Uma História Rompida: Roma Antiga e Ocidente Moderno | Aldo Schiavone

A tradução pela Edusp de Uma História Rompida, livro do renomado acadêmico italiano Aldo Schiavone, deve ser comemorada por todos aqueles interessados no desenvolvimento dos estudos do mundo antigo em nosso país. Schiavone é um dos mais importantes membros do renomado grupo de historiadores da antiguidade e arqueólogos ligados, entre 1974 e 1980, ao Seminário de Estudos Clássicos do Instituto Gramsci, na Itália. A produção dos membros de tal grupo é das mais importantes para os estudos da história social e econômica da Roma Antiga, sendo muito influente, inclusive, nos programas de pósgraduação em História no Brasil. Porém, pela ausência de traduções para o português (ou mesmo espanhol ou inglês) de suas obras, tais autores continuam distantes dos estudantes da graduação. Portanto, essa tradução é um excelente início para a solução deste problema. Ademais, Uma História Rompida é um livro com todos os ingredientes para se tornar um clássico, pois possui uma tese inovadora, inteligente e potencialmente polêmica.

A origem do argumento do livro está na antiga discussão acerca da crise e do fim do Império Romano – tão antiga quanto o fascínio que mundo mediterrânico clássico exerce sobre estudiosos e diletantes na área. Não é mera coincidência que a primeira grande obra da moderna historiografia ocidental seja uma monumental tentativa de resolução desta questão, História da Decadência e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon.

Entretanto, o questionamento acerca do fim do mundo antigo tem sofrido metamorfoses ao longo dos últimos cem anos de rupturas e transformações historiográficas. A concepção modernista de que o a Idade Média teria sido um longo intervalo entre épocas de desenvolvimento simétrico, a Antiguidade e Modernidade, ruiu. Por um lado, a antropologia econômica, principalmente a partir de Karl Polanyi, mostrou a diversidade da realidade econômica entre as diferentes sociedades humanas. Por outro, a partir de Moses Finley, boa parte da historiografia anglo-saxã dedicada à história econômica e social do mundo romano rechaçou veemente a possibilidade de comparação quantitativa ou qualitativa entre as economias modernas e a economia romana.

Além disso, a própria idéia de ruptura entre o mundo antigo e o início do mundo medieval foi severamente questionada por estudiosos especialistas na Antiguidade Tardia, como Peter Brown. Schiavone não é insensível a tais problematizações. Contudo, acredita que a antiga questão mantém sua validade. Se realmente as economias antiga e moderna são incomparavelmente distintas, isso não significa que, dentro de sua própria lógica, a economia romana não possa ter conhecido um desenvolvimento significativo. Se realmente a antiguidade tardia demonstra linhas de continuidade importantes com o mundo romano, isso não significa que o colapso do mundo romano não seja uma realidade sensível e uma catástrofe histórica de dimensões monumentais.

Schiavone inicia a obra demonstrando uma sensibilidade ambígua entre os membros elite imperial no século II d.C.: percebia-se o presente como uma época de ouro nunca antes alcançada, ao mesmo tempo em que não se tinha maiores perspectivas de desenvolvimento para o futuro – o qual seria na melhor das hipóteses um presente continuado. Isto é, o apogeu do Império Romano foi vivido como tal por sua elite, e inexistia qualquer perspectiva de progresso, de expansão de tal desenvolvimento. Esta é, para Schiavone, a questão central: mais do que entender o fim do mundo romano, Schiavone pretende entender o momento anterior, o momento da estagnação deste mundo. Seu questionamento se centra no porquê de o mundo romano não ter se desenvolvido em outro sentido que não o da estagnação, no porquê de o mundo romano não ter tomado seu próprio caminho rumo ao desenvolvimento econômico, social e tecnológico e no porquê de apenas após a catástrofe de sua queda, a Europa, a partir da Baixa Idade Média, tomou tal caminho. Com estas questões como foco, Schiavone traça uma longa trajetória argumentativa.

Sua primeira preocupação é com a caracterização da economia romana. Schiavone concorda com a percepção de Finley de que a economia no mundo antigo está “invisível”, e acredita que duas hipóteses podem explicar isto: o fato de o trabalho no mundo antigo estar associado a uma realidade oprimida e discriminada, já que associada ao trabalho compulsório; e o fato de que a economia não existia enquanto campo autônomo da realidade. Porém, ressalta Schiavone, a distância da realidade econômica romana para suas congêneres modernas não invalida a possibilidade de estudo econômico da antiguidade. O sistema romano também tem suas regras de funcionamento e podemos tentar encontrar seus códigos descritivos. Com esta afirmação, Schiavone pretende, ao mesmo tempo em que concorda em aspectos fundamentais com Finley, distanciar-se da ortodoxia finleyriana. Certamente a economia romana não pode ser descrita em termos modernistas, mas isto não significa que ela dever ser descrita em termos minimalistas (isto é, destacando-se as ausências e os limites de tal economia).

Schiavone, para fugir da dicotomia entre as posturas primitivista e modernista, propõe uma abordagem interessantíssima para a economia romana: caracterizá-la como uma economia dual. Dois setores interdependentes, mas autônomos, conviviam: um setor ligado à economia camponesa e outro ligado aos grandes circuitos mercantis. É neste segundo setor que Schiavone identifica um desenvolvimento a partir do século III a.C., que encontrará seu apogeu entre os séculos I a.C. e II d.C. Este desenvolvimento está intimamente ligado à conquista imperial. A guerra, segundo Schiavone, constitui-se uma atividade produtiva para o sistema romano, a mais eficiente das atividades produtivas. As novas oportunidades de enriquecimento estimularam mudanças na mentalidade econômica das elites romanas. Porém, este desenvolvimento e esta transformação na mentalidade econômica não tiveram as mesmas características das transformações similares na Europa moderna que deram origem à Revolução Industrial. Isto por que Capital Comercial e Capital Industrial nunca se associaram decisivamente no mundo romano. O desenvolvimento mercantil nunca estimulou uma transformação qualitativa de grande envergadura na produção. Esta cisão determinava que todo crescimento que a economia romana pudesse experimentar seria portadora de uma deficiência genética. A economia romana só poderia experimentar o que Schiavone chama de “desenvolvimento fechado” ou “crescimento sem modernização”.

Mas qual seria a razão para tal cisão? Schiavone acredita que a relação entre três aspectos estruturais da realidade antiga nos dão a explicação: a difusão da escravidão-mercadoria, a desvalorização do trabalho e da materialidade transformadora e o déficit mecânico (tecnológico) nos processos produtivos. Schiavone se preocupa em mostrar a interrelação entre os três aspectos evitando determinações unilaterais entre eles. Desta forma, a inexistência de desenvolvimento tecnológico produtivo não é conseqüência da expansão da escravidão. Da mesma forma, a desvalorização do trabalho não é a causa do desenvolvimento da escravidão, nem vice-versa. Porém, estes três processos certamente se retro-alimentam. Schiavone acredita que a origem destes aspectos fundamentais, que cingiram o desenvolvimento filosófico, cultural e social do desenvolvimento econômico e tecnológico no mediterrâneo antigo, foram os resultados particulares, na longa duração, desta região para as conseqüências da Revolução Neolítica. Ao se verem desobrigados do trabalho cotidiano para garantirem sua subsistência, os membros da elite social desta região voltaram às costas para o mundo da produção. “A nova civilização formava-se no seio do primado do eu interior e do laço político em detrimento dos aspectos materiais da vida” (p.228). O mundo material era relegado ao plano da condição servil, sendo a liberdade constituída na socialização da polis. A vida da elite era política e não econômica. A difusão da escravidão, a recusa do trabalho e ausência de máquinas criaram, a partir desta condição, um ciclo vicioso dificilmente rompível sem uma verdadeira ruptura de época.

Porém, Schiavone não acredita que tal ruptura fosse impossível. Em sua opinião, os romanos poderiam ter encaminhado sua história por uma via diferente desta do crescimento sem modernização que acabaram por tomar. O momento de expansão imperial e consequente crescimento econômico, nos séculos finais da era antes de Cristo, teria sido um “raro momento de criatividade” na história, no qual as limitações estruturais da sociedade romana poderiam ter sido superadas por importantes transformações históricas. Muitos historiadores “modernistas” identificaram os grupos médios italianos em ascensão no século final da República como burgueses. Esta identificação certamente é incômoda por seu teor anacronizante, mas Schiavone crê que tais grupos possuíam um caráter progressista (mesmo que não similar ao das futuras burguesias européias). Uma possível “revolução municipal” poderia ter levado estes grupos a uma posição dirigente, o que poderia ter levado a história romana para caminhos bem diversos. Porém, estes grupos nunca chegaram a se organizar em torno de um programa efetivo. No momento em que esta possibilidade parecia mais próxima, no século I a.C., as grandiosas conquistas imperiais deslocaram o eixo do império para fora da Itália. A vitória de Augusto e suas soluções para a reorganização imperial tiveram, para Schiavone, um caráter de “revolução passiva” contra os grupos médios que poderiam ter assumido um caráter progressista. “Perdida a ocasião de uma virada, o sistema romano chegou, no espaço de poucos séculos, ao ponto extremo que podia atingir” (p.282).

Alguns meandros da trajetória argumentativa de Uma História Rompida merecem alguma atenção e crítica. Schiavone aborda três elementos fundamentais de interpretação da economia mediterrânica clássica, a escravidão-mercadoria, a desvalorização do trabalho e o déficit tecnológico de uma maneira inteligente: negando determinações unilaterais. Estes três elementos, portanto, se fortaleceram historicamente através de uma retro-alimentação e possuem suas origens nas conseqüências tipicamente mediterrânicas da Revolução Neolítica. De certa forma, Schiavone está ecoando, aqui, a ideia de Marx e Engels de que a divisão do trabalho surge com a divisão entre trabalho material e trabalho espiritual, que permite à consciência “emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. ‘puras’ ”[2]. No entanto, é impossível não interrogar as razões deste desenvolvimento específico da história mediterrânica frente às novas condições materiais impostas pela Revolução Neolítica. Por que, ao se ver livre do trabalho cotidiano, a elite desta região voltou às costas aos aspectos materiais da vida e se focaou nos laços políticos? Schiavone não levanta tal questão. Talvez o caminho para a resposta desta pergunta esteja em pensar justamente a relação do campesinato com o corpo político da cidade-estado, em um primeiro momento (como Ellen Wood ressalta), e as potencialidades da expansão e exploração imperial enquanto atividade econômica, em um segundo momento (aspecto presente mas pouco explorado em um capítulo anterior ao desta discussão, em Uma História Rompida).

Outro ponto que merece destaque no livro é o uso do conceito gramsciano de “Revolução Passiva”. Não devemos, certamente, criticar a utilização de conceitos pelo simples fato de não terem sido forjados para a realidade para o qual foram cunhados. A crítica ao uso de conceitos deve ser feita pela análise concreta deste uso pelo historiador, e é isso que pretendo. Schiavone descreve um processo no qual o grupo dominante tradicional, em crise, amplia suas bases (inclusive espacialmente, com a inclusão de elementos provinciais em suas fileiras) e reconstrói o sistema político, freando assim a ascensão de um grupo fortalecido com as transformações e que era o elemento “progressista”, modernizante daquela sociedade. As revoluções passivas são, para Gramsci, uma ferramenta da modernização capitalista. Desta maneira, a utilização do conceito por Schiavone vai de encontro frontal ao pensamento gramsciano, pois a revolução passiva augustana que ele descreve teria na verdade exatamente impedido um processo de modernização que o próprio Schiavone arrisca chamar de protocapitalista. A Revolução Passiva é um conceito útil para pensarmos realidades nas quais o grupo “progressista”, modernizante, se alia às classes dominantes tradicionais a fim de implementar transformações necessárias ao seu pleno desenvolvimento sem necessitar de uma perigosa aliança com os elementos populares. Nada disso acontece no modelo de explicação de Schiavone para a crise da República, muito pelo contrário.

De qualquer forma, a tese de Schiavone é tão inovadora quanto polêmica – e, acima de tudo, intrigante. Esta é a grande qualidade de Uma História Rompida: é um livro que estimula novas perguntas e, portanto, novas pesquisas. Não é preciso concordar com o argumento central do livro para reconhecer esta qualidade na obra e sua “candidatura” a futuro clássico tanto no tema da queda do Império Romano quanto da historiografia econômico-social do mundo antigo.

Notas

2. Karl Marx e Friedrich Engels. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p.35-36.

José Ernesto Moura Knust – Mestrando no Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal Fluminense.


SCHIAVONE, Aldo. Uma História Rompida: Roma Antiga e Ocidente Moderno. Tradução de Fábio Duarte Joly e revisão técnica de Norberto Luiz Guarinello. São Paulo: Edusp, 2005. Resenha de: KNUST, José Ernesto Moura. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.6, p. 205-210, jan. / jun., 2010.

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