o econômico e o político se “influenciam mutua e desigualmente segundo as conjunturas, guardando ao mesmo tempo cada um sua vida autônoma e seus dinamismos próprios.”[2] E de acordo com René Rémond: “se o político tem características próprias que tornam inoperante toda análise reducionista, ele também tem relações com outros domínios.” Conferindo centralidade à postura interdisciplinar, Rémond salientou que o político “liga-se por mil vínculos, por toda espécie de laços, a todos os outros aspectos da vida coletiva.”[3] Portanto, o político “não constitui um setor separado: é uma modalidade da prática social.”[4]

É certo que a postura interdisciplinar contribuiu para o alargamento do campo da história e, particularmente, da chamada “história política renovada.”[5] Nas últimas décadas, objetos até então pouco pesquisados no Brasil passaram a despertar maior interesse dos estudiosos brasileiros. Mídia, intelectuais, opinião pública, discursos e cultura política são apenas alguns exemplos.[6]

Convém observar, igualmente, que a própria noção de política se ampliou. Como, então, definir a política? Sem a pretensão de oferecer uma resposta definitiva e inquestionável, podemos recorrer às formulações de René Remond: “Já que não se pode definir o político por uma coleção de objetos ou um espaço, somos levados a definições mais abstratas. A mais constante é pela referência ao poder.”[7] Por sua vez, Rosanvallon [8] sublinhou com relação ao político: “Pode ser definido como o processo que permite a constituição de uma ordem a que todos se associam, mediante deliberação das normas de participação e distribuição.” Ressaltou, ainda, que devemos considerar a “atividade política” como “subordinada à pluralidade da atividade humana.” [9]

Referências ao poder [10] e postura interdisciplinar são algumas das características dos onze textos reunidos no presente dossiê, além, é claro, de instigantes discussões e reflexões historiográficas sobre a própria constituição da história política como campo de estudos.

No primeiro artigo, o leitor encontrará uma discussão de cunho historiográfica. Em seu texto, Moisés Stahl abordou o chamado “retorno do político” discutindo as formulações de autores como Roger Chartier, Pierre Rosanvallon, Christian Edward Cyril Lynch e René Rémond.

Na publicação seguinte, Juliana Cristina da Rosa analisou a contribuição de Jürgen Habermas para a Nova História Política, enfocando, sobretudo, a relação entre Dignidade Humana e Direitos Humanos. De modo contundente, demonstrou como o teórico alemão criticou o “mau uso” dos direitos humanos como discurso legitimador para ações intervencionistas – e imperialistas – empreendidas por governantes dos Estados Unidos da América.

Já Raphael Silva Fagundes procurou analisar os discursos proferidos pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), descortinando peças de retórica que buscavam legitimar, a partir da noção de progresso, a presença da associação oitocentista no cenário político. Para tanto, enfocou pronunciamentos nas sessões de aniversário do IHGB.

No quarto texto, Pedro Henrique de Mello Rabelo e Cláudia Maria das Graças Chaves trataram da Abertura dos Portos (1808) e do comércio britânico no Brasil tendo como fonte a correspondência do cônsul estadunidense Joseph Rademaker com o governo luso. Refletiram, igualmente, sobre os conceitos de metrópole, colônia, império e sistema colonial.

As biografias acerca de D. Pedro II constituem o escopo do artigo veiculado na sequência. Nele, Mauro Henrique Miranda de Alcântara discutiu o trabalho da antropóloga Lilia M. Schwarcz (As Barbas do Imperador, 1998), bem como os livros dos historiadores José Murilo de Carvalho (D. Pedro II, 2007) e Roderick J. Barman (O Monarca-Cidadão, 2013).

Já os primeiros momentos da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial foram abordados por Paulo Sérgio da Silva e Honorato C. Chagas. Dentre outros temas, trataram da implantação e execução das medidas tomadas pelo governo de Getúlio Vargas em busca dos recursos financeiros, abastecimento de materiais, reorganização produtiva e treinamento da defesa passiva civil.

Os resultados obtidos em dois diferentes estudos ensejaram as reflexões de Douglas Souza Angeli e Marcos Jovino Asturian. No trabalho, os autores abordaram o papel exercido por jornais nas campanhas eleitorais no Rio Grande do Sul. A partir de periódicos de circulação local e / ou regional, analisaram as estratégias discursivas adotadas nas campanhas eleitorais de cidades gaúchas na década de 1950.

No oitavo artigo, Samuel da Silva Alves e Cleusa Maria Gomes Graebin examinaram um discurso de Leonel de Moura Brizola, proferido num evento organizado por acadêmicos da Faculdade de Ciência Política e Econômica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em meados de 1961, momento em que o político ocupava o cargo de governador do Estado.

Já no nono texto, os pesquisadores estabeleceram relações entre literatura, política e ditadura militar no Brasil. Marcio Luiz Carreri e Francislaine A. Carvalho discutiram a peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, escrita em 1933 e encenada, três décadas depois, no Teatro Oficina.

Rock e política compõem o mote para o texto publicado na sequência. Em seu artigo, Paulo Gustavo da Encarnação procurou abordar a relação entre rock e política interpretando versos e acordes de canções como O adventista (banda Camisa de Vênus) Fé nenhuma (banda Engenheiros do Hawaii) e Ideologia (Cazuza).

O último texto da presente edição foi redigido pela pesquisadora argentina Magdalena López. No artigo, López refletiu acerca da história política do Paraguai contemporâneo, buscando compreender, principalmente, os fatores que influenciam a formação e o modelo atual de democracia paraguaia.

Além dos onze artigos, publicamos uma entrevista realizada com a professora Alisolete Antônia dos Santos Weingartner. Na conversa, a pesquisador tratou dos estudos sobre o Movimento Divisionista, a Divisão do Estado de Mato Grosso e a criação de Mato Grosso do Sul. Dentre outros temas, também abordou o seu novo livro, intitulado “Mato Grosso do Sul: a construção de um Estado”.

Por fim, desejamos uma excelente leitura para todos / as que tenham interesse numa publicação de história sem, obviamente, abrir mão do contato com outras disciplinas e / ou áreas do conhecimento, como bem enseja à referência aos escritos de Michel Foucault na epígrafe aqui reproduzida.

Aquidauana-MS, 2016.

Notas

1. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 6.ed. Rio de Janeiro: Florense Universitária, 2000, p. 20.

2. RÉMOND, René. (org.) Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / FGV, 1996, p. 10.

3. Idem, ibidem, p. 35.

4. Idem, ibidem, p. 35-6.

5. BORGES, Vavy Pacheco. História e política: laços permanentes. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, n.º 23 / 24, set 91 / ago 92, p. 16.

6. Não se pretende afirmar que os pesquisadores brasileiros começaram a trabalhar com os objetos citados nos últimos anos. Tomemos, por exemplo, o caso da mídia. Há muito tempo a imprensa escrita é objeto de estudo para os historiadores, como podemos observar a partir dos estudos de SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 1966, CAPELATO, Maria Helena Rolim; PRADO, Maria Lígia. O Bravo matutino: imprensa e ideologia: o jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980 ou CAPELATO, Maria Helena Rolim. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista (1920- 1945). São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. Procuramos salientamos somente que os historiadores tem se ocupado com maior frequência de tais objetos.

7. RÉMOND, René. Do Político. _____. (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / FGV, 1996, p. 443-444.

8. Considerar a proposição do autor para uma história conceitual do político. Cf. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político. Revista Brasileira de História. v.15, n.º 30, p. 9-22, 1995.

9. ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010, p. 42.

10. E aqui pensamos em poder também tendo em mente as formulações de Bourdieu. Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

Edvaldo Correa Sotana – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]

Carlos Martins Junior – Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]

Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]


SOTANA, Edvaldo Correa; MARTINS JUNIOR, Carlos; SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.8, n.15, 2016. Acessar publicação original [DR]

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História e Linguagens / Albuquerque: Revista de História / 2016

É com imensa satisfação que apresentamos a@s leitor@s de albuquerque: revista de história o dossiê História & Linguagens, conjunto temático de textos proposto com vistas à socialização e debate de pesquisas referentes ao amplo campo de contato interdisciplinar dos estudos da História e das mais distintas Linguagens, em suas diferentes facetas e suportes.

A História, tomada como forma específica de se conhecer e compreender o mundo, passa por transformações, na medida em que a sociedade se transforma e ela não é outra coisa que não um produto humano. É possível que essa seja uma afirmação óbvia, entretanto, em um período como esse no qual estamos inseridos, tão afeito a naturalizações, talvez não seja algo ruim retomar algumas premissas.

A História tem sido elaborada muito próxima a outras formas de compreender o mundo, por vezes sendo confundida com elas. Não somos @s primeir@s, claro. Na construção das hegemonias no vasto campo do ato de conhecer o mundo as tensões entre pensador@s, suas escolhas, suas incursões até outros campos, são percebidas.

Assim, a História já esteve muito próxima das artes, da filosofia, de outras narrativas e ciências. Num rasgo de necessidade, entretanto, inseridos no processo de cientificização da sociedade ocidental característico de fins do século XVIII e do século XIX, seus artífices buscaram o afastamento. Retirados, se impunham a tarefa de elaborar as fronteiras do campo, acompanhado de seus modos específicos de analisar, compreender e narrar as sociedades humanas no tempo. E isso foi feito.

Entretanto, o interesse em dialogar com outros campos, de nos aproximarmos de outras leituras de mundo e suas ferramentas, tem sido uma constante. As fronteiras, que em um primeiro momento foram tomadas como muros servindo para nos separar, foram sendo modificadas e tornadas zonas de contato. ´

Em diálogo com as Ciências Sociais os conceitos foram ampliados, o conjunto de fontes foi tornado quase ilimitado. Tomar de empréstimo à Antropologia o seu largo conceito de Cultura possibilitou um século de avanços robustos na compreensão das ações humanas no seu embate cotidiano com a natureza e entre sujeitos. Os estudos da psiquê, aqueles da economia, da política e tantos mais foram sendo observados e, em alguma medida, apropriados no fazer histórico e historiográfico.

Quando observamos dessa maneira a elaboração do conhecimento histórico, não causa estranheza que, à medida em que novos objetos foram introduzidos no corpo social, eles foram também tomados como forma de acessar os sujeitos e suas ações, agregados a tantos outros que estavam ali há mais tempo. Historiador@s que utilizam a arte para elaboração de suas interpretações podem ser observados desde o século XIX, a exemplo de Jacob Burckhardt e sua Cultura do Renascimento na Itália.

Na produção histórica brasileira, entretanto, é possível perceber a partir de meados dos anos 1990 o aparecimento cada vez mais frequente de trabalhos elaborados a partir do diálogo com as Linguagens e / ou que tomaram / tomam objetos estéticos como corpus documental, exclusivo ou não.

A difusão de autores como Edward P. Thompson, Raymond Williams, Roger Chartier, entre outros, nos cursos de História, foi um movimento importante, responsável por parte dessa ampliação do paradigma histórico nestas plagas. Mas, a partir de fins dos anos 1990, esse tipo de produção historiográfica se torna mais comum no Brasil, possibilitando um continuado incremento desta zona de contato, alargada.

Assim ansiamos, nesse dossiê, verticalizar reflexões e debater teórica e metodologicamente a relação entre história e as linguagens artísticas, a produção virtual, os movimentos de cultura, em suas diversas temporalidades e feições e representações, e os embates intelectuais que de tais expressões surgem.

O dossiê História & Linguagens foi composto como segue: o texto de abertura é de Janaina Cardoso de Mello, intitulado Os crimes contra mulheres nas fontes do Arquivo Geral do Poder Judiciário em Sergipe (1878-1935): cotidiano de poder, denúncias e impunidade; fruto de pesquisa da autora baseada na análise e cotejamento de cinco documentos encontrados naquele arquivo e que possibilitam a compreensão de um cotidiano de violência contra mulheres e impunidade de seus algozes em Sergipe, na passagem do século XIX para o século XX.

O artigo seguinte, Turismo literário: uma análise sobre autenticidade, imagem e imaginário, de autoria de Fernanda Naves Coutinho, Diomira Maria Cicci Pinto Faria e Sergio Donizete Faria, foi escrito com vistas a ampliar o conhecimento sobre esse segmento turístico, inserindo-o em uma teia ampliada de relações advinda da produção, circulação, ressignificação, apropriação de bens culturais, materiais e imateriais.

Já Alessandro Henrique Cavichia Dias busca compreender o processo de travessia de Sérgio Reis de uma carreira de cantor romântico ligado à Jovem Guarda para o mundo do cancioneiro rural, alterando toda a sua performance, inclusa sua indumentária, mas, sobretudo, no que tange ao próprio ritmo, instrumentação, etc. No artigo “O caminho do sertão”: a construção e a concretização da imagem de Sérgio Reis como intérprete da moderna música rural, Dias analisa como uma nova estética caipira seria elaborada pelo cantor, aproximando campo e cidade.

Ceildes da Silva Pereira & Fernanda Correa Silveira Galli tomam como objeto de análise um dos mais relevantes acontecimentos da história recente do país, a aprovação da PEC 241 / 2016, por meio da qual foram limitados os gastos governamentais pelo prazo de vinte anos. Discursos da / na mídia digital: efeitos de sentido sobre a PEC 241 é a análise das autoras, baseada na Análise do Discurso de linha francesa, sobre a construção discursiva daquele fato.

O texto de Wallace Lucas Magalhães, O imaginário social como um campo de disputas: um diálogo entre Baczko e Bourdieu, volta-se para a compreensão teórica das ciências humanas e sociais a partir dos conceitos de imaginário social (de Baczko) e campo (de Bourdieu), inserindo tal processo nas transformações sociais e intelectuais a partir dos anos 1960 na Europa, considerando o permanente imbricamento entre o real e o simbólico.

O artigo de Elite Borges Lopes, intitulado Comunidade da Ilha do Bananal: auto-organização da população em situação de rua na cidade de Cuiabá-MT, encerra esse dossiê. A autora transita pelas ruas da Ilha do Bananal, no centro da capital mato-grossense, e percebe ali a organização da população em situação de rua por meio de seus arte-fatos. Uma bela análise de vivências expressas também na arte pouco observadas pela academia brasileira, ou, ainda, pouco observada por quem quer que seja.

Esperamos que @s leitor@s apreciem as presentes reflexões que reafirmam os diálogos entre as áreas do conhecimento que elaboram análises sobre as sociedades contemporâneas por meio dos mais distintos suportes e com várias nuances, considerando a produção intelectual e artística como expressão relevante da sociedade global.

Na Seção de Artigos Livres, estão quatro outros trabalhos.

Partindo da interpretação de que, desde o período imperial, notadamente a partir da guerra contra o Paraguai (1864-1870), a fronteira oeste se tornaria objeto de interesse e de políticas do Estado nacional, Carlos Alexandre Barros Trubiliano escreve seus Apontamentos sobre as frentes pioneiras na Zona da Mata Rondoniense (1970-2000).

Eduardo Giavara compreende a fronteira como espaço de tensionamento; considerando essa premissa, no artigo As fronteiras do desconhecido: civilização e barbárie no oeste paulista, analisa os processos migratórios do século XIX e as transformações sociais havidas no oeste paulista em decorrência delas, no período que vai da publicação da Lei de Terras (1850) até a aquele da reorganização política daquela região por meio da chegada dos trilhos na cidade de Salto Grande.

Cesar Magolin, no artigo Política operária no pré-64: história e crítica, busca compreender a construção de uma política operária a partir das formulações do Partido Comunista Brasileiro (PCB), inserindo tal fenômeno no amplo e complexo processo político nacional e internacional que precederia o golpe de 1964.

Finalmente, Isabel Camilo de Camargo analisa o processo de formação de Sant’Ana de Paranaíba baseada no âmbito da história ambiental, considerando os embates e apropriações do corpo social com a natureza no tempo, no artigo intitulado Fontes históricas e a ocupação de Sant’Ana de Paranaíba no século XIX: possibilidades para se pensar a História Ambiental.

Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]

Edvaldo Correa Sotana – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]

Carlos Martins Junior – Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]


SOTANA, Edvaldo Correa; MARTINS JUNIOR, Carlos; SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.8, n.16, 2016. Acessar publicação original [DR]

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História dos jornais no Brasil: da era colonial à Regência (1500-1840) | Matías M. Molina

Em 1863, Manuel Duarte Moreira de Azevedo, bacharel em letras, doutor em medicina, membro do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e mais conhecido por Dr. Moreira de Azevedo, publicou, na revista do IHGB, o texto Origem e Desenvolvimento da Imprensa no Rio de Janeiro, um dos primeiros, senão, o primeiro, que explorou detalhadamente as publicações da imprensa carioca daquele tempo. O escrito, que, muito provavelmente, foi o único do Oitocentos que se dedicou a tal empreitada, teve como principal objetivo elencar e comentar os periódicos publicados na capital imperial pela tipografia da Impressão Régia ou pelas tipografias particulares instaladas na corte, entre os anos de 1808 e 1863. Depois dele, apenas o historiador Alfredo de Carvalho, aproveitando-se da comemoração do centenário da imprensa no país, publicou, em 1908, Gênese e Progressos da Imprensa Periódica do Brasil, também na revista do IHGB. Diferentemente do Origem e Desenvolvimento da Imprensa no Rio de Janeiro que se ocupou apenas dos periódicos da cidade do Rio de Janeiro, o estudo de Carvalho foi, e continua sendo considerado pela historiografia brasileira como o primeiro estudo que se comprometeu com a audaciosa tarefa de listar todos os periódicos produzidos no Brasil naqueles primeiros cem anos de impressos, independentemente da região em que foram publicados.

Trabalhos abrangentes como o pretendido por Alfredo de Carvalho no começo do século XX ocuparam pouco espaço na historiografia brasileira. No decorrer do século XX e no início do século XXI, a maior parte das obras teve como objeto apenas um determinado periódico, como os estudos de Nelson Dimas Filhos, Jornal do Comércio: a notícia dia a dia (1827-1887), de 1972, e de Maria Beatriz Nizza da Silva, A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822), de 2007, ou se dedicaram aos periódicos publicados de uma certa região, como o de Gondim da Fonseca, Biografia do jornalismo carioca, de 1947, e o de José de Freitas Nobre, História da imprensa de São Paulo, de 1950.

Ressalva-se nesse habitual da historiografia, todavia, o estudo de Nelson Werneck Sodré, História da Imprensa no Brasil, publicado em 1966. A obra, além de listar um grande número de periódicos publicados no país desde a época colonial até meados do século XX, realiza uma análise do desenvolvimento e da produção dos impressos sob a “óptica da luta de classes”, isto é, por um viés marxista. A imprensa, na visão de Sodré, sempre teria sido utilizada como um meio de comunicação de massas e, assim, sempre funcionou como um aparelho de sujeição dos trabalhadores. Na época de seu lançamento a obra ocupou uma lacuna da historiografia brasileira, que desde o início do século não tinha trabalhos dedicados a tentar realizar uma história mais completa dos impressos produzidos no Brasil. A História da Imprensa no Brasil de Sodré, nesse sentido, foi muito bem recebida por aqueles estudiosos da segunda metade do século XX e foi considerada por muitos pesquisadores, durante um bom tempo – e por alguns até hoje –, o principal trabalho sobre a história da imprensa do Brasil, principalmente em razão do grande levantamento de Sodré acerca dos títulos produzidos. Contudo, o estudo de Sodré encontra-se, de certo modo, datado dentro da atual historiografia brasileira e a necessidade de uma história da imprensa do Brasil, que contemple os aspectos culturais e sociais mais abrangentes, permanece sob demanda.

A historiografia brasileira, em vista disso, desde a década de sessenta do século passado carecia de uma obra que se propusesse a realizar um estudo sobre os impressos publicados no Brasil, da colônia à contemporaneidade, a partir de um viés mais cultural e social. É nesse espaço desabitado, pois, que se insere o estudo do jornalista Matías M. Molina,[1] História dos Jornais no Brasil. Dada à ambição do trabalho, Molina propôs dividir o estudo em três volumes, pois, segundo ele mesmo justificou, dar conta dos impressos publicados nesse longo espaço de tempo é uma tarefa que requer muitas páginas escritas. Este alto número de impressos, aliás, interferiu diretamente na estrutura de seu projeto, que precisou ser repensado e dividido diversas vezes. Por esse motivo, o estudo de Molina se concentrou “apenas nos jornais de informação geral. Ficaram de fora os diários especializados, como os esportivos e econômicos, e os jornais em língua estrangeira […]”.

Outro fator que, segundo o jornalista, também contribuiu para a estrutura de seu projeto, foi o livro do professor da universidade norte-americana de Princeton, Paul Starr, The Creation of the Media. O livro do americano pretende mostrar “de que maneira algumas instituições como o Correios, a expansão do ensino, a introdução do telégrafo e outras tecnologias” foram importantes para a criação e a evolução dos meios de comunicação nos Estados Unidos. Inspirado por este trabalho, Molina adaptou “a maneira de Starr ver a criação da mídia em seu país para tentar compreender melhor as condições em que nasceram e desenvolveram os jornais brasileiros”. Por meio de uma pesquisa minuciosa, Molina tem como objetivo realizar uma história dos jornais brasileiros, ou seja, seu estudo “não tenta adivinhar” o futuro de um jornal, “não antecipa seu fim nem assegura que terão vida eterna. Limita-se a contar a história dos jornais no contexto de uma época. Dezenas deles”. Não se encaminha, portanto, no sentido de discutir o destino dos jornais, ou melhor, no sentido de discorrer sobre uma história dos jornais para desnudar o futuro dos impressos.

O primeiro livro, do que promete ser um vasto estudo, História dos Jornais no Brasil: da era colonial à Regência (1500-1840), foi publicado no início de 2015 e analisa, de maneira geral, a chegada das primeiras tipografias, os primeiros impressos publicados e alguns homens das letras que se envolveram com as artes gráficas. A obra se encontra dividida em quatro partes. Intitulada A era colonial, a primeira parte do estudo destaca a tipografia e a imprensa da colônia com intuito de, segundo o autor, compreender melhor os porquês de o Brasil só ter conseguido firmar uma imprensa nacional apenas no século XIX. Na segunda, A corte no Brasil, Molina explora o recorte que ele chamou como o “período de transição”, ou seja, o momento marcado pela vinda da Corte portuguesa, pela instalação da Impressão Régia e pela produção dos primeiros impressos. Jornais na independência e na regência é o título da terceira parte deste volume e, como sugere, tem como proposta investigar o envolvimento e o posicionamento de algumas folhas diante do governo, em tempos, vale lembrar, de conturbados debates que tomavam as ruas, principalmente da cidade do Rio de Janeiro, e tinha os jornais como principal veículo de informação. A quarta e última parte, Infraestrutura, discute a respeito dos “fatores que condicionaram o desenvolvimento da imprensa e ajuda a explicar a baixa penetração dos jornais no Brasil”, nos séculos XVI, XVII, XVIII até meados do XIX, mais especificamente até 1840.

Molina abre espaço, neste primeiro volume, para uma reflexão a respeito da história dos impressos do Brasil na época colonial. Não por achar que a colônia teve uma importante produção de impressos, mas para tentar refletir sobre os porquês de o país não ter uma imprensa, ou mesmo, uma tipografia, nos seus primeiros séculos de vida – uma vez que o Brasil, “três séculos e meio depois das primeiras obras estampadas por Gutemberg”, só desempenhou tal atividade a partir de 1808, com a vinda da família real portuguesa. Destaca Molina que não foi proibida oficialmente no Brasil a instalação de tipografias nem a produção de impressos durante a colônia, mas o fato – simples até – foi que as terras brasileiras não eram propícias para o desenvolvimento das artes gráficas. Com uma minguada população, praticamente toda analfabeta, e um grande território, a colônia de Portugal não recebia incentivos nem para a produção de pequenos folhetos. No período inicial, destarte, a instalação de uma tipografia poderia, de acordo com Molina, “ser considerada supérflua”, mas com o aumento da população e o aumento da dependência dos portugueses em relação ao Brasil, a ideia passou a ser aceita e, aos poucos, ganhou corpo.

Logo na primeira década do século XVII, quando as capitanias do Norte ficaram nas mãos dos holandeses, isto é, da Companhia das Índias Ocidentais, e diferentes povos imigraram para essa região, o plano para a existência aqui no Brasil de uma tipografia passou a ser concreto. O principal governante deste domínio, o conde João Maurício de Nassau pediu, várias vezes durante seu governo, que fosse instalada uma tipografia naquela região com o argumento de que a impressão de documentos naquelas terras seria benéfica para a sua administração e, consequentemente, para a manutenção do domínio. Todavia, com a expulsão dos holandeses e a retomada do território pelos portugueses, em 1654, o projeto de Maurício de Nassau não foi executado. Os portugueses, como era de se esperar, e dado seu posicionamento frente a esse assunto, engavetaram rapidamente a iniciativa do conde. Outra tentativa de se instalar uma tipografia no Brasil foi a do português Antônio Isidoro da Fonseca que, em meados do século XVIII, se acomodou no Rio de Janeiro com seus equipamentos e até chegou a imprimir algumas obras. A Corte de Lisboa, infelizmente, não aprovou a ação e, além de determinar o retorno de Isidoro da Fonseca para Portugal em razão desse episódio, passou a proibir a instalação de tipografias bem como a produção dos impressos na colônia. Nota-se, nesse sentido, segundo Molina, que na colônia a não existência de uma lei que proibisse a impressão não significava que ela era permitida, pois sempre que existia alguma iniciativa de impressão ela era rapidamente coibida pelos portugueses.

A vinda da corte portuguesa para as terras do Brasil ocasionou variadas mudanças na administração dos portugueses e a instauração de determinados órgãos até então inexistentes na colônia, como a imprensa. Com a instalação, em 1808, da Impressão Régia no Brasil, a proibição de fabricação de impressos na colônia foi deixada de lado e substituída por investimentos do governo português: nessa época, o Brasil recebeu um variado maquinário para que fossem desenvolvidas as artes gráficas em suas terras. Molina, levando em consideração tais mudanças ocasionadas com a presença da corte no Brasil, mapeou os principais jornais que começaram a ser publicados pela Impressão Régia ou por tipografias particulares, que tinham a autorização do governo.

Destacou, assim, impressos variados, tais como a Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822), a publicar artigos que se posicionavam de forma favorável ou contrária ao governo de Portugal no Brasil.

Todavia, os jornais voltados para as discussões nos momentos da Independência ou da Regência tiveram um destaque especial na terceira parte deste volume. Foram apresentados primeiramente os jornais do Rio de Janeiro contrários à Independência, como o Conciliador do Reino Unido (1821) de José da Silva Lisboa, que, segundo Molina, não se omitia em defender a união entre os reinos de Portugal e Brasil. E, em seguida, um dos jornais que mais debateram sobre a possibilidade de o Brasil ser ou não um Império: O Republico, que começou a ser publicado durante um ano antes do início das regências, em 1830, mas que saiu por diversas vezes até 1855. Outros jornais publicados na cidade do Rio de Janeiro, que tiveram importante participação na história da imprensa do Brasil receberam igual atenção nesta parte do livro, tais como: o Correio do Rio de Janeiro (1822-1823), o Diário do Rio de Janeiro (1821-1959/1860- 1878), o Jornal do Commercio (1827-atual) e A Aurora Fluminense (1827-1835). Destacase, ainda, a presença de alguns jornais baianos, pernambucanos e, também, de outras províncias do país como, por exemplo, os do Rio de Grande do Sul.

O problema de maior relevo na história da imprensa nesse período apontado por Molina, na última parte de seu livro, foi a contradição entre os jornais terem sido importantes instrumentos na redefinição da vida social e política do país, mas, ao mesmo tempo, pouco lidos pelos brasileiros. Molina pontua, desse modo, as dificuldades da produção dos impressos: o maquinário ultrapassado, o grande número de analfabetos da população brasileira, as dificuldades de transportes, o valor elevado dos impressos, entre outros. Molina evidencia que as adversidades encontradas na fabricação das folhas periódicas fizeram que a mesma elite letrada que produzia os impressos era também quem os comprava.

Molina oferece nesse volume que, como mencionado, integrará futuramente um estudo de maior fôlego, uma análise minuciosa sobre o que a presença ou ausência de impressos pode revelar sobre história da imprensa brasileira. Destaca, sobretudo, as dificuldades de se manter a publicação dos jornais e a importante participação que eles tiveram na vida política e social do Brasil, independentemente de sua duração ou de sua posição ideológica. Em suma, com uma escrita agradável, uma leitura rigorosa das fontes e uma análise que inclui diferentes aspectos, a obra de Molina contribui para diminuir a falta desse tipo de estudo na historiografia brasileira e deixa estudiosos e interessados à espera dos próximos volumes.

Notas

1. Matías M. Molina também é autor de Os melhores jornais do mundo: uma visão da imprensa nacional (2007), de vários artigos publicados no Valor Econômico, entre outros.

Referências

AZEVEDO, Dr. Moreira de. Origem e desenvolvimento da imprensa no Rio de Janeiro.

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: B. L.

Garnier, t. XXVIII, v. 2, 1865, p. 169-224.

CARVALHO, Alfredo de. Gênese e progressos da imprensa periódica no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, parte I, 1908.

DIMAS FILHO, Nélson. Jornal do Commercio: A notícia dia a dia (1827-1987). Rio de Janeiro: Fundação Assis Chateaubriand; Jornal do Commercio, 1987.

FONSECA, Manuel José Gondin da. Biografia do jornalismo carioca: 1808-1908. Rio de Janeiro: Quaresma, 1941.

MOLINA, Matías M. História dos jornais no Brasil: da era colonial à Regência (1500- 1840). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. v. 1.

NOBRE, José de Freitas. História da imprensa de São Paulo. São Paulo: Leia, 1950.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822): cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Eduerj, 2007.

SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

Amanda Peruchi


MOLINA, Matías M. História dos jornais no Brasil: da era colonial à Regência (1500-1840). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. v. 1. 560p. Resenha de: PERUCHI, Amanda. No rastro das folhas periódicas: os impresos na historiografia brasileira. Revista Ágora. Vitória, n.23, p.292-297, 2016. Acessar publicação original [IF].

Ilhas do Caribe: do colonialismo ao concerto das nações / Revista Brasileira do Caribe / 2016

Las islas del Caribe. Del colonialismo al concierto de las naciones es un volumen que reune el trabajo de doce investigadores de instituciones académicas de México, Puerto Rico, San Martín, Brasil y los Estados Unidos. Al preparar el dossier de la Revista Brasileira do Caribe, intentamos develar algunos elementos relacionados con momentos singulares de la historia del Caribe que dejan al descubierto el preciado papel que en las luchas inter-coloniales de las potencias europeas y respecto al avance imperial de los Estados Unidos, ha jugado la región como zona estratégica militar de interés geo-político y comercial. En cada uno de los ensayos, desde diversos enfoques y propuestas metodológicas, sobresalen aspectos relacionados con las concepciones que sobre el espacio Caribe guiaron las políticas económicas y militares de la Corona española a lo largo del siglo XVIII y XIX; pero también las que ciñeron las dinámicas y relaciones imperiales bajo la égida de Estados Unidos en el siglo XX.

A lo largo de los ensayos las islas españolas del Caribe (Cuba y Puerto Rico), emergen como puntos de partida, encuentro y llegada; como espacios naturales de navegación y tránsito comercial; lugares estratégico-militares, de defensa y combate.

En sus apacibles aguas recalaron piratas y se persiguió con fuerza el contrabando. Su naturaleza fue explorada por hombres de ciencia que recopilaron infi nidad de muestras de sus riquezas naturales que fueron a parar a las grandes colecciones de los museos más grandes de Europa y Estados Unidos. La circulación de objetos y personas es otro caudal que afl ora en los ensayos, cuya escala de valores económicos, sociales y culturales fueron apreciados en el tiempo histórico. Las islas de Cuba y Puerto Rico como parte del engranaje imperial desarrollaron una noción de la negociación inscrita en la consciencia de sus propias debilidades.

Su vocación de recepción y puente de ideas inspiró los proyectos políticos y sociales que defi nieron las dinámicas y ritmos en las transformaciones idelógico-culturales. Sus circunstancias históricas y políticas; sus realidades específi cas modelaron la región a partir de la diferencia y la diversidad; pero también sus disparidades fueron la correa de trasmisión para ensayar o aplicar nuevos modelos que separan sus formas de organización política, económica y social.

Con el establecimiento del primer Tribunal de la Inquisición en la América Hispana se inicia una situación de controversia y confl icto, donde las presiones desarrolladas entre autoridades eclesiásticas y civiles desdibuja el papel que jugaban las instituciones religiosas en su relación con el poder político tradicional, así como las redes del poder real. Los personajes que aparecen bajo circunstancias adversas de cambio quedan atrapados en el marco legal de papeles y funciones que les fueron conferidos, los cuales, en la emergencia de nuevas prácticas políticas y de control social fueron modifi cados pese a los sinsabores de la resistencia como ejemplifi ca el trabajo de Olivia Gargallo García.

La impronta de los intercambios económicos y comerciales que vincularon a la región con las principales metrópolis y el comercio internacional tienen en el ejemplo de Puerto Rico y sus vínculos con Hamburgo, uno de los principales puertos de Europa en el siglo XIX, una muestra de la intensidad de las relaciones comerciales e intercambios de mercancias que mantuvieron los puertos alemanes con la menor de las islas del Caribe Hispano. A través del estudio que realiza Argelia Pacheco Díaz se aprecian las rutas de navegación que exploraron las elites azucareras en sus prácticas mercantiles con otras islas del Caribe.

En el Caribe hispano la circulación e intercambio de mercancias no se suscribe únicamente a objetos, también en el mercado libre se desarrolló un importante fl ujo de personas. El modelo de plantación, basado en la esclavitud fue la base de la riqueza agrícola y comercial de Cuba y Puerto Rico. Sin embargo, y a pesar de las prohibiciones impuestas a España a través de una serie de tratados que Inglaterra le hizo fi rmar, el tráfi co de esclavos africanos se prolongó a mediados del siglo XIX y como muestra Jorge Chinea, la llegada clandestina de africanos provenientes del Congo a la isla de Puerto Rico, quizá la última, se produjo en 1859, a bordo del Majesty cuando entraron a sus costas alrededor de 1000 cautivos, la mayor parte niños y adolecentes. Eran los años de debates sobre el fi n de la esclavitud y la apertura del mercado de trabajo, libre y asalariado.

Otra mirada de la circulación constante de objetos, personas e ideas refi ere las multiples maneras en que navegaron de un continente a otro y de una isla vecina a otra las distintas concepciones ideológicas y políticas. El dossier destaca el análisis sobre la sociabilidad pública y el afi ncamiento de instituciones educativas y culturales que se establecieron en la isla de Puerto Rico. El paradigma de la ciencia como motor del progreso económico en un momento de coyuntura, coadyuvó el nacimiento de la esfera pública moderna y el reconocimiento de la inteligencia letrada colonial y criolla que, por intermedio de la Sociedad Económica de Amigos del País, impregnó cambios al elemento político de la representación y con éste, las diversas maneras de concebir los derechos individuales y asumir los colectivos como posturas indispensables de la representación, como explica María Teresa Cortés Zavala.

Los intercambios de saberes y la trasmisión de conocimientos impulsaron el ritmo del liberalismo en el Caribe español. Los vientos de progreso y modernidad llegaron a las costas de Puerto Rico desde la voz experimentada y viajera de fi guras del liberalismo criollo durante su presencia en la Exposición Universal de París en 1867. Así, ilustraron el atraso que vivía la menor de las Antillas españolas en el contexto colonial. Ese lamento discursivo que evade la censura inspira a Fernando Feliú para analizar a un hombre de letras y le permite extender su mirada inquisidora a la memoria construida por Baldorioty de Castro quien, como otras fi guras del liberalismo puertorriqueño, mantuvo posicionamientos políticos por el cambio de régimen económico-administrativo.

La cultura del control social y político en contextos coloniales adversos forma parte relevante del ejercicio del poder y cómo es ejercido bajo escenarios de intervención y crisis. Los asuntos de la política y la capacidad negociadora desarrollada Jorge Ruscalleda examine cómo tejen y entrecruzan un nuevo trato político las elites puertorriqueñas en el marco previo, durante y post Segunda Guerra Mundial. La coyuntura bélica internacional coloca al Partido Popular Democrático (PPD) y su líder, Luis Muñoz Marín, en posición de entablar acuerdos con el gobierno de los Estados Unidos. Detener las fuerzas expansivas del movimiento obrero progresista organizadas alrededor de la Confederación General de Trabajadores permitió capitalizar, a Muñoz Rivera y su partido, de los resultados del programa de desarrollo industrial a partir de 1945.

Un planteamiento más epistémico y de reconocimiento de la realidad es documentado por Martín López Ávalos. La tradición narrativa de un discurso nacional en Cuba, sirve para rastrear la construcción de la identidad política moderna cubana, la cual tiene su origen en el pensamiento martiano. Éste se identifi có, desde el siglo XIX al XX, con la acción colectiva y las prácticas políticas y discursivas, como afi rma López Ávalos, primero frente a la creación del Estado nacional de cara al colonialismo español y un siglo más tarde frente a la subordinación y dependencia del imperialismo norteamericano. Dos tiempos y dos caras para hilvanar la lógica discursiva de la continuidad. La forja de la identidad nacional y el surgimiento de la nación; los intentos por la independencia y el establecimiento del Estado nacional concluyen o alcanzan su victoria con la revolución castrista de 1959.

El campo de la cultura es una de las fuentes que permite a Leticia Bobadilla González analizar cómo se difunden y representan los valores y el espíritu que dominan una época mediante las expresiones simbólicas de una sociedad como la cubana, transformada radicalmente con el triunfo de la revolución en 1959. El giro que experimenta la revolución hacia el socialismo en 1961 dio paso a la creación de nuevas instituciones. Los intelectuales contaron con espacios ofi ciales para recrear las expresiones culturales y trabajar a favor de la revolución. Las primeras imágenes que sobre la revolución se difundieron fueron las sostenidas por el ICAIC y estuvieron permeadas por los confl ictos que se presentaron entre diversos intelectuales en defensa de la revolución. La idea de concebir a la cultura y sus instituciones ofi ciales como una prolongación de las políticas culturales del Estado, lleva a la autora a preguntarse ¿cómo las relaciones de poder, confl ictos, impugnaciones y disidencias restringen las formas de creación artística y literaria? Esta discusión airada de acomodos internos no es ajena a las discrepancias entre actores sociales y se enmarca en las tensiones externas de los poderes de Estados Unidos y el bloque socialista soviético.

Una muestra más del arraigo colonial occidental en las Antillas, que ha dejado huella en los múltiples ingredientes culturales, se expresa en experiencias colectivas que integran las creencias y costumbres generadas y que se asumen como acervo patrimonial. Francio Guadeloupe y Erwin Wolthuis, invitan a apreciar desde la metáfora de la sopa Callaloo –plato típico que al ser elaborado en diversas regiones del Caribe se transforma en una especie de caldo diferente—las tensiones provocadas por la tríada racial, sexual y de clase. La sopa Callaloo en la medida en que más se arraiga en el gusto de la población de la isla de San Martin, se transformaba en un testimonio vivo del pasado de opresión que en ella se vivió, pues como el ajiaco se elabora a partir de la mezcla de diversos componentes.

Finalmente, podemos decir que en este amplio panorama son varios los aspectos y niveles de acercamiento que articulan los temas abordados en el dossier. Bajo el título: Las islas del Caribe. Del colonialismo al concierto de las naciones, las ópticas que imperan y los tiempos diversos explican la riqueza sociocultural y el andamiaje racial que ha caracterizado a la región en la larga duración.

En el cuerpo del número de la revista se incluye el trabajo de Leonardo Dallacqua de Carvalho y Wesley Dartagnan Salles, autores que exploran algunas de las claves del colonialismo europeo y el capitalismo mundial como fenómenos históricos que aproximan los espacios de las Antillas en el Caribe y Costa de Mina en el Golfo de Guinea, en África. Los patrones comerciales que han regido a la trata negrera, permiten comparar desde la historia económica y la historia de la salud cómo opera el modelo de explotación humana utilizada en la producción del tabaco en Brasil durante el siglo XVII. La experiencia se asemeja y puede compararse con otros espacios coloniales vinculados a las dinámicas comerciales de la oferta y la demanda en el mercado internacional, en la medida en que forman parte, a mayor escala, del sistema Atlántico en que se inscriben la circulación de saberes e intercambio de objetos; el fl ujo de personas y mercancias.

María Teresa Cortés Zavala

Morelia, Michoacán 2016.


ZAVALA, María Teresa Cortéz. Ilhas do Caribe: do colonialismo ao concerto das nações. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.16, n.32, p.7-12, jan./jun. 2016. Acessar publicação original. [IF].

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Devagar e simples: Economia, Estado e vida contemporânea / André L. Resente

“Devagar e simples: Economia, Estado e vida contemporânea” é a obra do economista neoclássico André Lara Rezende, publicada em 2015 pela editora Companhia das Letras. O filho do escritor Otto Lara Rezende participou da elaboração do Plano Real, foi presidente do BNDES no governo FHC e fez parte da última campanha de Marina Silva à presidência da República. O livro dispõe de uma coletânea de trabalhos selecionados ao longo dos últimos anos distribuído em três capítulos, tendo como eixo central a desvalorização da política e a necessidade de repensar o Estado em prol da revalorização da vida pública. Entrelaçada com esta questão o leitor encontra uma aguda discussão sobre o crescimento econômico enquanto elemento associativo ao bem-estar social.

Para o autor o Estado precisa urgentemente caminhar devagar e (re) pensar os seus ápices de crescimento acelerado, porque talvez a simplicidade de dar um passo de cada vez possibilite o caminho mais seguro para uma sociedade cujo bem-estar seja ao menos vislumbrado para todos. Dentro deste escopo indica ainda a necessidade de usarmos da lógica cartesiana, não para sabermos o que é real, mas por meio da experimentação racional descobrirmos o que é falso: que o avanço científico aliado a um crescimento econômico acelerado não se apresenta como o único caminho para o bem-estar da civilização. Leia Mais

Literatura comparada. Reflexões – COUTINHO (A-EN)

COUTINHO, Eduardo. Literatura comparada. Reflexões. São Paulo: Annablume, 2013. Resenha de: SILVA, Maurício. Alea, Rio de Janeiro, v.18 n.1, jan./apr. 2016.

Professor titular de Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e de diversas universidades estrangeiras, além de membro fundador e ex-presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), Eduardo Coutinho publica em 2013 um livro que, de certo modo, é uma espécie de continuação do livro que publicou há dez anos (Literatura comparada na América Latina: ensaios), como o próprio autor lembra em seu prefácio. Privilegiando aspectos do comparatismo literário na segunda metade do século XX e no contexto da América Latina, Coutinho elenca alguns textos publicados anteriormente em revistas acadêmicas ou coletâneas de estudos teóricos sobre o tema. Pode-se dizer que são três os temas principais analisados e discutidos pelo autor nesse seu novo livro: 1. o comparatismo literário em geral e suas relações com áreas afins (crítica literária, historiografia literária, tradução etc.); 2. a relação entre a Literatura Comparada e o advento do pós-modernismo/pós-modernidade; 3. a presença da Literatura Comparada na América Latina, problematizando essa proximidade.

Em relação ao primeiro tema, Coutinho destaca – em “Literatura comparada: reflexões sobre uma disciplina acadêmica” (2013: 11-31) – o fato de que a Literatura Comparada tem como marca fundamental o conceito de transversalidade, tanto em relação à fronteira entre nações e idiomas quanto em relação aos limites entre áreas do conhecimento. Retoma, nesse sentido, alguns momentos do comparatismo literário, como o de Guyard (La littérature comparée, 1951), com o predomínio dos binarismos da Escola Francesa ou o de Pichois e Rousseau (La littérature comparée, 1967); como o de Owen Aldridge (Comparative literature, 1969), com uma perspectiva mais abrangente, relacionada à interdisciplinaridade, da Escola Americana ou o de Henry Remak (Comparative literature, 1961). Para o autor, a noção de transversalidade, contudo, se faz mais explícita na inter-relação da literatura com outras áreas do conhecimento, tendência que vem se ampliando cada vez mais atualmente. Trata-se, portanto, de uma das principais preocupações teórico-metodológicas dos pesquisadores da área, repercutindo, no presente, a contribuição dos Estudos Culturais e Pós-Coloniais no campo do comparatismo, que desvia a ênfase no literário (ainda presente mesmo na Escola Americana) para outras áreas do saber: hoje, pode-se dizer, prevalece um sentido de interdisciplinaridade entre culturas.

Já em “Criação e crítica: reflexões sobre o papel do crítico literário” (2013: 99-108), Coutinho trata do papel e da natureza da Crítica Literária, afirmando que “é possível intuir-se até certo ponto a qualidade de uma obra, mas não estabelecerem-se critérios objetivos de avaliação” (2013: 101). Essa situação se torna mais evidente com questões trazidas pela pós-modernidade, levando a Crítica a “mergulha(r) em terreno pantanoso, sem parâmetros definidos” (2013: 104), resultando numa “espécie de relativização segundo a qual os critérios de avaliação passam a oscilar de acordo com o olhar adotado e o locus de enunciação do estudioso” (2013: 105). Reflexões análogas a esta o autor faz em relação à tradução, quando – em “Literatura comparada e tradução no Brasil: breves reflexões” (2013: 109-119) – lembra que a tradução vem sendo tradicionalmente considerada uma atividade secundária, situação que sofre significativa transformação com o advento dos Estudos Culturais, os Estudos Pós-Coloniais e a Desconstrução: a Tradução (ou o que passou a se chamar Estudos de Tradução) torna-se mais valorizada, destacando diferenças históricas e culturais, rompendo com a hierarquia entre o original e o traduzido: “dentro dessa perspectiva, traduzir se torna estabelecer um diálogo, e não apenas no nível linguístico, mas principalmente no nível cultural” (2013: 112); ou quando lembra – em “O comparatismo nas fronteiras do conhecimento: contradições e conflitos” (2013: 121-133) – que, ao contrário da lógica iluminista, a pós-moderna considera o conhecimento como algo instável, desqualificando a noção de fronteira e a compartimentação de saberes e valorizando noções como as de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade e, finalmente, colocando em xeque o “privilégio concedido ao texto literário” (2013: 123) pelo comparatismo tradicional. Amplia-se, assim, a reflexão em torno da produção literária, incentivando suas relações extrínsecas com contextos históricos, sociológicos, psicológicos etc. e promovendo o diálogo com as demais disciplinas: “as fronteiras, embora tênues, que ainda marcavam o comparatismo foram amplamente esgarçadas, e a disciplina [Literatura Comparada], além de absorver elementos de outras e de prestar subsídios a suas elaborações, tem-se erigido como espaço de reflexão sobre a produção, a circulação e a negociação de objetos e valores, contribuindo assim de maneira decisiva para a esfera mais ampla dos Estudos de Humanidades” (2013: 127). Tem-se, desse modo, que os princípios tradicionais do comparatismo literário foi combatido pelos Estudos Culturais, além de ter muitos de seus pressupostos questionados pelos Estudos Pós-Coloniais.

Em relação ao segundo tema, o autor – em “Revisitando o pós-moderno” (2013: 33-58) – começa distinguindo pós-modernidade de pós-modernismo, nos seguintes termos: “encaramos a pós-modernidade como um fenômeno geral, uma Weltanschauung, que implica uma série de transformações no panorama cultural ocidental, e o pós-modernismo como um estilo de época, marcado por traços mais ou menos definíveis, que refletem tais transformações” (2013: 34). O autor se propõe a abordar esses conceitos no contexto latino-americano (em particular, no brasileiro), tendo como eixo da discussão a tensão entre identidade e diferença. Lembra, por exemplo, que o Modernismo, ao se opor à representação realista, instaura uma crise da representação, conferindo à obra de arte uma autonomia que a dissociava do contexto histórico e a destituía de preocupações fora da ordem estética, ligando-se à racionalidade. Após a Segunda Guerra Mundial, essa perspectiva começa a apresentar sinais de exaustão, e a partir dos anos 50-60 seus pressupostos começam a ser colocados em xeque pelo que, depois, se convencionou chamar de pós-modernismo. A obra de arte, então, deixa de ser modelar, rompendo-se a separação entre o erudito e o popular e revalorizando o contexto histórico: “partindo da consciência de sua condição de discurso e do reconhecimento de seu caráter histórico, o pós-moderno põe em xeque princípios como valor, ordem, significado, controle e identidade, que constituíram premissas básicas do liberalismo burguês, e se erige como um fenômeno fundamentalmente contraditório, marcado por traços como o paradoxo, a ambiguidade, a ironia, a indeterminação e a contingência. Desaparece, assim, a segurança ética, ontológica e epistemológica, que a razão garantia no paradigma moderno e o pós-moderno se insurge como o reino da relatividade” (2013: 40). E completando:

O fenômeno pós-moderno se revela justamente naquelas obras em que se vislumbra uma pluralidade de linguagens, modelos e procedimentos, e onde oposições como aquelas entre realismo e irrealismo, formalismo e conteudismo, esteticismo e engajamento político, literatura erudita e popular cedem lugar a uma coexistência em tensão desses mesmos elementos. Utilizando-se da paródia e de outros recursos técnicos desestabilizadores, o Pós-Modernismo desestrutura figuras e vozes narrativas estáveis e problematiza toda a noção tradicional de conhecimento histórico, pondo em questão ao mesmo tempo todas as instituições e sistemas que constituem as fontes básicas de significado e valor da tradição estética ocidental. (2013: 41)

Analisando o fenômeno do Pós-Modernismo historicamente, Coutinho lembra que, nos anos 1960, ele se afirma como um movimento de contestação e irreverência, ligando-se aos movimentos de arte pop e, de certo modo, revitalizando alguns movimentos de vanguarda e dando-lhes uma roupagem mais norte-americana; nos anos 1970 e 1980, o conceito se alia a uma visão mais crítica da realidade, para, nos anos 1990, a participação de minorias conferir-lhe um sentido próximo da então chamada literatura pós-colonial (e, também, dos Estudos Culturais), retomando, além disso, a questão da representação e do sujeito, fazendo com que o Pós-Modernismo adquira um sentido mais político, na medida em que passa a contestar toda sorte de etnocentrismo. Para o autor, no contexto latino-americano, o conceito de Pós-Modernismo remete, principalmente, à produção artística pós-segunda metade do século XX.

Finalmente, em relação ao terceiro tema, começa tratando – em “América Latina: o móvel e o plural” (2013: 59-67) – do termo América Latina, desde a chegada dos europeus associado à ideia de colonização e, na sequência, vinculado a processos de independência e de afirmação de identidades locais. A ideia passa por algumas ampliações semânticas, incluindo o Brasil e, posteriormente, a América Central, caráter mais inclusivo que vai se afirmando também com as novas correntes teóricas de reflexão acerca da cultura (Nova História, Estudos Culturais, Estudos Pós-Coloniais etc.).

Em “Transferências e trocas culturais na América Latina” (2013: 69-84), afirma que a Literatura Comparada, desde o início, surge “como um conceito relacional, ou, melhor, como o estudo das relações entre produções literárias distintas” (2013: 69), diferenciando-se das literaturas nacionais por ter como objeto “produtos literários, e por extensão culturais, distintos, caracterizando-se como o estudo dos contatos, trocas, intercâmbios e embates entre tais produtos, ou, para colocar em termos mais acadêmicos, como o estudo, mais ou menos sistemático, dos diálogos entre culturas” (2013: 70). Após uma fase de ênfase quase que exclusiva no texto literário (como se verifica na Escola Americana), o advento dos Estudos Culturais ressaltou, no âmbito do comparatismo literário, aspectos mais gerais da literatura, contribuindo para “situar a reflexão literária num âmbito mais geral que diz respeito à cultura de uma ou de várias sociedades” (2013: 71). Essa postura contribui significativamente para uma compreensão mais larga da realidade latino-americana, quase sempre vista numa dependência da europeia, prejudicando leituras que a pudessem contemplar como um “espaço distinto do eurocentrismo” (2013: 73). É o que propõem teorias como as de heterogeneidade cultural (Cornejo Polar), culturas híbridas (Canclini), heterogeneidade cultural heterônoma (Brunner), pós-ocidentalismo (Mignolo) e outras, novos modos e novas estratégias de leitura diante de um espaço cultural plural. Nesse contexto, o atual papel da Literatura Comparada (não, evidentemente, a tradicional, que aborda as relações a partir do modelo europeu) torna-se fundamental, no sentido de promover “um comparatismo que permita o contraste entre distintas práticas sociais discursivas procedentes de culturas diferentes que convivem em um mesmo espaço-tempo” (2013: 89). Trata-se, assim, de um comparatismo que reconhece a existência de práticas discursivas próprias de contextos colonizados; reconhece, portanto, o conhecimento produzido pelo outro: “trata-se, em última instância, de um comparatismo situado no contexto de onde olhamos, que, ao contrastar as produções locais com as provenientes de outros lugares, instaure uma reciprocidade cultural, uma interação plural, que induz conhecimento a partir do contacto com outras culturas” (2013: 83).

Já em “Cartografias literárias na América Latina: algumas reflexões” (2013: 85-108), o autor afirma que a nova historiografia literária vem procurando formular um “discurso fundamentalmente plural, heterogêneo, representado por múltiplos sujeitos, que dê conta da diversidade dos universos representados” (2013: 86), desafiando os historiadores literários a produzir um relato inclusivo. Assim, o discurso nacional contemporâneo precisa ser um espaço de negociação e conversação pelos sujeitos que compõem o cenário da nação, sendo colocada em suspeição a ideia de uma versão oficial e única dos fatos. No âmbito da historiografia literária, portanto, “a busca da construção de uma história democrática da produção literária de uma nação [deve] passar necessariamente pelo questionamento [do] cânone [oficial], sobretudo com seus vieses excludentes e elitistas” (2013: 87). Nesse processo de redimensionamento da historiografia literária, os Estudos Culturais desempenham papel relevante, incluindo entre as preocupações daquela dos discursos e saberes, ultrapassando as fronteiras do que até então era considerado literário: “agora, ao lado do exame do texto, bem como dos gêneros, estilos e topos, que por tanto tempo alicerçaram as obras de História da Literatura, torna-se relevante também a análise do campo em que se produziu a experiência literária, e o contexto de recepção da obra é tratado com a mesma importância do de produção” (2013: 89). Nesse novo contexto, o discurso da historiografia literária passa a ser visto como uma construção: “Como são muitos os sujeitos sociais que passam a narrar a história, e esses sujeitos procedem de origens distintas, o idioma canônico deixa de ser a única forma de expressão de uma determinada comunidade, passando a aceitar outras linguagens, e rompendo-se, assim, com toda sorte de visão monolítica do real” (2013: 90). Nesse contexto ainda, em que a episteme pós-moderna coloca em xeque os discursos autoritários, a historiografia literária vem adquirindo uma nova face, que se organiza tanto no eixo temporal (substituindo uma noção de progressão/evolucionismo pela de simultaneidade) quanto no espacial (considerando regiões culturais até então excluídas do cânone), além de um alargamento das formas literárias, incorporando algumas tradicionalmente excluídas da historiografia (como o corrido mexicano ou o cordel brasileiro).

Por fim, em “Velhas dicotomias que se enlaçam: voz/letra, público/privado no universo latino-americano” (2013: 135-145), o autor trata, entre outras coisas, da reverência à cultura letrada no processo de colonização da América Latina (“A palavra falada, a voz, pertencia ao reino do inseguro e do precário; e a escritura, ao contrário, possuía rigidez e permanência, um modo autônomo que arremedava a eternidade”, 2013: 138).

Pode-se dizer que seu livro é uma consciente e bem fundamentada apologia dos ganhos e achados oferecidos ao comparatismo literário – em vários de seus níveis de atuação prática – pelas novas teorias que, na contemporaneidade, recebem a designação de Estudos Culturais e Pós-Coloniais e abordagens congêneres, dentro do que o autor chama de episteme pós-moderna.

Mauricio Silva possui doutorado e pós-doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo. Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação, na Universidade Nove de Julho (São Paulo), é autor dos livros A Hélade e o Subúrbio. Confrontos Literários na Belle Époque Carioca (São Paulo, Edusp, 2006); A Resignação dos Humildes. Estética e Combate na Ficção de Lima Barreto (São Paulo, Annablume, 2011), entre outros. É organizador da coleção de Literatura Brasileira Contemporânea, pela Editora Terracota, atualmente com três títulos publicados. Endereço para correspondência: Rua General Rondon, 44 – Ap. 10 – São Paulo – SP – 01204-010. E-mail: [email protected].

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Pensamento político e ensaísmo no Brasil / Ágora / 2016

O dossiê temático desta edição, intitulado “Pensamento político e ensaísmo no Brasil”, teve como proposta, e objetivo principal, reunir um conjunto de trabalhos sobre as diversas formas como questões sobre história, política e identidade foram abordadas na história intelectual brasileira.

No artigo de abertura, Maria Alayde Alcântara Salim e Ueber José de Oliveira analisam algumas das formas de circulação de ideias no Brasil na Primeira República, apontando as posições de alguns autores destacados do período sobre a importância da educação e cultura literária para enfrentar os males detectados no período republicano.

Henrique Pinheiro Costa Gaio oferece uma análise comparativa das leituras sobre o Macunaíma de Mário de Andrade feitas por Haroldo de Campos e Gilda de Mello e Sousa, destacando suas diferentes metodologias de leitura e formas diferentes com as quais o tema da identidade nacional foi tratado por ambos.

Em seu artigo, Valdeci da Silva Cunha analisa a publicação literária A Revista, buscando determinar as diferentes percepções de temporalidade com que os intelectuais brasileiros dos anos 1920 operavam.

Já Ana Priscila de Sousa Sá examina o Memorial Orgânico de Varnhagen, buscando apontar as propostas político-administrativas do autor para a organização imperial. Por fim, encerrando o dossiê, Ruth Cavalcante Neiva discute as principais obras de Manoel Bomfim, procurando identificar as particularidades de seu pensamento sobre a questão racial.

Além dos artigos presentes no dossiê temático, também incluímos, na seção de tema livre, o artigo de João Carlos Furlani, que analisa a atuação política dos bispos na Antiguidade Tardia, e o trabalho de Maira Citlalli Sánchez Ayal, que discorre sobre a questão do direito à nacionalidade no Brasil e no México, com foco na naturalização.

Fabio Muruci Ueber

José de Oliveira

Organizadores

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[DR]

Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX / Samuel Albuquerque

ALBUQUERQUE Samuel Jamaxi
Samuel Albuquerque / Foto: Conectando Com Jota /

ALBUQUERQUE S Nas memorias de Aurelia JamaxiAo dar visibilidade no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX, Samuel Barros de Medeiros Albuquerque, professor da Universidade Federal de Sergipe, narrou neste livro as vivências e experiências da sergipana Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952), futura Dona Sinhá, durante sua estada no Rio de Janeiro com sua família, e sua preceptora alemã, Marie Lassius.

Tais memórias, arquivadas em textos, são fonte de informações preciosas sobre o cotidiano feminino, incluindo o trabalho de governantas, bem como as experiências e práticas culturais de meninas, moças e senhoras na sociedade carioca.

Assim, fazendo uma breve descrição dos familiares de Aurélia, da chegada de Marie Lassius no Brasil e na casa da jovem, ainda em Sergipe, Albuquerque buscou investigar

o universo de preceptoras europeias que viveram entre os grandes centros e a periferia do Império do Brasil e, para tanto, enveredo pelo cotidiano de uma típica família da nossa antiga elite política e econômica, buscando interpretar sobretudo, as práticas culturais femininas (2015, p. 17).

Para isso, Albuquerque abordou no primeiro capítulo, intitulado “Nas memórias de Aurélia”, as experiências e vivências dessa jovem sergipana, bem como das demais mulheres da família, inclusive de sua preceptora alemã.

Ao narrar a conjuntura que levou a família do deputado geral Antonio Dias Coelho e Mello (1822-1904), Barão da Estância, a se mudar para o Rio de Janeiro, e o cotidiano das mulheres da família, Albuquerque conseguiu estabelecer pontos de convergência entre a política e cultura do século XIX.

A ligação política do Barão da Estância rendeu às mulheres da família e à preceptora alemã, o acesso a espaços de sociabilidade típicos da corte carioca, como bailes, jantares, cerimônias políticas e religiosas, inclusive contato direto com a família imperial, por meio das visitas residenciais ou cerimônias específicas.

Além disso, tal ligação política também possibilitou identificar o cotidiano dessas mulheres e suas práticas culturais. Dentre essas práticas, Albuquerque destacou as experiências vivenciadas e narradas por Aurélia nos diversos espaços de sociabilidade em que frequentou com sua família e com sua preceptora.

A frequência nesses espaços possibilitava às mulheres da corte e da elite se conhecerem, trocarem informações e experiências sociais e culturais. Assim, Aurélia, as mulheres de sua família, e sua preceptora, conseguiram se inserir no cotidiano feminino carioca e se adaptarem nessa nova realidade sociocultural, uma vez que todas elas provinham de outras realidades culturais.

Quanto à ligação cultural existente no cotidiano da família sergipana, podemos observar a atenção que o autor deu aos indícios textuais de Aurélia sobre a educação recebida pela preceptora alemã.

Da gramática ao estudo de idiomas e de música, a jovem sergipana foi educada para tornar-se uma mulher culta e preparada para um bom casamento e, consequentemente, saber cuidar da casa, do marido, dos filhos e dos criados.

Sua vivência e experiências pela cidade do Rio de Janeiro, acompanhada por sua família e por Marie Lassius, fizeram de Aurélia uma moça atenta ao cotidiano feminino e aos espaços de sociabilidade por ela frequentados.

Guiado pelos indícios das práticas culturais e dos espaços de sociabilidade acessados por Aurélia, Albuquerque continuou explanando no segundo capítulo, intitulado “No Reino Encantado de Pedro II”, o cotidiano feminino pelo Rio de Janeiro durante o reinado de D. Pedro II.

A frequência nos ritos religiosos, no estabelecimento de modistas franceses, na confeitaria Paschoal, nas residências de políticos e damas da elite carioca, em teatros, museus, passeios públicos, jardins botânicos, zoológico, praias e demais endereços ilustram a diversidade de espaços de sociabilidade existentes na cidade do Rio de Janeiro, bem como os locais permitidos ao acesso feminino.

Toda vivência e experiência obtida durante a estadia no Rio de Janeiro, provavelmente proporcionou a Aurélia noções do cotidiano e das práticas femininas, além de prepará-la para a vida de esposa, mãe e dona de casa.

Assim, com o encerramento das atividades políticas do Barão da Estância no Rio de Janeiro em 1879, ele e sua família retornam a Sergipe, deixando para trás o amigo da família Gonçalo de Faro Rollemberg, futuro esposo de Aurélia, e a preceptora alemã, Marie Lassius que faleceu no mesmo ano.

Aurélia, já amadurecida, continuou escrevendo suas vivências e experiências, porém, não da mesma forma como antes. Diante de seus retornos ao Rio de Janeiro, de seu casamento, filhos que teve, permanecia em sua memória os ensinamentos, as práticas, as vivências e as experiências deixadas por sua preceptora.

Assim, se Samuel de Albuquerque buscou destacar em seu livro a importância da prática da preceptoria no Brasil para a formação feminina, em especialde Aurélia, ele também conseguiu dar visibilidade às experiências, vivências e práticas culturais no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX.

Everton Vieira Barbosa Correio – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Campus de Assis). Bolsista pelo processo 15555-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).E-mail: [email protected].


ALBUQUERQUE, Samuel. Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX. São Cristóvão: Editora UFS, 2015, 152p. Resenha de: CORREIO, Everton Vieira Barbosa. História histórias. Brasília, v.4, n.7, p.231-233, 2016. Acessar publicação original. [IF]

Hydra | Unifesp | 2016

Hydra Jamaxi

A Revista Hydra (Guarulhos, 2016-), organizada pelos discentes do programa de pós-graduação em História [da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp], tem como um de seus principais intuitos contemplar pesquisas elaboradas sob as mais diversas perspectivas teórico-historiográficas, pautando-se no esforço de divulgação dos trabalhos acadêmicos da área das Humanidades.

Além disso, possui a iniciativa de demarcar o lugar do Programa no cenário da produção historiográfica acadêmica nacional e internacional.

[Periodicidade semestral].

[Livre acesso].

ISSN 2447-942X (Online)

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A Idade Média e o Dinheiro – ensaio de antropologia histórica | Jacques Le Goff

O último livro do historiador francês Jacques Le Goff foi publicado originalmente em 2010. Traduzido por Marcos de Castro, foi publicado no Brasil em 2014. “A Idade Média e o Dinheiro” não deve ser interpretado como uma obra que contém uma reviravolta na historiografia de Le Goff, mas como uma síntese das ideias que nortearam o autor em sua carreira acadêmica. Desta forma, os elementos que compuseram seus traços característicos se expressam na obra de forma bem clara: o interesse em problemas e questões de longa duração; a proeminência e o impacto das questões subjetivas ou mentais; a ênfase nas instituições e transformações urbanas; a relação entre a mentalidade e a religião; as ordens eclesiásticas; a relação com o dinheiro e o tempo (a partir da usura); uma Idade Média de longa duração e sua possível relação com o capitalismo.

Conforme o subtítulo anuncia, sua preocupação é estabelecer um ‘ensaio de antropologia histórica’. Desta forma, compreende-se que a obra priorize os elementos culturais (ou mentais) do significado do dinheiro para o medievo. Isso não significa, no entanto, que a materialidade seja totalmente descartada na obra. A forma como esta é trabalhada, contudo, ficará mais clara ao longo da exposição da obra. Leia Mais

Ciencia Nueva | UTP | 2016

Ciencia Nueva Jamaxi

Ciencia Nueva, Revista en historia y política (Pereira, 2016-) es una publicación en formato digital de periodicidad semestral impulsada por la Maestría en Historia de la Facultad de Educación de la Universidad Tecnológica de Pereira y apoyada por la Vicerrectoría de Investigaciones, Innovación y Extensión de la institución. Está dirigida a la comunidad de investigadoras e investigadores en los campos de la historia y las ciencias políticas, tanto en el ámbito nacional como internacional, razón por la cual promovemos la publicación de artículos de autores extranjeros en español y otros idiomas (inglés, portugués, francés e italiano).

El propósito original de Ciencia Nueva fue el de abrir una plataforma de difusión para las investigaciones originales en el ámbito de la historia y la ciencia política en la región del Eje Cafetero colombiano, así como para acompañar los procesos de formación académica y presentación de los resultados de trabajos de investigación desarrollados desde la Maestría en Historia y la Maestría en Ciencia Política que se realizó en convenio con la Universidad de Salerno (Italia) entre los años 2017 y 2019.

En la actualidad, Ciencia Nueva ha asumido que los procesos de calidad y de alto impacto, requieren de una mirada más amplia que no puede desdibujar el propósito inicial con el que nació, por tal razón ha querido vincular las miradas de la historia global para integrar los procesos locales en escalas transnacionales. En este sentido nos gusta presentar a Ciencia Nueva, como una revista local en diálogo con lo global que busca cumplir con los estándares de la alta calidad científica.

Por lo anterior, Ciencia Nueva recibe artículos que podrán ser postulados para su publicación desde diversas procedencias disciplinares y territoriales. Por esta razón, la revista publica en español, italiano, portugués, francés e inglés artículos originales que pueden ser informes finales o avances de investigación, ensayos, trabajos de sistematización sobre un tema de historia y ciencia política, revisiones de una problemática particular o reseñas bibliográficas.

Asimismo, busca consolidar un espacio en el que se puedan publicar documentos primarios o transcripciones de los mismos que por su naturaleza y difícil acceso, se puedan considerar patrimoniales y de relevancia para una comunidad específica.

Todos los artículos y contribuciones que lleguen a Ciencia Nueva, serán sometidas a evaluación por parte de pares académicos expertos en el área correspondiente mediante el sistema de “doble ciego” para garantizar la publicación y calidad de la revista.

Periodicidade semestra.

Acesso livre.

ISSN 2539 2662

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Formação e prática profissional do Assistente Social / Boletim do Tempo Presente / 2016

Apresentação

Em maio de 2015 aconteceu em Recife a II Jornada Nordeste de Serviço Social (JNSS), evento que nos últimos dois anos vem ocupando espaço na agenda das escolas de serviço social do nordeste do Brasil. É um congresso que visa fortalecer e difundir a produção de conhecimento na área de Serviço Social e áreas afins, de maneira que contribua com o intercâmbio acadêmico e institucional, tanto em âmbito local quanto regional, com enfoque na formação, pesquisa e prática profissional do Assistente Social.

A primeira edição da JNSS aconteceu em 2014 na cidade de João Pessoa e contou com a participação de pesquisadores, docentes, discentes de graduação e de pós-graduação, profissionais, grupos e redes de pesquisa de diferentes instituições, provenientes de todo o Nordeste. Essa multiplicidade de olhares contribuiu para o intercâmbio acadêmico e institucional na área do Serviço Social e afins.

Nessa segunda edição, contamos com mais de 163 trabalhos inscritos, dos quais, 141 foram aprovados, sendo 94 artigos e 47 pôsteres. O número expressivo de trabalhos apresentados demonstra um fortalecimento da pesquisa no campo do Serviço Social e de áreas afins e que deve ser estimulado nas instituições por meio de eventos como a JNSS. Os temas das discussões estiveram direcionados para a reflexão sobre a interdisciplinaridade, formação profissional, questões urbanas e os desafios para o projeto ético político do profissional em Serviço Social.

Esta edição do Boletim do Tempo Presente traz algumas das abordagens que foram debatidas nas mesas redondas ocorridas durante o evento. Iniciamos com textos de Edilene Pimentel e Josiane Santos que contribuem para o debate da questão social na contemporaneidade. Em seguida temos a discussão sobre ensino superior nas dimensões do trabalho e da questão indígena abordados nos textos de Roberto Rondon e de Diva Vasconcelos, respectivamente. Por fim temos a reflexão sobre abrigos para criança e adolescente em Alagoas de autoria de Niejda Dantas.

Esta edição do Boletim do Tempo Presente conta ainda com três resenhas. A primeira, de autoria da mestranda em educação pela Universidade de Pernambuco, Helena Albuquerque, constrói uma análise da obra Devagar e simples: Economia, Estado e Vida contemporânea de André Lara ResendeSeguida pela análise da obra de Sônia Rocha, Transferência de renda no Brasil: O fim da pobreza? -, construída por Phillipe Bastos, mestrando em Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável/UPE. Por fim, contamos com a colaboração de Thales Bentzen, mestrando em Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável/UPE, que analisa o livro A Evolução do Capitalismo, de autoria de Maurice Dobb.

Elizabeth da Silva Alcoforado RondonProfessora Assistente da Universidade de Pernambuco. E-mail: [email protected] .

Sandra Simone Moraes de AraújoProfessora Adjunta da Universidade de Pernambuco. E-mail: [email protected] .

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Después de la masacre: emociones y política en el Cauca indio – JIMENO; CASTILLO; VARELA (A-RAA)

JIMENO, Myriam; CASTILLO, Ángela; VARELA, Daniel. Después de la masacre: emociones y política en el Cauca indio. Bogotá: ICANH y el Centro de Estudios Sociales (CES) de la Universidad Nacional de Colombia, 2015. Resenha de: GONZÁLEZ G, Fernán E. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.24, jan./abr., 2016.

En primer lugar, quiero agradecer la oportunidad de conocer y comentar este texto. Pero, en segundo lugar, me gustaría aclarar que mi perspectiva parte de la historia y sociología políticas, pues no soy antropólogo, ni mucho menos experto en problemas indígenas. Por esto, mi interés en este texto obedece a mis preocupaciones previas sobre las bases antropológicas y culturales de la vida política, que he venido compartiendo desde hace varios años con amigas antropólogas como Myriam Jimeno, Gloria Isabel Ocampo y María Victoria Uribe. Ese interés se ha centrado, en especial, en las discusiones sobre temas como la identidad nacional, sus relaciones con las adscripciones políticas del bipartidismo, las guerras civiles y las relaciones con la Iglesia católica. En los últimos años, estas discusiones se han relacionado con la Violencia, tanto la de los años cincuenta como la actual, que me han ido conduciendo a preocuparme, más recientemente, por los problemas de la representación política de una sociedad cada vez más plural y multiforme.

En este sentido, empezaría por subrayar la importancia de este libro, Después de la masacre: emociones y política en el Cauca indio, escrito por Myriam Jimeno y su grupo, como contribución a la comprensión de la manera como se configuran, desconfiguran y reconfiguran las identidades colectivas de comunidades locales en los actuales contextos de Violencia y desplazamiento -en el corto plazo-, pero teniendo siempre en cuenta los contextos culturales y políticos del mediano plazo, como el reconocimiento de la pluralidad cultural, étnica, religiosa y regional consagrada en la Constitución de 1991. Y resaltando que el nuevo texto constitucional es el resultado de un movimiento social, cultural, político y económico, de más larga duración, que va rompiendo gradualmente la concepción homogénea e indiferenciada de la nacionalidad colombiana, basada en la adscripción al bipartidismo, el monopolio del campo religioso en manos de la Iglesia católica y el mestizaje racial consagrados en la Constitución de 1886, el Concordato de 1887 y los pactos de misiones que les siguieron, como producto de una historia que se remonta a los tiempos de la Colonia española.

Estos monopolios -cultural, político, religioso- del bipartidismo y de la Iglesia católica se fueron desdibujando, gradual y paulatinamente, desde los inicios del siglo XX, con la aparición de importantes movilizaciones sociales y políticas al margen de los partidos tradicionales. Entre ellas, se destacó la movilización indígena de Quintín Lame en Cauca y Huila y la agitación social y política del Partido Socialista Revolucionario (PSR) en el mundo obrero y campesino, y también el surgimiento de un incipiente movimiento indigenista, muy ligado al nacimiento de las Ciencias Sociales en Colombia, del cual recuerdo los nombres de Juan Friede, Antonio García y Blanca Ochoa, con el riesgo de omitir nombres, que empezaron a crear conciencia sobre el problema indígena en el medio académico.

Sin embargo, la mayoría de estos desarrollos se vieron interrumpidos, opacados y subsumidos por los problemas de la llamada Violencia de los años cincuenta, y sólo comenzaron a resurgir bajo el Frente Nacional, vinculados especialmente al reformismo agrario de Lleras Restrepo y a la organización y el auge de la Asociación Nacional de Usuarios Campesinos (ANUC). En ese momento se hace evidente la importancia de funcionarios reformistas de corte tecnocrático, algunos de ellos cercanos a grupos de izquierda independientes. En este contexto se mueven algunos de los trabajos anteriores de Myriam Jimeno y otros similares, pero a ellos no se les ha hecho suficiente justicia en las ciencias sociales ni en los estudios sobre los movimientos sociales.

Esta línea de análisis aparece ahora continuada en este libro, Después de la masacre: emociones y política en el Cauca indio, escrito en colaboración entre Ángela Castillo, Daniel Varela y Myriam Jimeno, que proyectan sus anteriores preocupaciones al contexto de la violencia reciente para mostrar cómo una de las masacres de esa violencia reconfigura la identidad de un grupo indio, pero ya en un nuevo contexto nacional y mundial, marcado por la difusión internacional del discurso de los derechos humanos y del derecho internacional humanitario y el respeto por los derechos de las minorías de toda índole, especialmente de las culturales y étnicas. Este discurso, que muestra un aspecto positivo de la globalización creciente, ha ido permeando la conciencia de la mayoría de la población colombiana, no india ni afro, como se manifestó en la Constitución de 1991 y el apoyo electoral de poblaciones urbanas, blancas y mestizas a listas de las minorías étnicas.

En ese sentido, este libro destaca los recursos culturales y subjetivos puestos en juego por una comunidad Kitek Kiwe desplazada de manera violenta de la zona del río Naya, para recomponerse socialmente y crear una nueva comunidad, de sobrevivientes, basándose en el recurso a las políticas culturales y prácticas organizativas de la etnicidad india en Colombia, que recogen cuatro décadas de luchas, en especial en el Cauca, y se entroncan en prácticas que se remontan a los tiempos coloniales. Estas políticas y prácticas son analizadas en detalle en el capítulo segundo del libro, seguidas -en los capítulos tercero, cuarto y quinto- por el estudio de las prácticas organizativas de cabildos y asambleas, que sirven de base para realizar, en el momento actual, nuevas demandas de justicia. Esas demandas se apoyan en las fuerzas simbólicas acumuladas durante la segunda mitad del siglo XX, pero tienen relación con la historia anterior, tanto del siglo XIX como de los tiempos de la dominación española. Estos acumulados permiten construir hoy una narrativa de memoria enmarcada en la adscripción a una ciudadanía étnica, a partir de la puesta en escena de conmemoraciones que se encaminan a crear comunidades emocionales de sentido y pertenencia. Esas comunidades emocionales parten de una nueva categoría: la de víctima, que permite a la nueva comunidad confluir en el movimiento nacional de víctimas, que goza del apoyo internacional. Esto hace posible negociar con las instituciones del Estado, pues la inserción en un movimiento nacional más amplio, con vinculaciones internacionales, permite la incorporación de esta comunidad en la sensibilidad creciente en Colombia sobre estos problemas. Y aprovechar que esta sensibilidad mayor haya sido sancionada legalmente por la ley de víctimas de 2005, que expresa jurídicamente esta creciente toma de conciencia del problema por el conjunto de la sociedad colombiana.

Los vínculos afectivos de estas comunidades emocionales permiten tender puentes entre el sufrimiento subjetivo del dolor, individual o colectivo, y el dolor como sentimiento político compartido públicamente; se supera así el carácter individual o comunitario del sufrimiento para situarlo en el campo de la Política. Esto le proporciona proyección política, lo que permite a las comunidades negociar con la institucionalidad estatal al sintonizar sus problemas con el movimiento nacional e internacional de víctimas. En este sentido, la figura del testigo actúa como bisagra entre lo subjetivo particular y el campo compartidos de la escena pública: no se trata ya del caso particular de una comunidad en las montañas que rodean al Naya -refugio tradicional de ilegales- sino de un hecho que hace manifiesto un problema social inscrito en el contexto general de la violencia colombiana. Y se hace evidente que las víctimas no son entidades naturales sino construcciones histórico-culturales que surgen en el conflictivo proceso de construcción de la Nación colombiana.

Pero, como señalan los autores, esta proyección a la escena pública nacional se venía dando desde décadas atrás, desde la aparición del movimiento cultural del indigenismo latinoamericano y colombiano, que ha venido construyendo un discurso identitario del cual participan académicos e intelectuales, con activistas y políticos -indios y no indios-, y penetrando en la opinión pública del continente y del país, para favorecer la política cultural de las organizaciones indias.

Para esa proyección en la escena pública, el reconocimiento del derecho a la diferencia va más allá de una concepción esencialista y autárquica de la cultura, para asumir un lenguaje intercultural que permite interactuar con el conjunto de la sociedad colombiana para apoyar los reclamos de las comunidades indias frente al Estado. Esos procesos de interacción se enmarcan en el desarrollo de la construcción del Estado, que se concreta en la integración de los territorios, grupos sociales y étnicos, la construcción de identidades simbólicas y su integración en una nación heterogénea, basada en la interacción continua de regiones, subregiones, localidades y sublocalidades con el Estado central. Estos procesos de integración han sido de carácter violento en múltiples ocasiones, y muchas veces utilizados para legitimar el recurso a la violencia como instrumento político. En este sentido, es importante destacar, como hacen los autores del libro, el carácter pionero de los indígenas del Cauca frente a la injerencia de los actores armados en sus territorios.

Esto subrayaría, para los autores, la necesidad de superar el supuesto cultural, aceptado por muchos, de que somos un pueblo natural o esencialmente violento. Esta distancia frente a una supuesta “cultura de la violencia” resalta que esta creencia hace prácticamente imposible el progreso cívico de Colombia. Por eso, para superar el arraigo de esta creencia, la referencia a la apropiación de la categoría víctimas que reclaman sus derechos, tanto por parte de la población colombiana en general como de la indígena en particular, permite convocar una comunidad emocional que concreta la invocación abstracta al derecho internacional y nacional. Y, por otra parte, permite también recomponer al sujeto mediante la expresión compartida de su vivencia y su dolor, que se comunica ahora como crítica social para convertirse en instrumento político que refuerce la débil institucionalidad existente.

Finalmente, este recorrido por el libro de Myriam Jimeno y su equipo destaca la capacidad de la categoría víctimas para vincular los reclamos al respeto de la diferencia de las minorías étnicas con el campo de la política nacional e internacional, expresada en los discursos de los derechos humanos y del respeto a la diversidad étnica, aprovechando la naturaleza flexible y relacional de la adscripción étnica, lo mismo que la construcción cultural del indigenismo, que vincula a indios y no indios en la construcción de una nación heterogénea basada en la interacción continua entre culturas y regiones.

Comentarios

* Bogotá, 4 de mayo de 2015, comentario pronunciado con motivo del lanzamiento, en el marco de la Feria del Libro 2015.

Fernán E. González G. – PhD en Historia, Universidad de California en Berkeley, Estados Unidos. Entre sus últimas publicaciones está: Poder y violencia en Colombia. Bogotá: Odecofi-Cinep-Colciencias, 2014. Correo electrónico: [email protected]

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Como se constrói um santo: a canonização de Tomás de Aquino | Igor Salomão Teixeira (R)

TEIXEIRA Igor Salomao Jamaxi
TEIXEIRA I Como se constroi um santo JamaxiIgor Salomão Teixeira | Foto: AracneTV |

O fenômeno de santidade, marcado pela sua complexidade e pelo ânimo que alimenta a espiritualidade cristã ocidental, traz consigo toda a densidade que o comporta no que tange ao seu processo de desenvolvimento. Sendo o santo o expoente máximo, cuja vivência terrena lhe confere o acesso irrestrito ao plano sagrado, seu caráter intercessor o torna um importante elemento mediador entre a instância divina e o fiel.

Pensando-o como construção, isto é, imergindo mais profundamente em seu caráter sócio-cultural de concepção, ele é o produto de um intento individual ou coletivo. Nessa linha de raciocínio, ele segue um sentido de ser, encontrando seu delineamento a partir de determinados interesses. O santo reúne em si uma confluência de elementos característicos que ocupam, na lógica social na qual tem origem, finalidades específicas.

Levando em conta o acima exposto, trabalhar o processo de construção de um santo não se torna um exercício de simples execução, dado as múltiplas dimensões que envolvem seu desenvolvimento. Nesse sentido, Igor Salomão Teixeira encontra em sua empreitada um espinhoso, mas interessante caminho de buscar entender como se deu o processo de canonização de Tomás de Aquino e seus consequentes interessados.

Publicado no ano de 2014, o livro de Teixeira traz como objeto de pesquisa o desenvolvimento do processo de canonização de Tomás de Aquino, levado a cabo no papado de João XXII, bem como os possíveis interessados na santificação do dominicano. Trabalhando com o conceito de tempo de santidade (intervalo compreendido entre a morte da personalidade e sua efetiva canonização, de modo retroativo), o autor analisa comparativamente tais lapsos entre figuras contemporâneas e/ou próximas a Tomás de Aquino, buscando realçar semelhanças e diferenças entre elas e possíveis motivações ao resultado obtido no processo.

Sete questões norteiam o desenvolvimento da proposta: quem seriam os interessados na canonização de Tomás? Qual a santidade de Tomás de Aquino entre os dominicanos? Os interrogados conheceram Tomás de Aquino? Que relação tiveram com o candidato a santo? Qual a atuação do papa João XXII no processo? Ao final, canonizado, que santo é Tomás de Aquino? Como se deu a operação da construção narrativa que resultou na Ystoria? O que a canonização de Tomás de Aquino explica sobre o período e sobre as pessoas envolvidas? Outras tantas questões, de cunho secundário, são apresentadas, servindo de pontos de apoio para progressões mais detalhadas que auxiliam na costura do todo.

Procurando alicerçar seu posicionamento, buscando base no alinhamento ou refutação do que a bibliografia viabiliza ao tema, Teixeira estabelece diálogos com autores, como, por exemplo: Sylvain Piron, Andrea Robiglio, Roberto Wielockx, Isabel Iribarren, André Vauchez, etc. Em relação ao último, seu conceito de santidade seria contestado por Teixeira a partir da reflexão por ele feita tomando por base a noção de tempo de santidade, identificando com isso o que o processo de Tomás de Aquino carregaria de mais singular.

O livro se desenvolve basicamente em três capítulos, sendo cada um deles responsável por uma parte relevante na composição argumentativa do autor. O primeiro, voltado aos Inquéritos efetuados em 1319 e 1321, destaca, entre outros, uma não aproximação de João XXII com os dominicanos, dado sua negativa em iniciar o processo do também dominicano Raimundo de Peñafort, o que poderia indicar um possível favorecimento à Ordem. Nele também é destacada a predileção por um teólogo a um jurista, assim como era Peñafort. O alcance da santidade de Aquino é apresentado como sendo circunscrito ao local de seu sepultamento, assim como também é realçado o fato de as Ordens religiosas não comporem o corpo massivo nas oitivas, sendo os Pregadores inclusive menos numerosos que os cistercienses.

O segundo capítulo é direcionado para a questão da santidade de Tomás de Aquino em relação à Ordem dos dominicanos. Nele, Teixeira conclui que não havia uma unanimidade no que diz respeito ao posicionamento da Ordem em relação a Tomás de Aquino, sendo as variações produto dos diversos momentos experimentados pelos Pregadores. Nesse sentido, ganha ênfase o fato de no contexto da canonização nem todos estarem de acordo com os posicionamentos de Aquino. Em linhas gerais, por mais que o resultado comparativo efetuado entre as hagiografias de Pedro Mártir, Domingos de Gusmão e Tomás de Aquino indicassem um alinhamento deste ao propósito dominicano, assim como os demais, a carência de milagres e o desenvolvimento de um culto na Sicília dariam indícios de uma canonização que excede os interesses dominicanos.

Já no terceiro capítulo, trilhou-se o caminho de trabalhar o reconhecimento papal da santidade de Aquino a partir de aspectos teológicos. Havia, segundo Teixeira, um interesse, por parte do papado, em promover a canonização do dominicano em virtude da disposição existente entre ambos em relação à questões teológicas pontuais que favoreciam João XXII.

As necessidades alimentadas por um contexto turbulento (século XIV), no qual a autoridade papal se via em meio a constantes reviravoltas, fez com que João XXII, ao assumir um trono vacante (desde a morte de Clemente V, em 1314), iniciasse uma série de reformas, o que teria elevado as finanças papais. As diretrizes centralizadoras implementadas por ele, expropriando bens, aumentando taxas, aumentariam ainda mais o patrimônio eclesiástico. Para Teixeira, a canonização de Tomás de Aquino seria motivada dada a posição do teólogo em relação à pobreza radical da Igreja, sendo ele contrária a ela. Tal linha de pensamento, alinhada aos interesses de João XXII, teria feito com que este, buscando legitimação de suas ações, promovesse o processo de reconhecimento da santidade de Aquino.

Em linhas conclusivas, respondendo às questões principais de seu livro, destaca o autor que três seriam os possíveis interessados na canonização de Tomás: os dominicanos, sua família de nobres da região de Nápoles e o Papa João XXII, sendo o último o que de fato a procedera. Em relação à santidade de Aquino junto aos dominicanos, o autor percebe um posicionamento discreto destes no processo de canonização, com certa divergência dentro do grupo acerca das linhas de pensamento tomistas. No que diz respeito ao processo de canonização, poucos foram, dos que participaram do Inquérito, os que tiveram contato com Tomás de Aquino em vida.

A rapidez da canonização de um teólogo e não de um jurista, entre outras posições, desponta como resposta à atuação do papa João XXII no processo. Ao que se relaciona ao santo que é Aquino, bem como à construção narrativa que originou a Ystoria (sua hagiografia, de Guilherme de Tocco), destaca Teixeira que o santo tinha todos os caracteres dos demais santos da “Igreja Católica” (castidade, virgindade, virtuosidade, etc.), sendo a obra elaborada a partir de uma inserção de seu autor, Guilherme de Tocco, na própria narrativa, destacando os elementos que dariam conta de confirmar a santidade em proposta.

No que tange ao que a canonização de Aquino explica sobre o período e as pessoas envolvidas, o autor destaca as tensões existentes entre o papado e as Ordens religiosas, e mesmo entre estas, nos séculos XIII-XIV. Explica que a criação de uma crença e seu devido reconhecimento leva em conta um emaranhado complexo de elementos de ordem política, social, doutrinária, etc. Tais elementos formariam uma conjuntura que favorece os posicionamentos tomados para o desenvolvimento do processo e para a canonização.

O livro de Igor Salomão Teixeira, ao trabalhar os liames que envolveram a canonização de Tomás de Aquino, levando em conta os interesses envolvidos, traz a necessidade de pensar o próprio processo não unicamente como fonte para o estudo da santidade, mas primeiro como peça jurídica dentro de uma lógica que transcende exclusivamente esta questão. Só assim, os interesses envolvidos no reconhecimento da santidade puderam ficar evidentes, dando noção dos intentos que poderiam mover os agentes em tais processos.

Assim, ao trabalharmos com o fenômeno de santidade, seja através do estudo dos inquéritos desenvolvidos, ou das produções hagiográficos em si, entre outros, levando em conta o sentido dado a partir da construção discursiva, a necessidade de considerar as múltiplas dimensões que envolvem a constituição do santo se fará presente. Nesse sentido, pensar a densidade que os estudos hagiográficos, por exemplo, possam conter, considerando-os também como um elemento que compõe a peça jurídica, elevam em importância o teor narrativo que a obra traz consigo, demandando do pesquisador um fôlego a mais para além da pura santificação.

Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira – Mestrando PPGHC-UFRJ/Bolsista Capes. E-mail: [email protected]


TEIXEIRA, Igor Salomão. Como se constrói um santo: a canonização de Tomás de Aquino. Curitiba: Prismas, 2014. Resenha de: OLIVEIRA, Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.15, n.2, p. 229-233, 2015. Acessar publicação original [DR]

História, Memória e Comemoração / Revista Brasileira do Caribe / 2015

Em março de 2015 a Revista Brasileira do Caribe divulgou uma convocatória de artigos para compor um dossiê dedicado ao tema História, Memória e Comemoração. Nossa intenção era problematizar uma ideia do historiador Pierre Nora – segundo a qual estaríamos imersos na Era da Comemoração – testando sua aplicabilidade ao espaço/tempo caribenho, uma vez que o espaço, o momento, o contexto e as razões dessa ideia são visivelmente eurocêntricos, uma reavaliação dos 200 anos da Grande Revolução de 1789 quando o socialismo dos países do Leste começava a se desconstruir e se acelerava o processo de unifi cação europeia.

Não há mais lugar para o espelhismo que hegemonizou o século XIX e uma boa parte do século XX, assumindo A Era da Comemoração como uma categoria universal imediata. No entanto, não há como ignorar, por um lado, a presença histórica de um considerável contingente criollo da população, distribuído desigualmente entre as várias partes do continente, um dado empírico relevante que não pode ser ignorado – com uma notável exceção, o Haiti, onde os brancos foram substituídos pelos indigènes. E, principalmente, não há como negar a existência empírica do Estado (concebido segundo padrões internacionais ou, se quisermos, eurocêntricos) e a importância de estruturas e projetos estatais conformando a realidade que pretendemos encarar.

Nossa convocatória assumia que, tanto na América Latina como possivelmente no Caribe, aquele futuro desencantado que Pierre Nora vislumbrava na época do Bicentenário da Revolução Francesa não tem lugar no Bicentenário das Independências latinoamericanas (e também, talvez, nas principais comemorações caribenhas?). Aqui, poderosas utopias (bem como seus fortes adversários) ainda operam, embora o que mais comova milhares dentre nós seja a procura da verdade no passado.

Antecipávamos que seria quase inútil procurar em todo o Caribe insular por reverberações do Bicentenário da Independência da América Latina, com duas notáveis exceções: o Bicentenário da Independência do Haiti – tragicamente engolfado pelo terremoto de 2010 – e o Cinquentenário da Revolução Cubana, apoiado no bolivarianismo do Bicentenário venezuelano.

Ocupando-se do tema “O bicentenário bolivariano no eixo VeneCuba”, o artigo do historiador brasileiro Jaime de Almeida identifi cou um projeto audacioso de articulação política entre nações que, alicerçado por uma conjuntura mundial favorável aos países exportadores de commodities, especialmente o petróleo, entrelaçou duas comemorações de ordem e origem diferentes: dois séculos da independência da Venezuela e meio século de socialismo em Cuba. A projetada federação ou confederação entre os dois países era o eixo, o coração pulsante de um imenso e heterogêneo conjunto em que se articulariam o Caribe insular e a América do Sul (denominação que explicita a ausência do México). Os nomes adotados pela ideia de futuro anunciado nessa dupla comemoração permanecem vigentes: ALBA e Socialismo do Século XXI. No entanto, o artigo sugere que a morte do presidente Hugo Chávez, a queda abrupta dos preços internacionais do petróleo e a conquista da maioria parlamentar pela oposição na Venezuela marcam uma quebra de ritmo no processo de união entre os dois países. O sinal mais evidente é a recente normalização das relações entre Cuba e os Estados Unidos.

O Bicentenário da Independência da América Latina, aberto em 2009 na Bolívia, continua em desenvolvimento e só começará a encerrar-se com uma nova rodada de comemorações que começarão na Argentina em 2016 e culminarão na Bolívia em 2025. No primeiro desses países, a conjuntura política se alterou há poucos meses e tudo indica que o ciclo comemorativo se encerrará com um discurso praticamente oposto ao discurso peronista de abertura em 2010. No segundo, ainda não se sabe se Evo Morales, reeleito para presidir o país até 2020, ainda estará – como pretende – no comando do país que comemorará o desfecho da batalha de Ayacucho em 2025.

O dossiê prossegue com dois artigos focalizando dinâmicas festivas na região caribenha da Colômbia que, ao introduzir como que um contraponto, contribuem para nossa tentativa de desenhar uma percepção geral da dinâmica do processo comemorativo no Caribe contemporâneo. O historiador brasileiro Milton Moura apresenta “O drama étnico e político do 11 de novembro em Cartagena de Indias”. Começando com um balanço dos estudos que problematizam festa, etnicidade e política, focaliza a história da principal comemoração cívica da principal cidade caribenha da Colômbia.

Tomamos a liberdade de sugerir aqui ao leitor que atente para uma transição. Vimos que o artigo de Jaime de Almeida, focado no dinamismo do projeto de união entre Cuba e Venezuela para a construção do Socialismo do Século XXI, concentra a atenção no protagonismo de homens de Estado como Hugo Chávez e Fidel Castro – dois indivíduos excepcionalmente poderosos que nenhuma historiografi a poderia ignorar: um deles permanentemente em cena perante as massas venezuelanas, o outro chefi ando por mais de meio século a burocracia do Estado e do Partido.

Já o artigo de Milton Moura se concentra no protagonismo da sociedade local e regional nas festas de Cartagena de Índias, procurando pelas mudanças recentes observadas na sua confi guração. Destaca em especial a relação entre a participação dos jovens e adolescentes nos festejos da Independência e sua história, fortemente marcada pelos confl itos armados no interior da Colômbia. Assim, temos a oportunidade de aproximar-nos a algo que, embora sugerido no texto de nossa convocatória, não pôde ser sufi cientemente contemplado no artigo de Jaime de Almeida: se o Socialismo do Século XXI fi gura no discurso do Bicentenário como a mais poderosa utopia, o arti go de Milton Moura e, como veremos, mais ainda o de Daleth Restrepo Pérez, trazem para de perto de nossos olhares os mais fortes adversários dessa utopia.

Milton Moura procura aproximar-se com sensibilidade ao ponto de vista dos desplazados (migrantes forçados) produzidos por “uma guerra civil que se estende por pouco mais de 50 anos entre setores populares compostos na sua maioria de camponeses e habitantes de pequenas cidades, de um lado, e guerrilheiros, narcotrafi cantes e milicianos paramilitares, de outro” que se acumulam nas grandes cidades colombianas como Cartagena de Indias. Com esses novos moradores urbanos, a polarização social vem adquirindo novas confi gurações, com novos atores coletivos que buscam se expressar no universo da Festa, colidindo “com as formas tradicionais legitimadas diante das elites ou outras formas que, se não propriamente legitimadas, eram toleradas”.

Retomaremos a resenha do artigo de Milton Moura depois de abordar o artigo da historiadora colombiana Daleth Restrepo Pérez que põe o dedo na ferida de seu país: “La cultura festiva del Caribe colombiano en la encrucijada de la guerra: fi esta y paramilitarismo en Necoclí-Antioquia”. Antes que pensemos numa paisagem tipicamente montanhosa do interior da Colômbia, a autora nos situa justamente no primeiro assentamento colonial do litoral caribenho da América do Sul, ocupado pelo povo Kuna Tule que ensinaria a Francisco de Balboa o caminho para o Mar do Sul. [1] Daleth Restrepo Pérez analisa a transformação da cultura festiva em Necoclí, província antioquenha de Urabá, num contexto de extrema violência e controle social estabelecido por forças paramilitares. Sua inquietação é a relação entre o poder e o simbólico: a violência simbólica, o lugar e a territorialidade.

O artigo problematiza a cultura festiva necocliseña a partir das identidades étnicas, da memória e da história local. O retrato é trágico: entrelaçados, o confl ito armado e o paramilitarismo transformam e degradam as dinâmicas sociais tradicionais da comunidade, particularmente no campo das práticas festivas, dancísticas e musicais. Felizmente, o artigo indica que as respostas sociais frente a esta nova ordem social em construção se expressam sutilmente de dentro da própria festa, apoiadas na tradição e na reconstrução de comunhão e comunidade.

É muito impactante a coincidência entre a temporalidade dos processos sociais e culturais do Caribe colombiano, estudados por Milton Moura e Daleth Restrepo Pérez, e a temporalidade estudada por Jaime de Almeida. Na Colômbia que celebra o Bicentenário da Independência, fi nalmente se torna possível a superação de um confl ito de meio século – confl ito que não deixou de sincronizar-se com a perspectiva bolivariana, como sabemos.

Como resultados parciais das negociações entre o governo da Colômbia e as FARC, iniciadas com a ajuda dos presidentes Hugo Chávez e Raúl Castro, já se esboçam processos que não podem mais ser vistos como utopias distantes. A Comissão Histórica da História do Confl ito e suas Vítimas, fruto do esforço de diversos setores do governo e da sociedade civil colombianos para superar o drama da guerra civil, ajuda na implementação de políticas governamentais de reparação e no enfrentamento do preconceito e discriminação contra os desplazados estigmatizados pela vulnerabilidade.

Encerrando o dossiê, o historiador haitiano Vertus Saint- Louis procede a uma minuciosa radiografi a do culto cívico à memória de Jean-Jacques Dessalines, começando pelo exame das possíveis razões de seu assassinato por seus próprios companheiros em 1806. Este esforço investigativo nos parece notável por não deixar-se envolver em esquemas de explicação que reduzem os problemas do Haiti às pressões externas. No processo da revolução haitiana e construção da nação, Vertus Saint-Louis mostra que além dos confl itos entre senhores e escravos, e também entre negros e mulatos livres – tema este que ele abordou em profundidade num artigo publicado no Brasil [2] – não se pode ignorar os frequentes confl itos entre chefes negros e mulatos – nascidos no Haiti, que se percebiam como indigènes – e os negros ditos boçais, designados como congos, africanos, marrons, ou principalmente cultivateurs.

A memória de Dessalines foi reabilitada no Haiti em 1845, pouco depois que a França festejava com com todas as honras os restos mortais de Napoleão Bonaparte (1840) e a Venezuela fazia o mesmo com os de Simón Bolívar (1842). Vertus Saint- Louis mostra com clareza que foi sob a pressão crescente da grande massa negra da população que os mulatos iniciaram o processo de reabilitação da memória de Dessalines, fi nalmente consolidado pelo imperador negro Soulouque que instituiu a festa nacional dos Antepassados (2 de janeiro de 1854). Aliás, é nessa conjuntura que começa a fl orecer a historiografi a haitiana, bifurcada em duas vertentes – negra e mulata – que persistem até a atualidade.

Esse artigo poderá ser muito útil àqueles que se interessam pela longa duração da história do Haiti, principalmente por fornecer abundante informação coletada em arquivos haitianos e estrangeiros e na historiografi a local. Entendemos como uma de suas principais contribuições a aproximação em profundidade aos problemas e conjunturas do século XIX num Haiti visto por dentro, um tempo pouco conhecido no Brasil, já que a bibliografi a disponível geralmente se concentra nas razões e sentido da revolução e em seguida mergulha nos problemas atuais.

Por um feliz acaso, dois dos artigos avulsos que estamos publicando neste número da Revista Brasileira do Caribe também se referem ao Haiti, de modo que o nosso dossiê sobre História, Memória e Comemoração se prolonga para além do seu próprio recorte.

A socióloga Pâmela Marconatto Marques e o antropólogo José Carlos Gomes dos Anjos, brasileiros, publicam “Quem quer ser Toussaint Louverture? Banalização e silenciamento na produção de narrativas ofi ciais sobre a história haitiana”. O título chama nossa atenção para o personagem mais identifi cado no Brasil (e possivelmente no mundo) com a revolução haitiana.

Diferentemente do caminho adotado por Vertus Saint-Louis, que como vimos concentrou-se nas políticas de memória (e de esquecimento) relativas a Jean-Jacques Dessalines – em torno de quem giram hoje quatro das cinco festas nacionais haitianas – ao longo de 200 anos, os autores fazem um vasto e detalhado painel que abarca as distintas narrativas – principalmente as hegemônicas – que vêm sendo formuladas acerca do Haiti no mesmo período, tanto no Haiti como no exterior.

Por sua vez, o sociólogo porto-riquenho Gabriel Alemán Rodríguez traz uma excelente contribuição com um criterioso estudo das ideias de Jean-Price Mars, importante intelectual haitiano (nascido em 1876), expostas num livro pouco conhecido na América Latina, publicado em 1919: La vocation de l´élite. [3] Médico, tal como são tantos outros intelectuais de seu país, Price-Mars interpelava diretamente as elites haitianas do início do século XX, convocando-as a assumir sua vocação e papel na organização e condução do coletivo social. Seu objetivo explícito era reconstruir um novo nacionalismo haitiano capaz de restabelecer moralmente o povo e restaurar a independência nacional. Gabriel Alemán Rodríguez indica uma ironia, os ideólogos do intervencionismo norte-americano chegaram a recorrer aos textos que Price-Mars vinha publicando como justifi cativa para a intervencção militar de 1915. Em meio à crise moral produzida pela intervenção, Price-Mars reuniu os seus textos e publicou-os em 1919.

Para se ter uma ideia do radicalismo da leitura crítica do país feita por Jean Price-Mars no coração do tempo comemorativo do Centenário das Independências, há 100 anos atrás: a própria abolição da escravidão que tanto sangue havia exigido, teria produzido apenas uma mudança superfi cial, dando lugar a uma forma híbrida de escravidão com uma simples troca de pessoas e de responsabilidades. Expulsos os senhores brancos, a nova sociedade teria conservado de forma insidiosa e tácita o sistema de classes da antiga colônia. E Price-Mars não estava sozinho, se nos lembrarmos das duras palavras do também médico Rosalvo Bobo rechaçando qualquer comemoração do Centenário.

Como se vê, nesse entrecruzamento de leituras sobre o Haiti temos uma boa oportunidade de pensar o Haiti por dentro e não somente a partir daqui de fora onde estamos.

Os demais artigos nos convidam a circular por outros temas, espaços e problemas caribenhos. O artigo das historiadoras mexicanas María del Rosario Rodríguez e Olimpia Reyes “La doctrina Monroe ¿una política caribeña? Las percepciones de Estados Unidos y Brasil” provocará talvez alguma supresa entre os leitores brasileiros, mostrando com profusão de dados o alinhamento explícito da política externa republicana brasileira com o intervencionismo norte-americano no Caribe – voltado naquela altura, principalmente para o Panamá, Cuba e Porto Rico – durante a Terceira Conferência Panamericana. Celebrada no Rio de Janeiro, o evento foi, muito signifi cativamente, a inauguração do Palácio Monroe, que havia sido criado e exibido dois anos antes na Exposição Mundial de Saint Louis nos Estados Unidos. Os dois principais personagens observados quase passo a passo pelas autoras, que pesquisaram em arquivos mexicanos e norte-americanos, são Joaquim Nabuco (embaixador brasileiro em Washington) e Elihu Root (secretário de Estado dos Estados Unidos).

Com “A eleição de Barack Obama vista da Martinica: expectativas e intuições”, Luana Antunes Costa – pós-doutoranda em Letras Vernáculas, especialista em literaturas africanas e afro-brasileira – apresenta a leitura densa e poética de uma carta aberta enviada pelos literatos martiniquenhos Edouard Glissant e Patrick Chamoiseau ao recém-eleito presidente Barack Obama em 2009. A carta se chama A intratável beleza do mundo.

Que nos seja permitida mais uma licença. Tanto a carta de Glissant e Chamoiseau, como a delicada análise feita por Luana Antunes Costa neste artigo avulso trazem muito oportunamente uma ideia-chave que de vez em quando poderia ter afl orado nas entrelinhas dos textos sobre o tempo do nosso Bicentenário – e que afl ora aqui, graças ao seu artigo.

Tal ideia, resumida por Patrick Chamoiseau e recolhida pela autora, diz para quem sabe ouvir: E esta realidade, esta ideia de relação, esta poética da relação é alguma coisa que nos permite inventar não uma alternativa ao capitalismo, não simplesmente um regulamento dos confl itos, mas nos permite imaginar um outro mundo. E a emergência simbólica de Obana é que ela torna possível. Todo o possível… Ela torna possível todo o possível. Tal emergência política me parece, aqui, absolutamente considerável.

Pensando em outros mundos possíveis, o pintor mexicano Humberto Ortega Villaseñor – especializado nos campos combinados de fi losofi a, comunicação, arte, cultura, criatividade plástica e literária – e o filósofo eslovaco Tibor Máhrik publicam aqui o artigo “The Search for Genuine Self in the Caribbean Cultural Horizon and Mesoamerican Civilization”. Podemos dizer que este artigo vem trazer, produto das milenares sabedorias nahua e maia, temperado com os saberes/sabores migrantes do Caribe ancestral, um bálsamo para as dores atrozes que o artigo de Daleth Restrepo Pérez nos mostra em Necoclí, coração da Abya Ayala dos Kunas Tule e encruzilhada do mundo entre o Caribe, o continente e o Pacífico.

Fechando este número da RBC, a educadora e museóloga Joseania Miranda de Freitas e o historiador Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha, brasileiros, comparam (em espanhol) a obra de dois intelectuais afro-latino-americanos em “Memorias afrodiaspóricas en diferentes territorios caribeños y latinoamericanos en las perspectivas de Manuel Raimundo Querino y Manuel Zapata Olivella”. Os autores do artigo identifi cam no brasileiro Manuel Raimundo Querino (que viveu na Bahia, 1851-1923) e no colombiano Manuel Zapata Olivella (nascido no Caribe colombiano, morreu em Bogotá; 1920-2004), que viveram em épocas bastante distanciadas, a mesma inquietação: em quais suportes os africanos deportados para a América puderam transportar e transmitir seus registros do passado necessários para viver os novos tempos a que estavam condenados, a não ser os seus próprios corpos humanos sofridos e desterritorializados? Agradecemos o apoio constante de Olga Cabrera nas tarefas necessárias para a preparação de mais um número da Revista Brasileira do Caribe.

Notas

1. A propósito, sobre os Kuna Tule da Colômbia e Panamá atualmente, v. Jaime de Almeida. A arte encantadora das mulheres kunas. Postais ano 3 n. 4, 2015, p. 139-147. Disponível na web: http://issuu.com/culturacorreios/docs/ revistapostais_4_2015.

2. Vertus Saint-Louis. A Guerra do Sul e as apostas do comércio internacional. Textos de História n. 13, n. 1-2, 2005, p. 37-52. Disponível na web: http://periodicos.unb.br/ index.php/textos/article/view/6038.

3. Price-Mars tornar-se-ia muito conhecido (e reconhecido) internacionalmente pela obra Ainsi parla l´oncle, publicado em 1928.

Jaime de Almeida


ALMEIDA, Jaime de. História, Memória e Comemoração. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.16, n.31, jul./dez. 2015. Acessar publicação original. [IF].

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Literatura e ética: da forma para a força – KLINGER (A-EN)

KLINGER, Diana. Literatura e ética: da forma para a força. Rio de Janeiro: Editora da Rocco, 2014. Resenha de ANDRADE, Antonio. A força ética de uma reflexão. Alea, Rio de Janeiro, v.17 n.2, july/dec., 2015.

O livro Literatura e ética: da forma para a força, de Diana Klinger – lançado pela coleção Entrecríticas (coordenada por Paloma Vidal) – situa, a meu ver, os leitores e pesquisadores da literatura contemporânea diante da problemática mudança de paradigmas que o declínio de valores éticos e estéticos da modernidade provoca. A passagem do campo da autonomia da obra de arte – do objeto literário, ficcional ou poético – para o “pós-autônomo” – termo utilizado por setores da crítica dedicados à reflexão sobre a produção contemporânea que se afasta das ideias de literariedade e autorreferencialidade do texto literário para aderir a um modo de escrita que se faz “em continuidade com os dados da realidade” (KLINGER, 2014: 41) – implica, para esta ensaísta, a necessidade de se repensar pressupostos teóricos que instrumentalizam o estudioso da literatura, com vistas a estabelecer uma rede de conceitos e estratégias de leitura capazes de funcionar como critérios de escolha e positivação de autores e textos.

Esse movimento do discurso crítico-ensaístico de modo algum é simples. Na verdade, constitui no texto de Diana um profundo empenho de ressubjetivação que se produz por meio de mecanismos de endereçamento, haja vista a mescla do gênero epistolar com o ensaio nas três cartas à amiga Luciana Di Leone, que marcam momentos fundamentais do livro: pela forte presença do autobiográfico na escrita crítica, configurada pela articulação da narrativa memorialística com a argumentação teórica ou analítica; pela construção de um lugar de autoria que joga, de maneira proposital, com referências dialógicas de ordens distintas ao desdobrar, por exemplo, reflexões em torno de poemas ou estudos críticos produzidos por amigos, alunos e colegas, ao lado de citações e discussões sobre Nietzsche, Adorno, Benjamin, Deleuze, Blanchot etc. Tal empenho não se produz, sem dúvida, isento de contradições. Ao buscar uma espécie de tom “menor” para seu ensaio, incorre na negação (psicanalítica) daquilo que se é, ou se deseja: “Os textos sobre esses autores não são de crítica literária nem têm essa pretensão. São anotações de pensamentos suscitados por essas leituras” (KLINGER, 2014: 14 – grifos meus). Não à toa, em alguns momentos centrais do texto, a autora não se vexa em assumir a enunciação assertiva, e até certas construções de caráter prescritivo, no afã de conduzir/persuadir seus leitores/destinatários: “A literatura não é uma força, mas é preciso transformá-la numa força” (ibidem: 191); “O que a poesia de Tamara encena é […]” (KLINGER, 2014: 107 – grifos meus). E, decerto, devido à percepção dessa contradição, enxerga a necessidade de modalizar suas formulações, que, se por um lado, “apostam” na recuperação ressignificada da ideia de resistência da literatura, por outro compreendem a relatividade do alcance da potência discursiva do literário – a qual parece advir de sua própria fragilidade: “Talvez seja possível, no entanto, apostar numa forma de resistência mais ‘fraca’ ou sutil” (KLINGER, 2014: 162).

Buscando através dessas sutilezas uma forma de expressão crítica que se coadune à ideia de crise, Diana tenta em seu texto configurar, retomando Barthes, o lugar tensivo de uma meia distância, isto é, de um distanciamento crítico “que não quebre o afeto” e que seja atravessado pela “delicadeza” (KLINGER, 2014: 118). Isso significa, em outros termos, ruptura com os valores de objetividade e frieza que tanto o estabelecimento de critérios de correferencialidade e padrões esteticistas canônicos da arte autônoma quanto os parâmetros generalistas da aparente “chave de leitura” concebida pela perspectiva pós-autônoma parecem projetar. Em oposição a eles, seu olhar crítico mobiliza-se em torno das ideias de singularidade, diferença e excepcionalidade, locupletando, por sua vez, o forte anseio por modos “singulares” de expressão e de subjetivação configurados pelos discursos teóricos relacionados às questões do contemporâneo. Cito, como exemplo, sua justificativa para a eleição dos autores focalizados no livro (a saber: Cortázar, Barthes, Kamenszain e Bolaño): “Trago Bolaño aqui não apenas porque ele me ajuda a pensar a vivência do medo. Também porque ele, como os outros autores a que me referi antes, sugere em sua obra uma aproximação com a própria vida que não tem nada a ver com propostas performáticas e autoficcionais de sua geração” (KLINGER, 2014: 134).

Nota-se, então, que nesse recorte está embutida certa “queixa” – a meu ver, também, bastante necessária – em relação à replicação de modelos estéticos que se tornaram hegemônicos na literatura atual. Entretanto, não se pode negar que suas escolhas, pelo menos as mais aprofundadas, se assentam sobre nomes consagrados do passado e do presente, cujo valor já constitui uma espécie de “indubitável”. Desse modo, não haveria já um forte processo de singularização desses autores e de seus textos? Se concordamos que sim, é possível compreender, então, que a tarefa crítica é menos a de desvelar singularidades camufladas em meio ao “semsentido” – para usar um termo empregado pela ensaísta -, e mais a de mediar a relação de seus interlocutores com essas vozes “singulares”.

Outro ponto que se explicita na construção de seu critério eletivo é a importância da relação literatura e vida, que fomenta e atravessa toda a discussão em torno do afeto e da ética no livro. Tal relação serve-lhe de base para pensar a escrita “como uma prática ou ritual, uma forma de estar no mundo” (ibidem: 49), concebendo-a assim fora do modelo estético da representação. E, também, para pensar a leitura, ou melhor, o modo como o sujeito pode ser afetado pelos textos, aproximando pois literatura e leitor no complexo processo de procura do sentido da vida. A condição paradoxal, no entanto, dessa busca é que ela se faz justamente negando tudo aquilo que se considera banal, tudo que estaria submetido à ordem do capitalismo cultural, ou preso às diretrizes da “sociedade de controle”, para usar um conceito deleuzeano discutido pela autora. Nesse sentido, a afirmação da vida, bem como a inscrição da ética no âmbito da imanência – de acordo com os pressupostos filosóficos que engendram aí a articulação entre Spinoza, Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari – interpelam intelectuais como Diana a assumir um posicionamento contradiscursivo, avesso ao funcionamento comum da linguagem e aos dispositivos habituais de produção dos sentidos – sobretudo os que se ligam ao poder midiático.

“Da forma para a força” é a formulação postulada já no subtítulo da obra para sinalizar o movimento de passagem de uma instância de reflexão sobre o biopoder para a proposição de uma biopotência afirmativa: força de resistência não imobilizada pelo espectro das representações, e sim propulsora de “práticas alheias aos modos de subjetivação estatal” (KLINGER, 2014: 81), com o intuito de “construir um plano de consistência para afetos que não estejam atravessados pela axiomática da troca” (KLINGER, 2014: 71). O trajeto argumentativo de Literatura e ética é, portanto, o de afirmação desse lugar singular da potência: o que seria, em si mesmo, já uma atitude ética. Contudo, não só o fato de tal atitude ser pensada a partir da dicotomia entre gestos especiais, repletos de “intensidade”, e práticas cotidianas, ainda mais esvaziadas de sentido se vistas com as lentes desta ótica filosófica, mas também a consciência de um iminente fracasso da literatura nesse intento de criar e difundir práticas que liberem o desejo, os afetos e as relações dos aparatos culturais e discursivos que os (re)capturam a todo instante, deslocam qualquer grau de certeza em relação à noção de ética para o espaço de um interrogante: o que é ético? Esta atitude é realmente ética?

Percebe-se, em diversos momentos do texto de Klinger, a dimensão problemática dessa dúvida. Não à toa, no capítulo “O remorso da literatura” assinala-se a questão da culpa como aporia constitutiva tanto da arte autônoma quanto da pós-autônoma. Já em “O sentido da escrita”, a ensaísta trata de dar sustentação teórica à afirmação da ideia de potência e à aposta na literatura como forma de promessa, que, conforme demonstra sua releitura de Benjamin, deve ser contínua e simultaneamente desauratizada e apropriada como meio de busca do sentido em face do vazio e da banalidade. A construção dessa perspectiva, que para alguns leitores pode soar como demasiado positiva, é dialetizada pelo capítulo “Em nome próprio”, em que, por meio da incursão no terreno autobiográfico, tensamente relacionado à leitura de Tamara Kamenszain, Diana produz uma interessante reflexão a respeito das noções de fuga, esquecimento e sobrevivência, chamando a atenção para as possibilidades de proposição de novos agenciamentos políticos a partir da perda.

Todo o desenvolvimento dessa discussão parece impelir Diana a endossar uma visão filosófica negativa da ideia de comunidade, na clave de Bataille, Nancy e Blanchot. Isso é bem perceptível em “A comunidade em suspenso”, capítulo que, se por um lado revela grande fôlego teórico da autora/pesquisadora, não obstante conduz, por outro, a um fechamento da leitura, na medida em que desinveste os traços identitários que constituem os diversos tipos de arranjo comunitário de qualquer potencialidade possível, chegando a realizar afirmativas como: “o que os seres compartilham é a diferença que os singulariza” (KLINGER, 2014: 111). A meu ver, este tipo de frase tende a certa clicherização na esfera crítico-acadêmica. É preciso, portanto, ler nas dobras da contradição que esse discurso deixa escapar a produtividade da tensão entre fuga e pertencimento: note-se que, embora a ensaísta seja uma argentina radicada no Rio de Janeiro, suas escolhas afetivas de leitura nesse livro revelam a priorização de escritores também hispânicos – dois argentinos (Cortázar e Kamenszain) e um chileno (Bolaño) que, como ela, viveu durante muito tempo fora de seu país natal. E é justamente em “Queime os livros!”, capítulo onde analisa a obra de Bolaño, que o texto de Diana alcança grande capacidade de captura do leitor: após belo momento autobiográfico sobre a violência e o medo que ocupam suas memórias de infância e juventude na Argentina, a autora desenvolve a seguinte reflexão no bojo de sua leitura do romance 2666: “A literatura está imersa nesse território da violência, nesse deserto onde só cabe desaparecer; por outro lado, a literatura é o único território” (KLINGER, 2014: 140), reafirmando assim sua aposta no literário como espaço de potência ética.

Essa perspectiva ainda se desdobra no capítulo “Spinoza e a potência da literatura”, no qual se oferece ao leitor um bom estudo sobre os modos de recuperação e reverberação do pensamento spinoziano na filosofia contemporânea (Negri & Hardt, Deleuze & Guattari, sobretudo), e em “Uma pequenina luz”, capítulo em que chama a atenção para o caráter dúplice que o poder de resistência da literatura enceta: “força ambígua, ao mesmo tempo desmesurada e desesperançada. Essa frágil força do desejo” (KLINGER, 2014: 183-184). Porém, é sob essa luz pequenina, sob essa força frágil, que Diana ensaia o risco de uma escrita original e instigante, que, em vez de partir do prognóstico apriorístico da impotência do discurso literário na contemporaneidade, investe na indagação dessa potencialidade problemática, perguntando-se, ao longo de todo o percurso: “o que pode a literatura?” (KLINGER, 2014: 135).

Antonio Andrade – Professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como docente permanente do programa de pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Desenvolve pesquisas nas áreas de análise do discurso, formação de professores e literatura contemporânea. Publicou diversos artigos em livros e revistas acadêmicas, dentre os quais se destacam “Diálogos e tombeaux: Haroldo de Campos, Néstor Perlongher e Severo Sarduy” (Gragoatá, v. 31) e “Literatura e comunidade na formação de professores de Espanhol/LE (Abehache, v. 4). E-mail: [email protected].

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Monstros e arquivos. Textos críticos reunidos – ECHEVARRÍA (A-EN)

ECHEVARRÍA, Roberto González. Monstros e arquivos. Textos críticos reunidos. Organização e apresentação: GONZÁLES, Elena Palmero. Tradução de Ary Pimentel. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014. Resenha de: GUTIÉRREZ, Rafael. Alea, Rio de Janeiro, v.17 n.2, july/dec., 2015.

A publicação pela primeira vez, no Brasil, de um conjunto de textos do crítico literário cubano e professor da Universidade de Yale Roberto González Echevarría permite ao leitor brasileiro um percorrido detalhado por autores, temas e obsessões críticas em torno da literatura hispano-americana, assim como algumas de suas conexões com a literatura espanhola.

De Cervantes a Severo Sarduy e Alvaro Mutis, passando por Calderón, Góngora, Lezama, Carpentier, Borges e García Márquez, os ensaios de González Echevarría aprofundam na análise textual das obras destes autores, revelando diversas interpretações, influências e conexões inusitadas. Embora seu enfoque seja, primordialmente, sobre as literaturas hispano-americanas e espanhola, tem um destaque especial sua aproximação a Euclides da Cunha e Os sertões, obra-chave em um de seus textos críticos mais conhecidos Myth and archive: a theory of latin american narrative (1990) e que, na coletânea agora publicada no Brasil, é novamente retomada no ensaio “De Sarmiento a Euclides: natureza e mito”.

Tal como aparece no título e é sublinhado pela introdução da professora Elena Palmeiro ao volume, esses dois conceitos, “Monstros e Arquivos”, funcionam como núcleos de atração que vinculam grande parte dos ensaios reunidos. Monstros, no sentido de figuras feitas de rasgos contraditórios e que se exibem, escritores e textos marcados pela sua excepcionalidade. Palmeiro lembra, nesse sentido, a expressão cervantina usada no prólogo a suas Comedias y entremeses, na qual Cervantes chama Lope de “monstro da natureza” para destacar seu talento dramático.

A figura do monstro é central no ensaio que González dedica à obra de Calderón A vida é sonho, mas também aparece ao falar de um personagem como Antônio Conselheiro. Em palavras de González Echeverría: “Como Facundo Quiroga, Antônio Conselheiro é um monstro, um mutante, um acidente. Seu caráter evasivo, como um objeto de observação e de perseguição militar por parte da República, deve muito a essa falta de antecedentes classificáveis” (ECHEVERRÍA, 2014: 245). E em outro lugar do livro em que o tom ensaístico do volume tende para a anedota e as intimidades da vida literária hispano-americana, Lezama é também retratado desde uma certa monstruosidade: “A gula desaforada e a resultante gordura, que o forçava a escrever sentado em uma poltrona, pois sua barriga não lhe permitia trabalhar confortavelmente em uma escrivaninha, davam a ele um aspecto monstruosamente ridículo” (ECHEVERRÍA, 2014: 216).

A apropriação particular do conceito de arquivo, como Echeverría explicita no prólogo ao volume, surge de seus estudos sobre o direito na Espanha e no Novo Mundo dos séculos XVI e XVII e se manifesta em seu ensaio sobre o amor e o direito em Cervantes, mas também em suas análises sobre as formas em que a própria materialidade dos recipientes utilizados para a atividade de arquivar se manifesta metaficcionalmente em obras centrais da literatura hispano-americana como El Aleph de Borges e Cien años de Soledad, de García Márquez.

Além da rigorosidade acadêmica que demonstra a escrita de González Echeverría, o livro está atravessado de maneira permanente por uma força afetiva e autobiográfica que permeia as análises e que se evidencia mais explicitamente nas cartas e homenagens póstumas que fazem parte da seleção de textos (cartas a Alejo Carpentier e ao economista cubano Carlos Díaz Alejandro, assim como textos de despedida para Severo Sarduy, Emir Rodríguez Monegal e Álvaro Mutis).

A amizade e proximidade do crítico com vários dos escritores estudados, especialmente com Severo Sarduy, assim como sua cercania com outros críticos destacados no contexto da literatura hispano-americana como o uruguaio Emir Rodríguez Monegal, fazem com que muitos dos ensaios de González Echeverría funcionem, eles mesmos, como uma sorte de arquivo afetivo e íntimo da vida literária e crítica hispano-americana da segunda metade do século XX. Expondo sua própria intimidade muitas vezes de forma expressiva e radical, o crítico parece atualizar aquela máxima de Oscar Wilde: “The highest, as the lowest, form of criticism is a mode of autobiography”.

Embora não seja seu eixo central, Cuba ocupa um espaço privilegiado nos ensaios de González, não somente pela importância que ocupam em suas análises os escritores cubanos, mas também em sua preocupação pela cultura popular e a formação da nacionalidade no ensaio intitulado “Literatura, dança e beisebol no (último) fim de século cubano”. O caso de Cuba, afirma González Echeverría neste que poderia ser considerado um ensaio de história cultural sobre as origens do danzón1e da prática do beisebol na ilha: “[…] pode fornecer lições para o estudo da emergência das nacionalidades modernas, que quase sempre são pensadas com base em atividades políticas e intelectuais, ignorando-se outras de caráter mais material ou físico, como os jogos, os rituais coletivos, as danças e até mesmo a cozinha” (ECHEVERRÍA, 2014: 276).

Cuba e a política é também um tema inevitável quando se trata de abordar a figura de Severo Sarduy. Neste caso, especialmente no texto de despedida que González dedica a Sarduy, publicado originalmente em 1993, o crítico deixa claro seu posicionamento de defesa do amigo frente aos ataques dogmáticos e homofóbicos sofridos por Sarduy nos anos 1960 e 1970 por parte de críticos próximos do regime.

No entanto, no ensaio em que analisa a obra De donde son los cantantes (1967), o crítico expõe seu sentimento de dúvida sobre o valor atual da obra de Sarduy, fazendo eco a alguns questionamentos que vinculam sua obra com uma cronologia específica (boom, estruturalismo, pós-estruturalismo) e mostra seu ceticismo frente a algumas das posições do escritor, especialmente seu entusiasmo lacaniano e sua rejeição de um autor como Alejo Carpentier. Parece-me que a tensão revela a tentativa de González de manter certo distanciamento crítico com a obra de Sarduy, ao tempo em que tenta compreender o fascínio que lhe produz e a sua influência na sua própria obra crítica.

Escrevendo precisamente sobre Sarduy, González declara um dos princípios centrais de sua prática leitora e crítica: “[…] ler obras modernas e contemporâneas como se já fossem clássicos, ler Sarduy como leio Cervantes e Shakespeare” (ECHEVERRÍA, 2014: 333). A seleção de textos reunidos em “Monstros e Arquivos” se configura nessa permanente oscilação entre autores clássicos e contemporâneos e a partir das conexões, continuidades e rupturas que o autor decifra na tradição literária hispano-americana.

***

Finalmente, quero destacar a relevância desta iniciativa, levada a cabo pela professora Elena Palmero, da UFRJ, e acolhida pela editora da UFMG, que permitiu reunir e dar a conhecer ao público brasileiro parte significativa do trabalho de um dos críticos mais reconhecidos no campo dos estudos literários hispano-americanos dos últimos anos, assim como a cuidadosa tradução do professor Ary Pimentel, que consegue manter em português a fluência narrativa e o ritmo da prosa de González.

Tomara que este tipo de iniciativas continuem se afiançando no âmbito editorial brasileiro, no sentido de promover a difusão do pensamento crítico hispano-americano com traduções em língua portuguesa. Um campo de intercâmbio que, historicamente, apresenta lacunas, desencontros e algumas reticências, mas que, acredito, configura um caminho produtivo e interessante a ser mais explorado e discutido. Gênero musical que, com o tempo, seria identificado com a música cubana.

Rafael Gutiérrez – Escritor, crítico literário e tradutor. Doutor em Estudos de Literatura da PUC-Rio e mestre em Literatura Latino-americana da Universidade Javeriana de Bogotá. Atualmente, realiza pós-doutorado no Departamento de Letras Neolatinas da UFRJ. É autor do romance Como se tornar um escritor cult de forma rápida e simples (Rio de Janeiro: 7Letras, 2013) e organizador do livro NósOtros. Diálogos literários entre o Brasil e a América Hispânica (Rio de Janeiro: 7Letras, 2010).

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A persistência da memória. Romances de anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional – BERND (A-EN)

BERND, Zilá. A persistência da memória. Romances de anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional. Porto Alegre: Besouro Box, 2018. Resenha de MELLO, Ana Maria Lisboa de. Memória cultural e modos de transmissão nos romances contemporâneos das Américas. Alea, Rio de Janeiro, v.20 n.2, may./aug., 2018.

Memória e transmissão estão intimamente associadas: o processo fragmentário e sempre recomeçado da rememoração encontra seu sentido na transmissão.

Zilá Bernd

O livro A persistência da memória traz relevantes resultados de pesquisa da investigadora Zilá Bernd sobre as relações literárias interamericanas contemporâneas, o papel da memória, da genealogia e filiações no romance das duas últimas décadas, com reflexões teóricas sobre memória cultural. Bernd coloca em confronto diferentes abordagens teóricas de pesquisadores do mesmo campo de interesse, sobretudo francófonos, com destaque para o romance memorial (Régine Robin) e o romance de filiação (Dominique Viart; Laurent Demanze), adotando uma perspectiva comparada tanto no que se refere a reflexões dos teóricos com os quais dialoga, quanto no que diz respeito às obras literárias selecionadas como corpus para as suas análises.

A memória cultural, tal como apontam teóricos como Aleida e Jan Assmann e Andreas Huyssen, cujas ideias vêm ao encontro das reflexões da pesquisadora brasileira, não se refere apenas a dados armazenados em arquivos, mas inclui também tudo aquilo que escapa ao registro oficial, tais como o residual, o obliterado, o reprimido. De acordo com Bernd, a memória cultural incorporaria, portanto, o que foge do registro hegemônico do poder, com tentativas de construção de uma identidade nacional sólida e totalizante, e absorve os elementos da esfera do sensível e do simbólico, sendo que a sua construção depende da transmissão geracional.

O papel de transmissão fica explícito no ensaio autobiográfico de Régine Robin, Le roman mémoriel (1989), que reúne textos críticos e narrativas de vidas de pessoas que foram obrigadas a “silenciar, a esquecer e a reprimir para sobreviver” (BERND, 2018, p. 23), como o que ocorreu com a comunidade judaica. Observa a pesquisadora que Robin insere nesse livro uma passagem do seu próprio romance La Québécoite (1983), em que a personagem rememora nostalgicamente o que ela e a família faziam, quando refugiados na França, durante a ocupação nazista no seu país, a Polônia: os livros que liam, os exercícios de piano, objetos que decoravam a casa, fotos, entre outras lembranças. Enfim, trata-se de uma memória cultural polifônica e mais vívida no texto ficcional do que na escrita da História e em dados de arquivos.

No que se refere à questão da transmissão geracional, Zilá Bernd e Rodrigues Soares (2016), em artigo intitulado Modos de transmissão intergeracional em romances da literatura brasileira atual, já haviam assinalado que o romance memorial “[…] está […] associado à transmissão da memória cultural, à transmissão inter e transgeracional e à postura do sujeito narrador de assumir-se como herdeiro – para dar continuidade ao patrimônio memorial herdado – ou romper com ele”. (BERND; SOARES, 2016, p. 408)

Quase duas décadas depois da publicação do livro de Régine Robin, Dominique Viart centra-se no estudo dos romances denominados parentais ou de filiação, que são narrativas preocupadas com temática da ascendência, ancestralidade dentro do espectro do que se pode denominar “escritas de si”. Essa expressão introduz uma distância que afasta o perigo do egocentrismo e egotismo, em substituição a “escritas do Eu” (Georges Gusdorf). As escritas de si reúnem um conjunto de categorias, tais como autobiografia, diário íntimo, correspondência, memórias e a autoficção. Para Bernd, nas narrativas contemporâneas, a interioridade de narradores-protagonistas é marcada por uma volta ao passado – anterioridade – ancorada nas rememorações e reminiscências. Esse retorno aos ancestrais e às suas histórias, a partir de vestígios deixados por eles (fotos, objetos, cartas etc.), é na verdade uma necessidade de o eu-narrador “[…] promover a reconstrução de trajetórias vividas por seus ancestrais e, através desse processo, (re)significar e/ou (re)construir o presente”(BERND, 2018, p. 47).

Além da contribuição de Viart, para traçar o perfil do romance de filiação na contemporaneidade, Zilá Bernd destaca os aportes de Laurent Demanze que, em Encres orphelines (2008), retoma e discute o estudo de Viart sobre o romance de filiação, e acrescenta novas reflexões sobre as manifestações desse subgênero na ficção contemporânea. A pesquisadora aponta para o fato, assinalado por Demanze, que, por vezes, o passado do narrador de um romance de filiação é um capítulo vazio da memória que o sujeito tenta reconstruir por meio de pesquisas genealógicas e investigações imaginárias; entretanto, esse passado mostra-se inalcançável, de transmissão impossível, de modo que a relação do indivíduo contemporâneo com seu passado pode ser atingida pelo selo da perda.

Bernd assinala que o romance de filiação geralmente emprega os seguintes mecanismos de transmissão em relação ao passado: um empenho do narrador em recuperar e preservar a memória da história familiar, atuando como um porta-voz dos antepassados; um processo narrativo que revela uma memória envergonhada ou ferida, que rejeita o passado familiar e faz ajustes de contas; uma narrativa que introduz elementos novos pelo narrador, os quais dão margem a uma negociação com o passado e pode articular mais de um modo de transmissão.

Tanto o romance memorial como o de filiação se particularizam pelo caráter da “anterioridade”, já que para falar de si o narrador busca a figura de um ancestral, como pais, avós ou até um ancestral mítico. Em síntese, Bernd aponta as duas variantes do romance de anterioridade:

  1. Romance memorial, que seria uma faceta pós-moderna da saga, com ênfase na busca de vestígios, rastros, fragmentos olvidados no passado e que constituem a memória cultural, definida por Régine Robin como aquela feita ‘de pequenos nadas’ (BERND, 1989, p. 21);
  2. Romance de filiação (ou parental), variante da autoficção com a característica de usar o subterfúgio de focalizar a narrativa na vida de um ancestral (pai, mão, avós), numa perspectiva de ajuste de contas com o passado; neste caso, temos presença do que Laurent Demanze chama de ‘herdeiro inquieto e problemático’, que hesita entre reivindicar a herança paterna ou repudiá-la. (BERND, 2018, p. 25)

Na análise do corpus selecionado, relativo a obras ficcionais nas três Américas, de autores brasileiros, antilhanos francófonos e quebequenses, a pesquisadora aponta tendências comuns de escritores que pertencem a “comunidades de memória”, expressão de Pierre Ouellet, no livro Testaments (2012), para dar conta de contextos que, como o do Quebec, acolhem povos de diferentes países, com suas tradições e histórias. Essas passam a formar, juntos com os autóctones, uma memória múltipla e aberta a trocas. E Bernd cita depoimento de Ouellet, em entrevista de 2015 publicada na Revista Letras de Hoje, em que ele deixa nítida essa visão de partilha de diferentes memórias:

Não se trata de uma memória comum (coletiva) porque ela pertence a várias tradições, com diferentes histórias, desenvolvidas em diversos lugares, mas o fato de que pessoas de diferentes origens participem agora da sociedade quebequense faz com que vivamos em comunidade de memórias. (OUELLET apudBERND, 2018)

Assim, à luz de sólida investigação teórica, Zilá Bernd, em A persistência da memória, analisa obras de autores de comunidades de memórias que, em romances de filiação, partilham tradições, reminiscências, traumas, como romances dos brasileiros Moacyr Scliar, Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Tatiana Salem Levi, Cíntia Moscovich, Adriana Lisboa e Eliane Brum. São objeto de análise também romances das quebequenses Louise Dupré, Catherine Mavrikakis e Francine Noël; e obras do escritor André Schwartz-Bart, que emigrou para Guadalupe. Além desses, nas passagens de reflexões teóricas, a pesquisadora cita outras obras, de autores que escreveram romances de filiação nas Américas, com narradores que interrogam o passado de seu núcleo familiar ou de algum predecessor, como forma de ajuste de contas.

Bernd observa que essas narrativas de filiação podem mesclar focos em primeira e terceira pessoas, como forma de recuperar um passado do qual o narrador não participou e, portanto, não foi testemunha, mas que, no entanto, pode ter sido decisivo para a sua existência atual. Percebe-se, nesses romances contemporâneos, alternâncias de focos narrativos, como recurso para iluminar a história do protagonista e abrir portas que permitam desvendar segredos, preencher lacunas da sua história. Nos romances analisados, a investigadora aponta para a preservação da memória cultural, construída “a partir dos restos e vestígios memoriais” (BERND, 2018, p. 160), indiciadores do passado.

As obras literárias, analisadas por Bernd bem como as que serviram de exemplo para suas abordagens teóricas, formam um corpus de pesquisa que inclui obras de escritores de famílias de imigrantes, que buscaram refúgio no Novo Mundo, as quais apresentam narradores que rememoram o passado dos ancestrais para compreensão de si mesmos, bem como de escritores autóctones, que dialogam com o passado para estabelecer uma continuidade geracional e preservar legados familiares. Nos dois casos, podem surgir narradores em conflito com o passado familiar – caso do “herdeiro problemático” de Demanze – que, através da escrita, procuram liberar-se de uma história pautada por angústias e sofrimentos. Para Zilá Bernd,

Os romances memorial e de filiação revogam de certa forma essa tendência da modernidade de arquivar seu passado. Destacando erros e acertos, encontros e desencontros dos ascendentes, a perspectiva transgeracional das narrativas de filiação recompõe áreas de sombra do passado e se constitui como estelas, marcos ou monumentos dedicados a essa ascendência. […] O romance de filiação, alimentando-se da memória cultural, pode dar as respostas que a perspectiva histórica não soube fornecer. (BERND, 2018, p. 156-157)

A persistência da memória é um título inspirado na tela do surrealista Salvador Dalí, de 1931, com “relógios derretidos”, que já não marcam a passagem temporal porque não estão em pleno funcionamento. Segundo Bernd, com a imagem dos relógios deformados, talvez “[…] o artista quisesse expressar que a noção de memória remete sempre à de esquecimento, sendo memória e esquecimento as duas faces da mesma moeda” (BERND, 2018, p. 16).

Trata-se de um livro que articula as mais recentes discussões teóricas sobre o romance contemporâneo de anterioridade – romances memorial e de filiação – e sobre a memória cultural, trazendo autores ainda não traduzidos para a língua portuguesa, e transmitindo informações imprescindíveis aos pesquisadores, incluindo estudantes da área de Letras, que participam de pesquisas que têm por corpus esse gênero ficcional.

Referências

BERND, Zilá ; SOARES, Tanira Rodrigues. Modos de transmissão intergeracional em romances da literatura brasileira atual. Alea: Estudos Neolatinos, v. 18, n.3, 2016, p. 405-421 [ Links ]

BERND, Zilá . A persistência da memória. Romances de anterioridade e seus modos de transmissão intergeracional. Porto Alegre: BesouroBox, 2018. [ Links ]

DEMANZE, Laurent. Encres orphelines: Pierre Bergounioux, Gérard Macé, Pierre Michon. Paris: José Corti, 2008. [ Links ]

OUELLET, Pierre. Testaments: le témoignage et le sacré. Montreal: Liber, 2012. [ Links ]

OUELLET, Pierre. Entretien avec Pierre Ouellet (Entrevista concedida a Ana Maria Lisboa de Mello, Zilá Bernd, Marie Hélène Paret Passos). Letras de Hoje, PUCRS, v. 50, n. 2, abril-junho 2015, p. 229-240. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/21342> [ Links ]

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ROBIN, Régine. Le roman mémoriel: de l’histoire à l’écriture du hors lieu. Montréal: Préambule, 1989. [ Links ]

VIART, D. Récit de filiation. In: VIART, D.; VERCIER, B. (éds). La littérature française au présent. Paris: Bordas, 2008. [ Links ]

Ana Maria Lisboa de Mello é graduada em Letras-Licenciatura em Português e Francês e respectivas literaturas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Mestrado e Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), na Área de Teoria da Literatura. Fez estágios de pós-doutoramento no Centre de Recherches sur l Imaginaire, na Université Stendhal, Grenoble III (1995-96), com bolsa do CNPq, na Sorbonne Nouvelle – Paris III (2004) e na University of Toronto (2013-2014), com bolsa CAPES. É membro associada ao Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Universidade de Lisboa, e ao Centre de Recherches sur les Pays Lusophones (CREPAL) da Université de la Sorbonne Nouvelle. Tem experiência na área de Letras, subáreas de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura, com ênfase em poesia, narrativa, teorias e críticas do imaginário. Vinculou-se em 2017 ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (PPGLEN), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e editora da revista Alea: Estudos Neolatinos. E-mail: [email protected]

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Etnicidad y victimización. Genealogías de la violencia y la indigeneidad en el norte de Colombia – JARAMILLO (A-RAA)

JARAMILLO, Pablo. Etnicidad y victimización. Genealogías de la violencia y la indigeneidad en el norte de Colombia. Bogotá: Ediciones Uniandes, 2014. 292p. Resenha de: APARICIO, Juan Ricardo. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.22, maio/ago., 2015.

Como alguna vez lo plantearon Veena Das y Deborah Poole (2004), desde sus orígenes la antropología como disciplina ha sido acechada por el lenguaje del Estado asociado a los tropos del orden social, la dominación, la racionalidad, el monopolio y la legitimidad. Sin duda, la influencia de la Ilustración y otras corrientes posteriores y críticas a este mismo proyecto –como lo fue en su momento el romanticismo alemán (Herder)– ha sobredeterminado algunas de las apropiaciones conceptuales clásicas con las cuales en su momento los primeros antropólogos emprendieron el análisis de las “sociedades primitivas” (Bunzl, 1996). Ya sea para utilizar estos tropos heredados a su vez de los tres grandes hombres blancos –Marx. Durkheim y Weber–, o incluso para interesarse en sociedades que luchan en contra de la aparición de la forma de Estado (Pierre Clastres, e.g.), es evidente que la antropología, de formas muy diferentes y variadas –unas más cercanas a las corrientes durkheimianas enfatizando la función ordenadora de la sociedad y otras más cercanas a Marx y Weber enfatizando su dimensión conflictiva, contradictoria y eminentemente política, entre otras–, tomó prestado de los vocabularios estructuralistas y funcionalistas o su combinación para comprender la emergencia, el mantenimiento y reproducción de los órdenes sociales. Incluso, en sus escuelas de Cultura y Personalidad, mejor visibilizadas en los trabajos de Ruth Benedict, siempre se trató de encontrar los patrones y los estándares en la cultura. Pero Edmund Leach (1964: ix), en su prólogo al clásico estudio sobre las aldeas del Sudeste Asiático, ya indicaría una poderosa crítica sobre esta tradición: el uso sobresimplificado (oversimplified) de una serie de nociones asociadas al equilibrio derivadas del uso de las analogías orgánicas para estudiar las estructuras de los sistemas sociales. En términos concretos, indicaría que los sistemas sociales no son una realidad natural y que, a lo sumo, la presencia del equilibrio siempre será ficcional (1964: ix).

En este orden de ideas, y a lo largo de la larga y muy variada historia de lo que algunos llamarían antropología política, quiero pues enfatizar en la muy rica y compleja tradición del pensamiento antropológico, no pocas veces en diálogo con la filosofía política, que ha enfatizado y estudiado las prácticas que deshacen la misma idea del Estado con “E” mayúscula, así como sus fronteras territoriales y conceptuales (Das y Poole, 2004). El clásico estudio de Philip Abrams (1988) sobre el dilema de estudiar al Estado con “E” mayúscula ya anunciaba la dificultad de pensarlo como un objeto aislable y limitado de las otras dimensiones de la vida social. Haciendo una enorme generalización que corre el riesgo de borrar sus singularidades, se trata de una muy amplia variedad de estudios que han pensado al Estado desde las mismas prácticas que lo construyen, performan, reproducen y mantienen en el tiempo. Es así como Akhil Gupta (1995), por ejemplo, estudiaría el Estado desde los márgenes burocráticos de las aldeas y la misma percepción que tienen sus habitantes para terminar reificándolo como una entidad separada de la sociedad civil. En otro trabajo posterior sobre las burocracias, indicaría también la importancia de las redes locales y clientelistas que terminan construyendo al Estado lejos de la racionalidad burocrática weberiana (Gupta 2012). También, Winifred Tate (2007), en su estudio sobre la emergencia tanto del gobierno de los derechos humanos como de los movimientos sociales organizados en torno al mismo, indicaría cómo son los últimos los encargados también de reificar al Estado como una entidad homogénea y totalizadora a la cual se puede culpar y también demandar. La cara dual que tiene el Estado, como aquella entidad que se teme pero también que se desea (“Estado piñata”), fue descrita por Diane Nelson (1999) en el auge de la Guatemala multicultural de los noventa. En definitiva, para esta tradición de estudios etnográficos del estado (con “e” minúscula) –que no he querido intentar delimitar acá sino tan sólo mostrar algunos breves ejemplos–, el estado es analizado a través de las mismas prácticas que lo terminan construyendo y manteniendo en el tiempo. Para concluir con este breve apartado, quizás el cambio más radical de esta mirada desde una etnografía crítica que intenta desnaturalizar tanto el objeto de estudio del “Estado” como sus actualizaciones en el sentido común, lo aclararía Michel-Rolph Trouillot en su clásico artículo sobre el Estado: en una mirada donde la “materialidad del Estado residirá mucho menos en las instituciones que en la reorganización de los procesos y relaciones de poder con el fin de crear nuevos espacios para el despliegue de poder” (2001: 127).

Es pues desde estas coordenadas teóricas y metodológicas de las etnografías críticas del Estado que quiero leer el libro del antropólogo Pablo Jaramillo Etnicidad y victimización. Genealogías de la violencia y la indigeneidad en el norte de Colombia. El autor adelanta su investigación sobre la emergencia e inserción del sujeto indígena wayúu dentro del discurso de la víctima movilizado por las agencias internacionales y el Estado colombiano. Con fineza etnográfica, nos permite entender cuáles son las nuevas condiciones de posibilidad pero también de movilización estratégica de la noción de la víctima articulada tanto a lo indígena como a su particular feminización. Indagando acertadamente sobre la larga historia de alianzas, encuentros y desencuentros y relaciones entre las comunidades indígenas con el Estado y sus instituciones –por ejemplo, alrededor de la emergencia de las autoridades matrilineales resultado de los matrimonios de mujeres wayúu con intermediarios del Estado–, el autor logra ilustrar que estas identificaciones son más bien un terreno movedizo, contingente y lleno de mediaciones estratégicas. Lejos de la metáfora vertical de la soberanía o de la burocracia aséptica weberiana, el autor indaga sobre las prácticas mismas que permiten el despliegue de soberanías y su reacomodación contingente por parte de las comunidades y, también, de las autoridades del gobierno central.

Esto lo conduce a indagar el presente a través de una etnografía que lo llevaría tanto a foros en las Naciones Unidas como a las aldeas wayúu en La Guajira, para darnos luces sobre las respuestas de estas comunidades a las interpelaciones del Estado humanitario y multicultural y sobre las ansiedades que se generan alrededor de la mercantilizacion de la etnicidad y la gubernamentalizacion de la diferencia. Resalta la emergencia de las llamadas Autoridades Tradicionales como los vehículos mediante los cuales se ejerció una soberanía en la década de los noventa plegada a los intereses de las economías globales y útiles para la interlocución con las agencias del Estado. Con detalle etnográfico, por ejemplo, el autor ilustra estas ansiedades antes, durante y después de varios encuentros entre las comunidades indígenas y funcionarios de ONG y agencias internacionales a los cuales pudo asistir. También ilustra cómo estas mediaciones logran “inventar” comunidades a través de la mediación de un ejercicio burocrático dedicado a llenar formatos y en manos de representantes particulares de las comunidades. Y, por supuesto, dedica una buena parte de los capítulos a indagar sobre amenazas, alianzas, masacres, desplazamientos y desencuentros de los wayúu con los grupos armados que resquebrajaron sus propios procesos organizativos. Estos apartes sobre estos encuentros que tienen lugar tanto en rancherías como en oficinas en Nueva York son realmente fascinantes pues complican lecturas reduccionistas tanto sobre la interpelación como sobre la resistencia.Buscan más bien comprender cómo se experimentan en la cotidianidad estos desafíos.

El libro puede leerse también como una etnografía del Estado preocupado por entender que, lejos de la visión racionalista y pura de la burocracia moderna referida anteriormente o de la metáfora organicista, en realidad ésta es vulnerable a todo tipo de mediaciones, intermediarios y negociaciones. Es bien sugerente su complejización de la extrema racionalización y efectividad que se le quiere acordar a este gobierno de los otros; estoy menos de acuerdo con su crítica a un supuesto Foucault que correspondería a una noción totalitaria, vertical y totalmente eficiente de este arte de gobernar. Sólo revisar las últimas dos frases de Vigilar y castigar (Foucault, 1976: 214) para darse cuenta de las múltiples batallas que amenazan estos actos de gobernar a las poblaciones, incluso en medio de este proyecto panóptico que produce una “humanidad central y centralizante, efecto e instrumento de relaciones de poder complejas” . Incluso, el mismo Foucault dudaría de la misma efectividad y unilinealidad de las racionalidades de la misma gubernamentalidad. Parafraseando al pensador francés, afirma que después de todo el Estado no es más que una realidad compuesta (composed reality), una abstracción mistificada, que, finalmente, no es tan funcional ni tan eficiente como pretende serlo (Foucault, 2000: 220). Importante precaución que debería también producir lecturas más rigurosas sobre este pensador francés muchas veces asociadas a las metáfora de la administración vertical y eficiente de poblaciones.

Quiero terminar con dos comentarios donde veo, más que respuestas concluidas y acabadas en el libro de Jaramillo, proyectos que se abren para una antropología en un futuro. En primer lugar, el último capítulo, el más corto a mi modo de ver pero el más provocador, deja al lector queriendo saber más. Me explico: gran parte del libro se ha movido dentro de la movilización de los “esencialismos estratégicos” que han permitido que algunos sectores, familias, etcétera, entren a jugar dentro del mundo multicultural con todas las contradicciones y “confluencias perversas” del gobierno neoliberal (Dagnino 2004). El autor revisa en sus conclusiones distintos trabajos antropológicos en Colombia que han intentado analizar los procesos de endogénesis y deja la interesante observación de que muchos de éstos se han quedado parados “a medio camino” (p. 230). Indica, conversando con Restrepo (2004) y también distanciándose de él, que estos trabajos de endogénesis han desechado la pregunta sustancial por la experiencia y la identidad para pensarla dentro de las (únicas) coordenadas de los “esencialismos estratégicos” y las posiciones de sujeto. Dice Jaramillo (p. 230; el énfasis es mío): “De hecho, mucho del conocimiento sobra la etnicidad que se ha derivado de este acuerdo consiste en afirmar que estos usos son profundamente políticos y estratégicosPero quedarse ahí es parar a medio camino”. A continuación, el autor intenta posicionar conceptos elaborados y muy enriquecedores como el de la “etnogénesis radical” de James Scott y el de la “política de la vida densa” de Povinelli, para terminar concluyendo: “Sin embargo, el concepto apunta a un elemento clave de la etnicidad, y es que la contingencia existe dentro de un repertorio, aunque amplio, definido de concebir la existencia humana en relación con algo llamado ‘cultura’. En otras palabras, la etnogénesis depende de una ontogénesis” (p. 230). Así, frente a la noción instrumental del despliegue de los “esencialismos estratégicos”, Jaramillo (p. 231) reacciona argumentando que tales afirmaciones niegan que también la etnicidad sea también “una forma de experimentar y ser en el mundo”, sin desnudarla tampoco de su dimensión política.

El texto pasa luego, en verdad en pocas páginas, a repasar en qué consistirían estas “políticas de la vida densa”, tales como las respuestas por parte de algunos líderes indígenas a la llegada del Parque eólico Jepirachi, diseñado y dirigido por las Empresas Públicas de Medellín, que recibiría una cuantiosa suma de dinero del Fondo Prototipo de Carbono del Banco Mundial. Analizando las respuestas de algunos de estos líderes en Foros Internacionales frente al silencio del proyecto y sus diagnósticos sobre la violencia paramilitar, el autor piensa estas respuestas de rechazo al proyecto a partir de “la posibilidad de construir un sentido de colectividad y bien común entre los wayúu  apelando a formas alternativas de articular ‘la indigeneidad’ como parte de las movilizaciones políticas y las demandas de la justicia” (p. 236). En estos reclamos encuentra una relación entre el discurso de la victimización movilizado estratégicamente en estos foros y elementos constitutivos de la vida wayúu, como el viento. Según el autor, la Fuerza de Mujeres Wayúu, protagonista central de su libro, al plantear estos desafíos en estos foros, proponía que “el viento era un elemento fundamental en las nociones de llegar a ser wayúu” (p. 237); en ese mismo sentido, continúa el autor, se proponen “formas de interdependencia como piedra angular para la identificación wayúu” (p. 237). Sin duda alguna, tal dirección ubica al texto cercana a aquellas corrientes recientes de pensamiento antropológico que han pensado el tema de las “ontologías políticas” al reconocer la movilización de los antagonismos en “la misma gestación de las entidades que conforman un determinado mundo u ontología” (Blaser 2008: 82). Insisto, es una lástima que hayan sido pocas las páginas dedicadas a estos argumentos y acontecimientos que hacen mucho más complejo el análisis de estos procesos de endogénesis radical que van más allá de su instrumentalización política. Queda un camino abierto por recorrer por parte de futuros investigadores que intenten comprender estos procesos sin reducirlos a argumentos sustancialistas o estratégicos, como si fueran mutuamente excluyentes.

Por último, y sin entrar en hondas discusiones, quiero terminar indicando mi curiosidad por cómo va a ser leído este libro por parte de sus entrevistados/as y las organizaciones con las cuales Jaramillo debatió sus investigaciones por varios años. Mucha de la información recolectada de los testimonios, justamente habla de las ansiedades que viven estas comunidades y estos líderes frente al encuentro con las agencias estatales. Hay testimonios que podrían ser leídos de manera muy exagerada –como el intento de estas comunidades por “engañar” al Estado y a las ONG, o las alianzas, rupturas y luchas entre distintos sectores wayúu, con testimonios que hace una persona sobre otra persona o bandos contrarios–. El debate, por supuesto, lo quiero ubicar por fuera de la instrumentalizada noción de los códigos de ética que actualmente atraviesan nuestras investigaciones. Mi curiosidad es quizás la de todo etnógrafo sobre el destino de sus observaciones dentro de territorios marcados por tensiones, ansiedades y conflictos humanos.

Comentarios

* Jaramillo, Pablo. 2014. Etnicidad y victimización. Genealogías de la violencia y la indigeneidad en el norte de Colombia. Bogotá, Ediciones Uniandes, 292 páginas.

Referencias

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Dagnino, Evelina. 2004. “Conflência perversa, deslocamentos de sentido, crise discursiva.” In La cultura en las crisis latinoamericanas, editado por Alejandro Grimson. Buenos Aires: CLACSO., pp 195-216.         [ Links]

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Nelson, Diane. 1999.A Finger in the Wound: Body Politics in Quincentennial Guatemala.Berkeley, University of California Press.         [ Links ]

Restrepo, Eduardo. 2004. Teorías contemporáneas de la etnicidad. Stuart Hall y Michel Foucault.Popayán, Editorial Universidad del Cauca.         [ Links]

Tate, Winifred. 2007. Counting the Dead. The Culture and Politics of Human Rights Activism in Colombia. Berkeley, University of California Press.         [ Links]

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Juan Ricardo Aparicio – PhD. Antropología, Universidad de Carolina del Norte en Chapel Hill, Estados Unidos. E-mail: [email protected]
Universidad de los Andes, Bogotá, Colombia.

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Arquivo | APESP | 2015

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Revista do Arquivo (São Paulo, 2015-) é o periódico eletrônico do Arquivo Público do Estado de São Paulo, anteriormente denominada Revista Histórica.

Revista do Arquivo pretende, além da abordagem historiográfica, divulgar temas que circundem os eixos centrais que articulam as instituições arquivísticas (gestão, preservação, acesso à informação, difusão); a produção do conhecimento realizada cotidianamente na instituição; assim como a publicação de artigos de qualquer natureza, que divulguem conhecimentos produzidos a partir do nosso acervo ou de outros arquivos do mundo.

A periodicidade da revista é semestral.

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Ícone | UFRGS | 2015

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Ícone (Porto Alegre, 2015-) é a primeira revista acadêmica brasileira criada com o objetivo específico de constituir um espaço para a divulgação da produção em História da Arte.

A Revista é uma publicação digital, vinculada ao Departamento de Artes Visuais e ao Bacharelado em História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A Revista Ícone tem periodicidade semestral, sendo a primeira edição de cada ano temática (a ser sempre divulgado na chamada) e a segunda livre.

Periodicidade semestral.

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ISSN 2359-3792

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The Rock Basins of Serra do Cume: Azores megalithic rocks and enigmatic inscriptions rearrange the old Atlantic geography / Maria Antonieta Costa

A formação vulcânica do arquipélago dos Açores apresenta uma admirável variedade de litologias (composições rochosas) com propriedades mineralógicas interessantes – assim começa o Abstract introdutório do livro. E continua: no que respeita à formação geológica da ilha Terceira encontram-se presentes quantidades notáveis de sílica, elemento que parece ser fundamental também na composição das construções megalíticas do continente europeu. Seja ou não uma coincidência esse fato dá a impressão de ser ele a razão explicativa segundo a qual os indícios (sinais) encontrados na ilha Terceira, tais como marcas em forma de cortes e de taças, construções megalíticas, “inscrições”, sugerindo que intercâmbios semelhantes entre seres humanos e seu ambiente, que se sabe ocorrerem no continente, podem surgir em lugares mais improváveis, como no meio do Oceano Atlântico. A escolha de tais rochas para construir as ocorrências descritas também implica a existência de um “plano” anterior à sua implantação.

Até aqui o Abstract. O projeto desta investigação faz parte das atividades da Autora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde atua em estágio de pós-doutorado, e onde conta com o apoio da Professora Doutora Alice Duarte, tutora do projeto. Embora a presença de formações rochosas de configuração incomum, e em grande quantidade, desde longa data tenha despertado a atenção de moradores e visitantes da ilha Terceira nunca um estudo sistemático fora empreendido, até que Maria Antonieta Costa, pesquisadora de História da Cultura, resolveu dedicar-se ao tema. Para levar a cabo uma investigação detalhada, cuidadosa, e em larga escala, ela convidou geólogos e arqueólogos, e pesquisadores de áreas afins, e com eles fez o levantamento completo de todo o conjunto. Uma vez que não se encontraram (ainda) vestígios de ocupação humana anteriores à presença portuguesa a atenção voltou-se para definir a sua maior probabilidade através de dois caminhos: comparação com sítios arqueológicos similares em outros locais da Europa (quase todos na Escandinávia), e a análise/interpretação do conjunto em termos de Antropologia do Espaço, ou Antropologia da paisagem cultural. Segundo este ponto de vista certas configurações do ambiente natural (flora, geologia) oferecem à observação um potencial de imaginário cultural que atraem a presença humana, ou, quando menos, a suspeita fundamentada dessa presença.

Uma das questões mais destacadas pela autora é a forte presença de sílica na composição rochosa da Serra do Cume: essa presença não existe em outros locais dos Açores, mas é conhecida em rochas de outros lugares do mundo, onde as propriedades “mágicas” (curativas) da sílica fazem as populações atribuir poderes sobrenaturais às formações rochosas. Há ainda outros aspectos (sinais) destacados no texto e muitos deles fotografados: os riscos e sulcos nas rochas, as formações que lembram animais, ou humanos, as construções de pedras sobrepostas em muros, as taças aparentemente esculpidas na pedra, e o conjunto todo dessas rochas, algumas das quais dificilmente se podem imaginar sem a ação humana, que parece demonstrar uma intencionalidade na sua disposição.

Redigindo a conclusão do livro (agosto de 2014) a Autora afirma que as taças na rocha (rock basins), que foram o pretexto inicial para conduzir a pesquisa, passaram a segundo plano perante a importância que entretanto se revelou no conjunto. Ao preparar uma nova etapa da pesquisa, com o apoio de mais especialistas, e ampliando o campo de ação, Costa já estava também iniciando outras abordagens e consolidações do projeto: o convite a antropólogos europeus para visitarem a Serra do Cume, e a publicação de crônicas em jornais locais – em ambos os casos com a intenção de captar a atenção e o interesse do público, estudiosos, e autoridades, e garantir meios de investigação e credibilidade aos seus resultados.

Sir Barry Cunliffe, professor em Oxford, é um dos antropólogos europeus mais respeitados da atualidade;nos últimos anos ele vem defendendo a hipótese da existência de uma cultura megalítica atlântica muito anterior (nove mil anos a.C.) à suposta “chegada” dos celtas ao extremo ocidente europeu. Pelo contrário, segundo ele – no que é secundado, senão antecipado, por investigadores espanhóis como Ramon Sainero – teria sido nesse extremo ocidente que se teria originado a cultura depois conhecida como celta. Não é pois de admirar que Sir Barry Cunliffe atendesse prontamente o convite, visitasse a Serra do Cume, e no dia 15 de outubro de 2014, ao proferir palestra na Câmara de Vereadores de Angra do Heroísmo (Terceira) se mostrasse muito favorável à continuação das pesquisas. Além disso indicou o antropólogo George Nash para também ele visitar a ilha Terceira, o que o professor britânico aceitou, permanecendo na ilha de 15 a 25 de fevereiro de 2015, e apresentando relatório com suas conclusões.

George Nash percorreu os locais e observou as evidências rochosas mais destacadas: grutas, petroglifos, muros de pedra, rochas zoomórficas, sulcos nas lajes do solo, e concluiu que há possibilidade de serem sinais de ação humana. Constatou, porém, que não há nenhuma prova concreta da presença humanas na ilha anterior aos europeus (portugueses e flamengos); e que o pote de moedas fenícias e cartaginesas encontrado na ilha do Corvo (distante da Terceira) em 1749 só por si não garante que os fenícios tenham visitado as ilhas – as moedas podem ter sido um trote, colocado lá intencionalmente. Por isso ele recomenda que se realize um amplo projeto paleoambiental, procurando, por exemplo, sinais de pólen exótico, ou indícios de corte de floresta; mas aceita a viabilidade de resultados positivos, ao concluir pelo seu engajamento nesse futuro projeto.

As crônicas, onde a autora traduz e detalha diversos aspetos do livro, foram iniciadas no final de novembro de 2014, e no início de abril de 2015 somavam 17 textos publicados, quase todos de cerca de uma página, e sempre com o mesmo título: “Crónicas de uma causa mal-amada” – mal amada porque tem sido rejeitada, ou pelo menos desconsiderada pelo público açoriano. Pelos moradores, que dizem: “Quem gostaria de vir de longe, ver pedras?” (Crónica 9); pelas autoridades, particularmente do Geoparque dos Açores, que se mostram “relutantes” e mesmo “irredutíveis” a propor a candidatura do local investigado para ser classificado de forma diferenciada (Crónica 10); e pelos especialistas, nomeadamente arqueólogos, que têm sido “cegos” (Crónica 11) para as evidências que contrariam a história oficial: a de que o arquipélago era desabitado e não tinha recebido presença humana antes da chegada dos portugueses. Mas, tanto as crônicas como o livro destacam a colaboração que a A. tem recebido de profissionais e especialistas, não só no levantamento completo do sítio (mapas, fotografias, descrições) como na análise e interpretação de alguns aspetos e no seu enquadramento teórico mais amplo. Contudo essas colaborações voluntárias, e os esforços da autora – apresentando-se em congressos, fazendo palestras, e seriados na televisão – não alcançaram ainda um objetivo fundamental do projeto: o de ter aprovada a realização de uma pesquisa arqueológica profunda e vasta, e com ela o reconhecimento da importância do sítio pelas autoridades e público interessados. É notável, porém, que uma obra composta numa ilha no meio do Atlântico, com pouco mais de cinqüenta páginas de texto, e 90 fotografias, tenha despertado a atenção de uma editora alemã e o interesse de dois importantes antropólogos europeus. Há nele certamente mais do que uma ingênua curiosidade, duas qualidades que fazem de Maria Antonieta uma descobridora de mundos novos, ou de novas maneiras de ver o mundo.

João Lupi – Docente do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected].


COSTA, Maria Antonieta. The Rock Basins of Serra do Cume: Azores megalithic rocks and enigmatic inscriptions rearrange the old Atlantic geography. Saarbrücken: LAP/Lambert Publ., 2014, 73p. Resenha de: Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luis, v.15, n.2, 2015. Acessar publicação original. [IF]

Celtas e Germanos: olhares interdisciplinares / Brathair / 2013

Seguindo a tradição da revista Brathair de unir pesquisadores de várias áreas tratando de temáticas sobre os celtas e germanos, a edição de 2013.1 é consagrada aos olhares interdisciplinares, relacionados a esses povos. Neste sentido, os trabalhos dessa edição, percorrem os caminhos da História, Literatura, Filologia e Filosofia.

Pode-se dizer que a temática central é a relação entre História e Literatura, na medida em que entre os documentos analisados pelos autores temos o tratado médico, Capsula eburnea, obras hagiografias, biografia, textos literários e os escritos filosóficos de Heidegger e sua apropriação pelo nazismo.

Chiara Benati, da Università degli Studi di Genova, Itália, analisa o tratado médico Capsula eburnea (séculos IV / V), cuja versão original grega os medievais atribuíam ao médico Hipócrates, valendo-se do dispositivo retórico típico – um verdadeiro topos nas obras escritas e mesmo nos conteúdos orais disseminados na Idade Média – a que designamos por auctoritas. Trata-se de uma lógica segundo a qual a predicação de autoria a um clássico, padre da igreja, santo, filósofo / teólogo, autor inspirado de um Evangelho ou personagem bíblica, por exemplo, garantia ao conteúdo credibilidade e potencial de ampla difusão entre as camadas letradas e mesmo no lastro da cultura oral.

Nestes termos, o artigo de Benati denota rigor filológico ao traçar o estema das versões alto e centro-medievais alemãs do pequeno tratado médico, evidenciando-se as conexões e as interações culturais entre o Sul da Europa e as regiões alemãs. Desta forma, o texto revela o mérito de exemplificar, para os pesquisadores brasileiros – entre eles os historiadores – como proceder, de modo rigoroso e conceitualmente lastreado, ao trabalho filológico como instrumento de análise, crítica e reconstituição historiográfica e literária.

Analisando as relações entre História, Economia e Historiografia, tendo por base textos de pensadores cristãos como Ildelfonso, Isidoro de Sevilha e Aurélio Prudêncio, Mário Jorge da Motta Bastos (UFF / Translatio Studii) se propõe repensar, analisando e problematizando, um artigo do clássico medievalista francês Georges Duby. Trata-se de breve artigo publicado, em 1958, na prestigiosa Revue des Annales, sob o título de La Féodalité? Une mentalité médiévale, cujo intuito era rediscutir a noção de feudalidade (féodalité). Esta revisão historiográfica deu-se por ocasião da comemoração do clássico Qu’est-ce que la féodalité (1944) do historiador belga François-Louis Ganshof.

Com este objetivo, o autor realiza uma apropriada e necessária definição do campo semântico do feudalismo como complexo mais amplo de relações sociais de produção, dominação, resistência e elaboração de formas de pensar e representar o mundo. Desta noção abrangente e sistêmica, o autor destaca e particulariza, para fazer justiça ao pensamento de Duby, a ideia de feudalidade como traço de mentalidade, conjunto de representações de mundo conscientes ou irracionais, uma forma de sensibilidade coletiva. A originalidade do enfoque proposto no artigo reside no fato de que o autor demonstra, sofisticadamente e com o imprescindível recurso às fontes primárias, como o batismo engendrou, como legitimação ideológica, a fides enquanto instrumento contratual entre Deus e os integrantes do grêmio da Igreja. Os últimos, redimidos do pecado da insubordinação a Deus e libertos do domínio demoníaco, celebram com Deus um pacto em que se tornam mancipium Christi. Esta lógica produz, reproduz e é, por sua vez, reproduzida e ampliada pelos vínculos de feudovassalagem e de dominação senhorial.

Ronaldo Amaral (UFMT) tece relações entre História, Santidade e Religiosidade, em um texto adequadamente didático e, como tal, oportuno para a difusão e exemplificação do trabalho historiográfico com fontes hagiográficas. Partindo da Vita Fructuosi (século VII), o autor pretende problematizar o papel do imaginário e do contexto mental e ideológico na gesta da hagiografia como gênero retórico destinado a propagar um modelo de homem e de história. O trabalho prima pelo ineditismo da fonte e por conseguir ultrapassar a tendência à história interna ou filológica do corpus textual. O recorte, conquanto evidente para os historiadores de ofício, mostra-se inovador quando considerada a Vita Fructuosi, vez que não se cinge a discussões sobre a autoria ou gênese do documento. Evita-se, assim, recair em uma falsa questão historiográfica.

Márcia Manir Miguel Feitosa (UFMA / Mnemosyne) analisa textos literários que possuem um fundo celta. A partir do romance Crônica do Imperador Clarimundo, obra portuguesa de João de Barros, composta no século XVI, relaciona o romance com obras da Matéria da Bretanha, em especial A Demanda do Santo Graal, que teve uma importante circulação no reino luso.

Dentre as analogias entre a Crônica e a Demanda salientadas por Feitosa podemos destacar as qualidades do herói, semelhantes a do rei Artur, e sua espada, que guarda analogias com Excalibur. Além disso, Clarimundo, de acordo com o artigo, também possui analogias com outro herói da Demanda, Lancelot, por se voltar aos valores do cavaleiro cortês (a proteção das damas e a realização de façanhas heroicas).

Já o artigo, de redação inglesa, escrito por Ismael Iván Teomiro García (UNEDEspanha) prima pela erudição filológica e linguística, filiando-se, em sua linha de estudos, a uma concepção de gramática generativa, muito cara à teoria de Algirdas Julius Greimas, semiólogo lituano paradigmático para os estudos da linguagem. O autor evidencia alguns aspectos peculiares da sintaxe do atual irlandês, que evolui do antigo gaelic e adquire estatuto de língua nacional oficial em 1922, com a independência da Irlanda do Sul em relação ao Reino Unido. Neste esforço, faz-se oportuna a tradução de fonemas e sua sintaxe para o inglês, idioma do texto, uma vez que o mesmo foi o instrumento cultural de assimilação e imposição de suserania por parte da Inglaterra às populações gaélicas da Irlanda, hoje figurando como uma das línguas oficiais da República da Irlanda e sua verdadeira língua franca.

Analisando a relação entre História e Política, Dominique Vieira Coelho dos Santos e Anderson Souza (FURB) analisam uma biografia anglo-saxã dedicada ao rei Alfredo, a Vita Ælfredi Regis Angul Saxonum, escrita por Asser. Neste relato, o monge galês procura valorizar as características do rei Alfred como bom guerreiro e letrado. De acordo com o artigo, pode-se fazer uma analogia entre o Renascimento Carolíngio e o Renascimento Anglo-Saxão ocorrido no período de Alfred, que assim como Carlos Magno estimulou no seu governo a circulação de obras clássicas. O artigo é bem construído e discute o uso da narrativa para a valorização do rei e sua ligação com valores positivos como a guerra e a cultura.

Também tratando das relações entre História e Política na relação do uso da Filosofia pelo poder, temos o artigo de Moisés Romanazzi Tôrres (UFSJ), que problematiza, mobilizando um amplo espectro de conceitos e noções fundamentais da ontologia de Martin Heidegger (1889-1976), um aspecto de relevância para a compreensão não apenas do complexo pensamento do autor alemão, como de sua participação política e comprometimento ideológico com o Nazismo.

O ensaio, conquanto breve, é bastante denso e evidencia domínio do autor sobre os temas fundamentais desta ontologia histórica e pós-metafísica, ainda pouco problematizada pelos historiadores. Tratando-se de uma proposta de fundamentação da historicidade da condição humana e sua aderência à dimensão inescapável da temporalidade, a filosofia de Heidegger oferece contribuição inegável para uma Teoria da História.

Como tradução, Gesner las Casas Brito Filho apresenta-nos O sermão do Lobo aos ingleses (c. 1010-1016). A homilia – gênero retórico renovado na Idade Média Central, sobretudo por parte dos dominicanos, franciscanos e beneditinos, com fulcro no sermo rusticus ou sermo humilis herdado da Patrística – é uma das composições mais conhecidas de Wulfstan de York. O mesmo se intitulava Lupus (lobo, em latim) em seus textos, pois Wulfstan, traduzido do inglês antigo, significa pedra-lobo (wulf-stan).

O Sermo Lupi ad Anglos é um dos únicos documentos que descreve as invasões nórdicas à Inglaterra anglo-saxônica. No período de sua escrita, vivia-se nova fase da ofensiva nórdica, que redundaria em um processo de tomada política do reino inglês. Processo que culminará – entre batalhas, acordos, fugas do rei Æthereld para o continente e outros conflitos – com a coroação do rei dinamarquês Cnut, o grande, como rei da Inglaterra em 1016. Por conseguinte, trata-se de uma fonte para a História das práticas de poder e suas tensões, latentes e patentes, no norte da Europa, durante o início da Idade Média Central, tão mais importante e adequada para a presente edição de Brathair quanto ainda rara e inexplorada pela Medievalística brasileira.

Nas resenhas, Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ) analisa o livro de Ruy Oliveira de Andrade, Imagem e Reflexo, que estuda a cultura, religiosidade e política no reino visigodo de Toledo na Alta Idade Média. João Lupi (UFSC) detalha a importância do Kalevala, edição portuguesa de um conjunto de poemas da Finlândia, compilada no século XIX, por Elias Lönnrot, mas cujo fundo mítico tem influência do período medieval, em especial de aspectos da cultura viking. Lupi destaca também os elementos do poema, sua importância para a cultura da Finlândia, seus aspectos míticos, a relação destes com outras culturas e as características da tradução da obra, daí a importância em estudá-la nos dias atuais.

Por fim, cumpre ressaltar que, à pluralidade de temas, fontes primárias e enfoques analíticos aqui presentes, esta edição de Brathair procurou somar um incentivo à reflexão acerca das fecundas possibilidades de interface entre História, Filosofia e Teoria Literária para a exegese não apenas dos documentos coligidos, mas, principalmente, para nos conceder uma visão mais ampla e sistêmica a respeito da cultura letrada medieval, seja latina ou vernácula. As análises que aqui ofertamos aos leitores, colegas ou diletantes que nos honram com sua leitura, procuram evidenciar a interação entre escrita e oralidade na gesta do cotidiano e das práticas de poder, bélicas ou simbólicas, dos homens e mulheres da Idade Média.

Marcus Baccega – Professor Doutor (UFMA). Pós-Doutorado Université Paris I, 2013. E-mail: [email protected]

Adriana Zierer – Professora Doutora (UEMA). Pós-Doutorado École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2013-2014. E-mail: [email protected]


ZIERER, Adriana; BACCEGA, Marcus. Editorial. Brathair, São Luís, v.13, n.1, 2013. Acessar publicação original [DR]

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O “Grande Norte”: interações, relações e conflitos na Europa Setentrional Medieval / Brathair / 2015

Grande Norte: Interações – Relações – Conflitos na Europa Setentrional Medieval / Brathair / 2015

É inegável o enorme crescimento, tanto quantitativo quanto qualitativo, das pesquisas brasileiras focadas no Medievo nas últimas duas décadas. É mesmo empolgante testemunhar e participar ativamente deste movimento: graduandos, pós-graduandos e titulados de, praticamente, todas as unidades da federação desenvolvem pesquisas sobre a Idade Média, situação que levou à constituição e multiplicação de Grupos, Núcleos e Laboratórios de pesquisa na área o que, por um lado, é muito salutar ao criar estruturas de pesquisa e orientação, facilitando, em teoria, a difusão dos estudos.

Por outro lado, em termos negativos, houve a constituição de um fenômeno de “isolamento” das pesquisas, com a maior parte dos grupos privilegiando explícita ou implicitamente recortes cada vez menores em suas circunscrições espaço-temporais, tratando-os como ilhas distantes de outros contextos vividos pelas mesmas populações em temporalidades diferentes e pouco considerando as relações matizadas por todos os tipos de interações com outras culturas (próximas ou distantes).

Essas abordagens exclusivistas também trazem em si a ameaça da formação de nichos particulares (verdadeiras “reservas de mercado”), em evidente contramão ao movimento de expansão das pesquisas, além dos cerceamentos (muitas vezes extremos e afastados da racionalidade) na escolha do objeto a ser estudado por neófitos na área. Todos sabem que o conhecimento científico só se constrói com projetos estruturados, circulação e debates construtivos, ou seja, em última instância, através da colaboração.

Assim, propomos uma abordagem mais ampla na confecção de nosso dossiê, que denominamos como perspectiva “hiperbórea”, inspirada na Hiperbórea, o além-norte dos gregos. O uso é proposital, uma vez que há uma tradição regional neste sentido: muitos eruditos tentaram encontrar as origens da humanidade e / ou da cultura greco-romana no Norte Europeu, ou ao menos tentaram equiparar o legado nórdico aos vizinhos meridionais e incluir sua importância na História do mundo. Tal tendência, denominada “Escola Hiperbórica”, foi fundamental, por exemplo, para o desenvolvimento do Goticismo na Suécia (Bandle et alii, 2002: 358).

Os problemas destas leituras, porém, já foram amplamente denunciados; Assim, aproveitaremos o termo, mas, diferente dos nossos predecessores, propomos um olhar relacional, ou seja, pautado no estudo de interações, relações e conflitos na Europa Setentrional sem buscar origens, aclamar superioridade de raças, culturas, nações ou nacionalismos. Para nós, este complexo espacial abrigou inúmeras culturas e hibridismos culturais, problemas mais relevantes que discussões particularistas e ultrapassadas.

No bojo da questão, Kilbride condenou termos como “sincretismo” e “hibridismo” porque eles pressupõem um compromisso entre dois estados básicos (neste caso, cristianismo e paganismo) e negam a fluidez entre os dois (2000: 8). Porém, Aleksander Pluskowski e Philippa Patrick revalidaram o termo “hibridismo” sobre outras bases, i.e., para se referir a qualquer situação intermediária entre os dois paradigmas contrastantes, sem ignorar, contudo, as variedades de paradigmas “pagãos” e “cristãos” identificáveis a partir da cultura material (2003: 30-31).

Seria possível aplicar o mesmo instrumental para a Europa Setentrional: apenas nas ilhas Britânicas teríamos a Hiberno-latina, a Hiberno-escandinava, a Anglo-latina, a Anglo-escandinava, a Anglo-normanda, a Anglo-manx, dentre outras igualmente importantes, revelando uma realidade tão fértil quanto as interações que transformaram o Mediterrâneo em um cadinho civilizacional por excelência. Trata-se de uma proposta inclusiva que não refuta as abordagens exclusivistas, mas que conclama à sua integração frente às perspectivas mais amplas, que prometem trazer frutos que poderão impulsionar o futuro de muitos ramos da Medievística brasileira.

Portanto, é com imenso prazer que trazemos a lume o novo número da já tradicional revista Brathair, incluindo algumas novidades em sua programação visual. Sem mais delongas, este número apresenta em seu dossiê os seguintes artigos: de Michael J. Kelly (doutor pela Universidade de Leeds) nos cedeu a publicação em Língua Portuguesa de sua conferência (ministrada da USP dia 05 / 10 / 2015) “Quem lê Pierre Pithou?: O impacto da Renascença francesa na história Visigótica e nas modernas representações do passado medieval inicial”. Lukas Gabriel Grzybowski (doutor pela Universidade de Hamburgo) com “Virtudes e política: Bernardo de Clairvaux e Otto de Freising sobre temperantia e moderatio”, André Szczawlinska Muceniecks (Doutor pela Universidade de São Paulo) com “Ritos de passagem na Ọrvar-Odds Saga – o caso do Homem-Casca” e Isabela Dias de Albuquerque (Doutoranda pelo PPGHC – UFRJ) com “O Massacre do Dia de São Brício (1002) e o reinado de Æthelred II (978-1016): uma introdução a novas possibilidades de análise sobre as relações identitárias na Inglaterra anglo-escandinava”.

A seção de artigos livres conta com os textos de Juan Antonio López Férez (Los celtas en las Vidas de Plutarco, Benito Márquez Castro (Los Hérulos en la Crónica del obispo Hidacio de Aquae Flaviae, mediados de s.V), Dominique Santos & Leonardo Alves Correa (Peregrinatio et Penitentia no livro I da Vita Columbae de Adomnán, séc. VII), Ana Rita Martins (Morgan le Fay: The Inheritance of the Goddess) e Solange Pereira Oliveira (Valores e crenças no mundo pós-morte nos relatos de viagens imaginárias medievais). Finalmente, contamos também com a resenha de José Pereira da Silva, acerca da obra A Fraseologia Medieval Latina, de autoria de Álvaro Alfredo Bragança Júnior.

No texto de Kelly, o autor começou a esboçar a influência de Pierre Pithou sobre o passado medieval visigodo. A ideia do artigo é rever as bases do pensamento moderno sobre a Idade Média, no intuito de entender como o conhecimento desse recorte temporal foi forjado. Esse impacto pode ser sentido não só na historiografia da época, mas também nas leituras contemporâneas e no método empregado pelos historiadores atualmente.

No texto de Muceniecks é possível notar a utilização de uma “saga legendária” e das descrições de regiões míticas como pano de fundo para a constituição de espaços liminares e ritos de passagem no Leste europeu medieval. Albuquerque, no extremo oposto, usou o famoso Massacre do Dia de são Brício (1002) e a organização espacial nas ilhas como parâmetro de observação das relações entre saxões e escandinavos na Inglaterra.

Grzybowski, por sua vez, usou Bernardo de Clairvaux e Otto de Freising como pontos de vista sobre as discussões acerca das virtudes políticas e o exercício político ideal. A análise das epístolas, gênero específico, demonstrou como as condições da época e a experiência monacal ajudaram a moldar as conclusões sobre a política no século XII.

O artigo de Santos & Correa desnudou os conceitos de peregrinação e penitência à luz das concepções usadas durante a Early Christian Ireland. Os autores usaram o primeiro livro da Vita Columbae de Adomnán de Iona (séc. VII) para retomar as condições de peregrinação no contexto irlandês e, nestes termos, recobrar o sistema teológico construído pelo autor da Vida de Columbano.

No texto de Martins, nota-se a preocupação com personagens do mito arturiano e as associações ora benignas, ora malignas, conforme o gênero do personagem. Com o incremento do cristianismo na Matéria da Bretanha, a mágica e as mulheres foram ligadas e formaram um amálgama de teor negativo. Nestes termos, Morgana poderia estar conectada com uma deusa “céltica” ou com a demonização pura e simples de deuses pagãos, tidos como aliados de Satã.

Solange Pereira Oliveira ofereceu ainda um arguto olhar sobre as crenças post morteem nos relatos de viagens imaginárias da Idade Média, que serviam, entre outros fatores, como guias de ensinamentos religiosos e mecanismos evangelizadores dos homens da Igreja; Juan Antonio López Férez, por fim, partiu das Vidas de Plutarco para comentar as diferentes referências aos celtas neste texto, com amplas traduções para a língua espanhola.

Brindamos nossos leitores com essas referências e aguardamos um crescimento ainda maior das produções voltadas para o Setentrião europeu medieval, sobretudo das próximas gerações de pesquisadores.

Referências

BANDLE et alii. The Nordic Languages: An International Handbook of the History of the North Germanic Languages. Vol.1. Berlin: Walter de Gruyter, 2002.

KILBRIDE, William G. Why I feel cheated by the term ‘Christianisation’. Archaeological Review from Cambridge, v. 7, n. 2, pp. 1-17, 2000.

PLUSKOWSKI, Aleksander & PATRICK, Philippa. ‘How do you pray to God?’ Fragmentation and Variety in Early Medieval Christianity In: CARVER, Martin (Ed.). The Cross Goes North: Processes of Conversion in Northern Europe, AD 300-1300. Woodbrigde: Boydell, 2002, pp. 29-57.

Vinicius Cesar Dreger de Araujo – Professor de História na Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). E-mail: [email protected]

Renan Marques Birro – Professor de História na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). E-mail: [email protected]

Elton O. S. Medeiros – Professor de História na Faculdade Sumaré (SP). E-mail: [email protected]


ARAUJO, Vinicius Cesar Dreger de; BIRRO, Renan Marques; MEDEIROS, Elton O. S. Editorial. Brathair, São Luís, v.15, n.1, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Germanismo, barbárie, identidade e alteridade no Ocidente medieval / Brathair / 2015

Germanismo – Barbárie – Identidade – Alteridade no Ocidente medieval / Brathair / 2015

Este Dossiê tem como foco estudos relativos à constituição do Ocidente medieval, com frequência tratados pela historiografia em meio aos debates sobre Antiguidade Tardia ou Primeira Idade Média. Tal campo de estudos encontra-se em afirmação no cenário nacional, impulsionado mesmo por uma nova geração de autores que tem debatido e construído novas abordagens sobre esta temática.

Nas últimas décadas, pesquisadores brasileiros ampliaram suas participações em congressos internacionais e intensificaram o debate com pesquisadores europeus e norte-americanos, dos quais resulta um mútuo crescente interesse de ambos os lados do Atlântico. Este número é uma aposta no desenvolvimento e consolidação de alguns destes nomes na historiografia brasileira, apontando um quadro de renovação e introdução de novos paradigmas, consolidando esta atuação nas áreas da História Antiga e Medieval, em particular.

Apesar das profícuas discussões animadas pela antropologia e pelo panorama político pós-colonial, termos como ‘germanismo’ e ‘barbárie’ costumam ser tratados pela historiografia como princípios cristalizados, muitas vezes antagônicos ao ‘romanismo’ e à ‘civilização’ – todos sendo, ao cabo, ‘mediados’ pelo cristianismo, de acordo com a perspectiva historiográfica tradicional.

Diante de um quadro amplo de discussões pertinentes ao período, a proposta deste Dossiê é a releitura deste binômio não mais como central, mas explorando suas interpretações e características diante de propostas teorizadas que discutam em especial elementos de identidade e alteridade na construção do panorama do Ocidente Medieval no período em questão. Iniciamos nosso com os artigos do professor Paulo Duarte e Nathália Xavier, que comparam o papel dos ‘cristianismos’ galaico e britânico na construção dos regna, “bárbaros”, Suevo e de Kent. Dando continuidade à percepção sobre o papel eclesiástico, devemos destacar como os reinos, comumente chamados germânicos, tiveram na consolidação dos monacatos uma de suas mais importantes bases sociais e políticas de consolidação. Assim os artigos de Alex Oliveira e, em seguida, de Juliana Rafaelli, promovem um quadro complexo da percepção do monasticismo naquele momento.

Uma vez discutido o papel do cristianismo na construção destes reinos, seguimos por caminhos historiográficos que nos permitam consolidar o entendimento da formação destes reinos, assim como as identidades afirmadas e as negadas diante deste processo. Com este fim apresentamos primeiro o artigo do professor Bruno Uchôa, que tem o olhar específico sobre as limitações e potencialidades das pesquisa vinculadas à história da medicina, mas o faz diante do quadro social da chamada Primeira Idade Média. Ainda sob a percepção historiográfica a professora Verônica Silveira, sob um debate que dá tons à controvérsia da identidade, e Otávio Pinto, sob o viés da alteridade, se detêm, respectivamente, nos processos de (re)constituição da identificação de godos e hunos em meio à instalação destes grupos.

Seguem os artigos dos professores Eduardo Daflon e Rodrigo Rainha fazem um abordagem específica sobre ao organização do reino visigodo. Enquanto o primeiro discute as formas de organização do campesinato adotadas no reino, Rainha discute sobre o papel da educação no domínio visigótico, realçando o papel do idoso e suas relações de poder.

A identificação dos “bárbaros” durante a Idade Média não se deteve aos momentos da Alta Idade Média, a identificação do outro foi levada ao outros grupos da Europa Ocidental, esta é abordagem que as professores Célia Danielle, abordando o olhar para os muçulmanos e Marta Silveira sobre os judeus.

Ainda nesta edição apresentamos as resenhas de Jonathas Oliveira sobre o livro de Igor Salomão, que dialoga sobre as relações de poder e a criação da identidade medieval vinculada ao santo; ainda temos a resenha de João de Lupi sobre Maria Antonieta Costa, sobre questões vinculadas a arqueologia atlântica, uma das vanguardas do estudo no século XXI.

Rodrigo dos Santos Rainha – Professor Adjunto – UERJ. E-mail: [email protected]

Paulo Duarte Silva – Professor Adjunto UFRJ. E-mail: [email protected]


RAINHA, Rodrigo dos Santos; SILVA, Paulo Duarte. Editorial. Brathair, São Luís, v.15, n.2, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Feminismos e Patriarcado / Ágora / 2015

Intitulado “Feminismos e patriarcado” o objetivo deste dossiê é reunir estudos de história dos feminismos, na perspectiva de movimento social emancipatório que afirmou a igualdade e a liberdade para as mulheres, e do patriarcado, enquanto discurso normativo de papéis sociais de gênero.

Neste sentido, os artigos de Luciana Silveira, ‘Gênero e patriarcado em denúncias: a violência contra as mulheres idosas em Vitória/ES (2010-2012)’; de Vitor Bourguignon Vogas, ‘“Ven esta noche a mi puerta”: a desconstrução da “mulher frágil” em El Burlador De Sevilla y Convidado De Piedra’; de Kella Rivetria Lucena Xavier ‘“O Feminismo Triumpha!”: mulher e a imprensa patriarcal em Fortaleza na década de 1920’; de Elaine Borges Tardin e Lana Lage da Gama Lima, ‘A mulher militar brasileira no século XXI: antigos paradigmas, novos desafios’; de Mirela Marin Morgante, ‘Feminismos, patriarcado e violência de gênero: as denúncias registradas na DEAM/ Vitória/ES (2002-2010)’; e de Renata Oliveira Bomfim, ‘A Outra Florbela Espanca’, abordam ações de cunho feministas com as quais as mulheres superam as múltiplas opressões e explorações patriarcal-capitalistas que demarcam a sua experiência como ser social. E, os artigos de Fernanda Tais Brignol Guimarães e Vinícius Oliveira de Oliveira, ‘Os comerciais e a representação da mulher: a exploração do corpo e da imagem feminina na mídia’; de Aline Ariana Alcântara Anacleto e Fernando Silva Teixeira-Filho, ‘Problematizando gêneros: um olhar sobre o cinema brasileiro em busca de resistência ao patriarcado’, analisam a articulação do patriarcado ao capitalismo e ao sistema social de opressão das mulheres.

Por sua vez, os estudos apresentados por Cristiane Araújo de Mattos, “‘Patriarcado Público’: estereótipos de gênero e acesso à justiça no Brasil’; de Ana Carolina Eiras Soares e Neide Célia Ferreira Barros, ‘Palavras e silêncios: a ausência de centros de reabilitação de autores de violência doméstica no Brasil e as questões de gênero”; de Suellen André de Souza, “Vagaba Penha”: representações sociais e práticas de administração de conflitos de gênero nas delegacias de polícia de Campos dos Goytacazes’; de Luana Rodrigues da Silva, ‘O acesso à justiça no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher no município de Campos dos Goytacazes’; de Ana Carla Oliveira Pinheiro e Lana Lage da Gama Lima, ‘Gênero e políticas públicas: uma análise do projeto ‘Mulheres da Paz’’, priorizam discussões no âmbito da responsabilização do Estado e das políticas públicas na conquista de melhores condições de vida da população feminina e masculina que sofre violência de gênero. E, os trabalhos de Francesco Suanno Neto, ‘Família, demografia e mulheres: diálogo entre campos históricos’; de Ana Lucia Santos Coelho, ‘Infâmia, escândalo e pecado: relações de concubinato no Brasil Colônia’; de Renata Santos Maia e Cláudia J. Maia, ‘Os contos de fadas no cinema: uma perspectiva das construções de gênero, sua história e transformações’; de Kalline Flávia S. Lira e Ana Maria de Barros, ‘Violência contra as mulheres e o patriarcado: um estudo sobre o sertão de Pernambuco’, e, por fim, de Cristiane Galvão Ribeiro et al., ‘Representações sociais do casamento: um estudo intergeracional’, apresentam resultados de pesquisas que fazem reflexões sobre as relações entre as práticas do patriarcado e o comportamento feminino e masculino no âmbito da história social das relações de gênero.

O objetivo fundamental desse número da Revista Ágora é o de estimular, a despeito das conquistas sociais e dos dispositivos legais que postulam a igualdade de direitos entre homens e mulheres, novos estudos que levantem questões da prescrição normativa patriarcal, como uma forma de violência de gênero e de violação dos direitos humanos das mulheres, assim como a criativa e subversiva capacidade de resistência humana a prescrições impostas, em especial a resistência histórica das mulheres e dos homens nos diversos feminismos.

Desta forma, este dossiê contempla artigos que tratam da temática ‘Feminismos’ em seus múltiplos aspectos, assim como do tema ‘Patriarcado’ em suas várias vertentes, configurando diversas formas de dominação em diferentes períodos históricos.

Maria Beatriz Nader –  Organizadora.

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Outras eróticas e desejos possíveis (I) / Albuquerque: Revista de História / 2015

É com imensa satisfação que apresentamos a@s leitor@s de albuquerque: revista de história o dossiê Outras eróticas e desejos possíveis, conjunto temático de textos proposto com vistas à socialização e debate de pesquisas referentes ao amplo campo interdisciplinar dos estudos sobre a sexualidade e as performances de gênero em suas diferentes facetas e suportes.

Na história ocidental a sexualidade e sua relação como o poder, a política e a cultura, remontam à narrativa seminal do Gênesis. No Éden, o criador advertiu ao homem que deveria ter cuidado com a arvore da ciência do bem e do mal, pois se dela comesse haveria consequências negativas. Ali encontramos o cenário e o herói (Adão) originário da saga cristão-ocidental; faltava a vilã dessa história, e senhor resolveu criá-la, fazendo-lhe adjutora de Adão, Eva.

Quando o homem provou o fruto proibido no jardim do Éden, iniciou-se sua conturbada relação com seu corpo e sexualidade. Incitada pela serpente, Eva ousou tocar e provar da árvore que lhe parecia agradável e cujos frutos pareciam bons para serem comidos e os compartilha com Adão. Segunda a narrativa sagrada, o ato de Eva ocorreu em função da curiosidade e da ganancia humanas; os homens ansiavam se comparar a Deus e esperavam que isso ocorresse ao comer do fruto e conhecer o bem e mal; encontraram, entretanto, o castigo da decadência – oriunda do afastamento daquelas plagas e o impedimento de comer da árvore da vida, o que levaria à mortalidade.

Ao provar do fruto perceberam que estavam nus e se cobriram com a folha da figueira. O que antes, segundo a narrativa bíblica, era um mundo natural marcado pela relação harmoniosa entre o criador e a criatura, tornou-se uma experiência de dor, de negação do corpo, da sexualidade e do prazer sexual. O ato de desobediência foi punido severamente pelo criador que amaldiçoou a serpente, e condenou o homem a comer o pão com o suor do teu rosto até que retornasse ao pó e a mulher parir com dor os seus filhos e a desejar seu marido que a dominaria.

(Cumpre, aqui, abrir esse parêntesis, para retomar outra figura feminina, presente nas tradições babilônica e hebraica, associada a Adão: Lilith. Ela teria sido a primeira mulher, feita do mesmo barro que seu companheiro, não de sua costela. Em determinado momento, querendo ficar por cima de Adão durante o coito sexual, teria por isso sido expulsa do paraíso, perseguida por anjos. Enquanto fugia, copulava com animais e demônios, dando à luz outros seres. Teria se refugiado no mar, tornando-se sua senhora. É também associada à noite. Outra vez, a mulher é a transgressora, mas aqui, tendo “ofendido” seu companheiro com sua audácia erótica, sofre sozinha as consequências de seus atos.)

Retomando a passagem da expulsão de Adão e Eva, sobre qual se assenta a longa tradição ocidental de negação do corpo e do desejo, do exercício do poder patriarcal que subordina, explora e mata as mulheres e todos os demais sujeitos considerados inferiores ao homem branco, cristão e europeu. Foi, portanto, a partir da subordinação sexista, misógina e machista que se construiu o projeto de civilização no ocidente, bem como o projeto de colonização que se espalhou por diversas regiões do mundo, as quais, como apontou Michael Foucault, o cristianismo modificou o cenário, fazendo a ligação entre sexo e pecado da carne, distanciando-o da noção de desejo.

Foucault também afirma que a partir do século XVI, com reforço no XIX, o sexo foi incitado a se manifestar. O autor pensa a história do homem e do desejo e realiza uma genealogia de como o homem ocidental foi levado a se reconhecer como sujeito de desejo. A sociedade capitalista não obrigou o sexo a esconder-se. Contudo, ainda hoje, em pese o crescimento do consumo da pornografia, da prostituição (principalmente feminina), da divulgação de discursos de especialistas sobre o sexo e das experiências proporcionadas pelo ciberespaço, ainda lidamos mal com nosso corpo e nossa sexualidade. Ainda existem diversos tabus, sobretudo hoje, com a retomada conservadora em escala global que interdita a discussão sobre a sexualidade na família, na escola e no espaço público de maneira geral.

Assim ansiamos, nesse dossiê, verticalizar reflexões e debater teórica e metodologicamente, além da relação entre história e imprensa escrita, linguagens artísticas, produção virtual, os movimentos feministas, em suas diversas temporalidades e feições, a violência de gênero e os movimentos de afirmação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, bem como suas representações, a sexualidade e suas diversas expressões e representações (artísticas, corporais, sociais), notadamente aquelas divergentes da heteronormatividade e os embates sociais que de tais expressões surgem.

Além disso, debateremos ainda as novas possibilidades de expressão das performances de gênero, seja nas práticas sexuais efetivas ou ainda no ciberespaço. Há na contemporaneidade uma ênfase significativa nos valores e virtudes de instantaneidade e de descartabilidade, sendo importante a capacidade de abandonar rapidamente um sistema de valores e estilos de vida e construir imagens e personas que se moldem a diferentes situações, sobretudo nos ambientes virtuais, espaços nos quais ocorre uma reconfiguração das relações de sociabilidade, da sexualidade, dos corpos e das performances de gênero. Todas as dimensões da sexualidade são reelaboradas nesse ambiente. Corpos, prazeres, sensações eróticas são experimentadas numa nova relação corpo-máquina.

Organizamos esse dossiê em dois volumes, sendo o primeiro “Outras eróticas e desejos possíveis, volume I”, referente ao volume 7, número13 de albuquerque: revista de história, nos meses de janeiro a junho de 2015, o que segue.

Assim, no primeiro conjunto de textos @s autor@s voltam-se ao jornal O Lampião da Esquina, importante publicação sobre a cultura homoerótica no Brasil recente. Edvaldo Correa Sotana e Mellany de Oliveira Guimarães, no texto Ativismo político em traços de humor: as charges veiculadas no jornal O Lampião da Esquina (1978-1981), estabelecem relações entre imprensa escrita, ditadura militar brasileira, política e produção de charges, apresentando dados referentes ao levantamento de charges veiculadas no jornal entre os anos de 1978 e 1981 e indicando as charges como instrumento de ação política na resistência ao regime militar brasileiro. Débora de Sousa Bueno Mosqueira, no artigo “Então chegamos”: representações do feminino nas páginas d’O Lampião da Esquina (1978-1981), analisa as representações produzidas sobre a mulher por meio da categoria gênero no jornal que circulou no Brasil nos anos de 1978 até 1981. Já Victor Hugo da Silva Gomes Mariusso, no texto “Prendam, matam e comam os travestis”: a imprensa brasileira e seu papel na exclusão da população lgbt (1978-1981), busca compreender, a partir de algumas reportagens, como a imprensa brasileira constrói práticas de exclusão e destaca a importância d’O Lampião da Esquina não só como jornal alternativo, mas como ferramenta política que contribuiu para a visibilidade de tais questões em um período marcado pelo regime militar e por mudanças nas formas de atuações dos grupos tidos ali como “minoritários”.

Na segunda parte deste primeiro volume do dossiê “Outras eróticas e desejos possíveis”, os textos focalizam as reflexões acerca da sexualidade e das performances de gênero em suas múltiplas dimensões e representações estéticas, e ainda o gênero como categoria de análise e definidor de grupos sociais e seus movimentos.

Andrew Feitosa do Nascimento, no artigo Os primeiros grupos de afirmação homossexual no brasil contemporâneo, mapeia os grupos representativos do movimento lgbt no Brasil, bem como suas estratégias de visibilidade, a partir de levantamento realizado por meio da bibliografia especializada e dos sítios voltados à temática na rede mundial de computadores. Leonardo Nascimento, no texto Qual ideologia de gênero? A emergência de uma teoria religiosa fundamentalista e seus impactos na democracia, analisa e desconstrói os discursos religiosos fundamentalistas cristão e político-jurídico que circularam na mídia nas vésperas da aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), em 2014, por deputados conservadores, mobilizados por fundamentalistas cristãos dentro e fora do campo da representação política, contra o que foi definido por eles como “ideologia de gênero”. Em A mecanização do prazer: sexualidade e corpo no ciberespaço, Aguinaldo Rodrigues Gomes procura discutir o processo de mecanização do prazer propiciado pelo advento da Internet, identificando uma nova sociabilidade e uma reconfiguração dos corpos no ambiente virtual. Para tanto, recorro a depoimentos colhidos nos sites de “bate-papo”, buscando situá-los no debate teórico acerca da pós-modernidade. Finalmente, Miguel Rodrigues de Sousa Netto, no texto Miditiatização, representações, violência: paradoxos das experiências lgbt no Brasil contemporâneo, nos apresenta uma reflexão sobre as experiências da população formada por transgêneros, lésbicas, bissexuais e gays na história recente e presente do Brasil, indicando o paradoxo da visibilidade / midiatização e a permanência da violência. O autor manifesta sua perplexidade diante manutenção da violência em suas diversas formas, e ainda a manutenção de redes de sociabilidade e encontros eróticos e a midiatização / representação dos / sobre a população lgbt, apontando, finalmente, para a necessidade de ruptura com a cultura hegemônica heteronormativa e mantenedora do binarismo de gênero e da violência que disso advém.

Espera-se, por fim, que @s leitor@s apreciem as presentes reflexões que reafirmam a transversalidade das eróticas e das performances de gênero na sociedade contemporânea, bem como uma cultura que nega a violência de gênero em suas diversas formas e repõe as experiências libertárias dos usos dos corpos, de suas expressões e sociabilidades.

Para além, na Seção de Artigos Livres, Bruno Roberto Nantes Araujo, no artigo intitulado A historicidade do TILS – Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais: do anonimato ao reconhecimento, desenvolve sua análise histórica do aparecimento e transformações do sujeito tradutor e intérprete de Língua de Sinais, abordando também a legislação referente ao mesmo no Brasil. Mais uma vez, diferença e inclusão entram na pauta do dia.

Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]

Aguinaldo Rodrigues Gomes – Doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do Curso de História do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]


SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.7, n.13, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Outras eróticas e desejos possíveis – volume II / Albuquerque: Revista de História / 2015

É com imensa satisfação que apresentamos a@s leitor@s de albuquerque: revista de história o dossiê Outras eróticas e desejos possíveis, conjunto temático de textos proposto com vistas à socialização e debate de pesquisas referentes ao amplo campo interdisciplinar dos estudos sobre a sexualidade e as performances de gênero em suas diferentes facetas e suportes.

Na história ocidental a sexualidade e sua relação como o poder, a política e a cultura, remontam à narrativa seminal do Gênesis. No Éden, o criador advertiu ao homem que deveria ter cuidado com a arvore da ciência do bem e do mal, pois se dela comesse haveria consequências negativas. Ali encontramos o cenário e o herói (Adão) originário da saga cristão-ocidental; faltava a vilã dessa história, e senhor resolveu criá-la, fazendo-lhe adjutora de Adão, Eva.

Quando o homem provou o fruto proibido no jardim do Éden, iniciou-se sua conturbada relação com seu corpo e sexualidade. Incitada pela serpente, Eva ousou tocar e provar da árvore que lhe parecia agradável e cujos frutos pareciam bons para serem comidos e os compartilha com Adão. Segunda a narrativa sagrada, o ato de Eva ocorreu em função da curiosidade e da ganancia humanas; os homens ansiavam se comparar a Deus e esperavam que isso ocorresse ao comer do fruto e conhecer o bem e mal; encontraram, entretanto, o castigo da decadência – oriunda do afastamento daquelas plagas e o impedimento de comer da árvore da vida, o que levaria à mortalidade.

Ao provar do fruto perceberam que estavam nus e se cobriram com a folha da figueira. O que antes, segundo a narrativa bíblica, era um mundo natural marcado pela relação harmoniosa entre o criador e a criatura, tornou-se uma experiência de dor, de negação do corpo, da sexualidade e do prazer sexual. O ato de desobediência foi punido severamente pelo criador que amaldiçoou a serpente, e condenou o homem a comer o pão com o suor do teu rosto até que retornasse ao pó e a mulher parir com dor os seus filhos e a desejar seu marido que a dominaria.

(Cumpre, aqui, abrir esse parêntesis, para retomar outra figura feminina, presente nas tradições babilônica e hebraica, associada a Adão: Lilith. Ela teria sido a primeira mulher, feita do mesmo barro que seu companheiro, não de sua costela. Em determinado momento, querendo ficar por cima de Adão durante o coito sexual, teria por isso sido expulsa do paraíso, perseguida por anjos. Enquanto fugia, copulava com animais e demônios, dando à luz outros seres. Teria se refugiado no mar, tornando-se sua senhora. É também associada à noite. Outra vez, a mulher é a transgressora, mas aqui, tendo “ofendido” seu companheiro com sua audácia erótica, sofre sozinha as consequências de seus atos.)

Retomando a passagem da expulsão de Adão e Eva, sobre qual se assenta a longa tradição ocidental de negação do corpo e do desejo, do exercício do poder patriarcal que subordina, explora e mata as mulheres e todos os demais sujeitos considerados inferiores ao homem branco, cristão e europeu. Foi, portanto, a partir da subordinação sexista, misógina e machista que se construiu o projeto de civilização no ocidente, bem como o projeto de colonização que se espalhou por diversas regiões do mundo, as quais, como apontou Michael Foucault, o cristianismo modificou o cenário, fazendo a ligação entre sexo e pecado da carne, distanciando-o da noção de desejo.

Foucault também afirma que a partir do século XVI, com reforço no XIX, o sexo foi incitado a se manifestar. O autor pensa a história do homem e do desejo e realiza uma genealogia de como o homem ocidental foi levado a se reconhecer como sujeito de desejo. A sociedade capitalista não obrigou o sexo a esconder-se. Contudo, ainda hoje, em pese o crescimento do consumo da pornografia, da prostituição (principalmente feminina), da divulgação de discursos de especialistas sobre o sexo e das experiências proporcionadas pelo ciberespaço, ainda lidamos mal com nosso corpo e nossa sexualidade. Ainda existem diversos tabus, sobretudo hoje, com a retomada conservadora em escala global que interdita a discussão sobre a sexualidade na família, na escola e no espaço público de maneira geral.

Assim ansiamos, nesse dossiê, verticalizar reflexões e debater teórica e metodologicamente, além da relação entre história e imprensa escrita, linguagens artísticas, produção virtual, os movimentos feministas, em suas diversas temporalidades e feições, a violência de gênero e os movimentos de afirmação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, bem como suas representações, a sexualidade e suas diversas expressões e representações (artísticas, corporais, sociais), notadamente aquelas divergentes da heteronormatividade e os embates sociais que de tais expressões surgem.

Além disso, debateremos ainda as novas possibilidades de expressão das performances de gênero, seja nas práticas sexuais efetivas ou ainda no ciberespaço. Há na contemporaneidade uma ênfase significativa nos valores e virtudes de instantaneidade e de descartabilidade, sendo importante a capacidade de abandonar rapidamente um sistema de valores e estilos de vida e construir imagens e personas que se moldem a diferentes situações, sobretudo nos ambientes virtuais, espaços nos quais ocorre uma reconfiguração das relações de sociabilidade, da sexualidade, dos corpos e das performances de gênero. Todas as dimensões da sexualidade são reelaboradas nesse ambiente. Corpos, prazeres, sensações eróticas são experimentadas numa nova relação corpo-máquina.

Organizamos esse dossiê em dois volumes, sendo o primeiro “Outras eróticas e desejos possíveis, volume I”, referente ao volume 7, número 13 de albuquerque: revista de história, nos meses de janeiro a junho de 2015, e o segundo volume (referente ao volume 7, número 14, nos meses de julho a dezembro de 20015) o que segue.

Assim, no primeiro conjunto de textos @s autor@s tomam como objeto de suas análises a produção literária. No primeiro artigo deste segundo volume do dossiê, Dilemas sentimentais e identidade homoerótica: uma leitura de Frederico Paciência de Mário de Andrade, Peterson José de Oliveira se debruça sobre o conto de Mário de Andrade escrito e reescrito por dezoito anos, no qual a amizade e o homoerotismo se desenrolam entre dois adolescentes. Um libelo ao desejo. Flávia Benfatti, em Identidade de gênero: a masculinidade hegemônica em Tropic of Capricorn, toma a obra de Henry Miller, publicada em 1961 (traduzida no Brasil em 1975) para acionar as categorias de sexo, gênero, sexualidade como construções sociais, analisando, em especial, o primado da masculinidade. George de Santana Mori, no artigo Queer, identidade e masculinidade em Giovanni, de James Baldwin, busca interpretar as principais personagens do romance publicado em 2008 a partir das questões de gênero e da teoria queer, notadamente a partir da construção identitária das masculinidades homossexual e heterossexual. O embate hegemonia versus diferença permeia sua narrativa. Encerrando esse primeiro conjunto de textos dedicados à literatura está o artigo de João Carlos Nunes Ibanhez, Cartografias homoeróticas: uma leitura de Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu. O autor, interdisciplinarmente, busca compreender a produção de espaços na obra literária de Caio Fernando Abreu, bem como as formas de apropriação de parte destes espaços, especialmente os marginais, por determinados grupos sociais, entre eles os homossexuais, transformando a margem em seu locus de atuação. Literatura, espacialidade e tensões sociais são o foco de Ibanhez.

No segundo conjunto de artigos que compõe o segundo volume do dossiê Outras eróticas e desejos possíveis, encontra-se o texto de Robson Pereira da Silva, “Nenhuma malícia será castigada”: eróticas no corpo e no palco de Ney Matogrosso, no qual o autor analisa aspectos do espetáculo Mato Grosso, de 1982, de Ney Matogrosso, compreendendo-o na conjuntura de sua produção, ou seja, no Brasil da abertura, da decadência da ditadura militar estabelecida por meio do Golpe de 1964, trazendo à baila os sujeitos marginais tornados arquétipos pelo artista, tais como índios, caipiras e malandros, carnavalizados, erotizados. Antonio Ricardo Calori de Lion, no artigo Ivaná: a grande dúvida no Teatro de Revista dos anos 1950, apresenta um belo estudo sobre as ambiguidades da representação de gêneros da transformista Ivaná, nos anos 1950, no Teatro de Revista da Companhia de Walter Pinto. A repercussão da dúvida sobre a performatividade de gênero do / a artista foi objeto de matérias na imprensa escrita, de capas de revista. Compreender esse impacto no Brasil dos anos 1950 é uma tarefa importante para o conjunto dos estudos Gays, Lésbicos e Transgênicos da atualidade. Encerrando o dossiê, Diego Aparecido Cafola, no texto Madame para uns, Satã para outros: uma leitura do corpo marginal em Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz, busca, a partir da interseccionalidade, compreender a personagem criada por Aïnouz e vivida nas telas pelo ator Lázaro Ramos, João Francisco dos Santos, e sua transformação em Madame Satã, uma das lendas da boemia e da malandragem cariocas. Aqui, a violência tornada linguagem, a navalha transformada em resposta.

Espera-se, por fim, que @s leitor@s apreciem as presentes reflexões que reafirmam a transversalidade das eróticas e das performances de gênero na sociedade contemporânea, bem como uma cultura que nega a violência de gênero em suas diversas formas e repõe as experiências libertárias dos usos dos corpos, de suas expressões e sociabilidades.

Para além, na Seção de Artigos Livres, Cássio Rodrigues da Silveira, no artigo intitulado Crise do regime de historicidade moderno, individualização e confiança: entre os movimentos e as mobilizações, analisa o tipo de indivíduo e de individualidade que têm sido produzidos na contemporaneidade, a partir de proposições de R. Koselleck e F. Hartog, avaliando suas implicações para a efetivação dos movimentos sociais. Mais uma vez, indivíduo, coletividades, diferença e tensionamentos sociais entram na pauta do dia.

Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]

Aguinaldo Rodrigues Gomes – Doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do Curso de História do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]


SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.7, n.14, 2015. Acessar publicação original [DR]

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Deslocamentos interamericanos: literaturas caribenhas produzidas nos EUA e no Canadá / Revista Brasileira do Caribe / 2015

Quando Antonio Benítez Rojo propõe sua metáfora conceitual do Caribe como meta-arquipélago, como uma ilha que se repete ao longo da bacia marítima, funda uma imagem do universo caribenho que tem muito menos a ver com uma região delimitada geografi camente do que com uma dinâmica de comportamentos que se estende e se multiplica, eu diria, para além das próprias ilhas. Pensar o Caribe como universo cultural que se infi ltra no continente, visualizando sua literatura nos vínculos de pertencimento a uma comunidade literária interamericana, é o centro articulador dos trabalhos que integram o dossiê “Deslocamentos interamericanos: literaturas do Caribe nos Estados Unidos e no Canadá”, especialmente preparado para este número da Revista Brasileira do Caribe.

A problemática do deslocamento cultural é central nas refl exões dos ensaios do dossiê, assim como nos artigos que incluímos na seção “Outros deslocamentos caribenhos”. O movimento diaspórico que caracteriza a história do Caribe, o permanente trânsito cultural, os processos de negociação linguística que se operam nesses trânsitos, a imaginação diaspórica, as múltiplas formas do biculturalismo e da extraterritorialidade, os deslocamentos de um suposto cânone, são temas discutidos no número, que integrou o trabalho de professores e pesquisadores de diferentes universidades do Brasil e dos Estados Unidos, além da obra criativa de escritores caribenhos, especifi camente cubanos, radicados na América do Norte.

Abre o dossiê um ensaio de Roland Walter, “Entre mares e lares: a poética da (des) locação na literatura do arquipélago caribenho”, que aposta em uma hermenêutica do espaço para estudar textos de escritores caribenhos estabelecidos na América do Norte, como Marlene Nourbese Philip, natural de Trinidad & Tobago e radicada no Canadá; Émile Ollivier e Dany Laferrière, haitiano-canadenses, e Jamaica Kincaid, que nasceu em Antígua e vive nos Estados Unidos desde os dezessete anos. O ensaísta estuda a relação que as subjetividades migrantes estabelecem com a noção de lugar. Para isso examina a elaboração de uma espacialidade textual nas obras objeto de estudo e como esta traduz a contínua renegociação identitária entre culturas e lugares.

A fi cção especulativa pós-colonial de Nalo Hopkinson, escritora canadense nascida na Jamaica, cuja fi cção científi ca funde elementos canônicos do gênero com marcadores que remetem claramente a uma modernidade contracultural, é estudada por Sonia Torres em “Modernidade contracultural e pós-‘clonial’ em Midnight Robber, de Nalo Hopkinson”, texto que propõe uma leitura do premiado romance de Hopkinson argumentando como a obra aponta, metaforicamente, para as tensões entre o arquivo ofi cial da modernidade e os pontos cegos dessa mesma narrativa.

Na órbita dos estudos sobre a memória, Denise Almeida estuda em “Abeng: identidades, memórias e histórias em disputa” as formas em que se opera a revisão da memória e das identidades nacional e pessoal no romance Abeng, da escritora jamaicano-americana Michelle Cliff. Ressalta-se neste ensaio o papel organizador e criativo da memória, especialmente a forma como as triagens, acréscimos e eliminações feitas sobre as lembranças impactam na construção da identidade individual e social. A ensaísta frisa o papel decisivo no romance das memórias subterrâneas e minoritárias, que desafi am a memória ofi cial e trazem à tona histórias silenciadas, colocando em confl ito uma memória nacional e pessoal.

O texto “Discursos da memória na literatura da diáspora cubana nos Estados Unidos”, de Elena Palmero González, apresenta uma leitura em diacronia do conceito de diáspora, sua ressemantização na crítica cultural contemporânea, assim como seus vínculos com a atividade memorial. A partir desses pressupostos, discute como as comunidades diaspóricas elaboram formas criativas de memória individual e coletiva, tema que estuda de maneira pontual em um conjunto de textos pertencentes ao universo da literatura cubano-americana, cuja temática central e formas discursivas dominantes estão vinculadas à estetização de uma memória diaspórica.

Na sequência, Jesús Barquet, no ensaio “A literatura hispana dos Estados Unidos: refl exões começando o século XXI”, conduz sua discussão para o tema mais abrangente da literatura latina nos Estados Unidos, incluindo em suas considerações problemas fundamentais da literatura caribenha no espaço geocultural estadunidense. Buscando desativar binarismos derivados de práticas discursivas dos séculos XIX e XX (maioria/minoria; anglo/hispano; centro/periferia), o ensaísta discute como a presença hispana, cada vez maior nos Estados Unidos, nos convoca a repensar e redefi nir o cânone da literatura estadunidense e, por extensão, também o cânone das literaturas latino-americanas e caribenhas no século XXI.

Encerra o dossiê uma breve seleção poética de cinco escritores da diáspora cubana nos Estados Unidos: Magali Alabau, Jesús Barquet, Alina Galliano, Maya Islas e Juana Rosa Pita. Trata-se de uma amostra expressiva do vigoroso movimento da poesia cubana produzida no espaço geocultural estadunidense.

Nesse conjunto notamos a singularidade estética de cada um deles, ao mesmo tempo em que reconhecemos linhas temáticas e estilísticas que caracterizam, de modo mais amplo, a poesia cubana contemporânea.

Completam o numero três ensaios e uma entrevista, que circulam por outros temas caribenhos, também articulados ao problema do deslocamento, entendido neste caso em sentido amplo, não somente como mobilidade física, mas também espiritual, linguística, ideológica, discursiva ou genérica.

O ensaio de Maria Bernadette Velloso Porto, intitulado “Representações da escuta e da palavra da noite em autores francófonos de origem antilhana”, propõe um estudo da oralidade na obra de autores francófonos oriundos das Antilhas. Sua análise aponta a ilegibilidade, a opacidade e a performatividade como formas deslocadas da identidade desses textos, aprofundandose na recuperação da fi gura do contador de histórias e nas relações entre o gesto de escutar e a prática de contar histórias, vistas como lugares de resistência cultural na obra de escritores sensíveis ao processo de crioulização. Para melhor desenvolver suas ideias, a ensaísta estuda o romance Tambour-Babel (1996), do escritor guadalupense Ernest Pépin, um texto que explora a complementaridade entre o domínio da palavra, a performance dos virtuoses do tambor e a arte da dança, enfatizando no corporal e na capacidade de improvisação ligados ao jogo performativo da escrita.

A obra de quatro escritores caribenhos – Aimé Césaire, Édouard Glissant, Patrick Chamoiseau (nascidos em Martinica) e Maryse Condé (de Guadalupe) – é explorada no ensaio de Euridice Figueiredo, intitulado “Caribe francófono e África: interseções”, a fi m de detectar o tipo de relação que esses escritores estabeleceram com a África ao longo de sua vida e de sua obra. A partir da análise dessa relação, a ensaísta desenvolve um estudo diacrônico do pensamento que articula os movimentos negros em torno a duas posições fundamentais relativas à Africa: o mito do retorno à mãe Africa (presente em Cesaire e Condé) e o desejo de enraizamento no solo americano, com o reconhecimento da crioulização como processo que jamais devolverá a Africa, só como alegoria literária (presente em Glissant e Chamoiseau).

“Pater familias por una literatura menor: la poética conceptual del Grupo Diáspora(s)”, de Idalia Morejón Arnaiz, propõe estudar a produção do grupo cubano Diáspora(s) como um dos locus teoricus privilegiados do pós-estruturalismo em Cuba.

Lembrando que o pensamento de Foucault, Derrida, Deleuze e Guattari serviu de ferramenta de interpretação da política e da arte para diversas manifestações coletivas dos anos 1980 na ilha, a ensaísta analisa como as ações concretas do grupo Diáspora(s), assim como sua fi losofi a, se articularam a esse pensamento para expressar o deslocamento substancial que o grupo marcou em relação ao cânone da poesia nacional. Além disso, a autora mostra como a experimentação estética funcionou também como dispositivo da práxis politica.

Encerra o número uma instigante entrevista realizada por Luana Antunes Costa ao escritor martiniquense Patrick Chamoiseau em junho de 2013, durante visita da pesquisadora a Fort-de-France. A conversa versa sobre o contexto sociopolítico e cultural de Martinica, as relações identitárias da ilha com as Américas e com a França; sobre a dinâmica da escrita com Eduard Glissant e sobre conceitos como beleza e política. Como era de se esperar, a conversa fl ui de maneira diáfana e sempre inteligente, tocando pontos centrais da concepção poética e política do escritor.

Vistos em conjunto, todos os textos que integram o número oferecem variações muito originais de um mesmo tema: as múltiplas formas em que o deslocamento e/ou o pensar deslocado impacta a cultura contemporânea no Caribe.

Elena Palmero González


GONZÁLEZ, Elena Palmero. Deslocamentos interamericanos: literaturas caribenhas produzidas nos EUA e no Canadá. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.15, n.20, jan./jun., 2015. Acessar publicação original. [IF].

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Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004) – DERRIDA (A-EN)

DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Organização de Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas. Tradução de Marcelo Jacques de Moraes. Revisão técnica de João Camillo Penna. Florianópolis: Editora UFSC, 2012. Resenha de PIMENTEL, Davi Andrade, Alea, Rio de Janeiro, v.17 n.1, jan./june, 2015.

Gostaria de começar esta resenha pelo tom dado por Derrida a seus textos que compõem o livro Pensar em não ver. O tom é o modo pelo qual o escritor convida o leitor a participar de seu texto. O tom, por assim dizer, é um chamado que, segundo Derrida, ganha o contorno da palavra vem – é preciso dizer que essa palavra está desconstruída pelo escritor, está violentada, retomada, reprisada, maltratada para que possa significar o além-dela-mesma. No momento em que esses textos dizem vem, eles nos chamam a participar de uma experiência de escrita que retoma ou nos direciona a uma experiência sobre a arte visual em parceria com o escritor; experiência que se configura como um chamado que não nos diz vem por aqui ou por ali, que não nos garante nada e que nem mesmo nos faz uma promessa. É por nada prometer que cada momento de leitura desses textos se transforma em um acontecimento – ele próprio, o livro, é o acontecimento: “trata-se da viagem não programável, da viagem cuja cartografia não é desenhável, de uma viagem sem design, de uma viagem sem desígnio, sem meta e sem horizonte. A experiência, a meu ver, seria exatamente isso” (DERRIDA, 2012: 80). O vem é o tom de um chamado, é a experiência – esta, por sua vez, nos chega através da árdua tarefa do tradutor Marcelo Jacques de Moraes, com suas perdas e ganhos, tensionada entre a dívida e a criação, entre a língua a traduzir e a língua traduzida. Tarefa que faz ressoar o tom derridiano, um tom também a traduzir, já traduzido.

Desde o primeiro texto, “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”, o escritor expõe a importância do tom antes mesmo do conteúdo de seus textos, pois o tom é o que se apresenta primeiro no jogo de apostas da escritura, como também é a base para que esse jogo possa ser efetivamente jogado. O tom mantém com o texto e com o leitor uma relação de risco, de incitação, de excitação e de gozo, por isso a iniciativa de Derrida em pluralizar o tom, em escrever em vários tons, para que o seu texto não fique restrito a um só interlocutor: “Pergunto-me com quem estou falando, como vou jogar com o tom, o tom sendo precisamente o que informa e estabelece a relação” (DERRIDA, 2012: 42). Se não podemos negligenciar os suportes, os “debaixos” de uma obra de arte, como bem lembra Derrida no texto “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito, sequaz e suplício”, por ser o debaixo o suporte necessário para que a obra de arte possa ser tomada enquanto tal, não podemos negligenciar também o tom que age como suporte do texto apresentado pelo escritor, por todo e qualquer escritor: “qualquer que seja sua matéria, o corpo do suporte é uma parte indissociável da obra” (DERRIDA, 2012: 287).

Da composição dos textos derridianos de Pensar em não ver, o tom que se sobressai é o de uma certa familiaridade, ou melhor, de uma certa informalidade, no que essas duas palavras têm de um certo deixar-se à vontade, não apenas pelas entrevistas que recortam magistralmente o todo do livro, como costuras que reafirmam a relação entre escritor e leitor, mas, sobretudo, pelos textos corridos. Quando Derrida reflete sobre a pintura, a fotografia, o desenho, o teatro, a videoinstalação e o cinema, o tom dado a esses textos é o tom de uma familiaridade que rompe com a formalidade mais precisa que encontramos em outros textos seus. Tudo se passa como se o próprio Derrida estivesse em face do leitor para compartilhar com ele o seu pensamento sobre as artes do visível, sobre a sua potência impotente que a todo instante se faz presente quando lhe é pedido para falar/escrever sobre uma arte que não é a da escritura: “Estou muito feliz e honrado por me encontrar aqui, intimidado também porque, como os senhores verão, minha incompetência é real, e não é de modo algum por uma fórmula de polidez ou de modéstia que começo declarando-a, essa incompetência” (DERRIDA, 2012: 163).

Em Pensar em não ver, do convite do tom se passa ao convite em forma de pensamento que Derrida faz tão bem: “O pensamento é também pensável em um movimento pelo qual ele chama a vir, ele chama, ele nos chama” (DERRIDA, 2012: 75). Pensamento que convida a pensar a arte visual enquanto produto de uma invisibilidade que lhe é essencial. Derrida defende ao longo de seus 20 textos que a visibilidade tem como contraponto seu suporte invisível. Na verdade, o que nos é dado a ver é o invisível, não o visível. No texto “O Sacrifício”, dedicado ao teatro, Derrida diz: “Mas se, desde sempre, o invisível trabalha o visível, se, por exemplo, a visibilidade do visível – o que torna visível a coisa visível – não é visível, então uma certa noite vem cavar um abismo na própria apresentação do visível” (DERRIDA, 2012: 399). A própria luz que nos ilumina é invisível, a própria palavra que nos constitui homens é invisível, logo, somos todos feitos, desenhados, pintados, modelados, filmados a partir de nossa nudez invisível.

Do contorno invisível próprio a toda arte, Derrida elege a figura do cego como o modelo de sua concepção artística. No texto “Pensar em não ver”, o escritor compreende que, para existir o desenho, ou, de uma forma mais geral, para que a arte visual possa existir enquanto acontecimento singular e único, é preciso que metaforicamente o artista se cegue, é preciso que ele passe pelo processo do enceguecimento. Em uma das passagens mais brilhantes do livro, Derrida comenta que, por termos os olhos à frente de nossos rostos, temos o que chamamos de horizonte. Através do horizonte, vemos vir o que nos chega e, desse modo, podemos tanto afastar quanto acolher ou nos defender do que vem do fundo do horizonte. Se por um lado a visão nos protege, essa mesma visão faz com que o acontecimento, no sentido próprio do que surpreende, se neutralize, perca sua potencialidade enquanto violência, enquanto irrupção artística. Por essa razão, o acontecimento somente pode surgir quando não é mais possível ter o horizonte como perspectiva: “o movimento em que o desenho inventa, em que ele se inventa, é um momento em que o desenhista é de algum modo cego, em que ele não vê, ele não vê vir, ele é surpreendido pelo próprio traço que ele trilha, pela trilha do traço, ele está cego” (DERRIDA, 2012: 71).

É preciso estar cego, é preciso se entregar ao movimento estabelecido pelo lápis, pelo pincel ou pela câmera para que a arte possa surgir enquanto acontecimento. O gozo artístico provém dessa entrega, dessa suspensão da visão, dessa cegueira que aflora os demais sentidos, que aflora a sensibilidade do artista, que deixa por instantes os conceitos ou pré-conceitos que formulam o mundo visível para se entregar ao abismo de uma certa noite – entregar, palavra libidinosa que expõe o artista e nos expõe à arte desse artista. Em uma entrevista com Derrida, o artista Valerio Adami, no texto “Êxtase, crise. Entrevista com Roger Lesgards e Valerio Adami”, comenta o passo inicial de seu processo criador, que se assemelha em muitos aspectos ao processo de enceguecimento proposto por Derrida:

Apoio, então, o lápis no papel, faço um ponto e a mão se move: esse ponto se torna, portanto, linha, essa linha se torna o perfil de uma montanha… É um caminho para o maravilhamento, a descoberta, em relação direta com o instinto e a memória – a memória instintiva. A mão se move porque consigo realmente me esvaziar de tudo, deixando a ela a liberdade (DERRIDA, 2012: 239).

Poderíamos supor que, ao falar do desenho, Adami tocaria na questão da visão, mas o que lemos é exatamente a não-visão, a mão que se deixa livre, liberdade daqueles que somente têm a mão como suporte no mundo; nada mais intrínseco ao cego do que as mãos. Responde Adami a Derrida e Lesgards: “A mão sempre foi uma das minhas obsessões” (DERRIDA, 2012: 240). Da imagem dos cegos, somos direcionados por Derrida à imagem das palavras que constituem os textos de Pensar em não ver. As palavras, como disse acima, seguem um tom, elas próprias dão um tom particular aos textos presentes no livro.

As palavras deixam de ser meros transmissores para, elas também, se configurarem em objetos de arte. O modo como Derrida tece seu texto, o modo como ele trabalha a palavra, maltratando-a, violentando-a, faz dela um acontecimento: “O que faço com as palavras é fazê-las explodir para que o não verbal apareça no verbal” (DERRIDA, 2012: 39). Em muitos momentos, a relação que as palavras mantêm entre si faz delas imagem, elas produzem uma imagem, mas não no sentido corrente da relação do signo linguístico – a palavra derridiana vai além da reunião de morfemas para se desenhar em imagem, em palavra-imagem. Ao lermos determinadas passagens de Pensar em não ver, é como se estivéssemos diante de uma tela. Estamos, a bem da verdade, visualizando e não lendo, como nesta bela passagem do texto “Com o desígnio, o desenho”: “o desenhista, quando desenha um cego, quaisquer que sejam a variedade ou a complexidade da cena, está sempre desenhando a si mesmo, desenhando o que pode lhe acontecer, e, portanto, já está na dimensão alucinada do autorretrato” (DERRIDA, 2012: 174). Visualizo, antes de tudo, o autorretrato de um desenhista cego.

As palavras-imagens são retomadas por Derrida ao conversar sobre o filme em que participou, segundo ele, como ator: D’ailleurs, Derrida. No texto em que se discute sobre o filme, “Rastro e arquivo, imagem e arte. Diálogo”, o escritor comenta da participação da palavra, agora não mais a palavra escrita, mas sim a falada: “As falas estavam ali como imagens, feitas para serem, de algum modo, levadas pela necessidade do ritmo, do encadeamento, da consequência icônica […] Icônico quer dizer estruturado segundo a necessidade e a lei da imagem” (DERRIDA, 2012: 101). Semelhante com o que ocorre no filme, a palavra no texto derridiano destacado acima é tornada elemento icônico. Desse modo, ao refletir sobre o desenho, sobre o movimento do artista ao desenhar, Derrida comenta o desenho de Valerio Adami ou de François Loubrieu com um outro desenho – desenho provindo de sua escrita atravessada por palavras-imagens. Logo, o movimento que adquire o texto derridiano é de uma profusão de reflexos, de pinturas distendidas em palavras-imagens, desenhos que se assemelham a seus próprios desenhos de escrita, fotografias que recontam o negativo de sua escrita de imagem. Imagens e mais imagens, profusão de imagens en abyme.

O leitor provavelmente se demorará na leitura sobre as fotografias de Frédéric Brenner, não por ser o texto longo ou de difícil compreensão, não, não se trata disso. A dificuldade está na delicadeza a qual se expõe Derrida ao analisá-las. Fotografias de judeus, fotografias da memória. Diferente dos outros textos, o tom familiar, quase prosaico com o qual o escritor vai tecendo o seu pensamento sobre as questões da comunidade judaica, sobre suas próprias questões recalcadas ou veladas, produz um sentimento de falta, de perda, no leitor. Ao lermos o texto “[Revelações, e outros textos. Leituras das fotografias de Frédéric Brenner]”, quase que imediatamente nos colocamos no lugar do outro, do outro sem pátria, sem terra, do outro-sem, por assim dizer, quase esquecido e, por isso mesmo, afeito à memória, a velar a memória de um passado que ainda assombra, mas que, continuamente, se transforma em um passado esquecível, esquecido: “A melancolia do homem é visível. Será legível? Ela pode assinar a memória enlutada com aquilo que ele recorda e que ele ainda vela, mas ela pode também chorar a amnésia, o esquecimento daquilo mesmo que teria sido preciso velar para que se velasse – e que ameaça apagar-se no próximo sopro da história” (DERRIDA, 2012: 332).

O visível da fotografia dá a ver o invisível que se esconde por trás da figura conhecida de Jacques Derrida. Nesse texto, sabemos um pouco de sua infância, de seu prenome judeu, de sua mãe, de seu avô… estamos íntimos de Derrida, o que confere a familiaridade do tom. Do mesmo modo como nos identificamos com a falta judaica – “todos nós nos identificamos, universalmente, com uma minoria” (DERRIDA, 2012: 343) -, o escritor, sendo judeu, não poderia deixar de se identificar com as fotografias de Brenner: “Tento identificar, mas também me identificar, ao mesmo tempo em que persigo o limite de uma tentação tão irresistível, de uma compulsão como essa” (DERRIDA, 2012: 327). Identificação acordada com uma reflexão constante sobre a falta/perda que acomete(u) o povo judeu. Diáspora? Não significa somente a dispersão dos judeus pelo mundo – significa algo ainda mais profundo. Segundo Derrida, a diáspora afeta a partir do interior, “ela divide o corpo e a alma e a memória de cada comunidade” (DERRIDA, 2012: 323). É o sentimento de estar deslocado que afeta os judeus, nada lhes é mais autêntico. Mas não nos esqueçamos, como também os judeus não se esquecem, que nada nos é próprio, nem mesmo a nossa língua nos é própria:

Nós, nós todos, todos os seres vivos presentes, os seres vivos do passado e os espectros do futuro, nós todos, homens ou animais, não temos lugar próprio e terra bem-amada a não ser prometida, e prometida desde uma expropriação sem idade, mais velha do que todas as nossas memórias (DERRIDA, 2012: 341).

O visível fotográfico, ao trazer à tona o obscuro da memória de Derrida, dialoga com as perspectivas da invisibilidade com as quais o escritor trabalhou ao longo de seus textos de Pensar em não ver, não por acaso o título do livro carrega a marca da invisibilidade, ou, se quisermos, a marca da cegueira: não ver. A partir dos tons dos vários textos derridianos presentes neste livro, sobressai o pensamento de que a arte da visibilidade tem como suporte, base de sua contra-assinatura, a invisibilidade ou, como sugere Derrida, em “Aletheia“, a noite, o obscuro: “Nada é mais escuro do que a visibilidade da luz, nada é mais claro do que essa noite sem sol” (DERRIDA, 2012: 305). O que presenciamos ao ver uma obra é sua inscrição invisível. Em um desenho, em uma pintura, o que vemos é o traço diferencial que não mais existe, mas que persiste no rastro que se torna o desenho ou a pintura que observamos em um museu, em um livro, em qualquer lugar em que a arte esteja exposta. A arte visual é produzida a partir dos debaixos, de traços já inexistentes, do flash noturno que ilumina o invisível diante da máquina fotográfica. É nos debaixos que o efeito da arte é produzido – é lá, no debaixo, que se produz o desejo, a interdição, o gozo, a incitação, a excitação, a obra: “Quando se fica sem ar diante de um desenho ou de uma pintura, é porque não se vê nada; o que se vê essencialmente não é o que se vê, mas, imediatamente, a visibilidade. E, portanto, o invisível” (DERRIDA, 2012: 82).

Da leitura desses textos, o que resta para além da ideia da arte visual é o pensamento de que nós, seres humanos, somos constituídos de uma invisibilidade atordoante; não por menos, a arte, as artes do visível, tem como suporte a invisibilidade. A reflexão sobre as artes do visível é o grande mérito dos textos derridianos organizados com extrema precisão por Ginette Michaud, Joana Masó e Javier Bassas na elaboração do livro Pensar em não ver – mérito que a Editora UFSC considerou ao publicá-lo, oferecendo, assim, ao leitor brasileiro, a oportunidade de ter em mãos textos de Derrida raros sobre essas artes e somente agora traduzidos para o português.

Davi Andrade Pimentel – Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua como pesquisador da obra do escritor francês Maurice Blanchot. É autor dos artigos: “Thomas – o primeiro blanchotiano” (Revista Letras Hoje, n. 48/ 2013), “O espectro de Kafka na narrativa Pena de Morte, de Maurice Blanchot” (Revista Gragoatá, n. 31/2011), “Rascunhos de um pensamento arrebatador: Maurice Blanchot” (Revista Todas as Letras, n. 12/2010), dentre outros. E-mail: [email protected]. Endereço: Rua Leopoldo Miguez, n. 129, apto. 706, CEP.: 22060-020, Copacabana – Rio de Janeiro – RJ.

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A Fraseologia Medieval Latina | Álvaro Alfredo Bragança Júnior

Há décadas, o professor e acadêmico Álvaro Alfredo Bragança Júnior vem demonstrando como poucos, uma dedicação constante aos estudos latinos e medievais, tanto nos estudos linguísticos e filológicos, quando nos estudos históricos. Exatamente no momento em que cada vez mais se redescobre o legado cultural celta e germânico para a formação do espaço geográfico e linguístico europeu, em que a revista Brathair se constitui em um dos melhores exemplos no cenário acadêmico brasileiro, o filólogo, professor e pesquisador de Língua e Literaturas de Língua Alemã da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de docente do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de História da mesma universidade, faz o percurso inverso: volta ao latim para mostrar suas marcas proverbiais no espaço germanófono do medievo!

Este é mais um dos seus brilhantes trabalhos que envolvem os estudos latinos (linguísticos e filológicos), a Lexicologia e a Medievística, absolutamente desprovido dos ranços de eruditismo descabido em trabalhos similares.

Em outra oportunidade, eu mesmo já havia dito que esse livro vai nos mostrar o quanto as palavras refletem a vida de uma sociedade, tanto no presente quanto no passado, visto que as frases feitas (ou a fraseologia) são uma espécie de discurso repetido utilizado pela sociedade para abonar as crenças mais generalizadas de uma época ou de uma comunidade, sem necessidade (e sem possibilidade, quase sempre) de indicar a fonte ou autoria.

Nos estudos históricos, por exemplo, é possível reinterpretar grande número de fatos a partir dos conceitos populares que se difundem nos provérbios mais frequentemente utilizados na época, visto que eles refletem, seguramente, as crenças daquele momento. Tanto que, citando e traduzindo Hans Walther em seus Proverbia sententiaeque latinitatis Medii Aevi, o Prof. Álvaro Alfredo Bragança Júnior nos lembra que, na Idade Média, “o saltério e o provérbio são recomentados antes das fábulas e de outros autores romanos como leituras iniciais para o aprendizado da língua” (Cf. p. 87).

Isto ocorre porque tais frases ou expressões são tão conhecidas nas comunidades em que são utilizadas que a mera repetição ou alusão basta para abonar um argumento, como uma citação de autoridade da mais alta competência na especialidade em questão.

Outra coisa que reforça a autoridade de um provérbio ou frase feita é a referência à antiguidade de sua utilização, que também costuma ser feita através de outras expressões similares, como “no tempo em que se amarrava cachorro com linguiça…”, “no tempo do onça…” etc.

Sendo assim, o estudo da fraseologia latina para conhecer as crenças e costumes da Idade Média é uma ideia genial que o Prof. Álvaro desenvolveu brilhantemente nesse livro, que teve origem em sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Além de uma substanciosa Introdução de nove páginas, uma Conclusão de seis páginas, e uma Bibliografia de oito páginas, desenvolveu seu estudo em seis capítulos: 1) A fraseologia e sua conceituação, 2) A Idade Média, 3) O latim medieval, 4) A rima: criação medieval, 5) O corpus paremiológico de Werner e 6) Provérbios latinos medievais rimados: exemplos de temáticas (Provérbios ligados ao mundo animal, Provérbios referentes à religião católica, provérbios remissivos à Antiguidade greco-romana).

Uma das formas mais eficazes de fornecer rudimentos culturais aos discípulos consistia na compilação de exercícios escolares que continham uma fundamentação eminentemente teológica presa aos preceitos da Igreja, sempre rimados, para facilitar a memorização, assim como continuou no Brasil até o final do século XVIII (Cf. SOARES & FERÃO, [2009], p. 82-142), mesmo depois da expulsão dos jesuítas.

Na Idade Média, o latim e a rima presentes nos provérbios nos permitem reconhecer os reflexos sociopolíticos e culturais da mensagem da Igreja como guia espiritual, tornando-se o motivo condutor de parte significativa do cristianismo ocidental, visto que o latim continuou, até início do século XX, como a única língua internacional de cultura e, até hoje, língua oficial da Igreja Católica Romana.

O Prof. Álvaro foi extremamente feliz ao descrever a Idade Média, o latim medieval e, mais especificamente, a rima como criação medieval latina, trazendo-nos sínteses da melhor qualidade para esses três fatos da cultura cristã ocidental.

Para avaliar a influência da Igreja em nossa cultura (e do latim, por extensão), é preciso considerar também que em todo o período colonial brasileiro, o governo era também eclesiástico, no qual o rei era intitulado de Fidelíssimo e recebia o tratamento de Sua Majestade Fidelíssima, assim como na Espanha era o de Sua Majestade Católica. E isto era tão forte na Península Ibérica que o árbitro do Tratado de Tordesilhas, que dividiu a América do Sul e Central entre os espanhóis e os portugueses foi o papa Alexandre VI, ratificado posteriormente pelo papa Júlio II.

Aliás, como recomenda Dag Norberg, “é bom lembrar que é nesta época que a poesia rítmica começou a desenvolver formas novas, que o emprego da rima se sistematizou e que nasceram as criações mais originais da Idade Média latina, os tropos e as sequências”. (NORBERG, 2007, p. 73)

Enfim, quem desejar conhecer uma avaliação segura da fraseologia medieval latina e seus reflexos na cultura ocidental moderna, não pode deixar de ler esta excelente produção de Bragança Júnior, principalmente em relação aos provérbios rimados.

Referências

NORBERG, Dag. Manual prático de latim medieval: I – Breve história do latim medieval. Trad.: José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2007. Disponível em: . Acesso em: 25/05/2014.

SOARES, José Paulo Monteiro; FERRÃO, Cristina (Orgs.). Rendas & fiados do Nordeste Brasileiro 1760-1761: Documentos do Arquivo Histórico Ultramarino – AHU – Rendas e Fiados da Capitania de Pernambuco, Rio Grande e Ceará. Revisão técnica e atualização ortográfica de José Pereira da Silva. [s.l.]: Kapa Editorial, [2009].

José Pereira da Silva – Docente do Departamento de Letras da UERJ. Diretor-Presidente do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos. E-mail: [email protected]


BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. A Fraseologia Medieval Latina. Vitória: DLL-UFES, 2012. Resenha de: SILVA, José Pereira da. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.15, n.1, p. 186-189, 2015. Acessar publicação original [DR]

Didactica Historica | GDH/DGGD | 2015

Didatica Historica Suica Jamaxi

Didactica Historica. Revue suisse pour l’enseignement de l’histoire (2015-) est une revue accordant une place importante aux pratiques et aux ressources consacrées à l’enseignement de l’histoire. Elle a été créée par le Groupe d’étude de didactique de l’histoire de la Suisse romande et italienne (GDH) et par la Deutschschweizerische Gesellschaft für Geschichtdidaktik (DGGD).

Elle succède au Cartable de Clio, publié depuis 2001. Le changement de nom correspond à un changement de formule : depuis 2015, Didactica Historica se lit dans un grand format illustré et en couleur, avec une édition en ligne prolongeant l’édition papier. La parution est annuelle

Vous trouverez sur le site les contributions de tous les numéros précédents (à l’exception du numéro de l’année en cours) avec les contributions en ligne (suppléments). Le site fournit également des informations sur la manière de soumettre des contributions (feuille de style, délais et processus de publication et de révision) ainsi que sur la politique de commande et de libre accès.

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[Periodicidade anual]

ISSN : 2297-7465

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Civilização: etnocentrismo, evolucionismo e conceitos em História / Boletim do Tempo Presente / 2015

Apresentação

O conceito de civilização, desde o momento de seu surgimento com os filósofos iluministas defensores da ideia de progresso, estabeleceu-se na historiografia ocidental como uma das mais arraigadas noções, apesar de suas claras alusões etnocêntricas. Mas cada vez se torna mais claro, à luz das críticas e percepções atuais, o quanto a ideia de civilização expõe o ‘outro’, identificando-o inevitavelmente como ‘bárbaro’, ‘selvagem’, ‘inculto’, e por isso, pelo menos desde a segunda metade do século XX, essas palavras e as concepções nelas envolvidas têm sofrido um verdadeiro bombardeamento teórico, originário de frentes tais como a Sociologia, a Linguística e a Antropologia. No entanto, apesar disso, muitos ainda são os historiadores que continuam a cultivar os princípios evolucionistas envolvidos na definição de civilização. Princípios sempre associados, de forma mais ou menos implícita, a noções de progresso, evolução social, ‘altas culturas’ (que por sua vez alude à existência de ‘baixas culturas’); tudo isso remetendo a uma crença na existência dos civilizados e dos ‘outros’, aqueles considerados carentes de cultura, de Estado, de história.

Entretanto, nem todos aceitam essa situação de forma acrítica, e muitos são os historiadores e cientistas sociais que atualmente tentam fugir dos tradicionais etnocentrismos através de um investimento na historicização de conceitos. Ou seja, na consideração de que as palavras têm história e que, na medida em que colocamos cada uma em seu devido contexto de produção, podemos começar a entender melhor seus significados e desconstruir aquelas noções que os naturalizam. Dessa forma, civilização e progresso perdem seu status de fenômenos inevitáveis nas sociedades humanas, da mesma forma que uma sociedade estatal deixa de ser entendida como naturalmente ‘melhor’ que uma tribal. Assim, partindo dessas premissas, elaboramos o presente dossiê, procurando reler o conceito de civilização a partir de diferentes temas, sempre almejando, em última instância, derrubar evolucionismos e etnocentrismos arraigados.

Nosso primeiro artigo faz isso se debruçando sobre o conceito de civilização no Direito Internacional. Nele, Laura Bono e Daniela Rebullida, ambas da Universidad Nacional de la Plata, visitam fontes do Direito Internacional para questionar os significados que o mesmo atribui à expressão ‘nações civilizadas’: uma fórmula basilar nas relações internacionais, visto que todo o conjunto de princípios gerais do Direito Internacional apenas é aplicável a esse conjunto de países, excluindo de sua proteção e jurisdição quaisquer territórios considerados ‘incivilizados’. Dando prosseguimento, mergulhamos na observação de atores sociais classicamente associados aos ‘selvagens’, os índios. E é procurando desconstruir essa associação que Edson Silva, da Universidade Federal de Pernambuco, retraça a trajetória das ideias de evolução e progresso no Ocidente, desde o século XIX, analisando como as mesmas influenciaram a construção de uma certa imagem de ‘índio’, ainda hegemônica entre o senso comum e o Estado brasileiro, e influente mesmo sobre cientistas sociais de renome, como Darcy Ribeiro. Mas, indo além, ele dialoga com as aquelas perspectivas históricas e antropológicas, iniciadas na transição do século XX para o XXI, que não se preocupam em definir o lugar do índio na civilização, mas sim em desconstruir essa oposição entre ‘civilizados’ e incivilizados. Enfatizando assim a percepção de que é inútil discutir quem é e quem não é civilizado, pois a própria palavra é excludente e sempre vai pressupor a definição de alguém ‘inferior’.

Realmente, os diversos povos nativos americanos, sempre generalizados baixo o conceito de índio, forneceram alguns dos elementos fundamentais para a definição clássica de selvagens. Razão pela qual se torna tão importante entendermos tanto suas sociedades, quanto a construção dos discursos históricos oitocentistas e novecentistas sobre elas. Com isso em mente é que Karl Arenz e Frederik Matos, da Universidade Federal do Pará, voltam seu olhar para o século XVII, para inquirir sobre as ações de uma das mais influentes instituições da colonização da América portuguesa, a Companhia de Jesus, analisando especificamente as práticas jesuítas que objetivavam ‘tirar os índios da selva’, ou seja, práticas consideradas civilizatórias pela historiografia. Mas os autores não querem simplesmente fazer uma narrativa da história jesuíta, e sim pesar suas práticas em conjunção com a própria historiografia, a verdadeira responsável por analisá-las enquanto civilizatórias. Isso porque, segundo os autores, o conceito de civilização não foi usado pelos jesuítas no século XVII, e se suas ações colonizadoras são entendidas hoje como civilizatórias isso ocorre porque elas assim foram definidas pela própria historiografia. Por outro lado, eles não esquecem que outras noções, que nos séculos posteriores iriam integrar os discursos civilizatórios, já perpassavam os discursos e ações das missões jesuíticas amazônicas, instituições de fronteira que se contrapunham aos ‘sertões’ habitados por índios, vistos como espaços caóticos de gente ‘bárbara’. E é ainda pensando o mundo colonial que Suely Almeida, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, discute os problemas conceituais em torno das mestiçagens coloniais. Em seu texto, a autora critica o discurso clássico segundo o qual africanos e indígenas estiveram passivos nas ações colonizadoras. Um discurso que apresenta negros e índios apenas como vítimas, e como tal sem força ou atitude no processo histórico. Ao mesmo tempo, a autora discute também as possibilidades que os estudos das mestiçagens oferecem a uma história crítica, entendendo essas mestiçagens como fenômenos construtores das sociedades da Idade Moderna, sempre considerando as diferentes negociações e estratégias promovidas pelos distintos atores sociais, inclusive escravos e forros durante os séculos XVII e XVIII. Uma abordagem que tem o mérito de retirar dos europeus a autoria absoluta da colonização.

Assim, entre Direito Internacional, história indígena, colonização e mestiçagens, procuramos despertar algumas inquietações mais do que necessárias para os estudos dos processos históricos ocidentais. Inquietações muito influenciadas pelo pensamento crítico de historiadores e antropólogos como Serge Gruzinski, John Manuel Monteiro, e do desabrido e controverso Pierre Clastres.

Esse antropólogo francês, cuja obra principal foi escrita nas décadas de 1960 e 1970, causou celeuma com suas ideias, baseadas em estudos etnográficos realizados junto a grupos indígenas sul-americanos, nas quais criticava continuamente as noções ocidentais acerca da inevitabilidade do Estado enquanto fenômeno social e histórico. Muito debatidas em seu tempo, essas teses caíram em um ostracismo a partir da década de 1980, principalmente por estarem fundamentadas no que muitos consideravam ser a visão idealista e romântica de seu autor.[2] Mas com a virada para o século XXI, as conjunturas políticas internacionais começaram a mudar, fazendo com que o até então inatacável modelo de Estado começasse a esmorecer, e despertando um renovado interesse de antropólogos e cientistas sociais na obra de Clastres, justamente por aquelas mesmas ideias que antes o fizeram parecer romântico e idealista. Um idealismo encarnado principalmente na defesa de que o Estado não representava, ao contrário do que muitos gostariam de pensar, a etapa mais evoluída da humanidade, e nem mesmo era inevitável. Uma defesa que hoje entra em sintonia com a preocupação cada vez maior com os destinos do Estado enquanto modelo liberal, e com a possível existência de modelos alternativos ao Estado, modelos de ‘contra-Estado’,[3] nas sociedades ocidentais.

Por outro lado, se as teses de Clastres falam muito acerca de nossas sociedades contemporâneas, elas também criticam de forma veemente a postura hegemônica nas Ciências Sociais acerca das sociedades indígenas, sempre descritas como sociedades ‘da falta’: sociedades sem escrita, sem Estado e sem história.[4] Foi contra isso que ele escreveu toda sua obra – cuja pedra basilar é a coletânea A Sociedade contra o Estado, cuja primeira edição data de 1974 – descrevendo, por exemplo, as ferramentas usadas pelos tupinambás, nos séculos que precederam à conquista europeia, para evitar o surgimento do Estado; ou como muitas culturas consideradas ‘de subsistência’, e que são sempre associadas à pobreza e escassez, de fato produziam mais do que o necessário para viver, e aproveitavam muito tempo livre.[5] Dessa forma, ao mesmo tempo que suas descrições etnográficas e análises teóricas procuram descortinar estruturas e fenômenos sociais em diferentes sociedades indígenas, elas vão deixando dolorosamente claros os preconceitos existentes nas Ciências Sociais modernas, para as quais, a despeito de todas as reiteradas afirmações de objetividade, o modelo da sociedade estatal industrial e pós-industrial de origem europeia é o máximo alcançado pela humanidade, e deve servir de base para todas as outras, a serem julgadas a partir do quão parecidas ou não elas são a esse modelo.

Mas apesar do interesse renovado na obra de Clastres, assim como outras posturas críticas defendidas por autores como Serge Gruzinski e John Manuel Monteiro, as noções civilizatórias continuam fortes e hegemônicas hoje, presentes em discursos historiográficos, antropológicos e muito constantes na mídia e no ensino de História.

Assim é que ainda convivemos com discursos sobre a descoberta da América por Colombo, e do Brasil por Cabral; ainda consideramos que os ‘índios’ desapareceram da história; que os escravos foram apenas vítimas passivas da colonização; e ainda usamos a história europeia como parâmetro para a história mundial. E assim vão se reproduzindo os mesmos discursos etnocêntrico, pois como já dizia Marc Ferro as imagens que temos de outros povos dependem muito da história que nos é contada quando crianças.[6] Então, enquanto continuarmos ensinando sobre sobre culturas ‘mais desenvolvidas’, estaremos relegando às outras, ditas ‘menos desenvolvidas’, aos status perpétuo de bárbaros, de atrasados, de ignorantes.

Em tudo isso, o entendimento do processo de colonização das Américas assume um lugar central, podendo contribuir para a desconstrução desses discursos etnocêntricos. Pois se, de um lado estão as teses tradicionais que afirmam que as sociedades indígenas foram facilmente conquistadas pela superioridade cultural europeia traduzida em armamentos, de outro estão aqueles estudos mais recentes, como os de Mathew Restall, que trazem à tona velhos documentos que mostram que os responsáveis pela derrocada de impérios indígenas no México pré-colonial foram outros estados indígenas, e não os espanhóis. [7] Por sua vez, contra aquela visão de vitimização para a qual africanos, afro-americanos e descendentes nas Américas foram sempre subservientes vítimas trágicas de processos e agentes históricos europeus, a ponto de terem sido libertados por esses últimos, estão os trabalhos de autores como Eduardo França Paiva e João José Reis, que mostram o quanto esses personagens interagiam com as estruturas coloniais e escravistas, o quando negociavam e reagiam, estabelecendo seus próprios processos históricos.[8]

Hoje vivemos uma situação paradoxal, no que diz respeito a nossas interpretações da história do Ocidente, especialmente das américas: por um lado, temos um crescente número de cientistas sociais que olham para o passado e veem mais do que descobertas europeias, índios desaparecidos e escravos submissos. Por outro, continuamos a ensinar sobre a ‘descoberta’ do Brasil, a abolição da escravidão pela Princesa Isabel, a conquista do México por Cortez, sobre as ‘altas culturas’ e as sociedades ‘mais desenvolvidas’ – em geral europeias ou muito similares às europeias – sempre tentando ignorar os outros. Mas o que realmente aprendemos ao tentar estudar tupinambás, aymarás, cherokees e bantos a partir de conceitos construídos para a análise do império romano?  E quanto da nossa própria identidade nacional podemos estabelecer, ou compreender, enquanto toda nossa história é medida a partir da Europa ocidental? A verdade é que, por mais que queiramos, os padrões e medidas clássicos da Civilização não nos abarcam – se é que de fato abarcam alguém. E assim, enquanto insistirmos neles, teremos que admitir o fato de que somos, de fato, todos selvagens.

Notas

  1. SZTUTMAN, Renato. Introdução: Pensar com Pierre Clastres ou da atualidade do contra-Estado. Revista de Antropologia, V. 54, N. 2 (2011), USP. pp. 557-576.
  2. Em artigo publicado em dossiê acerca da obra de Clastres, por exemplo, Márcio Goldman afirma que “não há nenhuma razão para imaginar que os mecanismos “contra-Estado” descobertos por Pierre Clastres nas sociedades indígenas ameríndias tenham sua existência limitada a esse “tipo” de sociedade”, o que ilustra bem as preocupações dos novos comentaristas com a obra de Clastres. GOLDMAN, Marcio Pierre Clastres ou uma Antropologia contra o Estado.Revista de Antropologia, V. 54, N. 2 (2011), USP. pp. 578-599.
  3. Cf. CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado – Pesquisas de Antropologia Política. São Paulo, Cosac & Naify, 2003. P. 208.
  4. Idem, p. 211.
  5. FERRO, Marc. A Manipulação da História no Ensino e nos Meios de Comunicação. São Paulo: IBRASA. 1983.
  6. RESTALL Matthew. Sete mitos da Conquista Espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
  7. PAIVA. Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia. Minas Gerais, 1716-1789.Belo Horizonte, Ed. UFMG. 2001; REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociaçãoe conflito – a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras. 1999.

Kalina Vanderlei SilvaProfessora da Universidade de Pernambuco.

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En minga por el Cauca: el gobierno de Floro Tunubalá (2001-2003) – GOW; SALGADO (A-RAA)

GOW, David; SALGADO, Diego Jaramill. En minga por el Cauca: el gobierno de Floro Tunubalá (2001-2003).* Bogotá: Editorial Universidad del Rosario y Universidad del Cauca, 2013. 294p. Resenha de: TOCANCIPÁ-FALLA, Jairo. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.21, jan./avr., 2015.

Buena parte de la literatura académica que examina la relación entre movimientos sociales y el Estado en América Latina plantea la dinámica de los primeros como el resultado de un proceso político y cultural diverso que reacciona y resiste creativamente a unas formas políticas del segundo (e.g., álvarez, Dagnino y Escobar, 1998). Esta oposición, sin embargo, muchas veces es resuelta por parte de los movimientos sociales como la exigencia de un mayor reconocimiento, acceso (derechos) y transformación de la institucionalidad política estatal que mantiene el poder, tal como acontece en alguna experiencia brasilera (Dagnino, 1998) y en otros países de la región. En términos genéricos, podría afirmarse que el libro En minga por el Cauca, del antropólogo David Gow y el filósofo Diego Jaramillo, se enmarca en esta última tendencia. Básicamente, el trabajo busca documentar el proceso tortuoso pero relativamente exitoso que tuvo un gobierno alternativo como el del taita1 Floro Tunubalá, líder indígena del pueblo misak2, y que representaba a una coalición de movimientos campesinos, obreros e indígenas que antes de las elecciones del año 2000 respaldaron su nombre para la gobernación del departamento del Cauca, en el período 2001-2003.

Aparte de la introducción y las conclusiones, el libro consta de siete capítulos, algunos de los cuales son escritos individualmente por cada autor, y otros, de manera conjunta; los capítulos conjuntos son la introducción, el capítulo 7 y las conclusiones. El resto de los capítulos son alternados: a Diego corresponden los capítulos 1, 2 y 6, y a David, los capítulos 3, 4 y 5. La introducción presenta los elementos generales, algunos antecedentes y la premisa central que orientó el estudio. Allí se contextualizan la situación histórica y social del Departamento en el ámbito nacional, el surgimiento de los movimientos y procesos sociales que desde hace varias décadas vienen horadando las prácticas clientelistas oficialistas de los gobiernos de turno, ya arraigadas, y que también caracterizan a los partidos políticos tradicionales vigentes en el Departamento.

En el primer capítulo, “El Cauca y su conflictividad plural: una lectura del contexto”, Diego Jaramillo nos presenta una trayectoria histórica de los movimientos sociales y étnicos en el ámbito caucano, donde las élites regionales han mantenido su poder, que en las últimas décadas se ha visto desafiado por dichos movimientos. En particular, el capítulo enmarca el surgimiento del Bloque Social Alternativo (BSA), el cual, si bien surge en una coyuntura electoral, en el fondo se trataba de “ubicar la reflexión y el debate en los problemas centrales del departamento y la región surcolombiana” (p. 57); al igual que se buscaba establecer un “programa para el Cauca” que se convirtiera en un “eje dinamizador y articulador de las luchas sociales en el departamento” (p. 57).

Este antecedente sobre los procesos y movimientos sociales que se destacaron en el Cauca sirve de antesala para el segundo capítulo, también elaborado por Diego, sobre “Planes de Desarrollo Alternativos”. Aquí, él examina ideas centrales asociadas al desarrollo como la planificación, el desarrollo y la superación de las condiciones materiales oprobiosas para los pueblos, que muchas veces se traducen en macropolíticas y que luego son contestadas desde un ámbito regional y local. En especial, se abordan la relación existente entre los planes del momento, como el Plan Colombia y el “Imperio” -léase Estados Unidos-; la prevalencia de las condiciones de raigambre indígena y campesina en el Cauca y la subsecuente reacción al Plan Colombia, visto como un plan de guerra. Igualmente, se examinan la formulación del Plan Alterno y el programa de gobierno que sirvió de guía, no sólo para el gobierno de Floro sino también para las organizaciones sociales que compartían valores y principios que sobresalían frente a otros dominantes en la historia regional del Departamento y que asociaban a la clase política clientelista tradicional de los partidos.

Luego de esta discusión, en el capítulo tercero se pasa al análisis de la “Violencia política, inclusión y gobernabilidad”, donde David trata de establecer de qué manera los grupos armados, legales e ilegales, afectan el ámbito departamental en términos de gobernabilidad. Se ilustran las tensiones con el Gobierno central en cuanto a las autorizaciones para establecer negociaciones regionales y locales con los grupos armados ilegales; al tiempo que, basándose en estadísticas presentadas por otros autores que desarrollan estudios regionales3, se muestran el peso que tiene cada actor armado (FARC, ELN y grupos paramilitares) en el escenario departamental, y sus efectos y desafíos para la gobernabilidad del taita Floro. En el capítulo cuarto, “La práctica de gobernar y la cuestión de gobierno”, David aborda uno de los mayores desafíos del gobierno de Floro, y que tuvo que ver con la deuda heredada del gobierno anterior, el de César Negret, quien el 28 de diciembre firmó un acuerdo de refinanciación de la misma acogiéndose a la Ley 550 de 1999, la cual fue promulgada para “obligar a departamentos, municipios y entidades en riesgo o en crisis a cumplir con sus obligaciones financieras; mejorar sus procedimientos administrativos, financieros y contables, y garantizar sus contribuciones a los fondos departamentales de pensiones” (Ministerio de Hacienda y Crédito Público 2012: 3)” (p. 130). El examen es estadístico y muestra cómo, en efecto, frente a esta obligación -que significó un desfinanciamiento para la administración de Floro-, se afectaron no sólo las finanzas para atender asuntos urgentes sino también para llevar a cabo el Plan Alterno. El tema de fondo era revelar las limitaciones que se tuvieron en el logro de las políticas sociales que se propuso dicha administración. Esta ejecución es revisada en el capítulo quinto por David, bajo el título “Principio y práctica: la lucha para mejorar las políticas sociales”. Allí se plantea “lo que estaba en juego”: el reto de implantar una forma diferente de gobernar, con énfasis en categorías como “participación” y “equidad” efectivas, en sectores como Educación y Salud, y que por Ley deben atenderse. La apropiación de recursos a través del Sistema General de Transferencias no es tanto el problema, como sí lo es “la asignación de los recursos”. Existen, sin embargo, algunos principios positivos que caracterizan el proceso político alternativo regional en cuestión. éstos son examinados en el capítulo sexto, escrito por Diego, “La participación: una práctica entre el ejercicio de la ciudadanía y la acción comunitaria local”, donde discute la relación existente entre democracia y el tránsito de la democracia representativa a una participativa, tránsito que vincula directamente a los procesos y movimientos sociales desarrollados en las últimas décadas tanto en el país como en el Suroccidente, en particular, en el Cauca.

El capítulo séptimo nos introduce en cuatro estudios de caso que ilustran cómo el gobierno de Tunubalá los enfrentó y logró resolver. En todos los casos, se trata de mostrar una solvencia política y de gobernabilidad, donde la negociación se convirtió en una herramienta vital que caracterizó a su gobierno. El último capítulo, “Gobernador de todos los caucanos”, de ambos autores, presenta una recapitulación de lo que significó el gobierno de Floro Tunubalá, sus lecciones y aprendizajes, así como los alcances logrados en cuanto a participación, transparencia en la ejecución de los recursos, y el haber dejado el legado de que es posible alcanzar otra política diferente a la del clientelismo y la corrupción.

En síntesis, cabría preguntarse: ¿Cuál es el legado del libro En minga por el Cauca, que documenta el período de gobierno del taita Floro Tunubalá (2001-2003)? En primer lugar, deseo destacar la importancia de un trabajo inédito, en el que la academia -al menos un tipo de academia- se vincula directamente con la política, que pocas veces se muestra en las publicaciones. En efecto, es difícil encontrar un trabajo de esta naturaleza que ilustre cómo se vivió un proceso político regional, con sus alcances y limitaciones, desde “adentro”. Quizás, un énfasis en la intencionalidad política del libro pudo haber sido conjugado en la expresión “algunas lecciones de un proceso político regional”. Decimos lecciones porque, en efecto, éstas pueden deducirse de la experiencia y proyectarse tanto en el ámbito teórico como en el práctico. Así, el ejercicio de revisión de una experiencia política regional que nos presentan Diego y David nos ilustra que la división entre academia -léase teoría- y movimientos sociales -léase práctica- es falseada. Si bien algunas discusiones académicas-teóricas hacen parte de una comunidad cerrada, esto no tiene porque ser así. Las revisiones de experiencias de la vida política -regionales, cotidianas o locales- son escenarios vitales para que los investigadores académicos, no academicistas4, puedan contribuir a las conceptualizaciones de dichos escenarios y, en particular, aportar a las comprensiones de fenómenos que persisten y que evidencian desconocimientos en su dinámica. En este sentido, así como el texto muestra unas virtudes, también marca sus limitaciones. En primer lugar, no estoy seguro de que deba sostenerse la relación genealógica entre la ideología de izquierda y los movimientos sociales (capítulo 1). Creo entender que existe cierto grado de afinidad entre una situación objetiva que aprecia la ideología marxista y otra más subjetiva y vivida históricamente por los movimientos sociales, alas en su composición heterogénea (ver, por ejemplo, una discusión en Dagnino, 1998). Otra dimensión académica teórica-práctica es el uso acrítico de conceptos y expresiones como “Imperio y el Plan Colombia” (capítulo 2). Creo que el aporte de cierta academia a los movimientos sociales no es sólo la transferencia de aspectos ideológicos de lucha y contestación a planteamientos y condiciones ideológicas desiguales del Estado y de los partidos, sino también una propuesta crítica-constructiva consecuente con conceptos que se aplican en un contexto determinado. El uso acrítico de “Imperio” -referido al imperialismo estadounidense-, por ejemplo, no es consecuente cuando más adelante, en el capítulo cuarto, se indica que organismos como USAID, Chemonics y Associates in Rural Development de Estados Unidos financiaron parte del Plan Alterno de Floro.

Finalmente, en lo académico aparecen algunas “ingenuidades” en la interpretación de los datos, que demuestran también que, a veces, como académicos no estamos preparados para tratar el tema complejo del poder y los hechos políticos. Una de ellas refiere al reparo de que “Tunubalá fue dejado solo y tuvo poco o ningún apoyo de los líderes y agentes políticos del Cauca” (p. 259; cursivas nuestras), afirmación que contradice lo planteado a lo largo del texto, en el cual se cuestiona una clase política clientelista y politiquera. Existe la premisa de que en política hay que saber tratar con los opositores, y lo que se dio fue un distanciamiento preventivo, para no ser identificado con lo que se criticaba; de allí esta afirmación. Otra “ingenuidad” refiere al tema fiscal y de la deuda de la Gobernación antes del gobierno de Floro, y que es presentado en el libro como una de las grandes limitaciones, ya que se recibió un Departamento hipotecado (capítulo 4). El punto es: ¿Qué administración en el pasado no ha recibido una Gobernación endeudada? Se podría argumentar que la diferencia es que esta vez el gobierno anterior se acogió a la Ley 550 de 1999, pero que, de cualquier manera, tanto el gobierno de Floro como todos los anteriores gobernadores en la historia del Departamento salieron a flote en la parte administrativa y de manejo de los recursos. Tan fue así que entregaron un Departamento sano, para que la clase clientelista dirigente continuara en el siguiente período administrando el buen esfuerzo que ellos hicieron5. Otra ingenuidad es el manejo de las estadísticas, que no se revisaron en la composición de las categorías y en las correlaciones que se dieron entre ellas. Ello condujo a afirmaciones como la siguiente: “el 11% de los incidentes reportados fue enfrentamiento entre las Autodefensas Unidas de Colombia (AUC) y las FARC, lo que refleja la intención de los paramilitares por eliminar al grupo guerrillero” (p. 98). ¿Por qué debe asumirse que un mayor porcentaje tiene esta orientación, y no a la inversa? o ¿por qué no otras motivaciones? Es claro que en el conflicto, las acciones armadas tienen mucha fundamentación en la afectación y/o eliminación del adversario. En el campo de los movimientos sociales existe una oportunidad perdida para los autores, y refiere básicamente a no haber integrado en la discusión a líderes de aquellos colectivos que hicieron parte del Bloque Social Alternativo (BSA). Una presentación del material recopilado y discutido con estos actores seguramente hubiera contribuido a un examen más crítico, detallado y constructivo de cómo fue percibido el proceso desde afuera, incluso para proponer iniciativas que pudieran ser proyectadas en futuros intentos. Desde este punto de vista, el sentido de colaboración investigativa sigue siendo limitado.

Deseo cerrar esta reseña reiterando la virtud de este trabajo: introducirnos en un proceso político regional que, a pesar de lo transitorio, deja lecciones en distintos niveles y a diferentes comunidades de actores sociales y académicos. Si quisiéramos decirlo en otros términos, el libro nos lleva al corazón de las complejidades de la política regional, muchas veces sospechadas pero no reveladas, y en otras ocasiones reveladas, pero que expresan lo enrevesado de la problemática, entre otras, lo cual constituye una contribución importante. Por otro lado, también nos muestra que en la política de la alternatividad no se puede ser ingenuo al pretender transformar una realidad política en tan poco tiempo, máxime cuando esta realidad se encuentra afianzada en redes clientelistas, en la institucionalidad estatal y en prácticas gubernamentales arraigadas en el bipartidismo. De hecho, no hay referencia a la “movida política” previa a las elecciones conocida como Toconet (Todos contra Negret), y en la cual algunos partidos clientelistas terminaron apoyando la candidatura de Floro con el fin de contrariar al candidato de Negret. La variable temporal es fundamental para comprender y dimensionar los procesos de cambio de una cultura política regional que todavía se resiste a ser transformada, y que cada día se renueva a través de los partidos y la política clientelista. Para concluir: este libro debe ser leído y discutido no sólo por estudiantes de Política, Sociología, y Antropología, entre otras disciplinas, sino también por los mismos líderes y actores de los movimientos sociales, quienes podrán apreciar los aciertos y desfases de los hechos y de las interpretaciones que acompañaron este proceso de gobernabilidad regional; además de examinar las lecciones potenciales que se pueden deducir para futuros proyectos de transformación y gobernabilidad no sólo regionales, departamentales y del Suroccidente colombiano, sino igualmente de otras regiones del país donde el accionar de otros movimientos sociales alternativos también tiene un protagonismo destacado en la política local y regional.

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* Gow, David y Diego Jaramillo Salgado. 2013. En minga por el Cauca: el gobierno de Floro Tunubalá (2001-2003). Bogotá: Editorial Universidad del Rosario y Universidad del Cauca, 294 páginas.

1 Taita en el pueblo misak, como en otros pueblos indígenas, refiere a una autoridad tradicional.

2 El pueblo misak, también conocido como guambiano, ocupa una amplia franja de la cordillera Central del departamento del Cauca (municipios de Piendamó -La María y Piscitau-, Silvia -Guambía, Ambaló y Kizgó-, Totoró, Morales -San Antonio y Bonanza-, Cajibío -Kurakchak-), Tambo (Guambiano) y Caldono (Siberia), en el suroccidente de Colombia. Debido a problemas de tierras, en años recientes, los misak¸ han buscado ampliar su territorio dentro del departamento del Cauca y en departamentos vecinos como el Huila (MinCultura, s. f.).

3 Lastimosamente, estas cifras no son revisadas y son presentadas sin sentido crítico. Por ejemplo, a partir de un 100% que se tipifica como “accionar y presencia de los actores armados en el Cauca”, se mezclan y suman categorías duplicadas como “FARC, ELN” y “Grupos Guerrilleros” o “AUC” y “Grupos paramilitares”. Asimismo, categorías como “estrategias militares con fines estratégicos” son asimiladas sin reparar en su conceptualización y su correlación con otras categorías mezcladas y sumadas, tales como retenes y otras formas de control, masacres, secuestros, etcétera.

4 Hay que reconocer que esta distinción requiere un trabajo teórico-práctico más elaborado, y que vincula categorías como “colaboradores”, “activistas”, e “investigadores” (para una aproximación en el caso de pueblos indígenas, en particular los nasa, ver Rappaport, 2008).

5 De esto queda, sin duda, una lección fundamental, como lo insinuó el taita Floro en el lanzamiento del libro en Popayán, el jueves 10 de abril de 2014, y es la enseñanza moral de que las cosas se hicieron, y lo más importante: se hicieron bien.

Referencias

Álvarez, Sonia, Evelina Dagnino y Arturo Escobar (eds). 1998. Cultures of Politics, Politics of Culture: Re-visioning Latin American Social Movements. Boulder, Westview Press.         [ Links]

Dagnino, Evelina. 1998. Culture, Cititizenship, and Democracy: Changing Discourses and Practices of Latin American Left. En Cultures of Politics, Politics of Culture: Re-visioning Latin American Social Movements, Eds. Sonia álvarez, Evelina Dagnino y Arturo Escobar,pp.33-62. Boulder, Westview Press.         [ Links ]

MinCultura. s. f. Consultado el 13 de abril de 2014, en: http://www.mincultura.gov.co/areas/poblaciones/noticias/Documents/Namtrik.pdf[ Links]

Rappaport, Joanne. 2008. Utopías interculturales. Intelectuales públicos, experimentos con la cultura y pluralismo étnico en Colombia. Bogotá, Universidad del Rosario y Universidad del Cauca.         [ Links]

Jairo Tocancipá-Falla – Profesor titular. Departamento de Antropología y miembro del Grupo de Estudios Sociales Comparativos (GESC), Universidad del Cauca, Popayán, Colombia. Correo electrónico:[email protected]

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La consagración de la memoria: Una etnografía acerca de la institucionalización del recuerdo sobre los crímenes del terrorismo de Estado en la Argentina – GUGLIELMUCCI (A-RAA)

GUGLIELMUCCI, Ana. La consagración de la memoria: Una etnografía acerca de la institucionalización del recuerdo sobre los crímenes del terrorismo de Estado en la Argentina.* Buenos Aires: Antropofagia, 2013. 398p. Resenha de: ÁLVAREZ, Santiago. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.20, set./dez., 2014.

El documentado trabajo de Ana Guglielmucci, La consagración de la memoria, se centra en el proceso de institucionalización del recuerdo. En este sentido, podría inscribirse en el marco de las recientes investigaciones sobre política de la memoria. A la autora le interesa ver cómo la lucha de los organismos de derechos humanos de la sociedad civil por el recuerdo de las víctimas de la última dictadura militar (1976-83) es transformada en memoria institucional del Estado argentino. Este largo, conflictivo y a veces contradictorio proceso es registrado sistemáticamente por esta investigación.

El caso argentino guarda elementos sociales, culturales y políticos específicos que influyen en el cómo y de que manera la confluencia de diversas memorias sociales termina produciendo una particular interpretación estatal. En este sentido, considero esta investigación insustituible para comprender cabalmente el proceso de la memoria en Argentina. Su exhaustividad permite desarrollar necesarias y enriquecedoras comparaciones con otros casos, en especial el de la Shoah (modelo ineludible de políticas de la memoria) y el caso sudafricano, basado en una reconciliación que provendría del reconocimiento de una verdad. Permite, además, analizar comparativa y críticamente el más incipiente proceso colombiano desde una óptica que marque un camino que no puede ni debe ser imitativo sino, por el contrario, que permita visualizar las diversidades y comprender la toma de decisiones políticas en contextos específicos complejos.

En el trabajo de Ana Guglielmucci importan los lugares, los espacios, los paisajes de la memoria. El recuerdo oficial se plasma en monumentos, centros culturales y parques conmemorativos. En particular, antiguos centros de detención clandestina son transformados en epicentros para la conmemoración y la reflexión. Estos exespacios del horror en muchos casos se convierten en archivos, museos y centros culturales. Estos  paisajes de la memoria serían definidos por Tim Edensor como “la organización de objetos específicos en el espacio, el resultado de proyectos a menudo exitosos que buscan materializar la memoria al ensamblarla a formas iconográficas” (Edensor, 1997: 178). Importan aquí, por lo tanto, las dimensiones espaciales del recordar.

Al mismo tiempo, Guglielmucci describe las construcciones de un recuerdo donde se disputan fechas y datos, se reconstruyen desapariciones, torturas, masacres. En este proceso, se introducen conmemoraciones y se organizan rituales. Los organismos de derechos humanos no son, felizmente, presentados aquí como un bloque monolítico, unificado y armonioso sino como grupos con diferencias, en algunos casos profundas, sobre qué se debe recordar y cómo. Este registro es un aporte original en el caso argentino. Pocos trabajos, generalmente tamizados por cierto pudor, se ocupan de las disputas de la memoria en el campo de las organizaciones de derechos humanos. El sentido que debe darse a un hecho polémico, las actividades que deben realizarse en lugares que fueron otrora espacios del horror, son objeto de discusiones y enfrentamientos.

En el primer capítulo, Ana Guglielmucci caracteriza a quienes son los protagonistas del proceso social de la construcción de la memoria: los activistas. Nos explica su trayectoria grupal, la historia de las principales organizaciones sociales bajo cuya protección trabajan, cómo fueron convirtiéndose en expertos en esta área y cómo fueron reconocidos por otros como tales. En este sentido, hace referencia a la teoría de los campos de Bourdieu como espacios sociales de acción, y al reconocimiento, a aquellos que se mueven dentro del campo de la memoria, de una “competencia” específica.

En el segundo capítulo, la autora analiza cuál es la articulación entre estos activistas y los académicos que trabajan la temática de los derechos humanos.

Hace referencia a la importancia del concepto “memoria” para legitimar prácticas de recuerdo y olvido. En este contexto, definir “memoria” pasa a ser central. Ana Guglielmucci describe tres tipos de dominio o competencia específicos: el académico, el político-militante y el técnico profesional. Analiza, “cómo opera el reconocimiento de la competencia de cada uno de estos actores, asignándola a ciertos dominios de actividad que, en un principio, son tomados como propios y la posibilidad o no de que esta competencia sea reconocida en otros considerados como ajenos” (p. 29).

En el tercer capítulo, la autora intenta comprender cómo, al tiempo que la categoría “memoria” fue incorporada y asumida por el Estado, varios militantes de los derechos humanos fueron incorporados a la estructura burocrática de éste. La excepcionalidad que supone ser no sólo un luchador sino también un “trabajador de la memoria” está llena de tensiones identitarias. En definitiva, su posición es ambigua, liminar: son a la vez militantes y empleados estatales. La autora trabaja también aquí sobre el proceso normativo que acompañó esta institucionalización y estatalización de los derechos humanos en Argentina. Ligadas, nos dice Guglielmucci, “a que ciertos hechos del pasado se inscriban como consecuencia del terrorismo de Estado y no de otras maneras posibles, a través de la selección de ciertas denominaciones, recortes temporales y acontecimientos” (p. 30).

El cuarto capítulo hace referencia a “los roles adoptados por los participantes y la marcación de su estatus y la delimitación de los espacios escogidos como los adecuados para desplegar sus representaciones sociales sobre el pasado, de acuerdo a las polémicas presentes y sus expectativas a futuro” (p. 31). Además, y esto lo hace especialmente interesante, este capítulo analiza la transformación de la Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA) -el más emblemático centro de detención ilegal, tortura y exterminio de la dictadura- en un Espacio para la Memoria. En este proceso, diversos actores sociales, políticos, funcionarios, representantes de organizaciones no gubernamentales, gremialistas, periodistas, etcétera, luchan, en última instancia, por imponer representaciones sociales acerca de lo que debe ser recordado, y también, no lo soslayemos, sobre lo que debe ser olvidado. Estas disputas, en las que ciertos actores poseen más legitimidad que otros, se dan en el marco de fuertes enfrentamientos y conflictos.

En el quinto capítulo, Guglielmucci describe cómo se identificaron y seleccionaron los excentros clandestinos de detención para ser convertidos en espacios de memoria. Éste es un proceso social que define qué hacer con ellos y en ellos. La autora compara dos de estos centros: el ya citado de la Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA) y el llamado “Garage Olimpo” (relativamente menor). La comparación incluye la conformación de los respectivos órganos políticos de gestión encargados de definir qué hacer con ellos.

El capítulo sexto hace hincapié en las diferencias comparativas en la “marcación simbólica” de los espacios ESMA y Olimpo. Aborda la clasificación y sectorización simbólica del espacio. No olvidemos, además, que estos espacios son a su vez prueba material para la justicia, que mantiene aún una importante cantidad de causas abiertas. La memoria se construye a través de la refuncionalización de los espacios de representación, lo que significa su transformación de espacios del horror en espacios culturales de memoria.

La autora concluye expresando la valoración social de la memoria que este proceso de institucionalización supone, y su materialización en espacios específicos. Nos dice: “la manera en que los diferentes actores tendieron a crear y a instaurar una política de monumentos, de objetos y de espacios para preservar y promover la memoria buscó consolidar concepciones comunes sobre lo que se considera la forma legitimada de recordar en el plano colectivo” (p. 344). Considera central en esta particular política de la memoria, la transformación de centros de detención ilegal, tortura y desaparición convertidos en Espacios para la Memoria. Esta decisión política permite, de un modo significativamente poderoso, y podríamos decir también exitoso, construir una interpretación pública de la violencia estatal de la dictadura militar que busca sustentar la convivencia social con base en los valores democráticos y la doctrina de los derechos humanos.

Ana Guglielmucci reconstruye minuciosa y documentadamente, utilizando fuentes etnográficas (especialmente su presencia en el mismo proceso de toma de decisiones que desnuda las discusiones y las disputas), la realización de numerosas entrevistas y la recopilación de una exhaustiva documentación, el proceso de construcción de esta particular política de la memoria. Su utilidad para aquellos que investiguen en este campo o que estén trabajando en procesos similares, que se encuentren en estado de conformación, es más que evidente.

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* Guglielmucci, Ana. 2013. La consagración de la memoria: Una etnografía acerca de la institucionalización del recuerdo sobre los crímenes del terrorismo de Estado en la Argentina, Buenos Aires, Antropofagia, 398 pp. ISBN 9871238991, 9789871238996.

Referencia

Edensor, Tim. 1997. National identity and the politics of memory: Remembering Bruce and Wallace in symbolic space. Environment and Planning. D: Society and Space 15 (2): 175-194.         [ Links]

Santiago Álvarez – Ph.D. Antropología Social. London School of Economics and Political Science. Londres, Inglaterra. Universidad Nacional Arturo Jauretche, Buenos Aires, Argentina. Correo electrónico: [email protected]

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The Idea of Order: The Circular Archetype in Prehistoric Europe | Richard Bradley

Richard Bradley é professor de Arqueologia na Universidade de Reading, especializado em estudos da pré-história europeia, focando em paisagens pré-históricas, organização ritual e social e arte rupestre. Entre seus últimos livros publicados estão The Prehistory of Britain and Ireland (2007) e Image and Audience: Rethinking Prehistoric Art (2009). Sua maior contribuição à área é o livro The Significance of Monuments: On the Shaping of Human Experience in Neolithic and Bronze Age Europe (1998). Neste livro, é lançada a ideia de que a escolha e a predominância de um formato circular para a construção de monumentos na Europa Atlântica durante o Neolítico estaria ligada à cosmovisão comum das populações pré-históricas em contato.

A busca para compreender a escolha do que o autor denomina como “arquétipo circular” [1] é constante em suas publicações, e é ela que pauta todo o livro, afastando-se um pouco da noção de cosmovisão, e observando fatores mais práticos e do cotidiano, como, por exemplo, a influência do ambiente habitado e conhecido na construção de casas e monumentos. Como o próprio autor pontua: este não é um livro sobre um período ou um lugar; é sobre uma ideia (BRADLEY, 2012:3).

As ideias de um padrão circular, assim como seus questionamentos do início do livro, na verdade, costuram toda a obra, por entre seus dez capítulos: por que tantos povos na pré-história europeia construíram monumentos circulares? Por que escolher as casas redondas enquanto outras comunidades as rejeitavam? Por que havia pessoas que habitavam casas retangulares e frequentemente enterravam seus mortos em montículos circulares ou cultuavam seus deuses e ancestrais em templos circulares? (BRADLEY, 2012: 3).

Obviamente, o leitor que procura respostas acabará o livro sobrecarregado, devido à quantidade de detalhes e levemente frustrado: há mais questionamentos do que respostas. É uma recorrência ao longo do livro. As inquietações de Richard Bradley perpassam estudos etnográficos na América e África além de análises comparativas que vão desde o Neolítico à Irlanda Medieval, passando por sítios da Espanha, Portugal, França, Sardenha, Irlanda, Inglaterra e Escandinávia. Lembrando que seu foco de análise é a forma circular e o seu longo período de existência, não negligenciando o tipo de suporte material: seja na construção de casas e monumentos, ou na decoração de objetos (em cerâmica e metal).

Devido à complexidade do assunto em questão e até como uma forma de crítica às duas posições entendidas como antagônicas nos estudos de pré-história, o autor faz um julgamento claro em relação à divisão ainda existente na abordagem dos estudos na área. Os processualistas, que tendem sempre às generalizações e à construção de grandes modelos de análise; e os pós-processualistas, que enfatizam sempre estudos de caso e análises particulares, que acabam por demonstrar que o modelo generalizante se encontra equivocado. Assim, R. Bradley preferiu seguir uma sequência lógica, movendo-se sempre de um questionamento generalizante para os estudos de caso (o particular), não deixando nunca de levantar os pontos de interesse mais amplos e de esquematizar melhor suas exposições ao final dos capítulos da maneira mais didática possível.

O autor, ainda, demonstra sua preocupação com a autocrítica em relação à escolha dos seus métodos de análise, dedicando um espaço nos capítulos para questioná-los antes mesmo que o leitor o faça – como é o caso, por exemplo, do segundo capítulo, no qual ele questiona o uso de dados etnográficos. Este tipo de abordagem só faz com que a obra se torne irritantemente genial, pois mostra o trabalho massivo para a construção do livro, a preocupação com os dados e a erudição do autor, assim como incita o leitor a pensar – uma proliferação de questionamentos ao longo de todo o livro.

Tendo em vista a amplitude espaço-temporal da sua análise, Richard Bradley teve a preocupação de esquematizar, no seu primeiro capítulo, como funciona a organização do seu argumento, partindo da análise de casas circulares e sua distribuição pela Europa, utilizando dados etnográficos e observando artisticamente os estilos curvilíneo e linear, correlacionando-os com escolhas de moradia do mesmo período.

Na segunda parte do livro, é observada a relação entre as moradias (casas e assentamentos) e a construção de monumentos e, na terceira parte, foi analisada a relação e a concomitância das estruturas curvilíneas e retilíneas, não deixando de investigar as circunstâncias em que o modelo circular foi abandonado.

O autor inicia seu livro descrevendo e analisando um sítio na Irlanda, um local conhecido pela possível ocorrência do festival Céltico de Beltane, um lugar antigo para reuniões, associado ao culto Druídico do Fogo e ao trono dos Reis Irlandeses. Hill of Uisneach, um centro sagrado da Irlanda em tempos pagãos, de acordo com o folclore e evidências literárias. Esse sítio está situado em uma colina que domina a paisagem que a cerca, como o centro da mesma. De seu topo, pode-se observar os vários condados irlandeses. Possui mais de 20 monumentos antigos, entre tumbas megalíticas, montículos funerários, aterros e fortificações anelares, com datações que variam entre o Neolítico e a Idade do Bronze no caso das construções, e da Idade do Ferro ao Medievo no caso das (re)utilizações encontradas.

Recentemente, o sítio teve uma tradição inventada [2] : o Fire Festival (Festival do Fogo) que envolve a construção de uma série de prédios de madeira circulares (temporários), com algumas estruturas decoradas com desenhos curvilíneos – uma decisão deliberada dos criadores do evento para refletir a configuração dos monumentos do lugar, que, não por coincidência, é a configuração tradicional em toda Irlanda, desde as tumbas do Neolítico, passando pelos centros reais da Idade do Ferro até os monastérios mais antigos.

Ao adentrar pela análise da construção dos monumentos antigos, o autor expõe um problema: a sequência extensa desses monumentos. Eles possuem uma longa história, e como o autor explicita, não é fácil analisá-los quando muitos pré-historiadores são especialistas em períodos específicos. Torna-se clara sua crítica, talvez um pouco generalista e exagerada, aos pós-processualistas e ao seu alto grau de especialização. Ele entende que o problema deve ser sanado ao se olhar mais largamente, espacialmente e temporalmente – o que, a exemplo deste livro, é fruto de um trabalho árduo que poucos provavelmente têm interesse em fazer.

A partir da análise dos eixos de preferências entre os padrões retilíneos e curvilíneos, fica claro seu posicionamento. Para o autor, a construção da arquitetura curvilínea seria uma escolha; uma alternativa aos modelos lineares “tradicionais”. A noção de escolha deve ser entendida relacionada ao conceito de agência – que engloba outros diversos conceitos e enfoques, tais como ritual, monumentalização, práticas funerárias, apreensão do mundo via sentidos, cadeia operatória, noções de memória, ancestralidade e identidade.

Deve-se considerar no conceito de agência que o corpo é o principal locus físico da experiência e a cultura material é o meio pelo qual se estabelece a comunicação, cria e reproduz o simbólico. É, portanto, um meio para compreender as relações sociais e os mapas cognitivos e, quando aplicado ao coletivo, implica em força para a construção de noções partilhadas do social e do simbólico, por meio da monumentalização e da construção ritual (OWOC, 2005; CUMMINGS, 2003; BAHN & RENFREW, 2005). Deste modo, o autor entende que o contraste entre as formas era significativo, uma vez que elas indicam ideias particulares de ordem, não estando, necessariamente, ligadas somente à questão da funcionalidade, mas com forte carga simbólica.

Assim, as construções seriam a concretização da experiência humana e do pensamento simbólico na cultura material, refletindo os componentes do ambiente construído que cercava as populações. Se faz crucial, entretanto, atentar para o fato que as percepções variam, mesmo entre comunidades que habitam um mesmo espaço: a interpretação de um fenômeno, assim como do ambiente ao seu redor, varia. Seguindo esse raciocínio, a construção dos monumentos seria consequência direta de crenças compartilhadas para a construção e utilização de edificações domésticas: elas teriam influenciado as percepções de mundo das populações pré-históricas [3].

No terceiro capítulo, é analisado o contraste entre as formas curvilíneas e retilíneas na arte. Poderiam, por exemplo, estar ligadas a noções de sagrado e secular, público e privado. A observação vem a partir da reinterpretação da “arte Celta” [4 ]elaborada em metal, da Idade do Ferro. Os objetos desse período que contém temática curvilínea são provenientes de contexto religioso/ritual, mesma característica dos contextos de construção de monumentos circulares no Neolítico e Idade do Bronze.

  1. Bradley afirma sua posição exemplificando uma “continuidade” do padrão curvilíneo com a construção do Catolicismo na Irlanda Medieval e o padrão circular associado à na construção de igrejas e monastérios, assim como da criação da “Irish Cross”. Acredito, entretanto, que seja necessário considerar a possibilidade de ser somente uma continuidade de uma tradição para adaptação local e não, necessariamente, uma escolha deliberada baseada em um simbolismo milenar que tenha sobrevivido sem grandes alterações desde a pré-história.

Um questionamento interessante é feito no capítulo quatro: é necessário levar em consideração a audiência para a qual o monumento foi feito – entendendo que a maioria das pessoas só teria acesso à parte externa dos monumentos e a maioria dos estudos não leva isso em consideração; há uma crítica excessiva à muita atenção prestada ao interior dos monumentos e à pouca ênfase dada ao exterior – formato e direcionamento, que muitas vezes lembram moradias e ocupações domésticas. Neste ponto, se faz necessário abrir uma ressalva, pois a crítica do autor está inserida no contexto de estudos da arqueologia da paisagem e é consequência direta da forma como ele entende e analisa os monumentos. A arqueologia da paisagem é um campo da Arqueologia que estuda a forma como as pessoas do passado moldavam sua paisagem e nela viviam. Assim, ao ter como foco os monumentos e assentamentos que se integram aos traços geográficos e ambientais, é possível buscar entender o âmbito socioeconômico para, consequentemente, chegar-se ao cultural. A paisagem, desse modo, é entendida como uma construção sociocultural. Assim, analisa-se a inter-relação entre os sítios e os espaços físicos que os separam a partir da análise extra-sítio (ver Anshuetz et al 2001; INGOLD, 1993; TILLEY, 1994; BENDER, 1992).

Ao introduzir no capítulo cinco a análise dos monumentos em pedra, trabalhando com noção de intencionalidade e escolha do material [5], leva em consideração a sua durabilidade (ver PEARSON & RAMILSONINA, 1998) e os compara com os monumentos de madeira, deixando explícita a diferenciação do foco de cada tipo de monumento: os de madeira seriam feitos para reuniões entre os vivos, e os de pedra, teriam ligação com os mortos e ancestrais. Além disso, é introduzido o questionamento sobre a datação das marcações feitas em terrenos (trabalhos de terraplanagem e construção de fossos) reconhecidas como henges: alguns deles seriam posteriores aos monumentos (círculos de pedra e madeira) que estão atualmente relacionados (ou assim era entendido).

Dessa forma, a inserção dos henges no contexto dos círculos de pedra, por exemplo, demonstra uma provável mudança no foco ritual desses locais, provavelmente ligados aos ritos de passagem (ver GENNEP, 1909; TURNER, 1969) com inversão de convenções sociais, transformação do estado pessoal e manutenção de forças dentro do círculo. Indo além, alguns desses henges e trabalhos de terraplanagem teriam o intuito de barrar a visão do interior dos monumentos, revelando a necessidade de uma audiência fechada, caracterizando uma hierarquia social, onde muitos construíam, mas poucos tinham acesso direto (seja visual, seja físico) ao centro do ritual [6] – e, por que não, da paisagem ritualizada.

Um dos exemplos usados pelo autor é o caso de Stonehenge, provavelmente o círculo de pedra mais conhecido, localizado na Inglaterra. Sua fama vem do fato de ser uma construção massiva em monólitos, que chama a atenção como centro de um microcosmo do mundo e dominando a paisagem que o cerca. A comoção maior surgiu no século XVIII com os antiquários [7], como John Aubey e William Stukley, que interpretaram o monumento erroneamente e acabaram criando uma tradição na qual ele seria construção feita pela população celta, voltado para atividades rituais: um templo dos druidas, popularmente conhecidos como “sacerdotes celtas” [8].

Os antiquários foram percussores/fomentadores de um movimento conhecido como Celtomania, intrinsecamente ligada ao Celtismo, conhecido como a invenção de uma “tradição” celta a partir dos antiquários do século XVIII, que influenciou fortemente os movimentos nacionalistas na Europa e desencadeou o fenômeno da Celtomania, no século XIX. Ligada ao imaginário popular, ao mítico, ao fantástico, baseou-se no Celtismo e nas lendas medievais. Atualmente, existe uma cultura pop com distorções ainda maiores, com ampliação das imagens criadas e com uma forte idealização mítica. Como consequência, foi criada uma alegoria do que teria sido a sociedade celta, com implicações políticas e identitárias fortes e que até hoje influencia religiosidades neopagãs – que (re)interpretam e (re)utilizam monumentos pré-históricos como sendo representantes de uma crença milenar e ancestral.

Apesar de sua importância indiscutível ao longo de séculos, Richard Bradley oferece muito pouco espaço para analisar Stonehenge. Com monólitos massivos moldados e cuidadosamente conectados, como peças de carpintaria, fazendo a ocorrência incomum para o tipo de círculo de pedras, o autor traz uma nova ideia, de que Stonehenge teria sido concebido como uma cópia de um edifício de madeira doméstico, mas infelizmente deixa o leitor perdido, no meio do questionamento, sem desenvolver mais sua teoria e sem proporcionar maiores detalhes.

Na penúltima parte do livro, que engloba os capítulos sete, oito e nove, o autor trabalha com a análise da existência das construções em formas retilíneas e retangulares em concomitância com as circulares. Seja por justaposição ou interação dessas estruturas, examina o motivo de a construção circular ter sido afetada à medida que a construção retangular fica mais proeminente. Essa análise se dá pelo estudo de caso em diferentes espacialidades no mesmo recorte temporal: Idade do Ferro na Sicília e nas Ilhas Britânicas, além da cultura dos Castros na Península Ibérica; e por meio de estudos etnográficos utilizando exemplos africanos.

No último capítulo, o autor faz um apanhado geral das ideias expostas em seu trabalho, traçando um elo comum entre os casos analisados: a experiência de viver em casas redondas seria uma ideia particular nas comunidades da pré-história europeia e seu formato seria uma escolha importante, uma vez que os monumentos circulares não foram substituídos por monumentos retilíneos e, quando a forma circular foi suprimida das casas, teria provavelmente ocorrido por pressão política; e teria sido direcionada, então, para a construção de templos. Apesar de possuírem um layout mais prático, as casas retangulares não foram completamente adotadas por comunidades sedentárias.

A escolha do autor pelo estudo e ênfase nas moradias e construções domésticas, (as casas), pode não ficar muito clara para o leitor até o final do livro. Ele parte sempre das casas como unidade principal de análise, mesmo para casos comparativos. Isto se deve ao fato que, para ele, é possível enxergar nos monumentos uma tentativa de utilizar o “protótipo” doméstico em escala aumentada. Como já exposto, esse modelo original doméstico influenciaria toda a visão de mundo e as escolhas simbólicas e rituais das populações, fazendo com que fosse massivamente reinterpretado ao longo do tempo, por diversas comunidades.

Após esta afirmação, permanece o questionamento: não seria simplificar em demasia o motivo e o poder de escolha de uma população a partir única e exclusivamente da influência do padrão de construção que a moradia possuía? Como é mostrado no próprio livro, as escolhas dos tipos de moradia são influenciadas também pela relação do homem no ambiente e na paisagem que o cerca. Se levarmos em consideração os estudos de paisagem, é possível percebê-la como dinâmica: o ambiente influencia a ação humana, as casas influenciam os monumentos, os monumentos influenciam as casas … e vice-versa.

Sendo assim, não seria mais lógico considerar a paisagem, na qual as casas e os monumentos estão inseridos, como uma plataforma interativa para a experiência humana, constantemente recriada por meio de construções físicas, metafísicas e simbólicas que alterariam continuamente o relacionamento e a percepção daqueles que nela se engajavam, criando a percepção humana de estar no mundo (TILLEY, 1994; INGOLD, 1993) e, isso sim, influenciar no padrão de construção das casas e monumentos?

Essa exposição só vem demonstrar o uso diferenciado do espaço na Europa, que tem a ver com o ambiente, a paisagem, a economia e o assentamento das populações – o que levou a reiterar uma das poucas conclusões do livro: há um padrão para as construções e uma dualidade – já exposta por Cunliffe (2008) – entre dois eixos da Europa. A arquitetura curvilínea é mais comum nas áreas conectadas pelo mar: oeste do Mediterrâneo e a costa do Atlântico, com poucos exemplos na França. Essas áreas eram extremamente conectadas durante o Neolítico e a Idade do Bronze e depois por contatos transoceânicos na Idade do Ferro e no Período Romano (CUNLIFFE, 2001). Sua caracterização não concretiza um dado que as comunidades ali presentes possuíam, reconheciam e partilhavam de uma origem comum, mas evidencia as trocas de longas distância. Já a arquitetura retilínea é mais comum no eixo da Europa continental, central e norte, enfatizada pelos contatos por terra, exemplificando uma diferença na forma de conceber e lidar com o mundo: na terra, contatos em redes, caminhos e trilhas; enquanto no eixo marítimo a paisagem é mais aberta, com o contato diferenciado entre o indivíduo, o horizonte e o céu – o que, certamente, influenciou na forma de construir, idealizar e habitar das populações.

The Idea of Order: The Circular Archetype in Prehistoric Europe é uma obra extensa, extremamente detalhada e descritiva, exigindo atenção e dedicação total do leitor, de preferência, com uma leitura lenta, atentando sempre para as correlações e os questionamentos que seguem encadeados ao longo dos nove capítulos e que são amarrados no capítulo final do livro. Ao finalizá-lo, o leitor dificilmente irá concluir, devido à enxurrada de questionamentos explicitados ao longo do texto, se existiu (ou não) um padrão circular presente no inconsciente coletivo e partilhado pelas populações préhistóricas através de gerações ou ainda se a ideia particular de ordem que sintetizaria a concepção circular do espaço seria fruto de uma consciência comum às populações préhistóricas da faixa Atlântica. O máximo que se poderá concluir é, como o próprio autor expõe: que não é possível afirmar, mas é válido fazer a pergunta.

Notas

1. Vale à pena salientar que para R. Bradley, a noção de arquétipo ultrapassa o significado basilar ligado a: padrão, modelo ou até paradigma. No curso de suas obras, o autor vai indicando que sua escolha se aproxima mais do conceito Junguiano de arquétipo, que seria um modelo de construção circular presente no (in)consciente coletivo das populações pré-históricas da faixa atlântica.

2. Sobre tradição inventada ver HOBSBAWM & RANGER, 1992.

3. Para o estudo mais aprofundado sobre a vida doméstica e sua influência, ver BRADLEY, 2005.

4. Tradicionalmente conhecido como arte do período La Tène (ver CUNLIFFE, 1997). 5 Relacionamento entre sujeito e objeto ver HODDER, 1995.

6. Entende-se como ritual atos que não fazem parte de atividades cotidianas e, em alguns casos, não domésticas que se comunicam através de mídia distinta para criar uma noção de tempo diferenciada: a fusão do passado no presente, com intuito de manter a ordem social (BELL, 1992).

7. Antiquarismo: movimento do século XVIII/XIX, anterior à arqueologia, composto por estudiosos, curiosos e colecionadores que tinham interesse nas relíquias do passado (Cf Trigger, 2004).

8. Para maiores informações, ver CUNLIFFE, 2010.

Referências

BENDER, B. Theorizing Landscapes, and the Prehistoric Landscapes of Stonehenge. Man, 27, 1992, pp.735-755.

BRADLEY, R. Rock art and the Prehistory of Atlantic Europe. London: Routledge, 1997.

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CUMMINGS, V. Building from Memory, Remembering the past at Neolithic monuments. In WILLIANS, H. (ed.). Western Europe in Archaeologies of Remembrance: Death and Memory in Past Societies. New York: Plenum Publishes, 2003, pp.24-29.

CUNLIFFE, B. The Ancient Celts. Oxford: Oxford University Press, 1997.

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__________. Europe Between the Oceans: themes and variations: 9000 BC to AD 1000. Yale: Yale University Press, 2008.

__________. The Druids: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010.

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HODDER, Ian. Theory and Practice in Archaeology (Material Cultures). London: Routledge, 1995.

INGOLD, T. The Temporality of the Landscape. World Archaeology, 25 (2), 1993, pp. 152-174.

LEERSSEN, Joep. Celticism. In: BROWN, T. (ed.) Celticism. Editions Rodopi: Amsterdam, 1996, pp. 3-19.

OWOC, Mary-Ann. From the Ground Up: Agency, Practice, and Community in the Southwestern British Bronze Age. Journal of Archeological Method and Theory, 12 (4), 2005, pp. 257-281.

PEARSON, P.; RAMILSONINA. Stonehenge for the ancestors. The Stones pass on the message. Antiquity, 72, 1998, pp.308–26.

TILLEY, C. A Phenomenology of Landscape – places, paths and monuments. Oxford: Oxford University Press, 2006.

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Ana Carolina Moliterno Lopes de Oliveira – Mestranda em História Social na Universidade Federal Fluminense (UFF) NEREIDA/UFF. E-mail: [email protected]


BRADLEY, RICHARD. The Idea of Order: The Circular Archetype in Prehistoric Europe. Oxford. Oxford University Press, 2012. Versão e-book. Resenha de: OLIVEIRA, Ana Carolina Moliterno Lopes de. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.14, n.2, p. 129-138, 2014. Acessar publicação original [DR]

O comercio tardoantigo no Noroeste Peninsular: unha análise da Gallaecia Sueva e Visigoda a través do rexistro arqueolóxico | Adolfo Fernández Fernández

La Antigüedad Tardía es, a nivel general, una de las épocas menos estudiadas, sobre todo en lo que atañe a Hispania y especialmente a la zona del Noroeste. La obra que aquí reseñamos, titulada O comercio tardoantigo no Noroeste Peninsular: unha análise da Gallaecia Sueva e Visigoda a través do rexistro arqueolóxico [1] , viene a suplir, en cierta medida, un vacío que existía en uno de los campos menos estudiados y a los que menor atención se le había prestado, el comercio, focalizando su atención en una zona (la Gallaecia) y una época (siglos IV-VII) marcados por la irrupción en la Península Ibérica de diversos grupos bárbaros, destacando sobre todos ellos el grupo Suevo, que suplantó al Imperio Romano como dominador del Noroeste de Hispania desde comienzos del siglo V. Es por tanto una obra fundamental que permite contextualizar los pocos datos y la poca información que sobre la irrupción de este pueblo bárbaro tenemos y sobre las consecuencias intrínsecas que su instalación sobre el territorio hispano noroccidental supuso.

La obra, de Adolfo Fernández Fernández, surge como resultado de su tesis de doctorado, titulada El Comercio Tardoantiguo (ss. IV-VII) en el Noroeste peninsular a través del Registro Arqueológico de la Ría de Vigo, leída en el año 2011 en la Universidad de Vigo. Arqueólogo-ceramólogo especialista en economía y comercio de época romana, el propio autor indica en las páginas iniciales de su libro, escrito en gallego, de poco menos de 300, que este estudio surge de la ausencia de artículos y estudios científicos referidos al comercio en el Noroeste hispano desde la publicación de la obra de Naveiro López, El comercio antiguo en el NW peninsular, publicada en 1991. Debido al boom económico y urbanístico que vivió España (y en cierta medida también Portugal) las excavaciones arqueológicas, y por tanto nuevos materiales susceptibles de ser estudiados, han salido a la luz, y es por ello que el autor puso sus ojos en ofrecer a la comunidad científica este estudio tan interesante.

El libro se divide en cuatro apartados diferentes de desigual tamaño, más allá de una pequeña introducción donde nos deja entrever brevemente en el origen de sus investigaciones y su libro.

El primero de estos apartados se titula Os xacementos arqueolóxicos de Vigo: a base principal do estudo [2], en el cual Adolfo Fernández nos hace un recorrido por los diferentes yacimientos arqueológicos de los que provienen la mayor parte de los materiales que van a ser estudiados en el grueso de su obra. Todos ellos se encuentran en el núcleo urbano de Vigo (Pontevedra, España), excepto uno que está fuera, y aparecen englobados por el autor en tres categorías diferentes, basándose para ello en los diferentes grados de estudio de su material arqueológico: yacimientos con estratigrafía (Villa de Toralla, Unidad de Actuación Rosalía de Castro I, Marqués de Valladares y la Unidad de Actuación Rosalía de Castro II), yacimientos sin datos estratigráficos (Hospital nº 5, parcela 14, parcela 23, colector da rúa Colón y Areal 6-8) y yacimientos con materiales tardíos parcialmente estudiados (Parcela 13, túnel del Areal y Rosalía nº 5).

El segundo de estos apartados se titula Unha breve aproximación ás relación comerciais do Noroeste con anterioridade á Antigüidade Tardía. (Séc. V/VI a.C. – Séc. III d.C.) [3]. Al igual que el anterior, estamos ante un capítulo que podemos denominar introductorio, en tanto en cuanto su función no es otra que la de contextualizar los dos siguientes apartados, que conforman el grueso de la obra. Dado que, como bien indica el título, esta obra tiene como marco cronológico la Antigüedad Tardía, el autor consideró necesario este capítulo para establecer un marco de partida, de referencia, para poder entrever las rupturas o las continuidades de los sistemas mercantiles y comerciales en el Noroeste con la época anterior, de ser el caso.

Tras estos dos apartados, entramos de lleno en su estudio, con un tercer apartado de poco más de 120 páginas, el de mayor tamaño del libro con diferencia, titulado As relacións do noroeste e as rutas de comercio durante a Antigüidade Tardía. (Sécs. IV – VII.) [4] . Dado su volumen y su importancia, el autor lo ha dividido en cinco capítulos, abordando en cada uno de ellos las características del sistema comercial del Noroeste hispano a lo largo de diferentes periodos de tiempo, caracterizados cada uno de ellos por peculiaridades propias. Estas fases del sistema comercial del Noroeste abarcan desde el siglo IV hasta el VII, analizados siguiendo un orden cronológico.

Una de las claves más interesantes de este libro radica en el estudio de los sistemas comerciales en la época de llegada de los pueblos bárbaros a Hispania, y especialmente en la época del asentamiento de los Suevos en la zona estudiada, el Noroeste. Por tanto, las conclusiones que de este trabajo se extraigan serán indispensables para conocer mejor las relaciones de este nuevo poder bárbaro con los poderes locales galaicorromanos, y para desmentir o afirmar la tan manida cuestión de si este grupo bárbaro arrasó violenta y cruentamente estos lugares.

En las últimas décadas se ha venido aseverando por parte de historiadores y arqueólogos, a través de una actitud más crítica hacia las fuentes y de mayores estudios arqueológicos sobre esta época, la actitud más o menos pacífica, o por lo menos no destructiva, de los grupos bárbaros en su llegada y asentamiento en el Noroeste. Este estudio por tanto se convertirá en un argumento más para reafirmar este “pacifismo” de los grupos bárbaros, o al contrario, para mostrar cierto rupturismo consecuencia de su llegada.

Del mismo modo, este estudio cronológico, con sus rupturas o sus continuidades, nos ofrece importante información sobre épocas para las cuales no tenemos apenas información en en la Gallaecia, como por ejemplo el último tercio del siglo V, donde a partir del fin de la Crónica de Hidacio de Chaves no tenemos información alguna. Así pues, a través de este estudio podemos acercarnos mínimamente a esta época para comprobar si, en un sentido general, se producen continuidades con la época anterior o si por el contrario existe alguna ruptura importante que nos esté dando cuenta de algún suceso que motivó ese cambio, pero que no conocemos por ninguna fuente escrita.

Por otra parte, es también interesante el análisis del siglo VI, donde a través del estudio del autor se confirman cambios producidos por el nuevo panorama político del momento, como es el avance militar bizantino en Italia y el sur de Hispania, que provocan que los materiales provenientes del Mediterráneo oriental sean superiores a los productos tradicionales venidos del Norte de África. Asimismo, se constata una ruptura en esta época del comercio entre el Noroeste y las Islas Británicas, un hecho que a priori se desconocía y que el autor concluye producto de la peste de esta época.

Finalmente, como último capítulo de este apartado, el autor, en unas siete páginas finaliza el apartado haciendo referencia a la segunda mitad del siglo VII, en una especie de epílogo del mismo donde nos dice que, a pesar de no haber contextos arqueológicos para esta época en Vigo o en el Noroeste, se puede apreciar a nivel general en Occidente un repliegue sobre sí mismo debido al avance de los árabes por el Mediterráneo Oriental y Norteafricano, que puede suponer una verdadera ruptura en el sistema comercial heredado de época romana.

Llegamos así al último apartado del libro, titulado As mercadorías e os protagonistas do comercio [5] , en donde el autor pretende mostrar la información no desde una óptica cronológica como en el capítulo anterior, sino desde un punto de vista que podemos denominar como temático, estudiando así por ejemplo las mercancías por un lado, los protagonistas del comercio por otro, etc.

En general, este apartado es dividido por el autor en tres capítulos. El primero dedicado las mercancías exportadas e importadas en Vigo en particular y en el Noroeste en general, donde el autor contextualiza todos los materiales hallados en las excavaciones, afirmando que estos no serían el objeto principal del comercio, sino al contrario. La cerámica, el maíz, etc., serían mercancías de valor secundario que acompañarían a otras mercancías de lujo, más lucrativas, que serían el verdadero motor del comercio a larga distancia, mercancías que obviamente no se suelen encontrar en la mayoría de yacimientos arqueológicos, como serían joyas, textiles, perfumes, o incluso metales. En este sentido, el autor concluye que el verdadero motor que llevaría a los comerciantes a llegar hasta el Noroeste sería el alumbre. Por su parte, del Noroeste se llevarían probablemente metales como estaño o incluso plomo, y también probablemente madera.

El segundo capítulo de este cuarto y último apartado hace referencia a los protagonistas de los intercambios, es decir, aquellas personas que eran los promotores del comercio en el Noroeste. Adolfo Fernández hace un buen análisis incidiendo no sólo en los encargados del comercio de larga distancia, que estaría dominado por mercaderes extranjeros (griegos, judíos, sirios) sino también hace referencia a la importancia de los comerciantes locales de los emporios de distribución del Noroeste, dominados por galaicorromanos o suevos, encargándose estos de la captación de los productos orientados a la exportación y también de la redistribución de los productos mediterráneos hacia el resto del mundo atlántico.

Finalmente, termina este apartado, y también su obra, con un tercer capítulo titulado O porto de Vigo durante a Antigüidade Tardía: Un emporio atlántico [6], donde en unas nueve páginas concluye reafirmando la importancia del puerto de Vigo durante esta época, con un momento de especial esplendor durante el siglo VI y primera mitad del VII. Este puerto sería el último puerto en el que se detendrían los comerciantes de larga distancia, y funcionaría como lugar de redistribución de las mercancías para todo el Noroeste Peninsular.

La obra culmina con una extensa bibliografía sobre la temática del libro, que abarca poco menos de cuarenta hojas, lo que se puede considerar un gran acierto para quien esté interesado en indagar más aún sobre esta temática.

En definitiva, estamos delante de una obra de gran importancia que viene a llenar un hueco existente, una laguna en el conocimiento sobre la Antigüedad Tardía del Noroeste Peninsular y que no solo es importante desde el punto de vista de que se amplía el conocimiento de los sistemas comerciales en la Época Antigua, sino que es un argumento más para contextualizar un lugar y una época marcada, sin lugar a dudas, por cambios políticos en la zona de gran calado, como fue sobre todo la llegada del grupo bárbaro suevo a la Gallaecia.

O comercio tardoantigo no Noroeste Peninsular viene, en definitiva, a ser un argumento a favor de los nuevos planteamientos que sugieren que la llegada y el asentamiento de los Suevos en el Noroeste no fue en absoluto un momento de caos y destrucción por su parte sino que, al contrario, supusieron la continuidad de los sistemas económicos y comerciales heredados de la Antigüedad, con las obvias variaciones y fluctuaciones propias de un mundo en constante cambio, pero que no tienen que ver con una acción directa y premeditada por parte de los grupos bárbaros.

Notas

1. Dado que la obra está escrita en gallego, traduciremos al castellano, en notas a pié de página, los títulos, apartados y capítulos que en la obra vienen en este idioma, para que el lector los entienda sin dificultad. El título de la obra, en castellano, El comercio tardoantiguo en el Noroeste Peninsular: un análisis de la Gallaecia Sueva y Visigoda a través del registro arqueológico.

2. En castellano, Los yacimientos arqueológicos de Vigo: la base principal del estudio.

3. En castellano, Una breve aproximación a las relaciones comerciales del Noroeste con anterioridad a la Antigüedad Tardía. (Séc. V/VI a.C. – Séc. III d.C.).

4. En castellano, Las relaciones del Noroeste y las rutas de comercio durante la Antigüedad Tardía. (Sécs. IV – VII.).

5. En castellano, Las mercancías y los protagonistas del comercio.

6. En castellano, El puerto de Vigo durante la Antigüedad Tardía: Un emporio atlántico.

Benito Márquez Castro – Doctorando del Programa de Doctorado Historia, Territorio y Recursos Patrimoniales de la Universidad de Vigo Diputación de Pontevedra. E-mail: [email protected]


FERNÁNDEZ FERNÁNDEZ, Adolfo. O comercio tardoantigo no Noroeste Peninsular: unha análise da Gallaecia Sueva e Visigoda a través do rexistro arqueolóxico. Noia: Toxosoutos, 2013. Resenha de: CASTRO, Benito Márquez. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.14, n.2, p. 129-138, 2014. Acessar publicação original [DR]

Revisitando o Caribe: antigos e novos temas sobre sua história / Revista Brasileira do Caribe / 2014

El presente número de la Revista Brasileira do Caribe (REBRASCA) contiene varios artículos en un dossier dedicado al Caribe que fue organizado y especialmente comenta el profesor Pedro San Miguel y otra sección de artículos con textos comparativos entre Caribe y Brasil de varios autores que actuan en Brasil. El dossier recoge diversos trabajos elaborados por académicos que, de una u otra forma, están vinculados con la Universidad de Puerto Rico (UPR), que es el principal centro docente en esa isla antillana. Dejemos a Pedro San Miguel el análisis de los artículos del dossier.

Durante décadas, la UPR ha establecido nexos con el resto del Caribe, los que han fructifi cado de variadas maneras. Por ejemplo, en el campus de Río Piedras de la UPR —que es el más importante de sus recintos— se encuentra el Instituto de Estudios del Caribe (IEC), que cuenta con una distinguida trayectoria desde su fundación en 1958. Con el IEC estuvieron vinculadas muchas de las principales fi guras de los estudios caribeños durante las décadas de los sesenta y los setenta del siglo pasado.

Incluso, uno de sus inspiradores fue Eric Williams, uno de los grandes historiadores del Caribe. Durante los años más recientes, el IEC ha conocido un renovado esplendor gracias al impulso que le ha impartido su actual director, el doctor Humberto García- Muñiz, que es el más destacado caribeñista de la isla de Puerto Rico y cuya obra es ampliamente reconocida. Bajo la dirección del doctor García-Muñiz, el IEC ha promocionado un ciclo de Conferencias Caribeñas que abarcan una extensa temática y que ya supera las 200 conferencias. A esta labor de difusión se suma la revista Caribbean Studies, publicada desde el IEC y que se remonta al año 1961.

Y no es el IEC el único organismo de la UPR que tiene vínculos con el Caribe o cuyas gestiones han tenido reverberaciones en el. El Departamento de Historia, ubicado en la Facultad de Humanidades de la UPR, también ha tenido proyecciones y nexos con la región caribeña. Por ejemplo, una de las obras clásicas de la historiografía puertorriqueña, Puerto Rico and the Non-Hispanic Caribbean: A Study in the Decline of Spanish Exclusivism (1952), de Arturo Morales Carrión — quien estuviera adscrito a dicho Departamento—, traza las interacciones de la sociedad local con su entorno caribeño durante los tres primeros siglos de dominación española. Al día de hoy, ésta es una de las obras fundacionales del caribeñismo académico puertorriqueño. Con el devenir de los años, otros profesores del Departamento de Historia de la UPR entablaron lazos estrechos con el resto del Caribe, efectuando investigaciones en torno a la región, intercambiando con caribeñistas de diversas latitudes, y participando y colaborando en variados proyectos académicos.

Entre esas personas se distinguen Andrés Ramos Mattei, Fernando Picó, Blanca Silvestrini, Javier Figueroa, Francisco Moscoso y Teresita Martínez-Vergne. Amén de la presencia de estos destacados historiadores, en el Programa Graduado del Departamento de Historia se ofrecen regularmente cursos acerca del Caribe, razón por la cual en los últimos años se han efectuado varias investigaciones por parte de los estudiantes que han culminado en tesis de maestría y de doctorado; algunos de estos trabajos se han publicado como libros y otros más han dado lugar a la aparición de artículos en revistas y en obras colectivas. Por todo ello, se puede afirmar que el Departamento de Historia de la UPR es un importante centro de investigación y difusión acerca del Caribe.

Así que al solicitarme la Revista del Caribe Brasileña que actuara como editor invitado en este número, me pareció apropiado ofrecer a los lectores una muestra del tipo de investigación y de refl exión que se ha venido realizando en el Departamento de Historia de la UPR. El dossier: Revisitando el Caribe: antiguos y nuevos temas sobre su historia, se inicia con una investigación de Juan Giusti-Cordero titulada Sugar and Livestock: Contraband Networks in Hispaniola and the Continental Caribbean in the Eighteenth Century. Su autor, un acucioso y puntilloso investigador que se desempeña como profesor en el Departamento, revisita uno de los temas clásicos de la historiografía caribeña, el contrabando. Tomando como eje central de su inquisición la Isla Española y siguiendo el rastro del comercio ilegal de reses y mulas, Giusti-Cordero nos ofrece un perfi l más complejo del Caribe, uno en el cual el azúcar no resulta omnipresente ni totalmente dominante. El Caribe, en fi n, no eran únicamente sus zonas cañeras, sino también sus áreas ganaderas, sus regiones de bosques, sus hinterlands, y, por supuesto, aquellos espacios donde predominaba la producción campesina.

Las articulaciones espaciales han constituido durante décadas una de las principales líneas de investigación de Giusti-Cordero. En ello no se encuentra solo, como evidencia el siguiente texto del dossier, en el cual Carlos D. Altagracia Espada elabora una interesante comparación entre cómo dos destacados intelectuales —haitiano uno, brasileño el otro— imaginaron a África. “Geografía africana e identidad en Jean Price Mars y Gilberto Freyre” representa una continuación de una línea de investigación cuyo autor viene desarrollando desde que elaboró su tesis doctoral en el Departamento de Historia de la UPR y que desembocó en la publicación del libro El cuerpo de la patria: Intelectuales, imaginación geográfi ca y paisaje de la frontera en la República Dominicana durante la Era de Trujillo (2010). Siguiendo el modelo de este trabajo previo, ahora Altagracia Espada —quien se desempeña como profesor en el recinto de Arecibo de la UPR— se aboca a rastrear cómo esos dos destacados intelectuales representaron la geografía y el espacio africanos. Conceptuado tradicionalmente el continente africano como el lugar por excelencia de la barbarie y hasta del salvajismo, el autor de este artículo sugiere que en los imaginarios caribeños y latinoamericanos África podía adquirir variados sentidos. Como región imaginaria, ese continente ha tenido un papel signifi cativo tanto en las discursivas letradas como en las populares, constituyendo una pieza clave en determinadas construcciones identitarias.

De los espacios y las geografías pasamos en el siguiente ensayo, de César Augusto Salcedo Chirinos, a los arcanos de la Iglesia católica, a sus (aparentemente) rigurosos procedimientos disciplinarios, y a sus pretensiones de controlar los cuerpos, de regir las voluntades y de domeñar a sus fi eles y sus servidores. Lo que nos brinda el autor de Sin delitos ni pecados: La negociación de la justicia eclesiástica en Puerto Rico (1795-1857) es un puntual análisis de las infracciones y las transgresiones del clero —en particular las de tipo sexual—, del funcionamiento de la justicia eclesiástica, así como de sus entresijos, subterfugios y argucias. De más está decir que la minuciosa investigación de Salcedo Chirinos —parte de su tesis doctoral en el Departamento de Historia de la UPR—, pese a referirse una época remota, es de una gran actualidad debido a los debates públicos que en la época contemporánea se han suscitado en torno a situaciones muy similares a las examinadas por él en su investigación. La misma constituye una muestra ejemplar de la pertinencia de la investigación histórica para comprender los problemas y los dilemas del presente.

Mas la vida no es sólo angustia y condena: también es gozo y fruición. Así que Nora Rodríguez Vallés —historiadora graduada del programa doctoral en Historia de la UPR, profesora en su recinto de Bayamón y, como si fuera poco, una destacada pintora— nos cautiva con un pionero estudio sobre el turismo en Puerto Rico, la dizque “Isla del encanto”. Citando en su título una popular canción que destaca el carácter edénico de la Isla, Seguro sueñas que estás en Puerto Rico, o sobre la historia del turismo en la Isla indaga los orígenes de esos imaginarios que fueron construyendo a este país caribeño como un lugar paradisiaco, capaz de seducir a quienes arribaran a sus playas. En esta investigación, la autora recurrió a las imágenes visuales como fuente primaria, razón por la cual su trabajo brinda elementos novedosos desde una perspectiva metodológica.

En torno a las representaciones de Puerto Rico trabaja, asimismo, Pablo Samuel Torres en Los cronistas del 98: Americanización y discurso colonial según la vanguardia capitalista. Sus fuentes son una serie de libros escritos y publicados a poco de haber tomado Estados Unidos posesión de la Isla de Puerto Rico como secuela de la Guerra Hispano-Cubano- Americana. El artículo que aquí se incluye es, igualmente, producto de una tesis doctoral recientemente aprobada. Con ella Torres se ha sumado a varios investigadores —Lanny Thompson, Mario Cancel y José Anasagazty, entre otros— que se han dado a la tarea de rastrear las formas en que los estadounidenses concibieron y representaron a Puerto Rico y a los puertorriqueños durante las primeras décadas del siglo XX. El trabajo de Torres abona este campo de investigación, atendiendo en particular los discursos de quienes él denomina la “vanguardia capitalista”, que llegó a Puerto Rico con la intención de sondear las posibilidades que para el capital estadounidense tenía la Isla, recién arrebatada a España.

El dossier se cierra con el sexto artículo, Una «mirada imperial» a la historia de Cuba: Our Cuban Colony de Leland Jenks, de mi autoría. Este texto escruta también las representaciones que desde Estados Unidos se elaboraron sobre el Caribe; en esta ocasión, es la isla de Cuba el objeto de examen.

El artículo se centra en el afamado libro Our Cuban Colony, obra publicada en 1928, el que marcó un hito importante en la historiografía cubana. Constituye, pues, un lugar apropiado para escrutar los imaginarios estadounidenses sobre Cuba e, incluso, en torno a las políticas del Coloso del Norte respecto del Caribe.

De más está decir que el conjunto de artículos que componen el dossier que he coordinado son sólo unos pocos ejemplos de las investigaciones que se han venido realizando en el Departamento de Historia de la UPR. Las que se incluyen aquí pretenden mostrar algunas de las vertientes de esa labor.

En nombre de los participantes en el dossier y en el mío propio, agradezco a la RBC y, en especial, a Olga Cabrera la oportunidad de poder presentarles esta pequeña muestra.

En relación a los artículos que componen la sección de textos comparados de Brasil con el Caribe lo integran, el séptimo, de Alexandre Araujo Martins, Lugares de Xangô, em Trinidad e no Brasil: contemporaneidade e diferença colonial, el cual revela algunas de las contradicciones que se derivan de las ideologías africanistas nacidas en América. El octavo, Diálogos transnacionais e interdisciplinares: Brasil/Caribe de Olga Cabrera e Isabel Ibarra, las autoras orientan seguir el camino del estudio de los procesos de formación de identidades, focalizando los grupos humanos simultáneos en el tempo…

[Original incompleto]

Pedro San Miguel


SAN MIGUEL, Pedro. Revisitando o Caribe: antigos e novos temas sobre sua história. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.15, n.29, jul./dez., 2014. Acessar publicação original. [IF].

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Les Troubadours. Une histoire poétique – ZINK (A-EN)

ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. Resenha de: GUIMARÃES, Marcella Lopes. Alea, Rio de Janeiro, v.16 n.2, july/dec. 2014.

Les Troubadours. Une histoire poétique é o último lançamento de Michel Zink, Professor de Literatura Francesa do Collège de France, secretário perpétuo da Académie des inscriptions et Belles-Lettres, dentre outras inúmeras distinções e atividades docentes, literárias e de pesquisa. No Brasil, o seu artigo “Literatura” do Dicionário Temático do Ocidente Medieval, organizado por Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt talvez seja o seu trabalho mais lido, mas é possível também conhecê-lo em outra tradução, O Jogral de Nossa Senhora, publicado pela Editora Quadrante. Na verdade, diante de uma carreira notável, o leitor brasileiro não francófono tem acesso a ainda muito pouco do seu trabalho… Esperamos que isso possa mudar!

Qual é o sentido de voltar ao tema dos trovadores, a partir de suas vidasrazos 112 em sintonia com a poesia? O Professor Zink não esconde suas motivações. Para ele, ainda que a investigação possa reconstituir o universo da poesia medieval e o sentido que ela teve para seus contemporâneos, ela descortina a nossa distância desse mundo…, mas uma distância que não impede a comunicação – lembremo-nos de Georges Duby, é com as diferenças que aprendemos mais* e convida mesmo a uma compreensão continuamente renovada de seus temas e de sua complexidade. Um dos mais eficazes vieses pelos quais essa comunicação é possível na contemporaneidade, segundo Zink, é o da autorreflexão, pois a poesia medieval é uma poesia que “não cessa de voltar a ela mesma e à ideia que ela faz de si mesma”.* 113

Espera-se de uma obra intitulada Les Troubadours que ela resgate a poesia dos mais importantes trovadores occitanos, ou seja, dos criadores de um lirismo novo no Ocidente Medieval. Mas a obra tem um subtítulo e ele entrega a sua singularidade. Uma história poética dos trovadores é, segundo o seu autor, “feita de sua vida, de suas viagens e de seus amores, de seus encontros, de sua carreira e de sua obra. A história poética dos trovadores é também a história de sua arte e de sua influência, em particular a história dos manuscritos que, acabada a sua grande época, aplicaram-se a preservá-la. A história poética dos trovadores é ainda essa grande história fragmentada, feita de várias histórias que são escritas em torno de seus poemas, que se inspiram neles, que os comentam e que alguns manuscritos conservaram. Ao mesmo tempo em que são biografias largamente imaginárias, espécies de vidas sonhadas em poesia, esses textos oferecem da poesia dos trovadores uma interpretação em forma de história”.*

Logo depois da abertura da obra, o Professor Zink se entrega a uma discussão importante sobre as escolhas realizadas pelas boas edições dedicadas à literatura medieval, ou seja, justifica o fato de começarem com a descrição dos manuscritos conservados. Por quê? Porque tudo o que sabemos dessa poesia provém dos cancioneiros, ou seja, das recolhas posteriores dessa poesia, realizadas em regiões diferentes daquelas onde viveram os trovadores. O Professor Zink não só justifica a escolha das edições como emula o método ao discorrer também sobre os cancioneiros logo no início da obra, mas essa “defesa” se funda no fato de essas recolhas oferecerem ao autor o insumo fundamental para a sua histoire poétique, ou seja, “as canções de cada trovador, escritas a tinta preta, são aí precedidas de sua vida, escrita à tinta vermelha”.* O momento em que essas vidas são compostas e recolhidas está em consonância com uma nova concepção de poesia do século XIII, “recitada, edificante na origem, moral ou satírica”.* O autor vai buscar nelas inspiração, mas não só, ao longo de todo o texto, busca compreender as relações entre os poemas e esses textos alicerçados em outras fontes e nos versos dos trovadores.

Depois das motivações, do ensaio sobre os cancioneiros, Les Troubadoursdescortina a sua primeira vida. Como não poderia deixar de ser, trata-se do Duque da Aquitânia e Conde de Poitiers Guilherme IX (1071-1126), o primeiro trovador conhecido. Sua breve vida destaca a sua mobilidade (afinal participou da 1a cruzada, entre outras aventuras); sua habilidade na sedução, “un des plus grands trompeurs de dames”;* destreza em armas e sua arte. Na verdade, a vida ironiza a associação entre a poesia e a sedução das damas, uma primeira pista sobre a relação entre essas narrativas e a obra dos trovadores. Zink lamenta, é pouco sobre esse trovador extraordinário de cuja obra restam 10 cantigas autênticas, então a ele dedica-se mais, 114 começando pelo célebre “Farai un vers de dreit nien”.

Ao observar que “a associação do amor, da alegria e da juventude marcam a celebração do fin’amor“,* Michel Zink reconhece que ela aparece na poesia de Guilherme da Aquitânia antes mesmo que esse poeta tenha “inventado” o conceito e que, entre a sua faceta considerada obscena e a cortês, não há contradição. Um dos aspectos mais interessantes da obra já se revela nesse primeiro capítulo dedicado ao Conde de Poitiers, ou seja, na maneira como o vastíssimo repertório de Michel Zink entra em cena para demonstrar a convergência 115 de poéticas. Em nenhum momento o autor é seduzido pelo “ídolo das origens”,* está mais interessado em interseções e redes, como quando mais de uma vez evoca as Kharjas moçárabes, essas composições que cantam, com voz feminina, a paixão e o sofrimento, antes que o Conde de Poitiers interseccione nessa rede a sua poesia; ou quando compara os modelos estróficos adotados por Guilherme da Aquitância a outros, como o da poesia litúrgica de Saint-Martial;* ou ainda quando evoca as cantigas de amigo galego-portuguesas. Ora, das Kharjas para a poesia de Guilherme da Aquitânia – sem que seja possível medir ou averiguar influências -, passando para o jogo e para a arte de conversação, que teria na segunda das Siete Partidas de Afonso X de Castela, dois séculos depois, um postulado poético, 116 é possível ler em Les Troubadours uma aventura dinâmica, protagonizada pela poesia medieval, cheia de vozes e vidas que se alimentam mutuamente.

Nas páginas dessa história poética, a poesia de Cercamon é revisitada, bem como a hipótese de que ele seria o visconde Eble II de Ventadour (esse trovador sem canção) e a sua constância amorosa, que se manifesta na convicção poética de que o amor não depende da estação. Marcabru também é personagem da história, ainda que nada saibamos de sua vida fora os 44 poemas que dele sobreviveram, ou seja, seus versos, como os trovadores concebiam a materialidade da sua poesia. Michel Zink debate com a bibliografia sobre as “contradições” da poesia de Marcabru e desafia nosso ceticismo anacrônico com uma pertinente questão: “Porque recusar sistematicamente escutar os autores medievais quando eles dizem sua fé e invocam a Sagrada Escritura?”.* Mas a história poética não segue o fio cronológico, salta um século, traz Guiraut Riquier que não desprezaria mais ser trovador, antes ao contrário, reivindicaria a denominação,* para depois voltar ao século XII e a Jaufré Rudel, protagonista de uma das mais conhecidas vidas. Conhecemos dele 6 cantigas, todavia talvez o evoquemos mais pelos seus amores pela Condessa de Trípoli, que ele nunca viu até a hora derradeira… A vida de Rudel é exemplar para a postura de Michel Zink em relação a essas notas biográficas fundadas em tamanha imaginação. Longe de exigir delas a verdade sucedida, que, no caso do Prince de Blaye, logo descobrimos o equívoco (afinal, o poeta não morreu nos braços da Condessa de Trípoli, cuja identidade desconhecemos…), o professor vai buscar na vida do poeta o conflito que nutre toda a poesia dos trovadores, ou seja, estou aqui, enquanto ela, a amada, está lá, longe, “tel est l’mor de lonh”.* Assim, as vidas e razos dos trovadores “não rompem com as cantigas, nem as interpretam mal”,* elas evidenciam o essencial da poesia.*

Michel Zink também contempla a poesia satírica, não só quando evoca Marcabru, mas quando traz a conhecida canção de Peire d’Auvergne, “Chantarai d’aquestz trobadors”, em que satiriza vários trovadores. Mas, novamente, não está interessado em demarcar a distância entre os gêneros, nem em investir em uma literatura profana apartada de uma literatura religiosa.

história poética não estaria completa, essa também não é a aspiração do autor…, sem o célebre Bernard de Ventadour, trazido ao texto em mais de um capítulo em perspectiva dialógica com outros trovadores. Em um dos momentos a que se dedica a Ventadour, Zink traz ao texto a famosa canção da cotovia, que plena da alegria se entrega a um gesto suicida que não é outro que o da evocação da pequena morte no amor… Nesse poema, o autor ainda surpreende a inveja sexual do eu lírico em relação ao gozo dos outros, interdito ao eu. Frustração análoga também se afigura na poesia de outros trovadores, como na de Raimon de Miraval, assim como a inveja, esse sentimento onipresente.

Em meio a um universo que não é exaustivo, mas rico, o Conde de Poitiers é uma presença fundamental, mesmo quando outras vidas compõem novos capítulos da história poética de Michel Zink. A poesia de Guilherme da Aquitânia é chamada a dialogar com a obra de quase todos os poetas, trazidos da mesma forma por suas vidas e por fragmentos da sua poesia. Com eles, Zink desenha uma geografia da poesia occitana. Porém, nesse caminho, é possível ler uma outra história poética, a de um grande investigador e sua biblioteca. Essa “narrativa” foi escrita de forma concomitante, cerzida na observação rigorosa das cantigas; no reconhecimento de referências de uma vida, a sua; na alusão a teses audaciosas; na mudança de perspectiva; na polida discordância que desenha um irresistível debate e no reconhecimento do caráter provisório das próprias conclusões. Na “Tornada”, o Professor Michel Zink encerra sua histoire poétique com a afirmação de que ela afinal não fora mais que “um passeio entre as cantigas”.* Aceitamos a sua elegante modéstia, para revelar o segredo da perpétua juventude intelectual de um homem a quem não falta reconhecimento, a paixão pela poesia medieval.

Referências

* (DUBY, Georges. Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999. p. 13) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. p. 15.) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. p. 16) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. p. 25) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.29) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.33) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.50) [ Links ]

* (BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p.56.) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 91) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.128) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 137) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 154) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 240) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.258) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 303) [ Links ]

112” Ensemble de 225 courts textes occitans en prose qui, dans les chansonniers lyriques, servent de notules biographiques (‘vidas‘) préfaçant ou glosant (‘razos‘) les pièces de 101 troubadours des XIIe au XIVe s. Conservés par 23 manuscrits, ces textes – revendiqués uniquement par deux auteurs (Uc de Saint-Circ et Miquel de la Tor) – servaient sans doute initialement aux jongleurs à présenter les auteurs des pièces récitées ou les anecdotes les ayant engendrées.” HUCHET, Jean-Claude. “Vidas et Razos” in GAUVARD, Claude, LIBERA, Alain, ZINK, Michel. Dictionnaire du Moyen Âge (2ª ed. 4ª tir.). Paris: PUF, 2004 (2012). p. 1446.

113 Todas as traduções dessa obra realizadas nesta resenha são de minha autoria.

114 É interessante constatar que, no mesmo ano do lançamento de Les Troubadours. Une histoire poétique, o Conde de Poitiers mereceu outro tributo, ou seja, a edição de Katy Bernard, que não é uma edição crítica, mas uma tradução “rythmée et poétique dont le but est de respecter au mieux la mesure et le rythme des vers du poète, sa musique, de même que l’esprit de ses chansos.” Le Néant et la joie. Chansons de Guillaume d’Aquitaine. Présentation et traduction de Katy Bernard. Éd. Bilingue occitan-français. Gardonne: Éditions Fédérop, 2013. p. 9.

115 Ainda que o Prof. Zink não empregue a palavra convergência, creio ser acertado empregá-la no sentido em que Edson Rosa da Silva o fez em seu ensaio “A metamorfose da arte: do quadro ao poema”. Nele celebra a convergência entre Jorge de Sena e André Malraux, refutando a influência como essência da relação proposta: “Não pretendo dizer que há aí influência, isso não me parece importante, há aí, sim, coincidência, convergência de pensamentos, que veem na arte uma manifestação elevada do espírito humano. E é nisso que eles se encontram”. SILVA, Edson Rosa da. “A metamorfose da arte: do quadro ao poema” in Metamorfoses 10.2. Revista da Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros da UFRJ. Lisboa: Caminho, 2010. p. 100.

116 Sobre isso, conferir a imprescindível obra de Paulo Sodré: O Riso no jogo e o jogo no riso na sátira galego-portuguesa (Vitória: EDUFES, 2010), em que o autor contextualiza o fablar en gasaiado como prática cortesã, da qual participa a poesia.

Marcella Lopes Guimarães – Profa. Dra. Adjunta IV de História Medieval da Universidade Federal do Paraná. É vinculada ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos – NEMED (www.nemed.he.com.br). E-mail: <[email protected]>.

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[IF]

 

Meio ambiente e Antropologia – WALDMAN (RMPEG-CH)

WALDMAN, Maurício. Meio ambiente e Antropologia. São Paulo: Editora SENAC, 2012. (Série Meio Ambiente, n. 6). 233 p. Resenha de: LELIS, Michelle Gomes; FERREIRA NETO, José Ambrósio. Um olhar antropológico sobre a questão ambiental. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.9, n.2, mai./ago. 2014.

O homem contemporâneo está em conflito permanente com o outro de si mesmo, visto como uma espécie de intruso alojado no seu interior, um ‘invasor de corpo’ preocupado em devorá-lo por dentro e, quem sabe, assumir de vez sua corporalidade (Waldman, 2012, p. 185).

Maurício Waldman, brasileiro, docente na Universidade de São Paulo (USP), onde leciona as disciplinas Administração dos recursos ambientais, Sociedade e meio ambiente, Ética profissional, Geografia da África negra e Introdução aos estudos africanos, é sociólogo, geógrafo e antropólogo pela USP. Possui Doutorado em Geografia Humana (2006) e Mestrado em Antropologia Social (1997), ambos pela USP. Com uma importante reflexão na área de antropologia social, escreveu “Meio ambiente e antropologia”, entre outros livros. Neste texto, seu objetivo central foi discutir as relações que conjugam a antropologia com a questão ambiental. Paralelamente a essa preocupação, outra intenção foi alinhavar as possíveis contribuições do enfoque antropológico, no sentido de aprofundar a compreensão da temática relacionada ao meio ambiente.

Na introdução, esclarece que somente a partir das três últimas décadas do século passado é que a defesa da natureza passou a inspirar crescentes manifestações, envolvendo os mais diversos segmentos sociais ao redor do mundo. Tal mobilização, explicitamente posicionando-se em favor de uma relação equilibrada com o meio ambiente, configurou-se por intermédio de um rol de reivindicações impensáveis, mesmo em passado histórico não muito distante. É nesse contexto que o autor justifica a importância da análise do meio ambiente, um tema contemporâneo e urgente de mudanças.

Como foco da sua reflexão, ele ressalta que a antropologia tem se voltado, cada vez mais abertamente, para o estudo dos processos sociais e culturais na sua acepção mais ampla, independentemente da localização no espaço ou no tempo. Na antropologia, a cultura distingue um modo de vida típico de um grupo de pessoas, fundamentado em comportamentos apreendidos e transmitidos de geração a geração, por meio da língua e do convívio social.

O primeiro capítulo do livro explana sobre a relação entre “Antropologia, questão ambiental e cultura”, trazendo algumas considerações relacionadas com as potencialidades da antropologia enquanto ciência da cultura. Waldman detalha o debate a respeito das possíveis contribuições da antropologia e sua particularidade diante das demais disciplinas. Para o autor, tanto a biologia quanto a geografia desconsideram a abordagem social e cultural, não as utilizando para analisar a questão ambiental.

O autor evidencia a proeminência dos estudos clássicos desenvolvidos no âmbito da antropologia relativamente às potencialidades da disciplina para o entendimento da questão ambiental. Ele aponta que uma grande produção teórica efetivou-se em termos do paradigma da oposição entre cultura e natureza, atentando para a postura do antropólogo.

No segundo capítulo, denominado “Cultura, mundo tradicional e meio ambiente”, a análise centra-se no homem tradicional e nas implicações do seu relacionamento com o meio natural. O autor deixa claro que, qualquer que seja o tipo de relacionamento estabelecido pela sociedade tradicional com o meio natural, este, no geral, mantém seus grandes ciclos em funcionamento. Ao contrário da sociedade contemporânea, o mundo da tradição pautou-se por uma convivência com a esfera do natural, e não pela sua exclusão.

No terceiro capítulo, “Temporalidade, modernidade e natureza”, visando sublinhar o que há de descontínuo nas duas grandes esferas da cultura humana que define como objeto da discussão – quais sejam, o mundo da tradição e o da modernidade -, o autor analisa as mudanças que o mundo contemporâneo instaurou na forma de compreensão do meio natural, assim como no relacionamento mantido com este. Isso sem perder de vista o mundo tradicional, cujo estranhamento conduz a se colocar em questão o que aparenta ser autenticamente novo.

Ele destaca que o tempo linear e progressivo, emanação de forças sociais que subentendiam os humanos e a natureza como elementos à disposição do progresso, excluiu todas as acepções sensíveis porventura existentes. Por isso mesmo, o homem contemporâneo está em conflito permanente com o outro de si mesmo, visto como uma espécie de intruso alojado no seu interior, um “invasor de corpo”, preocupado em devorá-lo por dentro e, quem sabe, assumir de vez sua corporalidade. Separado física e psiquicamente dos seus semelhantes, fica comprometido para o homem moderno qualquer vínculo duradouro e sincero do indivíduo com o coletivo e com o espaço público.

Até o quarto capítulo, “Antropologia, humanidade e questão ambiental”, o autor percorre um caminho que conduz o leitor desde os tempos mais remotos até as cintilantes metrópoles da modernidade. Nesse momento, Maurício Waldman traça alternativas, propõe enfoques e costura proposições referentes ao tema primordial. Conclui, nesta parte, que a diversidade cultural não pode estar dissociada da diversidade biológica, sendo redobrado o interesse pela perpetuação dos estilos de vida que se mantiveram regrados pela tradição.

A partir da análise construída por Waldman, ressalta-se que o conceito de cultura, além de materializar-se como um instrumental de indispensável importância para a análise das sociedades tradicionais, mantém, de igual modo, seu vigor operatório e sua eficácia na avaliação do dinamismo cultural contemporâneo. A cultura perpassa por todo um rol de comportamentos relacionados com o meio ambiente e, na ausência dessa perspectiva, necessariamente qualquer avaliação estaria prejudicada na sua fundamentação, nas suas propostas e nas suas conclusões.

Na “Conclusão”, o autor ressalta que o esforço de sua análise foi muito mais direcionado para construir uma perspectiva de avaliação, ao invés de pensar sobre formas de gestão, atividades gerais ou aplicadas da disciplina. Por outro lado, argumenta que essa opção em nada seria impeditiva da indicação de problemáticas com as quais a antropologia pode, com toda distinção possível, prontificar-se a destinar sua contribuição no que se refere à questão ambiental.

Para tanto, ao longo do texto, Waldman dialoga com diversos autores, entre eles François Laplantine (1988), “Aprender antropologia”, Edward Evans-Pritchard (1978), “Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições de um povo nilota”, e Walter Neves (1996), “Antropologia ecológica: um olhar materialista sobre as sociedades humanas”, para argumentar e refletir sobre a relação da antropologia com o meio ambiente. Ele apresenta uma abordagem educativa interdisciplinar por meio de duas áreas, meio ambiente e antropologia, transformando-as em uma antropologia ambiental, empenhada em revelar o caráter transformador do homem em sociedade diante do ambiente natural, instigado particularmente pela dimensão da cultura, da sociedade e das suas dinâmicas.

A antropologia, tendo por objetivo estudar a mais vasta gama possível da diversidade humana nos modos de vida, nas formas de organização social, nos comportamentos e nas crenças, foi levada a privilegiar a observação das sociedades que permanecem (ou que permaneceram) fora do quadro unificador, representado pela civilização técnica e científica corporificada no Ocidente moderno. Dessa forma, estudos antropológicos privilegiam permanentemente a periferia do sistema dominante.

Segundo o autor, é justamente nos marcos da modernidade que os problemas ecológicos se especificaram na sua plenitude. Dessa forma, esclarecer e discutir as perspectivas da antropologia, enquanto disciplina, para com este mesmo mundo moderno abre caminhos para evidenciar o alcance das possíveis contribuições, assim como da eficácia operacional das abordagens que agitam o interior do seu campo teórico.

A capacitação da antropologia em identificar opções diversas das que regram o mundo moderno pode, de igual modo, prontificar-se para consolidar propostas alternativas aos desafios criados ao longo do processo de expansão da civilização ocidental, entre esses evidentemente os de ordem ambiental.

Waldman discute os conceitos de cultura e de natureza, além de reforçar a importância da diferença entre etnografia e etnologia. Afirma que a antropologia cultural teve sua consolidação enormemente apoiada no paradigma da oposição entre cultura e natureza.

Outro argumento do autor é que o leque de consequências da modernidade possui rebatimentos inquestionáveis no relacionamento com o meio natural. Basicamente em razão de que, com a modernidade, o fruir do tempo se materializa a partir de uma sobreposição globalmente desarmoniosa para com o tempo da natureza, o dos homens e com todos os demais tempos sociais, entendidos como obstáculos à implantação dos ritmos e das sequências da temporalidade moderna.

O autor destaca que o conceito de meio ambiente diz respeito aos elementos habilitados a influenciarem o dinamismo social, a repercussão das intervenções culturais e o conjunto das condições que permitem o estabelecimento e a reprodução da vida humana. Assim, ele propõe a construção de uma antropologia ambiental, preocupada em identificar os vínculos indissociáveis que a crise do meio ambiente sustenta com o padrão civilizatório, que é origem da sua manifestação. Tanto no passado do homem quanto nos dias de hoje, a questão ambiental relaciona-se sumamente com um sistema de poder econômico, social, político e ideológico, não podendo ser aquilatada na sua devida extensão na ausência desses referenciais.

Este ensaio, ao mesmo tempo desafiador e aberto aos questionamentos, apresenta a importância de abordar diálogos entre duas áreas abrangentes, como meio ambiente e antropologia, reforçando a possibilidade e a necessidade do trabalho interdisciplinar, com o intuito de minimizar os problemas ambientais causados pelo homem. O autor manifesta nas entrelinhas sua esperança e expectativas de que a humanidade consiga construir um oikos comum a todas as pessoas, um mundo socialmente justo e ecologicamente responsável, no qual o homem não mais permaneça artificialmente dividido e encontre-se na sua totalidade.

Referências

EVANS-PRITCHARD, Edward E. Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições de um povo nilota. São Paulo: Perspectiva, 1978. (Coleção Estudos, n. 53).         [ Links ]

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1988.         [ Links ]

NEVES, Walter. Antropologia ecológica: um olhar materialista sobre as sociedades humanas. São Paulo: Cortez, 1996. (Coleção Questões da Nossa Época, v. 59).         [ Links ]

Michelle Gomes Lelis – Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]

José Ambrósio Ferreira Neto – Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]

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Arqueologia Guarani na laguna dos Patos e serra do Sudeste – MILHEIRA (BMPEG-CH)

MILHEIRA, Rafael. Arqueologia Guarani na laguna dos Patos e serra do Sudeste. Pelotas: Editora da Universidade Federal de Pelotas, 2014. 306 Resenha de: RIBEIRO, Bruno Leonardo Ricardo. Arqueologia Guarani na ponta sul do Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.9, n.2, mai./ago. 2014.

Este livro é uma versão revisada da dissertação de mestrado de Rafael Guedes Milheira, composto por sete capítulos e prefácio de Paulo DeBlasis. A importância da obra é ressaltada já no prefácio, por ser a primeira a, de fato, sistematizar a ocupação Guarani no extremo sul do Brasil, mais precisamente na área entre a laguna dos Patos, a leste, e a região serrana, a oeste. Lançando mão de uma metodologia de enfoque regional, Milheira conseguiu realizar uma pesquisa arqueológica que possibilita o diálogo com a Antropologia e a História, além da “construção de uma História indígena propriamente dita” (p. 20), o que torna seu livro indispensável para aqueles que procuram estudar as ocupações Guarani no sul do Brasil, sejam eles especialistas da área ou estudantes.

Na introdução, Milheira informa que sua principal motivação para a pesquisa partiu da constatação da quase completa ausência de registros históricos que fizessem referência à participação da cultura indígena na formação identitária regional, relegando às populações indígenas um papel secundário e marginal no processo de construção social local. Ainda, e à contramão dos registros históricos, os achados arqueológicos atestam a presença significativa de variadas populações indígenas na região, envolvidas em um complexo sistema de relações e redes sociais que remetem a mais de 2.500 anos, sistematicamente eliminadas física e culturalmente desde a chegada dos primeiros colonizadores europeus. Mesmo que não levados ao completo extermínio, hoje ainda reside na região apenas uma parcela ínfima do que antes foi uma nação indígena sem precedentes.

Os dois primeiros capítulos são fundamentais para a compreensão da obra e da proposta do autor, e neles é apresentado um panorama geral da arqueologia Guarani, desde as primeiras pesquisas realizadas não apenas na área de estudo, mas também aquelas relacionadas às ocupações caracterizadas como pertencentes a este grupo em várias regiões do Brasil. É dada ênfase aos estudos realizados por Alfred Métraux na primeira metade do século XX e sua contribuição à formação do pensamento arqueológico brasileiro sobre os Guaranis, como as proposições que fez sobre a busca guarani pela ‘terra sem males’ e sobre a zona de fronteira entre os Tupinambás, ao norte, e os Guaranis, ao sul, no interior do estado de São Paulo – proposta posteriormente refinada por Scatamacchia (1990). O autor tece ainda algumas críticas sobre o papel pretensamente apolítico desempenhado pelo Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA) e seus impactos em estudos posteriores.

Em seguida, partindo de uma proposta que intercala informações em nível micro e macrocontextual, Milheira apresenta temas que vão desde a definição das estruturas arqueológicas pertinentes à interpretação dos dados empíricos por ele levantados – como estruturas funerárias e de combustão – até noções de territorialidade, organização social e expansão, definindo o processo de expansão territorial Guarani como ‘enxameamento’, conceito apresentado por Brochado (1984) e amplamente aceito na comunidade acadêmica. Essa definição parte da premissa de que o processo de expansão territorial Guarani foi contínuo, e a ocupação espacial se deu de forma radial, iniciada com uma grande pressão demográfica, que tornou obrigatória uma divisão celular da aldeia e a procura e obtenção por novas áreas de captação de recursos para ocupação e assentamentos permanentes (sobre este assunto, sugiro também o texto de Noelli, 1993).

Esse conceito é fundamental para o entendimento das áreas e dos tipos de atividades relacionados a cada sítio estudado, além de auxiliar na interpretação desses sítios como acampamentos temporários e/ou aldeias. Nessa parte do livro, torna-se claro o exaustivo levantamento bibliográfico realizado pelo autor no que tange à arqueologia Guarani.

Talvez uma única ressalva a ser levantada esteja relacionada ao caráter restritivo da discussão. Apesar de fazer um breve relato sobre o complexo panorama multicultural verificado na região quando da chegada do europeu, então compartilhada por grupos majoritariamente Guarani, mas também por povos Cerriteiros, Jê e Sambaquieiros, a pesquisa de Milheira quase não trespassa a temática Guarani ou extrapola o limite sul do Brasil, nem estabelece um diálogo significativo com pesquisadores ou estudos realizados acima do rio Paranapanema e referentes aos povos Tupi. Acredito que um maior diálogo com tal temática seria muito proveitoso, não apenas para a obra em si, mas também para pesquisadores futuros que utilizarão este livro como referência. Uma vez que Guaranis e Tupis são grupos similares, a ponto de representarem ramificações de um mesmo tronco linguístico ou, para alguns pesquisadores, uma mesma ‘tradição’ arqueológica, o estabelecimento de contraposições ou a verificação de similaridades, em qualquer nível ou de qualquer caráter, seria mais uma contribuição significativa para a construção do conhecimento arqueológico sobre estas populações de outrora.

No terceiro capítulo, partindo principalmente dos estudos realizados pelo Projeto RADAMBRASIL, o autor faz uma caracterização espacial e geomorfológica da área alvo da pesquisa. Salientando que ela abrange tanto a planície costeira quanto o escudo sul-rio-grandense, descreve sucintamente as paisagens serranas e litorâneas, logo iniciando a apresentação das metodologias adotadas em campo, onde articulou métodos de levantamento probabilístico e oportunístico com a proposta dos estágios múltiplos – reconhecimento geral da área de estudo, levantamento arqueológico, prospecção e escavação. Finalmente, mas não menos importante, Milheira explica sua opção por uma abordagem voltada à arqueologia regional. Sendo seu objetivo compreender o sistema de ocupação Guarani em uma área até então pouco pesquisada, tal enfoque lhe permitiria reconstruir o contexto de implantação dessas ocupações, em seu sentido mais amplo e em seu caráter de longa duração.

Os capítulos quatro e cinco são os mais densos do livro. No quarto, é apresentada a arqueografia de cada um dos sítios identificados ao longo da pesquisa, agrupados de acordo com a fisiografia local – cinco sítios identificados na região litorânea da lagoa dos Patos e dez sítios identificados na região serrana. A apresentação das intervenções realizadas e dos vestígios arqueológicos identificados em cada um destes sítios é extremamente detalhada e minuciosa. Cabe salientar que, sempre que possível, Milheira realiza inferências e proposições acerca da funcionalidade dos contextos arqueológicos verificados em cada um dos sítios, correlacionando suas impressões sobre as escavações com os resultados das análises posteriores.

No capítulo cinco, são apresentados os resultados das análises dos vestígios arqueológicos propriamente ditos. Partindo de uma proposta tecno-tipológica, a metodologia elaborada para a análise dos vestígios cerâmicos é construída principalmente sobre um ‘tripé’ composto por La Salvia e Brochado (1989), Shepard (1985 [1956]) e Orton et al. (1993). A ficha descritiva e os procedimentos de análise também são detalhadamente apresentados, além de várias páginas serem dedicadas à discussão crítica sobre as potencialidades e as possibilidades de erros relacionados às mais do que comuns projeções de forma, quando elaboradas a partir de fragmentos cerâmicos de tamanhos diminutos. A primazia verificada nesta seção da obra é sem igual, assim como a confiabilidade dos resultados obtidos.

Por outro lado, pouca ênfase foi dedicada aos vestígios líticos, possivelmente em função de sua menor recorrência entre os sítios arqueológicos. A metodologia adotada se pauta pela proposta de cadeia operacional sugerida por Schiffer (1972, 1987), e a análise é de caráter tecno-tipológica, embasada principalmente no esquema elaborado por Dias e Hoeltz (1997). Não pude deixar de pensar que os trabalhos de análise dedicados aos materiais líticos foram, em certo grau, muito sucintos, principalmente se comparados aos realizados com os vestígios cerâmicos, e que, talvez, se uma maior profundidade tivesse sido atribuída a eles, como a adoção de uma metodologia embasada em parâmetros tecno-funcionais, apontamentos mais significativos teriam sido alcançados.

Tais estudos tiveram como objetivo não apenas a caracterização destas indústrias líticas e cerâmicas, mas também o levantamento de apontamentos que possibilitassem pensar o domínio e o uso territorial dos Guaranis na região, sobretudo após a constatação do autor de que as matérias-primas identificadas nos sítios litorâneos não estão presentes in loco, e remeteriam a cinco jazidas diferentes, que distam entre 30 e 200 km da Lagoa dos Patos, nas terras altas da serra do sudeste. Vestígios arqueofaunísticos também foram identificados, em baixas quantidades e em estado de conservação insatisfatório, em dois dos sítios escavados na área litorânea. Perante esta baixa relevância, a análise esteve voltada à procura por informações relacionáveis à dieta e às espécies consumidas nos sítios da região, além da procura de possíveis elementos cabíveis de inferências que correlacionassem espécie, apreensão e habitat, e da distribuição espacial dos vestígios com áreas de atividades específicas.

Concluindo a obra, os capítulos seis e sete são dedicados à hipótese elaborada para a ocupação territorial da área-alvo pelos Guaranis e à apresentação do modelo interpretativo adotado pelo autor. Embasado majoritariamente na perspectiva sistêmica de Binford (1980, 1991 [1983]) e no modelo de ocupação proposto por Noelli (1993), Milheira pressupõe a existência de um contexto macroespacial, onde todos os sítios estudados, sejam eles entendidos como aldeias ou acampamentos temporários, estão interligados por uma imbricada rede de relações sociais, ideológicas, ambientais e econômicas. Tal contexto seria o do ‘Teko’a do Arroio Pelotas’, abrangeria aproximados 35 km de raio e se dividiria em litoral e serra, não apenas pelo tipo de ambiente ocupado, mas também pelas modalidades e características de cada assentamento verificado – além do domínio territorial projetado.

Segundo o autor, estes dois ambientes de ocupação estariam intrinsecamente interligados, sendo a porção litorânea uma extensão da porção serrana. As ocupações da região serrana apresentam distribuição espacial mais aglomerada, maiores dimensões e remetem a períodos mais antigos. Estão situadas em áreas de melhor acesso a recursos naturais e mais propensas à agricultura. As ocupações da porção litorânea, por sua vez, seriam mais recentes e periféricas às ocupações serranas, de distribuição mais esparsa e voltadas à obtenção de recursos marítimos. Seriam oriundas da necessidade por novos territórios, em função de pressões demográficas e do processo de expansão por enxameamento, e apresentariam certo grau de dependência em relação às aldeias serranas centrais (em relação à obtenção de matérias-primas líticas, por exemplo).

Não posso deixar de exaltar os esforços realizados por Milheira em relação ao levantamento das fontes de matéria-prima e à correlação perspicaz entre as distâncias, o estabelecimento de redes de troca e o ciclo de vida dos instrumentos líticos. Isso é algo de extrema importância para a interpretação e distinção relacionadas à funcionalidade de determinados acampamentos litorâneos e à organização do ‘Teko’a do Arroio Pelotas’ em nível Guará, uma vez que, segundo sua hipótese, apenas uma das cinco jazidas de matérias-primas estaria dentro dos limites deste ‘Teko’a’, o que demandaria, obrigatoriamente, outras formas de obtenção das matérias-primas, além do simples aprovisionamento.

Por fim, elogios devem ser feitos ao autor pela utilização de verbetes êmicos Guarani, retirados de leituras etno-históricas e utilizados ao longo de toda a obra, mas principalmente ao nomear as funções exercidas pelos instrumentos líticos, quando inova ao apresentar a outros pesquisadores interessados em estudos similares as possibilidades de um diálogo etnográfico, como há muito vem sendo realizado entre aqueles que estudam cerâmica arqueológica.

Referências

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BINFORD, L. R. Willow smoke and dog’s tails: hunter-gatherer settlement systems and archaeological site formation. American Antiquity, Washington, v. 45, p. 4-20, 1980.         [ Links ]

BROCHADO, J. P. An ecological model of the spread of potter and agriculture into Eastern South America. 1984. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of Illinois, Urbana, 1984.         [ Links ]

DIAS, A. S.; HOELTZ, S. E. Proposta metodológica para o estudo de indústrias líticas do Sul do Brasil. Revista do CEPA, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 21, p. 21-62, 1997.         [ Links ]

LA SALVIA, F.; BROCHADO, J. P. Cerâmica Guarani. Porto Alegre: Posenato e Cultura, 1989.         [ Links ]

NOELLI, F. S. Sem Tekohá não há Tekó: em busca de um modelo etnoarqueológico da subsistência e da aldeia Guarani aplicada a uma área de domínio no delta do Jacuí/RS. 1993. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1993.         [ Links ]

ORTON, C.; TYERS, P.; VINCE, A. Pottery in archaeology. London: Cambridge University Press, 1993.         [ Links ]

SCATAMACCHIA, M. C. M. A tradição policrômica no leste da América do Sul evidenciada pela ocupação Guarani e Tupinambá: fontes arqueológicas e etno-históricas. 1990. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.         [ Links ]

SCHIFFER, M. B. Formation process of the archaeological record. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1987.         [ Links ]

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RIBEIRO, Bruno Leonardo Ricardo. Resenha: Arqueologia Guarani na ponta sul do Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 9, n. 2, p. 573-576, maio-ago. 2014

Bruno Leonardo Ricardo Ribeiro – Universidade Federal de Pelotas E-mail: [email protected]

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Antropología y Estudios Culturales. Disputas y confluencias desde la periferia – RESTREPO (A-RAA)

RESTREPO, Eduardo. Antropología y Estudios Culturales. Disputas y confluencias desde la periferia.* Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2012. 240p. Resenha de: CRUZ, Noemí Sancho. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.19, maio/ago., 2014.

Tanto la Antropología como los Estudios Culturales comparten similitudes en cuanto a sus zonas de estudio y algunas de sus perspectivas metodológicas; sin embargo, también poseen diferencias significativas. Es por esta razón que Eduardo Restrepo se plantea el desafío de escribir un ensayo donde se reflexione en torno a las disputas y confluencias en ambas disciplinas, para luego perfilar los desplazamientos teóricos realizados desde la disciplina antropológica. Este panorama se realiza a través de una mirada regional, comparando la perspectiva de los estudios angloamericanos con los estudios latinoamericanos, lo que posibilita una lectura desde las relaciones de poder que se generan en la producción del conocimiento. El aporte de Restrepo recae en la precisión con la que desarrolla las diferentes perspectivas ideológicas y académicas de estos estudios, así como en los cuestionamientos a la cadena de producción del conocimiento, planteando una perspectiva alterna en torno a la producción del conocimiento como fin en sí mismo.

El texto se compone de dos partes, una referida al estudio antropológico, desde la heterogeneidad de sus prácticas y relaciones de poder, y la otra, correspondiente a los estudios culturales, realizando diferencias clave para la delimitación de esta área de investigación. La primera parte, “Hacia una antropología crítica de la antropología”, se compone de cuatro capítulos que parten de una descripción del campo, evidenciando singularidades, diferencias, relaciones de poder, la escritura en el ámbito de la antropología y las redes que se han constituido en el ámbito mundial. El primer capítulo, “Diferencia, hegemonía y disciplinamiento en antropología”, se pregunta principalmente por las relaciones territoriales y de poder que se dan entre los diferentes centros antropológicos. Se cuestionan categorías como la de “antropologías centrales versus periféricas” al decir de Cardoso de Olivera, que implican una pretensión de universalidad o particularidad; lo que implicaría de todas maneras una lectura esencialista sobre las prácticas antropológicas. Uno de los elementos más interesantes de este capítulo es cómo Restrepo aborda las prácticas del ámbito antropológico desde estas relaciones de poder, donde Latinoamérica pareciera ser sólo una subsidiaria de teorías norteamericanas o extranjeras, pero aclarando los mecanismos en que éstas se desarrollan, por ejemplo, en las diferencias de financiamiento institucional.

El segundo capítulo, titulado “Singularidades y asimetrías en el campo antropológico transnacional”, se perfila desde la perspectiva de una antropología latinoamericana, donde la asimetría se genera primordialmente con el mundo anglosajón. El autor vislumbra las relaciones institucionales desde los modelos antropológicos, suponiendo que las diferentes antropologías responden a un modelo primero, y aquellas que no responden a ese modelo serían antropologías subalternizadas. En este sentido, existiría una barrera lingüística y tecnológica en las diferentes prácticas antropológicas, donde pareciera que la importancia se centra en la carrera personal de los investigadores, más que en el sentido político e histórico de la disciplina.

Se aborda el tema de la producción académica en el capítulo tres, “Naturalización de privilegios: sobre la escritura y la formación antropológica”, donde se hace hincapié en la producción con fines curriculares más que teóricos. Se plantea el problema de la autoría, en cuanto invisibiliza las mediaciones entre el individuo y el texto, donde muchos académicos se niegan a difundir su trabajo por temor al plagio o al robo de ideas. Restrepo propone una “elitización del establecimiento antropológico” basada en el principio de “publica o perece”. Este fenómeno no es particular de la antropología, ya que en las ciencias en general se produce una valoración cuantitativa en los índices de publicación, más allá del impacto que los estudios puedan tener en su contexto inmediato. Este capítulo resalta la inconsistencia teórica que se produce en la actividad investigativa, por cuanto se critican las dinámicas surgidas a través de la matriz colonial del poder y, sin embargo, se practica colonialismo intelectual. Finalmente, el autor pone el hincapié sobre la formación antropológica en Colombia, donde poco a poco la disciplina va adaptándose al modelo del Norte, donde la formación de posgrado ha ido en detrimento de la de pregrado, eliminando competencias necesarias en ese nivel de formación.

La primera parte finaliza con el capítulo cuarto, “Red de antropologías del Mundo”, donde se describe la formación de la red RAM-WAM el segundo semestre de 2001, red que ha ido desarrollándose a través de la escritura de artículos, la docencia y la conformación de programas doctorales en Latinoamérica. El reconocimiento que hace Restrepo de la red recae en tres principales “desplazamientos teóricos”: la diferenciación entre una antropología única y un descentramiento de la disciplina hacia la pluralidad en “las antropologías”; el abandono de una lectura esencialista de la antropología como un ideal normativo único; y las relaciones de poder entre las tradiciones antropológicas que definen las posibilidades teóricas desde la perspectiva de “hegemónicas y subalternizadas”. El objetivo de estos desplazamientos apunta a salir de las prácticas hegemónicas del conocimiento, transitando contenidos a través del copyleft y el creative commons (generando un conocimiento abierto, con libertad de uso y copiado del contenido); ampliando el espectro de los objetos y perspectivas de estudio. Se propone un camino paralelo en la producción del conocimiento que difiere de la dinámica de la indexación y la revisión entre pares.

La segunda parte, “En torno a la especificidad de los estudios culturales”, se encarga de clarificar cuáles son las principales particularidades que caracterizar el campo de los estudios culturales. El capítulo cinco, “Apuntes sobre estudios culturales”, caracteriza los rasgos principales que definirían estos estudios, donde el contextualismo radical contexto de producción, la transdisciplinariedad y la voluntad política, según lo planteado por Stuart Hall en “Estudios culturales y sus legados teóricos”, serían los más relevantes. Es importante también la distinción realizada entre estudios culturales y estudios sobre la cultura, donde estos últimos serían englobantes de los primeros y de otros como la antropología, sociología y crítica cultural.

El capítulo seis, “¿De qué estudios culturales estamos hablando?”, puntualiza el proyecto de los estudios culturales en América Latina, diferenciándolos de los Latin american cultural studies, dejando en claro que la categorización externa ejerce una fuerte violencia epistémica. En este sentido, se subraya el ejercicio de una transdiciplinariedad que problematiza los reduccionismos disciplinarios y que constata un proyecto intelectual y político dentro de los estudios culturales, lejos de asociarlos a lo banal o a una moda intelectual.

Al caracterizar los estudios culturales latinoamericanos, el capítulo siete, “En torno a los estudios culturales en América Latina”, trata sobre el desarrollo del campo a través de los referentes que posee fuera de los modelos anglosajones, es decir, la tradición ensayística del siglo XIX y el ensayo crítico del XX. Existe una tradición propia sobre los estudios de la cultura; sin embargo, se puntualiza que la categoría de estudios culturales es externa; en este sentido, lo que se delimita es la focalización de estos estudios planteando una diferencia entre aquellos que son sobre América Latina y los que se realizan desde América Latina. Por último, destaca las diferencias de los estudios culturales con los estudios (inter)culturales en clave decolonial, dejando ver que estos últimos suscriben necesariamente una política de denuncia al eurocentrismo y la colonialidad.

Finalmente, en el epílogo, “Antropología y estudios culturales: tensiones y confluencias”, se constata el desarrollo de la disciplina antropológica en el campo de los estudios culturales y la institucionalización de estos estudios en Colombia. La antropología se comprende más como una perspectiva, que por la definición del lugar o comunidad donde se realiza; por tanto, permite vislumbrar nuevos caminos de desarrollo. En este sentido, la realización de los estudios culturales propone una posibilidad de cambiar el contexto particular a través del conocimiento generado, realizando una desestabilización de los discursos del poder. Para terminar, el autor puntualiza que muchas de las tensiones intelectuales se mueven más por intereses económicos y simbólicos que por una real delimitación disciplinaria.

A la luz del texto, podemos comprender que gran parte de la crítica hacia los estudios culturales nace de las mismas disputas confluencias que existen entre las disciplinas; y que han instalado ciertas ideas preconcebidas sobre las corrientes metodológicas, dando por sentado que muchas de ellas serían una copia de manifestaciones académicas europeas. Restrepo propone entender el desarrollo de estos estudios a la luz de la producción intelectual en América Latina, destacando el trabajo de Néstor García Canclini, Nelly Richard, Beatriz Sarlo, Walter Mignolo, entre muchos otros. Esta propuesta nos da a entender la producción del conocimiento desde Latinoamérica, en un giro decolonial donde la producción no sólo quiere salir de las normas impuestas, sino que busca proponer nuevas formas de desarrollo.

Por un lado, queda la sensación de que las tensiones aparecen por la confrontación de voluntades de la institución académica, más allá de las técnicas de producción de conocimiento; en otras palabras, una especie de territorialidad en el área de la investigación; y por otro lado, como si cada perspectiva académica buscara ser la única en cuanto a la forma de construir el conocimiento. Al respecto, el autor menciona precisamente la problemática de la especificidad del conocimiento versus la generalidad en que pueden caer ciertos estudios. El texto es un aporte porque descubre las prácticas académicas desde las discusiones teóricas, pero pasando por el funcionamiento institucional de la investigación, dejando en claro que muchas de estas tensiones aparentemente teóricas son realmente conflictos de poder, que revelan muchas veces una violencia epistémica que aún se genera en las relaciones centro-periferia de las academias del Norte versus las del Sur.

Comentarios

* Restrepo, Eduardo. 2012. Antropología y estudios culturales: disputas y confluencias desde la periferia. Buenos Aires, Siglo XXI Editores, 240 pp. ISBN 978-987-629-226-9.

Noemí Sancho Cruz – Candidata a Doctor, Doctorado en Literatura, Pontificia Universidad Católica de Chile, Becaria CONICYT. Magister en Literatura Universidad Austral de Chile, Chile. Correo electrónico: [email protected]

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Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte, v.1, 2014 / v.8, 2021.

Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. v.1, 2014

Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. v.2, 2015 

Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. v.3, 2016

Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. v.4, 2017

Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. v.5, 2018

Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. v.6, 2019

Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. v.7, 2020

Publicado em 11 dez. 2020.

Agradecimentos

Editorial

Dossiê

Artigos livres

Resenha

Arquivo na sala de aula

Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. v.8, 2021

“Todavía no se hallaron hablar en idioma”. Procesos de socialización lingüística de los niños en el barrio toba de Derqui (Argentina) – HECH (BMPEG-CH)

HECHT, Ana Carolina. “Todavía no se hallaron hablar en idioma”. Procesos de socialización lingüística de los niños en el barrio toba de Derqui (Argentina). Munich: LINCOM Europa Academic Publisher, 2010. (LINCOM Studies in Sociolinguistics, 9). 282 p. Resenha de: OSSOLA, María Macarena. Crianças e línguas indígenas: contribuições para o debate sobre o deslocamento linguístico em comunidades indígenas urbanas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.9 n.1, jan./abr. 2014.

“‘Todavía no se hallaron hablar en idioma’. Procesos de socialización lingüística de los niños en el barrio toba de Derqui (Argentina)” é uma versão revisada da tese doutoral da autora, defendida na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (2009), e adaptada para a divulgação no formato de livro. O principal propósito da tese consiste em dar conta dos modos em que se usam e representam a língua indígena toba e o espanhol nas interações cotidianas de uma população Toba, composta por famílias migrantes que moram em um bairro situado em Derqui, província de Buenos Aires.

Os Toba, cujo etnônimo é Qompi, integram o grupo étnico e linguístico chamado Guaycurú (Messineo, 2003). A população Toba na Argentina é estimada em 69.452 pessoas, segundo dados da “Encuesta Complementaria de Pueblos Indígenas” (ECPI), realizada durante 2004 e 2005. Os Toba moravam em bandas bilaterais nômades compostas por famílias extensas que se dedicavam à caça e à coleta na região do Gran Chaco (Miller, 1979). A partir do século XIX, suas condições de vida foram cada vez mais adversas, iniciando-se o processo de desterritorialização e migração para as grandes cidades da Argentina, onde atualmente muitos deles moram e reivindicam seus direitos coletivos (Wright, 1999; Tamagno, 2001).

Em primeiro lugar, é preciso destacar que se trata de um livro que sintetiza o prolongado trabalho de campo feito pela autora na região, período no qual se dedicou não só à pesquisa, mas também coordenou oficinas de língua toba e fez enquetes, entre outras atividades. Por isso, o trabalho tem a riqueza de ser, ao mesmo tempo, o produto de um processo formativo, uma amostra de trabalho etnográfico reflexivo e a síntese da triangulação possível entre pesquisa e transferência.

A obra se organiza em quatro eixos, composto cada um por dois ou três capítulos, respectivamente. O primeiro eixo, intitulado “¿(Dis)continuidades lingüísticas y culturales? Entre la perspectiva sociolingüística y la antropológica”, repassa as explicações formuladas desde a sociolinguística e a antropologia linguística a respeito dos processos de deslocamento das línguas. Ela parte da formulação da pergunta: o que leva um grupo de falantes a mudar o uso de uma língua (toba) por outra (espanhol)? Então, faz uma detalhada descrição das teorias que intentaram fornecer as respostas a essa questão. Assim, a autora define três aspectos de relevância para a obra toda. Por uma parte, explicita sua intenção etnográfica: a etnografia é uma estratégia que não só lhe permite se centrar na cotidianidade da substituição linguística, mas também se colocar corretamente no debate a respeito da dualidade entre a análise macrossocial e a análise microssocial. Simultaneamente, destaca a complexidade do estudo dos processos de socialização, colocando as crianças como sujeitos ativos na transmissão de conhecimentos entre gerações. Finalmente, situa a linguagem em uma esfera social, política e cultural estendida.

“Entre el Chaco y Buenos Aires. Aproximación etnográfica y sociolingüística al barrio toba de Derqui” é o titulo do segundo eixo. Além de descrever as características físicas do bairro e as características fonológicas e morfológicas da língua toba (cujo etnônimo é qom l’aqtaqa, o idioma dos qom), esse capítulo oferece a oportunidade de conhecer como território(s), língua(s) e sentimentos de comunidade se encontram relacionados intimamente. A história do bairro toba de Derqui inicia-se no ano 1995 (quando sua edificação começou) e sua extensão física materializa-se nas trinta e duas casas que o compõem. Desse modo, a etnografia da autora aponta para a análise processual e nos remonta à história dos tobas habitantes do Gran Chaco e aos modos como essa história não só se recria nas interações cotidianas em Derqui, mas também como ela permeia os atuais processos de socialização e transmissão de conhecimentos entre gerações. A ênfase na desfolclorização e na desessencialização que a autora coloca ao traçar processos sociais vivenciados pelos moradores do bairro encontra-se presente também no momento de analisar as línguas. Assim, entrecruzando fragmentos de entrevistas com os vizinhos de Derqui, a autora refaz os espaços, os tons e os modos de uso de cada uma das línguas em contextos particulares.

O terceiro eixo, “Socialización en y a través del toba y el español durante la niñez”, é composto por três capítulos. Os dois primeiros ocupam-se do estudo das especificidades com que é percebida a infância como etapa do ciclo vital, de acordo com a perspectiva toba, ao tempo em que aprofunda sobre os tipos de atos comunicativos que privilegiam o uso de uma ou de outra língua segundo o contexto, a posição social e a idade das pessoas que intervêm na comunicação. Assinala-se, por exemplo, que, embora o deslocamento do toba para o espanhol seja constante, existem âmbitos nos quais a comunicação é realizada exclusivamente em toba (por exemplo, entre idosos emigrados da província do Chaco), ou com emissões em toba e respostas no espanhol (como no caso dos mandados ou ordens cotidianas que os pais indicam para seus filhos). A autora descreve também os espaços onde as interações se produzem exclusivamente em espanhol, como as que as crianças mantêm entre si, com crianças dos outros bairros e com adultos e crianças no âmbito escolar.

Dada à centralidade que tem esse último espaço formativo na configuração da identidade, no capítulo sete analisam-se os sentidos dados à experiência escolar por parte das crianças, complementando-os com as perspectivas das famílias, dos docentes e dos administradores. O título do capítulo, “Encrucijadas en la escuela”, faz uma síntese dos complexos processos experimentados pelas crianças em uma instituição educacional de nível primário, onde são interpeladas pelos docentes a partir de seu pertencimento étnico e pelas supostas dificuldades que também trouxe seu bilinguismo, entre outras representações. Simultaneamente, a autora nos mostra o quanto as famílias valorizam a escola como o espaço adequado para aprender o espanhol (particularmente a escrita), confiando em que o correto uso dessa língua permitirá a seus filhos terem acesso a melhores posições no mercado de trabalho e a projetos de vida mais amplos.

No último eixo, “Distancias lingüísticas, distancias generacionales. Reflexiones acerca del papel del habla en la vida social”, se faz uma proposta para a leitura dos dados apresentados, a partir da união, em duas ideologias linguísticas, das representações que os adultos têm a respeito da fraqueza do uso do toba nas crianças. Assim, uma “ideologia do receio” condensa aqueles sentidos que observam a troca do toba pelo espanhol como um processo irreversível, ao tempo em que desde uma “ideologia do anseio” se coloca nas crianças a esperança de uma revitalização futura da língua toba.

Com a claridade e consistência que caracterizam o livro, Hecht nos oferece uma conclusão na qual são apresentados os resultados da pesquisa. Eles nos fazem um convite para refletir sobre as ideias nativas com relação às necessidades comunicativas das crianças em um cenário complexo, atravessado pelos repertórios linguísticos em toba e em espanhol. Nessa seção, fica explícita a contribuição do livro nas suas duas direções principais: de um lado, (a) o avanço na documentação dos processos de socialização linguística a partir das construções de sentido feitas pelas próprias crianças e, do outro lado, (b) a utilização de uma perspectiva etnográfica que permite configurar uma leitura renovada e criativa nas discussões sobre o deslocamento linguístico e a perda das línguas indígenas.

Com relação ao primeiro ponto (a), a autora nos apresenta uma proposta original para realizar o trabalho etnográfico com e entre meninos e meninas. A estratégia de lançar mão, primeiramente, das perspectivas nativas, ao invés de recorrer às categorias sociológicas no que diz respeito às classificações etárias, nos introduz em uma leitura onde tanto a ‘infância’ como seus atributos são compreendidos como construções feitas desde a própria práxis etnográfica. Assim, o livro traz uma valiosa contribuição ao conhecimento dos usos das línguas a partir do olhar das crianças de Derqui, demonstrando que eles ocupam uma posição dinâmica nos processos de transmissão cultural, organizando ativamente a informação que lhes é comunicada, e articulando uma concepção própria da sua identidade.

Em paralelo, a obra avança no campo da etnolinguística contemporânea ao oferecer uma perspectiva renovada dentro do debate a respeito da perda das línguas indígenas (b). Desse modo, ao estudar os processos de socialização das crianças tobas de Derqui, a autora sublinha que, frente às visões duais que proclamam a irreversível perda da(s) língua(s) indígena(s), de um lado, e a esperança da revitalização e do ‘retorno às origens’, do outro, existem múltiplos espaços locais onde as pessoas e os grupos participam ativamente da criação, do uso e da ressignificação dos elementos linguísticos. Os mesmos provêm de diferentes contextos e são válidos enquanto tornarem possível a comunicação cotidiana e a elaboração de projetos de vida e de identidade comum.

“Todavía no se hallaron hablar en idioma” é um livro que nos coloca frente às complexidades dos processos linguístico-culturais vivenciados pelas comunidades indígenas argentinas contemporâneas. A partir da análise do bairro toba de Derqui e das línguas que ali são utilizadas, a etnografia de Hecht nos mostra o contexto de redefinições (linguísticas, identitárias, geográficas, educativas) no qual essas populações se encontram atravessando e disputando. Com base em um rigoroso registro do campo etnográfico, a autora afirma que as análises sociais referidas ao deslocamento linguístico devem ser lidas no marco das disputas e tensões interculturais de maior escala, levando em conta que as práticas linguísticas – enquanto práticas sociais – se encontram estreitamente relacionadas com outras (políticas, socioculturais e econômicas), que constantemente as condicionam, possibilitam e interpelam.

Referências

MESSINEO, Cristina. Lengua toba (guaycurú). Aspectos gramaticales y discursivos. Munich: LINCOM Europa Academic Publisher, 2003. (LINCOM Studies in Native American Linguistics, 48).         [ Links ]

MILLER, Elmer. Los Tobas argentinos: armonía y disonancia en una sociedad. México: Editorial Siglo XXI, 1979.         [ Links ]

TAMAGNO, Liliana. ‘Nam Qom Hueta’a na Doqshi Lma’. Los tobas en la casa del hombre blanco. Identidad, memoria y utopía. La Plata: Ediciones Al Margen, 2001.         [ Links ]

WRIGHT, Pablo. Histories of Buenos Aires. In: MILLER, Elmer (Ed.). Peoples of the Chaco. Westport: Bergin & Garvey, 1999. p. 135-156.

María Macarena Ossola – Universidad Nacional de Salta – CONICET. E-mail: [email protected]

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Abordagens estratégicas em sambaquis – GASPAR; SOUZA (BMPEG-CH)

GASPAR, Maria Dulce; SOUZA, Sheila Mendonça de (Orgs.). Abordagens estratégicas em sambaquis. Erechim: Habilis Editora, 2013. 311 p. Resenha de MILHEIRA, Rafael Guedes. Metodologia de pesquisa em sambaquis: uma leitura sobre abordagens estratégicas. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.9 no.1, jan./abr. 2014.

Quando me deparei na livraria com esta obra, intitulada “Abordagens estratégicas em sambaquis”, eu já sabia que o conteúdo traria grandes contribuições metodológicas para a área de Arqueologia no Brasil. É o tipo de trabalho que eu costumo chamar de “Arqueologia na veia”, pois trata de temas específicos da Arqueologia (no caso, técnicas de campo), de maneira ortodoxa e interdisciplinar, contribuindo na direção de como e por que fazer trabalhos de campo, otimizando recursos e maximizando resultados. Ao iniciar as primeiras páginas, foi ficando evidente que o livro, embora tenha um foco centrado na temática dos sítios sambaquieiros da costa litorânea brasileira, dialoga e propõe técnicas de campo que podem ser facilmente utilizadas em todos os sítios arqueológicos pré-históricos (e não seria exagero incluir os sítios históricos) do Brasil. Aliás, essa foi também a impressão de André Prous na apresentação do livro, ao comentar que “o presente livro será, sem dúvida, de grande utilidade para os estudantes e pesquisadores – não apenas para aqueles que estudam os sambaquis, mas também para todos os praticantes de Arqueologia”.

Na introdução, as organizadoras recorrem a um breve histórico das pesquisas em sambaquis no Brasil desde o século XIX, os avanços e desafios dos últimos anos, sobretudo com o acúmulo de conhecimento resultante de grandes projetos temáticos financiados, predominantemente, por agências nacionais e públicas de pesquisa, amplamente divulgados no cenário nacional e internacional. Esses projetos foram a base das experiências dos autores dos treze capítulos do livro, e é claro que as discussões amadurecidas só chegaram ao alto nível de qualidade por conta da formação de equipes interdisciplinares, experientes e altamente comprometidas com o estudo dos sambaquis da costa brasileira. O livro, além do formato impresso, é acompanhado (opcionalmente) por um CD-ROM, que é o “Guia ilustrado das abordagens estratégicas em sambaquis”. Esse guia é um banco de imagens devidamente legendadas, que exemplificam as orientações metodológicas apresentadas nos textos, tornando a leitura da obra mais didática e acessível.

Seria demasiadamente enfadonho sintetizar aqui o conteúdo e as discussões de cada um dos capítulos do livro. Porém, arrisco-me a classificar os temas dos textos em três tópicos latu sensu: prospecção e registro de imagens em campo; estudos e coleta para sedimentologia e geoarqueologia; análises e coleta de material bioarqueológico (zooarqueologia, arqueobotânica e antropologia física). Embora haja uma divisão de temáticas abordadas no livro, há algumas questões que permeiam todos os textos e que merecem ser destacadas, por exemplo: como coletar amostras em campo, para que coletá-las e como registrá-las e acondicioná-las devidamente para análises futuras em laboratório. São questões relevantes e que atormentam (pelo menos, deveriam atormentar) qualquer coordenador de campo, na medida em que nos fazem pensar sobre a fragilidade e sutileza do registro arqueológico, a facilidade em confundir, misturar e perder amostras e, portanto, dados arqueológicos. E, por fim, refletir sobre o tamanho adequado das amostras versus o tamanho, geralmente limitado, das nossas reservas técnicas espalhadas pelo Brasil.

Eis uma das principais contribuições do livro: os autores conseguem, com maestria, demonstrar que é possível realizar intervenções pontuais nos sítios arqueológicos, minimizando os impactos físicos aos pacotes deposicionais e maximizando os resultados interpretativos. Essa conta positiva é possível com a padronização adequada e experimentada de coletas amostrais, que permitem obter vestígios microscópicos oriundos desses sítios arqueológicos monumentais, materiais que, embora sejam micro em tamanho, ao serem identificados, permitem avançar em discussões de larga escala, que vão da economia e dieta alimentar até práticas de manejo da paisagem e conformação territorial; vide o caso dos parasitos, o estudo da fauna ictiológica e o estudo dos carvões que compõem as fogueiras rituais e de aquecimento residencial.

A padronização das amostras em volume, formato e registro são temas importantes e que foram amplamente discutidos no livro por quase todos os autores. Da mesma forma, os autores foram bastante contundentes ao incentivar o uso de protocolos de coleta altamente padronizados, que permitam a comparação das amostras no processo laboratorial. Porém, há um aspecto que me preocupou na leitura e que poderia ter sido mais bem conduzido, talvez, até mesmo, por um capítulo à parte: o perigo da ‘superpadronização’. Os autores demonstraram uma grande preocupação em tecer uma escrita que, não obstante tenha um caráter bastante técnico, consiga atingir os recém-iniciados em Arqueologia. É até curioso um texto acadêmico que ensina como segurar a pá, para que lado e em que sentido se deve realizar uma limpeza e retificação de perfil, e de que forma se deve preencher um diário de campo.

Com certeza, os autores estiveram preocupados em manter uma linguagem bastante clara e acessível, visto que, no cenário nacional universitário, novos cursos de graduação em Arqueologia vêm sendo criados sistematicamente, o que gera novos leitores. Eu, como professor de práticas de campo e laboratório, fico extremamente agradecido, pois vale lembrar que, nas graduações brasileiras, utilizar um texto em língua estrangeira é quase um atentado, portanto textos que ‘traduzam’, por assim dizer, técnicas e métodos difundidos internacionalmente são muito bem-vindos. Entretanto, retomando minha preocupação com a ‘superpadronização’, fiquei pensando que um jovem leitor poderá facilmente entender que as escavações arqueológicas devem atingir um alto nível de padronização, em que todas as informações devem ser protocoladas em fichas de conteúdo fechado e limitadas em seus campos de respostas, uma espécie de ‘ficha de ticar’, em que caberia ao arqueólogo coletar amostras em volumes pré-determinados, preencher os protocolos e armazená-las adequadamente para incorrer corretamente às análises laboratoriais. Certamente, não foi essa a mensagem que moveu o interesse dos autores ao compor a obra, contudo vale a pena lembrar os leitores de que fazer ciência requer um alto grau de sensibilidade e subjetividade e que, não seria incorreto dizer, em Arqueologia, pelo caráter empírico, confiar no feeling não é ceder à falta de objetividade.

Trago essa discussão exatamente pela minha experiência como professor de graduação e pós-graduação em Arqueologia, e por estar imerso num cenário em que essa disciplina é cada vez mais demandada pelos empreendimentos de engenharia no Brasil, por conta das práticas de licenciamento ambiental. No contexto das atividades de licenciamento, vem se tornando senso comum que a qualidade das pesquisas arqueológicas está relacionada ao volume de dados que gera e, sobretudo, à confiabilidade técnica que conformou os dados. Nesse sentido, a padronização das informações registradas em campo vem sendo tomada como essencial, refletindo qualidade e confiabilidade na pesquisa. Logo, o estabelecimento de um protocolo de coleta, em todas as etapas do quotidiano da pesquisa, permite aos arqueólogos gerarem dados ‘a toque de caixa’, com baixo índice de subjetividade científica e que nega ou dificulta o exercício da reflexão. Nesse sentido, é importante ressaltar que o livro em tela contribui para a divulgação de técnicas padronizadas, que devem ser adotadas nas diferentes pesquisas após reflexões aprofundadas, algo que, muitas vezes, a Arqueologia de contrato não atende.

Há, ainda, outro aspecto a destacar. A coleta e o estudo cuidadoso das coleções artefatuais e das amostras biológicas em campo elucidam uma discussão emergente no Brasil. Cada vez mais, arqueólogos têm se debruçado sobre uma tendência recente em desvalorizar, de certa forma, atividades interventivas nos sítios arqueológicos, baseando-se no discurso do preservacionismo e da limitação das reservas técnicas. Da mesma forma, desconsideram a importância de análises sobre coleções fragmentárias, argumentando que somente as coleções artefatuais mais significativas deveriam ser abordadas, pelo seu cunho elucidativo, simbólico e educativo. Porém, com a leitura da obra, fica também evidente que foi somente com novas intervenções arqueológicas em sítios já bastante estudados, e com base em análises de coleções até então desconsideradas pelo seu aspecto microescalar ou secundário, que novos modelos teóricos sobre as sociedades sambaquieiras puderam ser constituídos, ou seja, esses modelos são fruto de trabalhos de campo exaustivos, experimentação, discussões amadurecidas e publicação de dados. Invariavelmente, essas novas intervenções arqueológicas avolumaram as reservas técnicas, o que leva a discussão para além da Arqueologia tradicionalmente realizada no Brasil, invadindo temas como gestão do patrimônio arqueológico, reservas técnicas, ciência da conservação e museologia.

Na busca da popularização de uma abordagem estratégica bem pensada, que dialogue com pesquisas nacionais e internacionais, a obra contribui amplamente para o desenho de projetos de pesquisa e, com certeza, se tornará uma boa referência. Considerando o pool de pesquisadores que contribuíram para a tessitura do livro, e pelo seu conhecimento de técnicas importantes que ultrapassam as práticas de campo, fico na expectativa da publicação de um segundo volume, composto por abordagens metodológicas em laboratório, envolvendo as mesmas temáticas já abordadas na obra.

Rafael Guedes Milheira – Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected]

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Encontro de Antropologia: homenagem a Eduardo Galvão – MAGALHÃES et al (BMPEG-CH)

MAGALHÃES, Sônia Barbosa; SILVEIRA, Isolda Maciel da; SANTOS, Antônio Maria de Souza (Orgs.). Encontro de Antropologia: homenagem a Eduardo Galvão. Manaus: Editora da UFAM; Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2011. 560 p. Resenha de: SCHRÖDER, Peter. Homenagem tardia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.9, n.1, jan./abr. 2014.

Estranheza. Esta foi uma das primeiras reações ao folhear esta coletânea com seu motivo de capa atraente. A razão? Não o tema do livro, mas o tempo que levou para ser lançado. Trata-se de um conjunto de exposições e comunicações apresentadas por ocasião do Seminário Eduardo Galvão, realizado no Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), de 2 a 5 de setembro de 1997.

O objetivo do evento era, como fica evidente com a leitura das contribuições, tanto uma homenagem quanto uma avaliação crítica de vida e obra de Eduardo Galvão (* 25/01/1921, Rio de Janeiro – † 24/08/1976, Rio de Janeiro) no contexto da antropologia brasileira, ou seja, um tema que pode ser justificado com facilidade. Mas resta a questão por que levou 14 anos (ou talvez 16, quando se leva em conta algumas divulgações de lançamento em meados de 2013?) para se publicar as contribuições ao evento. Geralmente, o interesse por anais de eventos, por exemplo, dissipa-se depois de poucos anos, a não ser que fossem publicados alguns papers excepcionais, apreciados por especialistas. Na coletânea resenhada, no entanto, não é possível encontrar a resposta pela questão do hiato temporal entre evento e publicação.

Organizar um evento para avaliar as contribuições e os impactos de um pesquisador importante em sua área e depois publicar as conferências e comunicações não são tarefas cotidianas nas ciências humanas, mas nenhuma coisa incomum. Entre os diversos aspectos que podem ser citados com relação a tais homenagens críticas figura a distância entre o falecimento do homenageado e o ano do evento. Será que um intervalo de vinte anos permite uma avaliação historicamente equilibrada e sóbria sobre o homenageado? Ou será que as impressões subjetivas ainda exercem influências muito fortes nas avaliações? Parece ser mais fácil garantir tal distanciamento em casos de pesquisadores temporalmente mais afastados, como Nimuendajú ou Radcliffe-Brown.

No caso da coletânea resenhada, porém, pode ser apresentada uma justificativa importante: o fato de Galvão quase ter desaparecido, desmerecidamente, das leituras canônicas em antropologia brasileira, tanto nas graduações quanto nas pós-graduações. Desse modo, o livro podia ser um estímulo para ‘redescobrir’ um autor importante na história da antropologia brasileira. No entanto, sempre existe o perigo, no caso de eventos com publicações como a coletânea, de produzir uma obra cujas contribuições majoritariamente têm pouco a ver com o homenageado, como já aconteceu no caso de um colóquio, realizado em Jena, Alemanha, em 2005, por ocasião do sexagésimo aniversário da morte de Nimuendajú (Born, 2007).

O título do livro é uma alusão explícita a “Encontro de sociedades”, coletânea com textos de Galvão postumamente publicada em 1979. Infelizmente, não se encontra, como se podia esperar, uma síntese biográfica do homenageado e nem uma lista de suas publicações (como em Galvão, 1996). A “resenha biográfica” no final do livro, de basicamente uma página (p. 551-552), não faz jus a Galvão.

Em toda a coletânea, há apenas quatro artigos, de 32, no total, que de fato se concentram em aspectos da vida e obra de Galvão. O primeiro, de Orlando Sampaio Silva, é uma sistematização descritiva dos enfoques regionais e temáticos na obra de Galvão, relacionando as áreas onde este realizou suas pesquisas de campo com as publicações resultantes. O autor chama a atenção para as delimitações temáticas e situacionais de Galvão nos estudos de aculturação realizados nas décadas de 1950 e 1960, a distinção sistemática entre mudança cultural e aculturação, os exercícios classificatórios (áreas culturais) e as referências teóricas (principalmente, a antropologia americana da época), porém, a síntese da obra ficou inacabada nesse texto. Neste sentido, o segundo artigo, de Pedro Agostinho, oferece uma abordagem interpretativa mais abrangente, embora trate ‘apenas’ do “tempo de Brasília” de Galvão (1963-1965). O artigo de Roque Laraia, por sua vez, destaca a importância histórica da obra de Galvão no contexto da antropologia brasileira. Além disso, é uma bela reflexão sobre sense e nonsense de publicar diários de campo. Chama a atenção que este assunto também é discutido na introdução escrita pelos organizadores da coletânea. No caso dos diários de campo de Galvão (1996), a questão principal é se eles revelam novidades sobre o autor ou sobre suas pesquisas publicadas, e o fato de esta dúvida existir é revelador em si.

O quarto artigo, de Heraldo Maués, focaliza os ‘pais fundadores’ da antropologia institucionalizada no Pará: Galvão, no MPEG, e Napoleão Figueiredo, na Universidade Federal do Pará. De forma imprevista, a estupidez da máquina ditatorial, que afastou Galvão de Brasília, favoreceu o fortalecimento da antropologia em Belém. Como Maués bem observa, com isso foi rompido certo padrão de relacionamentos profissionais de antropólogos com a região, já que por muito tempo a Amazônia foi considerada exclusivamente como ambiente para coletar informações a serem analisadas em contextos institucionais fora da região.

Há mais quatro artigos na primeira parte do livro, sobre as contribuições de Galvão à antropologia brasileira, porém estes textos, de Yonne Leite, Samuel Sá, Isidoro Alves e Mark Harris, focalizam menos o pesquisador Galvão do que os quatro anteriores. A segunda parte do livro, por sua vez, está composta por fragmentos de mitos coletados por Galvão e por quatro álbuns fotográficos muito interessantes (do alto Xingu, do alto rio Negro, dos Kaiowá e dos Tenetehara), inclusive mostrando diversos colaboradores e interlocutores de Galvão.

A terceira parte, com 24 artigos, representa mais de dois terços do livro, mas os textos muitas vezes não têm nada a ver com Galvão ou estão relacionados com sua obra apenas indiretamente, por afinidade temática ou regional. Às vezes, Galvão é citado ‘de alguma maneira’, sem que isto tenha consequências para as análises apresentadas; e em várias contribuições nem se encontra referência bibliográfica alguma a ele. Até um leitor muito ingênuo pode se perguntar: onde estão as conexões com o tema do evento?

Uma parte das contribuições parece representar projetos de pesquisa em andamento, porém certamente já concluídos em 2011 (por exemplo, o artigo de Denize Genuína da Silva Adrião sobre concepções de natureza e cultura no médio rio Negro). Certos temas ou conjuntos temáticos, por sua vez, predominam: por exemplo, estudos sobre populações pesqueiras e suas práticas econômicas, com dez artigos, o que evidentemente tem a ver com os interesses de Galvão. Também há diversos textos sobre meio ambiente e sobre saúde.

Na introdução à coletânea, os organizadores explicitam sua visão da obra de Galvão: por um lado, caracterizada por perspicácia analítica, por outro lado, ultrapassada em termos epistêmicos. Certos aspectos de sua atuação acadêmica são destacados: sua capacidade de formar novos pesquisadores, seus estímulos inovadores, seus interesses bem articulados numa antropologia prática e suas contribuições à institucionalização da antropologia na Amazônia. Também é abordada a questão de qual foi a linhagem acadêmica constituída por Galvão.

Os organizadores também explicam que ainda há muito material documental nos arquivos do MPEG, que poderia servir de base empírica para pesquisas futuras sobre vida e obra de Galvão. Em todos os casos, o livro resenhado é muito interessante, tem diagramação bastante agradável e permite uma primeira abordagem ao homenageado, mas não fornece uma base de consulta sistemática. E certamente esta nem era a intenção da publicação, a qual, de alguma forma, representa um estado da arte: aquele da pesquisa antropológica na Amazônia em meados dos anos 1990.

Referências

BORN, Joachim (Org.). Curt Unckel Nimuendajú – ein Jenenser als Pionier im brasilianischen Nord(ost)en. Wien: Praesens, 2007. (Beihefte zu “Quo vadis, Romania?”, 29).         [ Links ]

GALVÃO, Eduardo. Diários de campo de Eduardo Galvão: Tenetehara, Kaioá e índios do Xingu. Organização, edição e introdução de Marco Antonio Gonçalves. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Museu do Índio/FUNAI, 1996.         [ Links ]

Peter Schröder – Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]

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Tempo presente e usos do passado / F. F. Varella, H. M. Mollo, M. H. F. Pereira e S. Mata

A profusão de acontecimentos e velozes transformações que marcaram “o breve século XX” provocaram nos historiadores, especialmente após a Segunda Grande Guerra, o interesse por investigar as questões de seu próprio tempo. Enfrentando preconceitos historiográficos estabelecidos no século XIX, quanto à (im)possibilidade de historicização do presente, os que se dedicaram a essa empreitada atravessaram décadas de questionamentos acerca da legitimidade científica de seus estudos. Nessa trajetória de enfrentamentos, que resultou na institucionalização da chamada história do tempo presente, a criação de institutos em vários países europeus voltados para a abordagem do pós-guerra e as demandas sociais pelo conhecimento da história próxima – muitas vezes, guiadas pela ideia de justiça e “preservação” da memória, a “aceleração” do tempo e o contexto de renovação historiográfica, a partir dos anos 1970 – exerceram importante papel, no terço final do século passado.

No Brasil, especificamente, a preocupação com problemas relacionados ao tempo presente começou a ganhar fôlego na historiografia nos anos 1990, como atesta, por exemplo, a tradução e publicação de importantes obras de historiadores europeus dedicados à análise do presente e luta por sua legitimação como objeto de investigação histórica. O surgimento de revistas especializadas, a instituição de laboratórios, grupos de pesquisa e a promoção de eventos com foco na temática demonstram o crescente espaço que o tempo presente vem conquistando na constelação das preocupações historiadoras em nosso país. Leia Mais

LHISTE | UFRGS | 2014

LHISTE3 Jamaxi

A Revista do LHISTE – Laboratório de Ensino de História e Educação da UFRGS (Porto Alegre, 2014) – é uma publicação semestral especializada em trabalhos acadêmicos sobre o ensino de história, em todos os níveis e etapas educativas, além de sua intersecção com outras áreas do conhecimento.

Constitui-se, portanto, em espaço para a comunicação de pesquisas e reflexões sobre a prática docente, os processos de aprendizagem, a construção de currículos em história, a formação de professores, a memória e a educação patrimonial e o ensino de história e a interdisciplinaridade, entre outros temas caros ao campo.

Também visa à divulgação e registro de novas estratégias, metodologias e objetos, formando um banco de dados especializado em boas práticas pedagógicas de professores em formação inicial, nos estágios e no PIBID/História, assim como de professores da educação básica.

É formada por um Conselho Editorial vinculado ao LHISTE e um Conselho Consultivo mais amplo, composto por professores-pesquisadores de diversas instituições universitárias do país e do exterior, com reconhecida atuação no ensino de história e áreas afins.

É dividida em quatro seções, como descritas abaixo, Artigos, Relatos, Resenhas e Entrevistas. Os trabalhos que se enquadram nas três primeiras categorias são recebidos em fluxo contínuo e avaliados por pares. Podem ser submetidos textos de graduandos, pós-graduandos e profissionais formados em licenciaturas, mestrados e doutorados em História e áreas afins.

Além dos trabalhos recebidos continuamente pelo SEER (Sistema de Editoração Eletrônica da UFRGS), a revista pode publicar dossiês temáticos, com chamadas regulares. Também são previstos números especiais extraordinários, com temas específicos e registros de eventos organizados pelo LHISTE e/ou de relevância para o ensino de história.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2359-5973

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Entre o Sagrado e o Profano: Imaginário e Religiosidade no Mundo Celta e Germânico / Brathair / 2014

É comum, entre os pensadores contemporâneos, atribuir à Pós-Modernidade um predicado concebido pelo sociólogo Zygmunt Bauman: trata-se, na verdade, de uma “modernidade líquida”. Não é difícil, com efeito, perceber um movimento tenso, intermitente, mas contumaz, de desconstrução de convenções simbólicas, crenças, ideologias e utopias, que Bauman bem caracteriza como liquefação de sentidos. Neste quadro hodierno, não se pode ignorar que as religiões – não apenas as doutrinas corporificadas em sistemas teológicos e igrejas – religiosidades e formas de espiritualidade despontam como lugar da possibilidade do reencontro, mais ainda, da tessitura, de sentidos e pertenças novos.

Um nome de vulto nas Ciências Humanas, Max Weber (Economia e Sociedade, 1920), concebia justamente o advento desta configuração, aparentemente tão antimoderna, no Ocidente, após a crise da razão técnica que aprisionou o espírito e engendrou a Modernidade clássica. As religiões, as fés e a busca por amparo no Absoluto, por certo alvo de demandas vulgares e subsumidas pela lógica do Capital, reaparecem com força inaudita, desafiando nossa capacidade de compreensão e interpretação histórica.

Revisitar a Idade Média pelo viés das narrativas mitológicas cristãs, proposta do presente dossiê, pode representar um esforço na tentativa de responder à indagação fundamental sobre o papel da religião na construção do próprio Ocidente enquanto paradigma civilizatório. Para tanto, um primeiro e recorrente equívoco deve ser elidido. Não há, propriamente, uma “religião medieval”. Existe, sim, um complexo sistema simbólico-prático que se desenha como um imaginário cristológico, responsável, ao nível mitopoético, por muito daquilo que assinala o Cristianismo ocidental como traço de mentalidade.

Como ensina um dos autores que contribuíram para esta coletânea, sem dúvida o maior nome da quarta geração do movimento dos Annales, Jean-Claude Schmitt (Ensaios de Antropologia Medieval, edição francesa de 1994), o vocábulo latino medieval religio era bastante restritivo em seu sentido. Designava os votos de ordenação de um oblato ao adentrar uma ordem monástica. Herdamos da primeira Apologética latina, na pessoa de Lactâncio (c. 240-320), conselheiro palaciano do primeiro imperador romano cristão, Constantino (312-337), a concepção de que religio advinha do verbo latino re-ligo (infinitivo religare), “voltar a ligar”, “atar novamente” (a Deus, ao sagrado). Todavia, como problematiza o medievalista Hilário Franco Júnior em Os três dedos de Adão – Ensaios de Mitologia Medieval (2010), é mais provável que religio corresponda ao substantivo decorrente de re-lego (infinitivo re-legere), atribuindo-se sua origem, por derivação imprópria, ao rhetor estoico tardio romano Cícero (106-43 a.C.).

Mais que uma simples apropriação ou ressignificação enviesada por parte de Lactâncio, nas obras De officio Dei (c. 303) e Diuinae Institutiones (c. 311), o que se processou foi uma verdadeira disputa de verdades, uma controvérsia político-ideológica entre dois sentidos que pretendiam fazer-se hegemônicos no campo da Arte Retórica. A concepção de Cícero, expressa em De natura deorum (45 a.C.), foi condenada, pelo novo cânone retórico cristão, ao esquecimento quase total.

Consoante Cícero, há um conteúdo político implicado no verbo re-lego, que se reporta ao ato de “colher” novamente, recuperar, revivescer os ensinamentos da tradição, da “entrega” (traditio) dos mores (usos e costumes) – nas Ciências Humanas de hoje se diria ethos – por parte dos patresfamilias, os fundadores do Populus Romanus.

No entanto, inexistir um sistema religioso não significa negar, em hipótese alguma, que os medievais se remetiam, desde as especulações teológico-filosóficas da cultura erudita cristã de expressão latina aos gestos mais concretos e práticas culturais da cultura popular, ao tempo do mito, ao momento cosmogônico fundador da História da Salvação Cristã. Como será possível perceber nos artigos que se dedicam ao tema desta edição de Brathair, o Cristianismo medieval não se resume a algo como um “campo religioso”. Estamos diante do próprio elemento de articulação fundamental do imaginário medieval na longa duração, uma vez que, não obstantes as mutações, tensões, inconsistências e contradições que certamente marcaram sua história, tal imaginário se caracterizou, durante toda a Idade Média, por uma epifania transdescendente e pela sacramentalidade do sagrado cristão.

Os historiadores, antropólogos, sociólogos e teólogos tem-se sensibilizado para a questão do imaginário das formações sociais, sejam pretéritas ou atuais, a que consagram seus estudos. Basta recordar como Cornelius Castoriadis redefine o ser humano como animal simbólico, sendo por excelência, capaz da imaginação, da efabulação, da concepção e tessitura de realidades imaginadas, que atribuem sentido ao mundo que o circunda (A instituição imaginária da sociedade, 1975). Aqui também as reflexões sobre a Idade Média transmitem uma importante lição, já que “imaginar” (imaginare) é a forma, o “método”, por excelência, pelo qual os homens e mulheres do período medieval observam, interpretam e compreendem um mundo material permeado pelo sagrado do sacramento em cada detalhe, em cada instância da existência.

Convém observar os comentários de São Tomás de Aquino acerca da imago como vetor do logos humano, de sua leitura do mundo. Na Questão 35 da Parte I da Suma de Teologia, retomando as reflexões de Santo Agostinho sobre a memória como um imenso palácio habitado por imagens (Livro X de Confissões), o célebre teólogo dominicano afirma que o intelecto humano traduz o mundo por meio de imagens. Mais que apenas representar – no sentido de re-presentar, tornar novamente presente algo agora ausente – os entes do mundo (res sensibiles) a partir de imagens, os seres humanos concebem, entendem, atingem a intelecção verdadeira e rigorosa das coisas por intermédio das imagines. Por conseguinte, imago é o construto mental e sígnico pelo qual o próprio logos do mundo (reflexo do logos de Deus) pode ser apreendido pelo logos do homem (intellectus).

Para tanto, o imaginário precisa ser entendido como sistema coerente de mensagens veiculadas pelas imagens, que são significados sociais suscitados pelas coisas. Hilário Franco Júnior nos adverte, em O fogo de Prometeu e o escudo de Perseu: reflexões sobre imaginário e mentalidade (artigo que compõe o livro Os três dedos de Adão: Ensaios de Mitologia Medieval, 2010), de que, isoladas, as imagens tendem a enfatizar mais o significante que o significado. Apenas adquirem sentido e passam a comunicar, de modo consciente ou não, determinada cosmovisão, quando conexas em um sistema semiológico instituidor de um discurso, exprimindo-se sob forma plástica, sonora ou verbal.

O imaginário medieval é essencialmente analógico. A analogia consiste em uma instância simultaneamente racional e emocional, que estabelece entre dois ou mais elementos, eventos ou ações, correspondências fundadas em denominadores comuns. Assim, a mesma exibe uma espontaneidade de pensamento, que percebe similitudes e contempla o universo como uma imensa rede de conexões. Para Hilário Franco Júnior, o efeito etnológico fundamental do pensar analógico seria uma descontinuidade entre natureza e cultura, vez que se projetam características humanas sobre os seres irracionais ou o sentimento de que objetos não são seres inanimados.

Ademais, como assinala a historiadora francesa Evelyne Patlagean, em capítulo da obra coletiva A Nova História (1978), coordenada por Jacques Le Goff e Jacques Revel, o imaginário pode ser definido, heuristicamente, como conjunto das representações que ultrapassam os limites das constatações empíricas e dos encadeamentos dedutivos e indutivos autorizados pela experiência. Cada cultura, cada formação social, ou mesmo cada segmento interno a uma sociedade complexa, acalenta um imaginário próprio. Nesta perspectiva, o limite entre o real e o imaginário revela-se volátil, enquanto o território percorrido por tal fronteira permanece idêntico, já que abrange todas as esferas da experiência humana.

Neste lastro, nossa edição atual de Brathair traz um belo e inédito trabalho de Jean-Claude Schmitt (EHESS-Paris), Quando a lua alimentava o tempo com leite: O tempo do cosmos e das imagens em Hildegarde de Bingen (1098-1179). Em versão traduzida, o texto discute justamente a “temporalidade das imagens”, que só pode ser referida no plural, dos tempos sociais e das representações do tempo, que variam de acordo com as épocas, com os interesses, com os níveis de cultura e com as ocasiões de falar e de “viver” o tempo. Sem sua pluralização ao nível analítico, as imagens não saberiam exprimir o tempo e nem operá-lo em suas próprias séries. É este problema que discute o grande historiador alsaciano, a partir de quatro miniaturas de página inteira, assunto de dois tratados diferentes, mas complementares, da abadessa beneditina renana Hildegarde de Bingen (1098-1179).

Prosseguindo na tendência de discutir questões teóricas mais amplas, bem como alinhavar hipóteses de compreensão sistêmica do período medieval, apresentamos outro texto de um autor estrangeiro. Trata-se de Religion, Álfar and Dvergar, de Santiago Barreiro (IMHICIHU-CONICET – Argentina), que problematiza a função mitológica destas duas entidades coletivas do imaginário escandinavo anterior à cristianização desta fronteira setentrional da Europa medieval (séculos X-XIII). Com tal abordagem, Barreiro também reflete, metodologicamente, sobre a confiabilidade de distintos gêneros documentais para a artesania intelectual do medievalista.

Ainda nesta seara, Pagan and Christian Dichotomy in Early Irish Literature, do colega português Carlos Carneiro (Centre for English, Translation and AngloPortuguese Studies, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa) apresenta uma instigante reflexão acerca da trajetória e dos descaminhos da tradição oral celta na Hibérnia durante o intenso processo de cristianização da Ilha. O autor discorre sobre a sobrevivência de uma “literatura oral” originária e o grau de controle e conversão de seu repertório à nova mitologia, trazida principalmente por missionários beneditinos do Continente.

Nosso dossiê se completa com duas primorosas resenhas. A primeira, ofertada por Dominique Santos (FURB-Blumenau), integrante de nosso esforço de dialogar com a historiografia internacional. O original irlandês, Ireland in the Medieval World Ad 400- 1000 Landscape, kingship and religion, de Edel Bhraethnach, coroa, com êxito, a parte temática desta edição de Brathair, juntamente com a resenha apresentada pelo consagrado Professor João Lupi (UFSC-Florianópolis), que comenta o instigante livro de Aline Dias da Silveira, intitulado O Pacto das Fadas na Idade Média Ibérica. Além dos autores que responderam, de maneira tão qualificada como os leitores perceberão observar, a nossa proposta temática, apresentamos aqui a contribuição de três historiadores que versam acerca de campos temáticos que, de alguma forma, dialogam com a temática da espiritualidade medieval.

Para estreitar mais ainda nossos vínculos com colegas ibéricos, com os quais partilhamos nosso passado e nossas heranças medievais, temos o prazer de propor aos leitores o artigo Rehenes y cautivos como garantía de adhesión de los poderes locales hispanos a la autoridad sueva en la Crónica de Hidacio, de Benito Márquez Castro (Universidade de Vigo). O belo trabalho enfoca as tensões da formação da Hispânia visigótica no século V, a partir da análise das estratégias militares praticadas pela realeza germânica para negociar a adesão dos poderes locais subsistentes do período romano, com destaque para o sequestro de personalidades hispano-romanas como o patrício Cântabro, do município de Conimbriga (atual Coimbra). A fonte estudada, o Chronicon do aristocrata hispano-romano Hidácio, é de suma relevância para o período em termos de uma História Política da região.

Já o docente do Amazonas, especialista na Matéria da Bretanha, Sínval Carlos Mello Gonçalves (UFAM), em incursão no universo das narrativas romanescas centromedievais, resgata o processo multissecular de clericalização dos enredos cavalheirescos. Em Das armas ao amor: aventura e transformação pessoal no Erec e Enide de Chrétien de Troyes, Sínval Gonçalves problematiza o percurso de seu protagonista como um processo de transformação e aperfeiçoamento pessoal. A narrativa precisa também ser vista como uma expressão do ideal cortês de união das virtudes da cavalaria e do sentimento amoroso, sendo este necessariamente conduzido para a realização conjugal.

Por fim, quem nos brinda com uma refinada análise dos escritos cavalheiresco no contexto de formação dos idiomas vernáculos europeus ao longo da Idade Média Central (séculos XI-XIII), é o latinista e erudito em Retórica Medieval Benoît Grévin (LAMOP – Université de Paris 1, Panthéon Sorbonne). O historiador francês também enfoca, com maior ênfase, o Roman de Troie, de meados do século XII, para exemplificar a significância do intercâmbio entre a França e a Península Itálica no auge de constituição do Feudalismo. Com efeito, o desenvolvimento de uma ampla literatura dita “francoitaliana”, que adaptava os grandes ciclos épicos e romanescos da lingua d’oïl no norte da Península, prova que, ao lado de um consumo não negligenciável de obras deste gênero, existiu um fenômeno inverso no sul do território itálico, na mesma época. Também se verificou, como atesta a ‘latinização’ do Roman de Troie por Guido delle Colonne, um movimento precoce de transposição e de integração de temas romanescos à cultura latina. Como salienta o próprio Grévin, “para compreender seus mecanismos, é importante recolocar esta tendência no contexto da ideologia literária então dominante nestes lugares: a da retórica médio-latina da ars dictaminis”.

Desejamos ao leitor uma proveitosa aventura intelectual e um excelente ano de 2015!

Adriana Zierer – UEMA. École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2013-2014. Editora-Chefe da Revista Brathair. E-mail: [email protected]

Marcus Baccega – UFMA. Pós-Doutorado Université Paris I, 2013. Editor Assistente da Revista Brathair. E-mail: [email protected]


ZIERER, Adriana; BACCEGA, Marcus. Editorial. Brathair, São Luís, v.14, n.1, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História, Arqueologia e Literatura entre Celtas e Germanos / Brathair / 2014

História – Arqueologia – Literatura entre Celtas e Germanos / Brathair / 2014

Este volume se dedica aos estudos do diálogo entre História, Arqueologia e Literatura. De acordo com Schiffer (2010), a Arqueologia estuda o comportamento humano no tempo e no espaço através da cultura material, ou da relação das pessoas com a cultura material (SCHIFFER apud BARRETO, 2013, p. 272). Segundo Vítor Oliveira Jorge (1990, p. 24) a Arqueologia é uma forma própria de estudar o mundo material, as relações do homem com a realidade física que o rodeia e da qual ele mesmo faz parte. Diversas são as abordagens que hoje analisam os artefatos como vestígios do comportamento social e humano. Em particular, os estudos de Arqueologia da Paisagem (nas suas mais diversas vertentes) têm procurado aprofundar a análise desses vestígios, entendendo as modificações feitas pelo homem na paisagem. Os trabalhos desenvolvidos neste campo procuram dar conta dos assentamentos, das estruturas e artefatos, tendo em mente a relação entre cultura e ambiente. Analisam, assim, de forma holística a relação entre o homem, o que ele necessita, os artefatos e estruturas por ele produzidos e o espaço onde viveu (ROBRAHN-GONZÁLEZ, 1999-2000, p. 18).

Nesta edição duas resenhas discutem a relação entre História e Arqueologia. A primeira, de Ana Carolina Moliterno Lopes de Oliveira (PPGH-UFF) discute o livro de Richard Bradley, professor de Arqueologia da Universidade de Reading, sobre o arquétipo circular nos antigos monumentos europeus desde o neolítico em estudo comparativo com as sociedades europeias atlânticas. O livro é dividido em 10 capítulos. O trabalho se insere na Arqueologia da Paisagem, integrando o estudo de monumentos e assentamentos aos espaços, partindo a análise do aspecto socioeconômico para o cultural.

A segunda resenha, de Benito Márquez Castro, da Universidade de Vigo apresenta o livro escrito em galego em 2013 por Adolfo Fernández Fernández, fruto de sua tese de doutorado, sobre o comércio no noroeste peninsular – Galícia Sueva e Visigoda, com base em registros arqueológicos. Fernández Fernández analisa as relações comerciais entre galo-romanos e povos germânicos nessa região, mostrando a riqueza dessas relações, não apenas violentas, mas também pacíficas, através do comércio. A análise vai do século IV ao século VII, constituindo uma importante contribuição aos estudos sobre essa região europeia.

Quanto aos artigos do dossiê, discutem a relação entre História e fontes literárias. Proeminentes historiadores tem destacado a importância dos estudos dessas obras para a compreensão do imaginário de uma determinada época. De acordo com Patlagean (1993, p. 201), o imaginário abrange todo o campo da experiência humana e nos auxilia a decifrar elementos simbólicos de outros momentos históricos. Para Pesavento o imaginário pode ser entendido como um “sistema de imagens e ideias de representação coletiva que os homens, em todas as épocas construíram, dando um sentido para si e para o mundo” (PESAVENTO, 2004, p. 43). Esse imaginário é construído e deve ser lido historicamente.

As fontes literárias e todos os registros históricos produzidos pelos humanos não são neutros, motivo pelo qual devemos ter um olhar questionador sobre qual o motivo da produção de um documento numa determinada época, por quem foi encomendado, a quem ele era destinado e com qual finalidade.

No caso do período Antigo e Medieval também temos a riqueza de perceber que as relações entre produção, circulação e recepção de muitos documentos estão associadas à inter-relação entre as culturas erudita e popular e também à oralidade, uma vez que muitos registros circulavam oralmente e demonstravam absorver elementos de uma cultura não letrada.

Neste sentido, a Profª. Marie Anne Polo, da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e do Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval (GAHOM) analisa os exempla, narrativas curtas com o objetivo da evangelização da população e o papel dos pregadores, como Jacques de Vitry, Cesário de Heisterbach e Bernardino de Siena que, através da oralidade, buscavam estratégias para atingir o seu público. Desta forma, absorviam narrativas da cultura popular, misturando o vernáculo com o latim e fazendo uso do apelo teatral para passar a mensagem cristã ao público. Vale destacar que como forma de convencimento da sua mensagem era muito importante a performance dos pregadores e a empatia que conseguiam causar nos seus ouvintes. O GAHOM possui em sua homepage vários exempla disponíveis para auxiliar e ampliar os estudos deste tipo de narrativa.

O Prof. Ruy Oliveira Andrade Filho e o Doutorando Germano Favaro Esteves (UNESP-Assis) investigam os sentidos da Vita Desiderii, obra do século VII, escrita pelo monarca Sisebuto, através da análise crítica do discurso. O documento constitui-se na única hagiografia escrita por um rei visigodo e os autores buscam identificar os motivos disso, identificando através do estudo da obra, as relações de poder que são construídas entre rei e seus súditos. Destaque para os elementos negativos dos reis burgúndios que aparecem no relato de Sisebuto.

Ainda enfocando a Hispânia Visigótica, precisamente na transição entre os séculos VI e VII, sob o prisma de uma História do imaginário político, o artigo da Profª Pâmela Torres Michelette (UFPI / UNESP) trata da gesta do conceito de realeza cristã nos escritos de um clérigo destacado da Patrística Primeira Idade Média, Isidoro de Sevilha (560-636). Com efeito, como os leitores poderão perceber ao longo da exposição, este pensador clerical foi um verdadeiro ideólogo orgânico da legitimação cristológica e agregadora entre hispano-romanos católicos e visigodos arianos, quando da conversão do Regnum ao Catolicismo, no III Concílio de Toledo (589), sob o reinado de Recaredo (587- 601).

João Paulo Charrone, docente da UFPI, analisa a figura de um erudito, Venâncio Fortunato, proveniente de Ravena, na Itália, que viveu no século VI, fez estudos voltados para a área do Direito e de Letras e dedicou-se a produzir poesia latina, fazendo referência aos autores clássicos em suas obras. Em virtude de seus poemas, alcançou grande reputação na Gália Merovíngia. Ele estaria entre os dois mundos, segundo o autor, em virtude de ser um representante da época clássica tardia e de uma nova era que se iniciava, a Idade Média. De acordo com esse estudo, é importante um maior aprofundamento de suas obras para o entendimento da cultura erudita nesse momento de passagem entre Antiguidade e Idade Média.

Nossa atual edição conta ainda com um provocante estudo poético-identitário acerca do hino nacional alemão (Deutschlandlied), efetuado por uma pesquisadora alemã, Profª. Andrea Grafetstätter, que desenvolve hoje seus trabalhos na França, na Université du littoral côte d’opale. Longe de se constituir em um manifesto nacionalista ou insistente na originalidade da letra do ilustrado filólogo e poeta romântico alemão August Heinrich Hoffmann von Fallersleben (1798-1874), a autora investiga as origens dos versos nas disputas retóricas entre trovadores franceses e alemães dos séculos XII e XIII. Eis mais um brilhante exercício presente-passado-presente, que confronta e desnaturaliza – como deve ser, efetivamente, o intuito da História – as construções nacionalistas do Romantismo oitocentista e seus corolários no século XX.

A contribuição dos emergentes estudos da Germanística medieval brasileira vem complementar o ensaio anterior, no presente volume, sob a pena de um de seus mais destacados pesquisadores, o Prof. Álvaro Bragança Júnior (UFRJ). A partir de um exercício não menos instigante passado-passado, o artigo apresenta os (des)caminhos ideológicos e os circuitos de apropriação e ressignificação político-ideológica do ideal de cavaleiro (o Ritter) das narrativas alemãs centro e tardo-medievais pelo discurso e, sobretudo, pela indústria de propaganda e doutrinação do III Reich, sob o totalitarismo nacional-socialista.

Já o texto da promisora doutoranda Maria de Nazareth Corrêa Accioli Lobato (UFRJ), valendo-se da análise comparativa entre a História da Cultura e a Teoria Literária, problematiza os aspectos ideológico e político das relações feudo-vassálicas presentes em uma narrativa inglesa do século XII, intitulada Esope. Conjunto de apólogos cujos enredos mimetizam as relações sociais estruturantes do contrato feudal, Esope ainda importa para a análise medievalística, como se evidencia ao longo deste alentado estudo, por denotar outro processo social. Trata-se aqui de um expediente retórico tipológico nos escritos medievais: a atribuição da composição do texto à auctoritas de um autor ou rhetor clásico, neste caso Esopo, como forma de atrair fortuna crítica e capilaridade social ao escrito.

No mesmo escopo e nas mesmas Ilhas Britânicas, mas a oeste da antiga Albion, finalizamos este Volume da Revista Brathair com um precioso ensaio filológico da Profª. Luciana Cordo Russo (IMHICIHU-CONICET / UBA), recordando-nos de que também é tarefa dos historiadores capturar as permanências e mudanças nos campos semântico e morfológico dos idiomas. São aqui tratadas, em cotejo com as narrativas celtas arturianas contidas nos Mabinogion, as venturas da adaptação galesa – mais que mera “tradução” – da Chanson de Roland (a Canção de Rolando), comumente associada à data aproximada de 1084. Além do interesse despertado pela análise filológica, este artigo aborda o exemplo inaugural do primeiro gênero retórico-poético propriamente medieval, a canção de gesta, sucessora das grandes epopeias do Mundo Clássico e lugar da memória estilizada dos feitos de cavalaria do Ciclo Carolíngio, que tanto influenciou a prtodução escrita popular no Brasil, com destaque para a região nordeste.

Convidamos nossos leitores a apreciar este conjunto de textos instrutivos, cativantes e que unem, com singular habilidade, um amplo recorte temático e preleções de método literário e historiográfico.

Boa leitura!

Referências

BARRETO, Bruno de Souza. Historiografia e Interfaces: um diálogo entre História, Antropologia e Arqueologia, Revista de Teoria da História (UFG). Ano 5, nº 9, jul 2013, p. 247-279.

JORGE, Vítor Oliveira. Arqueologia e História: algumas reflexões prévias. Homenagem ao Prof. Dr. Jorge Borges de Macedo, 1990. Disponível em: http: / / ler.letras.up.pt / uploads / ficheiros / 2210.pdf . Acesso em 20 / 05 / 2015.

PATLAGEAN, Evelyne. História do Imaginário. In: LE GOFF (Dir.). A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 291-318.

PESAVENTO, Sandra. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion. Arqueologia em Perspectiva: 150 anos de prática e reflexão no estudo de nosso passado, Revista USP, São Paulo, n. 44, dez-fev 1999-2000, p. 10-31.

Adriana Zierer – UEMA. École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2013-2014. E-mail: [email protected]

Marcus Baccega – UFMA. Pós-Doutorado Université Paris I, 2013. E-mail: [email protected]


ZIERER, Adriana; BACCEGA, Marcus. Editorial. Brathair, São Luís, v.14, n.2, 2014. Acessar publicação original [DR]

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Imigração, memória e identidade / Ágora / 2014

Neste dossiê, intitulado Imigração, memória e identidade, pretende-se discutir a imigração, a memória e a identidade a partir de perspectivas múltiplas. Neste sentido, Beatriz Vitar traz para o debate a importância das recordações e das vivências familiares e coletivas como elementos forjadores da identidade de um grupo. Para tal, utiliza o testemunho de um descendente de granadino assentado na Argentina. Leslie Nancy Hernández Nova analisa os sentimentos de pertencimento de diferentes gerações peruanas na Europa, com recorte nos mais jovens. Menara Lube Guizardi e Alejandro Garces propõem um estudo que vise compreender a migração nas nações andinas – Peru, Bolívia e Chile – numa dimensão macrossocial, económica e política. Maria Catarina C. Zanini reflete sobre alguns aspectos de cidadãos brasileiros, descendentes de imigrantes italianos, cuja cidadania italiana é legitimada pelo Estado italiano e a complexidade e os distanciamentos existentes entre o reconhecimento de direito e a cidadania de fato na Itália. Luis Fernando Beneduzi, partindo da trajetória de um brasileiro descendente de trentinos, residente na cidade de Trento (Itália), analisa este percurso ponderando sobre a interligação entre a realidade presente e a memória do passado vivido. Filipo Carpi Girão e Maria Cristina Dadalto partem de testemunhos de jovens integrantes de um grupo de dança folclórica italiana no estado do Espírito Santo, para buscar entender como se dá o aprendizado e a reconstrução das tradições a partir da dança. Edenize Ponzo Peres apresenta os resultados de um estudo de sociolinguística com descendentes de imigrantes vênetos residentes na comunidade de Araguaia, zona rural do município de Marechal Floriano, Estado do Espírito Santo. Assim, avalia que, se a identidade do falante para com os seus antepassados é importante para a manutenção de uma língua minoritária, o fator identidade não conseguiu superar a pressão da cultura majoritária, culminando no desaparecimento do vêneto.

Maria Cristina Dadalto –  Organizadora.

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Perspectivas da História Regional / Ágora / 2014

Apresentamos, neste número da Revista Ágora, o dossiê “Perspectivas da História Regional”. Trata-se de um esforço editorial pela reunião de estudiosos dessa abordagem historiográfica que, utilizando de instrumental teórico-metodológico e de escolhas de fontes muito particulares, privilegiam temas ligados a questões e problemas circunscritos, em geral, a locais e territórios específicos que, via de regra, são insuficientemente abordados na “grande” história.

A resposta que tivemos foi amplamente satisfatória, tanto porque o número de trabalhos versando sobre temas do Espírito Santo coloca a Ágora à proa de publicações que, fazendo jus pertencer ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, consegue atrair o interesse de autores que efetivamente se debruçaram sobre a história dessa parte do Brasil. E porque alinha no mesmo dossiê temas pouco ou nada dominados e nisso cumpre sua função divulgadora da história regional que aqui se produz. Trata-se, portanto, essa edição, de um dossiê capixaba.

A ordem dos trabalhos já demonstra nosso interesse também em pesquisas que extrapolam os liames temporais para os povos primitivos do território brasileiro e suas formas de vida pré-colonial. Em “Vasilhas duplas Aratu (macro-jê) em Sítio Tupiguarani: evidência de contato?” os arqueólogos e historiadores Neide Barrocá Faccio, Henrique Antônio Valadares Costa, Juliana Aparecida Rocha Luz, Diego Barrocá e Eduardo Pereira Matheus ali reunidos atualizam as pesquisas em sítios arqueológicos do norte do estado de São Paulo e apontam para a existência de contato entre os povos indígenas da tradição Aratu-Sapucaí e os da tradição Tupiguarani. A evidenciação de vasilhas duplas, características da Tradição Aratu-Sapucaí, em sítios Guarani, no vale do Rio Paranapanema paulista, reforça a hipótese dos autores de ter havido contato entre indígenas dessas distintas tradições, o que traz luz a pesquisas em arqueologia histórica, também realizadas em outras regiões brasileiras, inclusive no Espírito Santo, onde ocorrem ambas as tradições.

Adentrando diretamente o terreno da história colonial capixaba, a portuguesa Maria José dos Santos Cunha brinda-nos com o artigo “Maracaiaguaçu, O Gato Grande, aliás, Vasco Fernandes, ou o elogio do discurso evangelizador”, originado de seus estudos inéditos sobre patrimônio e riqueza dos jesuítas na capitania do Espírito Santo. A autora destaca, através da versão dos jesuítas que o conheceram, a figura pouco conhecida de Maracaiaguaçu, o chefe temiminó refugiado com a sua tribo, em 1555, na ilha de Santo Antonio. Da leitura dos textos jesuíticos despontam, paralelamente, a figura desse chefe, as alianças políticas, a visão edificante da conquista espiritual que justificava a evangelização. Seu trabalho permite-nos aceder ao espaço negocial entre conquistadores e indígenas, entremeado de mal entendidos e compromissos, cujo final era a integração dos indígenas no mundo colonial.

Na mesma linha elucidativa do mundo colonial, Anna Karoline da S. Fernandes e Luiz Cláudio M. Ribeiro, em “Poderes inferiores e política fiscal na capitania do Espírito Santo no período da monarquia dual (1580-1640)” circulam a contrapé do senso histórico comum que pensa a Monarquia Dual (1580-1640) como um período sem alterações administrativas em Portugal e buscam compreender a influência das formas de poder expressas nos novos órgãos de controle fiscal e da justiça daquele período Filipino na capitania do Espírito Santo. Tais órgãos, inseridos pelas reformas Habsburgo nos domínios portugueses durante a União Ibérica (1581-1640), visavam coibir o descaminho de mercadorias, controlar a arrecadação e aumentar os rendimentos régios. No Espírito Santo, a ação dos agentes desses órgãos de controle acabou por devassar as ilicitudes do provedor e do almoxarife da Alfândega e mercadores da capitania. Todavia, o artigo demonstra que, malgrado o endurecimento do controle, ocorreram alianças que resultaram no fortalecimento dos poderes locais na capitania. Tais alianças de poder econômico e político dividiam, na prática, o poder real que não dispunha de mecanismos para confrontar as ilicitudes cotidianas.

Fechando o período colonial, Helmo Balarini e Luiz Cláudio M. Ribeiro apresentam em “Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e a economia de mercês nas práticas administrativas da Capitania do Espírito Santo” uma análise da concessão de hábitos de Cristo, relacionando a prática do pedido e concessão de mercês régias à transição da administração de donatários “presentes” para donatários “ausentes”, fator determinante para a consolidação de uma “economia de mercês” na capitania, regendo a contratação de “servidores” para os postos da burocracia nas franjas do Império Português.

Em seguida, Leandro do Carmo Quintão, em “Estrada de ferro e territorialidade no Espírito Santo da Primeira República” enfoca no papel ferrovias construídas no estado do Espírito Santo durante a Primeira República para a configuração de uma territorialidade estruturada no fortalecimento da capital, Vitória, e de seu porto, em relação aos demais terminais portuários do estado. Utilizando-se de conceitos da geografia política, associados à análise histórica, o autor problematiza o papel das vias férreas em sua relação com a economia do café e sua inserção política dentro de um projeto de desenvolvimento regional vitorioso.

Já o artigo “Lutando com “Ordem e Disciplina”: o Sindicato dos Bancários do Espírito Santo (1934-1953)”, produzido por André Ricardo V. V. Pereira, foca as entidades classistas de trabalhadores e a fase inicial da organização sindical no Espírito Santo. Trata do Sindicato dos Bancários entre 1934 e 1953, quando se deu uma transição no comando político para um grupo hegemônico da entidade. Nesse momento, a principal liderança do Sindicato se filiou ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e se elegeu vereador na capital capixaba. O estudo de caso serviu como ilustração para que o autor discutisse as tensões e contradições reveladas naquela fase chamada de “modo de regulação populista sob condições do pós-fordismo periférico” ocorrido em entidades sindicais capixabas.

E para fechar o dossiê proposto, Diones Augusto Ribeiro apresentou seu estudo “Uma perspectiva conservadora do desenvolvimento econômico capixaba no pós-1964: o governo Arthur Gehardt e os Grandes Projetos de Impacto (1971-1975)”. Nele, o autor mergulha na sempre polêmica questão do desenvolvimento regional capixaba através da inserção da economia local no contexto do capitalista monopolista do século XX, em que diversas políticas públicas foram criadas com o objetivo de superar a dependência da cafeicultura através da industrialização e da diversificação da infraestrutura. Os Grandes Projetos de Impacto gestados no governo de Arthur Carlos Gehardt Santos (1971-1974) visavam adequar a economia regional à dinâmica oligopolista internacional, através da associação do capital público com o privado. O autor conclui que o desenvolvimento proposto pelas elites do estado naquele contexto não foram acompanhadas de reformas sociais e estruturais significativas, cujos efeitos atuais são principalmente a miséria e a violência endêmica, o que valida sua tese sobre a perspectiva conservadora do crescimento econômico ocorrido.

Na sessão de artigos livres, publicamos a contribuição de João Carlos Furlani, autor de “Usos do gênero biográfico na Antiguidade Tardia: educação e moral cristã em Vita Olympiadis” em que discute as possibilidades investigativas do gênero biográfico, com enfoque nos estudos da Antiguidade Tardia. O autor aborda a apropriação dos gêneros literários por autores cristãos e a sua produção textual, majoritariamente voltada para a disseminação das crenças cristãs mediante exaltação dos feitos de homens e mulheres. Para tanto, analisa as formas literárias de Vita Olympiadis, e aponta nesse documento o intuito educativo dos gêneros textuais apropriados ou transformados pelos cristãos.

Logo após, o artigo “O espiritismo em julgamento na Primeira República: análise de processo criminal enquadrado no artigo 157”, de Adriana Gomes, remete a uma importante discussão jurídica sobre a liberdade religiosa na Primeira República. Debruçando-se sobre um caso real de tipificação do espiritismo como crime contra a saúde pública, baseada no artigo 157 do Código Penal brasileiro de 1890, a historiadora analisa o julgamento do suposto crime, praticado no Rio de Janeiro, por Francisco José Viveiros de Castro, um dos mais notáveis magistrados brasileiros, que se apropriou de princípios da Nova Escola Penal para absolver os réus. A análise do discurso feito pela autora das argumentações sobre premissas jurídicas com características retóricas do juiz nesse processo criminal nos leva a compreender as motivações da criminalização do espiritismo e o posicionamento do magistrado na defesa da liberdade religiosa e de consciência no Brasil.

O último artigo apresentado é “O Programa Bolsa Família e suas condicionalidades: o que mudou na legislação?”, enviado por Roberta Rezende Oliveira e André Augusto Pereira Brandão, que fazem um interessante mapeamento das mudanças dos programas de transferência de renda que culminaram no Programa Bolsa Família, e focam na formulação de suas condicionalidades. Os autores apreciam a legislação federal que dá concretude ao PBF, entre 2004 e 2013, e verificam, com amplo domínio de dados empíricos, as mudanças na concepção das condicionalidades de acesso ao PBF. Verificam ainda se as condicionalidades impostas pela legislação para as famílias mais necessitadas acessarem os benefícios oferecidos tem caminhado de acordo com a provisão de serviços públicos básicos pelo Estado.

Também incluímos nesta edição uma resenha preparada por Fábio Luiz de Arruda Herrig para o livro Ervais em queda. Transformações no campo no extremo sul de Mato Grosso (1940-1970), de Jocimar Lomba Albanez, editado em 2013 pela Universidade Federal da Grande Dourados/MS. Em “A erva mate e a historiografia de Mato Grosso/Mato Grosso do Sul” Herrig demonstra como o autor da obra em tela analisa o processo de ocupação das terras e o contexto do mundo do trabalho na agropecuária no antigo sul de Mato Grosso e, mais especificamente, o movimento das frentes pioneiras, caracterizadas pelo alto investimento de capital e pela industrialização do campo, o que, em última instância, ocasionou o declínio da produção da erva-mate naquela região.

À conclusão, Júlio Bernardo Machinski traduziu com maestria o segundo capítulo do livro “Modernolatria” et “Simultaneità”: recherches sur deux tendences dans l’avant-garde littéraire en Italie et en France à la veille de la première guerre mondial (Uppsala: Svenska Bökforlaget/Bonniers, 1962), do historiador e tradutor sueco Pär Bergman que, em português, recebeu do tradutor o título “Breve panorama do movimento futurista (desde sua fundação até a Grande Guerra)”. Nessa passagem da obra, Bergman detalha as circunstâncias do surgimento do movimento futurista, investigando a gênese do manifesto publicado no Le Figaro em fevereiro de 1909, além do sentido político e social do termo “futurismo” e o papel das revistas Poesia e Lacerba na divulgação das ações futuristas. O autor aborda também a sujeição dos futuristas à ironia dos jornalistas da época em virtude da aposta desmedida no futuro, as polêmicas que envolveram a fundação do movimento de vanguarda e o caráter militar das iniciativas de recrutamento de novos adeptos. Por fim, Bergman destaca o papel de figuras-chave do movimento e a aproximação do futurismo ao fascismo.

Agradecemos a participação dos autores, a colaboração dos alunos, e também aos colegas professores do Núcleo de Pesquisa e Informação Histórica do PPGHis-Ufes a oportunidade para a organização deste “dossiê capixaba” de história regional. Esperamos que os artigos apresentados nesta edição da Revista Ágora cheguem ao público acadêmico e aos professores de ensino fundamental e médio, e que as amplas possibilidades da história regional se façam cada vez mais atrativas aos jovens pesquisadores brasileiros.

Luiz Cláudio M. Ribeiro –  Organizador.

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Dossiê: História Intelectual, Ética e Política /Ágora/2015

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Faces da História | UNESP | 2014

FACES DA HISTORIA1 Jamaxi

A Revista Faces da História (Assis, 2014-), exclusivamente eletrônica, tem por finalidade publicar artigos originais e inéditos, traduções, resenhas e entrevistas relacionadas aos estudos na área da História e das Ciências Humanas e Sociais. A revista aceita trabalhos submetidos por alunos de mestrado e de doutorado, bem como doutores e professores. Os trabalhos poderão ser redigidos em português, espanhol, inglês e francês. A qualquer tempo, a critério do Conselho Editorial, a revista poderá publicar números especiais. As diretrizes para autores encontram-se no campo que trata das submissões (clique em sobre e depois em submissões).

A revista não possui fonte de financiamento e é produzida a partir do trabalho voluntário dos discentes do programa de Pós-Graduação em História da UNESP de Assis.

Periodicidade semestral (junho e dezembro).

Acesso livre

ISSN 2358-3878

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A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950) / Durval M. Albuquerque Jr.

Podemos considerar Luiz Gonzaga como um dos muitos inventores do Nordeste, demonstrado em suas canções como lugar de tradições, do homem sertanejo sofredor em sua peleja cotidiana, enfrentando a seca, labutando na roça, lutando contra as agouras da vida. Esse mesmo sertanejo que se diverte e se encontra nos espaços das feiras nordestinas, um dos principais lugares de sociabilidade do homem nordestino, do comércio, da compra e venda “de tudo que há no mundo” e que “nela tem pra vender”.

Essa imagem caricata do Nordeste e do homem nordestino é refletida no último livro do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920 – 1930)3, vencedor do concurso Silvio Romero 2012 IPHAN/Conselho Nacional do Folclore e Cultura Popular.4 Atualmente, o autor é colaborador da Universidade Federal de Pernambuco e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Ao contrário do que se vê, se diz e se mostra, o autor propõe novas chaves de leituras e pesquisa sobre o Nordeste, espaço construído e delimitado já discutidos em outras obras.5 Como um lugar inventado a partir de um discurso que se repete hoje nos diversos meios de comunicação ao retratar, por exemplo, o Festival de Quadrilhas Juninas do Nordeste, ou Festival de Quadrilhas Juninas da Rede Globo Nordeste, ou ainda o Nordestão de Quadrilha, só para citar alguns casos, em que se representa a cultura legitimada por um discurso fabricador da imagem nordestina.

Em imagens, signos, são mitos de um lugar fabricado a partir do discurso de agentes que assumiram um posicionamento referente ao seu espaço regional. Conforme o estudo de Durval Muniz, que também teve motivos iniciais a partir de sua própria trajetória biográfica, ao trabalhar durante a adolescência em uma feira na cidade de Campina Grande no estado da Paraíba, e como homenagem a sua terra natal, por intermédio das reminiscências do espaço da feira como lócus privilegiado das muitas formas e significados elaborados sobre a cultura nordestina. A feira “da balburdia, do falario […] do aglomerado de pessoas, pela multiplicidade de vozes […] do mercado dos mais disparatados artefatos para serem consumidos” (p. 24) como cantado pelo rei do baião, Luiz Gonzaga.

Munido de um vasto referencial teórico,6 as questões sobre a fabricação do folclore e da cultura no nordeste, em um recorte temporal que não se restringe apenas as décadas de 1920 a 1950, mas que margeiam por temporalidades anteriores, num processo que se construiu desde o final do século XIX, época da crise dos setores agrários e a quebra do sistema escravista para o regime de trabalho livre no Brasil. Essa será umas das teses propostas por Albuquerque que pensa as manifestações folclóricas, os conceitos de cultura não como algo dado, mas como algo construído, desta forma, critica amplamente a historiografia que aborda o folclore e a cultura popular que “tende-se a confundir o conceito e a coisa, o conceito e a materialidade, o conceito e a empiricidade, o conceito e a forma” (p. 27).

Para Durval é necessário perceber a diferença entre conceitos e formas para se proceder a análise da operação discursiva que articula um e outro. Deste modo recorre aos estudos de Derrida (Pensar a desconstrução) e Foucault (Arqueologia do saber) para questionar a ingenuidade dos historiadores que faz com que normalmente confundam as empiricidades com os conceitos que as significam.

O livro é dividido em seis capítulos. No primeiro, “condições históricas de emergência”, o autor faz um inventário do processo de constituição cultural nordestina, como um novo objeto que será construído a partir de práticas e discursos, sejam eles da elite ou dos segmentos das camadas tidas como populares.

Ao delimitar o final do século XIX e início do XX como marco de profundas mudanças sociais no Brasil, surge nesse momento os primeiros usos da noção de cultura nordestina. Com o surgimento da sociedade burguesa e todas as distinções dos modos de vida que esta proporcionou, apresentando novos padrões de comportamento, nasce então uma “nostalgia pelo retorno a essa ordem social, vista como menos violenta, como mais harmônica e mais justa, e será partilhada por setores das camadas populares e das elites letradas, o que contribui para o encontro entre eles e com esse encontro a emergência da ideia de folclore ou de cultura popular” (p. 44).

As relações entre o regional e o nacional a partir da cultura legitimam-se quando o Estado Nacional assume com políticas econômicas as manifestações identitárias de cada região, sobretudo, se tomarmos como exemplo a partir do Estado Novo na década de 1930 e a criação de órgãos de proteção do patrimônio nacional.

No segundo capítulo aborda os mitos de origem da cultura nordestina interligada à construção da ideia de cultura brasileira quando se pensou um projeto de constituição da nação. Para o mito de origem do folclore ou da cultura nordestinos, e ao que parece o autor não faz distinção dos conceitos, toma como base a produção de folcloristas regionais. Uma bibliografia que aponta as primeiras obras que trataram da cultura nordestina ainda no século XIX, como as de Juvenal Galeno, Couto de Magalhães e Celso de Magalhães.

Os mitos de origem para os estudos de folclore e cultura popular estiveram atrelados a duas tradições influenciadoras nos estudos de folclore nordestino. Uma de inspiração romântica que, segundo o autor, estabeleceu a relação entre a cultura nacional e cultura popular, dando origem ao conceito de povo. No Brasil, Durval Muniz aponta o folclorista Juvenal Galeno como um dos precursores ao fazer uma genealogia dos estudos em torno da cultura nordestina. A segunda tem como representante Silvio Romero, de características positivista e evolucionista. Tais paradigmas tiveram grande recepção ao longo da produção folclórica no Brasil, tendo sido esses intelectuais os primeiros a fazerem uma releitura da bibliografia internacional, adaptando-as às pesquisas locais sobre a cultura do povo.

Tais tradições foram marcantes ao produzirem constante material para a elaboração da noção de cultura nordestina. A temática será retomada e explorada nos capítulos 04 e 05 quando o autor faz um levantamento dos dados biográficos dos produtores dessas obras e as fontes utilizadas como legítimas para a fabricação do folclore.

Os Acontecimentos no capítulo três referem-se aos casos e acasos dos primeiros autores que empregaram a denominação “Nordeste”, “Nordestino”. É importante destacar que o livro de Durval Muniz insere-se no contexto de análise da cultura escrita, por isso, não foge de suas interpretações do processo de fabricação da cultura nordestina, os procedimentos que, através da literatura regional, definiriam temáticas desta cultura.

É no processo de construção das obras e seus usos que o autor se debruça ao analisar os contextos de produção do livro do folclorista Leonardo Mota, publicado em 1921, com o subtítulo “poesia e linguagem do sertão cearense” e que em edição posterior a obra é apresentada como “poesia e linguagem do sertão nordestino”. Enquanto análise histórica, é preciso reconstruir as variações que diferenciam os espaços legíveis, ou seja, as formas discursivas e materiais, as leituras compreendidas como práticas concretas e como procedimento de interpretação7.

Ao tomar como análise a produção da obra de Leonardo Mota, Durval demonstra as variações que implicaram na ideia de nordeste incorporada nas obras dos folcloristas. A mudança do subtítulo deu-se, segundo Albuquerque, após encontros e debates que se firmaram em torno do Centro Regionalista do Nordeste criado no Recife durante a década de 1920 e que passou a disseminar essas questões. Outro autor é Gustavo Barroso e também o sergipano João Ribeiro que adota em livro publicado a denominação “Norte” para se referir ao que seria o espaço da região como um todo e, explicitamente, refira-se a “Nordeste” para designar a área de ocorrência das secas (p. 106).

Deste modo, percebemos o folclore em seu momento de fabricação, como algo inventado pelo próprio folclorista, num processo de (re) invenção, de criação (p.115). Ao citar diversos acontecimentos que dão conta da fabricação do folclore enquanto elemento constituinte de uma cultura nordestina, demonstrada a partir de autores regionalistas, onde definem seu lócus de atuação no espaço nordestino, para Durval Muniz, é “entre os anos 20 e 30 do século passado, que a emergência da ideia da existência de um folclore nordestino, de uma cultura nordestina, se afirma paulatinamente, até se tornar uma verdade inquestionável, um fato do qual ninguém mais escapa” (p. 117). O autor, assim, demonstra “genealogias de atitudes, práticas, ditos e escritos que vão paulatinamente dando forma a este novo objeto para o saber que é: o folclore nordestino, a cultura do Nordeste, mais tarde nomeados de cultura popular nordestina” (p. 117).

No capítulo 4, Os inventores, é lançado um ensaio de prosopografia dos letrados que adotaram os conceitos de folclore e de Nordeste. A prosopografia, segundo Giovanni Levi, ocorre nos casos em que as biografias individuais “ilustram os comportamentos ou as aparências ligadas às condições sociais estatisticamente mais frequentes”.8 Nesse capítulo, podemos perceber os laços de cooperação entre os folcloristas que adotaram a noção de folclore nordestino, ao passo em que fora analisado de modo geral “as atitudes e trajetórias individuais que terminam por configurar uma ação coletiva” (p.120).

O autor contextualiza com base nos estudos foucaultianos dos “pontos de cruzamento […] das redes de relações pessoais, sociais, culturais, políticas e intelectuais” (p. 121), ao buscar nos traços ou dados biográficos uma imagem de conjunto dos folcloristas responsáveis pela fabricação do folclore e cultura nordestinos.

A discussão inicialmente toma como base os quatro autores considerados pioneiros quanto ao tema do folclore do Nordeste: Gustavo Barroso, Leonardo Mota, José Rodrigues de Carvalho e Luís da Câmara Cascudo, buscando traçar um “perfil de conjunto”. Em seguida, confronta com os traços biográficos dos intelectuais que viveram anteriormente a estes citados, interessados pelo popular, que foram posteriormente por eles utilizados e citados como os precursores dos estudos do folclore nordestino, sendo eles Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa. Por último, traça os dados daqueles que deram continuidade ao trabalho, reafirmando e reatualizando o conceito de cultura nordestina, como Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maio, contemporâneos no século XX.

Os inventores da cultura nordestina, os chamados pioneiros têm em comum suas trajetórias o pertencimento às elites sociais e políticas de seus Estados, articulados por vínculos de parentesco e/ou compadrio com as oligarquias dominantes nestes espaços, demonstrando logo em seguida o perfil dos intelectuais inspiradores desse grupo, elementos de contato e de continuidade, seja pela formação seja pelo pertencimento do mesmo grupo social, político e cultural.

Já aqueles que se interessaram pelas formas e matérias de expressão das camadas populares e serviram de inspiração para os pioneiros, Juvenal Galeno, Celso de Magalhães, Silvio Romero e Pereira da Costa, têm como ponto comum o pertencimento à elite agrária decadente, onde em seus perfis elitistas demonstram um interesse inicialmente pelo estudo do popular. O autor coloca que os discípulos ou seguidores dos pioneiros foram os responsáveis por ampliarem, reafirmarem e darem legitimidade ao folclore nordestino, são eles: Ademar Vidal, Théo Brandão, Veríssimo de Melo e Mário Souto Maior. Estes acabaram por assumir a tarefa de elaborar o que seria o folclore e a cultura popular de seus Estados, “ao mesmo tempo em que vão inseri-los no interior da identidade regional nordestina […] estes folcloristas assumirão a tarefa de incorporar o folclore de sua terra natal no interior do que seria a cultura regional ou nacional”. Esse era o contexto de produção do folclore, ao passo que instituições foram criadas com parâmetros de nacionalização de uma cultura integradora9.

Durval Muniz a partir dessa prosopografia busca visualizar o lugar social de produção do discurso acerca da cultura nordestina. O autor ao selecionar os folcloristas limita a fabricação do folclore e da cultura popular nordestina aos espaços de sociabilidades desses intelectuais, particularizando em seus estados, como Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Alagoas. Talvez isso se justifique pelo acesso às fontes produzidas por eles, em grande parte produtores de uma vasta obra sobre a cultura popular. Apesar disso, o estudo abre possibilidades de se ampliar as discussões com base em novas pesquisas sobre os estados não contemplados ao longo do livro.

No sexto e último capítulo, o autor discorre sobre as trajetórias de alguns agentes populares que contribuíram também para a emergência do que seria a cultura nordestina. Ao visitar essas trajetórias, como a de Leandro Gomes de Barros, considerado o primeiro cordelista nordestino e o primeiro produtor de folhetos a viver do seu ofício, e a de João Martins de Athayde, outro ícone da poesia popular, ao montar uma tipografia e imprimir seus próprios versos, o autor considera-os parte de uma importante “indústria de folhetos”, resultante do processo de mudança capitalista emergente na sociedade do final do século XIX e início do XX, onde aproveitaram as oportunidades mercantis da cultura, para sua subsistência. A prática desses homens, que não faziam parte da elite decadente, demonstra, segundo o autor, como sendo “atividades que criam o novo, utilizando-se de e remanejando um arquivo de matérias e formas de expressão que conhecem e que está à disposição desses agentes culturais, a partir do aproveitamento das condições novas oferecidas pela sociedade urbana de mercado” (p. 201).

Deste modo, são ressignificados a própria noção de “popular” e “povo” que, para Albuquerque, acaba se tornando complexa quando se leva em conta somente o público para o qual eram dirigidos os folhetos ou cordéis, seus preços, temas, mas ao adotar, por exemplo, a condição ou origem social de seus produtores e/ou editores, “a noção de popular já não será tão adequado” (p. 217). Para o autor, isso é um reflexo da emergência de uma classe média baixa “fruto do declínio de setores das antigas elites rurais ou da ascensão de dados indivíduos das camadas populares […] nomeadas de tradicionais, folclóricas […] que gozarão de maior espaço de ação […] onde suas habilidades estarão voltadas para o sustento (p. 218), como é o caso de Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde e tantos outros de que não se tem um estudo específico.

Por fim, ao concluir um trabalho que deixa em aberto várias chaves de leitura e pesquisa, o autor lança uma crítica ferrenha aos estudiosos da cultura popular, sejam eles acadêmicos ou os próprios folcloristas. Durval Muniz critica o que ele chama de “síndrome de resgate” existente nos estudos de cultura popular ou organizações de grupos e manifestações classificadas como folclóricas, onde imperam a noção de resgatar das tradições, sem ao menos se fazer a crítica à volta ao passado através de manifestações populares no presente, tidas e entendidas por aquele como seriam praticadas anteriormente. A prática dessas manifestações no presente, tomada como a possibilidade de retorno do tempo, para Durval Muniz, é o principal mito com que opera essa síndrome.

Embora a crítica deste estudo esteja voltada às interpretações que se fazem do folclore e da cultura popular nordestina, o autor as reconhece como importante, pois permite a reflexão de todo o processo de fabricação da cultura, das práticas e operações as quais dão origem e significados e, consequentemente, implicam diversas formas de seu uso. Como último exemplo, podemos retornar ao rei do baião, como um de muitos que ao longo do século XX tornou-se um propagandeador da cultura nordestina fabricada pelos pioneiros e seguidores apontados ao longo da Feira dos mitos. Um livro indicado para os estudos sobre cultura escrita, sobretudo, do ponto de vista teórico-metodológica, onde o autor refaz os caminhos da pesquisa e seus métodos de análise, é fundamental para repensarmos os conceitos em torno do Nordeste. De maneira impactante, põem em questão estereótipos, “verdades” construídas.

Notas

  1. ALMEIDA, Onildo. A Feira de Caruaru In: Luiz Gonzaga. LP, 1957.
  2. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p.
  3. O Concurso instituído no ano de 1959 foi idealizado com o propósito de estimular a produção de conhecimento científico sobre os diversos temas do folclore e da cultura popular. Lançado anualmente por edital confere ao primeiro e segundo colocados prêmios pagos em dinheiro, prevendo-se, ainda, até três menções honrosas, selecionadas por comissão de especialistas indicados pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Disponível em: < http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=52> Acesso em: 29 junh. 2014.
  4. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino – de problema à solução (1877 – 1920). Campinas: Unicamp, 1988 (Dissertação de Mestrado em História); A invenção do Nordeste e outras artes. 5 ed. São Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 2011.
  5. Jaques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Michel de Certeau, Reinhart Koselleck e outros.
  6. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora UNB, 1994.
  7. LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da História oral. 8 ed. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006, p. 168-169.
  8. Para mais detalhes sobre o processo de institucionalização dos folcloristas, cf. ORTIZ, Renato. Cultura Popular: Românticos e Folcloristas. Editora Olho d’água, S.D; VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947–1964). Rio de Janeiro: FUNARTE: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

Valério Rosa de Negreiros – Mestrando em História Social. Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói. Rio de Janeiro. Brasil. [email protected].


ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A feira dos mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920 – 1950). São Paulo: Intermeios, 2013, 246 p. Resenha de: NEGREIROS, Valério Rosa de. Outros Tempos, São Luís, v.11, n.18, p.318-324, 2014. Acessar publicação original. [IF].