O nascimento do Brasil e outros ensaios: pacificação, regime tutelar e formação de alteridades | João Pacheco de Oliveira

O presente trabalho trata-se de uma resenha sobre o prefácio da obra O nascimento do Brasil e outros ensaios: pacificação, regime tutelar e formação de alteridades, cujo o autor é João Pacheco de Oliveira, antropólogo e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicada no ano de 2016, segundo Oliveira, o livro reúne textos escritos nos últimos anos para eventos e conferências das quais ele foi convidado por colegas historiadores, explicitando que seu objetivo não é ordená-los de forma cronológica ou de modo casual, e sim atribuirá cada tema/capítulos olhares específicos numa perspectiva etnográfica, levando em conta alguns episódios históricos, a fim de discutir as inúmeras formas de agência e participação indígena na construção da nação brasileira.

É possível perceber como o autor se posiciona no que tange a dicotomia entre a História e a Antropologia, demonstrando que é possível dialogar entre as duas áreas, lembrando que um dos seus objetivos é recolocar as populações indígenas como agentes efetivos, ou seja sujeitos que agem, operam e atuam na construção do Brasil, para isso é necessário ir além dos instrumentos da etnografia, como por exemplo o estudo das relações e ações somente do presente, é preciso olhar o passado, estudá-lo, examiná-lo a partir de outras abordagens, como o próprio autor afirma: “[…] longe de se limitar, assim, de um exercício circunscrito de história indígena, etno-história ou etnologia indígena, os artigos desse livro constituem exercícios de uma antropologia histórica” (p. 08), enfatizando ainda as relações e outras forças que compõem a sociedade.

Desse modo o prefácio, após uma breve apresentação sobre tema e algumas explicitações– como as colocadas anteriormente –, divide-se nos seguintes tópicos: as autorrepresentações nacionais e a história oficial; uma alteridade que anistia a colonização e a desigualdade; o “nascimento do Brasil” – força e limites de uma autorrepresentação; a fronteira como guerra permanente e negação dos direitos; a tutela como poder e silenciamento do outro; as múltiplas formas de produção da desigualdade; e por fim, os múltiplos regimes de alteridade. Destaca-se ainda a utilização do conceito antropologia do colonialismo (p.10), ou seja, a como a antropologia de certa forma prestou serviços aos colonizadores.

Algo que se destaca é a utilização do conceito autorrepresentação, ao afirmar que assim como os mitos de origem, estão sujeitos a reapropriações, ou seja, suas mensagens e informações variam de acordo com os contextos, e até mesmo a permanência de algumas ao longo da história são perpetuadas por algum motivo, seja político, ideológico, cultural, em função de poderes, entre outros. Nesse sentido as narrativas que perpassam os séculos e encontram-se enraizadas nas mentes dos brasileiros revelam preconceitos e até mesmo a desconhecimento acerca das lutas e genocídios indígenas, existe uma ressignificação da história, uma distorção dos fatos, um poder central responsável por isso, a história oficial remonta o passado de acordo com a memória que deseja relembrar ou o que deve ser esquecido. Um exemplo disto são as cenas de fundação do país e participação dos indígenas nesse processo, Oliveira (2016) faz menção ao brade Varnhagen (1978) [1854], intitulada História Geraldo Brasil, onde a presença indígena é vista algo exótico, algo ao acaso, um acidente.

Ao passo que as populações afro descentes foram alvo de estudos, análises e pesquisas sociológicas, assim como obras sobre as diásporas africanas, o mesmo não acorre com a população nativa (indígena), o autor apresenta dois motivos para explicar tal situação, “[…] primeiro, pela situação de exclusão marginalidade […] avaliados segundo interesses e preconceitos das elites como inferiores e primitivos […]” (p.12), a segunda razão diz respeito ao trabalho dos antropólogos, que preocupavam-se em isolar essas populações em sistemas à parte do processo de colonização, sujeitos primitivos, que deveriam ser preservados, reduzindo-os à categoria de peças de museus, teses e livros, como um objeto exótico. Os grandes intelectuais excluíram de seus estudos como as coletividades indígenas resistiram, se (re) organizaram, como suas culturas perpassaram tantos séculos e tantas atrocidades; a diversidade cultural– que tanto inspirou os antropólogos – e o isolamento indígena não decorre de um simples acaso perdido no tempo/espaço, pois possuí uma historicidade, agentes, e responsáveis, em ambos os casos.

Ao contrário do que foi ensinado na rede básica, que mostra os antropólogos como os grandes intelectuais, desbravadores e em alguns casos heróis – não questiona-se aqui o mérito de suas produções, no entanto esses não podem ser vistos como sujeitos neutros e imparciais –, Oliveira (2016) afirma que esses estudiosos podem ter contribuído em favor

dos colonizados, fornecendo informações e extensas descrições sobre as populações indígenas. Destaca-se ainda o seguinte trecho “[…] no Brasil, as formas atuais de intervenção do Estado em face dos povos indígenas continuaram a ser descritas de maneira eufemística como ‘proteção’ e ‘assistência’ […]” (p.16), revelando como ações tidas como ‘do período colonial’, ainda estão engendradas em nossa sociedade.

A pintura que até pouco tempo iniciava história do Brasil nos livros didáticos, intitulada A primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles, pintada em Paris, desembarcou no Brasil em 1861 e muito celebrada durante o Segundo Reinado, logo se tornou a imagem oficial do ‘nascimento do país’. Como mencionado anteriormente, a imagem passa uma mensagem, e que esta não se dá de forma imparcial, e nesta obra os indígenas aparecem como meros espectadores da história do Brasil e da própria história, ao passo que os portugueses concentram-se na celebração, atentos e comprometidos, a cena transparece tanta tranquilidade, onde cada sujeito tem o seu papel bem definido sem interromper o outro, o que de fato não ocorreu, não demorou muito para que os indígenas se tornassem um empecilho na cena, na história e no progresso da nação, assim como os europeus interferiram significantemente na organização e história dos primeiros habitantes desse território.

A cena tranquila que aparece na pintura tem sido bastante questionada nas últimas décadas – levando em conta o protagonismo que os povos indígenas veem galgando em diversos espaços –, explicitando o que Oliveira(2016) intitula como O Brasil real no qual as produção de riquezas relaciona- se com a escravidão indígena, à expropriações de suas terras, à destruição dos recursos ambientais e ao genocídio de homens, mulheres, crianças, culturas, línguas, saberes, entre outros, esta é a base que sustenta a construção da grande nação brasileira. Os grandes europeus civilizados que exterminaram em nome de Deus e da Lei, durante o processo de “pacificação”, numa tentativa de justificar o permanente estado de guerra.

As construções de imagens mostram-se um caminho possível para compreender as visões que se tinham acerca dos povos indígenas e da região amazônica, que ainda hoje permanecem no imaginário de muitos brasileiros, como o mito do ‘vazio demográfico’ e o ‘inferno e/ou paraíso verde’. Muitos são os mitos e narrativas criadas para justificar ações em determinados contextos, assim como a ideia que os sertões deveriam ser ocupados e explorados, sobre a população autóctones deveria existir uma permanente

vigilância, práticas punitivas, pois eles consistiam naqueles que tinham que ser tutelados, ou como o mal a ser exterminado/erradicado.

Oliveira (2016) escreve uma frase impecável “[…] novas pacificações podem ser ditas como necessárias, e consideradas, portanto, como justificadas” (p. 19), a expansão territorial e econômica não é alcançada por meio de discurso de criminalização e violação do outro – atualmente pode-se ouvir esses discursos abertamente no anonimato das redes sociais, ou em falas extremistas e/ou discursos de ódio –, comumente se dá por meio de falas como ‘avanço da humanidade’, ‘ordem e progresso’, tornando práticas desumanas, repressivas e genocidas justificadas.

Outra ideia marcante diz respeito ao poder polimórfico, segundo o autor “[…] a condição de tutor não é somente uma ferramenta para o cumprimento de finalidades econômicas, morais ou religiosas; ela outorga a alguém um poder de mando múltiplo e polimórfico, frequentemente exercido sobre outrem sem qualquer limite […]” (pp. 19-20), no entanto discordamos em parte, quando autor diz que esse poder não fazia parte das motivações originais dos colonizadores, tendo em vista suas ambições por minerais preciosos – em parte inspirados pelas histórias de Marco Polo, El Dorado, como a busca por riquezas –, é perceptível ar de superioridade que aspiravam frente ao Novo Mundo e suas populações, ‘abençoados’ pelo Papa, o território era de ‘direito’ deles e poderiam ‘colonizar’, ‘desbravar’, ‘explorar’, exercer poder(es).

Sobre essa ótica as imagens sobre a América consistiriam em uma mulher desnuda e ‘propicia’ a ser violada, explorada e domesticada, ao passo que a colonização é tida como uma figura masculina responsável por essas tarefas. Como visto na pintura de Américo Vespúcio, que mostra a América como uma jovem pagã e canibal, deitada em uma rede surpreendida pela chegada de um homem europeu, civilizado, vestido, com uma estandarte da Espanha católica1, Oliveira (2016), conclui “[…] assim os colonizadores pretendem justificar a conquista não como um exclusivo ao de força ou de rapina, mas como um dever ético e político, o anúncio de uma boa nova, que deveria ser docilmente acolhida e valorizada pelos nativos” (pp.20-21) [grifo nosso]. No entanto não conseguiram sozinhos a expansão territorial e demográfica, eles incorporaram mulheres e crianças indígenas, que segundo o autor “constituindo uma camada de mestiços (‘mamelucos’), que iria desempenhar papéis econômicos importantes e militares fundamentais […]” (p.22).

De certo existem muitos outros aspectos, principalmente entre os séculos XVII e XVIII, no entanto o que buscamos destacar é como mecanismos da conquista perpassaram esse processo, resultando discussões que fazem alusão ao período colonial, mais ainda estão latentes no Brasil contemporâneo, de certo que existe muito a ser desconstruído e revisto, as violências, preconceitos e segregações ainda permeiam vários segmentos da nossa sociedade, porém assim como o autor buscamos ressaltar, faz-se necessário explicitar o protagonismo das lutas e resistências dos povos indígenas, que durante o processo de colonização tiveram suas vozes substituídas por imagens distorcidas, sujeitos à terríveis atrocidades, e contudo atualmente 80,5% dos municípios brasileiros residi pelo menos um indígena autodeclarado, no Norte a proporção é de 90,2% de pelo menos um indígena autodeclarado, no estado do Amazonas são 168.680 indígenas autodeclarados – os ‘índios isolados’, ainda não estão incluídos nessas taxas2. Bem como as ações pela igualdade racial e de gênero, reconhecimento de terras, políticas e legislações, lutas e conquistas baseadas numa História que sangra.

Referências

OLIVEIRA, João Pachecode.O nascimentodo Brasil e outros ensaios: “pacificação, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Conta Capa, 2016. pp. 07-41.

Sandy Maria G. de Andrade


OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Conta Capa, 2016. pp. 07-41. Resenha de: ANDRADE, Sandy Maria G. de. O nascimento pungente da grande nação brasileira. Das Amazônias – Revista Discente de História da UFAC, Rio Brancov.1, n.1, p.89-93, ago./dez., 2018. Acessar publicação original. [IF]

 

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