Historia de las clases populares en la Argentina desde 1516 hasta 1880 | Gabriel di Meglio

O livro em tela partiu de um projeto iniciado em parceria com Eduardo Adamovsky, cuja intenção era lidar com o tema em um recorte que iria até os primeiros anos do século XXI. Desdobrado em dois, o primeiro volume foi elaborado por Gabriel di Meglio, e aborda a ação das classes populares na Argentina entre os séculos XVI e XIX. É a obra de Meglio, doutor pela Universidad de Buenos Aires, onde também leciona História Argentina do século XIX, que vou apresentar ao leitor.

As duas questões centrais o livro são anunciadas no próprio título. Com qual noção de classes populares se está lidando? E o que é a Argentina antes da unificação sob um Estado nacional? Embora anunciada, a segunda questão não foi enfrentada. É o tema das classes populares na História que norteia o livro.

No ensaio bibliográfico, o autor lista e comenta as obras que subsidiaram sua reflexão. Ali, temos uma ideia do vigor da produção historiográfica argentina, sobretudo a de tempos mais recentes, e também encontramos uma referência que serve de pista para as opções de interlocução feitas por Meglio no desenvolvimento da obra. Ao remeter a denominação “classes populares” primeiramente a um artigo de Eric Hobsbawm, parece estabelecer-se um parentesco entre esta obra e a História Social praticada pelo grupo de historiadores marxistas ingleses dos quais Hobsbawm foi um expoente, particularmente por lidar com longas periodizações e pelo seu interesse em história dos camponeses e dos operários. Mas creio estarmos mais próximos de um parentesco com a chamada História Popular, na qual a agência das classes populares é definida prioritariamente a partir do Estado e das instituições afeitas a ele.

O recorte temporal, da chegada dos primeiros europeus ao surgimento da “Argentina moderna” em 1880, abrange um território que hoje denomina-se Argentina, mas que eventualmente inclui também outras regiões platinas, como Uruguai e Paraguai, reunidos no Vice-Reinado do Rio da Prata no tempo da colonização. O uso do termo para lidar com essa periodização cumpre funções didáticas: trata-se de uma Argentina antes da Argentina, o que pressupõe um pacto com o leitor para que a leitura possa fluir. Meglio quer tratar, aqui, da “história da gente comum, a que formava a base da pirâmide social, daqueles cujas recordações se perderam ou são difíceis de recuperar, de quem não tem ruas que levem seus nomes”. O resultado disso é apresentado cronologicamente e em duas partes.

Na primeira parte, dividida em quatro capítulos, é abordado o período colonial, entre 1516 e 1810. A segunda parte debruça-se sobre o século XIX (1810-1880), e conta com três capítulos sobre o período pós-independência.

O fato inaugural do primeiro capítulo é a expedição de Juan Díaz de Solís, em 1516, marcada pelo confronto com os charruas que levaria Solís à morte em território hoje pertencente ao Uruguai. O fato não é inaugural apenas cronologicamente, mas demarca simbolicamente como seriam as relações entre os invasores europeus e os nativos americanos. Esse é o objeto do capítulo, tendo como personagens os guaranis, os guaicurus, os ava e outros povos, bem como a centralidade de Assunção e do Peru para os estabelecimentos coloniais posteriores na bacia platina (Santa Fé, Buenos Aires e Tucumán, entre outros). Em que pesem as alianças (nem sempre cumpridas) firmadas com os índios, os espanhóis tiveram dificuldades em ocupar terras, em especial as mais elevadas. O empenho destes últimos não foi tão decidido como ocorreu nas áreas mineradoras do México e do Peru, o que tornaria o Rio da Prata uma região marginal no contexto do Império castelhano na América até o fim do período colonial. Ainda assim, a divisão da sociedade em dois grandes grupos – os espanhóis que mandavam e os “índios” que obedeciam – “foi a origem da sociedade hispano-criolla da qual provem a Argentina. E, também, foi a origem de suas classes populares”. No decorrer do século XVI, essa sociedade se tornaria mais complexa, com a chegada de mais colonos vindos da península e a criação das “repúblicas” estratificadas de índios e de espanhóis, permitindo o acesso dos colonos à mão de obra indígena. Logo, os mestiços entenderiam que seu lugar naquela sociedade não era definido facilmente.

Desiguais ante à lei, o segundo capítulo, define as dificuldades enfrentadas pelas classes populares nos séculos XVII e XVIII, nessa altura compostas por “um variado conjunto integrado por indígenas, africanos e seus descendentes – escravos ou livres – e distintos tipos de mestiços”. Na relação com os indígenas, tentava-se impor a transformação deles de membros de uma sociedade nativa em camponeses individuais. O tempo é a primeira metade do século XVII, quando boa parte da região de Tucumán ainda estava fora do controle colonial e prestes a se tornar cenário de uma guerra na qual a ação do aventureiro espanhol e falso inca Pedro Bohorques acabou amplificando a resistência indígena, o que levou à destruição das missões jesuítas na região. Desde fins do século XVI, a tendência era a da extinção da organização tradicional dos povos nativos, com as exceções de Jujuy e Santiago del Estero, cujos habitantes conseguiram utilizar as leis e justiça a seu favor contra a obrigação de prestar serviços pessoais aos invasores. Censos do século XVIII indicam a recuperação numérica da população indígena num quadro de reforma da tributação, abarcando um número maior de moradores, sobretudo índios que vivessem ou não em seus lugares de origem. Enquanto em Buenos Aires a população indígena declinava rapidamente, ao longo dos outros rios da bacia platina a Companhia de Jesus ampliava sua ação missioneira entre os guaranis, inclusive para fixar limites com os domínios portugueses. Fugas e rebeliões eram comuns nas missões, onde a rigidez das normas, os ataques de colonos vindos da América portuguesa, as epidemias e a fome tornavam a vida ainda mais dura. Ao mesmo tempo, grupos de indígenas não reduzidos ocupavam o Chaco, o Pampa e a Patagônia, evitando “serem convertidos em parte das classes populares do sistema colonial” e dominando as técnicas da guerra com cavalaria. A escravidão era central nessa sociedade, e a ela foram submetidos guaranis, araucanos e africanos introduzidos em Buenos Aires desde o tempo da união das Coroas ibéricas, e mais tarde vindos de Colônia do Sacramento, tanto por via direta como a partir de portos do Brasil. Os números não são exatos, mas milhares de africanos escravizados chegaram ao Rio da Prata entre 1580 e 1777. Por sua vez, os mestiços não tinham uma identidade precisa: eram filhos ilegítimos, frutos de uniões não consagradas. Mas além de biológica, a mestiçagem era também cultural, sendo alvo de diferentes tentativas de controle.

O capítulo 3, Trabalhadores, define o trabalho como experiência vital das classes populares. Assim, o texto privilegia as formas de exploração do trabalho e os fatores afeitos a ela, tais como a encomienda, o declínio demográfico, os usos da mão de obra na agricultura, na manufatura e no transporte. Uma das categorias de trabalhadores, os camponeses, dividia-se entre os que trabalhavam para fazendeiros e os que lidavam nas terras comunais. Os primeiros ligaram-se à pecuária, à produção de vinho e ao cultivo do arroz, setores produtivos onde se misturavam peões assalariados, escravos, agregados e índios encomendados em lugares como Tucumãn, San Juan e Mendoza. Nas cidades (Buenos Aires, Córdoba, Salta, San Miguel de Tucumán e outras), os trabalhadores eram em sua maioria artesãos, muitos deles mestres e donos de escravos, além de homens contratados por jornada nas construções, serviços de alimentação e abastecimento de água.

Costume e conflito, o quarto capítulo, traz ao leitor o universo da pobreza e da cultura de resistência das classes populares. Além da origem e da cor da pele, as classes populares eram definidas pelas autoridades a partir de seu grau de letramento e da forma como constituíam redes de pertencimento a grupos corporativos. A adesão ao catolicismo era central, e o capítulo nos diz algo sobre a vivência religiosa entre os populares: suas festas e diversões (rinhas de galo, bailes, touradas, corridas de cavalos), seus conceitos de honra e comportamento sexual (com destaque para as mulheres “plebeias”, com circulação mais livre nas cidades do que a desfrutada pelas mulheres da elite). Tudo isso permeado pelas tentativas de controle por parte das autoridades, ocasionando conflitos e tensões.

A segunda parte do livro inicia-se com A tempestade revolucionária (cap. 5), tendo como ponto de partida um dado da história política que demarca certa mudança na experiência das classes populares: a Revolução de Maio de 1810. Cerca de mil indivíduos (em uma cidade de 45 mil habitantes) apresentaram-se para reclamar umcabildo aberto em Buenos Aires com o objetivo de remover o vice rei e formar uma junta de governo. Mas, em outros lugares, a adesão popular não foi da mesma monta: no Alto Peru, em Córdoba, Montevidéu e Assunção, grupos pretendiam a fidelidade à regência estabelecida em Cádis. Em Salta e Jujuy, o recrutamento militar a princípio não se constituiu em problema, mas a partir da decisão de Belgrano de exigir contribuições materiais, criaram-se tensões com os populares. Como em outras partes da América do Sul, o uso do léxico revolucionário – independência, liberdade – chamou a atenção dos escravos para as contradições dos dirigentes do movimento. Por vezes, as contradições marcaram também as atitudes das classes populares, como os guaranis que, ao aceitarem a junta governativa portenha, o fizeram sob gritos de vivas a Fernando VII… Maio de 1810 também afetou os povos indígenas até então quase sem contatos com o regime colonial, ou aqueles cujas missões foram abandonadas e que se empregaram nas propriedades existentes. Em meio a diversos conflitos no interior do grupo dirigente da Revolução de 1810, faz-se a entrada da plebe portenha na política. Política institucional, Meglio não diz, mas é disso que se trata aqui: afinal, os quatro capítulos anteriores deixaram claro que a atuação dos populares era política ao menos desde o século XVI. Em todo caso, o autor entende a participação popular como uma das chaves da Revolução, com diferenças regionais sensíveis. De forma geral, alguns aspectos abarcaram a todos: o fim da era colonial, o poder das elites locais e a possibilidade de participação do “povo” no governo, agora na perspectiva da construção de algo que não existia na experiência prévia, colonial.

O livro deixa claro que a revolução, no território que em breve seria conhecido como Argentina, trazia consigo a questão da ordem. É esse o tema do sexto capítulo,Uma nova ordem. Diante de poderes atomizados, a tarefa dos dirigentes no quarto de século seguinte seria a reorganização institucional – o que teria implicações para as classes populares ao menos até meados do século XIX. Conflitos internos mesclam-se a guerras com os vizinhos, especialmente com o Brasil e Peru-Bolívia entre os anos 1820 e 1830, e a Guerra do Paraguai nos anos 1860. A experiência bélica traria consequências para a ação política dos camponeses e trabalhadores urbanos. O Estado e as elites tornaram-se cada vez mais “pesados” para as classes populares, oneradas com novos impostos para sustentar as formas armadas, com as leis visando a compelir os pobres ao trabalho ou ao recrutamento militar e os regulamentos do direito de propriedade. Ainda que os novos Estados e as novas elites fossem débeis, suas demonstrações de força se fariam sentir sobre os populares. A reconstrução do aparato produtivo, a recomposição de estruturas fundiárias que mantinham a ordem anterior ou introduziam novidades que beneficiavam muito poucos (como o arrendamento), a manutenção da tradicional manufatura de lã frente à concorrência dos tecidos ingleses de algodão: tudo isso afetou sobremaneira o modo de vida dos mais pobres. No âmbito da política, as autonomias regionais passaram a sofrer questionamentos e fortaleceu-se o processo de imposição do poder provincial único, seguido da unidade do Estado nacional. Nas diferentes províncias, os processos foram específicos. Em Buenos Aires, por exemplo, enquanto mantinha-se a politização da “plebe” na cidade, no campo as convulsões tornaram-se mais intensas do que no período revolucionário. Em todos os lugares, porém, é difícil clarear as razões da ação popular e deixar de considerar a inexistência de plena autonomia: havia os interesse dos caudilhos e as lealdades pessoais. Algumas razões são mais visíveis, como as lutas pela desmobilização militar, contra a religião oficial e pela tolerância de culto, contra o governo que não garantia o bem comum – na esteira de uma certa tradição política europeia não nomeada, mas que poderíamos comparar à economia moral.

A obra encerra-se com A era das mudanças, o sétimo capítulo. Tradicionalmente, a historiografia elenca a formação do Estado nacional e a expansão capitalista como os processos mais relevantes do período entre a independência e 1880. Aqui, não é diferente: constata-se o crescimento econômico argentino desde a década de 1840 e, com ele, o aumento da repressão estatal diante das ações políticas das classes populares. Ao longo de décadas, a criação de gado tornar-se-ia a grande atividade econômica argentina, ao mesmo tempo em que o preço das terras e os salários também sofreriam aumentos. Sistemas de remuneração seriam criados para diminuir a autonomia dos peões: parte era pago em dinheiro, parte era descontado para o pagamento de despesas de manutenção, sem um controle estrito por parte do trabalhador. O sistema de parcerias teve seu apogeu entre os anos 1850 e 1860, enquanto a camada de pequenos produtores, rendeiros e pequenos proprietários se reduzia. De fins da década de 1840 ao início da de 1880, consolidou-se o Estado e a identidade nacional, inclusive com a ocupação de territórios habitados por indígenas independentes e cuja autonomia fora pactuada anteriormente. Ao mesmo tempo, mudaram outras coisas. A introdução de mão de obra estrangeira começaria a transformar o perfil da força de trabalho: “em 1854 os estrangeiros era 8% dos trabalhadores de Buenos Aires e em 1870 já superavam 20%”, assim como começava um engajamento mais efetivo das mulheres das classes populares no mundo do trabalho assalariado. A introdução de um Código Rural não facilitou as vida dos “pobres pastores”, como aqueles que, em 1854, queixavam-se de ser caçados como avestruzes nos campos e diziam ser republicanos, embora fossem tratados como mulas sem direito à liberdade individual, a ficar com suas famílias, a evitar os abusos do recrutamento e a receber os benefícios sociais que as leis concediam aos estrangeiros. A hierarquia social acentuou-se, introduziram-se novas formas de consumo à europeia, melhorou a condição material de vida das classes populares urbanas, enquanto no campo tudo continuava precário. A Argentina tinha, então, apenas cerca de 13% de sua população vivendo em centros urbanos. No campo, havia o básico para a subsistência: casas de tijolos, tetos de palha e piso de terra, pouco mobiliário, instrumentos de trabalho rudimentares e vestuário diminuto. Entre os velhos e os novos trabalhadores, incrementou-se a ação das sociedades de socorros mútuos, notadamente em meio aos espanhóis, italianos e descendentes de africanos escravizados.

O livro de Meglio não cria uma nova história da Argentina. Os fatos e processos já conhecidos dos leitores, especialistas ou não, estão todos lá. O que muda, aqui, é o ponto de vista: sem descuidar da História Política, a abordagem do processo de formação nacional pelo prisma das possibilidades de ação das classes populares é o que diferencia esta obra de síntese. E ela é bem vinda por muitas razões, algumas das quais podem ser enumeradas.

O autor correu riscos, e é louvável que os tenha corrido. Primeiramente, ao anunciar a elaboração de uma História Popular, sem distingui-la da História Social ou dar-lhe uma definição mais precisa. Em segundo lugar, pela disposição em enfrentar uma periodização tão larga, o que não é comum entre historiadores, normalmente apegados ao conforto de lidar com suas especialidades temporais. Depois, por utilizar sem medo a noção declasses populares e, ao mesmo tempo, fazê-lo com rigor. Conta-se, ainda, a linguagem e a forma da escrita historiográfica, capazes de atrair historiadores de ofício e também um público mais amplo e interessado nas questões do passado.

Historia de las clases populares en la Argentina serve de estímulo para que historiadores brasileiros também se atrevam a empreitadas semelhantes, atingindo um público ávido e que, hoje, acessa a escrita da História pelo texto de jornalistas ou escritores descompromissados com o método e o rigor da pesquisa histórica. Se esses autores o fazem, entre outras razões, é porque os historiadores e as agências de fomento não entendem o texto de divulgação como um trabalho que lhes compete. E é preciso cumprir essa função com competência, razão pela qual a obra de Meglio, repito, é exemplar e vem em boa hora.

Jaime Rodrigues – Professor no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH / UNIFESP – Guarulhos-SP / Brasil). E-mail: [email protected]


MEGLIO, Gabriel di. Historia de las clases populares en la Argentina desde 1516 hasta 1880. Buenos Aires: Sudamericana, 2012. Resenha de: RODRIGUES, Jaime. História Social, História Popular: o caso argentino. Almanack, Guarulhos, n.9, p. 203-207, jan./abr., 2015.

Acessar publicação original [DR]

O Atlântico revolucionário: circulação de ideias e de elites no final do Antigo Regime | José Damião Rodrigues

O livro deriva de um evento homônimo de 2010, ocorrido no Museu de Angra do Heroísmo, nos Açores, Portugal, organizado pelo Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar (CHAM), com apoio da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores. Boa parte das apresentações se converteu em artigos para a publicação de 2012, havendo o acréscimo de apenas um autor não relacionado na programação original do colóquio.

O organizador e autor de um dos artigos, José Damião Rodrigues – professor da Universidade dos Açores na oportunidade do evento, e atualmente docente na Universidade Nova de Lisboa -, desvela na Nota Introdutória mais detalhes acerca da justificativa e dos parâmetros deste O Atlântico revolucionário: circulação de ideias e de elites no final do Antigo Regime. Comentando a retomada de interesse do estudo acerca dos impérios, indissociável de um panorama onde designações como Atlantic history e global history parecem entrar cada vez mais em voga, o autor enaltece a fomentação de pesquisas revisitando as turbulências e transformações entre os centros políticos europeus e suas respectivas periferias – sobretudo os espaços de domínio ibérico – nos século XVIII e XIX.

Dessa forma,

esta acção (…)pretendeu analisar o período axial que vai de 1750 a 1822 e no qual registramos a ocorrência de um conjunto de eventos fundadores da contemporaneidade política, social e intelectual à escala regional, nacional e internacional, como foram as revoluções americana e francesa, a revolta e a independência do Haiti, a mudança da Corte portuguesa para o Brasil, o início do processo das independências na América espanhola, a primeira experiência liberal em Espanha e a independência do Brasil. Sob este ângulo, pretendeu-se revelar a importância do Atlântico como um espaço para a circulação das elites enquanto factor de difusão de novas ideias e de valores fundamentais das sociedades contemporâneas e de construção de redes de informação. De igual modo, foi destacado o papel das ilhas açorianas que se, por um lado, mantinham as características de uma periferia, por outro, pela sua centralidade geográfica no coração do sistema atlântico, funcionavam como ponto nodal e placa giratória de uma densa rede de fluxos e refluxos (…) (p. 15).

Não obstante ter situado a temática das transformações desse âmbito atlântico, Rodrigues expõe outro tema que encontra muito espaço no desenvolver da obra. Pois tanto o colóquio original quanto a publicação se baseiam na celebração da memória de um acontecimento ilustrativo das transformações do final do Antigo Regime em Portugal: a Setembrizada. O evento constituiu-se no exílio de dezenas de presos sem culpa formalizada, acusados pela regência do Reino de colaborar ou simpatizar com a nova invasão francesa de 1810, chefiada pelo marechal Massena. Os deportados chegaram em 26 de setembro do mesmo ano às ilhas açorianas e muitos deles voltaram a ter participação ativa na conjuntura revolucionária liberal de 1820. Portanto, o colóquio organizado pelo CHAM também busca homenagear esses personagens ligados a introdução da modernidade política em Portugal.

Sem dúvida, a coexistência dos dois temas é uma das características mais marcantes do livro: a diversidade entre os artigos que o compõe. E, de fato, a obra se faz notável por exibir uma rica gama de matizes e vieses possíveis, através dos quais aborda a questão da circulação atlântica de elites e de ideias, deixando clara a fecundidade do objeto. Ao perpassar o índice, o leitor confirma isso ao se deparar com a listagem dos vinte artigos, saltando aos olhos a existência de capítulos escritos tanto em português como em espanhol, cujos títulos elencam desde revoltas escravas na Bahia do século XIX, passando pela ilustração no Peru durante o século XVIII, até um estudo sobre a heráldica portuguesa de finais do Antigo Regime.

Por outro lado, ainda que a diversidade de objetos e temas escolhidos no interior do espaço Atlântico seja latente, existe uma metodologia dominante em O Atlântico revolucionário .Dos vinte autores, oito optaram por se concentrar em um personagem, refazendo e evidenciando, através de suas respectivas trajetórias e produções documentais, pontos concernentes e reveladores de diversas dimensões da realidade pertencentes a essa conjuntura de transformações, compreendida entre os anos de 1750 e 1822, no espaço atlântico. Ao considerar as menos de quinhentas páginas para os vinte textos, fica clara a impossibilidade da publicação de estudos mais extensivo e análises mais minuciosas, contemplando dados e corpos de fontes mais volumosos. Portanto, a opção mais frequente de desenvolver os artigos sobre um personagem se revela bem conveniente, além de resultar em capítulos bastante objetivos e claros em suas intenções, expondo, por meio de casos de grande relevância, ainda que deveras circunscritos, uma profusão de aspectos de um mesmo espaço em um mesmo período de tempo. No mínimo, ficamos diante de valorosas indicações de caminhos para futuras pesquisas, aguardando trabalhos de maior densidade em sua continuidade.

“O espaço público e a opinião política na monarquia portuguesa em finais do Antigo Regime: notas para uma revisão das revisões historiográficas”, de Nuno Gonçalo Monteiro, abre oportunamente o livro, situando o leitor num panorama de referências e subsídios teóricos úteis para a apreciação de muitos dos artigos subsequentes, proporcionando um balanço historiográfico centrado sobre os dois conceitos presentes no título do capítulo – basilares para a compreensão das transformações do século XIX.

Em meio aos debates e pontos de inflexões historiográficos abordados por Gonçalo, são relembrados tanto Fernando Novais, para quem “desde meados do século XVIII (…) existiria uma crise estrutural do sistema colonial”, quanto o posterior trabalho de Valentim Alexandre, que “contraria claramente a ideia de crise do império ou da monarquia antes de 1808” (p. 22). Esse debate, retomado por Monteiro exemplifica o préstimo desse balanço historiográfico e sua aproximação com outros artigos do livro. Um dos elos possíveis se dá com “Remanejamento de identidades em um contexto de crise: as Minas Gerais na segunda metade do século XVIII”, de Roberta Stumpf. Desde o próprio título – ao reafirmar a crise do Império Português no século XVIII articulada com a Inconfidência Mineira – é visível não apenas a influência do pensamento de Novais sobre a produção de Stumpf, mas a própria vigência do acima citado debate nas páginas deO Atlântico revolucionário ,reiterando a adequação do balanço historiográfico de Monteiro na condição de primeiro capítulo.

Ainda a propósito do trabalho de Stumpf, a autora indica, observando o cada vez maior descompasso de interesses entre os naturais de Minas e a Coroa portuguesa nos fins do século XVIII, que, pelo estudo do vocabulário político dos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, torna-se latente a cisão identatária dos acusados para com as autoridades metropolitanas, ainda que os mesmos acusados ainda não tivessem uma nova identidade para o projeto no qual se empenharam.

Stumpf aplica, no recorte da Inconfidência Mineira, uma linha de trabalho anteriormente desenvolvida sobre a questão das transformações das identidades no interior da América portuguesa no período de crise, tema bastante pujante em uma historiografia que, nas das últimas duas décadas, inclui a própria autora. Nesse mote, são exemplos e referencias trabalhos como Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira) (István, Jancsó e João Paulo G. Pimenta, São Paulo, Editora Senac, 2000) e Filho das Minas, americanos e portugueses: identidades políticas coletivas na Capitania de Minas Gerais (1763-1792) (Roberta Stumpf, São Paulo, Hucitec, 2010).

Em “Wellington em defesa dos jacobinos? A setembrizada de 1810”, Fernando Dores Costas analisa a efeméride que serviu como ponto de partida para o colóquio, esmiuçando-a e delineando-a como ação arbitrária e desesperada da Regência portuguesa. O intuito desta seria angariar a confiança da população no momento de crise, em uma Lisboa abandonada pela família real e sob ameaça de uma nova invasão de tropas francesas, contra algumas figuras transformadas em bodes expiatórios, acusadas de colaboração com os franceses. Ao centrar-se na trajetória nos escritos de alguns dos exilados nas ilhas açorianas – como o baiano Vicente Cardoso da Costa; José Sebastião de Saldanha de Oliveira e Daun, elemento de primeira nobreza e o médico Antonio Almeida -, o autor demonstra disparidades de pensamentos e trajetórias desses chamados setembrizados, invalidando um pressuposto, decorrente da acusação, de que formariam um grupo coeso e agindo organizadamente em apoio ao exército invasor francês.

“Domenico Pellegrini (1769-1840), pintor cosmopolita entre Lisboa e Londres”, de Carlos Silvera, é uma contribuição de um historiador da arte que demonstra que tanto o artista como sua produção podem ser considerados bons exemplos de vetores de circulação de ideias. Porém, esse mesmo artigo também ilustra um caso de incompatibilização entre os dois temas do livro destacados na Nota Introdutória, a Setembrizada e o próprio espaço atlântico. Se por um lado, a temática do Império Português e da lembrança da Setembrizada – já que Pellegrini foi um dos presos exilados – se mantém em primeiro plano, o espaço atlântico, por outro, tem papel pequeno no artigo. Pois, a trajetória de Domenico compreende rotas entre Itália, Inglaterra, Portugal e um irrisório exílio nos Açores. Dessa maneira, o espaço atlântico não é aqui explorado em toda sua potencialidade de articulador e canal entre dois continentes contendo partes dos impérios ibéricos, tendo, então, sua presença minimizada. Logo, o tema principal do espaço atlântico é sobrepujado pela temática mais secundária da Setembrizada.

Já o artigo do organizador, José Damião Rodrigues, “Um europeu nos trópicos: sociedade e política no Rio joanino na correspondência de Pedro José Caupers”, de forma diferente, demonstra plena articulação e harmonização entre os temas ressaltados na Nota Introdutória . Ao se debruçar sobre a produção epistolar de um membro da Corte lusitana, que atravessou o oceano após a invasão napoleônica, o autor identifica uma rede de conexões, interlocutores e relações que ligam Portugal, Rio de Janeiro e ilhas açorianas, além de incluir um dos setembrizados. Não obstante, o capítulo mostra, sob a ótica de Caupers, e em sua latente inadaptação à condição de reinol perante a nova dinâmica da Corte no Rio de Janeiro, como “em períodos de aceleração da dinâmica histórica ou de mudança social, as divisões e as redefinições que se operam em torno das identidades colectivas adquirem uma importância fundamental, mas complexificam o cenário social e político” (p. 194).

Também lidando com um personagem ilustrativo está Lucia Maria Bastos Neves, com “Um baiano na setembrizada: Vicente José Cardoso da Costa (1765-1834)”. Condizente com seu já conhecido trabalho acerca do vocabulário político, utilizando uma abordagem apoiada em uma história dos conceitos – como no livro Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência (1820-1822) (Lúcia Maria Bastos P. das Neves, Rio de Janeiro, FAPERJ, 2003) -, a historiadora propõe analisar os escritos de Vicente da Costa produzidos contemporaneamente à Revolução Vintista, enfatizando os embates entre o Antigo Regime e o Liberalismo presentes na linguagem política utilizada pelo personagem.

Atentando-nos ao trabalho de Neves, confirmamos que a circunscrição da análise histórica a um personagem não necessariamente corresponde a uma circunscrição de resultados e nem a um extremo particularismo, havendo brechas de interlocução com outros artigos. Aqui, é possível até mesmo constatar o início de um possível debate no interior do livro. Pois, ao examinar o mesmo personagem, em seu já referido artigo, Fernando Dores Costas chega a um diagnóstico consideravelmente diferente do da historiadora sobre o setembrizado Vicente José Cardoso da Costa e seu pensamento acerca das novas formas políticas que, no século XIX fixavam-se nos impérios ibéricos. De acordo com Dores Costa, “Cardoso da Costa defendeu energicamente a tradição pombalina, absolutista. Afirmava a referida obrigação ilimitada de obediência aos governos. Os súbditos estavam impedidos de avaliar, estando obrigados a acatar as ordens tanto dos maus como aos bons governos” (p. 48). Por outro lado, é de maneira mais contemporizada que Neves, após sua análise, descreve o mesmo Cardoso da Costa como um homem imerso em uma conjuntura de crise e partilhando múltiplas linguagens políticas, oscilando entre tradição do Antigo Regime e as novas formas políticas em oposição ao despotismo.

Vicente José Cardoso da Costa ainda volta a ser objeto de estudo em “Experiencia y memoria de la revolución de 1808: Blanco White y Vicente José Cardoso da Costa”, de Antonio Prada. Nesse caso, as conclusões do autor, após análise dos escritos de Cardoso da Costa, são mais próximas às de Lúcia Maria Bastos Neves do que às de Dores Costa.

Ainda no campo da análise do espaço atlântico do Império Português, também situam-se “A heráldica municipal portuguesa entre o Antigo Regime e a monarquia constitucional: reflexos revolucionários”, de Miguel Metelo de Seixas; “Circulação de conhecimentos científicos no Atlântico. De Cabo Verde para Lisboa: memórias escritas, solos e minerais, plantas e animais. Os envios científicos de João da Silva Feijó”, de Maria Ferraz Torrão; “Rotas de comércio de livros para Portugal no final do Antigo Regime”, de Cláudio DeNipoti; “Em busca de honra, fama e glória na Índia oitocentista: circulação e ascensão da nobreza portuguesa no ultramar”; de Luis Dias Antunes, “A difusão da modernidade política. A ficcionalidade da Revolução de 1820”; de Beatriz Peralta García; “Revoltas escravas na Baía no início do século XIX”, de Maria Beatriz Nizza da Silva e “República de mazombos: sedição, maçonaria e libertinagem numa perspectiva atlântica”, de Junia Ferreira Furtado.

Podendo ser visto como uma ponte entre os artigos acerca do Império português e sua contraparte hispânica, temos o derradeiro “Las independencias latinoamericanas observadas desde España y Portugal”, de Juan Marchena. Mais detidos no universo espanhol estão “Entre reforma y revolución. La economía política, el libre comercio y los sistemas de gobierno em el mundo Altlántico”, de Jesús Bohórquez; “Política y politización en la España noratlántica: caminos y procesos (Galicia, 1766-1823)”, de Xosé Veiga e “A través del Atlántico. La correspondencia republicana entre Thomas Jefferson y Valentín de Foronda”, de Carmen de La Guardia Herrero.

Ainda no espaço hispânico, abordando as transformações do fim do Antigo Regime nas colônias, destacam-se “Azougueros portugueses en Aullagas a fines del siglo XVIII: Francisco Amaral”, de María Gavira Márquez e “La ilustración posible en la Lima setecentista: debate sobre el alcance de las luces en el mundo hispánico”, de Margarita Rodríguez García. O primeiro traz o curioso caso de um membro da elite colonial portuguesa exercendo atividade mineradora no atual território boliviano no fim do século XVIII, mesmo apesar do pleno desenrolar da guerra entre Portugal e Espanha, declarada no outro lado do Atlântico. O segundo, focado no periódico Mercurio Peruano, bebe na fonte dos trabalhos de François-Xavier Guerra, ao caracterizar as particularidades da formação de uma esfera pública no espaço colonial de uma monarquia absolutista, portanto, uma realidade não abarcada pelo modelo original de esfera pública desenvolvida por Habermas.

Enfim, O Atlântico revolucionário: circulação de ideias e de elites no final do Antigo Regime modela uma perspectiva desse espaço como um feixe de encontros, com participação fundamental em diversas realidades e processos históricos. Um canal de pleno trânsito de ideias e elites, passíveis das mais diversas nuances e abordagens historiográficas, em uma variação ampla de escala. Um lembrete de que, mesmo considerado em sua unidade de dimensão global, seu sentido nunca pode ser reduzido a um único.

Luis Otávio Vieira – Graduando em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH / USP – São Paulo-SP / Brasil). E-mail: [email protected]


RODRIGUES, José Damião (Org.). O Atlântico revolucionário: circulação de ideias e de elites no final do Antigo Regime. Ponta Delgada: Centro de História de Além-Mar (CHAM), 2012. Resenha de: VIEIRA, Luis Otávio. Os diferentes universos do espaço Atlântico. Almanack, Guarulhos, n.9, p. 208-212, jan./abr., 2015.

Acessar publicação original [DR]

Mato Grosso colonial | Fronteiras – Revista de História I 2015

O dossiê “Mato Grosso colonial” traz contribuições de pesquisadores que tem se dedicado a investigar essa região, que no período colonial, compreendia os atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia. A região de Mato Grosso1 foi conquistada na primeira metade do século XVIII e pertencia à jurisdição da capitania de São Paulo, que teve sua circunscrição reduzida em 1748 por causa das fundações das capitanias de Mato Grosso e de Goiás, ambas marcadas pela mineração2.

Capitania fronteira-mineira, Mato Grosso estava situada na região central do continente sul-americano e fazia fronteira com os domínios hispânicos, isto é, com o Paraguai e com as Províncias de Moxos e Chiquitos. Apesar de sua vasta extensão territorial, foi constituída por apenas duas vilas, Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (localizada no distrito do Cuiabá) e Vila Bela da Santíssima Trindade (situada no distrito do Mato Grosso), erguida em 1752 para ser capital da capitania. Além delas, arraiais e fortes militares foram fundados ao longo da fronteira litigiosa com o objetivo de assegurar a possessão lusitana por meio do povoamento. Leia Mais

Inquisição Colonial | Revista Ultramares | 2015

Introdução: A Inquisição, da colônia ao que somos no hoje

O que significou a existência do Santo Ofício? Qual o seu alcance na Europa e nos Novos Mundos? Até que ponto a Inquisição remodelou o quadro de sociabilidades existentes na colônia? Como a Inquisição ajudou a gestar o que agora somos e quanto dela há em nosso mundo como resquício? “Lenda Negra”, “Lenda Branca”, interpretações que permeiam as raias de visões nem sempre neutras sobre o metamorfoseado “polvo de mil braços”, como já foi adjetivado o Tribunal que agiu durante a Modernidade Ibérica como baluarte da pureza cristã, à busca de hereges que ameaçavam o monopólio e os interesses católicos em seus domínios…

Estas, de certeza, não são questões de simples resposta, nem tampouco resolvem o quebra-cabeças infinitamente mais complexo da criação, lógica e funcionamento do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição português, das vítimas que fez e da atmosfera de controle e de intolerância que espalhou nos espaços onde tinha abrangência, ao longo dos quase três séculos em que teve vida, de 1536 a 1821. Leia Mais

Another Black Like Me: the construction of identities and solidarity in the African diaspora / Nielson R. Bezerra

Another Black Like me, editado por Elaine Rocha e Nielson Bezerra, discute a questão racial, na América Latina e no Caribe, a partir da perspectiva dos negros, sejam estes escravizados ou descendentes de pessoas que passaram pelo cativeiro. Para tanto, os autores ressaltam que é de negros, e não de afrodescendentes, que estão tratando. E o fazem como forma de pontuar e trazer para o debate as complexidades e subjetividades às quais a percepção da negritude esteve submetida, desde o início da diáspora africana até os tempos atuais. Procurando contemplar uma ampla gama de recortes temporais e conceituais, o livro abrange temáticas diversas, que vão, desde o gênero até a resistência, passando por questões ligadas à territorialidade, mobilidade espacial, abolicionismo e identidade.

Esse livro é fruto do esforço de seus dois editores em unir perspectivas e abordagens, das mais diversas, acerca da diáspora africana na América Latina. Oferecendo uma abordagem sólida para tais questões, essa obra consegue agregar artigos que dialogam e fazem sentido quando unidos. Os pesquisadores ora reunidos, apesar de oriundos de diferentes instituições e formações, convergem em uma direção que dá sentido à obra, que é o que toda coletânea precisa (e deveria) ter.

Como é de se esperar em um trabalho feito a muitas mãos, as fontes utilizadas são das mais diversas. Destaco o uso de relatos de viajantes que, nessa obra, servem a diferentes análises. Ygor Rocha Cavalcante os utiliza para identificar os locais de esconderijo dos escravos fugidos bem como para visualizar o cotidiano das localidades por ele analisadas; já Luciana da Cruz Brito acessa tais relatos como forma de analisar a percepção internacional sobre a mítica democracia racial brasileira. Além de tais fontes, o livro ainda apresenta trabalhos que contam com o uso da literatura, história oral, fontes processuais, registros cartoriais, entre outras.

Another Black Llike me nos leva, então, do Brasil à Porto Rico, passando pelo Caribe Britânico e, de volta à África, até Gana. Apesar do livro não possuir nenhuma divisão em partes ou seções, ao lê-lo, consigo identificar dois eixos norteadores do trabalho. Estes correspondem, também, a uma divisão temporal, que pode ser marcada pelo progressivo fim do escravismo nos países da América Latina. Dois momentos, por assim dizer, que se organizaram de diferentes maneiras, nas diferentes sociedades ora abordadas, mas que guardam convergências e similaridades e permitem aproximação em uma única obra.

Dessa forma, esse livro apresenta um primeiro eixo, que corresponde a uma América Latina pós-escravista, que precisa lidar – tanto política, como social e economicamente – com suas questões raciais, suas desigualdades e pertencimentos. E um segundo eixo, que trata dos séculos XVIII e XIX, correspondente ao período escravista da América Latina. Lidando com resistências, construções de identidades e com o abolicionismo, esse segundo eixo trata, principalmente, do Brasil e dos desdobramentos das questões afro-brasileiras.

Analisando o livro nessa chave de leitura, o primeiro eixo que identifico, neste trabalho, compreende os quatro primeiros artigos, de autoria de Elaine Rocha, Ronald Harpelle, Victor C. Simpson e Rhonda Collier. Rocha debate a identificação dos afrodescendentes na América Latina, seja ela imposta ou escolhida. A autora discute questões ligadas à identificação racial, e às formas como essa identificação foi (e tem sido) utilizada, tanto de forma positiva, quanto de forma negativa. Harpelle lida com os grupos de descendentes de africanos na América Central que, na metade do século XX, não sabiam quais eram suas origens, que também não eram conhecidas pelas autoridades britânicas que, no século anterior, controlaram a imigração para muitas das ilhas Caribenhas, de onde a maior parte dos imigrantes saíram para a América Central continental. Simpson delineia a taxonomia racial em Porto Rico e no Caribe Anglófono, buscando, na experiência histórica da diáspora africana e do domínio colonial europeu, as raízes que, depois de séculos de interação, dominação e exclusão, deram origem às designações de cor naquelas localidades. Assim como em grande parte da América Latina, tais denominações não se resumem apenas a negro e branco, possuindo uma enorme gama de outras gradações entre essas duas. Tais divisões não se resumem apenas a tons de pele, sendo influenciadas por questões sociais e econômicas. Collier examina as condições de vida de mulheres cubanas, de ascendência africana, no século XX, enfatizando as dificuldades pelas quais passam, devido à cor de sua pele, e as consequências que os estereótipos por elas enfrentados trazem para suas vidas, como a pobreza e a prostituição. Muitas dessas mulheres são o único sustento de suas famílias, o que as empurra ainda mais fundo para essas condições.

Neste primeiro momento do trabalho, destaco o artigo de Rhonda Collier. Analisando as duras condições sociais às quais uma grande maioria de mulheres cubanas foi submetida, no final do século XX, com a queda da União Soviética e as dificuldades econômicas enfrentadas por Cuba, Collier aponta que a única saída que muitas encontravam, para sobreviver e prover a sobrevivência de suas famílias, era a prostituição. Isso gerou um estereótipo relacionado às mulheres cubanas de ascendência africana, que persiste até os dias de hoje.

A autora explora obras de poetisas cubanas, em fins do século XX, que denunciavam as condições às quais tais mulheres eram expostas, bem como o fato de que a revolução socialista, em Cuba, teria feito com que a pobreza levasse, cada vez mais, mulheres para a prostituição. Em oposição à prostituta, que se havia tornado peça de mercado, no turismo cubano, a figura que deveria emergir em seu lugar seria, então, a da mãe, valorizando o país, enquanto pátria que nutre seus filhos e filhas. A África seria, nessa visão, a mãe, na qual Cuba deveria se espelhar. Collier demonstra, nesse artigo, como a identidade da mulher cubana foi palco de disputas, por representatividade e reconhecimento, bem como por participação social e econômica.

O segundo eixo do livro, por sua vez, está articulado em torno das questões ligadas à escravidão, sem perder de vista o foco nas identidades e representações dos negros nas sociedades. Esse segundo momento do trabalho conta com cinco artigos, escritos por Flávio dos Santos Gomes, Ygor Rocha Cavalcante, Nielson Rosa Bezerra, Luciana da Cruz Brito e Marco Aurelio Schaumloeffel. Gomes analisa as experiências de fugas, nas fronteiras do Brasil colonial e da Guiana Francesa, nos séculos XVIII e XIX, atentando para as trocas culturais atlânticas, as experiências coletivas e as formas de resistência delas advindas. O autor enfatiza que as fronteiras coloniais não estabeleciam limites para tais trocas, demonstrando que as ideias circulavam entre os escravos, possibilitando, além das fugas, a migração ou a formação de mocambos, comunidades de escravos fugidos. Cavalcante também trabalha com a questão espacial, ao examinar a resistência escrava na fronteira amazônica do século XIX. Numa região marcada pelo povoamento indígena – nas regiões afastadas das cidades, pela interação entre indígenas e mestiços livres ou vivendo em diversas formas de dependência, e também pelo cultivo e preparo da borracha, atividade que exigia mobilidade – o trabalho escravo se organizava de maneiras diferentes daquelas encontradas no Sul e Sudeste, e até mesmo das regiões açucareiras do Nordeste. Dessa forma, a ação dos escravos e suas experiências acumuladas também se organizam de maneira própria. Bezerra analisa a trajetória de Mohammed Gardo Baquaqua, africano apreendido na África Ocidental e vendido como escravo, no século XIX, que, após uma verdadeira odisseia atlântica, com passagem pelo Brasil, Estados Unidos, Haiti e Canadá, conseguiu a liberdade, estabeleceu-se nos Estados Unidos e lá escreveu suas memórias, em forma de relato autobiográfico. Bezerra examina, então, a mobilidade espacial e a sociabilidade de Baquaqua, bem como seu relato, a fim de demonstrar como as pessoas escravizadas lidavam com os limites impostos pela escravidão. Brito analisa as perspectivas dos abolicionistas, dos Estados Unidos do século XIX, no tocante às relações raciais no Brasil. A autora aponta como o mito da democracia racial afetou a visão que se tinha sobre os direitos e o tratamento dado aos ex-escravos no Brasil, mostrando como tal mito espalhou-se e ganhou força mundo a fora, sendo utilizado como argumento, em querelas referentes aos direitos das pessoas de ascendência africana. Schaumloeffel encerra o livro, analisando a diáspora afro-brasileira, na África, com o caso dos Tabom em Gana. Esse grupo era formado por brasileiros descendentes de africanos que decidiram, espontaneamente, imigrar para a África, bem como por outros que, após se revoltarem, foram banidos para a África Ocidental. O autor toca nas questões relativas à formação de identidade desse grupo, bem como sua organização familiar política.

O artigo de Nielson Bezerra merece destaque, por demonstrar um exercício metodológico bastante interessante, ao preencher as lacunas da vida de Baquaqua com uma perspectiva historiográfica, a fim de entender o contexto brasileiro vivido por aquele africano. É importante notar, que o foco de Bezerra é o período que Baquaqua passou no Brasil, vivendo nas províncias de Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande. Assim, esse artigo não apenas descreve a vida de Baquaqua e o que pode ser encontrado em seu relato autobiográfico, como também analisa as relações escravistas, naquelas províncias, e seu impacto na vida dos africanos escravizados.

O uso de biografias de africanos, como fonte, é algo bastante recorrente na historiografia sobre a escravidão na América do Norte. Para o caso brasileiro, entretanto, o relato de Baquaqua é, até o momento, o único encontrado. Nesse sentido, o artigo de Bezerra pode servir, também, de reflexão, para pensarmos em outras formas de analisar trajetórias de africanos e africanas no Brasil: na ausência de relatos autobiográficos, a historiografia brasileira vem reconstruindo essas histórias, a partir de diversos tipos de fontes, como registros cartoriais, policiais e eclesiásticos. Convergir essa metodologia, com a análise feita por Bezerra, pode ser um exercício metodológico interessante.

Another Black Like Me pode ser lido, então, como um bom exercício de história social. Com sólido embasamento nas fontes, todos os nove artigos apresentam perspectivas que possibilitam compreender as pessoas escravizadas e suas descendentes como sujeitos ativos, ainda que limitados, por suas condições sociais, políticas, econômicas e históricas. Além disso, é um livro que lida com a identidade dos africanos e seus descendentes, entendidos no contexto da diáspora, no interior das formações e transformações de suas identidades, entendidas no contexto da longa história do negro na América Latina.

Daniela Carvalho Cavalheiro – Doutoranda em História Social da Cultura/UNICAMP. Campinas/São Paulo/Brasil. E-mail: [email protected].


BEZERRA, Nielson Rosa; ROCHA, Elaine (Org.). Another Black Like Me: the construction of identities and solidarity in the African diaspora. Newcastle upon Tyne, UK: Cambridge Scholars Publishing, 2015. 230 p. Resenha de: CAVALHEIRO, Daniela Carvalho. Identidades em questão: escravidão, liberdade e pertencimento no mundo atlântico. Outros Tempos, São Luís, v.12, n.19, p.268-272, 2015. Acessar publicação original. [IF].

História das mulheres e do gênero em Minas Gerais / Cláudia Maia e Vera L. Puga

Escrever a história das mulheres e do gênero ainda é uma tarefa ousada. Desde os anos 1980, o tema chega ao Brasil e se consolida como um campo definido de pesquisa para as/os historiadoras/es ganhando visibilidade, apesar de ainda sofrer restrições no interior das instituições acadêmicas. O número significativo de publicações revela gradativo fortalecimento desse campo, como atesta o crescimento das publicações de livros, artigos em revistas especializadas, teses, dissertações e simpósios temáticos versando sobre o tema. O que significa escrever uma história das mulheres e do gênero? A história se tornou o lugar a partir do qual o feminismo questionou o sujeito universal moderno (homem, branco, heterossexual e cristão), fazendo emergir uma vasta gama de sujeitos históricos em suas especificidades de gênero, étnico-raciais, sociais e sexuais.

O livro História das mulheres e do gênero em Minas Gerais, organizado por Cláudia Maia (UNIMONTES) e Vera Puga (UFU) resulta de uma parceria de longa data entre as organizadoras, que são pesquisadoras conceituadas e bastante atuantes nos simpósios sobre “História das mulheres e do gênero” na Associação Nacional de Professoras/es Universitários de História (ANPUH). Cláudia Maia é doutora em História pela Universidade de Brasília, na área de Estudos Feministas e de Gênero, e pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Atua como professora adjunta do Departamento de História e dos Programas de Pós-graduação em História e de Letras/Estudos Literários, da Universidade Estadual de Montes Claros. Vera Puga é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), desde 1998, e atualmente faz parte de algumas comissões: do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (ENADE-Formação Geral) e da Secretaria de Políticas para as Mulheres (Comitê Técnico-Institucional, questões de gênero). É professora Associada II da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde atua no Programa de Mestrado e Doutorado em História Social, no Núcleo de Estudos de Gênero e Mulheres (NEGUEM) e na Revista Caderno Espaço Feminino, como editora.

O livro em questão conta ainda com a participação de pesquisadoras/es de vários estados brasileiros que se debruçaram sobre  diferentes momentos da história das mulheres em Minas Gerais, partindo de variados tipos de fontes e abordagens metodológicas. Foi publicado pela Editora Mulheres e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Trata-se de uma coletânea de 552 páginas, organizada em quatro partes que indicam os múltiplos olhares sobre as mulheres mineiras: 1) transgressoras e insubmissas mineiras; 2) damas, donas do sertão; 3) saberes e fazeres femininos; 4) casamento e maternidade: mecanismos de um destino social.

A primeira parte da obra é constituída por textos que tratam das variadas ações de mulheres mineiras em diferentes temporalidades e espaços, para romper com as amarras das tradições patriarcais. Através da escrita sensível da pesquisadora Diva do Couto Muniz, conhecemos professoras mineiras cujo conjunto de ações “insubordinadas, indóceis e indisciplinadas” fincaram um marco de resistência ante o conjunto das estratégias elaboradas nas Minas oitocentistas, para circunscrevê-las a um ideal de mestra, recatada e submissa. Encontramos também as mulheres que ousaram contrariar regras “sagradas” e constituíram famílias com padres, mesmo estando sujeitas a sanções sociais, conforme divisou Vanda Praxedes. Mulheres mineiras livres ou escravizadas com suas práticas e estratégias em favor da abolição, como a escravizada Catarina que se destacou pela “astúcia empreendida em seus projetos de liberdade” (p.87), são desveladas por Fabiana Macena. A mineira Maria Lacerda de Moura, sua trajetória e escrita libertárias compõem o texto escrito por Cláudia Maia e Patrícia Lessa. Os três últimos textos discorrem sobre a escrita feminina: Maura Lopes Cançado e sua vida marcada pela insanidade e transgressão das normas de gênero, cuja obra Hospício é Deus foi discutida de forma densa por Márcia Custódio e Alex Fabiano Jardim. Contribuindo para visibilizar as mulheres negras e suas escritas, Constância Duarte nos presenteia com uma análise belíssima de parte da obra da escritora mineira Conceição Evaristo. Nos contos analisados, as personagens negras nos convidam a conhecer suas trajetórias, nas quais a intersecção entre gênero, etnia e classe se fazem presentes nas suas estratégias, vivências e resistências cotidianas. Fechando a primeira parte, conhecemos Márcia, prostituta de Pouso Alegre, cujas cartas são analisadas por Varlei do Couto a partir da noção foucaultiana de escrita de si. Vivendo e lutando num contexto em que as campanhas de moralização e higienização sociais têm como foco seu local de trabalho e residência, Márcia elabora táticas de resistência, enquanto troca correspondências com pessoas de sua estima, nas quais fala de si e de sua posição frente à sociedade em que vive.

Na segunda parte da obra, intitulada “Damas, donas do sertão”, os olhares das/os pesquisadoras/es se voltam para as regiões consideradas mais distantes de Minas Gerais: os sertões longínquos, tradicionalmente considerados como espaços do desmando e poderio falocêntricos, agora são relidos sob novo viés. Assim, conhecemos por meio do texto de Gilberto Noronha as imagens contraditórias construídas sobre Joaquina de Pompéu e sua atuação no Oeste de Minas Gerais, entre os séculos XVIII e XIX. Em alguns discursos, ela é a mulher reta, recatada e justa; em outros, figura como “caudilho de saias” ou “sinhá Braba”, colérica, descomedida sexualmente e cruel com seus subordinados. Dona Tiburtina de Andrade Alves é outra mulher cuja posição ativa suscitou inúmeras representações: seu envolvimento em episódio sangrento da política de Montes Claros, no início do século XX, foi lido e relido ao longo do tempo a partir de várias perspectivas, sendo ora louvada, ora criticada, conforme destacam as autoras Maria de Fátima Nascimento e Filomena Cordeiro Reis. Correndo mundo através da literatura, as personagens femininas de Guimarães Rosa, tão vivazes quanto os viventes de carne e osso, em suas ações destecem o tecido da tradição falocêntrica e conduzem os destinos por caminhos por elas mesmas traçados. Zidica, Rivília e “Dlena, aranha em jejum” apresentam possibilidades de “desarticular o estabelecido” e nos são apresentadas com sua astúcia, pela pena sutil de Telma Borges.

Os textos que compõem a terceira parteda obra, denominada “Saberes e fazeres femininos”, têm em comum o cuidado das/o autoras/res em ouvir as próprias mulheres acerca de seus conhecimentos e práticase das formas pelas quais atuaram em suas comunidades. As falas das narradoras são permeadas de satisfação em rememorar suas trajetórias de vida e, ao mesmo tempo, reiteram sentidos tradicionais sobre as atividades consideradas como apanágio feminino ou masculino. Através do texto de Lúcia Helena da Costa, acessamos as narrativas das parteiras do norte de Minas Geraiscujas práticas de partejar sofreram a interferência dos médicos no processo de medicalização da saúde das mulheres e dos recém-nascidos, a partir dos anos de 1950. No texto de Cairo Katrib e Fernanda Naves, nas memórias de mulheres congadeiras em Ituiutaba se entrelaçam trajetórias pessoais e a prática cultural do Congado. Durante muito tempo silenciadas pela tradição judaico-cristã, as vozes das mulheres que atuaram na fundação de Igrejas pentecostais no Norte de Minas Gerais são enfim ouvidas por meio da pesquisa de João Augusto dos Santos. A ligação entre os fazeres considerados como femininos ligados à cozinha e aos hábitos alimentares mineiros são discutidos por Mônica Abdala. Ainda sobre saberes, temos as narrativas das mulheres trabalhadoras rurais no Triângulo Mineiro, visibilizadas por Maria Andréa Angelotti. A exclusão feminina do acesso à educação formal é discutida por Leila Almeida, que se debruça sobre as narrativas de mulheres de Januária acerca de suas trajetórias de escolarização. As hierarquias de gênero que comumente estabelecem restrições diversas às mulheres marcaram a vida de muitas das narradoras, que foram impedidas de estudar durante a juventude por maridos ciumentos e obrigações domésticas. Encerrando a terceira parte, conhecemos a luta pela terra travada pelas mulheres negras remanescentes de um Quilombo em Paracatu, através da pesquisa de Maria Clara Machado e Paulo Sérgio da Silva.

O casamento e a maternidade têm sido apontados enfaticamente como formas de aprisionamento das mulheres, transformados em destinos social e biológico circunscrevendo as mulheres na esfera da casa e da família, submetidas a cerceamentos e violências. A quarta e última parte do livro se caracteriza por discutir os dispositivos sociais responsáveis por restringir as mulheres às funções de esposas e mães, bem como as estratégias encontradas por muitas para se livrarem de situações de violência em casamentos infelizes. Helen Ulhôa Pimentel examina documentação do século XVIII do tribunal eclesiástico instalado em Paracatu. A autora estuda o papel da Igreja quanto ao casamento e a possibilidade de anulação do mesmo. Entre a documentação encontrou vários casos nos quais as mulheres resistiram às imposições da Igreja e a procuravam buscando se livrar de situações intoleráveis, como casamentos violentos, o caso, por exemplo, de Joana de Souza Pereira. Na sequência, também tratando de casamento e divórcio, temos o texto de Dayse Lúcide Santos, que discute a legislação brasileira, do final do século XIX e início do século XX, acerca do tema e analisa alguns processos de separação ocorridos em Diamantina. Uma das conclusões a que chega é a de que havia um descompasso entre as normas instituídas pelo Estado e pela Igreja e as vivências de homens e mulheres, o que levava a transgressões da norma. Os discursos produzidos no início do século XX sobre os papéis das mulheres na formação dos cidadãos nas regiões do triângulo mineiro constituem foco da pesquisa de Florisvaldo Ribeiro Júnior. As mulheres eram “alvos de prescrições físicas e morais de jornalistas, médicos, intelectuais, políticos e padres”, que procuravam estabelecer normas e controle sobre os seus corpos e condutas. Temos, aqui, excelente análise a respeito da relação entre as representações de gênero e os projetos de Nação Moderna do período. Na sequência, os discursos de mães adolescentes sobre maternidade e casamento, em Uberlândia, são analisados por Carla Denari, que percebe um descompasso entre os discursos do Estado acerca da gravidez na adolescência e os sentidos positivos que as mães adolescentes atribuem à maternidade e ao casamento. A educação enquanto espaço de produção das diferenças de gênero é objeto de Vera Lúcia Puga que percorre criticamente o processo educacional dicotômico, desde o século passado, com os internatos separados por sexo, até o presente, com a permanência da educação binária que se evidencia pelo funcionamento da escola deprincesas em Uberlândia.

Enfim, o livro como um todo oferece uma importante contribuição paraa história eos estudos de Gênero; seu diferencial é a abordagem centrada nas mulheres mineiras de várias regiões do estado, suas atuações em cada contexto ondese inseriram na luta pela liberdade de existir e agir. Se por um lado a obra congrega estudos variados que pretendem visibilizar as ações das mulheres mineiras, por outro tem nessa diversidade de perspectivas a emergência de alguns problemas: em alguns textos percebe-se que as mulheres estão subsumidas nas condições históricas de suas sociedades, em outros é possível vislumbrar a ideia de predestinação de determinadas mulheres para a atuação política em seus contextos. Notam-se também algumas lacunas no que tange às mulheres indígenas e às lesbianas, denotando uma ausência de estudos sobre essas mulheres em Minas Gerais e apontando, por outro lado, para a possibilidade de exploração destes campos pelas novas levas de historiadoras/es feministas. As brechas apontadas não diminuem o mérito da obra, visto que, nós historiadoras/es feministas somos conscientes de que todo texto histórico é parcial. Nesse sentido, as organizadoras na apresentação explicam que o “livro não teve a pretensão de percorrer o conjunto dos estudos que têm sido desenvolvidos sobre mulheres e gênero em Minas Gerais no campo da História, mas é uma pequena mostra desses estudos”1. Dentro do proposto, o livro contribui imensamente para que se conheça um pouco mais da história das mulheres mineiras.

Rosana de Jesus dos Santos – Doutoranda em História na Universidade Federal de Uberlândia.Bolsista Fapemig.E-mail: [email protected].


MAIA, Claúdia; PUGA, Vera Lúcia (Org.). História das mulheres e do gênero em Minas Gerais. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2015. 552p. Resenha de: SANTOS, Rosana de Jesus. História histórias. Brasília, v.3, n.6, p.223-227, 2015. Acessar publicação original. [IF]

A novela História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito (1682): compêndio dos saberes antropológicos e psicológicos dos jesuítas no Brasil Colonial – MASSIMI (HU)

MASSIMI, M. (org.). A novela História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito (1682): compêndio dos saberes antropológicos e psicológicos dos jesuítas no Brasil Colonial. São Paulo: Edições Loyola, 2012. 298 p. Resenha de: DILLMANN, Mauro. Literatura religiosa e jesuítas no Brasil Colonial. História Unisinos 18(3):645-648, Setembro/Dezembro 2014.

O livro aqui resenhado é uma análise psicológica – mas também histórica – da obra História do Predestinado Peregrino e de seu Irmão Precito escrita pelo padre jesuíta Alexandre de Gusmão2 (1629-1725) e publicada inicialmente em 1682.

Organizado por Marina Massimi, professora titular do Departamento de Psicologia da USP, a obra conta com sete textos, incluindo uma grande introdução escrita pela própria organizadora, quatro textos desta em coautoria com “jovens pesquisadoras” – três alunas do curso de Psicologia da USP, Lidiane Ferreira Panazzolo, Nayara Aparecida Saran e Lívia Tieri Kuga –, com uma mestre em Psicologia pela mesma Universidade – Maira Allucham Gulart Naves Trevisan Vasconcellos – e, por fim, um texto de um pós-doutorando em Cultura Contemporânea na UFRJ – José Eduardo Ferreira Santos.

A literatura investigada é uma novela do padre Gusmão que aborda a peregrinação de dois personagens, um chamado Predestinado e outro chamado Precito, que escolhem diferentes caminhos, percursos de vida, representados, respectivamente, pela viagem do Egito a Jerusalém (o paraíso, a salvação) ou do Egito à Babilônia (o inferno, a condenação), procurando demonstrar metaforicamente que a peregrinação representa o próprio percurso existencial e as escolhas de cada sujeito ao longo da vida.

Esta novela do padre Gusmão – dedicada ao peregrino e missionário Francisco Xavier Apóstolo do Oriente (1506-1552) – se configura, segundo Massimi (2012, p. 52), enquanto um compêndio da visão antropológica e dos saberes psicológicos elaborados pela Companhia de Jesus na América Portuguesa, cujo enredo é a peregrinação como figura alegórica da vida. Os dois personagens, Predestinado e Precito, aspirando à felicidade, iniciam sua peregrinação; o primeiro em direção a Jerusalém, em busca da salvação, segue com sua esposa, a Razão, com a qual tem dois filhos, Reta Intenção e Bom Desejo; o segundo segue em direção à Babilônia, em busca de satisfações materiais, com sua esposa Própria Vontade e seus filhos, Mau Desejo e Torta Intenção. A intenção de Gusmão, segundo Massimi e Panazollo (in Massimi, 2012, p. 203), ao intitular seu livro como a história de um Peregrino, servindo aos propósitos contrarreformistas, era a de recuperar fiéis perdidos, no sentido de atrair leitores, uma vez que alguns anos antes, em 1678, John Bunyan, um autor protestante, publicou O Peregrino.

Podemos incluir o livro de Gusmão, analisado por Massimi e outros, na categoria que chamamos “manuais de devoção”, obras da literatura religiosa moderna destinadas a difundir a doutrina cristã e os modelos de comportamento moral esperados para a vida virtuosa, a boa morte e a salvação da alma. Em um dos textos (O percurso de Predestinado Peregrino: encontros, lugares e imagens edificantes na História de Alexandre de Gusmão) do livro, as autoras, Lidiane Ferreira Panazzolo e Marina Massimi, reconhecem a obra do padre como “uma espécie de manual de conduta provavelmente utilizado nos colégios jesuítas” (p. 204). Na conclusão deste artigo, as autoras destacam que “havia poucos exemplares originais do livro”.

Pude constatar, em um prévio levantamento nos catálogos de arquivos de Portugal e do Brasil, a existência de edições de 1682, 1685 e 1728. Na Biblioteca Nacional de Portugal, constam três exemplares de 1682, formato livreto de mão, como quase todos manuais de devoção do final do século XVII e do século XVIII, com 15 cm, impresso na oficina Miguel Deslandes; quatro exemplares microfilmados da edição de 1685, publicada pela oficina da Universidade de Évora, e um exemplar de 1728, indicando ser de quarta edição, impresso à custa do mercador de livros Domingos Gonçalves na oficina de Felippe de Sousa Villela. Por esta mesma oficina e mesma edição, existem exemplares na Biblioteca Joanina, em Coimbra, e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, indicando ainda pertencer à Coleção da Real Biblioteca, o que demonstra o sucesso da obra no período e a circularidade da mesma entre a América Portuguesa.3 Além da interessante análise psicológica com enfoque histórico, o livro tem o mérito de apresentar a íntegra da obra analisada, transcrita com português atualizado, facilitando o acesso e a consulta deste documento para outros pesquisadores e interessados em geral. Além disso, as autoras “traduziram” o texto do padre Gusmão em dois interessantes anexos para a compreensão do texto.

Um deles é uma árvore genealógica dos personagens, o outro são dois mapas com descrições, rabiscos, setas e desenhos literalmente feitos de modo manuscrito, esquematizando a peregrinação de cada um dos personagens.

Ainda que uma estratégia didática e criativa das autoras, tal espécie de “mapa conceitual” poderia ter sido feita com melhores recursos gráficos, podendo manter a mesma diagramação do manuscrito, a fim de apresentar ao leitor uma melhor compreensão e leitura analítica.

Na construção da novela, em que Gusmão aborda a prática da peregrinação como a busca de um sentido de vida, as autoras identificam influências de Inácio de Loyola (Exercícios espirituais) e de Antônio Vieira (sermão Undécimo do seu dia). Loyola estaria presente no exemplo do uso pedagógico que fez de imagens para veicular a mensagem cristã e para agir na subjetividade do leitor, especialmente na memória e na imaginação, de modo a facilitar a meditação (Massimi, 2012, p. 24). Já Vieira destacaria o mundo em que se anda, a peregrinação, designando-a como “aquisição de experiência da qual se tira um ensinamento, uma moral”, diferenciando-a do desterro, um simples caminhar sem aprendizagem alguma (Saran e Massimi in Massimi, 2012, p. 222-223).

A obra do padre Gusmão foi entendida como uma “metáfora da existência humana”, imagem muito empregada no período moderno para “comunicar conceitos”, pois as alegorias atuavam como “dispositivos retóricos” (palavras eficazes na ação do dinamismo psíquico dos destinatários) capazes de provocar atividades sensitivas e imaginativas (Massimi, 2012, p. 18, 23, 28). O uso destas alegorias, metáforas e recursos retóricos estaria de acordo com a pretensão do padre de “mover a curiosidade do leitor”, muito comum nas obras devotas do período moderno.

Essa “novela alegórica” estabelece uma relação de diálogo com o leitor, enquanto manual de instrução para ser (re)lido inúmeras vezes, que exemplifica os “requisitos para chegar à salvação” com suas dificuldades e riscos, tornando-se “mais próxima da vivência dos leitores” (Panazzolo e Massimi in Massimi, 2012, p. 207). A eficácia da proposta apresentada pelo padre estaria na disposição do leitor e na importância que o mesmo atribuiria à leitura (passatempo ou proveito), de modo que somente a leitura “para proveito” seria de grande “lição espiritual” (Massimi, 2012, p. 46).

O livro organizado por Massimi é uma contribuição à História do Brasil, especialmente à historiografia do período colonial, por considerar e interpretar a sensibilidade religiosa jesuíta no contexto de expansão da moral tridentina e da retórica dual barroca (paraíso-inferno, salvação-condenação, verdade-mentira, bem-mal), bem como as práticas de leitura dos manuais de devoção e sua circulação pela América Portuguesa, como se percebe, sobretudo, nos elucidativos textos de Marina Massimi (Texto introdutório) e de Nayara Aparecida Saran e Massimi (A peregrinação como percurso anímico: o percurso da Palavra e do Entendimento). No entanto, não há muitas referências ou exploração do contexto colonial em si, sobretudo em relação aos aspectos sociopolíticos, econômicos ou culturais da Colônia, das cidades por onde possivelmente o texto tenha circulado, como Salvador, Rio de Janeiro e Recife. Além disso, é possível dizer que os primeiros textos do item “Leituras da novela à luz da história dos saberes psicológicos e da história da cultura”, destacado no sumário, são construídos com repetição dos argumentos, que podem ser encarados como reforço intencional na análise da obra de Gusmão.

Na análise que empreendem do manual do padre Alexandre de Gusmão, o objetivo parece ser plenamente alcançado, qual seja, o de destacar a pretensão do manual de “evidenciar a importância do cuidado de si” e os “efeitos do descuido”, enfatizando o “conhecimento da pessoa e prática de orientação” do sujeito (Massimi, 2012, p. 34). É nesse sentido que, ao longo de todos os textos, os autores enfatizam a importância atribuída pelo padre Gusmão ao processo do desengano, que implicava o uso consciente da razão, à confiança na razão para atingir um entendimento considerado verdadeiro da realidade e para ordenar a vontade,4 levando ao discernimento. Esse processo de desengano seria facilitado na prática do exame de consciência e nas demais práticas religiosas, como a confissão, já que eram acompanhadas de recursos culturais como imagens sagradas, pinturas, músicas, etc.5 Na novela de Gusmão, “Desengano” seria um personagem que “fixa os olhos na verdade” (Massimi, 2012, p. 42, 48), e o desenganado seria aquele que reconhecesse a enganação do mundo, que conseguisse visualizar as virtudes do céu desvinculando-as das aparências e prazeres imediatos do mundo terreno (Saran e Massimi in Massimi, 2012, p. 230).

No artigo A experiência corporal na História do Predestinado Peregrino e de seu irmão Precito, a relação corpo e alma foi abordada por Lívia Tieri Kuga e Marina Massimi para enfatizar as metáforas do corpo que remetem aos sentimentos dos personagens (coração, olhos, carne, vestimentas/trajes e corpo/alma), baseadas na filosofia clássica e escolástica (Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino), de modo a demonstrar que as escolhas feitas em vida modificam não apenas o espírito, mas também o corpo de cada um. As autoras elaboraram um interessante índice ao final do capítulo, na medida em que referenciaram todas as expressões, metafóricas ou não, em que aparecem as estruturas corporais, como, por exemplo, “coração a ouvir”, “disse em seu coração”, “coração humilde”, etc.

Esse vínculo corpo/alma aparece ao longo dos textos que compõem o livro. Massimi destacou as “dimensões do dinamismo” do sujeito que seriam o corporal, o psíquico e o espiritual. O corporal estava no “gesto físico de peregrinar”, cujo movimento se vinculava aos estudos dos corpos e às teorias médicas acerca dos temperamentos.

O espiritual, o “núcleo temático central da novela”, uma vez que a leitura implicaria “envolvimento” e atitudes espirituais como a devoção – o apelo ao “devoto leitor” – estava no aprendizado de virtudes divinas, como a piedade, a obediência e a perseverança. Por fim, o dinamismo psíquico relacionava-se ao “funcionamento das potências da alma, suas operações, suas doenças e seus remédios”. As potências principais eram o entendimento e a vontade, cujo cultivo era de fundamental importância para o “bem viver” e para identificar as “enfermidades” da alma (Massimi, 2012, p. 34-37).

Massimi destaca que, no século XVIII, foi comum a presença do médico espiritual para a ordenação da vida pessoal dos fiéis, a partir da obra de Cláudio Acquaviva (1543-1615), Normas para a cura das enfermidades do ânimo (1600), que definiu os “vários tipos de doenças espirituais e de remédios para cada doença”; daí, então, o rótulo de medicina da alma muito recorrente na literatura jesuíta.

A atuação jesuíta, aliás, estaria vinculada à medicina do ânimo, à pregação e à pedagogia. Por “medicina da alma” a autora entende “um conhecimento do ser humano e de sua dinâmica psicológica que visa à adaptação deste ao contexto social de inserção” (Massimi, 2012, p. 50).

Marina Massimi assina outro texto com Maira Allucham Goulart Naves Trevisan Vasconcellos, que analisa outra obra que trata de peregrinação. Trata-se do Compêndio narrativo do Peregrino da América, escrito pelo padre Nuno Marques Pereira (1652-1728) e publicado em 1728.6 As autoras indicam a “grande circulação” e as várias reimpressões do manual do padre Pereira, nos anos de 1731, 1752, 1760 e 1765, mas não indicam quaisquer informações sobre os arquivos em que se encontram.7 No entanto, destacam que utilizam a sexta edição, publicada pela Academia Brasileira de Letras em 1939. A novela de  Pereira conta a viagem de um peregrino da Bahia a Minas Gerais no início do século XVIII. O Compêndio teria a finalidade de instruir e divertir o leitor por meio de contos e instruções de “como se deve viver para manter corpo e alma saudáveis e salváveis” (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 263). Para persuadir quanto aos preceitos de bem viver, Nuno Pereira buscava seus argumentos na Sagrada Escritura, em São João Crisóstomo e em Santo Agostinho.

Tal como a novela de Gusmão, a peregrinação é tanto o percurso geográfico percorrido pelo personagem principal – o Ancião – quanto o caminho existencial que conduz à eternidade (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 267), no qual era oportunizado ao homem o conhecimento de si e o desenvolvimento de virtudes.

Vale uma descrição um pouco mais apurada sobre a obra de Nuno Pereira – embora ocupe apenas um artigo do livro – para demonstrar a proposta do livro, que é a de apresentar os saberes dos jesuítas no Brasil Colonial. Se havia, no Compêndio, uma relação entre o bem viver e o bem morrer, da mesma forma havia doenças do corpo e da alma. A tristeza era um mal que, por exemplo, traria efeito na saúde do corpo, levando muitas vezes à morte súbita (uma má morte). As paixões eram empecilhos ao uso prudente da razão, e a demasiada tristeza levaria a doenças como lepra, sarnas, magreza, etc., cujos remédios variavam entre conversas, cheiros, ar do campo ou do mar e música. Aconselhava-se alimentação moderada, sono adequado, consumo de vinho, exercícios físicos, penitência, paciência, jejuns e disciplina. A salvação ou condenação da alma após a morte era determinada pela conduta na existência mundana (Vasconcelos e Massimi in Massimi, 2012, p. 271-278). O Compêndio, tal como A novela História, recebeu infl uência dos Exercícios espirituais de Inácio de Loyola e se apoiava nos escritos de Tomás de Kempis.8 O último artigo a integrar o livro organizado por Massimi é de José Eduardo Ferreira Santos (Peregrinos e viajantes: o homem em movimento, rumo ao destino, através da cultura popular e da música brasileira), um pequeno texto que, exceto por tratar de um tema em comum – a peregrinação, tomada genericamente como sinônimo de viagem e de romaria – destoa do objetivo geral da obra.

O texto de Santos busca identificar o peregrino/romeiro/ viajante na “cultura brasileira”, especialmente na música popular, o que é feito não sem algum juízo de valor, como ao se referir à canção “A triste partida”, de Luiz Gonzaga, destacando ser “muito famosa” e “belíssima”, que “revela uma das características mais complexas do homem moderno, que é a perda de suas raízes ocasionada pelas difíceis condições sociais” (Santos in Massimi, 2012, p. 288-289).

A obra organizada por Marina Massimi atinge plenamente os objetivos propostos, demonstrando a contribuição de autores da Companhia de Jesus no contexto luso-brasileiro da Idade Moderna para a “criação de formas, de métodos e de justificativas de um tipo de conhecimento da subjetividade e do comportamento humano” que deram origem à psicologia moderna (Massimi, 2012, p. 17).

Mesmo sem seguir uma perspectiva metodológica estritamente histórica, o livro é uma importante refl exão e contribuição à atual historiografia dedicada às práticas de leitura e à circulação, no Brasil, de obras religiosas editadas e publicadas inicialmente em Portugal da época moderna, bem como voltada à análise dos discursos cristãos para instruir a vida devota, para conduzir o fiel no caminho do bem viver, para exemplificar as condutas morais que garantiriam uma boa morte e uma eternidade feliz.

Referências

DAVIS, N.Z. 2001. Histórias de Perdão e seus narradores na França do século XVI. São Paulo, Companhia das Letras, 300 p.

DELUMEAU, J. 1989. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo, Pioneira, 301 p.

FLECK, E.C.D.; DILLMANN, M. 2013. Os sete pecados capitais e os processos de culpabilização em manuais de devoção do século XVIII. Topoi, 14(27):285-317.

FLECK, E.C.D.; DILLMANN, M. 2012. “A Vossa graça nos nossos sentimentos”: a devoção à Virgem como garantia da salvação das almas em um manual de devoção do século XVIII. Revista Brasileira de História, 32(63):83-118. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882012000100005 PERIER, A. 1724. Desengano dos pecadores, necessário a todo o gênero de pessoas, utilíssimo aos missionários e aos pregadores que só desejam a salvação das almas. Roma, Oficina Antônio Rossis na via do Seminário Romano, 439 p.

WITTMANN, R. 1999. Existe uma revolução da leitura no final do século XVIII? In: G. CAVALLO; R. CHARTIER (org.), História da leitura no mundo ocidental. São Paulo, Ática, vol. 2, p. 135-164.

Notas

2 Alexandre de Gusmão nasceu em Lisboa em 1629 (português, embora a autora se refira ao mesmo como “baiano” [p.18]), foi diretor do Colégio do Menino Jesus de Belém em Cachoeira do Campo, próximo a Salvador, na Bahia, local onde viveu e morreu em 1724. Foi autor de inúmeras outras obras sobre a “arte de viver”, como Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia [1685]; Escola de Belém, Jesus nascido no Presépio [1678]; Menino Christão [1695]; Maria Rosa de Nazaret nas montanhas de Hebron, a Virgem nossa Senhora na Companhia de Jesus [1715]; Eleição entre o bem e o mal eterno, O corvo e a pomba da Arca de Noé no sentido alegórico e moral [1734] (Massimi, 2012, p. 18).

3 É possível conferir os catálogos on-line em: http://www.bnportugal.pt; http://www.uc.pt/bguc; http://www.bn.br/portal.

4 Considerando que o público leitor (e ouvinte) das obras manuais de devoção era, em grande medida, feminino, é importante considerar a observação feita pela historiadora Natalie Davis para as características atribuídas às mulheres na França do século XVI. Elas eram caracterizadas com o termo “imbecillité”, que designava “a fraqueza mental e de vontade” (Davis, 2001, p. 126). Sobre a difusão maior da leitura entre o público feminino e para as instruções voltadas às mulheres, ver Wittmann, 1999, p. 143; Fleck e Dillmann, 2012, e Eliane Cristina Deckmann Fleck, Mauro Dillmann. “Remédios para amansar a fera”: as regras para o bem viver e as orientações para os mal casados viverem em paz em um manual de devoção do século XVIII (texto inédito).

5 Reflexões sobre o “desengano” parecem ter sido foco comum de muitos jesuítas, principalmente daqueles dedicados à pregação e à conversão. Um exemplo interessante, nesse sentido, é a obra do jesuíta italiano Alexandre Perier, que no final do século XVII atuou no Brasil, publicando em Lisboa, no ano de 1724, um manual que leva no título a palavra “desengano”. Alexandre Perier, Desengano dos pecadores, necessário a todo o gênero de pessoas, utilíssimo aos missionários e aos pregadores que só desejam a salvação das almas. Roma: Oficina Antônio Rossis na via do Seminário Romano, 1724. Uma análise desta obra pode ser conferida em Fleck e Dillmann, 2013.

6 As autoras indicam a influência da obra de Gusmão em Nuno Marques Pereira, mas destacam que teria sido retomada “quase cem anos depois”, quando, na verdade, entre a primeira edição de História do Predestinado Peregrino [1682] de Gusmão, e o Compêndio [1728], de Pereira, não chegou a se passar meio século.

7 No catálogo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi possível localizar quatro exemplares, dois de 1760, um de 1767 e um de 1939. Todavia, a obra continuou sendo editada, considerando que no Acervo da Biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – São Leopoldo/RS, existe edição de 1988 pela Academia Brasileira de Letras.

8 Tomás de Kempis (1379-1471) era alemão, autor da obra A imitação de Cristo, uma das que conheceu extraordinária difusão no início do período moderno, segundo Delumeau, e que recebeu impressão em diversas línguas, “umas sessenta vezes antes de 1500” (Delumeau, 1989, p. 77).

Mauro Dillmann – Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande. Campus São Lourenço do Sul Rua Marechal Floriano Peixoto, 2236, Centro 96170-000, São Lourenço do Sul, RS, Brasil. E-mail: [email protected].

Economia colonial | Revista Ultramares | 2014

A possibilidade de coordenar e apresentar um dossiê sobre economia em uma revista dedicada aos estudos coloniais é motivo de grande alegria. Nas duas últimas décadas a historiografia relativa à América portuguesa tem passado por transformações extremamente significativas. Em 1990, Ciro Cardoso já saudava os novos rumos historiográficos, ressaltando o que ele denominava de passagem do “esquematismo excessivo à relativa complexidade”1. Referia-se, então, à visão simplificadora do que seria a sociedade escravista brasileira, dividida entre senhores e escravos e caracterizada pelo trinômio latifúndio, monocultura e escravidão. Uma sociedade exteriorizada, sem qualquer dinâmica interna considerável. Naquele momento, as pesquisas que se contrapunham a essa perspectiva buscavam ressaltar a complexidade da sociedade brasileira e de suas dinâmicas internas, diminuindo ou negando a importância dos laços exteriores como elementos explicativos do devir colonial.

Estava-se ainda, no entanto, dentro do que nós poderíamos denominar de paradigma historiográfico da relação metrópole – colônia. Em linhas gerais, boa parte dos debates referia-se ao peso maior ou menor que tais relações possuíam para explicar a história colonial. Não é esse o espaço para retomarmos esse debate, por si só riquíssimo e cheio de consequências. No entanto, e só podemos perceber isso hoje pelo distanciamento que o tempo impõe, esse também era um debate marcado por um esquematismo excessivo. Leia Mais

A conquista das almas do oriente: franciscanos, catolicismo e poder colonial português em Goa (1540-1740) – FARIA (A)

FARIA, Patricia Souza de. A conquista das almas do oriente: franciscanos, catolicismo e poder colonial português em Goa (1540-1740). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. Resenha de: PANEGASSIL, Rubens Leonardo. Missionários franciscanos em Goa. Antítese, v. 7, n. 14, p. 521-525, jul. – dez. 2014.

Patricia Souza de Faria é uma jovem historiadora que tem se dedicado ao estudo da presença de missionários católicos nas conquistas portuguesas do Oriente. Patricia é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (2008), tendo realizado estágio de pesquisa no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Portugal. Com mais de uma dezena de artigos publicados, pode-se dizer que a autora é uma referência importante a todos os investigadores que pretendem se dedicar às questões relativas ao Oriente Português na Época Moderna.

Tradicionalmente, o tema da presença portuguesa no Oriente ao longo da Época Moderna apresenta-se associado a grandes nomes da historiografia, tais como Charles R. Boxer, Luís Filipe F. R. Thomaz e Sanjay Subrahmanyam. Entretanto, vale notar que o vigor e a capacidade de renovação desse campo é notável, sobretudo na produção historiográfica de nomes que tem alcançado visibilidade, tais como Ana Paula M. Avelar e Ines G. Zupanov. Por sua vez, no Brasil, o assunto ganhou aderência como objeto de estudo, evidente nos trabalhos de pesquisadoras como Célia Cristina da Silva Tavares e Andréa Carla Doré. Com efeito, Patricia Souza traz efetiva contribuição à consolidação deste campo entre os investigadores brasileiros, além de sanar uma grande lacuna no âmbito dos estudos sobre o tema das missões na primeira modernidade, tendo em vista que a autora se debruça sobre o papel dos franciscanos neste processo, uma ordem ainda pouco estudada, a despeito dos esforços de Alan Strathern e Ângela B. Xavier.

Apresentado originalmente como tese de doutorado, o livro traz substanciais modificações em relação ao trabalho original, visíveis no acréscimo de todo um capítulo, bem como na relevância dada aos franciscanos em sua relação com o Arcebispado de Goa. Além, evidentemente, da dilação do recorte temporal do estudo, notável nas modificações adicionadas ao segundo capítulo, que enfocam o início do século XVIII, ao passo que a pesquisa documental mais sistemática, objeto da tese, contemplava os séculos XVI e XVII. De todo modo, vale notar que tais modificações se mostram fundamentais para a contextualização da pesquisa nos quadros do Império Português e da História da Igreja.

Parte dos acréscimos feitos pela autora é o resultado natural dos avanços de sua investigação após o término de sua tese, mas também, de seu esforço em proporcionar um texto de leitura mais fluida, cujo intuito é atingir um público leitor mais amplo, para além dos especialistas acadêmicos. Ambição louvável, sobretudo por colocar à disposição dos leitores o resultado de sólida pesquisa documental, visto que Patricia lança mão de amplo material; sejam impressos, pesquisados em bibliotecas do Brasil e de Portugal; sejam manuscritos, pesquisados fundamentalmente em arquivos portugueses. Além, vale observar, da ampla bibliografia arrolada pela autora, que pode servir de guia a novos investigadores, mas também a todos os interessados no assunto.

O intuito do livro de Patricia Souza de Faria é inquirir sobre o papel dos franciscanos na cristianização de Goa e, certamente, é esta sua maior contribuição historiográfica. Com efeito, para alcançar seu intento, a autora parte da premissa de que foram as articulações existentes entre o poder temporal e as instituições religiosas que definiram as circunstâncias mais propícias para a difusão do catolicismo em Goa. De modo que a conversão dos nativos goenses atende ao interesse da Cora portuguesa em garantir a fidelidade política desses novos súditos, compulsoriamente integrados ao reino católico. Sem dúvida, são estas articulações e os procedimentos adotados em face da necessidade da inclusão destes súditos, naturalmente diversos em termos religiosos, que estruturam os cinco capítulos de seu livro.

É possível traçar um percurso geral do livro, tendo em vista que ele nos remete à gênese da presença lusa na Índia, bem como ao papel desempenhado por Goa nesse amplo espaço, marcadamente heterogêneo. A partir disso, podemos acompanhar a estruturação dos poderes na região e a decorrente centralidade de Goa, onde a presença franciscana é mapeada pela autora em sua especificidade, tendo em vista as profundas divergências internas da Ordem. Por fim, o livro encerra-se com uma reflexão muito original e relevante a respeito dos sentidos atribuídos pelos frades franciscanos às suas missões. Proposição inovadora, uma vez que dissona das intepretações mais clássicas a respeito do papel histórico da Ordem na Época Moderna.

Assim, o que Patricia nos apresenta, é um eficiente histórico da consolidação da presença portuguesa em Goa, a primeira conquista lusa no Oriente. Com efeito, atenta para o caráter predominantemente mercantil que caracterizou o império asiático de Portugal, bem como a imprecisão dos limites do Estado da Índia até o momento em que a cidade passou a ser sede do poder civil e eclesiástico. Em suma, a autora evidencia o fato de que foi ali, primeiramente, o lugar onde a soberania lusa se firmou no Oriente. Tendo sido sede do vice-reinado e do arcebispado, Goa foi o centro do poder civil e eclesiástico, lugar onde funcionou o único tribunal inquisitorial em espaço ultramarino.

É nesta perspectiva que ao longo de todo o primeiro capítulo Patricia Faria sustenta ter a conquista espiritual amparado a expansão do Império Português, enquanto o poder secular favorecia a difusão do Evangelho. Daí que a presença de ordens religiosas como a Companhia de Jesus, a Ordem de São Domingos, a Ordem de Santo Agostinho e a Ordem de São Francisco sejam compreendidas como importante complemento da arquitetura dos poderes civil e eclesiástico estabelecidos na região. Enfim, é esse o contexto apresentado pela autora em sua exposição sobre as estratégias dos grupos sociais locais na manutenção de suas identidades de casta entre os convertidos, bem como a continuidade de crenças e relações sociais preexistentes.

Definido o pano de fundo de seu trabalho, o livro se detém nas ações adotadas pelo Arcebispado de Goa em face da necessidade de cristianizar as populações locais. Com efeito, tais procedimentos variam de acordo com o contexto. Ou seja, se num primeiro momento, ainda sob o cetro de D. Manuel, houve maior tolerância religiosa por parte do pequeno número de frades e clérigos que acompanhavam as embarcações que aportavam na cidade, a política religiosa tornou-se mais pragmática ao longo do reinado de D. João III, sobretudo a partir de 1540, quando tem inicio a destruição perpetrada por Miguel Vaz e Diogo da Borba aos pagodes brâmanes. Em suma, na perspectiva de Patricia Faria, paralelamente à tentativa de promoção sistemática do catolicismo em Goa, o que se verificou foi a intolerância e o afastamento progressivo dos nativos das altas esferas de poder no Estado da Índia, bem como dos cargos eclesiásticos de maior dignidade.

Nesse ponto, o livro estende sua análise e atravessa o período da União Ibérica. Com isso Patricia Souza de Faria não perde a oportunidade de nos apresentar o impacto da Monarquia Dual sobre a gestão dos assuntos eclesiásticos nas possessões portuguesas, período que foi marcado pela condução das populações cristianizadas à obediência da Igreja Romana. Todavia, com a União Ibérica, e principalmente após a ascensão de D. João IV, a Coroa portuguesa perderia espaço na região, notavelmente a partir da revisão das tradicionais concessões papais do Padroado levadas a efeito pela Propaganda Fide, o que definiu um novo contexto missionário na região.

Com efeito, estes diferentes contextos ganham contornos bem definidos quando Patricia Souza de Faria se atém especificamente ao papel dos franciscanos na conversão dos indianos ao catolicismo, notavelmente a partir da estabilização de uma rede paroquial nas Velhas Conquistas. Em suma, é rico o trabalho despendido pela autora na recuperação do rigoroso espírito de renuncia que tradicionalmente caracteriza os franciscanos, bem como seu impacto no interior da própria Ordem de São Francisco, com a estruturação de movimentos como o da Observância e seu êmulo da mais Estreita Observância. Por sua vez, tais movimentos, que traduzem divergências internas sobre o que seria o “verdadeiro franciscanismo”, encontraram reverberação na Índia, onde se associam a outras controvérsias, como a luta pela condução institucional das custódias e províncias, ou a situação de conflito que se desenhou entre os franciscanos e os moradores de Goa, que acusavam os primeiros de infringirem lhes castigos corporais e prisões.

Definitivamente, é sua percepção do significado atribuído pelos próprios franciscanos à missão na Índia a maior contribuição do livro de Patricia Souza. A autora não apenas se debruça sobre uma ordem ainda pouco estudada, mas também procura superar algumas interpretações estereotipadas, que definem as missões franciscanas no Oriente como herdeiras de uma cosmovisão medieval, que impunha limites à compreensão de tradições e crenças locais, e teria comprometido o êxito missionário da Ordem. O esforço de superação desses estereótipos conduz Patricia à percepção do horizonte de expectativa dos próprios franciscanos, em que noções como “êxito” e “fracasso” perdem sentido em face de suas concepções no que tange aos métodos de adaptação missionária, que é o elemento estruturante do sentido de missão partilhado pelos frades.

Com efeito, para alcançar este horizonte e acessar o sentido contextual destas missões, Faria se atém à escrita de sua história. Ou melhor, à quase total ausência deste gênero entre os frades franciscanos. De fato, a autora reconhece que, muito embora a Ordem de São Francisco tenha legado aos historiadores e pesquisadores uma profusão de escritos de cunho apologético e hagiográfico, elaborados principalmente ao longo da Idade Média, a ação da Ordem na Índia não ganhou espaço na produção historiográfica dos frades em um primeiro momento. A primeira crônica franciscana, de autoria de frei Francisco Negrão, foi escrita quase cem anos após a fixação da Ordem na Índia, contudo, esta obra se perdeu. Por sua vez, esta escassez de escritos torna-se mais marcante quando comparada à abundância da produção jesuíta, bem como as reconhecidas implicações de seu uso na confecção da propaganda inaciana. Na perspectiva da autora, esta característica circunscreve a especificidade do apostolado franciscano, que privilegiava as formas orais para o testemunho de seu ministério. Um ministério cujo sentido apoiava-se na graça e no fervor religioso, mas que, todavia, estava destinado à obsolescência, tal como sugere a autora.

De todo modo, o livro enfrenta a questão da construção da memória franciscana e nos apresenta um rico debate a respeito deste assunto. Para isso, Patricia Souza de Faria recupera os escritos de três autores que se detiveram sobre a Ordem: frei Paulo da Trindade, que exalta os feitos dos frades da Regular Observância; frei Jacinto de Deus, que registra a história dos franciscanos da mais Estreita Observância; e frei Miguel da Purificação, que por sua vez reclama o direito dos religiosos filhos de portugueses nascidos na Índia ocuparem cargos eclesiásticos. A despeito da especificidade de cada um dos autores, todos estes frades procuram reabilitar e exaltar os feitos dos franciscanos, sobretudo a partir da ratificação do pioneirismo e da vocação missionária da Ordem. Com efeito, na perspectiva de Patricia, a existência desta literatura, produzida a partir da primeira metade do século XVII, é um indício seguro da necessidade de se evidenciar a capacidade de atuação da Ordem de São Francisco Índia.

Entretanto, para além das narrativas, Patricia Faria atenta para as diferentes trajetórias de vida de seus autores, tendo em vista questões relevantes, referentes aos sentidos da pureza de sangue e distinção social, que se desdobram dos embates polêmicos a respeito da origem dos clérigos, apresentados nas obras de autoria dos franciscanos, notavelmente na de Miguel da Purificação. Em suma, vale lembrar que todos estes religiosos são luso-descendentes e apresentam uma perspectiva depreciativa do Oriente, sendo que Trindade concebia a si mesmo tão português quanto qualquer outro nascido no reino, ao passo que Jacinto de Deus e Miguel da Purificação enfrentaram com maior vigor o fato de terem nascido na Ásia, e por isso compartilhavam a preocupação de reforçar sua distinção em relação aos demais grupos de nativos.

Em conclusão, o que se nota é a lenta estruturação de uma duradoura marginalização do clero nativo, uma vez que somente em 1927 um goense viria ocupar o arcebispado. Por fim, é imprescindível assinalar que Patricia Souza de Faria nos apresenta uma obra de fôlego, resultante de inquietações epistemológicas originais, bem como da leitura, análise e confrontação de fontes. Daí que o livro nos chega em bom momento.

Rubens Leonardo Panegassil – É graduado em História pela Universidade de São Paulo (2004) e graduado em Comunicação Social pela Fundação Armando Álvares Penteado (1999). É mestre (2008) e doutor (2013) em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor de História Moderna e Contemporânea do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa.

Inconfidência no Império: Goa de 1787 e Rio de Janeiro de 1794 | Anita Correia Lima de Almeida

Publicado em 2011, Inconfidência no Império é fruto da tese de doutorado de Anita Correia Lima de Almeida defendida em 2001 na UFRJ. A obra é um exercício de história comparada que aborda duas Devassas ocorridas em duas colônias geograficamente distantes do Império Português: a prisão dos padres em Goa, no ano de 1787, e a devassa contra os membros da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, em 1794. Sobre a primeira, existem pouquíssimos estudos publicados no Brasil, enquanto a respeito da Devassa contra os letrados cariocas há uma quantidade considerável de estudos publicados ao longo das últimas décadas.

A divisão do livro em três partes é embasada na noção do século XVIII “de que a máquina política deveria amparar-se nos prêmios e nos castigos” (p.22), sendo a primeira “Os Castigos” (capítulos 1 e 2), a segunda “Os Prêmios” (capítulos 3 a 7) e a terceira, “O louco desejo da liberdade” (capítulos 8, 9 e conclusão). Na introdução da obra, a autora denota que o estudo não seguirá um aporte historiográfico tradicional sobre o tema das “Inconfidências”, distanciando-se da categoria de “Revolução Atlântica”, de Jacques Godechot e buscando a semelhança de ambos os eventos “pelo fato de tanto os letrados naturais de Goa como os fluminenses terem sido alvos da mesma política pombalina que se espraiou de Lisboa para todo o Império na segunda metade do século XVIII” (p.19-20). Parte a autora, portanto, da “relação entre os letrados do ultramar e o pombalismo”. (p.20) A escolha em trabalhar esses dois episódios se deveu não só à interação entre os letrados e a coroa, mas ao fato de que entre os acusados em ambas as Devassas não estão arrolados homens de grandes posses ou endividados com a coroa portuguesa (caso, por exemplo da Inconfidência Mineira). Aqui, no tocante à Devassa do Rio de Janeiro, a autora segue em grande parte o caminho interpretativo de No rascunho da nação: Inconfidência no Rio de Janeiro (1992), de Afonso Carlos Marques dos Santos, realizando boas considerações acerca do quadro, redigido por A. Santos, de composição social dos acusados e testemunhas no processo, e conclui que “a maior parte deles é constituída, certamente, por homens em cujas vidas o estudo formal ocupara um papel importante. (…) E mesmo quando os acusados são oriundos de extratos menos favorecidos, a possibilidade de participar dos ‘conventículos’ está dada pela instrução que possuíam.” (p.67)

Ponto fulcral para o trabalho é a desilusão que os letrados residentes em Goa e na América Portuguesa tiveram com a política imperial e que, no primeiro caso, resultou em um plano de sublevação e, no segundo, em conversas sobre temas proibidos. Ademais, a escolha do uso do vocábulo Inconfidência se deve ao sentido de traição que esta palavra acarreta, “a traição contida na atitude de homens que – aliciados – deveriam ter sido fiéis até o fim, e não o foram”. (p.23)

Outro aspecto relevante está na percepção do caráter exemplar que assumiu a Revolução Americana de 1776 para os letrados luso americanos, o que A. Almeida evidencia ao analisar o episódio das cartas assinadas “por um brasileiro” (p.67), com o pseudônimo de Vendek, a Thomas Jefferson. Na continuação deste excerto, a autora afirma existir um grande descontentamento entre os nascidos na América Portuguesa (aos quais insistentemente utiliza a denominação de “brasileiros”), sendo “os homens de letras” (p.68) responsáveis por liderar a fila de descontentes com o Império.

Cabe atenção também à relevância que a autora dá a uma suposta dicotomia entre reinóis e nascidos na colônia, tendo por base argumentativa a interpretação de Charles Boxer de que “preconceitos raciais” explicariam a grande diferença no número de condenados à morte na Inconfidência de Goa, quinze, e na Inconfidência Mineira, um. Para ratificar essa observação, a autora considera que a conjuntura política teria se modificado nos dois anos que separam ambos os movimentos, considerando que “as notícias da Revolução Francesa chegaram a Lisboa junto com as notícias do frustrado levante em Minas” (p.70). Assim, a maior radicalização na conjuntura europeia teria levado a um “processo de acomodamento” e um “estreitar dos compromissos entre os colonos e a Coroa” (p.70) que ajudariam a explicar a punição menos severa aos inconfidentes de Minas. Tal explicação parece contestável se levarmos em conta a severidade com a qual foi levada a perquirição sobre o suposto plano de levante no qual estavam envolvidos os presos da Devassa de 1794. Foram mais de dois anos de cárcere para esses acusados, sendo que a situação só foi resolvida devido à pressão dos réus junto ao Ministro do Ultramar, D. Rodrigo de Souza Coutinho, que ordenou ao Vice-Rei Conde de Resende decidir-se entre soltá-los ou enviá-los a Portugal. Portanto, percebe-se aqui que a busca por enquadrar as “Inconfidências” dentro de um processo maior, europeu, e de um modelo historiográfico que procurou enquadrar esses movimentos como “reflexos” da Revolução Francesa e de suas ideias, em primeiro lugar e, em menor escala, da influência da Revolução Americana. Tal perspectiva acaba por reduzir as especificidades do pensamento dos envolvidos nas devassas pesquisadas. Poderia ser proveitosa a inclusão, no livro, de mais trabalhos de István Jancsó, sobretudo seu capítulo na História da Vida Privada no Brasil, bem como da tese de Gustavo Tuna sobre o episódio de 1794, defendida na USP em 2009.

Uma arguta observação feita pela autora sobre os documentos de ambas as Devassas, Goa e Rio de Janeiro, e que tem por base dois artigos de David Higgs, é a coexistência de certas críticas à religião e à monarquia de longa data (por exemplo ao refutarem a veracidade da Sagrada Escritura), com críticas relacionadas a conjuntura das Devassas, como no deboche ao reinado de D. João V e ao fanatismo do príncipe D. João VI.

Na segunda parte do livro, No capítulo “O alvará pombalino contra a discriminação dos naturais de Goa”, a autora se vale do argumento novamente de Charles Boxer sobre a “aproximação entre os letrados de várias regiões do ultramar, alvos dos mesmos projetos pedagógicos” e da “política de não discriminação dos naturais” (p.92) para realizar a comparação entre os nascidos na América e os nascidos em Goa (inclusive apontando semelhanças entre a legislação do norte da América Portuguesa com a aplicada em Goa). Inicia o capítulo com apontamentos de Matias Aires sobre a necessidade de se valorizar uma “nobreza de espírito” (letrada) em contraposição à “nobreza de sangue” (p.75) e à tentativa de Pombal levar em conta essa diferenciação, inclusive pelo fato do ministro ser um “novo rico” (p.76). A autora associa essa problemática à discriminação que setores mais conservadores, sobretudo os padres responsáveis pelo ensino, tinham perante os nascidos em Goa e no Rio de Janeiro, pois para a autora ambos “foram alvos de políticas que conservavam algo em comum” (p.92). Políticas estas que, segundo Almeida, buscavam tornar “os naturais habilitados para todas as honras, dignidades, empregos e postos” (p.84). Essa valorização está explicita na análise que a autora faz da Instrução Quatro de 1774 na qual a decadência de Portugal só seria revertida se os portugueses conseguissem “atrair e aliciar a afeição dos naturais” (p.89). Uma dificuldade enfrentada por estas medidas era a concepção por parte de certos atores políticos do período de uma suposta superioridade na cultura portuguesa e europeia em relação às indígenas, bem como a intolerância com os costumes destes demonstrada na atividade de órgãos como o Tribunal da Inquisição de Goa e da parte dos jesuítas, que em seus aldeamentos tutelavam a população local e atrasariam a incorporação desses grupos como súditos do Império. A autora cita o caso dos brâmanes, que na sociedade de castas eram associados a postos de maior prestígio, ligados à religião e à educação, enquanto na “sociedade indo-portuguesa” (p.91) perderam postos na hierarquia social.

No capítulo “O Projeto de reedificação da cidade de Goa”, é feita uma análise dos projetos urbanísticos empreendidos pela coroa portuguesa desde D. João V, e aprimorados por Pombal. O texto trata da reconstrução de Lisboa após o terremoto, momento em que se traça um projeto sistemático que, segundo A. Almeida, seria a expressão de uma “nova mentalidade urbana” (p.96). Na América Portuguesa, existiria um planejamento urbanístico (em cidades do Norte da colônia como Belém, Macapá e Mazagão) associado, segundo a historiadora, a um “‘projeto civilizacional’, criado a partir da necessidade de mediar os conflitos entre colonos e índios” (p.97). Nessa interpretação, salta aos olhos o bom uso de bibliografia de pesquisadores da arquitetura colonial, como Roberta Marx Delson e sua proposta de planificação das cidades coloniais brasileiras; ao aproveitar esse argumento para tratar do caso de Goa, A. Almeida faz um interessante aporte sobre a situação insalubre da “Goa Velha”, atingida por constantes epidemias de cólera, tifo e malária. Aborda o projeto pombalino de reedificação da vila, decretado em 1774, ponto a ponto, bem como a atuação do governador D. Pedro José da Câmara. O projeto não avançou, e para a autora é justamente a expectativa imbuída neste plano que importa: “o que terá significado para esses letrados naturais as tentativas pombalinas de reforma da Índia Portuguesa (…) numa espécie de utopia regressiva e ao mesmo tempo voltada para o novo e, por outro lado, na possibilidade de absorção dos naturais, através do fim da discriminação, que se espraiava o projeto civilizacional pombalino para o oriente português” (p.105).

Ao abordar a Reforma dos Estudos Menores, reforma esta atrelada à reformulação dos currículos da Universidade de Coimbra em 1772, é feito um esboço sobre o cenário existente antes da implementação das Aulas Régias, bem como do pensamento educacional português de meados do século XVIII (principalmente de Ribeiro Sanches e Verney) e a vontade política de Pombal e seus ministros em reduzir o controle jesuítico perante a educação, sobretudo no ambiente colonial, procurando modernizar o sistema e acabar com os métodos empregados pelos religiosos.

A criação das Aulas Régias de Latim, Grego, Retórica e Filosofia Racional e Moral em 1772 propiciou, segundo a autora, a profissionalização do magistério e retirou o vínculo dos professores da esfera eclesiástica, ao mesmo tempo em que valorizou os mestres outorgando-os títulos de nobreza. Entretanto, na prática, muitos problemas surgiram, como a falta de pagamento dos professores régios e a disputa por alunos com os padres.

A figura do padre Caetano Vitorino e suas requisições na Corte pela ordenação de goeses a cargos eclesiásticos e administrativos tem aspecto central para construir a justificativa da autora em comparar os anseios dos letrados da América Portuguesa e de Goa. A autora compara o padre Vitorino a Silva Alvarenga no tocante à confiança de ambos nos “novos tempos” (p.155) trazidos pelo governo de Pombal, e na possibilidade de obterem reconhecimento social por seus serviços prestados à coroa.

No capítulo “a Sociedade Literária, Silva Alvarenga e a Arte Poética”, há o aprofundamento na questão das Academias e de como estas se tornavam espaço de desenvolvimento de estudos sobre a viabilidade econômica de plantas e outros produtos coloniais. No caso do Rio de Janeiro, é abordada a Academia Científica de 1772, fundada com apoio do Vice-Rei Marques de Lavradio com o intuito de aprimorar a produção e utilização de produtos coloniais, como o linho do cânhamo ou a guaxima, além de investirem na descoberta de plantas de uso comercial e/ou medicinal. Assim, esta associação, estava inexoravelmente ligada ao projeto pombalino, assim como a Sociedade Literária esteve, e a atividade do seu membro e professor régio, João Manso Pereira, mineralogista que pesquisou diversos assuntos, comprova. É bastante contundente a observação de como os textos dos agremiados debatiam renomados autores europeus como Buffon, refutando inclusive argumentos deste a respeito da “formação do universo” (p.172).

A autora correlaciona o fato de Manuel Inácio da Silva Alvarenga pertencer a academia à sua preocupação em justificar a utilidade didática de sua poesia, concatenando o “discurso literário” a uma “obrigação cívica” (p.181). Para A. Almeida, esse tipo de preocupação expressaria a “função” do letrado de ser uma espécie de ponte entre a “civilização europeia e sua terra natal” (p.183). É a partir desse excerto que a autora desemboca em um dos principais argumentos de sua tese, de que a frustração dos letrados com o insucesso de seus planos em ascenderem dentro da burocracia imperial, atrelados a um objetivo maior da Coroa Portuguesa, seriam a base, ou justificativa, para o movimento revoltoso de Goa e os acalorados debates sobre temas escusos que levou a prisão dos letrados no Rio de Janeiro. Assim, o fracasso das aulas régias, a não equiparação prática entre reinóis e nascidos em Goa, a insatisfação com o governo do Conde de Resende seriam parte dos “planos abandonados pelo meio, de promessas que o futuro não cumpriu, na qual, acredita-se, encontram-se as raízes do descontentamento dos homens de letras do ultramar” (p.194).

No último capítulo da obra intitulado “O precipício”, a autora considera que o aprendizado da Retórica teria uma “função heurística, de descoberta” (p.204). Ou seja, foi o principal instrumento disponível para os letrados no ambiente colonial poderem questionar as atitudes da metrópole. Assim, aponta-se uma contradição da política pombalina que, segundo a autora, Antônio Nunes Ribeiro Sanches já havia demonstrado em seus escritos a respeito das aulas régias nas colônias, sendo que estas “tinham ajudado a criar entre os súditos naturais o desejo de adquirirem honras (…) e, facilitado certo aprendizado político” (p.204). Portanto, para a autora, “como se quer sugerir, a transformação dos letrados reformistas em inconfidentes tenha sido auxiliada pelo próprio pombalismo, que ofereceu alguns caminhos, como o da retórica” (p.204). Influenciados pela conjuntura internacional, os letrados ressignificavam as obras de Mably e Reynal a partir de sua insatisfação e de seus desejos em se rebelarem contra a metrópole, assim como os revolucionários das Treze Colônias fizeram. A autora reafirma, ao fim do capítulo, a sua proposição de que foi do desejo frustrado em se tornarem vassalos úteis do Império Português que esses letrados “abraçaram ideias – que lhes eram então oferecidas com fartura – contrárias à autoridade da metrópole e, por fim, ao próprio estatuto colonial”.

Ao analisar minuciosamente duas Devassas ocorridas em colônias espacialmente distantes e, em um plano maior, as políticas do Império Português na segunda metade do século XVIII o livro traz as semelhanças que a trajetória dos padres inconfidentes de Goa e os letrados devassados do Rio de Janeiro tinham dentro do projeto pombalino, e as suas decepções ao perceberem o insucesso deste. Inconfidência no Império é uma obra que alia a exaustiva pesquisa documental a uma leitura fluida e agradável, e é de suma importância para os estudiosos da história do Império Português em fins do século XVIII, no ministério de Pombal e no impacto de suas políticas pombalinas no ultramar e aos que buscam compreender a conjuntura das colônias neste fin-de-siècle politicamente agitado.

Lucas Gallo Otto – Graduando no departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP – São Paulo/ Brasil) e bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-mail: [email protected]


ALMEIDA, Anita Correia Lima de. Inconfidência no Império: Goa de 1787 e Rio de Janeiro de 1794. Rio de Janeiro: 7 letras, 2011. Resenha de: OTTO, Lucas Gallo. Frustração, retórica e sublevação: uma leitura sobre as “Inconfidências” de Goa (1787) e do Rio de Janeiro (1794). Almanack, Guarulhos, n.8, p. 157-161, jul./dez., 2014.

Acessar publicação original [DR]

La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal – VINCIGUERRA(CE)

VINCIGUERRA, Lucien. La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 2013. Resenha de: KONTIC, Sacha Zilber Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.31, jul./dez., 2014.

O estudo do estatuto da representação nos filósofos seiscentistas é um ponto recorrente em toda a fortuna crítica que aborda a filosofia da época e, deste ponto de vista, a obra de Lucien Vinciguerra retoma um tema clássico. Entretanto, ao invés de se colocar de partida no interior do discurso filosófico, o autor se propõe a analisar o problema da representação nos filósofos em questão a partir de operações e dispositivos que não são ele s mesmo s filosófico s. É o caso da s equações cartesianas das curvas e de seu regime de diferenças, de metáforas, como a do cego da dióptrica de Descartes, do sonho de Teodoro na Teodiceia de Leibniz, do espelho e da anamorfose como modelo das ideias confusas em Locke, da figura do hexagrama místico e da interpretação da bíblia em Pascal.

Por este procedimento, Vinciguerra visa estabelecer um debate direto com As palavras e as coisas de Foucault. Enquanto Foucault se propunha a fazer uma história filosófica das transformações da cultura na era clássica buscando o fundamental destas transformações no exterior da própria filosofia, ou seja, uma arqueologia do pensamento e não uma história da filosofia, Vinciguerra busca na arqueologia foucaltiana um ponto de partida para se voltar à história da filosofia.Ao romper as continuidades aparentes entre as filosofias clássicas e as modernas a partir de conhecimentos estrangeiros à própria filosofia, Foucault demonstra haver entre elas familiaridades enganosas, levantando problemas que a história da filosofia não possuía métodos para trazer à superfície. Ao mesmo tempo, a importância das diferenças entre as diversas filosofias são minimizadas em favor de um elemento que resta implicitamente comum a elas. A arqueologia do saber dissolve assim o trabalho do historiador da filosofia em favor de uma história mais ampla do pensamento.

A mudança do regime representativo dos signos, que é a marca da episteme clássica, leva Foucault a privilegiar a análise da linguagem no discurso filosófico e na produção do saber, mas, observa Vinciguerra, deixa de lado a relação deste regime dos signos com a matemática. É partindo da relação entre a matemática e a linguagem que o autor vai interrogar os filósofos em questão para tentar elaborar como, apesar das diferenças radicais em suas concepções representação, os quatro filósofos podem compartilhar de uma mesma episteme. Ela mostrará que o regime dos signos no saber clássico aponta – talvez contra a intenção dos pensadores em questão – para uma concepção de representação na qual o signo se anula enquanto signo e traz em si a presença mesma daquilo que é representado. Em outras palavras, a representação excede – se a si mesma.

Ordem de exposição escolhida por Vinciguerra já evidencia o tipo de história da filosofia que é proposto neste livro: não se trata de um estudo cronológico ou genético de um conceito, mas sim a tentativa de encontrar dispositivos que evidenciem um elemento comum na concepção de representação entre os quatro filósofos. O exame se inicia com a descrição do sonho de Teodoro, alegoria narrada por Leibniz nas últimas páginas da Teodiceia na qual, guiado por Palas, Teodoro é levado à pirâmide de infinitas salas, cada uma representando um mundo possível, e nas quais se encontram os livros, cujas páginas contém o destino de cada pessoa de cada mundo possível. Basta que ele passe as mãos sobre as letras deste s livros para que lhe seja representado visivelmente, como que em uma olhadela, o que é dito pelas palavras escritas, assim como o destino destas pessoas, tudo aquilo que elas fazem, percebem, pensam, suas posteridades. O mundo representado pelas letras de desdobra em um mundo visível, em uma presença ilimitada que é representada por aqueles caracteres presentes no livro.

O que interessa o autor nesta alegoria é menos a sua importância como parte da teoria leibniziana dos mundos possíveis ou de sua noção d e representação como expressão do que o caráter “exemplar” que o signo toma no seu interior. Ao ser lido, ele nos leva a uma presença que está além dele mesmo, uma presença que é em si ilimitada. É esse mote de um “signo excessivo” que guia a sua busca por uma episteme comum entre a filosofia da representação destes quatro filósofos. Mas aquilo que pode ser facilmente identificado em Leibniz como uma consequência de seu sistema filosófico, e principalmente de sua concepção de expressão, é visivelmente mais difícil encontrar nos demais, e principalmente no caso de Descartes.

Não é, portanto, por acaso que a análise da questão da representação em Descartes ocupe a maior parte do livro.

Ao mesmo tempo em que ela é fundamental para sua tese, considerando o papel evidentemente fundamental que Descartes possui na filosofia seiscentista, essa noção de uma representação excessiva não pode ser encontrada no local onde a questão da representação aparece de forma mais clara, a saber, na sua teoria da ideia. A ideia para Descartes é representativa justamente por ser como a coisa mesma no intelecto. Ela não é um signo, mas sim a realidade objetiva da coisa tal como se encontra em nossa mente.

Consciente desta limitação, Vinci guerra busca inicialmente na equação das curvas da Geometria e, em seguida, na descrição da linguagem e d a percepção sensível no Mundo, na Dióptrica e na regra XII das Regulae o mesmo princípio que regra a concepção de signo e de representação que encontra no sonho de Teodoro de Leibniz. Na equação da curva, a sua decomposição em curvas cada vez mais simples permite com que, no final da série, a curva mais complexa seja reencontrada e descrita de um modo claro e distinto. A série em sua totalidade de curvas mais simples representa a curva mais complexa sem, entretanto, contê – la em sua totalidade. É por este mesmo paradigma que o autor passa à interpretação do papel das diferenças nas impressões sensíveis tal como descritas por Descartes, para quem toda a representação sensível não é a representação de uma diversidade, mas que em si não possui relação com o objeto percebido.

É assim que na regra XII das Regulae as diversidades das cores podem ser comparadas às diversidades das figuras. O que percebemos é apenas a codificação desta diversidade, tal como ela se relaciona com nós, e não as coisas mesmas. O mesmo princípio é explorado pelo autor a partir da metáfora cartesiana do cego com sua bengala, presente no primeiro e quarto discurso da Dióptrica . O cego, ao tocar o solo com sua bengala, reconhece pela vibração transmitida pela bengala até a sua mão a diferença entre o solo duro, a terra e a areia. É de forma análoga, diz Descartes, que recebemos a diversidade de coisas que afetam nossos olhos, como simples vibrações que em nada de assemelham à coisa percebida. Para considerar as sensações na filosofia cartesiana como signos legíveis tais como as letras dos livros do sonho de Teodoro, Vinciguerra centra a sua análise na possibilidade de encontrar n essa diversidade a leitura de um signo que, decifrado, nos remeta à verdade das coisas, mesmo que confusamente. De fato, Descartes afirma que há uma instituição da natureza – que diz respeito sobretudo à vida prática – pela qual nos guiamos pelo mundo sensivelmente percebido. Face, nas palavras do autor, a essa “metalinguagem desconhecida”, cabe descobrir se há um espaço na filosofia cartesiana pelo qual possamos dizer que é possível reencontrar essa metalinguagem e descobrir na diversidade presente na impressão sensível uma transparência tal como no sonho de Teodoro. Segundo o autor, podemos afirmar isso partindo da descrição de Descartes, feita no início do Mundo, entre as sensações e as palavras, cuja relação com as coisas significadas se dá unicamente pela instituição humana. Por mais que não haja semelhança, ao ouvir uma frase ou ler um texto podemos compreender o seu sentido por mais que não haja semelhança alguma entre o discurso percebido sensivelmente (seja pelo som, seja pela vista) e o seu significado. É claro que no caso de Descartes não se pode falar de uma interpretação – dado que para ele o entendimento é sempre passivo – mas, sim, defende Vinciguerra, de um apagamento do signo que desaparece enquanto coisa ao nos representar seu objeto . Diversos comentadores já notaram o caráter contraditório desta comparação entre a linguagem e a sensação em relação ao restante da filosofia cartesiana, em geral explicado pelo caráter mais físico do que metafísico do tratado. Vinciguerra assume ser, ao lado de Pierre Guénancia, um dos únicos a atribuir uma relação estreita tão entre a linguagem e a sensação. Isto permite com que o autor considere tanto as diferenças entre as sensações da regra XII quanto a metáfora da bengala do cego ao mesmo nível da linguagem no interior da filosofia cartesiana. O seu método de história da filosofia parece desobrigá – lo de analisar a coerência desta tese com o restante da filosofia cartesiana, o que certamente o levaria a considerar obra de Descartes contraditória ou, ao menos, defender uma posição bastante heterodoxa sobre o problema do conhecimento sensível .

Essa omissão o permite passar facilmente da comparação da linguagem com o sensível no Mundo para a consideração da sensibilidade em toda a obra cartesiana como o decifrar de um signo, cujo conteúdo representativo reconduziria a coisa representada. É também no conhecimento confuso que o autor encontra esta noção de signo e de representação em Locke, mas agora na metáfora da anamorfose e do espelho contida no capítulo 29 do livro II do Ensaio sobre o entendimento humano . Nela, as figuras deformadas que dependem de um espelho especial para serem vistas correspondem às ideias que, ao serem relacionadas com uma linguagem inadequada a elas, são confusas até que essas palavras sejam corrigidas. Aqui Vinciguerra encontra novamente a figura da representação que excede o signo na imagem anamórfica que Locke compara à ideia confusa e a possibilidade de encontrar nela a imagem realmente representativa.

No caso de Pascal, apesar de não possuir propriamente um questionamento filosófico sobre a representação, é o mesmo dispositivo matemático da anamorfose que o autor encontra em jogo na análise das secções do cone, a saber, a geometria projetiva inspirada por Desargues. Ela permite com que Pascal postule uma identidade entre figuras diferentes (por exemplo, entre o círculo e a parábola) através das relações que se conservam a partir de sua produção como secção do mesmo cone. Assim, uma mesma figura pode conter representativamente, a partir das relações invariantes, uma infinidade de figuras relacionadas. É o mesmo regime de representação que, segundo o autor, se encontra na concepção de Pascal da exegese bíblica, pela qual o movimento interpretativo permite encontrar o sentido imanente no interior das escrituras. Ao se propor a pensar o problema da representação na filosofia seiscentista a partir de uma reflexão foucaultiana, Vinciguerra faz um louvável exercíc io de repensar o papel e os métodos da história da filosofia. Entretanto, suas análises, ao buscarem em cada um dos autores tratados apenas o suficiente para encontrar a episteme que propõe para a época, não fornecem um aprofundamento da questão, assim com o não pensam o seu papel no interior do pensamento de cada filósofo. Também, ao deixar de lado a influência que cada um dos filósofos teve sobre o demais, assim como as críticas aos seus antecessores, Vinciguerra perde a oportunidade de analisar as por vez es singelas continuidades e rupturas presentes nas teorias da representação em questão. Para as quais Leibniz, mais do que fornecedor de uma “fantasia exemplar”, seria pela natureza dialógica de sua filosofia um campo de análise privilegiado.

Referência

VINCIGUERRA, Lucien. La Représentation Excessive: Descartes, Leibniz, Locke, Pascal. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 2013. Resenha de: KONTIC, Sacha Zilber Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.31, Jul – dez 2014.

Sacha Zilber Kontic – Doutorando, Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

Macabéias da colônia: criptojudaísmo feminino na Bahia – ASSIS (PL)

Em 1497, os judeus portugueses foram convertidos à força e transformados em cristãos-novos. Apesar disto, uma considerável parcela destes, agora chamados, antigos judeus, continuou praticando e repassando os ensinamentos de seus antepassados às novas gerações, adotando comportamentos e práticas secretas. Porém, com a instauração do Tribunal do Santo Ofício, em Portugal, e a intensificação dos trabalhos inquisitoriais muitos deixaram o território português emigrando para as terras brasileiras. Assim sendo, durante a primeira visitação do Santo Ofício à América portuguesa entre 1591 e 1595 ganhou destaque o número de mulheres cristãs-novas acusadas de práticas judaicas. Isto sinaliza a intensa participação feminina na transmissão e propagação de um chamado judaísmo secreto. 2 Leia Mais

From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830 – HAWTHORNE (RBH)

HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: Culture, Identity, and an Atlantic Slave Trade, 1600-1830. Cambridge (U.K.): Cambridge University Press, 2010. 254p. Resenha de: MACHADO, Maria Helena P. T. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.34 n.67, jan./jun. 2014.

Entre os povos do litoral da Alta Guiné, quando alguém cai doente ou morre, considera-se necessária a presença de um jambacous – palavra em crioulo para designar adivinhadores, curadores, médiuns e outras figuras sociais participantes do mundo do sagrado – capaz de curar o doente ou pelo menos restaurar o equilíbrio social perdido como consequência da ação maléfica de feiticeiros, causadores do mal. Utilizando-se de poções, amuletos ou grisgris, assoprando, declinando palavras sagradas e realizando outras performances, o jambacous, muitos deles mandinkas, assumia um importante papel na restauração do equilíbrio social das famílias, linhagens e comunidades. Nos séculos XVIII e inícios do XIX, para essas comunidades costeiras, era medida de grande importância detectar os feiticeiros maléficos para retirá-los da sociedade por meio da pena de morte ou da venda do indivíduo no circuito do tráfico transatlântico de escravos.

No Pará da década de 1760, o escravo mandinka José foi chamado para curar a escrava bijagó, Maria, que estava gravemente doente. Para tal, José preparou uma mistura de plantas e a administrou pronunciando palavras incompreensíveis, como parte de um ritual complexo que incluía tanto o conhecimento herbalista quanto o contato com o invisível. Nada sabemos da história pessoal de José. O fato, porém, de o tráfico entre a Alta Guiné e a Amazônia – como bem mostra o livro From Africa to Brazil – ter colocado em circulação um grande número de feiticeiros, pode lançar luz sobre aspectos ainda desconhecidos e insuspeitados da rica história atlântica que entrelaçou as sociedades costeiras e das terras altas da Alta Guiné com as da Amazônia colonial, mais particularmente o Maranhão da segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do XIX.

Sintetizado em enxutas 254 páginas, o livro escrito por um dos maiores especialistas na história da Guiné, Walter Hawthorne, lança luz agora sobre diferentes aspectos que condicionaram a história da montagem de uma economia escravista atlântica no Estado do Grão-Pará e Maranhão.

Como mostra o autor, foi a dinâmica do tráfico transatlântico que promoveu a recuperação da economia da Amazônia, ocorrida a partir da fundação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, em 1755, e até as primeiras décadas do século XIX. Analisando temas amplos e variados, o livro aborda a montagem e declínio de uma economia escravista amazônica baseada na mão de obra indígena, a estruturação do tráfico transatlântico – que permitiu a concretização das políticas reformistas pombalinas relativa ao desenvolvimento da cultura do arroz, principalmente no Maranhão da segunda metade do XVIII – e, finalmente, a estruturação de uma economia e uma sociedade escravistas na Amazônia.

A economia da Amazônia baseava-se, sobretudo, no labor que os trabalhadores escravizados da Alta Guiné desenvolviam no cultivo do arroz, trabalhando de sol a sol no inclemente clima tropical da região, em uma agricultura que sugava gigantesco volume de trabalho escravo, da etapa de derrubada da floresta à incessante capinação, colheita e beneficiamento do arroz carolina, o qual, muito apreciado pelos portugueses, encontrava um mercado consumidor voraz no ultramar. Assim, insisto, os escravos oriundos da Alta Guiné tornaram-se a base da economia e sociedade amazônicas do período. Os dados e análises dispostos nesse livro são ricos e variados, salvo engano o mais completo estudo a respeito da constituição da sociedade escravista transatlântica na Amazônia.

Entre a miríade de assuntos abordados por Hawthorne, dois aspectos sobressaem. Em primeiro lugar, ressalto a análise a respeito do tráfico de escravos, por meio da qual o autor corrige os dados disponíveis no The Transatlantic Slave Trade Database (www.slavevoyages.org). Utilizando-se de variados documentos – relatórios sobre tráfico de escravos, cartas, inventários de proprietários de fazendas e documentos eclesiásticos, entre outros, provenientes de ambas as regiões ligadas pelo tráfico transatlântico – Hawthorne mostra que o tráfico de escravos entre a Alta Guiné e a Amazônia, da segunda metade do século XVIII até meados do XIX, se desenvolveu principalmente à custa das sociedades costeiras e não das localizadas nas terras altas. Se, de fato, o tráfico engolia tanto populações de terras altas como costeiras – mandinkas, bijagós, papeis, balantas etc. – circunstâncias ligadas ao sistema social que produzia cativos acabaram por sugar majoritariamente grupos litorâneos. De fato, o livro discute como as sociedades costeiras da Alta Guiné se achavam particularmente sensíveis ao tráfico devido tanto à necessidade de consumo de instrumentos de ferro para a manutenção dos sistemas de irrigação e drenagem de águas nas áreas produtoras de arroz, quanto à dinâmica do sistema social de sequestro de indivíduos de etnias vizinhas e de perseguição de feiticeiros. As vítimas, vendidas aos agentes do tráfico local, a maioria destes “lançados”. Assim, From Africa to Brazil comprova que eram as sociedades costeiras que, subjugadas por suas próprias dinâmicas e demandas, se tornaram as mais fragilizadas frente ao tráfico.

Seguindo a interpretação proposta por Sidney Mintz e Richard Price, o autor argumenta que, mais do que o pertencimento a grupos étnicos específicos, a travessia do Atlântico produzia uma identidade pan-regional, estabelecendo profundos laços entre pessoas que usufruíam do mesmo universo cultural mais amplo, mas que, em suas sociedades originais, haviam permanecido separadas por pertencimentos étnicos específicos.

O segundo aspecto especialmente rico desse trabalho se materializa na discussão do sistema de produção de arroz e, neste, o papel desempenhado pelo trabalhador escravizado da Alta Guiné. Opondo-se à tese do “arroz negro”, desenvolvida por Judith Carney no livro Black Rice, cujo argumento central gira em torno da continuidade dos métodos e técnicas da produção desse cereal entre a África e as colônias das Américas, este livro documenta a descontinuidade entre o tipo de cultivo de arroz praticado nas terras alagadas da região costeira da Alta Guiné, que exigia um importante conjunto de saberes detidos pelos homens, e a agricultura de queimada e derrubada – a coivara –, dominante no espaço colonial amazônico dedicado à rizicultura. O que sugere este livro é que o sistema de plantio de arroz desenvolvido na Amazônia seria fruto da conjugação de saberes variados, provenientes dos indígenas, portugueses e, certamente, também dos trabalhadores provenientes da Alta Guiné– sendo, por seu caráter multicultural, mais bem conceituado como “brown rice”, algo como “arroz pardo”, que em inglês produz um trocadilho com o termo usado para definir arroz integral.

Se os homens teriam seus saberes tradicionais quase excluídos do sistema de produção colonial, teria cabido às mulheres a tarefa de manter e transmitir conjuntos de práticas e saberes ligados aos hábitos de vida e costumes alimentares originários das terras costeiras da Alta Guiné, permitindo a manutenção de fortes laços entre as populações escravizadas na Amazônia e o pan-regionalismo das sociedades étnicas de Cacheu e Bissau.

Finalmente, em seus últimos capítulos, Hawthorne se volta para a discussão do cotidiano do escravo na sociedade maranhense, marcado por crenças e práticas espirituais originárias da Alta Guiné. Aqui o autor se dedica a traçar as continuidades e permanências de práticas, ritos e crenças que permitem o rastreamento das íntimas conexões existentes entre a Alta Guiné e a Amazônia, de ontem e de hoje. Embora, sem dúvida, ele aí apresente instigantes dados e análises, essa é a parte menos aprofundada do livro. Resumida em capítulos curtos e carecendo de um maior diálogo com a história social da escravidão na Amazônia e em outras regiões do Brasil, essa parte do livro contrasta com a riqueza encontrada nas outras, embora ofereça dados raramente encontrados em estudos nacionais sobre a região.

Em suma, o livro como um todo apresenta ampla e aprofundada análise de aspectos cruciais da montagem, desenvolvimento e declínio do sistema de escravidão africana na Amazônia e de suas conexões com povos, práticas e ritos de povos variados, mas sobretudo costeiros, da Alta Guiné. Por isso, From Africa to Brazil é um livro que merece ser lido por todos os interessados na história da África, do tráfico transatlântico, do sistema escravista e dos povos da Amazônia. Um livro que devia também ser traduzido para divulgar a história da escravidão numa região em que ela é ainda pouco desenvolvida.

Maria Helena P. T. Machado – Departamento de História, Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

 

Fictions of Embassy: literature and diplomacy in early modern Europe – HAMPTON (Topoi)

HAMPTON, Timothy. Fictions of Embassy: literature and diplomacy in early modern Europe. Ithaca: Cornell University Press, 2012. Resenha de: DUARTE, João de Azevedo e Dias. Em busca de uma “poética diplomática”. Topoi v.15 n.28 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

A trama de um dos últimos romances publicados em vida de Henry James, Os embaixadores (1903), gira em torno de uma missão “diplomática” frustrada. Lambert Strether, um norte-americano de meia-idade, é incumbido por sua noiva, a autoritária e rica viúva de Woolet, Nova Inglaterra, mrs. Newsome, de viajar a Paris para resgatar seu futuro enteado, o herdeiro Chad, supostamente envolvido em uma relação indecorosa com uma aristocrata europeia. Previsivelmente, o tiro sai pela culatra e é o “embaixador” Strether quem acaba seduzido pelos encantos do velho mundo, numa reviravolta que põe em risco suas pretensões matrimoniais originais. Metaforicamente empregando aspectos da cultura política da diplomacia na construção do enredo de sua narrativa de ficção, Henry James, talvez inadvertidamente, dava continuidade a uma tradição de diálogo entre duas formas simbólicas iniciada na primeira modernidade, entre os séculos XV e XVII, na Europa.

A “interseção entre a história diplomática e a história da literatura” (p. 1), durante esse período, é precisamente o tema de Fictions of Embassy, terceiro livro de Timothy Hampton, professor de literatura francesa e comparada da Universidade de Califórnia, Berkeley. Imerso na disciplina do novo historicismo, Hampton dedicou-se, em ensaios e livros anteriores, a explorar as relações entre história, política e literatura no Renascimento europeu. Esse seu último livro – uma reedição do original publicado em 2009 – continua no mesmo caminho, examinando as implicações culturais da emergência de uma nova prática política, a diplomacia moderna.

Ainda que o termo “diplomacia” só tenha sido cunhado no século XVIII, a atividade diplomática precede em muito a primeira modernidade, remontando à Antiguidade. No entanto, “durante os séculos XV, XVI e XVII na Europa, a diplomacia sofreu uma série de transformações sem precedentes, tanto práticas quanto teóricas, que fizeram dela um poderoso e importante elemento na política de Estado (statecraft)” (p. 1). A moldura mais geral na qual se encerraram essas inovações – entre as quais se destacam a instituição do embaixador profissional, fixo ou “residente”, e da negociação contínua em lugar dos “favoritos” reais e das embaixadas ad hoc medievais – foi o longo processo de constituição do sistema europeu de Estados soberanos. Tendo como marco histórico a chamada Paz de Westfalia de 1648, acordo que deu fim aos conflitos civil-religiosos no continente europeu, a nova ordem estatal emergente tanto requereu para sua conformação como tornou necessária para sua manutenção subsequente inéditos esforços sistemáticos de diplomacia. Esses requisitos práticos, por sua vez, geraram uma série de problemas – relativos à extraterritorialidade, aos limites da imunidade, às dinâmicas de delegação, representação e ratificação de acordos etc. -, cujas soluções teóricas, extrapolando a cultura retórica e moral do humanismo renascentista, ajudaram a delimitar, nos séculos XVII e XVIII, o campo das “relações internacionais”, um espaço jurídico regido por negociações contingentes entre Estados soberanos que se reconhecem como inimigos potenciais.

Fictions of Embassy não é, contudo, uma “história da diplomacia”. Para as minúcias relativas à constituição da diplomacia moderna, Hampton apoia-se em uma vasta bibliografia, devidamente referida nas notas de rodapé. Como já afirmei, Fictions of Embassy ocupa-se antes da relação entre literatura e diplomacia – “meu foco é menos nos detalhes da história diplomática do que nos discursos que modelam a ação pública” (p. 7). Uma forma de compreender o objeto desse livro é visualizar a diplomacia “como um contexto para o estudo de uma série de grandes obras literárias” (p. 5). Desnecessário dizer que “contexto”, neste caso, não é um dado sólido e fixo (uma “infraestrutura” rígida) do qual se deduz o texto literário, mas sim, ele próprio, um “texto”, até certo ponto aberto, requerendo também uma leitura, da mesma forma que o seu análogo literário. À maneira novo-historicista, Hampton interessa-se pelos processos dinâmicos de conflito e negociação entre formas simbólicas que informam a cultura; o que faz dele, o analista e crítico literário, também uma espécie de diplomata, em busca do que ele mesmo define – ecoando a formulação de Stephen Greenblatt do new historicism como uma “poética da cultura” – como uma “poética diplomática”, i.e.: “tanto uma maneira de ler literatura que seja sensível (attuned) à sombra do Outro na fronteira da comunidade nacional, quanto uma maneira de ler a diplomacia que leve em consideração as suas dimensões fictícias e linguísticas” (p. 2-3).

Vista de uma tal perspectiva, a relação entre literatura e diplomacia na primeira modernidade aparece não como meramente temática ou unidirecional, mas sim como uma relação estrutural e de mão dupla. Mais do que simplesmente fornecer um repertório de materiais (cenas, personagens e tópicos) a escritores de peças, poemas e ensaios (o que não deixava de fazer), a diplomacia oferecia à literatura imaginativa um análogo discursivo, com consequências importantes para ambas. Há semelhanças entre a palavra do diplomata e a palavra do poeta, sugere Hampton, que insiste ser “a diplomacia […] o ato político simbólico por excelência” (p. 5 – ênfase no original), tanto por sua natureza semiótica (sua relação íntima com a produção e a interpretação de signos, gestos e palavras), como pelo fato de que é também uma prática escrita, conscientemente envolvida com questões de representação, narrativa, retórica e autoridade textual. Ademais, na medida em que depende da invenção de “ficções jurídicas” – tal como aquela que determina a “imunidade” do diplomata em missão, como se ele estivesse em seu próprio país -, a diplomacia implica ainda, à semelhança de textos literários, atos de “produção de ficção” (fiction making) – “por ‘produção de ficção’ eu entendo a criação de textos que definem para si mesmos um modo de representação que não pretende um acesso direto à verdade teológica ou epistemológica” (p. 10). Sendo, então, “uma forma de ação política […] profundamente estruturada pela dinâmica da significação”, conclui Hampton, “a diplomacia oferece uma analogia poderosa para com a prática de construção de sentido a que chamamos literatura” (p. 10).

Hampton não está dizendo que a diplomacia e a literatura sejam práticas de representação indistintas, mas sim que, nesse período crítico da modernidade europeia, elas se articulavam de maneiras variadas e complexas, modelando-se mutuamente. “A nova ferramenta política da diplomacia e a cultura emergente da literatura secular modelam-se uma a outra de maneiras importantes”: de um lado, “os textos literários fornecem um terreno único e privilegiado para estudar as linguagens da diplomacia”, dando voz a certas ansiedades e tensões não explícitas da política diplomática, do outro, “a cultura diplomática desempenha um papel dinâmico na história literária, na invenção de novas formas, convenções e gêneros literários” (p. 2). Uma das conclusões importantes do livro é que, exatamente por causa de sua proximidade, a diplomacia acabou por servir como um contramodelo para a literatura de ficção, ajudando-a, por oposição, a definir sua própria voz.

Os capítulos – cuja sucessão segue frouxamente a ordem cronológica, iniciando-se ao final do século XV e terminando ao final do século XVII, com uma coda sobre o século XIX – dividem-se em três seções, cada uma abordando questões em torno a algum tema ligado à atividade diplomática, respectivamente: negociaçãomediação e representação. Com leituras de Guicciardini, Maquiavel, Thomas Morus, Rabelais, Tasso e Montaigne, os capítulos 1 e 2 examinam a relação entre a diplomacia e a cultura do humanismo renascentista, no âmbito da qual aquela recebe as suas primeiras formulações teóricas, explorando as tensões entre as expectativas éticas do humanismo e as contingências práticas, nem sempre “honoráveis”, das “úteis” negociações diplomáticas. Esses capítulos iniciais estabelecem também um padrão analítico para a interpretação da interseção entre teoria diplomática e literatura de ficção. De início, delimita-se um conjunto específico de problemas ligados à atividade diplomática (nesse caso, questões relativas ao caráter do embaixador e à extensão de sua liberdade no uso da linguagem no contexto da negociação diplomática) a partir de textos de teoria política e diplomática para, em seguida, discutir o modo como tais problemas são tratados em textos de caráter ficcional, com atenção para seus aspectos linguísticos e retóricos e para tensões ideológicas ocultas.

Já nos primeiros capítulos, Hampton chama a atenção para uma tensão crescente entre os mundos da política e da literatura de ficção; uma tensão que emerge, nos textos, por meio da representação de cenas de diplomacia frustrada, uma recorrência nas obras analisadas no livro. Na leitura de Hampton, a representação literária da diplomacia (e de seu fracasso) serve como um momento crítico, um momento privilegiado não apenas para a reflexão sobre ansiedades e conflitos político-sociais não explícitos, mas também para uma autorreflexão, da qual se origina um estranhamento em relação à política. Na medida em que “a negociação diplomática é vista como a sinédoque da retórica política pública”, argumenta Hampton, então, “é mostrando o colapso da diplomacia que as obras literárias podem reivindicar sua própria autoridade linguística e genérica” (p. 34). Esse movimento duplo de representação dos limites da diplomacia e de autoafirmação discursiva, envolvendo, com frequência, a invenção (ou reinvenção) de novas formas literárias, repete-se ao longo dos capítulos – “por meio do fracasso diplomático, a literatura cria o espaço de seu desdobramento” (p. 186).

Os capítulos 3 e 4 abordam a épica, um dos gêneros narrativos mais importantes do período, a partir de questões relativas ao espaço: deslocamento, extraterritorialidade e encontros entre europeus e não europeus. Por meio de leituras originais de Jerusalem libertada, de Torquato Tasso, e Os lusíadas, de Luís de Camões, Hampton explora a tensão entre as convenções diplomáticas e os ideais heroicos que informavam o gênero. Escrevendo no final do século XVI, num momento em que a cultura retórica e moral do humanismo encontrava-se sob a pressão da nova Igreja militante da Contrarreforma, ambos os autores empregaram a linguagem diplomática para repensar o gênero épico. Negociando uma identidade poética e epistemológica com as formas rivais da épica clássica, da historiografia e das narrativas romanescas, Jerusalém libertada e Os lusíadas tematizam a caducidade dos códigos cavalheirescos medievais e a emergência de um mundo pós-heroico – o mundo do direito internacional, do mercantilismo e das burocracias diplomáticas.

Finalmente, os três últimos capítulos dão conta de questões ligadas ao papel da nova ferramenta política da diplomacia no processo concomitante de constituição dos Estados nacionais e do estabelecimento de um sistema jurídico internacional, tais como: o reconhecimento político da soberania de novas entidades políticas por meio da recepção e do envio de embaixadas; a transição do antigo quadro teológico-moral do ius gentium (a lei das nações) para o novo quadro secular do direito codificado, ius inter gentes (a lei entre nações) nas relações internacionais; e a “domesticação” da aristocracia por meio de sua conversão em uma casta burocrática de diplomatas profissionais. A forma literária escolhida para a discussão dessas questões é o drama, a forma privilegiada nas cortes europeias do século XVII. As análises de Hampton de três grandes tragédias, ­Nicomède, de Pierre Corneille, ­Hamlet, de William Shakespeare, e Andromaque, de Jean Racine, mostram como a tragédia, mais do que qualquer outro gênero, tematizou a diplomacia de modo a expor o caráter instável e frágil da nova ordem política. Ao mesmo tempo que projeta uma modernidade pós-heroica – de paz e negociação civilizada entre nações em lugar do amor obsessivo e da violência privada pré-estatal -, a tragédia conjura essa imagem, trazendo ao palco o desejo e a vingança recalcados que põem em risco as próprias instituições que vislumbra.

Fictions of Embassy é, sem dúvida, um livro inovador e instigante, que enriquece e complexifica nosso entendimento de um período crítico da história ocidental, por meio de uma abordagem audaciosa que combina enorme erudição histórica e sensibilidade crítica para explorar o cânon literário da primeira modernidade. Trata-se de um livro denso que, a despeito de seu tamanho diminuto (230 páginas), é capaz de cobrir uma extensão impressionante de tópicos, oferecendo leituras originais de um conjunto não menos impressionante de obras. No entanto, é possível que, ao fim da leitura, o leitor se sinta um tanto ou quanto frustrado com o resultado final de um projeto que lhe parecia de início tão promissor e excitante. É que, em seu afã para persuadir o leitor do papel histórico da diplomacia como o agente decisivo de inovação na história literária, Hampton acaba por, em certos momentos, forçar demais seu material, gerando conclusões apressadas que produzem no leitor o efeito contrário ao esperado. Tenho dúvidas, por exemplo, se “a poética de Tasso e o autorretrato de Montaigne” são mesmo “os subprodutos de suas próprias tentativas de reinventar (reimagine) a ação política por meio de uma reflexão sobre a diplomacia” (p. 71), como Hampton sugere; ou se “a diplomacia é um elemento estruturante central no poema” de Camões (p. 101) ou no Hamlet, de Shakespeare (p. 144-162); ou ainda se “Corneille é o primeiro grande dramaturgo da geopolítica” (p. 122). Eis alguns casos nos quais menos entusiasmo e mais prudência seriam recomendáveis. Ademais, para alguém tão interessado na intersecção e mútua influência entre diplomacia e literatura, Hampton dá pouca atenção aos tratados diplomáticos, utilizando-os apenas de forma subsidiária à leitura das obras de ficção, e nem sequer aborda a carta diplomática, provavelmente o gênero mais importante para a prática da diplomacia na primeira modernidade. Faz falta também uma abordagem mais cuidadosa acerca das transformações ocorridas na diplomacia ao longo do tempo, em especial, na transição da Idade Média à primeira modernidade. Por fim, um diálogo com obras que trataram de usos mais metafóricos e menos literais da diplomacia na literatura, como o brilhante La diplomatie de l’esprit, de Marc Fumaroli, poderia ter sido interessante, sobretudo para a compreensão da influência da cultura diplomática sobre o gênero maior da modernidade, o romance. Em que pesem essas ressalvas, Fictions of Embassy é ainda um livro altamente recomendável a todos aqueles interessados na literatura ou história intelectual da primeira modernidade.

O livro é concluído com um breve posfácio, contendo um comentário sobre O vermelho e o negro, de Stendhal, com o intuito de apontar para a continuidade da história traçada até ali. Se a história narrada em Ficitons of Embassy foi “primordialmente uma história da cultura aristocrática”, a conclusão volta-se rapidamente para “uma consideração acerca de como os temas diplomáticos são transmutados quando apropriados pelo gênero dominante da modernidade burguesa – o romance” (p. 190). Numa leitura perspicaz, ainda que breve, Hampton argumenta que é na obra de Stendhal que a carreira literária moderna da diplomacia toma um rumo decisivo (é possível, porém, que uma leitura do livro supracitado de Marc Fumaroli o desmentisse, antecipando essa virada). O vermelho e o negro, sugere ele, marca o momento em que a diplomacia deixa de ser “a sinédoque da retórica política pública” – ao mesmo tempo o modelo dialógico rival e prenúncio da política burocrática moderna – que havia sido para a literatura imaginativa durante a primeira modernidade. Aliviada de seu peso político, apartada do mundo dos grandes dramas da negociação entre as nações, a diplomacia converte-se numa metáfora social para negociar as intrigas que dão forma aos pequenos (porém profundos) dramas cotidianos, dos costumes, da consciência moral, do refinamento estético e da felicidade (ou infelicidade) conjugal, nos quais estão envolvidos os Julien Sorel, Lambert Strether e as mrs. Newsome, de Woolet, Nova Inglaterra.

João de Azevedo e Dias Duarte – Doutor em história social da cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, bolsista de pós-doutorado pelo PNPD Capes. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

The New Christians of Spanish Naples, 1528-1671: A Fragile Elite – MAZUR (LH)

MAZUR, Peter A., The New Christians of Spanish Naples, 1528-1671: A Fragile Elite, Basingstoke, Hampshire: Palgrave Macmillan, 2013. 197 pp. Resenha de: TAVIM, José Alberto. Ler História, n. 67, 2014.

1 A presente obra de Peter Mazur versa uma comunidade periférica em duas dimensões fundamentais: a sua situação na esfera da soberania espanhola, mas num reino exterior à Península Ibérica, ainda que económica e estrategicamente crucial no contexto da península italiana e do Mar Mediterrâneo – o reino de Nápoles -; e também numa posição geograficamente “extrema” face às outras comunidades de conversos que viviam maioritariamente em Espanha, Portugal e nos seus domínios ultramarinos. Talvez a única comunidade que se aproxima desta, em termos de uma mesma singularidade, é mais antiga dos conversos portugueses que residiam nos Países Baixos sob domínio espanhol, nomeadamente naquela que foi a grande capital económica do norte europeu – a cidade de Antuérpia – e onde pontificaram as famílias Ximenes, Rodrigues d´Évora e Veiga1. Contudo, excepto na primeira metade do século XVI, onde por ordem do imperador Carlos V (1516-1558) se realizaram investigações sobre a idoneidade religiosa do famoso Diogo Mendes (Benveniste) e seus homens, não se verificou aqui o estabelecimento de um braço da Inquisição como no reino de Nápoles. Tal facto vai moldar uma forma de actuação distinta da comunidade conversa do reino de Nápoles cindida, também ao contrário do que acontecia nos Países Baixos Espanhóis, entre conversos de origem aragoneses e conversos de origem portuguesa, chegados mais tarde. E é esta diacronia controversa, de pessoas de origem conversa, de diferentes longitudes, agindo como gente de negócios, de conselheiros e de informadores das autoridades napolitanas, e com parentes permanecendo na Península Ibérica, frequentemente apanhada por uma teia inquisitorial segundo o modelo ibérico, que o livro de Peter Mazur nos dá conta.

2 O livro está constituído por cinco capítulos. Os dois primeiros – “1: From Jews to New Christians: Religious Minorities in the Making of Spanish Naples”, e “2: Conversos in Counter-Reformation Italy” – possuem uma visão geral e de contextualização da evolução identitária e social destes grupos de origem judaica, no reino de Nápoles sob domínio espanhol. Os dois seguintes – “3 – ´El de los Catalanes´: The First Campaign against the New Christians, 1569-1582”, e “4 – The Rise of the Portuguese Merchant-Bankers, 1580-1648” – analisam outra dimensão fundamental, de uma forma mais específica, ou seja, a existência de dois grupos de origem conversa, que se estabeleceram no reino de Nápoles em momentos diferentes, sendo ambos alvo de perseguição sócio-religiosa. Trata-se de uma realidade que diferencia esta comunidade de outras, como a dos Países-Baixos, constituída maioritariamente por indivíduos de uma só origem – a Portuguesa – e recorda o que aconteceu em outras paragens orientais, por exemplo em Monastir, na actual República da Macedónia, em que judeus de origem aragonesa e portuguesa, seguidos de conversos das mesmas origens (mas que ali assumiram uma identidade judaica) se estabeleceram, mantendo a sua idiossincrasia, mesmo de forma conflituosa2. Mas, como já acentuámos, e como se denota pelo título do capítulo 3, em Nápoles lidamos com um conjunto de pessoas que não podiam assumir uma identidade judaica (os judeus foram expulsos em 1541), e portanto estamos também perante uma realidade bem diferente daquela que se vislumbra no Império Otomano3. O capítulo cinco apresenta um enfoque ainda mais específico – como que uma micro-história exemplar do dilema que caracterizou este grupo e o diferenciou como permanecendo fora da Península Ibérica e seus territórios ultramarinos – “The Inquisition against the Vaaz”.

3 Além da “Conclusion” saliente-se a publicação de um valiosíssimo apêndice documental intitulado “Documents from the 1569-1581 Campaign” (ou seja, contra os conversos de origem catalã). Trata-se da transcrição de algumas peças fundamentais de suporte, como processos inquisitoriais pertencendo ao fundo Sant´Ufficio do Archivi Storico Diocesano di Napoli, mas também cartas do fundo Stanza Storica do Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede, no Vaticano. A obra assenta também num conjunto largo de fontes impressas, e de uma bibliografia especializada, quer sobre Nápoles, quer acerca dos cristãos-novos e suas rotas de negócios, e ainda acerca da actuação e evolução dos Tribunais Inquisitoriais. Saliente-se ainda a existência de um precioso Índice Geral.

4 O resultado é uma obra sólida, de documentos bem analisados e interpretados, à luz dos conhecimentos adquiridos em obras de suporte, que permitem ao autor captar a já referida especificidade da vida destas elites de origem judaica no sul da Itália.

5 É esta demonstração de uma especificidade, revelando como as elites de origem conversa agem em função do contexto que encontram, mesmo sob o domínio de uma Coroa Ibérica, o cerne de um trabalho científico conseguido. Citando o autor:

“This research joins that of a growing number of scholars who have shifted their gaze beyond the question of converse religious identity and toward an understanding of the place that they occupied in the societies of Spain and Portugal and their territories across the globe” (p. 7).

6 Salientemos as páginas em que recorda, no primeiro capítulo, as condições que explicam a oposição e mesmo a insurreição da população e das elites do reino contra a instalação de uma Inquisição segundo o modelo espanhol (revolta de Maio de 1547), porque tal afectaria os laços de convivência social e económica com os dinâmicos cristãos-novos de origem ibérica; mas também porque sentiam que a instauração desse modelo de tribunal religioso representava a intromissão de uma política espanhola centralista, que se mostraria negativa para a prossecução dos interesses tradicionais locais. O facto de, mesmo quando foram instaurados processos contra os cristãos-novos, se verificarem tensões entre os funcionários do Santo Ofício e os vice-reis, mostra que a implantação de um tribunal religioso sob o controle das autoridades napolitanas facilitou em muito a permanência destas famílias de cristãos-novos no reino, “substituindo” em outra dimensão, aquela que havia sido a necessária estadia dos judeus em Nápoles até 1541. De facto, segundo o modelo romano finalmente aprovado, o vice-rei passou a ter direito de veto, limitando por exemplo o poder do Santo Ofício no confisco da propriedade dos heréticos e seus familiares. Um dos motivos apontados para esta solidariedade entre muitos dos vice-reis e os grupos de cristãos-novos é o facto de aqueles necessitarem destes para a construção, “in loco”, de um estado moderno, ou seja, à margem do poder da aristocracia terra-tenente local.

7 Após a contextualização muito bem conseguida, no capítulo dois, da política gizada em relação aos judeus e conversos, em vários estados da Itália, no século XVI, e da forma diferenciada de operacionalidade da Inquisição Romana em relação às Hispânicas, Peter Mazur passa a analisar, nos dois capítulos seguintes, a situação social dos dois grupos de cristãos-novos estabelecidos no vice-reinado, e a reacção inquisitorial face a estes.

8 O capítulo três – ´El de los Catalanes´ – traça o devir histórico do grupo mais antigo de conversos, de origem catalã, também alvo da primeira incidência da Inquisição entre 1569 e 1582, que produziu 15 volumes de documentação e devastou por exemplo o poderoso clã dos Pellegrino, interrompendo a sua ascensão social e a sua posição nos assuntos financeiros do vice-reinado. Mas como outros clãs, como os Sanchez, raramente foram tocados, o grupo, em geral, manteve a sua actividade. Os Sanchez, por exemplo, foram mesmo elevados ao marquesado, chegando a ser governadores de cidades tão importantes como Àquila, Nola, Bari, Taranto, Cápua e outras. Um membro de outra importante família de conversos de origem catalã – Girolamo Vignes – foi mesmo chamado para lidar com as questões financeiras dos colégios jesuítas e missões estabelecidas no sul da Itália e no estrangeiro. Na verdade, como acentua Peter Mazur, a campanha inquisitorial napolitana de 1569-1582, mais que erradicar fenómenos de criptojudaísmo, afinal acelerou o processo de assimilação destes conversos na sociedade local, através de um processo de aculturação, casamentos mistos e adaptação.

9 Os vice-reis continuaram contudo a ter necessidade de auxílio nos sectores administrativo e financeiro, sobretudo face à pressão fiscal de Espanha. Foi então que outro grupo de cristãos-novos, de origem portuguesa, aliciados por esta oportunidade, e usufruindo das prerrogativas da União Dinástica de 1580, decidiram estabelecer-se também em Nápoles, desempenhando o papel que coubera agora aos assimilados catalães. É este o grupo alvo do quarto capítulo – “The Rise of the Portuguese Merchant-Bankers, 1580-1648)” – constituído por famílias como os Vaz (Vaaz ou Vaez), negociando em grão, cochinilha, lã e seda, entre outras mercadorias. A figura mais famosa desta família seria Miguel Vaz, que cerca de 1610 entrou ao serviço do vice-rei Pedro Fernández de Castro, conde de Lemos, administrando o reino em seu favor, como por exemplo quando controlou a alfândega de Benevento. E tal como os Catalanes, mostrou-se interessado na aquisição de propriedades, como parte essencial da sua estratégia de investimento e afirmação social. O autor também demonstra que os Vaz revelaram uma inegável lealdade para com a Coroa Espanhola, mesmo nos momentos mais conturbados de revolta da população napolitana.

10 No entanto, a princípio, este isolamento dos Vaz não lhes foi benéfico. Embora tivessem sucesso nas suas estratégias de aliança com a nobreza local, nunca conseguiram juntar-se a importantes linhagens, de forma a fazer crescer as suas propriedades e prestígio. Pelo contrário, investiram mais na endogamia – no casamento entre primos – de forma a manter intacto o seu património. E, embora tal como os catalães apostassem no “low profile” para evitar problemas, acabaram por ser alvo, devido à sua idiossincrasia, no século XVII, da pena de alguns influentes observadores da sociedade napolitana.

11 É então o momento de compreender a investida da Inquisição contra os Vaz, objecto do capítulo cinco desta obra. A situação é complicada, com a existência de dois tribunais da Inquisição – o local e o outro criado pela Congregação do Santo Ofício Romano, insatisfeita com a autonomia e registo desigual da corte episcopal. Os Vaz atraíram as atenções quando em 1616 três nobres denunciaram Duarte Vaz, conde de Mola, por práticas judaicas, contando a Inquisição com o apoio do duque de Osuna, Pedro Téllez-Girón, que via naquele um perigoso especulador, contrário a um bom governo. As confissões de Duarte e seus familiares fizeram com que se insinuasse o clássico tópico da “conspiração marrana”. Em 1661, no Santo Ofício de Roma, verificou-se a abjuração de Vaz, que foi considerado formalmente apóstata, sentenciado a cárcere perpétuo e a uma multa de 2.000 ducados. Também nessa data o vice-rei Gaspar de Bracamonte y Guzmán, conde de Peñaranda, aproveitou para ordenar, em Nápoles, o confisco dos seus bens. Foi no entanto a incidência da aristocracia local em manter os seus privilégios que salvou de um destino pior os cristãos-novos portugueses. Quando o inquisidor Camillo Piazza se atreveu a prender um criado do duque de Noci teve que fugir do vice-reinado, temendo pela sua vida. E chegou mesmo a ser produzido um tratado contra as consequências dos excessos da Inquisição nas prerrogativas dos cidadãos napolitanos. A agitação dos representantes populares e da aristocracia em favor dos Vaz, para que o rei repusesse os seus direitos, devem entender-se assim mais no contexto do receio da imposição de um regime autoritário em Roma, no qual as condenações ordenadas pela Igreja serviriam para enriquecer e fortalecer excessivamente o Estado. E embora os Vaz tivessem de facto recuperado em parte as suas propriedades e títulos, o seu destino assemelhar-se-ia ao dos cristãos-novos catalães: transformaram-se numa nobreza rural, visto que não conseguiram competir com a nova geração de permissivos cobradores de impostos e de funcionários régios.

12 A conclusão assinala os principais vectores que, segundo o autor, minaram a vitalidade da rede sefardita no início do século XVIII, e termina mostrando como um dos mais poderosos sinais reveladores da plena integração destes grupos na sociedade napolitana é o facto de se tornarem indistintos da sociedade circundante.

13 Seria interessante saber se houve alguma aproximação entre os dois grupos de cristãos-novos catalães e portuguesas, mesmo depois da sua “ruralização”. Mas sem dúvida que estamos perante uma obra segura, que conjugando material vário, analisado em profundidade, permite perscrutar a idiossincrasia adaptativa destes grupos de pessoas. Enfim, de forma prosaica, leva-nos para o Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa que, nos anos cinquenta do século XX, nos apresenta um Don Fabrizio siciliano consciente que a classe aristocrática terra-tenente – uma classe tão ambicionada pelos variados peões do prestígio e do poder – em Maio de 1860, perante o desembarque de Giuseppe Garibaldi, está inexoravelmente a perder a supremacia: só então.

Notas

1 Vide, entre outros, J.A Goris, Étude sue les colonies marchandes meridionales (Portugaises, Espagno (…)

2 Vide Jennie Lebel, Tide and Wreck. History of the Jews of Vardar Macedonia, Bergenfeld, Avotaynu, 2 (…)

3 Entre outros vide Joseph Hacker, “The Sephardim in the Ottoman Empire in the Sixteenth Century”, in (…)

José Alberto Tavim – Instituto de Investigação Científica Tropical.

Consultar a publicação original

A era das conquistas: América espanhola, séculos XVI e XVII – RAMINELLI (S-RH)

RAMINELLI, Ronald. A era das conquistas: América espanhola, séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013, 180 p. Resenha de: CHAVES JUNIOR, José Inaldo. Uma era revisitada: a  América Espnahola em Tempos de conquistas. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [30] jan./jun. 2014.

É eclética e volumosa a produção de saberes sobre a América desde a chegada dos europeus nos estertores do século XV, com notícias sobre as suas potencialidades, suas gentes, matas, rios, minérios e, principalmente, os caminhos para acessálos.

Em tempos de expansão marítima, uma cartografia do lugar foi desde cedo valorizada pela Monarquia católica e recompensados com mercês e honras foram aqueles que se dispuseram a produzi-la. Doravante, uma controvertida literatura de viagem, produzida por religiosos, conquistadores e aventureiros das mais variadas origens geográficas e sociais, dedicou-se à narrativa da conquista ibérica sobre o Novo Mundo. Plenamente inseridos no contexto de consolidação das monarquias europeias, estes relatos demonstraram a intrínseca relação mantida entre homens e mulheres de cá e d’além-mar, desde quando os primeiros pés castelhanos pisaram o chão do Eldorado. Desde o século XVI, o Novo Mundo jamais conseguiu ser tão distante e ausente como alguns relatos faziam crer, e, a despeito da imensidão oceânica e das intempéries das rotas marítimas, suas histórias entrecruzaram-se com as do velho continente, integrando-se aos cenários renascentista e de formação dos estados modernos.

O contato inicial entre ameríndios e europeus foi copiosamente narrado e ilustrado, asseverado em descrições barrocas acerca da violência étnica, da guerra e da consequente ruína demográfica indígena, resultados últimos da desapropriação de seus bens e das doenças trazidas pelo homem branco. Um discurso de vitimização das populações indígenas da América hispânica caracterizou parte significativa dos relatos da conquista, assinalando, por outro lado, a crueldade colonizadora e sua sanha pelo sangue autóctone, pelo ouro e por suas terras. Em larga medida, este imaginário da violência, produzido, em sua maioria, pelos opositores da hegemonia ibérica sobre o Atlântico ou por religiosos protestantes e católicos que questionavam os propósitos da conquista, contagiou uma cultura histórica subsequente.

A era das conquistas, de Ronald Raminelli, dedica-se generosamente a este e outros temas, passando por frutíferas searas, como o governo imperial de Carlos V e Felipe II, as elites coloniais e o acirrado relacionamento entre a Coroa, os conquistadores e as populações indígenas entre os séculos XVI e XVII. Realizando um importante balanço historiográfico e problematizando tradicionais jargões de uma vasta e qualificada historiografia sobre a América espanhola, esse livro integra o arrojado editorial da coleção de bolso da Editora FGV, que já lançou outros títulos de igual relevância, defendendo a proposta de livros de síntese escritos pelos melhores especialistas, mas prezando por uma linguagem acessível ao grande público, e não apenas aos iniciados2.

Neste sentido, é ocioso acrescentar que o tema do livro resenhado não constitui novidade para Raminelli, experiente professor de História da América na Universidade Federal Fluminense. Não somente suas aulas, mas sua produção acadêmica tem se voltado para o campo da História da América há algum tempo, o que faz do autor uma reconhecida referência. Seguindo a trilha inaugurada por Sergio Buarque de Holanda, sobretudo no seu Visão do Paraíso (1959), o autor localiza muitos de seus livros e artigos na intersecção entre as histórias das Américas portuguesa e hispânica, buscando, a partir de sólidas e refinadas investigações sobre as elites coloniais, as hierarquias sociais e a produção de saberes no Novo Mundo, um caminho comparativo autêntico e rigoroso, não afeito aos modismos, sem com isso descuidar do diálogo com os pares, como atesta este novo livro3.

Em sua introdução, A era das conquistas destaca as Grands Voyages, do impressor e gravador calvinista Theodore de Bry, obra publicada em 1590 e que marcou significativamente as representações do Novo Mundo produzidas a partir de então, uma vez que abriu espaço às coleções de narrativas em vernáculos, acompanhadas por iconografias que somente alcançaram o grande público depois do referido título. Os treze volumes reunindo relatos das primeiras viagens à América popularizaram-se, sobretudo, por conter centenas de xilogravuras que impunham uma visão aterradora do Novo Mundo e de seus habitantes aos europeus em sua maioria iletrados. No entanto, os gravuristas e cronistas que passaram pela América ou dela ouviram falar registraram suas impressões do outro, do novo, a partir de um conjunto rico de lembranças e memórias próprio das culturas europeias.

Neste sentido, o esforço de absorção do estranho, desse exótico Novo Mundo, se deu graças ao uso de códigos e padrões estéticos forjados em associações e experiências anteriores, aproximações (como na fórmula de Merleau-Ponty, “perceber é recordar”)4 que integraram o americano ao imaginário europeu enquanto selvagem, bárbaro, canibal e satânico. Como nos lembra Lucien Febvre, os homens de Quinhentos, tanto os frequentadores dos círculos letrados quanto o humilde camponês analfabeto, enxergavam um universo povoado de e imagéticos que eles registraram seu contato com a América e os povos que por cá viviam.

Esta percepção do outro enquanto “reconhecimento” e “projeção de lembranças” valeu inclusive para fundamentar as críticas produzidas contra a própria ação conquistadora, como ilustrou Theodore de Bry, nascido em Liège em 1528. De Bry era filho de uma abastada família, mas perdera tudo ao converter-se ao calvinismo durante a perseguição religiosa promovida pelos espanhóis católicos nos Países Baixos. Refugiando-se em Estrasburgo, cidade de relativa liberdade religiosa e política e com um florescente mercado editorial, aprimorou sua arte e pôs em gravuras a conquista da América, tendo como referencial político as guerras de religião e a aversão à idolatria e ao papismo dos espanhóis6. Numa Europa dividida pelas guerras religiosas e apavorada pela expectativa da Parúsia, as visões escatológicas do Novo Mundo oscilaram entre a descrição do Paraíso – um ponto originário e redentor onde os homens viviam despidos do pecado – e o lugar da depravação moral, prenunciadora do fim dos tempos7. Nas suas imagens, a crueldade dos espanhóis na conquista era vista como emblema de uma monarquia decadente e perniciosa, sendo sua destruição anunciada pelo desvio do propósito evangelizador.

Dentre os relatos utilizados por De Bry estava o do frei Bartolomé De Las Casas, em sua Brevíssima relación de la destrucción de las Indias, de 1552. O cronista e religioso católico era um conhecido crítico da conquista espanhola e registrou particularmente “as guerras, a exploração dos nativos, e os desvios do projeto de conversão e salvação das almas americanas”8. Ronald Raminelli relata que a ilustração de De Bry, de 1598, “agravou ainda mais as denúncias de Las Casas” e endossou a leyenda negra – uma história em que uns poucos espanhóis armados a cavalo conseguiram ardilosamente roubar a vida, as terras e as riquezas de milhares de ameríndios9.

Entretanto, como nos mostra Raminelli, as imagens de Theodore de Bry, fundadas em cronistas como Las Casas, fizeram muito mais que difundir os horrores da conquista espanhola, descreveram também a inércia americana, sua incapacidade frente ao avanço europeu, estando, pois, na gênese de uma arraigada interpretação vitimizadora do lado indígena que, ao fim e ao cabo, tornou-se contraproducente na compreensão das estratégias de resistência, acomodação e sobrevivência não apenas física, mas política dos povos indígenas em situação colonial. Por sua vez, uma visão linear, determinista e excessivamente sectária (conquistadores versus ameríndios) obliterou as disputas existentes dentro dos próprios flancos espanhóis e as imprescindíveis alianças entre chefias indígenas e conquistadores que tiveram como propósito inicial a destruição de inimigos comuns. As próprias lógicas culturais da guerra ameríndia operaram alianças deste tipo desde muito antes da chegada dos europeus, de modo que a vitória hispânica sobre os impérios mexica e inca dependeu largamente da contribuição de povos indígenas insatisfeitos com o jugo anterior.

Não por menos, o autor trata de conquistas, buscando apresentar um panorama multifacetado de atores, empresas e diferentes estratégias que compuseram a construção do mundo colonial hispânico entre os séculos XVI e XVII, revendo, portanto, “uma visão simplista e imparcial da conquista da América”10. O percurso analítico escolhido faz a opção por integrar plenamente a conjuntura do assalto espanhol ao Novo Mundo aos processos estruturais de formação das monarquias ibéricas, sendo as guerras empreendidas em solo americano parte primordial da estratégia de fortalecimento da autoridade régia. Segundo o autor, Com a prata americana, os reis expandiram a burocracia, remuneraram aliados e armaram tropas. De fato, os ameríndios não foram os únicos a se submeter às leis monárquicas. Colombo, Cortés, Pizarro e os mais afamados conquistadores se enquadraram ou foram aniquilados pelos representantes de Sua Majestade.11 Neste novo trabalho, o historiador fluminense explora a afirmação do poder real diante do ímpeto de conquistadores que pretendiam afirmar-se como verdadeiros senhores feudais na América. Destarte, homens como Cortés e Pizarro “não dispunham dos mesmos trunfos empregados pela nobreza castelhana no momento da negociação de seus direitos”12 e, por conseguinte, a autoridade central terminou por controlar melhor as localidades distantes que os próprios reinos e ducados da Península, repletos de facções e partidos que dividiam as nobrezas e fragilizavam o poder régio13. Na verdade, reiterando a tese do renomado historiador inglês John Elliott, Raminelli acrescenta que, sob algum aspecto, “a administração hispânica da América era mais moderna que o próprio governo da Espanha e das monarquias da Europa quinhentista”14.

Isto ocorria porque a América estava menos sujeita às chantagens dos poderes locais e aos impasses da manutenção de uma ampla rede de aliados, problemas diuturnamente enfrentados pela Monarquia de Carlos V, espremida entre a cruz e a espada, entre a satisfação da expansão imperial sobre territórios político e culturalmente variados e o atendimento dos anseios da nobreza castelhana, ressentida com seu rei absenteísta e desinteressado15.

A era das conquistas divide-se em cinco capítulos, nos quais o autor testa, com habilidade, seu argumento de que diferentes frentes de conquista subsidiaram a produção dos territórios coloniais da Monarquia católica, da Espanha à América.

O artífice central (embora não exclusivo) das empresas de conquista foi a própria Coroa dos Habsburgo que, sob duras penas, afirmou seu poder em um processo de construção de centralidades com marchas e contramarchas na Europa e nas possessões ultramarinas. No primeiro capítulo, Raminelli narra as dificuldades da Monarquia em controlar a insatisfação dos nobres castelhanos, levantados em armas na Revolta dos Comuneros (1520-1522). Conservadores, os nobres saudavam a antiga Castela, anterior a união dos reinos de Isabel e Fernando de Aragão (1469); defendiam seus antigos privilégios, esquecidos desde então; e questionavam o peso tributário lançado pela Coroa e a sagração de Carlos V como imperador do Sacro Império. Um rei ausente e mais preocupado com as suas batalhas travadas no norte da Europa, contra a Inglaterra e o avanço protestante, desprestigiara a nobreza castelhana, embora precisasse mais que nunca de seus préstimos para manter sua política imperial belicosa. Todavia, para os nobres castelhanos, mais importava a Espanha que o Império.

Como a história nos conta, a revolta da fidalguia de Castela foi debelada por Carlos V ao levar-se ao limite a sua política de alianças, feito um “gigante inerte”, dependente do apoio financeiro e militar das nobrezas castelhana e estrangeira de seu vasto Império, e igualmente frágil diante da concessão de seu poder interventor sobre as localidades – um preço alto a ser pago na tentativa de conter os focos de resistência aristocrática. Este interessante capítulo segue com o debate acerca do Estado moderno, seu limites, conflitos de jurisdição bem como as principais interpretações historiográficas acerca de sua emergência. O pano de fundo continua sendo a Monarquia católica e seu complexo acerto imperial. A missão de governar na época moderna era partilhada e o rei dividia, ao menos, com a Igreja, a nobreza e as municipalidades as atribuições do governo dos povos – um governo indireto e polissinodal, caracterizado pela difusão dos centros de decisão política. Todavia, nestes primeiros tempos da modernidade, ainda que a instituição “Estado”, tal como nos é acessível hoje em dia, fosse desconhecida dos coevos, o autor relata que as monarquias reuniram as condições de sua posterior emergência a partir da ampliação da esfera jurisdicional, do crescimento do oficialato régio e da sistematização de leis e a territorialização do poder régio16.

A disseminação da autoridade do rei em cenários nos quais os poderes locais possuíam fortíssima proeminência, tanto na Europa quanto na América, proliferou os conflitos de jurisdição, motivados, na maioria das vezes, pela própria inserção dos oficiais da Coroa (vice-reis, magistrados, bispos dentre outros) nos jogos políticos locais. Embora a decisão final das querelas sempre dependesse do Conselho das Índias, criado entre 1523 e 1524, ou, em último caso, do rei, “a distância e a fugidia presença régia promoviam forças centrífugas e levavam, por vezes, para longe de Madri o governo do Novo Mundo”17. Diante da dispersão das decisões políticas, a venalidade dos altos oficiais de Sua Majestade, em especial dos vice-reis, tornouse um primoroso mecanismo político através da construção de lealdades que nem sempre significaram o incremento do poder real. Coube a Monarquia cercear estes desvios de autoridade, uma missão quase sempre realizada parcamente, mas para a qual dedicou-se conspícua atenção dos órgãos centrais.

Entretanto, se, por um lado, os conflitos de jurisdição e as venalidades foram fenômenos típicos dos modos de governar na época moderna, tanto na Europa quanto no ultramar, segundo Ronald Raminelli, as disputas entre poderes locais e poder central no Novo Mundo não tiveram as mesmas proporções daqueles desencadeadas na metrópole, isto porque por aqui “o governo sentia menos as interferências do legado feudal, dos senhorios, das jurisdições múltiplas, enfim do forte poder local, ainda determinante na Espanha”18. Além disso, como nos conta o autor:

Em princípio, na América colonial, os impedimentos contrários ao bom cumprimento das ordens régias eram atenuados, pois os poderes locais nativos foram dizimados nas guerras, nas epidemias e nas negociações empreendidas entre monarcas, conquistadores e chefes indígenas.19 Neste sentido, uma das principais contribuições trazidas por Ronald Raminelli é apontar que, se as guerras contra os indígenas e a crueldade colonial foram dimensões inegáveis da conquista, como apontaram os cronistas, não foram elas, contudo, monopolizadoras de um processo muito mais intricado. As conquistas do Novo Mundo implicaram, inclusive, no enquadramento dos interesses dos primeiros conquistadores e das chefias indígenas aliadas, segmentos sociais ambiciosos pelas benesses régias, os prêmios e honras da empresa colonial. Este é o assunto do 2º capítulo de A era das conquistas. Após um período de concessões e salvaguarda das vassalagens a partir de uma eficiente economia das mercês, a contínua redução da capacidade remuneratória da Coroa fez parte de uma “política de sufocamento” do poder dos conquistadores antigos, que contou ainda com a extinção da transmissão hereditária das encomiendas (Leis Novas) e com a supressão do controle do trabalho indígena por parte dos encomienderos (1549), que passaram a dispor legalmente apenas dos tributos pagos pelos nativos. Por sua vez, o incentivo régio à colonização produziu mais concorrência por terra e trabalho, ao passo que garantiu a formação de uma segunda geração de conquistadores fiel à Sua Majestade, sem os tradicionais vícios da leva que trouxe Colombo, Pizarro e Cortés ao Novo Mundo.

Cabe-nos destacar, na esteira da reflexão encetada por Raminelli, que, ao inviabilizar a concentração de poder, tanto entre os conquistadores quanto entre vice-reis, ouvidores governadores e bispos, a Coroa hispânica elevou o fenômeno dos conflitos de jurisdição ao patamar de estratégia primaz do exercício de sua autoridade na América, pois, ao jogar com as parcialidades e promover uma contínua redistribuição dos poderes, conseguia neutralizar a autonomia de seus agentes e garantir a vigilância contínua diante de possíveis focos de contestação (system of checks and balance). Aquilo que aparentemente representava irracionalidade administrativa e erosão política transformou-se num poderoso mecanismo de controle sobre as municipalidades coloniais, ainda que houvesse sensíveis limites a plena ação do poder real, dadas as sempre precárias condições da governabilidade no ultramar.

Aliás, o 3º capítulo dedica-se à discussão de conceitos-chave da recente historiografia política da época moderna, em especial das conquistas coloniais, a exemplo da aplicação da categoria elites nas investigações sobre segmentos sociais privilegiados no Novo Mundo. Neste sentido, o autor apresenta uma caracterização do cabildo enquanto locus do poder local na América hispânica, considerando as formas de enriquecimento e ascensão, as práticas sociais, como o descaminho e a ilicitude, os perfis regionais, as condições de ingresso e as tentativas da Coroa de limitar os seus poderes na localidade, inclusive através dos conflitos de jurisdição com órgãos como as audiências.

De acordo com Raminelli, para resistir às investidas da Coroa e de seus agentes, sobretudo dos governadores e das Audiências, as elites locais encasteladas nos cabildos tradicionalmente recorreram à máxima da administração castelhana, “obedezo pero no cumplo”, repetindo no ultramar os valores de uma cultura política própria do Antigo Regime, ainda que desta mantivesse sensíveis distanciamentos.

Seja como for e dadas as contumazes interferências régias, o fato é que os cabildos do Novo Mundo perderam gradativamente sua capacidade de representar os interesses locais e negociar com a Coroa e, pelos idos de 1650, “entraram em franca decadência”, recobrando alguma proeminência apenas no século XVIII, em meio às decorrências das reformas bourbônicas20.

Doutra feita, uma relevante problematização de conceitos como “sociedade estamental” e “Estado absolutista” é realizada pelo autor, que afirma que os novos estudos acerca das hierarquias e da mobilidade social no Antigo Regime ibérico questionaram abertamente a suposta rigidez das classificações sociais na Europa moderna e, mais ainda, no Novo Mundo, haja vista a permissividade de sociedades onde a norma e a prática não possuíam limites claros, nem mesmo para os representantes do poder constituído. Considerando o caso espanhol, Raminelli resgata a tese do historiador Enrique Soria, para quem “a ascensão social era o importante motor do poder régio, ou seja, que em busca de honra e enriquecimento os vassalos prestavam serviços e demonstravam lealdade ao soberano. Portanto, aos poucos, as ordens (nobreza, clero, povo) tiveram suas fronteiras enfraquecidas”21.

Por conseguinte, mais do que preocupar-se em encontrar as razões de um suposto Estado absoluto e onipresente, o problema historiográfico atual tem se voltado para a compreensão dos corpos políticos periféricos e de seu primordial papel na afirmação da centralidade régia ao longo da época moderna – uma verdadeira inversão analítica, das macroestruturas aos micro-poderes –, tendo em consideração que “o poder local nem sempre se situava no plano da lei e do direito oficial, mas à margem dessa lei e desse direito”22.

Os capítulos que encerram esta contribuição historiográfica de Ronald Raminelli dirigem a análise a um outro palco desta era de conquista no plural pois, se, em sua primeira parte, o autor concentrou-se em discorrer sobre as tentativas e efetividade do controle régio sobre as forças colonizadoras – conquistadores e oficiais da Coroa –, integrando a colonização da América ao contexto de afirmação da Monarquia católica; neste último momento, seu interesse se voltará para os colonizados. A questão central dos capítulos 4º e 5º é, pois, a superação, nos estudos coloniais, de uma interpretação que considerou a conquista do Novo Mundo enquanto aculturação. Segundo o autor, o conceito aculturação ganhou relevo nos anos 1980 e seu uso visou investigar “as transformações culturais provocadas pela conquista, pelo confronto entre a tradição ibérica e as várias etnias encontradas na América”, porém, compreendendo-as como perdas das tradições indígenas originárias23.

Resgatando clássicos estudos que utilizaram o conceito, o autor cita, por exemplo, as tipologias propostas por Wachtel. Algumas delas foram as categorias de “processo de integração” e “processo de assimilação” para dar conta das modificações nos padrões culturais e socioeconômicos das sociedades indígenas em situação colonial. De acordo com Raminelli, por “processo de integração” Wachtel definia a “incorporação de valores e costumes estranhos, mas que adquiriam novo sentido entre os autóctones”; já “processo de assimilação” era caracterizado pela “transformação cultural imposta pelos colonizadores”24. Outro renomado autor, Todorov, também recebeu a atenção de Raminelli, justamente por, tal como Wachtel, dedicar-se à análise dos mecanismos de dominação espanhola tendo como premissa o conceito de aculturação. Na perspectiva de Todorov, a grande artimanha de colonizadores como Cortés foi justamente aprender a manipular os valores e símbolos ameríndios, revertendo em seu favor às estruturas de poder e dominação de uma época pré-hispânica. Além disso, para Todorov, uma superioridade técnica (armas e mobilidade) teriam completado a equação que garantiu uma vitória inexorável aos espanhóis.

Atualmente, perspectivas interpretativas como as Wecthel e Todorov encontramse em desuso e uma leva de estudos tem proposto uma nova abordagem da conquista, resgatando a agency indígena e contestando uma participação meramente figurativa ou pálida. Como vimos no início deste breve comentário à obra de Raminelli, desde os cronistas coloniais, as populações indígenas foram tradicionalmente condenadas ao desaparecimento pela violência devastadora da conquista, não lhes restando mais que a morte ou a assimilação. A irredutibilidade do trágico devir indígena, tantas vezes narrado nas tristes cenas das crônicas coloniais, contagiou boa parte da historiografia e estudos sociais dedicados à conquista da América. Destarte, uma New Indian History e as aproximações entre história e antropologia, sobretudo a partir de um redimensionamento da noção de grupo étnico, não mais visto como portador de uma essência cultural atemporal, promoveu uma mudança qualitativa nas análises sobre as interações sociais da época da conquista, não mais entendidas necessariamente como “perdas culturais”, mas retratadas a partir de conceitos como “etnogênese” e “mestiçagem”25.

As investigações acerca da importância da participação indígena nas empresas de conquista, bem como o papel dos cacicazgos na mediação do contato com o mundo colonial, tem relevado relações sociais que sobreviveram “sem as dicotomias cristalizadas pela história tradicional, sem a oposição rígida entre os interesses espanhóis e indígenas, sem a superioridade inconteste dos exércitos espanhóis, sem a debilidade inerente às sociedades indígenas”26. Num situação colonial, quase sempre tangenciada pela violência, os indígenas traçaram suas próprias estratégias de adaptação (resistência adaptativa), que poderiam representar também objetivos pragmáticos de redução de perdas27. Destarte, as chefias indígenas que apropriaram-se dos códigos aristocráticos da cultura ibérica, recebendo da Coroa ofícios e honras militares, tornaram-se mediadoras fundamentais na execução da administração colonial, que não pôde abrir mão das heranças pré-hispânicas de governo e teve que fazer concessões para tornar a conquista efetiva. Não se trata, pois, de negar a agressividade da ordem colonial, mas de explorar interpretações que destaquem as possibilidades de reação indígena, não restrita à tradicional dicotomia “morrer ou aculturar-se”28. Tal como conclui o autor da obra resenhada, Em sua suma, os povos não estavam submersos na tradição imemorial, congelados no tempo e incapazes de reagir. Por vezes a conquista e a colonização promoviam identidades novas, transformações socioculturais para sobreviver em meios adversos. O conflito e a violência eram promotores de novos arranjos políticos, culturais e sociais. A mestiçagem e a etnogênese são conceitos fartamente empregados para analisar a reação das comunidades indígenas frente aos conquistadores.29 Se é a reflexão historiográfica e o diálogo com os pares uma reconhecida dimensão de nosso ofício, em A era das conquistas Ronald Raminelli realiza com maestria um exercício próprio dos grandes historiadores, unindo erudição e originalidade em um caminho crítico que apresenta riquíssima e larga literatura especializada, sem, contudo, ceder à exposição enfadonha e despropositada. Ao final da obra, sua tese de uma conquista multifacetada – conquista no plural – que atuou não somente sobre indígenas, mas também sobre conquistadores e encomienderos, compondo, deste modo, a conjuntura de afirmação da autoridade régia na Europa e no Novo Mundo, é fartamente defendida. Contudo, o autor não deixa de considerar que os custos de manutenção da Monarquia católica, entre os séculos XVI e XVII, eram enormes. Um acerto imperial que reunia díspares interesses e possuía a guerra como seu principal mote, não tardou até demonstrar sinais de esgotamento. Doutra feita, julgamos excessivo o papel atribuído à capacidade interventiva da Coroa espanhola sobre os territórios coloniais, de modo que nos parece mais prudente pensar que a construção da centralidade régia processou-se, diacronicamente, a partir de uma forte dependência das forças políticas e sociais periféricas, como propôs Xavier Gil Punjol30. Seja como for, este é um tema em aberto e A era das conquistas lança-se como uma importante contribuição.

Notas

2 Da série História, destacamos, em especial, MALERBA, Jurandir. A história na América Latina:

ensaio de crítica historiográfica Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto & KRAUSE, Thiago. A América portuguesa e os sistemas atlânticos na Época Moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

3 Cf. notavelmente: RAMINELLLI, Ronald. “A monarquia católica e os poderes locais no Novo Mundo”. In: AZEVEDO, Cecília & RAMINELLI, Ronald (orgs.). História das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011; RAMINELLI, Ronald. “Nobreza e riqueza no Antigo Regime Ibérico setecentista”. Revista de Historia (USP), vol. 169, p. 83-110, 2013. RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização: a representação do Índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

4 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

5 FEBVRE, Lucien. Problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

6 BAUMANN, Thereza B. “Notícia de uma coleção: as ‘Grandes Viagens’ da família De Bry”. Paper avulso. Rio de Janeiro: IFCS-UFRJ, s.d. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/humanas/0036.htm>.

7 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Tradução de Maria Lúcia Machado; tradução de notas de Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. A esse respeito, cf. também: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Pasado: para una semântica de los tempos históricos. Barcelona: Paidós, 1993, sobretudo a primeira parte.

8 RAMINELLI, Ronald. A era das conquistas: América espanhola, séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro:

Editora FGV, 2013, p. 09.

9 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 10.

10 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 11.

11 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 12.

12 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 12.

13 Vale ressaltar que a ideia de uma inversão administrativa colonial das monarquias ibéricas esteve presente na obra de Sergio Buarque de Holanda, que já em Raízes do Brasil aventou a tese de que uma administração colonial mais centralizada e dominadora foi levada a cabo justamente pela Monarquia hispânica, habituada com a contumaz descentralização de seus territórios continentais, acentuadamente divididos política e culturalmente e, nalguns casos, rebeldes, como era a Catalunha. Em Portugal, entretanto, onde a centralização régia havia sido operada muito antes, já nos estertores do medievo, o desleixo e o desinteresse ditaram a tom do governo ultramarino, sobrelevando, a esse respeito, a própria precariedade das formas urbanas do Brasil colonial, assimétricas, desordenadas e feitas ao acaso, quase sem contradizer a natureza, quando comparadas com a regularidade arquitetônica da América hispânica. A esse respeito, ver: HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 110. Para uma crítica ao primado da irracionalidade do urbanismo colonial português, ver: MOURA FILHA, Maria Berthilde de Barros Lima e. De Filipéia à Paraíba: uma cidade na estratégia de colonização do Brasil (séculos XVI-XVIII).Tese (Doutorado em História da Arte). Universidade do Porto. Porto, 2004 (introdução).

14 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 12.

15 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 13.

16 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 21.

17 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 43.

18 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 47.

19 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 47.

20 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 105.

21 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 73.

22 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 72.

23 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 108.

24 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 110.

25 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 115. Para uma síntese das recentes contribuições à história indígena, cf. a importante reflexão presente em: BOCCARA, Guillaume. “Mundos nuevos en las fronteras del Nuevo Mundo”. Nuevo Mundo Mundos Nuevos – Débats [On Line], 08 fev. 2005. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/426>. Acesso em: 15 jan. 2014. Segundo o autor, uma tendência recente da historiografia indígena (New Western History e New Indian History) considerou a “re-inscripción de las realidades indígenas en su contexto histórico por un lado y el nuevo interés por las estratégias y los discursos elaborados por los nativos por el outro, han conducido a romper con un conjunto de dicotomías discutibles (mito/ historia, naturaliza/ cultura, pureza originaria/ contaminación cultural, sociedades frías/ sociedades cálidas) para buscar en las narrativas y en los rituales indígenas así como también en las reconfiguraciones étnicas y en las reformulaciones identitarias, los elementos que permitan dar cuenta tanto de las conceptualizaciones nativas relativas al tremendo choque que representaron la conquista y colonización de América como de las capacidades de adaptación y reformulación de las ‘tradiciones’ que desembocaron en la formación de Mundos Nuevos en el Nuevo Mundo”. BOCCARA, “Mundos nuevos en las fronteras…”, p. 03.

26 RAMINELLI, A era das conquistas…, p. 118.

27 ALMEIDA, Os índios na História do Brasil…, p. 23.

28 Neste sentido, cabe-nos ressaltar a importância da categoria de “índio colonial”, proposta por Karel Spalding e magistralmente discuta por John Monteiro. MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese (Livre Docência). Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009.

29 MONTEIRO, Tupis, Tapuias e Historiadores…, p. 115.

30 PUNJOL, Xavier Gil. “Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias europeias dos séculos XVI e XVII”. Penélope – Fazer e desfazer a história, n. 6, Lisboa, 1991, p. 129-130.

José Inaldo Chaves Júnior – Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em História pela mesma instituição, Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba. Professor Assistente de História do Brasil na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa em História Cultural da UFF (NUPEHC/UFF). Bolsista de Doutorado do CNPq. E-Mail: <[email protected]>.

Acessar publicação original

[MLPDB]

Uma era secular – TAYLOR (C)

TAYLOR, Charles. Uma era secular. Trad. de Nélio Schneider e Luiza Araújo. São Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2010. Resenha de: CAMATI, Odair. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 3, p. 192-195, set/dez, 2013.

Charles Taylor é um filósofo contemporâneo, nascido em 5 de novembro de 1931, na cidade de Montreal, no Canadá. É Professor Emérito de Filosofia e Ciência Política na Universidade de Mcgill. De 1976 a 1981, Taylor dirigiu a cadeira de “Pensamento Político e Social” na Universidade de Oxford. Suas principais contribuições são na área da filosofia política, filosofia social e história da filosofia, com isso defende uma participação ativa na vida política, tendo concorrido ao Senado canadense.

O livro Uma era secular, no original [A Secular Age] (2007), lançado no Brasil pela Editora Unisinos, em 2010, está divido em cinco partes, nas quais Taylor busca responder a dois questionamentos, a saber: (i) o que significa dizer que vivemos em uma era secular; e (ii) por que passamos de uma sociedade na qual era praticamente impossível não acreditar em Deus para uma sociedade na qual a fé representa uma entre tantas possibilidades humanas. Para isso o filósofo canadense apresenta três formas de compreender a secularidade: a primeira é a tradicional separação entre Igreja e Estado; a segunda forma afirma que a secularidade consiste no abandono de convicções e práticas religiosas; por fim, a terceira forma à qual Taylor se dedica é a compreensão da fé como uma opção entre outras. Leia Mais

Clero colonial | Revista Ultramares | 2013

Durante muitas décadas o estudo sobre as instituições eclesiásticas e os homens da Igreja foram temas que mereceram pouca ou nenhuma importância por parte da historiografia. Na Europa ou no Brasil, o tema sofria com uma enorme carência de estudos. Os historiadores que se aventuravam por essas temáticas eram vistos com certo ceticismo, já que imperava uma excessiva preocupação com a política e com a economia. Agravando ainda mais o cenário, os estudos produzidos por indivíduos ligados à própria Igreja, como bispos, padres e religiosos das mais variadas ordens, embora de fundamental importância, muitas vezes resultaram em visões demasiado preconceituosas e etnocêntricas que foram sendo reproduzidas acriticamente pela historiografia subsequente.

Tais estudos agregavam características semelhantes. Quando tratavam da Igreja/instituição traziam visões genéricas, privilegiando algumas áreas em detrimento de outras, sem contar com o apoio de pesquisas regionais que dessem o tom das especificidades. As obras que tratavam da Igreja no Brasil também traziam iguais barreiras. As áreas mais “periféricas”, como a dos bispados do Norte da Colônia, ganhavam pouca notoriedade. Os bispos, seus feitos, suas administrações, as longas vacâncias que marcaram os bispados durante o período colonial, foram, via de regra, o foco central dessas análises. Essa primeira geração de trabalhos é marcada por uma história institucional dos diferentes bispados, de suas altas hierarquias do eclesiástico e sobre as ordens religiosas que foram paulatinamente adentrando pelos sertões no Brasil. Quase nada aparece sobre o clero secular. Seu cotidiano, quem eram esses homens, como vivenciavam suas relações com os fregueses, seus desvios de comportamento, nada mereceu destaque nesses primeiros relatos sobre a Igreja no Brasil. Leia Mais

Políticas educacionais e Estado federativo: conceitos e debates sobre a relação entre município, Federação e educação no Brasil – ARAÚJO (ES)

ARAÚJO, Gilda Cardoso de. Políticas educacionais e Estado federativo: conceitos e debates sobre a relação entre município, Federação e educação no Brasil.Curitiba: Appris, 2013. 371p. Resenha de: BARBOSA, Luciane Muniz Ribeiro. Políticas educacionais e Estado federativo. Educação & Sociedade, Campinas, v.34 no.125 out./dez. 2013.

O livro Políticas educacionais e Estado federativo: conceitos e debates sobre a relação entre município, federação e educação no Brasil é uma adaptação da tese de doutorado de Gilda Cardoso de Araujo. Trata-se de pesquisa resultante de estudo teórico, de natureza histórica e conceitual, sobre a configuração das instituições políticas municipais e federativas, a forma de assimilação destas no Brasil e de sua articulação com a organização da educação nacional.

Por que e para que mais um estudo sobre municipalização do ensino? Essas são questões que a própria autora nos apresenta e se compromete a responder não somente com dados que evidenciam o município como o responsável pela maior parte das matrículas do ensino fundamental na atualidade, ou diante do fato de que tal municipalização já estaria consagrada como um dos eixos da política educacional brasileira. As respostas que revelam a pertinência do estudo relacionam-se com o fato de que a discussão sobre a municipalização do ensino tornou-se algo comum e específico da área da educação. Entretanto, a produção existente não dialoga com a longa tradição do pensamento político que articulava a organização do Estado brasileiro com a discussão sobre a organização da educação nacional, desprezando também a análise da formação das instituições políticas municipais e federativas e configurando o processo de municipalização do ensino como que descolado dos problemas relativos ao Estado e à sua organização política e administrativa.

Daí se depreende o objetivo da obra de Gilda Cardoso de Araujo: apresentar os fundamentos, em um quadro conceitual e histórico, do processo de municipalização no Brasil, analisando o município e a Federação como instituições políticas, bem como a relação destas com a organização da educação como uma tarefa do Estado nacional.

No primeiro capítulo “Federação e município: uma articulação necessária” apresenta-se a ideia da Federação como uma construção histórica com estreita relação com o município como instituição política. Inicialmente, analisa-se o que se constitui “esse nosso desconhecido federalismo”, ressaltando que a história do Estado brasileiro está associada à própria história da ideia da Federação e que esta, como instituição política, possui um histórico “que contribui para o direito à educação como modernamente inscrito e realizado na política educacional brasileira” (p. 37).

Com base nesses pressupostos, debate-se a relação entre poder local, Federação e educação, questionando sobretudo a constante associação realizada entre descentralização federativa e democracia. Tal análise é apresentada mediante o resgate: das abordagens clássicas dos formuladores do federalismo americano, como James Madison, Alexander Hamilton e John Jay; das contribuições de Alexis de Tocqueville, ao distinguir duas espécies de centralização: a governamental e a administrativa e ao defender que a soma das duas em um só poder se tornaria prejudicial para o desenvolvimento das nações; e da proposta de federalismo total de Pierre-Joseph Proudhon, com o desafio de se estabelecer um equilíbrio entre a autoridade e a liberdade. As contribuições de tais autores fundamentam teoricamente todo o trabalho, revelando-se presentes nos debates de temas como: federalismo; poder local; poder nacional; maior ou menor descentralização do Estado.

No segundo capítulo – “Instituições políticas: municipalismo e federalismo” – são apresentadas as origens históricas e conceituais da instituição municipal, acompanhando sua trajetória iniciada em Roma e sua chegada ao Brasil e ressaltando os momentos em que ela se insere na organização federativa do país, assim como as complexidades, contradições e equívocos resultantes desse processo.

Município e Federação são destacados e analisados em cada momento histórico, com realce para as discussões que envolveram tais temas nos debates constituintes e sua explicitação nos textos constitucionais. Dessa maneira, é possível compreender como a Federação brasileira, originada como resposta à centralização unitária do período colonial e imperial, deixa de ser considerada como grande questão nacional na Era Vargas, substituindo-se o debate pelo tema do municipalismo, reflexo das demandas por autonomia local; ou, ainda, como o Estado Novo, instaurado em 1937, culminou como um processo de centralização autoritária, perdendo-se o sentido da ideia de Federação descentralizada, anteriormente erigida pela Constituição de 1891. Também é possível entender a trajetória (permeada de equívocos conceituais e históricos) de construção da proposta de Federação tridimensional e a defesa do municipalismo, impulsionada pela campanha municipalista e tendo ganhado força especialmente na Constituinte de 1946; a maneira como a Federação tridimensional é secundarizada no regime militar, marcado pelo excessivo controle do poder central, assim como sua retomada vigorosa na década de 1980, momento de um novo processo constituinte e reabertura política do país.

O terceiro capítulo – “Município, Federação e Educação: instituições políticas” – aborda a articulação da organização do ensino com o municipalismo e com o federalismo brasileiro. As origens da relação entre município e educação, desde a Baixa Idade Média, são evocadas para se expor a trajetória dessa relação e o tipo de educação que chegou às vilas brasileiras no século XVI. Na sequência, a história da educação brasileira é apresentada, destacando-se o movimento pendular entre centralização e descentralização política e administrativa que marcou a relação entre as esferas de poderes no Brasil.

O debate histórico e conceitual apresentados no segundo capítulo, assim como o rigor com que os dados da história da educação são apresentados permitem a compreensão do processo de municipalização do ensino no Brasil, não apenas como expressão de um debate em torno de temas como centralização ou descentralização, autoritarismo ou democracia, mas sim como um processo histórico de autonomia municipal estreitamente vinculado “à complicada história de Federação no Brasil” (p. 233).

Ressalta-se, ainda, que a história das instituições políticas do século XIX e XX, base para a constituição do município como ente federado e para as teses municipalistas da área da educação, revela o já destacado movimento pendular entre centralização e descentralização política e administrativa no país, desconsiderando-se, entretanto, o debate sobre as desigualdades regionais na oferta da educação elementar, tema que, na avaliação da autora, permanece como a grande questão a ser resolvida pelas políticas públicas atuais.

O quarto capítulo – “Município, Federação e Educação: ideias políticas” – cumpre com o grande desafio de situar o tema da organização do ensino como intrinsecamente vinculado ao tema da organização do Estado nacional. Dado que as ideias de município, Federação e educação foram abordadas por diferentes correntes teóricas e políticas, verifica-se que, somente mediante a análise dessas correntes, torna-se possível superar os equívocos presentes nos pressupostos que envolvem o debate sobre a descentralização do ensino.

Para tanto, a autora apresenta a origem do debate sobre as três categorias de análise (município, federalismo e educação) na tradição liberal, examinando as obras e pensamento político de Tavares Bastos e Rui Barbosa e suas propostas de implantação da descentralização federativa. Na sequência, analisa como o debate anterior foi incorporado pela tradição evolucionista e positivista, expondo a defesa de Alberto Sales pelo separatismo como solução para a crise do Império e para a organização política e administrativa do país, e o uso que Júlio de Castilhos fez do separatismo como bandeira política positivista no Rio Grande do Sul. As obras e os pensamentos de Alberto Torres e Oliveira Vianna, representando a tradição autoritária, são utilizadas para a apresentação do debate sobre a organização do Estado e da educação nacionais com base em seus argumentos sobre a necessidade de se adequar as instituições políticas à realidade brasileira. Por fim, são analisadas as ideias de Anísio Teixeira e Carlos Correa Mascaro, destacando suas propostas específicas sobre o processo de municipalização do ensino, não distantes, contudo, do debate teórico e político sobre a centralização ou descentralização como forma de organização do Estado brasileiro.

O resgate de tais autores para a área de educação mostra-se de grande relevância, dado seu sentido “de recolocar a Federação na sua relação com o poder local (município) e com a educação, como um problema nacional e não apenas educacional […], problematizando-os mediante o enfoque da teoria política brasileira” (p. 238).

Encontra-se ainda, nas “Conclusões”, um excelente resgate das principais ideias apresentadas nos capítulos da obra, ressaltando os momentos e fatos históricos relevantes para o debate teórico e conceitual do municipalismo, federalismo e educação, assim como os equívocos presentes na redução desse debate aos temas da centralização ou descentralização.

Longe de se configurar como um estudo de abordagem “muito ideologizada ou muito concreta” sobre o tema da municipalização do ensino, predominantes na área, a obra de Gilda Cardoso de Araújo cumpre com o objetivo proposto de se apresentar como um estudo de enfoque teórico e conceitual sobre os temas do municipalismo, federalismo e educação. Trata-se de um trabalho de fôlego e coragem, ao apresentar os equívocos nos quais os estudiosos da área costumam incorrer ao analisar tais temas, superando-os com minuciosa pesquisa bibliográfica e detalhada análise histórica e conceitual.

Em um momento em que tanto se discute a relevância e as complexidades de se constituir um Sistema Nacional de Educação, assim como os objetivos e conteúdos de um Plano Nacional de Educação que seja de fato nacional, federativo e democrático, a obra de Gilda Cardoso de Araújo revela-se de fundamental relevância, preenchendo importante lacuna na área da educação.

Luciane Muniz Ribeiro Barbosa – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo (SP) – Brasil. Contato com a autora: <[email protected]>

Acessar publicação original

Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries – SCOTT (AN)

SCOTT, Heidi V. Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2009. 256p. Resenha de: LA JOUSSELANDIÈRE, Victor Santos Vigneron de. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 37, p. 339-346, jul. 2013.

Mesmo que recebida com bons olhos pela maior parte dos pesquisadores, a perspectiva interdisciplinar ainda tem um longo caminho até se tornar uma prática recorrente. Por si só, essa consta tação justifica o interesse de Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Nesse livro, Heidi Scott amplia os horizontes da pesquisa peruanista ao trabalhar no limiar entre História e Geografia, tomando por objeto a própria paisagem descrita pelos cronistas. Contudo, deter-se na valia dessa perspectiva em nada ajudaria a ultra passar as generalidades muitas vezes evocadas quando se fala em interdisciplinaridade.

Ora, essa opção engendra na obra em questão uma série de consequências analíticas, não apenas no que toca ao tema específico da colonização, mas ainda no que diz respeito à própria relação entre teoria e História. É certo que o livro de Scott encontra uma imagem mais orgânica, indistinta mesmo, entre tais temas; dividi-los, contudo, permite compreender o alcance de sua aventura por limites acadê micos tão pouco frequentados. Os impasses daí resultantes não deixam de ser uma das riquezas desse gesto.

No primeiro capítulo, Landscape and the Spanish Conquest of Peru, a autora anuncia os delineamentos básicos que darão forma às análises realizadas ao longo do trabalho. Em última instância, são essas considerações que dão coesão a uma obra estruturada por capítulos autônomos em seus temas e recortes. O principal elemento comum emerge em torno do conceito de “paisagem” (SCOTT, 2009, p. 1-15).

Segundo a autora, não se trata de reconstituir os traços dos “espaços reais” atravessados e narrados pelos cronistas, mas de atentar ao processo mesmo de “produção da familiaridade”, que os torna cognoscíveis e passíveis de descrição. A sugestão já foi desenvolvida por autores clássicos, como Edmundo O’Gorman e John Elliott (O’GORMANN, 1992; ELLIOTT, 1984, p. 9-40). Contudo, o que particulariza a análise de Scott é a ênfase dada à agência indígena nesse processo de cons trução simbólica da paisagem. A autora não deixa, aliás, de iniciar seu livro com uma crítica a Elliott, que teria dado um tom excessivamente europeu à produção da familiaridade descritiva (SCOTT, 2009, p. 1-5). A crítica a Elliott pode ser tomada como chave de leitura para o restante da obra, pois o que está em questão não é apenas uma discordância no que toca à participação indígena no processo de construção da paisagem, mas sim o próprio conceito de “colonização”. O tom hispanista adotado por aquele historiador seria apenas a manifestação de um diagnóstico mais fundamental a respeito da própria presença europeia na América. Scott argumenta que o termo se presta a uma definição demasiado uniforme da realidade americana sob a presença europeia. No que diz respeito à discussão com Elliott, procura demonstrar que sua leitura hispanista da produção da paisagem tornaria homogêneas as relações de força que não o são, não apenas no contexto peruano, mas nos variados contextos coloniais americanos na primeira Idade Moderna. O exercício historiográfico empreendido nos cinco capítulos seguintes aten de, em última ins tância, a essa preocupação no que diz respeito aos conceitos e às explicações unificadoras consagradas.

A partir do capítulo dois, Scott parte para a empiria com o fito de atestar o desvalor do conceito de “colonização”. Para tanto, a autora volta sua atenção para os momentos mais decisivos do processo de instituição do domínio castelhano no Peru. O segundo capítulo, Beyond textuality. Landscape, embodiment, and native agency, inicia esse percurso ao tratar da conquista. Perceba-se que o argumento ganha tanto mais força quanto se trata de uma primeira geração de cronistas, cuja relação com os índios peruanos, a princípio, seria superficial quando comparada com a interação existente décadas mais tarde. Esse é, por exemplo, o fundamento da periodização proposta por Franklin Pease para as crônicas andinas (PEASE, 1995, p. 15-63). Ora, acompanhar a narrativa da conquista elaborada por Nicolás de Ribera ou ainda a clássica descrição dos acontecimentos dada por Pedro Cieza de León é um recurso estratégico da autora. Se analisado em perspectiva com documentos produzidos por outras fontes, como as petições feitas ao rei pelos curacas de Jauja, esse discurso da conquista emerge como fruto de uma “experiência paisagística” mediada pelos índios (SCOTT, 2009, p. 26-36). Por um lado, a existência de uma descrição menos “literal” da paisagem por parte dos espanhóis seria fruto da rede de proteção que se interporia entre esses e a “paisagem real”. Por outro lado, esta contaria com elementos compatíveis com o acervo cognitivo europeu tendo em vista as intervenções promovidas no espaço pelos Incas, fato que teria possibilitado a localização da conquista numa “paisagem familiar” (SCOTT, 2009, p. 36-42).

Se de fato essa discussão tem por objetivo deslocar o hispanismo um tanto esquemático de Elliott, trata-se ainda de uma crítica voltada contra outra importante explicação unificadora para o período colonial peruano. Também a “história dos vencidos” é evocada por Scott por conta de seu, digamos, “excesso conceitual”. Para tanto, elege-se como interlocutor Nathan Wachtel, importante referência desse modelo explicativo que adquiriu força em meados do século XX. Se por um lado concorda em investir ao índio um papel central nas suas análises, Scott discorda do caráter “traumático” atribuído por Wachtel à conquista (WACHTEL, 1977, p. 55-64). Ao procurar relativizar a ruptura provocada por esse acontecimento, a autora tende a contrapor o caráter “negociado” da presença espanhola à “desestruturação” por este sustentada. Contrária à concepção negativista embutida no epíteto “vencidos”, Scott propõe compreender o caráter positivo da agência indígena na constituição de uma nova “experiência paisagística” no Novo Mundo.

O último item desse segundo capítulo anuncia uma das tônicas dos capítulos subsequentes. Ao mencionar as transformações ocorridas após o período da conquista, com a emergência de uma “paisagem colonial”, a autora retorna para a discussão acerca da colonização com respeito a outro de seus momentos definidores, inaugurado com a “pacificação” dos vecinos por La Gasca, em 1548 (SCOTT, 2009, p. 42-48). A partir, portanto, do terceiro capítulo, Landscapes of resistance? Peru’s ‘Relaciones geográficas’, o conceito é agora questionado justamente onde ele parecia mais apropriado. Mais especificamente, trata-se de inventariar os limites postos ao projeto de produção de cidades espanholas, isto é, de intervenção colonial na paisagem americana. Note-se que essa proposta analítica se pretende válida para uma década tão significativa quanto a de 1570, em que as incertezas quanto ao futuro da região teriam sido suplantadas pelas reformas centralizadoras do vice-rei Francisco de Toledo, funcionário talhado à imagem e semelhança de Felipe II (LOHMANN VILLENA, 1967). E o campo escolhido para tanto dificilmente poderia ser mais significativo que as Relaciones geográficas.

É nesse conjunto de informes solicitados aos funcionários reais em toda a América que Scott pretende descobrir as marcas da agência local. À primeira vista, seria corroborada aquela visão “tradicional”, notando-se a marca da política de Toledo na redução dos índios dispersos, levando à sua desvinculação da paisagem, ao mesmo tempo em que tinha lugar a “extirpação” de uma toponímia e uma geografia idolátricas. Contudo, esse mesmo tema permite à autora questionar o enquadramento binário, reputado a autores como Wachtel, que divi de as posições possíveis na sociedade colonial a dominantes e vencidos.

À diferença dessa perspectiva, Scott observa a intimidade dessas posições, havendo antes uma interpenetração de elementos culturais na constituição de algo novo. Isso seria corroborado pela Relación enviada pelo corregedor de Jauja, que permitiria observar os vaivéns dos huancas perante as instituições castelhanas, privilegiadamente emblematizadas na figura do ladino Felipe de Guacra Paucar (SCOTT, 2009, p. 60-69). Mas o que o caso particular dos huancas de Jauja sugere são as restrições generalizadas à política de reduções. Aliás, isso não se deveu apenas à obstinada mobilidade indígena, mas também à resistência oposta a esse plano por parte de muitas autoridades espanholas (SCOTT, 2009, p. 69-74). Seu interesse pessoal, imediato e concreto, muitas vezes obstaria qualquer “projeto colonial”, distante e abstrato.

O capítulo seguinte, The mobile landscapes of Huarochirí, deparase com outro contexto fundamental à afirmação da colonização peruana, tendo um papel significativo na política de “extirpação de idolatrias”, ali iniciada por Francisco de Ávila em 1610. Contudo, aquilo que poderia representar a consolidação do projeto evangelizador é lido sob outra perspectiva por Scott. Assim como a política civil de redução não teria deitado raízes, também sua equivalente eclesiástica, a paróquia, não teria impedido a mobilidade indígena (SCOTT, 2009, p. 75-107). Da mesma forma os corregedores estariam entre os principais obstáculos à política colonial, a evangelização seria atravessada pelos mais variados interesses: curas de paróquia, jesuítas, índios e funcionários reais conformariam um panorama impossível de ser reduzido a um núcleo conceitual. É particularmente interessante para a argumentação da autora a contraposição entre a exemplar Relación geográfica produzida pelo corregedor local e as formulações contidas no Manuscrito de Huarochirí (SCOTT, 2009, p. 90-98). Se aquela pode dar a ideia de uma execução zelosa das orientações filipinas, este revelaria a superficialidade da disrupção (do “trauma”) operada pelos espanhóis em seu combate à geografia idolátrica. A própria ação extirpadora é colocada em tela por Scott, que sublinha as contradições nesse processo, tendo em vista os interesses múltiplos representados pelos curas, pelos extirpadores e pelos índios. Essa situação teria dado ensejo mesmo a um estranhamento crescente perante a paisagem, narrada pelos religiosos de modo a tematizar a resistência do terreno ao conhecimento de suas propriedades idolátricas. Nada mais distante, enfim, da progressiva penetração das instituições coloniais, inclusive sob seu braço eclesiástico, no interior peruano.

Os dois últimos capítulos, Negotiating Amazonia e Contested fron tiers and the Amazon/Andes divide, possuem o interesse adicional de versarem sobre regiões pouco analisadas pela historiografia, a fronteira amazônica do vice-reino. O percurso analítico adotado no livro é conhecido: Scott parte da crítica à explicação historiográfica consagrada que associa o tema amazônico às representações edênicas. A esse respeito, o capítulo quinto retoma a significativa trajetória de Juan Recio de León para aferir até que ponto a paisagem da Amazônia boliviana teria sido objeto de uma intricada negociação. Ao analisar essa personagem, percebe-se que o próprio tema edênico é antes um “recurso discursivo” à disposição dos cronistas para defender seus interesses pessoais. Com essa constatação é possível compreender a construção da paisagem local enquanto “espaço de oportunismo”, expressão empregada por Scott em um de seus subtítulos (SCOTT, 2009, p. 111). Nesses quadros, a trajetória turbulenta de Recio de León apresenta as várias estratégias discursivas que esse ator adota, uma a uma, a depender do momento em que se encontra, jogando com as conveniências: a vantagem da conquista, seu papel missionário, a riqueza prometida pela região, os riscos representados por estrangeiros que frequentam o lugar, a possibilidade do transporte de prata pelo Amazonas, de ampliação da mão de obra indígena em Potosi.

Não deixa de ser irônico, ou melhor, significativo, que Madri seja o lugar por excelência onde essa variedade de argumentos poderia ter lugar. O volume de informações que ali chegavam e a impossibilidade de confirmação direta caracterizariam o espaço de onde, supostamente, irradiariam as diretrizes colonizadoras (SCOTT, 2009, p. 124-131). Ao mesmo tempo, trata-se de combater a visão dualista que opõe o espaço andino àquele amazônico, fato que não é indiferente a uma apropriação da própria visão incaica (SCOTT, 2009, p. 133-136). Tal intento é realizado principalmente no capítulo sexto, em que são apresentados os diversos projetos que sublinharam a possibilidade de investir na região. Possibilidade essa, destaque-se, aventada contra as expectativas da administração castelhana.

A essa altura cabe indagar-se sobre a articulação entre o encaminhamento metodológico proposto pela autora e seus resultados historiográficos. É possível perceber que toda a narrativa empreendida por Scott parte de uma posição nominalista com relação às explicações ou conceitos unificadores. Um a um, “colonização”, dualidade entre “vencedores” e “vencidos”, ruptura da conquista ou impermeabilidade da fronteira são questionados por sua incapacidade de dar conta do “real”. Lembre-se a esse respeito, que a autora não deixa de mencionar a “paisagem real” ao lado do “discurso” sobre a paisagem (SCOTT, 2009, p. 1-15). Em certa medida, portanto, o conceito encontrar-se-ia em “excesso” diante da empiria. Pelo contrário, a profusão de interesses pessoais marcaria um cenário que apenas poderia ser definido como “complexo”. Deve estar claro a essa altura que o gesto negativo empregado por Scott com relação à historiografia possui sua contraparte: a complexidade é complementada pela ênfase na ação individual (a “agência” indígena, a busca de interesses pessoais, os “espaços de oportunismo”). Fato que não é estranho ao próprio conceito de “paisagem” empregado pela autora, que recusa o distanciamento entre visão e escrita e enfatiza uma abordagem multissensorial e totaliza a experiência do meio pelo sujeito.

A “negociação” a que o discurso sobre a paisagem está submetido incorpora, por conseguinte, a própria dimensão corpórea.

Sem negar a riqueza de possibilidades assim aberta, há de se questionar a validade intersubjetiva de uma perspectiva que contrapõe as múltiplas experiências sensíveis ao trabalho do conceito.

Este não deveria encontrar sua determinação na empiria, na experiência corpórea? Longe de ser uma questão estritamente teórica, trata-se de uma dúvida que remete a alguns impasses da obra de Scott. Isso porque ao colocar lado a lado “discurso sobre a paisagem” e “paisagem real” (assim como a intervenção indígena correspondente a esses dois campos) a autora afirma a vigência do conceitual, do simbólico. Nesses termos, o conceito de “complexidade” joga um papel estratégico, sem o qual seria impossível à própria autora construir seu discurso historiográfico. Essas questões ajudam a compreender alguns dos limites da crítica feita, por exemplo, ao conceito de “trauma”, em seu uso dado por Wachtel. Se é inquestionável que este autor não aferiu de maneira correta as fundamentais continuidades demonstradas por Scott, esta tampouco considerou o fato de “trauma” supor uma relação (necessariamente prenhe de mediações) entre estrutura e acontecimento. Desse ponto de vista, é possível sustentar, ainda que numa conformação distinta daquela pretendida por Wachtel, uma experiência traumática da conquista. Da necessidade assim constatada de conjugar experiência subjetiva e operação historiográfica intersubjetiva nota-se, por fim, que, ao centrarse excessivamente no polo individual, a autora de Contested territory deu-se com uma definição oportunista do poder, que não é compreendido como relação, e sim como predicado. Nessa redução conceitual reside muito da impugnação avançada contra o conceito de “colonização”.

Referências

ELLIOTT, John H. O Velho Mundo e o Novo: 1492-1650. Lisboa: Querco, 1984.

LOHMANN VILLENA, Guillermo. Étude préliminaire. In: MATIENZO, Juan de. Gobierno del Perú (1567). Lima/Paris: IFEA, 1967. p. I-LXIX.

O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América: refl exão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e do sentido do seu devir. São Paulo: Unesp, 1992.

PEASE G. Y., Franklin. Las crónicas y los Andes. Lima: PUCP/FCE, 1995.

SCOTT, Heidi V. Contested territory: mapping Peru in the sixteenth and seventeenth centuries. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2009.

WACHTEL, Nathan. La vision des vaincus: les indiens du Pérou devant la conquête espagnole, 1530-1570. Paris: Gallimard, 1977.

Victor Santos Vigneron de La JousselandièrePossui graduação em História pela Universidade de São Paulo (2008) e mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é professor de história da Prefeitura Municipal de São Paulo. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contemporânea. E-mail: [email protected].

Breve Tratado – ESPINOZA (AF)

ESPINOSA, B. Breve Tratado. Resenha de: ROCHA, André Menezes. Sobre a primeira tradução do Breve Tratado de Espinosa. Artefilosofia, Ouro Preto, n.14, julho, 2013.

As translucidas mãos do judeu

Lavoram na penumbra os cristais

E a tarde que morre é medo e frio.

(…)

Trabalha em um árduo cristal: o infinito.

Mapa de todas as estrelas.

Espinosa.

Poema de Jorge Luís Borges.

Borges gostava de nos lançar no universo dos livros mágicos. Como um bom bibliotecário, nos conduzia por estantes infindas como quem tem em mãos os fios que atravessam entradas e saídas de um imenso labirinto. Lembro-me deum destes livros, o infinito.

O livro infinito é aquele cuja leitura jamais se esgota, que sempre exprime um novo sentido desde que o leitor abra suas páginas. Este Breve Tratado de Espinosa, inédito em língua portuguesa, consiste no mais novo exemplar destes livros com que os leitores de Borges tanto se encantam. Um livro infinito sobre o amor infinito, em síntese, eis do que se trata. Este Breve Tratado de Espinosa é uma obra juvenil, escrita bem antes da Ética e, para alguns intérpretes, antes mesmo do Tratado da Emenda do Intelecto. Talvez por isso seja a melhor maneira de introduzir-se no pensar com os conceitos de Espinosa. Inicia-se com a intuição da essência absolutamente infinita de Deus e, após passar pelo conhecimento da essência das paixões e ações do s homens, trata dos bons desejos que nascem do uso da razão, do amor intelectual que é imanente à intuição e culmina com a demonstração do que é eterno na essência humana. Mas todas estas demonstrações só fazem sentido, no texto de Espinosa, se não se distingue a inteligência do afeto. Uma leitura tecnocrata dos textos filosóficos e, em especial, do texto de Espinosa, não passaria de um mísero avatar daquela velha vã filosofia de que falava Shakespeare. Como o olho da medusa, o entendimento do tecnocrata petrifica o sentido dos textos. Borges é quem nos diz o que perdeu o aprendiz impaciente do conto A Rosa de Paracelso.

A curiosidade, o prazer da leitura e o amor da inteligência são os guias mais seguros para os leitores e leitor a s que desejam iniciar-se na leitura dos clássicos e na reflexão filosófica. E no caminho da leitura surgirão muitas questões que em vez de barreiras constituir-se-ão como trampolins a elevação da reflexão.

Gostaria aqui de apresentar algumas questões que me ajudaram a prosseguir na leitura do Breve Tratado. Literatura e arte na composição do Breve Tratado. Os dois diálogos da primeira parte do Breve Tratado tratam de temas candentes da ontologia de Espinosa, mas também caros à tradição neoplatônica do Renascimento, seja na vertente de Marsilio Ficino que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela criação de mágicas obras de arte, seja na vertente de Leão Hebreu que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela sabedoria ética na conduta cotidiana e nas ações da vida. A questão da diferença entre amor concupiscente e amor intelectual, que é o mote da erotiké no primeiro diálogo, tinha sido intensamente tratada pelos artistas e pensadores do Renascimento. A partir de Panofsky, podemos acompanhar como a questão da diferença entre amor divinus e amor profanus foi tratada sob a forma artística, por exemplo, nas telas de Botticelli e nos diálogos do próprio Marsilio Ficino. Como sabemos, o jovem Espinosa viveu em Amsterdã na casa-escola do tutor Francisco van den Ende, um franciscano que, como Petrarca, abraçou o humanismo. Ele ensinava literatura latina e filosofia através de leituras coletivas encenadas que muitas vezes se transformavam em peças teatrais. Espinosa, que obteve uma bolsa de estudos como ajudante do mestre-escola, interpretou no Teatro Municipal de Amsterdã peças de Terêncio, o dramaturgo comediante que participou do círculo estoico de Cipião com o historiador Políbio no século II a.C em Roma. Na Escola de Van den Ende, Espinosa conheceu seus melhores amigos, entre os quais o próprio Jarig Jelles, a quem dedicou a versão holandesa do Breve Tratado. Seria demais imaginar que Espinosa tenha elaborado os diálogos a partir da experiência artística com o círculo de amigos na trupe de teatro de Amsterdã? No segundo diálogo, por exemplo, Erasmo e Teófilo encetam animada conversa sobre a diferença entre a causalidade eficiente imanente através das relações internas entre todo-partes e causa-efeitos. Conversações agradáveis podem se tornar profundas tanto na vida cotidiana como nas ações dramáticas. Os dois diálogos da primeira parte são redigidos com engenho retórico e arte dialética para significar que os conceitos filosóficos do Breve Tratado não precisam ser pensados no solipsismo, à maneira cartesiana, mas podem ser pensados em agradáveis conversas em que todos nutrem amizade pela inteligência e gosto pelas arte s ? Razão e Intuição. Espinosa escreve, na segunda parte do Breve Tratado [II, 4], que a razão é a crença verdadeira, pois é o modo de conhecimento que nos leva a ver claramente o que convém que a s coisa s seja m fora de nós, porém não o que são verdadeiramente. E, no entanto, o conhecimento racional desperta os bons desejos que nos conduzem à intuição e ao verdadeiro amor. Podemos dizer que o Breve Tratado foi escrito antes da descoberta das noções comuns como conhecimento racional das propriedades comuns necessárias dos modos in finitos e finitos? Ora, após distinguir a Natureza Naturante da Natureza Naturada [I,8], Espinosa deduz os modos infinitos, quais sejam, o movimento-repouso na matéria e o intelecto infinito na coisa pensante [II,9]. Se os modos infinitos são os fundamentos das propriedades comuns na Ética, isto é, se são o todo de que os modos finitos são as partes, não é preciso convir que são demonstrados por sua gênese no Breve Tratado ? Em que sentido se pode dizer que não há teoria das noções comuns do Breve Tratado ? Sabemos, pela nota complementar 5 redigida por Marilena Chauí em A Nervura do Real, que há diferenças entre a concepção de intuição no Breve Tratado e a concepção de ciência intuitiva na Ética. Afinal, que significa a afirmação, no Breve Tratado, de que o conhecimento intuitivo e o amor intelectual de Deus são paixões do intelecto humano? Nesta obra juvenil, Espinosa pensava o amor intelectual como uma revelação religiosa, ou seja, como a palavra silenciosa que a inteligência de Deus pronuncia sob a forma de intuições no intelecto humano? Quais as diferenças entre a concepção do amor intelectual no Breve Tratado e a concepção do amor intelectual na Ética ? A demonstração de que o diabo não existe. Em várias cartas, Espinosa conversa com amigos sobre o tema da superstição, da crença em fantasmas, espectros e, pior que tudo, da crença no capiroto, coisa ruim ou tranqueira que, como diz Guimarães Rosa, para o prascóvio encontra-se no olho esgueirado de bezerro doente, gato preto, sombração ou redemoinho n o meio da rua.

Nas cartas trocadas com o amigo Boxel, podemos perceber como Espinosa achava graça nestes assuntos. E talvez o espírito de graça destas cartas encontre-se neste Breve Tratado com a demonstração matemática da impossibilidade da existência do diabo. A demonstração segue como consequência da prova ontológica da existência de Deus, desde que esta existência seja pensada a partir da essência como realização da onipotência. Vale lembrar que esta demonstração para nós é engraçada, mas para o contexto das guerras de religião era grave.

Espinosa demonstra, por A + B, como quem demonstra que 2+2=4, que o diabo é uma impossibilidade ontológica: dado que a essência de Deus é absolutamente infinita e que é idêntica à sua potência, um diabo, um gênio maligno ou outro ser malfadado qualquer que tivesse poder para contrariar a essência de Deus só pode ser uma ficção literária ou lógica. O que contraria a onipotência de Deus pode até existir, como existem peixes que nadam contra a corrente do rio, mas não pode influenciar em nada a potência absolutamente infinita de Deus, assim como um peixe não pode mudar o curso do rio ainda que nade contra a corrente. O diabo não pode existir na realidade, não pode ser um ente real, só pode existir como ficção, só pode ser um ente de razão ou ente de imaginação. E como Ferreira Gullar que diz saber como 2 e 2 são 4 que a vida vale a pena, Espinosa demonstra, como 2 e 2 são 4, que o amor intelectual de Deus é o sumo da vida humana e que por ele se encontra tanto a virtude para agir nesta vida como a eternidade de que podemos participar desde que experimentemos um verdadeiro amor.

Ode à leitura. Esta novíssima edição do Breve Tratado de Espinosa tem muitos méritos e o menor deles talvez seja o fato de ser a primeira tradução em português. Os méritos encontram-se mais no uso da língua portuguesa que os tradutores e a revisora fizeram para apresentar este inédito de Espinosa.

A tradução de Luís César Oliva e Emanuel Rocha Fragoso é clara e elegante, o que torna o texto muito agradável para os leitores da língua portuguesa. A revisão técnica de Ericka Itokazu, como sabemos todos os que acompanhamos o processo, lapidou o texto com muito carinho, cuidado e generosidade, para assegurar a precisão dos conceitos e dos argumentos que constituem a arquitetônica do Breve Tratado ; deu polimento, como no ofício de fazer lentes, para que permitissem ver a luz com a máxima nitidez. Certa vez uma amiga me disse, diante do Memorial da América Latina, que as curvas do desenho concreto de Niemeyer impressionavam sua imaginação de tal maneira que ela se punha a pensar, com Einstein e Espinosa, se aquela arte arquitetônica não exprimiria à sua maneira as curvas concretas de um universo infinito e densamente invisível que se reflete na luz das estrelas.

Este Breve Tratado, brilhante qual um crista l e denso como um diamante, ergue-se no tempo como o memorial de Niemeyer ergue-se no espaço. Um livro mágico como aqueles que encantavam Borges, mágico como um mapa não de espaços, mas de tempos que se escandem de uma fonte eterna. Que as frases deste exemplar de livro infinito, semelhantes a curvas geométricas, façam o seu glorioso mister e conduzam leitores e leitoras às veredas concretas do infinito.

André Menezes Rocha-Doutor em filosofia pela FFLCH/USP. Leciona da Facamp/Campinas. Atualmente, realiza seu pós-doutorado sobre Espinosa na FFLCH/USP.

Acessar publicação original

Declaração de Independência: uma história global | David Armitage

Publicado originalmente em inglês em 2007 e editado no Brasil em 2011, Declaração de Independência: uma história global, de David Armitage, é um livro bastante original, erudito e prenhe de questões importantes, resultado do empenho de um historiador altamente profissional e cheio de razões para se incomodar com uma tradição historiográfica ainda muito em voga em seu país. Qual seja: a que concebe uma história paroquial, provinciana, muitas vezes até mesmo nacionalista, e que insiste em sustentar uma excepcionalidade da trajetória dos Estados Unidos da América que não apenas costuma ser portadora de uma ideia de superioridade civilizacional, mas que também poucas vezes resiste a um exame sério e minimamente historicizante de muitos de seus conteúdos clássicos. Precisamente dentre estes se encontra a Declaração de Independência de 1776, e que neste livro encontra interpretação bastante diversa.

Dividido em três capítulos, aos quais se segue uma coletânea de declarações de independência ou documentos afins – que, segundo seu autor, se inspiraram direta ou indiretamente naquela que aqui se considera simultaneamente modelo paradigmático e evento fundacional –, o livro de Armitage, desde sua primeira linha, procura uma visão abrangente do fenômeno a ele central: a concepção, a instituição e o espraiamento de um documento supostamente capaz de subsidiar concepções e ações políticas mundo afora e desde então.

O primeiro capítulo, “O mundo da Declaração de Independência” (p.27-56), dedica-se a examinar e iluminar o fato de que o documento de 1776 só fazia sentido por estar direcionado a um sistema de relações internacionais que o explica e que o faz, radicalmente, uma peça “internacional”. O segundo, “A Declaração de Independência no Mundo” (p.57-88), examina recepções e leituras que o mundo de sua própria época realizou do documento, configurando um processo capaz de dotá-lo de uma energia vital a convertê-lo em típico protagonista do que o autor pretende “uma história global”. Finalmente, o capítulo 3, “Um Mundo de Declarações” (p.89-117), indica e organiza uma sequência de declarações que, à luz dos capítulos antecedentes e dos próprios preceitos do livro, surgem em um olhar criativo e, sem sombra de qualquer dúvida, fortemente provocador.

O que seria, então, essa “história global”? Armitage não a define, mas a pratica. Trata-se, então, de um olhar de um historiador que escreve “em um período de aguda consciência da globalização” (p.13); igualmente, de um fenômeno constituído a partir de um ponto preciso, perfeitamente bem definido no tempo e no espaço, e que se espraiaria para tempos e espaços que o transcendem. No presente caso, portanto, essa “história” se originaria com a própria criação dos Estados Unidos da América, e seguiria sua trajetória mundo afora como uma espécie de mundo que esses Estados Unidos criaram. Não se confunde, em nada, com uma história de coisas simultâneas, menos ainda com uma história de todo o globo, mas se define como a história de uma influência que, se impossibilita de qualquer indicação de término – posto que, como o autor pretende, essa influência ainda se fazia presente em 2007 – jamais deve perder de vista seu ponto de origem.

Temos, então, uma “história global” a partir de um ponto de vista anglo-americano, ou norteamericano. Não um ponto de vista que se pretenda relativo, mas objetivo: pois é dele que se parte aquilo que construirá – ou construiu – uma “história global”. E não há nenhuma dúvida de que, daqui para frente, a historiografia deve a Armitage uma forte contribuição para o entendimento de documentos e eventos de grande importância que ganham extraordinária clareza quando vistos desse modo. Deve-se, portanto, endossar parcela das mais importantes conclusões do autor.

Porém, e em parte na contramão desse endosso, pode-se destacar um aspecto central e abrangente do livro de Armitage de modo a dele extrair problema de concepção. Um problema que, creio, deve ser enfrentado por todo aquele que, de diferentes modos, se ocupa atualmente de compreender fenômenos políticos inscritos na conjuntura geral que Armitage identifica como de origem do tema que o interessa, ou que vão ao encontro de muitas outras conjunturas que podem ser identificadas como sucedâneas àquela inicial.

Tal problema é de ordem histórica e teórica ao mesmo tempo; e é por isso que pode-se considerar exemplos extraídos do próprio livro de Armitage, bem como acrescentar algum outro a ele alheio. Por isso, que fique bem claro: não proponho um diálogo puramente bilateral, com uma leitura crítica exclusivamente dessa obra; mas sim aproveitar o que Armitage nos traz para discutir um problema mais amplo, já que de seu labor resultou uma elaboração notavelmente paradigmática.

Enuncio o problema em duas questões: como fundamentar a existência de fenômenos históricos que pretensamente se configuram em uma dinâmica de irradiação temporal e espacial? E como interpretar realidades diacrônicas a partir de supostos impactos e conexões de fenômenos capazes de aproximá-las, e de torná-las uma mesma e ampla realidade? Em suma, questiono a base de configuração de uma unidade histórica – a “história global” – por meio de um corte do tipo do realizado por Armitage, isto é: o advento e a reprodução alterada de declarações de independência a partir da dos Estados Unidos da América de 1776.

Devo repetir que não só reconheço aspectos altamente meritórios da análise de Armitage como simpatizo fortemente com a abrangência temporal e espacial de sua proposta, bem como com o esforço dela decorrente de domínio de bibliografias especializadas voltadas a realidades específicas (embora veja como incômoda a devastadora primazia de obras publicadas em inglês). Bibliografias que a maioria dos historiadores, lamentavelmente, ainda continua a tratar isoladamente. É difícil praticar uma escrita da história verdadeiramente não-nacional, não-provinciana, de larga duração e de escopo global; e não há forma mais adequada de entender o mundo de finais do século XVIII, ou o de começos do XXI.

Por isso, pode-se dizer que o problema que acima destaquei é, em parte, inevitável, pois diz respeito à ideia de que fenômenos como as Declarações de Independência – mas também pensamentos e ações políticas em movimento, as modificações substantivas na composição dos Estados europeus, e a formação dos Estados nacionais delas decorrentes inclusive na América, na África e na Ásia – configuram, em escala mundial, realidades comuns, que precisam ser estudadas em conjunto porque só assim podem ser devidamente compreendidas. E é na ocorrência de uma Declaração e na sua trajetória posterior que Armitage vislumbra uma história digna de ser contada.

Se os elementos que fundamentam esse vislumbrar são eloquentes, menos o é a base de estabelecimento dos nexos que nos permitiriam falar de uma “história das declarações de independência”, ou, para nos mantermos fiéis aos termos do autor, de uma história global “da Declaração de Independência” (de 1776); nexos que fariam dessa(s) história(s) cortes válidos para entender o mundo (ou os mundos) atravessados por ela(s), e por ela(s) parcialmente explicados.

Se há, efetivamente, uma irradiação de um paradigma simultaneamente de concepção e de ação política, com todas as variações que tal paradigma comporte, há algo na ordem de uma escala territorial que não apenas possibilita esse trânsito do paradigma – e, portanto, sua existência como tal – mas também sua suposta capacidade de incidir sobre tempos e espaços variados, embora muitas vezes (nem todos) cronologicamente próximos.

Aqui, retomo outro trabalho de Armitage, elaborado em conjunto com Sanjay Subrahmanyam, e que abre uma interessante coletânea de textos dedicados a manifestações de uma chamada “era das revoluções” em diferentes regiões do globo entre os séculos XVIII e XIX: (The Age of Revolutions in Global Context, 1760-1840, de 2009). Aqui, os autores defendem uma chamada “transitive global history”: isto é, uma história concebida a partir de diferentes pontos equivalentes, sem um centro único, mas que partiria da percepção da ocorrência de fenômenos equivalentes ou semelhantes em todos eles (o que não seria o caso, obviamente, da “história global” da Declaração de 1776 proposta em Declaração de Independência, que arrancaria, sim, de um único ponto). Juntos, Armitage e Subrahmanyam encontram, então, ocasião para reaproveitar uma metáfora anteriormente já utilizada pelo último em parceria com Serge Gruzinski, e que concebe o trabalho desse tal historiador “global” com o de um eletricista, cuja tarefa consistiria em conectar os pontos de uma ligação geral, e que se encontrariam indevidamente desligados.

Inegavelmente, tal metáfora é não apenas inusitada, mas também engenhosa: parece dar conta, por exemplo, da irradiação das declarações de independência, portanto das conexões de um circuito que colocaria 1776 no mesmo caminho de 2007, que levaria a eletricidade do disjuntor dos Estados Unidos da América do século XVIII (o centro de tudo) para, por exemplo, Kossovo e Sudão atuais, passando por um grande número de pontos de distribuição. No entanto, a serventia dessa explicação parece depender estritamente de seus próprios pressupostos. Pergunto: como fundamentar a “conexão”, não entre artefatos de natureza semelhante, como são algumas (repitamos, algumas) das declarações de independência – talvez os fios, os circuitos e as tomadas da metáfora do eletricista – mas entre, por exemplo, declarações de independência e guerras; dinâmicas identitárias e formação de Estados nacionais; mutações conceituais e relações mercantis; formas de pensamento/ação políticas e estruturas cotidianas de existência social? Um livro com um governo, uma batalha com um jornal?

Tomo aqui, evidentemente, exemplos de fenômenos que, nos contextos referidos por Armitage, compõem realidades das quais as declarações de independência são parte, mas parte muito parcial. Não se trata, contudo, de antepor à conexão de coisas semelhantes uma história de todas as coisas; mas sim de questionar a legitimidade de uma escolha em termos de sua capacidade de explicar algo mais do que aquilo que nela está já desde seu princípio. O que escapa a essa história de declarações de independência, mas que parece ser essencial na compreensão de uma história da qual essas declarações são parte importante?

Penso em três casos mencionados por Armitage: a “declaração” do Peru, de 28 de julho de 1821; os eventos relativos ao Brasil, de 07 de setembro de 1822; e o que foi chamado de “Declaração de Independência do Uruguai”, de 25 de agosto de 1825. Ora, o que podemos dizer sobre tais exemplos? Em primeiro lugar, que a “declaração” do Peru foi imposta por um San Martín chefe de um exército invasor, e que pouco tempo duraria no poder do antigo Vice Reino que agora ruía; em segundo, que poucos são os atuais historiadores da independência do Brasil que consideram com seriedade o 7 de setembro como um marco do ano de 1822; e finalmente, que a “declaração” de 1825 não criou um “Uruguai”, menos ainda “independente”. Em todos os casos, no entanto e sem dúvida, alguma intenção, algum padrão comum de ação política; mas o que essas “declarações” explicam efetivamente sobre o fim do Vice Reino do Peru e do Reino do Brasil? São elas comparáveis às dos Estados Unidos e da França, ou às dezesseis de Venezuela e Nova Granada entre 1810 e 1816? Talvez devêssemos isentar Armitage da responsabilidade de discutir, com algum pormenor, todos os casos por ele mencionados, não fosse meu entendimento de que tais distorções são decorrentes de sua própria concepção de “história global”. Afinal, segundo ela, tudo que a ela pertence deve, de algum modo, se adequar a um padrão inicial, definido pelo seu marco irradiador: os Estados Unidos da América.

Aprofundemos tal objeção pontualmente. A edição brasileira de Declaração de Independência, em clara sintonia com propósitos mercadológicos perfeitamente explicáveis (ainda que não necessariamente justificáveis), incluiu, em sequência à coletânea de declarações já mencionada, um “Apêndice” relativo ao Brasil (p.201-214). Dele constam quatro peças: o famoso decreto do governo do príncipe regente Pedro de 03 de junho de 1822, convocando uma assembleia constituinte e legislativa para o Brasil; uma carta do mesmo príncipe (que ainda não era, portanto, “Pedro I”, como consta do livro) ao rei João VI, de 22 de setembro de 1822; a ata de aclamação (aí sim) de Pedro I Imperador do Brasil, de 12 de outubro de 1822; e o tratado assinado em 25 de agosto de 1825, pelo qual Portugal reconheceu formalmente a independência do Brasil. Ora, a que servem tais documentos, neste livro? Nas palavras do autor, como o Brasil, “caso particular na América, não teve uma declaração de independência inspirada naquela dos Estados Unidos”, o que supostamente caracterizaria um “processo sui generis”, tais documentos poderiam estimular “o estudo comparado (de acordo com os objetivos do livro) com os outros processos emancipatórios aqui ilustrados” (p.201). E assim, o que não se adequa ao pressuposto do livro – os Estados Unidos como centro irradiador de uma “história global”, é confinado à categoria de aberração. O que coloca Armitage em perfeita sintonia com um dos tópicos mais tradicionais – e hoje mais contestáveis – da suposta singularidade da história do Brasil no panorama não apenas americano, mas também mundial. O que ganhamos reconduzindo à independência do Brasil essa interpretação tão convencional quanto míope?

O problema aqui se converte no da legitimidade do recorte. Se a “história global” da “Declaração de Independência”, bem como da modalidade indicada por tal expressão no plural, realizada por Armitage é legítima, útil e importante, ela parece servir também para obliterar realidades que apenas enganosamente se enquadram no seu padrão. Pouca coisa se explica do Peru, do Brasil e do Rio da Prata oriental por essas “declarações”; e como exceções à suposta regra, o corte adotado corre o sério risco de incentivar a retirada da cena dos contextos doravante considerados excepcionais.

Na minha leitura, os elementos frágeis da concepção de uma “história global” tal qual praticada por Armitage, assim como seus muitos e inegáveis méritos, demandam um escopo teórico que seja capaz de explicar não apenas quais realidades se conectam, mas fundamentalmente porque elas podem se conectar, e como o fazem. Um escopo teórico que nos permita superar os insolúveis problemas decorrentes da reificação de um método ou de uma concepção “global” de história, da qual Armitage é tributário e, ao mesmo tempo, formulador.

É bem verdade que vivemos tempos não apenas de forte consciência de uma “globalização”, mas igualmente de uma persistente crise de paradigmas teóricos, de perene desprestígio da reflexão teórica, sobrepujada por um empiricismo fácil e sedutor, bem como de pesquisas hipertrofiadas e isoladas, incapazes de propor generalizações (sempre elas, perigosas, temerárias, mas imprescindíveis…). Assim, e na contramão de tais atitudes, o que encontramos em Declarações de Independência já é mais do que o bastante para merecer aplauso; no entanto, não parece o suficiente para assegurar saídas para alguns dos impasses desses tempos.

No cenário historiográfico atual, poucos historiadores pareceriam tão capazes como David Armitage de caminhar nessa direção; de preferência, realizando uma avaliação propositiva da serventia ou não de categorias anteriormente usadas (muitas vezes abusadas) pelas ciências sociais – como, por exemplo, “sistema-mundo”, capitalismo” e “longa-duração”– e que desapareceram quase que por completo nas atuais elaborações em torno de uma “história global”. Basta de imputar ao autor, no entanto, objetivos e interesses que não necessariamente são os dele: limitemo-nos, por fim, a reconhecer Declarações de Independência como uma obra forte, por muitos motivos altamente meritória, e certamente encorajadora de tarefas às quais ela pode, simultaneamente, pautar e servir de ponto de partida.

João Paulo Pimenta – Professor no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP – São Paulo/Brasil). E-mail: [email protected]


ARMITAGE, David. Declaração de Independência: uma história global. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 264p. Resenha de: PIMENTA, João Paulo. O que é uma “história global”? A propósito de um livro de David Armitage. Almanack. Guarulhos, n.6, p.153-157, 2º semestre de 2013.

Acessar publicação original [DR]

 

Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900 – CROSBY (AN)

CROSBY, Alfred W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900. Tradução: José Augusto Ribeiro, Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia da Letras, 2011. Resenha de: VENCATTO, Rudy Nick. .Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 37, p. 331-338, jul. 2013.

As questões socioambientais ganharam um grande impulso nas discussões acadêmicas, principalmente no final do século XX e início do século XXI. É neste cenário que a obra de Alfred W. Crosby1, Imperialismo Ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900 ressurge, no ano de 2011. Publicado primeiramente no ano de 1986, nos Estados Unidos, o livro foi lançado no Brasil pela Editora Companhia das Letras no ano de 2011, em uma versão de bolso, fruto de uma tradução da primeira reimpressão, que data de 1991.

Cabe aqui uma primeira reflexão plausível de debates. Por que uma obra lançada no século passado ganha evidência no Brasil somente no ano de 2011? Em um panorama no qual as preocupações ambientais auferiram lugar de destaque, editar uma obra com tal magnitude de discussão significa também, para a editora, um mercado de circulação favorável. Além disso, é inegável que a temática abordada por Alfred Crosby é pertinente, não somente neste século, mas sim, em qualquer temporalidade, pois proporciona diferentes olhares sobre os movimentos expansionistas e coloniais, estimulando, assim, a quebra de alguns paradigmas.

De uma forma geral, a obra de Alfred W. Crosby problematiza o processo de expansão das populações europeias, principalmente por volta dos 0 a 1900, porém sem perder de vista um recorte temporal mais longínquo. O foco de sua discussão concentra-se na invasão biológica lançada pelas levas europeias em outras regiões do planeta, as quais constituíram aquilo que denominou-se de “biota portátil”2. Crosby aufere um lugar protagonista à biota portátil, sendo ela responsável por expulsar ou até mesmo eliminar a flora, fauna e os habitantes nativos de distintas regiões do mundo, dando origem às “Neoeuropas”, ou seja, Austrália, Nova Zelândia e América.

Para tal reflexão, sua obra foi dividida em doze capítulos, ao longo dos quais, Crosby passeia da Pangeia, há aproximadamente 180 milhões de anos, até 1900. Segundo ele, neste período, as Neoeuropas já estão constituídas e, por sua vez, são responsáveis pelo abastecimento mundial de alimentos estando todas situadas em latitudes similares, em zonas temperadas dos hemisférios norte e sul, possuindo a grosso modo, o mesmo clima. Como introdução, Crosby lança explicações para delimitar seu tema, partindo de uma preocupação central: entender as razões que levaram os europeus e seus descendentes a estarem distribuídos por toda a extensão do globo.

Segundo Alfred Crosby, o bom desempenho das campanhas imperialistas e expansionistas europeias está ligado a questões ecológicas e biológicas. Porém, ao fazer estas afirmações, o autor acaba por simplificar estas campanhas, e/ou, até mesmo, naturalizálas, diminuindo, assim, a relevância das questões econômicas, políticas e culturais que também foram agentes neste processo. Trata-se de uma afirmação audaciosa que por vez pode direcionar os leitores a caírem na malha discursiva do autor, tomando os movimentos de conquista e extermínio enquanto ações naturais, ligadas apenas a questões biológicas.

É no segundo capítulo intitulado, Revisitando a Pangeia: o Neo lítico Reconsiderado, que Crosby passa a olhar mais atento para o processo de evolução e desenvolvimento de diferentes espécies, tomando como eixo de análise a divisão da Pangeia3. Para Crosby, este movimento definidor dos continentes proporcionou que muitas formas de vida se desenvolvessem de maneira independente e em muitos casos, com exclusividade, o que, segundo o autor, pode explicar as diferenças extremas de fl ora e fauna entre a Europa e as Neoeuropas.

Chama atenção a definição de cultura que Crosby traz para sua análise. É cabível de compreensão que sua concepção adapta-se aos interesses que procura desvendar neste processo de investigação, apresentando de forma limitada uma categoria de análise tomada por tanta complexidade e debatida em várias áreas das ciências humanas.

Para Crosby (2011, p. 25), cultura pode ser entendida enquanto: […] um sistema de armazenamento e alteração de padrões de comportamento, não nas moléculas do código genético, mas nas células do cérebro. Essa mudança tornou os membros do gênero Homo os maiores especialistas em adaptabilidade de toda natureza.

Para o crítico literário Raymond Williams, os conceitos são elementos historicamente constituídos, fixando sentidos, imagens e margens de significações que, muitas vezes, imobilizam o passado no passado. Os conceitos, antes de empregados como verdades ou paradigmas, devem ser vistos e problematizados em seu movimento, levando em consideração o espaço e o tempo em que foram criados.

Só assim será possível aplicar análises que venham a compreender os sentidos cristalizados, vividos em outras temporalidades (WILLIANS, 2001). Neste sentido, para além da proposta de Crosby, cultura deve ser entendida não apenas enquanto manifestações biológicas, mas sim enquanto um complexo de relações que são constitutivas e constituintes dos sujeitos humanos.

A partir da concepção biológica de cultura, Crosby levanta hipóteses sobre o desaparecimento dos grandes mamíferos em localidades onde o gênero Homo fora se estabelecendo. Para o autor, as doenças e o fogo utilizado para efetivar grandes queimadas podem ter alterado o hábitat dos gigantes tornando impossíveis a vida e a reprodução. Segundo Alfred Crosby, este processo foi uma mutação cultural que deu origem à “Revolução do Neolítico”4.

No terceiro capítulo, intitulado Os Escandinavos e os Cruzados, Crosby dá ênfase às primeiras colônias ultramarinas da Europa, sendo elas: a Islândia e a Groenlândia. Estabelecidas por populações escandinavas, estas, por sua vez, contribuíram para a criação de mecanismos necessários para o bom desempenho das navegações no século XV. Segundo o autor, o sucesso nestas colônias esteve relacionado à competência náutica, à capacidade de lidar com atividades da pecuária e à adaptação a uma alimentação a base de leite.

Por outro lado, o fracasso, mais tarde, também está relacionado às questões fisiológicas e estratégicas. Para ele, a ausência de cereais, madeira e ferro nestas localidades, tornava o contato comercial com esse continente inviável, e o resultado por um maior intervalo de tempo sem contato com o continente europeu era o extermínio por surtos de epidemias. Em suas palavras, “[…] as doenças infecciosas davam a impressão de trabalhar não para os escandinavos, mas contra eles.” (CROSBY, 2011, p. 64).

No discurso de Crosby, os agentes patógenes que muitas vezes passam despercebidos na análise dos processos de colonização são cruciais para compreender os sucessos e fracassos das expansões europeias. Entretanto, não se deve perder de vista que agentes culturais como costumes, língua, religião, entre outros, são de suma importância para uma compreensão mais abrangente sobre estas campanhas. Olhar somente para a biota portátil significa dar muito crédito a um único conjunto de fatores. Faz-se necessário somar outros elementos que tiveram papel ativo neste processo de ocupação e colonização.

Por outro lado, a quebra de paradigmas que Crosby possibilita é plausível de elogios. É ainda no terceiro capítulo que, fazendo uso de uma rica documentação baseada em cartas de navegação e diários de navegadores, o autor torna possível quebrar com os mode los explicativos que cristalizam o contato e a ocupação europeia do continente americano, apenas enquanto fruto das navegações do século XV. Problematizando a chegada dos escandinavos na região do atual Canadá, Crosby contribui para perceber a história enquanto movimento e processo, estabelecendo, assim, uma série de novos elementos para esta refl exão.

O quarto capítulo é As Ilhas Afortunadas; o quinto, Ventos; e o sexto, Fácil de alcançar, difícil de agarrar, figuram o processo de expansão marítima empreendido pela Europa entre os séculos XIV e XV.

São nesses capítulos que o autor chama atenção às funções dos arqui pélagos para os navegadores. Passando de sinais de orientação no oceano a lugares de abastecimento, tornaram-se, mais tarde, elos entre as metrópoles e as colônias. Para Crosby, os arquipélagos funcionaram como experimentos no processo de expansão das atividades agrícolas e pecuárias. Transformar ilhas em lugares de abastecimento significava disseminar espécies de animais, muitas das quais, num período longo de tempo, acabaram causando alterações nos elementos da fl ora e fauna. Segundo Crosby, (2011, p. 86) “É possível que plantas nativas tenham desa parecido e animais nativos tenham morrido por falta de alimento e abrigo”.

O autor levanta uma refl exão que impulsiona os leitores a pensar sobre a instabilidade do ambiente natural. Para Crosby, muitas espécies que se julgam nativas de um lugar foram em algum tempo trazidas pelos europeus, espalhando-se e levando a crer que sempre existiram em um determinado espaço. Perceber que espécies dora vante tomadas enquanto nativas foram em outros tempos, introdu zidas consciente ou inconscientemente por migrações humanas, significa perce ber os sujeitos humanos num processo relacional com a natureza.

Penso neste momento no trabalho de Simon Schama, Paisagem e memória (1996), no qual, segundo o autor, antes mesmo de estarmos lidando com uma natureza, estamos lidando com uma paisagem, ou seja, olhares que foram lançados sobre a natureza e que, de alguma manei ra, instituem significados para esses espaços. Schama instiga a perceber a natureza não apenas por olhares da botânica ou dos bió logos, mas sim a partir dos usos e das representações presentes no imaginário dos seres humanos. Para o autor, é necessário redescobrir o que já possuímos, mas que, de alguma forma, escapa-nos ao reconhecimento e à apreciação. Através desta concepção, é possível estar atento à rique za, à antiguidade e à complexidade da tradição paisagística com relação aos modos de ver a natureza.

O sétimo capítulo é Ervas; o oitavo, Animais; e o nono, Doenças, dão ênfase, e Crosby não poupa em exemplos, na expansão da biota portátil que, para o autor, fora o principal agente delimitador do sucesso na constituição das Neoeuropas. São nestes capítulos que, sutilmente, Crosby diminui o peso das ações de extermínio causadas pelo expansionismo europeu. Para ele, as mudanças também fugiram do controle humano quando algumas espécies de animais como o rato embarcaram nos porões dos navios levando consigo um universo de agentes patológicos. Para Crosby (2011, p. 201-202), “Isso parece indicar que os seres humanos raras vezes foram senho res das mudanças biológicas que provocaram nas Neoeuropas.”.

É no nono capítulo que essa abordagem é realizada com maior cautela. Crosby dá grande ênfase às ações modificadoras causadas pelos agentes patógenes, excluindo, assim, de maneira sutil, a responsabilidade europeia pela ação e devastação nas colônias ultramarinas.

Em suas palavras, “Foram os seus germes os principais responsáveis pela devastação dos indígenas e pela abertura das Neoeuropas à dominação demográfica”. (2011, p. 205). De certa forma, cabe pensar que quando a ação das enfermidades fora percebida pelos europeus, a mesma passou a ser utilizada enquanto arma no processo de expansão.

Neste caso, excluir a intenção e dar ênfase somente à biota, significa realizar uma anistia no processo de extermínio e isentar os conquistadores das chacinas realizadas.

No décimo capítulo, Nova Zelândia, o autor preocupa-se em destacar o caráter distinto da formação dessa Neoeuropa. Baseando-se em trabalhos de botânica e analisando o processo de colonização da Nova Zelândia, Crosby aprofunda-se na compreensão das mudanças proporcionadas pela biota portátil. Este capítulo emerge enquanto exemplo mais específico, para dar legitimação à análise proposta pelo autor em ressaltar as interferências europeias nos outros continentes.

É nos capítulos décimo primeiro, Explicações e décimo segun do, Conclusão, que Alfred Crosby procura fechar sua análise, mas sem esgotar as possibilidades de refl exão. Cabe destacar que, ainda no capítulo Explicações, o autor retoma a explicação daquilo que seria a biota portátil tornando, de certa forma, algo maçante em seu texto.

Por outro lado, este balanço final vem enquanto auxílio aos leitores que não se debruçam pelos caminhos de toda a obra. Mais uma vez, Crosby vai insistir no discurso que naturaliza o processo de invasão e extermínio causado pela expansão europeia. Um de seus argumentos concentra-se ao fato de que, por volta do século XV, as modificações e devastações de espécies vivas já faziam parte do processo de evolução destes continentes. Em suas palavras: “Em 1500, o ecossistema dos pampas estava arrasado, desgastado, incompleto – como um brinquedo nas mãos de um colosso pouco cuidadoso.” (CROSBY, 2011, p. 290).

Alfred Crosby estimula a olhar para os movimentos migra tórios, sejam eles no Neolítico ou no século XV, enquanto duas levas de invasores da mesma espécie. Para ele, os primeiros atuaram como tropa de choque abrindo caminho para a segunda leva, a qual, numericamente maior, estava equipada com economias mais complexas.

(CROSBY, 2011, p. 291).

De certa forma, O imperialismo ecológico, de Alfred Crosby, possibilita lançar olhares para outros elementos que também são significativos na compreensão dos processos de expansão e colonização difundidos pelo globo. Porém, faz-se necessário, ao longo do texto, estar atento para não naturalizar estas ações humanas, as quais, no discurso do autor, ganham uma imparcialidade perante os agentes naturais. Olhar para as modificações impulsionadas pelas navegações significa não perder de vista os agentes políticos, econômicos e sociais presentes neste processo.

É significativo pensar no caráter da biota portátil e sua capacidade de modificação dos espaços. Caminhar pelas linhas do Imperialismo Ecológico, de Crosby, permite estar atento a esses agentes.

Entretanto, é de suma importância não cair nas amarras e deixar de lado a bagagem cultural que se desloca com esses movimentos migra tórios, levando consigo, transformações e adaptações. Olhar para ambos os aspectos torna a compreensão das ações humanas mais esclarecedoras e possibilita não perder de vista as ações e decisões humanas, imbricadas em diferentes conjunturas e temporalidades.

Notas

1 Nascido em Boston, em 1931, o autor estadunidense atuou em diversas universidades americanas e se estabeleceu na Universidade do Texas, em Austin, onde aposentou-se, no ano de 1999. Suas pesquisas ao longo de sua carreira contemplaram principalmente questões voltadas para a história biológica, assumindo como maior preocupação as ações e interferências causadas pelos processos evolutivos de diferentes espécies de seres vivos.

2 Conjunto de animais, plantas e doenças que navegaram com os europeus efetivando projetos de colonização e dominação de novas terras.

3 Massa única de terra a qual, após sua divisão, deu origem aos continentes. Este movimento iniciou-se por volta de 200 milhões de anos atrás.

4 Para Crosby, essa revolução ocorreu quando os humanos passaram a triturar e polir. Mais tarde vem o surgimento da agricultura e a domesticação dos animais, a qual vai iniciar primeiramente no Velho Mundo (Europa) e mais tarde nas Neoeuropas. (2011, p. 29).

Referências

CROSBY, Alfred W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900.

Tradução de José Augusto Ribeiro, Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia da Letras, 2011.

SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

WILLIAMS, Raymond. Cultura y sociedad. 1780-1950. De Colerige a Orwell, Buenos Aires: Nueva Visión, 2001.

Rudy Nick Vencatto – Docente do Curso de História da Universidade Paranaense – UNIPAR e doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. E-mail: [email protected].

Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860 | Izabel Andrade Marson e Cecília Helena de Salles Oliveira

Durante longo tempo, os estudos de história política, social e econômica do Brasil Imperial foram tomados de forma bastante estanque, como se não houvesse uma continuidade entre o Primeiro Reinado, a Regência e o Segundo Reinado. De certa maneira, era lugar comum tratar as diferentes fases do processo que levou à formação do Estado Imperial apenas como rupturas. Desconsiderava-se a interdependência de temas como cidadania, comércio, escravidão, justiça e política externa, e não havia a preocupação em compor análises que indicassem as contradições do período. Dito de outro modo, não se tomava a formação do Estado Imperial a partir da ideia de processo.

Contudo, nos últimos anos esta visão tem sido alterada pelos inúmeros esforços de historiadores de diversas partes do país, o que pode ser demonstrado pela constituição de grandes projetos coletivos, de associações dedicadas ao estudo daquele período, materializados pela criação de novos laboratórios, grupos de estudo e linhas de pesquisas em importantes programas de pós-graduação brasileiros. Tais esforços ajudaram a romper o isolamento das pesquisas, permitindo que novos enfoques e novas abordagens fomentassem o diálogo entre diferentes autores, sendo possível estabelecer contatos até mesmo com pesquisadores que atuam em instituições internacionais, para pensar o Império do Brasil de forma que articule, equilibradamente, aspectos sociais, econômicos e políticos.

Novos trabalhos cheios de fôlego para romper com antigos paradigmas e propor questionamentos instigantes aos temas correlatos à formação e à consolidação do único Império no Hemisfério Sul estão reunidos em importante coletânea organizada por Izabel Marson e por Cecília Oliveira. Os artigos em foco percorrem temas como escravidão, liberalismo, redes de interesse mercantis, conflitos e competições na cena pública, bem como a opção pela monarquia constitucional representativa. O livro, como um todo, abrange desde a crise do Antigo Regime ao Segundo Reinado, explicitando que o Império do Brasil somente pode estruturar-se como tal porque contou com o suporte, sobretudo financeiro, garantido pelos negociantes de grosso trato, sempre interessados em obter vantagens econômicas e políticas, em momento em que, sob os matizes das práticas liberais, as coisas da vida pública e da vida privada coexistiam sem se confundir.

A coletânea em tela está dividida em duas partes: (Re)configuração de pactos e negociações na (re)fundação do Império e Revoluções e Conciliação: Fluidez do Jogo Político, dos Partidos e dos Empreendimentos. Ao todo, os nove artigos escritos por mestres e doutores demonstram como as redes de favorecimento impulsionaram o enraizamento do Estado português na América, bem como garantiram a consolidação do Estado Imperial do Brasil.

O primeiro momento é inaugurado por Ana Paula Medicci, autora de As arrematações das rendas reais na São Paulo setecentista: contratos e mercês. O estudo abrange o período de 1765, ano em que a capitania tornou- se autônoma ao Rio de Janeiro, a 1808, data da chegada da Corte, quando novos arranjos políticos alterariam o novo centro administrativo e a sua relação com outras localidades da Colônia. Ao discordar da perspectiva de que a capitania atravessava grave crise econômica quando se reorganizava administrativamente, a autora demonstra que a capitania de São Paulo favoreceu o enraizamento de negociantes que participavam da administração pública arrematando impostos, financiando empreendimentos estatais e comandando tropas de segunda linha. Comprova a existência de uma rede de compadrio que permitiu que, mesmo antes do século XIX, São Paulo fulgurasse como uma das mais expressivas províncias do Brasil, dispondo de homens ricos e influentes que, ao mesmo tempo em que intencionavam consolidar seus objetivos particulares de manutenção no poder, também fortaleciam as instituições representativas tão necessárias à unidade imperial.

O político e o econômico também aparecem como faces da mesma moeda no artigo Imbricações entre política e negócios: os conflitos na Praça do Comércio no Rio de Janeiro, 1821, de Cecília Helena de Salles Oliveira. As análises do tumulto, ocorrido durante assembleia de eleitores que indicaria os representantes do Rio de Janeiro em Lisboa, extrapolam as explicações simplistas de que foram apenas manifestações antilusitanas antecedentes à Independência. Possibilitam compreender as vinculações entre a política e o mercado a partir de um reordenamento de hierarquias, privilégios e monopólios disputados por diferentes agentes sociais. São resultados das contradições e dos múltiplos projetos em disputa, em um momento em que muito ainda estava para ser definido.

A fim de compreendê-los, Cecília Oliveira parte da análise de três importantes fontes históricas, escritas por contemporâneos que atribuíram interpretações variadas para os atos na “Bolsa”: a edição de 25 de abril de 1821 do jornal Gazeta do Rio de Janeiro; as impressões de Silvestre Pinheiro Ferreira, ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra; e os relatos anônimos publicados um mês após os eventos na Praça do Comércio, sob o título de Memórias. As três visões sobre o mesmo fato levaram-na a pensar sobre os projetos conflitantes, bem como a compreender as articulações em torno da figura de D. Pedro I: alternativa viável aos interesses mercantis de determinado grupo que ambicionava participar da redação de um texto constitucional que limitasse os poderes do governo e ainda garantir a preponderância do Rio de Janeiro como centro articulador da política e das negociações mercantis.

O terceiro artigo da coletânea também demonstra como os negociantes se valiam da aproximação com a política para obter vantagens para si. Festejos públicos, política e comércio: a aclamação de D. João VI, foi escrito por Emílio Carlos Rodriguez Lopez, e investiga a montagem e o financiamento das celebrações da monarquia, voltando-se especialmente para o evento de fevereiro de 1818. Revela como as mesmas famílias que estavam por trás do comércio de abastecimento da cidade eram também as principais financiadoras das festas públicas – o que as distinguia socialmente e reforçava ainda mais os laços com o soberano, que as recompensava com honrarias e outras mercês. Além disso, as festas difundiam a ideia de que a civilidade havia chegado aos trópicos. Reproduções do arco do triunfo, do templo grego e do obelisco egípcio eram exibidas próximas ao local da aclamação e ao centro do poder, simbolizando que novos padrões culturais estavam em voga no Brasil desde a vinda da Corte.

Avançando no tempo, Vera Lúcia Nagib Bittencourt escreveu Bases territoriais e ganhos compartilhados: articulações políticas e projeto monárquico-constitucional para entender o apoio a essa forma de governo no período posterior à Independência. Para ela, a emancipação política do Brasil e a adesão à figura de D. Pedro devem ser entendidas como resultantes de um árduo processo de negociações envolvendo interesses multifacetados, num momento em que as interações entre o Rio de Janeiro e as demais províncias se diversificavam frente à redistribuição de poderes. A autora propõe que as relações entre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro sejam pensadas para além de suas dimensões territoriais, mas sim pelas dimensões políticas e econômicas estreitadas pelas práticas comerciais, pela expansão da agricultura e principalmente por uma extensa rede familiar de negócios que atuava na área. Podem ser pensados como “espaço com identidade econômica e social, em busca de poder e representação” (p. 156).

Encerrando a primeira parte da coletânea, João Eduardo Finardi Álvares Scanavini apresenta Embates e embustes: a teia do tráfico na Câmara do Império (1826-1827). O autor analisa a repercussão do tratado anglo-brasileiro de 23 de novembro de 1826, que visava pôr fim ao tráfico de escravos em um prazo de três anos, na Câmara dos Deputados. A partir dos debates travados naquela Casa do Legislativo, o autor mapeou o posicionamento dos grupos sobre o tema, procurando aprofundar a ligação entre esses homens e distintos interesses mercantis no Rio de Janeiro. Afirma que os deputados expressaram condutas ambíguas sobre a extinção do comércio de almas no país, defendendo a conservação da ordem escravocrata, a partir de um debate que se centrou, na maioria das vezes, em condutas anglóbofas ou anglófilas visando desqualificar o tratado de 1826.

A segunda parte do livro dedica-se a momento posterior à renúncia de Pedro I em nome do filho. É inaugurada por artigo de Erik Hörner, intitulado Partir, fazer e seguir: apontamentos sobre a formação dos partidos e a participação política no Brasil da primeira metade do século XIX. Valendo-se das concepções teóricas do cientista político Giovanni Sartori, Hörner afirma que ater-se às designações “liberais” e “conservadores” nos anos finais da Regência e no Segundo Reinado pode ser considerado um anacronismo por levar em consideração o bipartidarismo defendido por autores de época, como Justiniano José da Rocha, Theophilo Ottoni, Américo Brasiliense e Joaquim Nabuco. O esquematismo dos autores de época não se aplica às experiências das assembleias e dos governos do Brasil Imperial, sendo preciso levar em consideração as particularidades locais em relação às diversas esferas de poder em altercação.

Em Monarquia, empreendimentos e revolução: entre o laissez-faire e a proteção à “indústria nacional” – origens da Revolução Praieira (1842- 1848), Izabel de Andrade Marson analisa o jogo político partidário em face na Província de Pernambuco. “Guabirus” e “praieiros”, defensores, respectivamente, do “livre-cambismo” e da “indústria nacional”, opunham-se na cena pública, competindo por cargos de poder e por maior inserção nos negócios. Tal concorrência, somada à hostilidade entre conservadores e liberais, foi munição necessária à explosão dos conflitos de 1848. A vitória dos conservadores levou ao enfraquecimento do Partido Nacional de Pernambuco – PNP, afastando, por conseguinte, os liberais do poder por cerca de quinze anos. Tal hegemonia garantiu, segundo Marson, que práticas livre-cambistas encontrassem condições propícias para prosperar, ainda que achassem resistência entre os proprietários menos abastados.

Embora o PNP estivesse desarticulado após a Revolução Praieira, os ideais propalados pelo grupo seriam reavivados por volta de 1870, quando Henrique Augusto de Milet, no Jornal de Recife, buscava compreender as causas da crise das lavouras vividas pelas províncias do norte. Culpava os dirigentes do Império por terem buscado soluções estrangeiras (laissezfaire, alta do câmbio, juros elevados, etc.) para um problema nacional que tinha origem nas disputas sangrentas ocorridas em Pernambuco. A crise nas lavouras propiciou a revolta do “Quebra-Quilos”, expressão do descontentamento de vários setores sociais que, gradativamente, viam os sustentáculos do regime monárquico ruir.

Em Autobiografia, “conciliação” e concessões: a Campanha do Mucuri e o projeto de colonização de Theophilo Ottoni, Maria Cristina Nunes Ferreira Neto analisa as explicações sucintas do tarimbado político em documento dirigido aos eleitores da Província de Minas Gerais. Investiga as lacunas deixadas pelo signatário da Circular, escrita no calor da hora em meio à falência do projeto de colonização dessa rica região do nordeste mineiro, quando Ottoni desejava isentar-se das críticas de oportunismo e incompetência administrativa. Evidencia as relações entre o Estado e a iniciativa privada, demonstrando como Ottoni, inspirado pelos princípios liberais e contando com o auxílio do governo, usufruiu de concessões, privilégios e terras para levar adiante um empreendimento de grande porte. O projeto colonizador do Mucuri foi bem sucedido até 1858, quando Ottoni valeu-se das benesses concedidas pelo “Ministério da Conciliação” para obter empréstimos, garantir a compra de mais terras e a vinda de mais imigrantes para o trabalho braçal. Entretanto, após seus aliados políticos terem sido afastados do poder, a Companhia de Navegação e Comércio do Mucury enfrentou entraves financeiros e políticos. Um deles foi o veto concedido pelo então Ministro da Fazenda, Ângelo Muniz Ferraz, adversário de Ottoni, ao empréstimo que seria concedido pela Inglaterra para quitação de dívidas e de multas, bem como pagamento dos salários dos imigrantes.

Seguindo a mesma linha de argumentação para esmiuçar as relações entre interesses pessoais e as políticas de governo, Eide Sandra Azevêdo Abrêu encerra a coletânea, apresentando o artigo “Um pensar a vapor”: Tavares Bastos, divergências na Liga Progressista e negócios ianques. Mais uma vez o experiente Theophilo Ottoni aparece como um dos articuladores do grupo de políticos, que reunia representantes do partido conservador e do partido liberal, para fazer frente à lei de 22 de agosto de 1860, que criava empecilhos às liberdades de associação e de crédito. Zacarias de Góis e Vasconcelos, Pedro de Araújo Lima (Marquês de Olinda), José Thomaz Nabuco de Araújo, Francisco Otaviano de Almeida Rosa, Martinho Alvares da Silva Campos, Aureliano Cândido Tavares Bastos foram alguns dos representantes que, ao lado de Ottoni, constituíram a Liga. Novamente, evidenciam-se as dissenções entre os membros dos diferentes partidos políticos, rompendo-se com a ideia de homogeneidade no seio das agremiações. A própria Liga Progressista era rica em contradições, como demonstram os diferentes interesses que vieram à tona em face das argumentações pela subvenção à navegação entre o Brasil e os Estados Unidos.

Tavares Bastos, por exemplo, foi um dos defensores da proposta que favoreceria negociantes norte-americanos e brasileiros ligados à navegação, porque ele mesmo era um dos interessados em lograr vantagens junto ao Estado Imperial para tocar seus projetos econômicos ligados aos investidores estrangeiros. O autor reforça uma máxima que percorre todos os trabalhos do livro – indispensável para todos os interessados em entender a complexidade do Brasil Império: a indissociabilidade entre política e negócios, que devem ser tomadas como dimensões interdependentes, complementares, num momento em que homens alçados aos mais altos postos de governo integravam redes mercantis e estreitavam seus vínculos por meio de estratégias que visavam o fortalecimento dos seus interesses privados.

O livro em tela reforça a necessidade de que os novos estudos dediquem-se à superação de esquemas estanques, que tratam política e negócios a partir de relações antagônicas. Fatos e fontes históricas são revisitados com o frescor e a coragem de novas interpretações, em textos que fluem de maneira coesa e acessível. São apresentadas novas hipóteses que movimentam o debate histográfico e lançam ainda mais questões acerca do passado histórico rememorado e reconstruído sob a luz do presente.

Aline Pinto Pereira – Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF – Niterói/Brasil). E-mail: [email protected]


MARSON, Izabel Andrade; OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (orgs.). Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Edusp, 2013. Resenha de: PEREIRA, Aline Pinto Interesses públicos e privados nas tramas do Brasil Império. Almanack, Guarulhos, n.6, p. 163-167, jul./dez., 2013.

Acessar publicação original [DR]

Sidereus nuncius – O mensageiro das estrelas – GALILEI (SS)

GALILEI, Galileu. Sidereus nuncius – O mensageiro das estrelas. Tradução, estudo introdutório e notas de Henrique Leitão. Porto:  Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. Resenha de: SILVA, Paulo Tadeu da. A mensagem, o mensageiro e o tradutor: a propósito da tradução portuguesa do Sidereus nuncius. Scientiæ Studia, São Paulo, v.11, n. 4, p. 937-46, 2013.

A Fundação Calouste Gulbenkian publicou, em 2010, a primeira tradução portuguesa de um dos textos mais importantes da história da ciência e, sem qualquer dúvida, aquele que causou o mais profundo impacto no mundo científico europeu das primeiras décadas do século xvii, a saber, o Sidereus nuncius, de Galileu Galilei. A publicação dessa tradução ocorreu quatrocentos anos após a primeira publicação do Sidereus nuncius, ocorrida em março de 1610 e, como diz Sven Dupré (p. 8), que escreve a nota de abertura à tradução portuguesa, no momento em que o pó de intensas e numerosas atividades e eventos comemorativos do Ano Internacional da Astronomia começava a assentar. Segundo Dupré, diversos estudiosos têm voltado sua atenção para esse pequeno texto, explorando diferentes aspectos, como, por exemplo, a importância do mecenato, a relação entre o contexto artístico e as imagens lunares produzidas por Galileu, os aspectos literários do texto ou, ainda, os aspectos técnicos relacionados com a produção de lentes e a invenção do telescópio. Essa diversidade de abordagens, como afirma Dupré (p. 8), coloca em evidência o caráter interdisciplinar dos estudos dedicados ao texto, bem como mostra a sua importância não apenas no contexto científico mais restrito, mas também no âmbito cultural mais amplo.

Apenas a tradução do texto para a língua portuguesa já mereceria destaque e reconhecimento. Contudo, Henrique Leitão vai além de uma tradução segura e cuidadosa do original latino. Além dela, Leitão oferece ao seu leitor um estudo introdutório e um bom conjunto de notas explicativas que contribuem para uma melhor compreensão dos aspectos históricos, filosóficos e científicos com os quais o livro de Galileu esteve envolvido. Antes de considerar o estudo introdutório, convém destacar alguns pontos do prefácio de Leitão.

Henrique Leitão inicia o prefácio afirmando que o Sidereus nuncius é “uma obra que pode, sem qualquer exagero, ser considerada a mais emblemática, a mais perturbadora, mas também a mais acessível de todas quantas compõem o excepcional panteão dos textos da ‘revolução científica’” (p. 11). Tal importância, entretanto, contrasta justamente com a ausência, em Portugal, de uma tradução desse texto. Como sabe o leitor brasileiro, não se trata da inexistência de qualquer tradução para a língua portuguesa. E, de fato, Leitão não deixa escapar esse detalhe. Depois de uma breve referência no prefácio, Leitão faz uma menção mais detalhada no estudo introdutório, avaliando as duas edições da tradução brasileira, feita por Carlos Ziller Camenietzki, bem como o estudo introdutório e as notas que a acompanham. De acordo com Leitão, a tradução brasileira visou um público bastante amplo, ao passo que a tradução portuguesa, ainda que não esteja endereçada ao especialista na obra de Galileu, tem em vista um público culto e informado. O principal motivo da afirmação quanto ao escopo da tradução portuguesa está no fato de que “o especialista nunca dispensará a leitura do texto de Galileu na sua versão latina original” (p. 12). Não obstante os propósitos alegados por Leitão, cumpre avaliar a natureza e o alcance desta edição do Sidereus nuncius, bem como o lugar deste pequeno texto de Galileu no longo processo que marcou a defesa do copernicanismo.

O primeiro aspecto que chama a atenção é justamente o título da primeira seção do estudo introdutório: “Uma Gazeta Sideral com ‘osservazioni di infinito stupore”. Como Leitão adverte na nota 8 do estudo, bem como na nota 1 da tradução, o termo gazeta foi adotado por Carlos Solís Santos, responsável pela tradução espanhola do Sidereus nuncius. Santos, além de deixar clara sua decisão de romper com a tradição, justifica que o termo avviso,1 além de significar “notícia” ou “noticiário”, pode ser entendido como “gazeta”. A decisão de Santos, como afirma Leitão, pretende colocar em evidência o caráter “sensacional e jornalístico do livro de Galileu”. Leitão, pelo contrário, opta pela tradução que, segundo ele, é a mais habitual. O debate em torno da tradução do título do livro de Galileu é um assunto largamente discutido, sabemos disso. Contudo, gostaria de apresentar algumas rápidas considerações sobre a decisão de Leitão, em contraste com outras soluções de tradução como, por exemplo, aquela adotada na primeira edição da tradução brasileira. Em primeiro lugar, Leitão discute nas notas 1 e 22 da tradução as duas opções quanto ao título (cf. p. 207 e 212), entretanto, ele mesmo reconhece que o sentido que Galileu tinha em mente era de “mensagem”. Em segundo lugar, na primeira nota, Leitão observa que a segunda edição da tradução brasileira apresenta uma alteração com respeito à primeira edição, substituindo “mensagem” por “mensageiro”. Mas é importante notar que essa decisão foi tomada pelos editores da segunda edição da tradução brasileira e não por Carlos Ziller Camenietzki. Como adverte Ulisses Capazzoli na nota de apresentação à segunda edição, a opção por “mensageiro” teve em vista seguir a tradição, ainda que Camenietzki “tenha justificado devidamente a opção que fez” (Galilei, 2009[1610], p. 6). De fato, Camenietzki justifica sua escolha tendo em vista o modo como Galileu referiu-se ao livro em algumas cartas. Mas certamente um dos pontos importantes quanto à tradução “mensageiro das estrelas” está relacionado a Kepler. Como adverte Mourão na apresentação da primeira edição da tradução brasileira, “é a Kepler que se deve o sentido de ‘o mensageiro das estrelas’ para a obra de Galileu que, na realidade, usou a expressão sidereus nuncius no sentido de ‘a mensagem das estrelas” (Galilei, 1987 [1610], p. 6).2 Entre a manutenção daquilo que Galileu tinha em mente e o respeito à tradição, Leitão prefere a segunda alternativa. Mas então qual a razão do título da primeira seção do estudo introdutório de Leitão? Ao referir-se a “Uma Gazeta Sideral com ‘osservazioni di infinito stupore”, o tradutor português não estaria reconhecendo justamente a pertinência do título “A mensagem das estrelas”? Feitas essas breves considerações, voltemos ao estudo introdutório.

Leitão abre sua exposição enfatizando os impactos do livro de Galileu: “é difícil encontrar na história científica um outro exemplo que se lhe compare, quer na estrondosa comoção que causou imediatamente, quer nas dramáticas consequências a que deu origem” (p. 19). Tais impactos serão destacados por Leitão nos parágrafos seguintes, quando ele trata, por exemplo, da propagação das descobertas galileanas não somente no mundo europeu, mas também para além dele, na Índia e na China. A ênfase na relevância dessas descobertas se vê fortalecida na continuidade do texto de Leitão, na medida em que discorre sobre um conjunto de aspectos relacionados à natureza das observações telescópicas de Galileu, sua adesão às teses copernicanas, as consequências da publicação do texto de 1610 para sua carreira e os efeitos das novidades por ele relatadas no meio científico e filosófico da primeira metade do século xvii. Tais aspectos estão presentes nos blocos temáticos do estudo introdutório, os quais poderiam ser resumidos da seguinte maneira: (1) breve exposição sobre a história do telescópio; (2) descrição da estrutura do Sidereus nuncius e das observações telescópicas nele contidas; (3) a redação da obra e sua relação com os Medici; (4) as observações astronômicas de Galileu depois da publicação do Sidereus nuncius; (5) os impactos da obra na comunidade científica e filosófica do período; (6) a recepção das novidades telescópicas de Galileu em Portugal.

O trajeto percorrido por Leitão ao longo desses blocos temáticos conduz seu leitor a compreender, em linhas gerais, o contexto no qual o livro de Galileu está inserido. O destaque inicial, claramente vinculado ao estupor ocasionado pelas novidades anunciadas por Galileu, dá lugar ao desenvolvimento de um panorama que coloca sob nossos olhos os aspectos técnicos, cosmológicos, filosóficos e sociais que cercam a obra em questão. Tal panorama começa com um breve histórico sobre a invenção do telescópio, a maneira como Galileu toma conhecimento do mesmo, seu trabalho na construção de telescópios cada vez mais potentes e as dificuldades práticas envolvidas nesse processo (como, por exemplo, o polimento adequado das lentes). Esse histórico prepara o leitor para o significado das observações contidas no Sidereus nuncius e, consequentemente, fortalece o papel decisivo e revolucionário desse instrumento científico. Como afirma Leitão: “o telescópio é, pois, parte integrante e essencial da ‘mensagem’ que Galileu queria dar” (p. 29). E, de fato, isso se faz notar nas primeiras páginas do texto de Galileu, nas quais encontramos o seguinte.

Grandes coisas, na verdade, são as que proponho neste pequeno tratado para que sejam examinadas e contempladas por cada um dos que estudam a natureza. Coisas grandes, digo, pela própria excelência do assunto, pela sua novidade absolutamente inaudita e ainda por causa do instrumento com o auxílio do qual elas se tornaram manifestas aos nossos sentidos (Galilei, 2010 [1610], p. 151).

Tais grandes coisas, resultado das observações astronômicas de Galileu, serão anunciadas logo após um brevíssimo relato sobre como a notícia do surgimento do telescópio chegou ao seu conhecimento e de como ele construiu esse instrumento. De acordo com Leitão, o Sidereus nuncius contém basicamente dois tratados: o primeiro sobre a Lua e o segundo sobre Júpiter, separados por algumas páginas dedicadas às estrelas fixas. Cada uma dessas partes possui caráter e consequências particulares. Como sabemos, as observações da superfície lunar determinam sérias dificuldades para a cosmologia aristotélica. Se a existência de vales, crateras e montanhas (o que se conclui a partir das imagens obtidas por intermédio do telescópio) demonstra que a superfície da Lua não é “perfeitamente polida, uniforme e exatamente esférica, como um exército de filósofos acreditou” (Galilei, 2010 [1610], p. 156), a natureza da luz secundária que banha o corpo lunar reforça a sua similaridade com a Terra para além das suas semelhanças de relevo.

As páginas que seguem ao relato sobre a superfície lunar, ainda que denominadas por Leitão como uma digressão, abordam outro aspecto importante para a cosmologia e a astronomia do período. A observação telescópica das estrelas fixas revela aos olhos do observador moderno um número muito maior desses astros e o seu papel na constituição de determinadas regiões celestes, como a constelação de Órion (até então compreendida como uma nebulosa) e a Via Láctea. Duas passagens do texto de Galileu ilustram muito bem tais aspectos.

Na verdade, com a luneta poderá ver-se uma tal multidão de outras estrelas abaixo da sexta grandeza, que escapam à vista desarmada, tão numerosa que é quase inacreditável, pois podem observar-se mais do que seis outras ordens de grandeza (…). Aquilo que foi por nós observado em terceiro lugar foi a essência ou matéria da própria Via Láctea que, com auxílio da luneta, pode ser observada com os sentidos, de modo que todas as disputas que durante gerações torturaram os filósofos são dirimidas pela certeza visível, e nós somos libertados de argumentos palavrosos. De fato, a galáxia não é outra coisa senão um aglomerado de incontáveis estrelas reunidas em grupo (Galilei, 2010 [1610], p. 175-7).

A última parte do Sidereus nuncius é dedicada ao anúncio dos quatro satélites de Júpiter, cujas implicações vão desde a sua nomeação de “estrelas mediceias” até seu papel como argumento em favor do copernicanismo. Os comentários de Leitão a respeito dessas implicações são, mais uma vez, bastante esclarecedores. Quanto ao primeiro tipo de implicação, ele dedica atenção não somente na breve análise que faz desta parte do texto de Galileu, mas também em outro momento do estudo introdutório, no qual discorre exclusivamente sobre a relação entre a publicação do Sidereus nuncius e a homenagem de Galileu à família Medici. Quanto ao segundo tipo de implicação, Leitão recupera o processo de observação de Júpiter, evidenciando a crescente importância do fenômeno para a conversão explícita e militante de Galileu ao copernicanismo (cf. p. 82). As observações posteriores à publicação do Sidereus nuncius, como foi dito acima, são brevemente tratadas por Leitão no estudo introdutório. Dentre elas, as observações das fases de Vênus e das manchas solares fortalecem a convicção de Galileu em prol do copernicanismo e, portanto, são elementos igualmente importantes para a sua defesa do novo sistema astronômico. De fato, encontramos na carta endereçada a Benedetto Castelli, datada de 21 de dezembro de 1613 (cf. EN, 5, p. 281-8), o uso de um argumento em defesa de Copérnico claramente vinculado às observações das manchas solares. A fim de demonstrar de que maneira a famosa passagem de Josué é compatível com o sistema copernicano e, por outro lado, não pode ser explicada pelo sistema ptolomaico, Galileu afirma no penúltimo parágrafo da carta:

Tendo eu, portanto, descoberto e demonstrado necessariamente que o globo do Sol gira sobre si mesmo, fazendo uma rotação completa em cerca de um mês lunar precisamente naquele rumo em que se fazem todas as outras rotações celestes; sendo, ademais, muito provável e razoável que o Sol, como instrumento e ministro máximo da Natureza, como que coração do mundo, dê não apenas, como ele claramente dá, luz, mas também movimento a todos os planetas, que giram em torno dele (Galilei, 2009, p. 25-6).

Se as observações astronômicas tiveram consequências importantes no posicionamento adotado por Galileu, o conhecimento daquelas que estão presentes no Sidereus nuncius causaram, por sua vez, profundos efeitos no ambiente científico e filosófico do período. Leitão avalia esses efeitos nos dois últimos momentos de seu estudo introdutório. O primeiro deles apresenta um exame geral desses impactos no mundo científico da época, ao passo que o segundo é particularmente dedicado à análise das novidades telescópicas de Galileu em Portugal. Mas os dois momentos não estão separados. Pelo contrário, aquilo que Leitão descreve acerca do que ocorreu em Portugal está claramente associado às repercussões das observações astronômicas de Galileu na Companhia de Jesus e entre os astrônomos do Colégio Romano. De modo geral, a exposição de Leitão sobre o impacto do Sidereus nuncius procura colocar em evidência a recepção e a avaliação dessa obra por Kepler e pelos astrônomos do Colégio Romano. No primeiro caso, trata-se da aprovação do maior astrônomo do período, a quem Galileu solicita expressamente a opinião. A resposta de Kepler à solicitação de Galileu ocorre alguns dias após receber uma cópia do Sidereus nuncius. A carta enviada por Kepler a Galileu é posteriormente corrigida e ampliada, sendo publicada sob o título Dissertatio cum nuncio sidereo. A avaliação de Kepler é marcada pelo tom elogioso e entusiasmado, não obstante ele advirta que Galileu não inventou o telescópio, como também não foi o primeiro a “falar da natureza rugosa da superfície lunar e que não fora também o primeiro a referir que havia muito mais estrelas no céu” (p. 106). Se a avaliação de Kepler depositava nas mãos de Galileu um trunfo de enorme valor, a confirmação de suas observações por parte dos astrônomos do Colégio Romano lhe conferia crédito importantíssimo no âmbito institucional e científico vinculado ao poder eclesiástico. A resposta às demandas encaminhadas pelo cardeal Roberto Bellarmino (cf. EN, 11, p. 87-8) aos membros daquela instituição não confirma apenas as observações presentes no pequeno texto de 1610, mas ainda as outras que se seguiram à publicação do Sidereus nuncius (cf. EN, 11, p. 92-3). Embora essa fosse uma vitória da maior relevância, ela não significou, no âmbito dos jesuítas, a adoção do sistema copernicano. As dificuldades oriundas das observações astronômicas requeriam uma nova explicação dos céus e dos movimentos planetários e durante algum tempo os jesuítas estiveram envolvidos com os problemas cosmológicos que então se apresentavam, resultantes das observações astronômicas com o auxílio do telescópio. Depois da morte de Clávio, em 1612, os debates continuaram de modo intenso na Companhia de Jesus. Segundo Leitão, “a verdade é que, em 1620, com a publicação da Sphaera mundi seu cosmographia, de Giuseppe Biancani (1566-1624), o sistema de Tycho Brahe passou a ser ‘oficialmente’ adotado pela Companhia de Jesus” (Leitão, 2008, p. 31).

Os reflexos das descobertas astronômicas de Galileu têm, na última parte do estudo introdutório de Leitão, um destaque especial, ainda que não exaustivo. É neste momento que o tradutor português trata particularmente das repercussões da invenção do telescópio e das observações astronômicas de Galileu entre os jesuítas da Companhia de Jesus, mais precisamente na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão. A chegada dessas notícias foi favorecida em virtude das relações entre a Companhia de Jesus e o mundo europeu culto daquele período, como, por exemplo, a estreita relação entre a “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão com a Academia de Matemática de Clávio. Se a chegada dessas notícias a Portugal foi resultado desse tipo de relação, é igualmente o papel desempenhado pela Companhia de Jesus que permite que as novidades astronômicas sejam recebidas em países mais distantes da Europa, como a Índia e a China, nos quais se encontravam, respectivamente, o padre Giovanni Antonio Rubino (cf. p. 118) e o jesuíta Manuel Dias Júnior (cf. p. 120). Mas a atenção de Leitão está dirigida para a recepção e desenvolvimento da astronomia na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão, o que o leva a tratar do debate cosmológico que então se desenvolveu naquela instituição com as notícias sobre as observações telescópicas de Galileu. Nesse contexto, dois personagens merecem destaque, Giovanni Paolo Lembo, responsável pela construção de telescópios no Colégio Romano, e o jesuíta italiano Cristoforo Borri, que teve um papel importante nos debates cosmológicos do período (cf. p. 129). O primeiro deles, Lembo, foi o grande responsável pela introdução de Galileu e suas descobertas astronômicas em Portugal, ao passo que Borri foi um notável divulgador das novidades astronômicas naquele mesmo país. Ambos têm passagem pelo Colégio de Santo Antão, no qual lecionaram alguns cursos. Lembo lecionou entre 1615 e 1617, período no qual se desenvolveu o longo e intenso debate cosmológico e teológico em torno das hipóteses copernicanas e, Borri, entre 1627 e 1628. É por meio da trajetória desses dois personagens na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão que Leitão oferece ao seu leitor um quadro geral sobre a introdução das observações celestes de Galileu em Portugal, bem como sobre o posicionamento dos jesuítas portugueses frente ao debate cosmológico das primeiras décadas do século xvii. Nesse último contexto, ele mostra que os matemáticos jesuítas, embora abandonem o modelo astronômico ptolomaico (pois ele não se mostrava mais sustentável frente às descobertas feitas com o telescópio), não adotam o sistema copernicano. Como dito anteriormente, os jesuítas optam pelo modelo proposto por Tycho Brahe, ou alguma variante desse modelo.

Como dito no início desta resenha, Leitão afirma que a tradução portuguesa está endereçada ao público culto e informado e que o especialista jamais dispensará a leitura do original latino do Sidereus nuncius. Além disso, no prefácio, ele lamenta que “quase nada do que Galileu escreveu foi alguma vez traduzido em Portugal” (p. 11). Tais declarações merecem agora algumas ponderações, uma vez que a tradução é dirigida àquele público ao qual Leitão se refere. O trabalho de Leitão merece o justo reconhecimento, não apenas pela tradução cuidadosa, mas também pelo estudo introdutório. Trata-se, sem dúvida, de uma leitura fundamental para todos os interessados na obra de Galileu. Contudo, esse mesmo público, culto e informado, não deixará de perceber algumas ausências notáveis naquilo que diz respeito às traduções disponíveis, seja de textos do próprio Galileu, seja de outros que estão diretamente relacionados com a contenda em torno do copernicanismo. Nesse sentido, lamenta-se, por exemplo, a falta de referência a algumas traduções brasileiras, dentre as quais destaco as seguintes: (1) a tradução brasileira de O ensaiador, realizada por Helda Barraco (cf. Galilei, 1978); (2) a tradução brasileira comentada do Commentariolus, de Copérnico, feita por Roberto de Andrade Martins (cf. Copérnico, 1990); (3) a tradução brasileira das cartas relacionadas com o debate teológico e cosmológico com o qual Galileu esteve envolvido, realizada por Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento (cf. Galilei, 2009); (4) a tradução brasileira comentada do Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, feita por Pablo Rubén Mariconda (cf. Galilei, 2011 [1632]); (5) as traduções brasileiras comentadas da Carta de Galileu a Francesco Ingoli e da Discussão a respeito da posição e do repouso da Terra contra o sistema de Copérnico, de Francesco Ingoli de Ravena, realizadas por Pablo Rubén Mariconda (cf. Galilei, 2005; Ingoli, 2005). Essas últimas traduções, feitas por Mariconda, merecem destaque especial tendo em vista a relação dos estudos que as acompanham com a defesa galileana do copernicanismo. A tradução do Diálogo, cuja primeira edição é de 2001, conta com um valioso estudo introdutório, intitulado “O diálogo e a condenação”, a partir do qual é possível compreender, com riqueza de detalhes e profundidade de análise, todo o período no qual Galileu esteve envolvido com a defesa do modelo copernicano. As traduções do texto de Ingoli e da resposta de Galileu são, por sua vez, acompanhadas de um estudo intitulado “O alcance cosmológico e mecânico da carta de G. Galilei a F. Ingoli” (Mariconda, 2005). Tais estudos ampliam significativamente o quadro apresentado por Leitão. Todas essas traduções são anteriores àquela de Leitão e, assim, esperaríamos que estivessem referidas no prefácio, no estudo introdutório ou nas notas à tradução.

Não há dúvida de que trabalho realizado por Leitão deve ser colocado ao lado das traduções acima referidas, bem como da tradução portuguesa de As revoluções dos orbes celestes, de Copérnico, feita por A. Dias Gomes e Gabriel Domingues (cf. Copérnico, 1996 [1543]). De fato, não é difícil notar que a tradução do Sidereus nuncius preenche uma lacuna importantíssima naquela prateleira da estante, nossa e principalmente de nossos alunos. A meu ver, são especialmente estes últimos que ganham uma contribuição de valor inquestionável com o trabalho de Leitão. É por meio da tradução da mensagem enviada por Galileu, que o tradutor português lega ao futuro especialista mais uma peça para montagem do quadro de uma época que ainda reclama nossa atenção. De fato, este novo volume na estante não mostra apenas um retrato do céu que os filósofos naturais da primeira metade do século xvii descobriram, mas nos auxilia a compreender o significado de um dos períodos mais importantes da história da ciência. Cabe ao leitor manter seus olhos atentos aos detalhes desse retrato, bem como às interpretações que dele já se fizeram.

Notas

1 Note-se que ele não utiliza o termo “nuncius”, mas refere-se ao termo italiano utilizado por Galileu em algumas ocasiões como, por exemplo, em uma carta redigida em 30 de janeiro de 1610 e endereçada a Belisario Vinta (cf. EN, 10, p. 280-1).

2 Seguramente Mourão refere-se nesse momento ao texto no qual Kepler apresenta sua avaliação sobre o livro de Galileu, intitulado Dissertatio cum nuncio sidereo.

Referências

COPÉRNICO, N. As revoluções dos orbes celestes. Tradução A. D. Gomes e G. Domingues. Introdução e notas L. Albuquerque. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996 [1543].

_____. Commentariolus. Pequeno comentário de Nicolau Copérnico sobre suas próprias hipóteses acerca dos movimentos celestes. Tradução, introdução e notas R. de A. Martins. Rio de Janeiro: Coppe/Mast, 1990.

FAVARO, A. (Ed.) Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei. Firenze: Barbera, 1933 [1891]. 20 v. (EN)

GALILEI, G. O ensaiador. Tradução H. Barraco. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).

_____. A mensagem das estrelas. Tradução, introdução e notas C. Z. Camenietzki. Revisão crítica A. da G. Kury. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins/Salamandra, 1987 [1610].

_____. Carta de Galileu Galilei a Francesco Ingoli. Tradução P. R. Mariconda. Scientiae Studia, 3, 3, p. 477516, jul./set. 2005.

_____. O mensageiro das estrelas. Tradução, introdução e notas C. Z. Camenietzki. São Paulo: Scientific American Brasil/Duetto, 2009 [1610].

_____. Ciência e fé: cartas de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano com a Bíblia. Organização e tradução C. A. R. do Nascimento. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

_____. Sidereus nuncius: o mensageiro das estrelas. Tradução, estudo introdutório e notas H. Leitão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 [1610].

GALILEI, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Tradução, introdução e notas P. R. Mariconda. 3. ed. São Paulo: Editora 34/Associação Filosófica Scientiæ Studia, 2011 [1632].

INGOLI, F. Discussão a respeito da posição e do repouso da Terra contra o sistema de Copérnico. Tradução A. M. Ribeiro e L. Mariconda. Scientiae Studia, 3, 3, p. 467-76, jul./set. 2005.

LEITÃO, H. O debate cosmológico na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão. In: Leitão, H. (Org.) Sphaera mundi: a ciência na “Aula da Esfera”. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2008. p. 27-44.

_____. Estudo introdutório. In: Galilei, G. Sidereus nuncius: o mensageiro das estrelas. Tradução, estudo e notas H. Leitão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 [1610]. p. 19-136.

MARICONDA, P. R. O alcance cosmológico e mecânico da carta de Galileu Galilei a Francesco Ingoli. Scientiae Studia, 3, 3, p. 443-65, jul./set. 2005.

_____. Introdução. O “Diálogo” e a condenação. In: Galilei, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Tradução, introdução e notas P. R. Mariconda. 3. ed. São Paulo: Editora 34/Associação Filosófica Scientiæ Studia, 2011 [1632]. p. 15-76.

Paulo Tadeu da Silva – Centro de Ciências Naturais e Humanas. Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo, Brasil. E-mail: [email protected]

[DR]

 

Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764) | Patrícia Ferreira dos Santos

Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana, é fruto da tese de mestrado de Patrícia Ferreira dos Santos, defendida em 2009 na Universidade de São Paulo e orientada por Carlos de Almeida Prado Bacellar. Este trabalho se enquadra num amplo movimento de renovação dos estudos sobre a Igreja no mundo português da época moderna e mais especificamente sobre a Igreja no Brasil colônia. A partir de um uso renovado e muitas vezes inédito – já que as fontes, apesar de por vezes de difícil acesso, existem – da documentação, a autora contribui para uma melhor compreensão das lógicas de funcionamento das instituições episcopais e das conflitantes relações com os representantes do poder civil, e com os próprios membros da igreja mineira do período em que governou o seu primeiro bispo, d. fr. Manuel da Cruz (1748-1764).

O livro está dividido em cinco capítulos, tradicionalmente organizados de modo a partir dos temas mais amplos aos mais específicos, dando assim ao leitor informações cada vez mais precisas sobre a problemática em pauta. O capítulo 1, “Jogos de forças: atores e instituições”, sobrevoa o processo de construção das relações Estado e Igreja em Portugal, desde a formação do padroado régio a partir do contexto da reconquista e do modo como a coroa pouco a pouco fortaleceu uma doutrina jurídica enquanto fundamento de sua atuação – e das ordens militares – nas conquistas ultramarinas, até o contexto das tensões geradas pelas reformas postas à obra durante a segunda metade do século XVIII, passando pelo importante e complexo jogo criado pelas reformas tridentinas. O segundo capítulo, “Imbricando forças”, estuda a formação da rede eclesiástica na região mineradora e sua paulatina implementação em paralelo, ou melhor, de modo imbricado, com a implantação da estrutura administrativa civil no que se tornaria a capitania das Minas e o bispado de Mariana. Servem aqui de exemplo – graças à abundância das fontes, como a autora explica em sua introdução – os casos de duas freguesias da região, a de Nossa Senhora da Conceição das Catas Altas e a de Nossa Senhora da Boa Viagem de Curral del-Rei. O terceiro capítulo, “O poder da palavra”, concentra-se na atuação do primeiro bispo de Mariana, d. fr. Manuel da Cruz, no que toca a implementação do aparato administrativo da nova diocese e a atividade de controle (das almas e dos corpos) do prelado, sobretudo por meio das cartas pastorais, importante instrumento de governo. O quarto e o quinto capítulos, “Contendas” e “Batalhas de jurisdição”, se debruçam finalmente sobre os vários episódios de tensão surgidos durante o episcopado de d. fr. Manuel da Cruz, e que, como dito, serve de baliza para toda a obra. Ali são descritas as contínuas trocas de acusações feitas entre o bispo, os fieis, os membros do cabido catedralício e os membros do governo civil em torno de questões de fiscalidade, jurisdição ou honra, sempre dentro da turva paisagem do padroado.

O objetivo do trabalho é contribuir para a compreensão da construção e da efetivação da autoridade episcopal no contexto específico das Minas. Movimento que na verdade resultou, como sempre aponta a autora, em amplos conflitos, não só com instituições e grupos já presentes naquela sociedade, mas inclusive com personagens surgidas apenas com a chegada do prelado, como é o caso do clero capitular. A problemática escolhida é claramente posta na página 101, ao fim da larga parte introdutória do livro, onde Patrícia Ferreira dos Santos se pergunta se a “imbricação de forças, da Igreja, do Estado, da justiça e da religião”, logrou a desejada coesão em prol da administração da capitania.

Para começar a responder a essa pergunta, o capítulo três se debruça de modo bastante original sobre a importância da palavra, ou seja, dos sermões e cartas pastorais, para a implementação do governo episcopal e assim também, de um maior controle do que fazia e pensava a população local. São destaques, a preocupação com o comportamento do clero e com a catequese dos escravos do bispado, questões que revelam a especificidade colonial daquela região, mas também algo da personalidade do prelado. Assim, é também neste capítulo que a autora apresenta a personagem principal e fio condutor do livro, o bispo d. fr. Manuel da Cruz.

É, contudo, nos capítulos seguintes, que se aborda a questão do problema dos inúmeros atritos criados ou sofridos pelo bispo: com seus párocos, sobre a questão da cobrança indevida de emolumentos; com os membros do cabido, pelo controle da nomeação a cargos e por questões de prestígio, contenda que se transformou em grave afrontamento; e, finalmente, com o governo civil, em questões de jurisdição sobre irmandades e sobre os próprios clérigos do bispado, em tempos em que o regalismo se firmava sem nenhuma ambiguidade no mundo português por meio da política pombalina em relação à Igreja.

Enfim, quais seriam as razões profundas de tanta discórdia? A autora, nas suas “considerações finais”, aponta o modo como o bem-estar dos povos e a defesa dos vassalos eram frequentemente mencionados pelos litigantes como fundamentos para as acusações portadas contra o oponente do momento, mas que esses párocos gananciosos, cabido escandaloso, bispo zeloso da sua posição e agentes civis em busca de alargamento de jurisdições, na verdade, não faziam mais do que reafirmar, nessas contendas, as vexações que eles próprios faziam sofrer à população. Ferreira dos Santos aponta assim para uma análise bastante restrita do contexto estudado, mas que ela própria mostra, em outras partes do seu texto, ser mais ampla. Ao descrever os vários litígios que d. fr. Manuel da Cruz esteve implicado, ela chama a atenção para as indeterminações das leis do Reino, causa de muitos conflitos de jurisdição (p. 227). Mais adiante, relembra o quanto a questão do padroado, devido a uma “certa indefinição de limites, papéis e campos de jurisdição” acabou pautando as relações entre a Coroa e a Igreja pela desconfiança (p. 255). Mas é ainda um pouco mais atrás que ela parece chegar mais perto de uma explicação, ao afirmar que “As batalhas de jurisdição […] criaram impasses que forçaram iniciativas de reformulação dos procedimentos e da atuação dos cargos e sua normatização, pela coroa” (p. 221). Tratava-se, assim, de um sistema político e também legal (ou seja: o sistema político e legal específico do Antigo Regime) que se pautava por uma multiplicidade de fontes normativas, e que estava habituado a tratar da administração do seu próprio corpo de modo bastante casuísta. Pode-se avançar a análise para uma tradicional interpretação do ‘dividir para melhor reinar’, mas não me parece que esta seja a melhor solução.

Poderiam ter sido úteis à autora algumas análises sociológicas da história política e religiosa da Europa da época moderna, como, por exemplo, aquelas vinculadas aos conceitos de disciplinamento social e de confessionalização, cunhados por autores alemães dos anos 1980 (ver a síntese que deles fez Federico Palomo, A Contra- reforma em Portugal. 1540-1700, 2006), mas na verdade já existentes, de certo modo, nas leituras da História das religiões de autores como Jean Delumeau (O pecado e o medo, 2003). Do mesmo modo, a “imbricação” entre governo civil e religioso, entre Estado e Igreja, numa sociedade de Antigo Regime que a autora aqui estuda, poderia ter sido melhor compreendida com uma leitura mais ampla dos trabalhos de José Pedro Paiva (alguns deles mencionados por Ferreira dos Santos), como a sua contribuição ao livro História Religiosa de Portugal, de 2000, ou o livro Os bispos de Portugal e do Império (1495-1777), de 2006. Nestes trabalhos o autor mostra o quanto os poderes civil e eclesiástico estavam interconectados em Portugal. Por um lado, este maior diálogo com a bibliografia poderia ampliar as perspectivas de análise de um governo episcopal tão bem documentado e, por outro, os conflitos estudados seriam ótimas ocasiões para se por à prova, ao nível regional das Minas – ou “micro” das paróquias de Catas Altas e de Boa Viagem –, os conceitos e as análises desenvolvidas pelos autores acima citados.

Bruno Feitler – Professor no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: [email protected]


SANTOS, Patrícia Ferreira dos. Poder e palavra. Discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764). São Paulo: Editora HUCITEC/ FAPESP, 2010. Resenha de: FEITLER, Bruno. Poder e jurisdição sob o episcopado de D. fr. Manuel da Cruz (1748-1764). Almanack, Guarulhos, n.5, p. 212-214, jan./jun., 2013.

Acessar publicação original [DR]

Governadores Gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVIII) / Francisco C. Cosentino

Há um aspecto da carreira profissional de Cosentino que merece ser destacado logo àpartida: desde 1974 dedica-se à atividade docente, há mais de vinte anos ao ensino superior. Este dado não é irrelevante, pois nos ajuda a entender porque o autor deste livro, cujas qualidades trataremos de explicitar, não ganhou até agora a visibilidade que acreditamos merecer. Sua opção pessoal, como ele mesmo denomina, parece ter determinado que produzisse relativamente pouco em termos quantitativos, o que não deixamos de lamentar, já que seu texto não esconde sua habilidade para a investigação histórica. Para além deste livro que agora mencionamos, Cosentino contribuiu com um artigo na tão reverenciada e citada coletânea de textos intitulada Modos de Governar, publicada em 2005, e, um ano depois, com um artigo na Revista Cronos. Ao menos é o que podemos saber sobre sua obra, citada nas referências bibliográficas deste livro, uma vez que os instrumentos virtuais de busca, que usualmente fazemos uso para desvendar a trajetória das pessoas, não contribuem para sabermos algo mais.

Este livro, lançado em julho de 2009, é a sua tese de doutorado apresentada na Universidade Federal Fluminense, sob a orientação da professora Dra. Maria de Fátima Gouvêa que, infelizmente, não pode ver publicada a pesquisa de um orientando que incorpora, e dialoga constantemente, com sua perspectiva historiográfica. O objeto de investigação em causa, tal como o título anuncia, é o ofício dos governadores gerais do Estado do Brasil e suas respectivas trajetórias administrativas e sociais, dando assim continuidade, e também aprofundamento, às investigações de seus textos anteriores. Cosentino dedicou-se a analisar cinco dos governadores gerais nomeados ao longo dos séculos XVI-XVII: Tomé de Sousa, Francisco Giraldes (que não chegou a ocupar o cargo), Gaspar de Sousa, Diogo de Mendonça Furtado e Roque da Costa Barreto; três dos quais durante o período filipino.

Conforme anuncia em sua introdução, o livro está dividido em três partes. Na primeira, aborda a monarquia portuguesa no período em questão, enfatizando, sobretudo, sua natureza corporativista, jurisdicional e polissinodal. Aspectos essenciais são tratados de forma sintética e com tal clareza que por vezes somos levados a pensar que não se tratam de assuntos complexos. Preocupado em evidenciar a historicidade dos conceitos, dialoga principalmente com o que há de mais recente na historiografia luso-brasileira, mostrando o atual estado da investigação acadêmica sem deixar de mencionar, e muitas vezes criticar, interpretações anteriores sobre conceitos como absolutismo, Estado moderno e soberania. O debate historiográfico ganha destaque nestas primeiras páginas, embora deixe de lado aquele que dividiu a historiografia brasileira no que se refere à pertinência do emprego do conceito e da idéia de Antigo Regime para se analisar a realidade americana. Se assim o faz, estamos certos que não é por receio de se posicionar. Acreditamos que apenas poupou o leitor de ler mais uma vez sobre uma polêmica que, dada à dimensão que ganhou, não só na academia como nos meios midiáticos, é mais do que conhecida. Orientado por quem foi, não esconde sua filiação ao que podemos chamar “Escola do Rio de Janeiro”, que tem nos trabalhos de António Manuel Hespanha uma de suas principais referências. Cosentino analisa a América portuguesa não como um reflexo da realidade européia. Busca suas especificidades tendo, no entanto, o modelo social e político europeu como eixo analítico. Mais um ponto a seu favor.

Ainda nesta primeira parte, aplica-se a descrever o contexto que convencionamos denominar de União Ibérica, analisando a integração do Reino português ao de Castela e a repercussão deste modo castelhano de se fazer política na monarquia portuguesa após a Restauração. A nosso ver, merece referência especial o belíssimo capítulo sobre a natureza e os poderes dos governadores gerais do Estado do Brasil, não só porque aqui se evidencia a tese central do livro: “a natureza superior e régia do poder” dos mesmos, (p.101) tão clara, por exemplo, nas cerimônias de posse e nos regimentos destes governadores. O que nos entusiasmou, especialmente, foi sua preocupação com a história administrativa, discorrendo sobre pontos, como a teoria dos ofícios, que raramente merece atenção da historiografia atual, como bem notou Hespanha ainda na década de 80 ao se referir às lacunas que naquela época, mas também nesta, existem no que se refere à historia institucional.

No entanto, a partir da página 102, quando tem início a segunda parte intitulada “Carreiras e trajetórias sociais de governadores gerais do Estado do Brasil (séculos XVI e XVII)”, nosso acentuado entusiasmo foi atenuado. É certo que não desconsideramos a relevância em se fazer referência às inúmeras mercês régias conquistadas por estes cinco governadores gerais para comprovar a importância social destes indivíduos e a superioridade do cargo, provido apenas a fidalgos. Porém, a enumeração detalhada das mercês conquistadas, assim como o excesso de citações documentais e bibliográficas no corpo do texto ou em notas de rodapé, torna a leitura cansativa. Talvez, devemos dizer, esta é a parte menos original deste trabalho, e não estamos certos de que embora ajude a reforçar a importância da economia das mercês na monarquia portuguesa é a principal contribuição de sua pesquisa, como diz no último parágrafo do livro. Isto porque ultimamente proliferam estudos na área de história social que recorrem ao método da prosopografia reconstituindo  trajetórias individuais, com base em  documentação similar.

Ainda nesta segunda parte, o autor acaba por realizar uma versão comentada de seu próprio texto. Cada termo historicamente datado é referido em nota de rodapé a verbetes do dicionário de Bluteau, publicado somente no século XVIII, quando sabemos que Cosentino dedica-se à análise dos dois séculos precedentes. Estranha opção de quem, no inicio do livro, revelou suas preocupações teóricas com o uso dos conceitos na acepção dada à época. As afirmativas que apresenta no corpo do texto, mesmo quando corroboradas por transcrições de trechos da historiografia, ganham novas e longas citações bibliográficas nas notas de rodapé. Se este recurso revela um comportamento acadêmico virtuoso de não tomar para si ideias já anteriormente defendidas, bastaria citar as obras, sem necessidade de abusar das recopilações de textos que normalmente pouco acrescentam ao que encontramos na leitura de Cosentino.

Mas o livro volta a ganhar grande interesse na terceira parte, dedicada à atuação do oficio dos governadores gerais, analisada, sobretudo, a partir dos regimentos que deveriam nortear suas condutas. Aqui vemos comprovada outra ideia anunciada anteriormente: a de que os documentos normativos estavam também em consonância com as circunstâncias da época e que a monarquia, não obstante pretendesse garantir uma governação continuada, expressa através do cargo de governador geral, estava atenta à realidade americana. Por esta razão é que a estes agentes régios delegou a atribuição crescente de resolver problemas próprios de cada período, os quais poderiam ameaçar o sucesso da administração portuguesa na América. No entanto, seria preciso saber em que medida estes governadores administraram em conformidade com os regimentos especialmente produzidos para que agissem como era esperado. Seria preciso alargar o horizonte de pesquisa e analisar também a prática governativa para entender quais foram, de fato, os espaços de atuação que encontraram ou mesmo se obstáculos diversos, como o conflito de jurisdições, impossibilitaram o sucesso de seus governos. Cosentino dedica a este ponto poucas páginas, mas esta deficiência é de seu conhecimento, e não esconde as limitações que seu trabalho apresenta, ao menos neste aspecto.

De qualquer forma, os interessados em conhecer a história administrativa da América portuguesa nos séculos XVI-XVII encontram neste livro uma enorme contribuição, com informações ricas, cuidadosamente trabalhadas, às vezes, como dissemos, exaustivamente. Mas não podemos ver nisso um ponto desfavorável. Fiel a sua atividade docente, Cosentino produz uma obra que parece ser dedicada aos alunos de graduação em História, que estão começando a entender não só o contexto destes dois séculos, mas também como é pensar como historiador. E neste sentido, a franqueza intelectual do autor auxilia-os imensamente, pois a cada página acompanhamos o percurso que orientou o autor na produção deste livro, que tem uma hipótese claramente anunciada, e consistentemente comprovada quanto “à posição protagônica desempenhada por esses servidores maiores da monarquia portuguesa nessa parte da América portuguesa”, o Estado do Brasil (p.334).

Enfim, uma ótima opção a outros professores que desejam apresentar aos seus alunos um texto agradável e extremamente importante, em diversos pontos. Mas uma ótima leitura também para os acadêmicos, pois as contribuições desta obra não se limitam à forma de expor e comprovar sua tese, mas a tese em si, que contraria a interpretação de que o papel dos governadores gerais praticamente se resumia a uma dimensão simbólica. Eles não eram apenas fidalgos que encontravam nas terras americanas uma possibilidade servir ao Rei para assim aumentarem a importância de suas casas. Como mostra Cosentino, acabaram também por contribuir para a administração dos domínios da América, e com protagonismo.

Roberta Giannubilo Stumpf – Centro de História de Além-Mar. Universidade Nova de Lisboa.


COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores Gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVIII). Ofícios, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo/ Belo Horizonte: ANNABLUME/ FAPEMIG, 2009, 366p. Resenha de: STUMPF, Roberta Giannubilo. História histórias. Brasília, v.1, n.1, p.227-230, 2013. Acessar publicação original. [IF]

Esplendor do Barroco luso-brasileiro – TOLETO (S-RH)

TOLEDO, Benedito Lima de. Esplendor do Barroco luso-brasileiro. Cotia: Ateliê Editorial, 2012, 368 p. Resenha de: SANTOS, Izabel Maria dos. O barroco e seu esplendor, no Brasil e em Portugal. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [28] jan./jun. 2013.

Arquiteto e urbanista por formação, Benedito Lima de Toledo é professor titular de História da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Especialista nos estudos sobre a formação da cidade de São Paulo e autor de vários livros a respeito da História da Arquitetura da referida cidade, Benedito Lima de Toledo é referência quando o assunto é a arquitetura e o urbanismo da maior metrópole do país e sua trajetória intelectual tem sido voltada para questões e assuntos ligados à terra da garoa.

Em seu último livro, porém, Lima de Toledo envereda pelo fantástico universo do Barroco e resvala em um dos períodos mais ricos da arte brasileira, em que podemos perceber três séculos das mais variadas formas de manifestações artísticas marcadas pela atmosfera emocional e mítica característica da estética barroca. O leitor é convidado a mergulhar em 365 páginas de História e rico acervo visual para entender os caminhos e descaminhos do estilo europeu em terras tupiniquins.

O livro é dividido em 17 capítulos e traz, além de um vasto material fotográfico, mapas e desenhos, um aporte teórico e uma densa bibliografia sobre o tema em debate. O autor inicia a obra abordando as diversas teorias acerca do Barroco e a ainda candente querela acerca da periodização do movimento, sempre fazendo ligações diretas com a Arquitetura, seu lugar de conforto. Ao longo de todo o livro, Lima de Toledo consegue trazer a teoria para explicar suas ideias a respeito das mais diversas características daquilo que define como Barroco luso-brasileiro, comparando monumentos erigidos no Brasil com outros, localizados em Portugal, tornando a discussão compreensível e, de maneira interessante, indiscutivelmente didática.

Enquanto no primeiro capítulo Lima de Toledo, ao discutir as teorias do Barroco lançadas por pesquisadores brasileiros e estrangeiros, vai de Pierre Lavedan, passando por Lourival Gomes Machado, até Heinrich Wölfflin, e deixa claro que o Barroco já foi visto, entre outras coisas, como arte da Contrarreforma e como arte do Absolutismo. No segundo, ele discorre sobre a questão da periodização e cronologia do Barroco no Brasil e defende que podemos estabelecer três etapas de evolução do barroco no Brasil, afirmando que a primeira etapa do barroco nos trópicos brasileiros foi uma tentativa de reproduzir os padrões europeus mesmo sem ter os meios necessários, a segunda etapa foi marcada pela Restauração de 16402 e pela descoberta do ouro no território brasileiro, que teria feito com que a Coroa portuguesa voltasse seus olhos para a sua rica colônia tropical e a terceira e última etapa foi caracterizada pelo apogeu da riqueza e do ouro e pelo período de produção das mais originais manifestações da arte barroca do Brasil.

Para Benedito Lima de Toledo, quando falamos em Barroco nos referimos não só a um estilo de arte, mas a uma autentica civilização. Ele acredita que o barroco está não só na arte e na mentalidade, mas inclusive na formação espacial da própria cidade e isso se confirma, segundo o autor, no fato de as cidades que nasceram à época do Barroco terem uma estrutura diferente das demais, ou seja, uma configuração específica. As cidades portuguesas, portanto, não fugiriam a esta regra e teriam se desenvolvido à luz das imposições barrocas e da influência mediterrânea, e este legado teria chegado às enladeiradas e mal ajambradas ruas do território brasileiro, encontrado assim terreno propício ao desenvolvimento, de sua chamada, civilização barroca. O mundo colonial estava se barroquizando, em especial, devido à semelhança topográfica encontrada pelos portugueses nas cidades do Brasil, especificamente, nas cidades mineiras.

Após a explanação teórica e a cronologia, e deixando clara a ligação das manifestações barrocas do Brasil com as de Portugal, o autor começa a traçar um detalhado panorama da arte e da arquitetura no Brasil. Ele inicia falando um pouco sobre a arquitetura Jesuíta no Brasil, passa pela Franciscana e chega, por fim, a Beneditina. Em seguida, faz um apurado estudo sobre a azulejaria e a talha brasileiras e ainda nos traz algumas palavras sobre o rococó mineiro, sobre a arquitetura de mineração e a arquitetura civil e sobre a pintura e a cerâmica produzidas no Brasil. Ou seja, o autor nos dá um panorama geral sobre o comportamento e a adaptação do estilo barroco no Brasil sempre deixando claros os seus antecedentes portugueses em todas as suas formas de manifestação. Mas afinal, para Lima de Toledo que rumos teria tomado o Barroco ao aportar nos trópicos? Segundo o autor, a especificidade barroca pode ser percebida mesmo em território europeu, antes de mais nada, pela configuração espacial e arquitetônica das cidades que surgiram na época do Barroco, sobre isso Lima da Toledo afirma que:

[…] as cidades nascidas à época do Barroco, ou que então conheceram florescimento, têm configuração específica, criando por vezes surpresas, como espaços abertos em meio a traçados irregulares de rua, frente a edifícios, só perceptíveis quando aí chegado, o que pressupõe movimentação do observador. (2012, p. 31)

Nesse sentido, podemos perceber que a distribuição espacial das ruas e dos prédios obedece às leis de configuração barrocas, onde o espectador é convidado a movimentar-se para observar com precisão as formas, linhas e curvas dramáticas características do estilo em questão. Essa peculiaridade por ser conseqüência da mentalidade barroca acaba transparecendo em todas as manifestações artísticas, sociais e culturais da Europa, inclusive nas soluções encontradas para problemas públicos como o abastecimento de água. Sobre isto, o autor afirma que o problema foi resolvido com a instalação de pequenos aquedutos e chafarizes ao redor das cidades. Esses chafarizes, porém, acabaram tornando-se símbolos de poder e de autoridade e ostentavam um rico conjunto de formas, constituindo-se como verdadeiras obras de arte.

Também como conseqüência dessa nova mentalidade a imagem passa a ter o destino certeiro de comover até mesmo os mais indiferentes à fé através da emoção, da dramaticidade e do realismo. Esse apego a imagem dramática acaba chegando aos grandes templos e igrejas da época e encontra na talha dourada e na música a alquimia perfeita para encher de emoção e dramaticidade a estética da época.

A preocupação com a expressão dramática era tanta que Lima de Toledo chega a firmar que “nos retábulos dos altares, colunas, entablamentos, frontões, tudo perdeu sua função estrutural, para se tornar elemento expressivo.” (2012, p.35).

Assim, o autor deixa claro que o Barroco é muito mais que um estilo, é uma mentalidade, uma civilização, e que isso pode ser comprovado na medida em que percebemos que a Europa barroca alimenta-se de todos os sentidos e sentimentos proporcionados pelo estilo e que isto é feito em tão alto grau que não fica restrito à arte, reverbera também nas manifestações cotidianas, no equipamento público, como os ricos chafarizes da época, no equipamento domiciliar, como o mobiliário, no vestuário e até nos hábitos daquela sociedade, ou seja, para Lima de Toledo nenhuma forma de expressão da época escapou ao conceito barroco.

Assim, o Barroco, desconhecendo limites, chegou ao Brasil pelas mãos dos portugueses e logo tratou de adaptar-se à região, adaptação esta que encontrou facilidades devido à semelhança espacial entre algumas das mais antigas cidades brasileiras e as cidades portuguesas, já que, segundo o autor, os portugueses, donos de uma forte tradição marítima, historicamente não se incomodavam em desenvolver seu caminhos e sistemas de comunicação terrestres e eram completamente indiferentes à qualquer preocupação com a ordenação de ruas e cidades, tanto na Metrópole, quanto em sua porção colonial da América. Dessa maneira, a desorganização estrutural das cidades portuguesas acabou encontrando semelhanças nas cidades brasileiras, sobre isto Lima de Toledo afirma que, as exceções a este traçado, cidades como Recife e Mariana, devem seu plano regular a agentes externos e não aos esforços portugueses.

As cidades brasileiras, portanto, obedecem às mesmas regras de ordenação espacial das portuguesas e acabam herdando características consequentes da tradição portuguesa como a maritimidade, além, é claro, de constituírem-se como grandes espaços abertos diante das Igrejas e de seus elementos externos como o adro, as escadarias e o próprio cemitério. Dessa forma, muitas das cidades brasileiras, em especial as cidades mineiras, assumem semelhanças, não só de ordenação, mas, inclusive, de topografia, com as cidades portuguesas e acabam tornando-se palco perfeito para a implantação e adaptação da mentalidade e do conceito barroco. A respeito disto o autor afirma:

Essas cidades mineiras lembram as cidades montanhosas do norte de Portugal, com suas ladeiras e terreirinhos (para usar a expressão de Alexandre Herculano). Por vezes em cidades como Bragança (Trás-dos-Montes), temse a sensação de se ter regressado ao Brasil e se estar a percorrer as ruas de Serro, Diamantina, São João Del- Rei, Ouro Preto, Mariana. A mesma topografia, a mesma implantação das casas subindo e agarrando-se às ladeiras.

Em Braga, ou em Guimarães, são as igrejas que nos trazem à mente as capelas das ordens terceiras de Minas Gerais. Em Bom Jesus do Monte, Braga ou em Nossa Senhora dos Remédios, Lamego, a evocação do santuário de Congonhas do Campo é inevitável. Em Guimarães a Igreja do Senhor dos Santos Passos evoca os melhores exemplares do barroco mineiro. (2012, p. 63) Assim, fica claro que para Lima de Toledo o Barroco ganha espaço no Brasil devido à sua rápida adaptação às condições de desenvolvimento que são semelhantes às encontradas pelo estilo da Metrópole. Dessa maneira, o Brasil constitui-se como campo fértil para as mais ricas manifestações do estilo, que mesmo com antecedentes portugueses diretos, acabou ganhando características próprias em terras tropicais.

Na arquitetura, por exemplo, a influência das ordens religiosas portuguesas se faz presente e fortemente influente na construção do conjunto arquitetônico das mais diversas cidades brasileiras. Essas ordens enviam para o Brasil dezenas de pedreiros, carpinteiros, mestres de obras e arquitetos para que estes construam em terras brasileiras Igrejas que sigam o mesmo plano das igrejas portuguesas e, assim, mantenham uma unidade na arte produzida na Metrópole e na colônia. Entre jesuítas, franciscanos e beneditinos o conjunto arquitetônico das cidades brasileiras foi tornando-se real e adaptando-se às condições locais de materiais disponíveis, de clima e de paisagem. Segundo Lima de Toledo um dos exemplos mais notáveis dessa adaptação do estilo ao território brasileiro é o convento franciscano de Santo Antônio em João Pessoa na Paraíba, sobre este o autor afirma:

O convento franciscano de João Pessoa é, por tudo isso, um documento de invulgar importância na arquitetura brasileira. É o coroamento vigoroso de um longo processo evolutivo que deixou no Nordeste conventos de proporções generosas, dotados de claustros notáveis pelo ritmo de suas arcadas e por sua adequação ao nosso clima, de adros acolhedores e frontispícios onde se permitiu aos artistas a realização de apurada obra de cantaria. (2012, p. 116) Nos conventos Beneditinos, a tradição de ser criterioso na escolha de seus arquitetos é transportada juntamente com a ordem para o Brasil. Eram enviados ao Brasil respeitados arquitetos que pudessem trazer para as construções da ordem o máximo de rigor e seriedade, estes, algumas vezes trabalhando em conjunto com aprendizes brasileiros, acabaram nos deixando como herança construções inspiradas em importantes Igrejas européias, como é o caso do Mosteiro de São Bento em Salvador, que, segundo Lima de Toledo tem influência evidente da planta da Igreja de Gesú em Roma. Sobre isto o autor afirma que:

As afinidades com São Bento são inúmeras, a começar pela planta da Igreja. A influência da planta de Gesú, de Roma, é muito clara, incluindo transepto, nave com abóbada, cúpula e capelas laterais intercomunicáveis. O frontispício aproxima-se do primeiro desenho de Vignola para Gesú em 1569. (2012, p. 133).

As ordens religiosas, portanto, acabam fazendo o trabalho de transposição do estilo e de seu conceito para o Brasil, impedindo que este perca sua essência, mas, ao mesmo tempo, permitindo adaptações à nova realidade espacial em que ele está inserido. Dessa maneira, podemos dizer que, para o autor, o conjunto arquitetônico colonial do Brasil sofreu influências do método europeu, mas acabou ganhando novas características devido ao novo ambiente em que estava inserido.

Isso pode ser constatado também na própria arquitetura civil das cidades coloniais do Brasil, que apesar de guardar peculiaridades regionais, segue um estilo e conceito aplicável em todo o território. Ou seja, podemos dizer que, mesmo guardando proporcionais peculiaridades regionais, a arquitetura civil do Brasil colonial segue um padrão nos hábitos construtivos, padrão esse que é diretamente influenciado pelos padrões portugueses.

No Brasil, a arquitetura popular em grande parte é produzida através da técnica do pau a pique que consiste basicamente em fincar esteios no chão, verdadeiras varas dispostas perpendicularmente e amarrá-las com embira3 e depois arremessar barro contra o trançado. A técnica desenvolveu-se a acabou conhecendo formas estruturalmente mais apuradas, sendo utilizada, inclusive na construção de grandes sobrados. Além das construções em pau a pique, podemos citar também as construções em taipa e em granito bem desenvolvidas no Brasil. A chegada de engenheiros europeus ao Brasil acabou contribuindo para uma renovação das técnicas arquitetônicas locais, mas não alterou substancialmente a essência da arquitetura civil no Brasil colonial, que manteve sua personalidade a despeito das influências.

Essas mudanças podem ser observadas não só na arquitetura, mas também na azulejaria, na talha, na pintura, na cerâmica e na escultura barrocas produzidas no Brasil. Lima de Toledo também discorre sobre estes temas em seu livro.

Sobre a azulejaria e a talha, tradições nacionais portuguesas, o autor afirma que encontraram solo fértil para o seu desenvolvimento em solo brasileiro e que, aqui adaptadas, sofreram um processo de renovação, cultivando novas características, algumas destas seriam transportadas para a própria Metrópole. Como afirma o autor, quando diz que:

Os claustros conventuais no Brasil, revestidos de azulejo, evocam os pátios das alcáçovas com seu arejamento aprazível. No Brasil, o azulejo ganhará o exterior dos edifícios e,bem sucedido aqui, esse processo será levado à Metrópole. Um brasileirismo, portanto. Mas não termina aí essa evolução. Em Minas Gerais, na cidades distantes do litoral e dele separadas por péssimas estradas, o uso do azulejo se tornará quase impossível. Surgirá, então, como já vimos, uma solução local: tábuas com bordas recortadas serão afixadas às paredes da capela-mor de igrejas e pintadas de forma a lembrar azulejos. Olhando esses painéis constatamos o quanto se caminhou ao sabor da invenção desde os panos de rás flamengos, dos até a solução mineira. (2012, p. 144) Com relação à talha, podemos entender que ocorre o mesmo processo evolutivo e adaptativo quando esta chega ao Brasil e encontra condições diferenciadas das de seu lugar de origem. Essas mudanças, segundo Lima de Toledo, ficam mais claras quando percebemos que “a imaginária da pedra vai no seiscentismo cedendo lugar à escultura em madeira policromada. Os objetos de culto anteriormente feitos em ouro ou prata dourada passam a ser elaborados em madeira dourada, conservando por vezes o tratamento próprio do metal” (2012, p. 145). Os retábulos brasileiros, portanto, apesar de seguirem o estilo português também cultivam características e personalidade próprias, especialmente aqueles que foram produzidos em terrenos distantes do litoral sob o influxo das atividades de mineração de ouro e diamante, já que esta concentração de riquezas, segundo o autor, atraiu mestres de obras portugueses, o que influenciou a formação de uma intensa vida urbana nessas regiões e, portanto, o florescimento de uma intensa vida cultural. Sobre isto, Lima de Toledo afirma que:

O relativo isolamento das cidades terá tido influência no surgimento de uma arte com personalidade própria, fato por vezes superestimado. Distantes do litoral e dele separados por péssimos caminhos, os núcleos de mineração não podiam ter à mão material trazido como lastro de navio como ocorria nas cidades litorâneas. (2012, p.181) Como não tinham acesso ao material vindo de Portugal, utilizavam-se dos materiais abundantes na região, inclusive do ouro, e isso teria legado às manifestações artísticas da região, à essa época, uma personalidade própria que contribuiu categoricamente para o que se denomina problematicamente de Barroco Brasileiro. Tal denominação enfrenta grandes dificuldades para se afirmar, já que sabemos que “há um descompasso entre manifestações de regiões diferentes, tornando-se problemática a caracterização formal implícita na expressão ‘Barroco Brasileiro’ para um momento específico” (2012, p. 356).

Com relação à pintura, o autor defende que “a pintura do Brasil colonial, como estamos vendo, conheceu uma diversificação em função de vários condicionantes, como região, entidade patrocinadora que por vezes formava seus próprios artistas e fatores circunstanciais” (2012, p. 345). A pintura de forro, por exemplo, que era feita por pintores locais acabou por revelar-se como personalidade da arte colonial manifesta no Brasil, mesmo tendo grandes problemas na denominação estilística.

Um exemplo disso são as pinturas ilusionísticas, que alcançaram grande expressão no Brasil, seguindo a tradição italiana e espalhando-se pelo território, ostentando grande diversidade.

Com relação aos ceramistas o autor afirma que tal arte até hoje ainda sofre certos preconceitos por ser uma manifestação artística que presta-se a artistas de qualquer nível, mas que mesmo assim, podemos dizer que são feitas de barro algumas das melhores e mais ricas peças da arte colonial brasileira, em especial os trabalhos feitos pelos freis Agostinho da Piedade e Agostinho de Jesus. Esses dois artistas traduzem em barro a mesma dramaticidade e emoção características do Barroco e são de grande sensibilidade artística, pois trazem para o barro, com muita competência, temas muitas vezes explorados com materiais considerados mais nobres.

Podemos perceber, portanto, que ao longo do livro, Benedito Lima de Toledo, percorre os mais diversos caminhos para entender e elucidar a arte barroca no Brasil, deixando evidente a matriz portuguesa dessas manifestações, mas fazendo questão de sublinhar a personalidade artística desenvolvida pelo estilo em território tropical.

O autor investiga os diferentes aspectos dos diversos campos de manifestação do Barroco, levando em consideração não só a arquitetura, mas também a pintura, a escultura, a talha e a azulejaria, dando assim um panorama geral que exprime a ideia de que o Barroco no Brasil tem uma personalidade própria.

O autor conclui o livro concordando com Victor Tapié, quando este alerta para o problema das denominações de estilos, já que acredita que uma denominação só é válida para orientar pesquisas. E, portanto, foi baseado nisto que Lima de Toledo escreveu, consciente de que os rótulos estilísticos e cronológicos não dão conta dos descompassos da arte no Brasil e que termos como arte colonial e Barroco tornamse apenas denominações que orientam e organizam a pesquisa, mas que por vezes perdem seu significado.

Dessa maneira, Lima de Toledo nos faz crer que o Barroco luso-brasileiro não obedece a enquadramentos cronológicos e cultiva, apesar de seus íntimos antecedentes portugueses, características próprias que foram desenvolvidas devido ao contato com a realidade colonial e que foram, antes de qualquer coisa, produto das novas relações estabelecidas entre Metrópole e Colônia, assim o autor afirma que “o maneirismo, o barroco e o rococó escapam aos enquadramentos regionais e cronológicos globalizadores, sendo, nesse aspecto, imagem do próprio país”.

(2012, p.356) Portanto, podemos dizer que mesmo intimamente ligado a Portugal, o Barroco encontra seus caminhos e descaminhos em solo brasileiro e traduz as contradições do Brasil dando expressão aos desejos de autoafirmação da nação.

Notas

2 Em 1640 Portugal torna-se livre do jugo espanhol e coloca fim na chamada União Ibérica, tornandose novamente um país independente, restaurando assim o trono português. Este processo teria como conseqüência a expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro e, dessa maneira, a restauração do poder português sobre as terras do Brasil.

3 Fibra extraída da casca de algumas árvores, para a confecção de barbantes e cordas.

Izabel Maria dos Santos – Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba. Mestre em História da Arte, Patrimônio e Turismo Cultural pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. E-Mail: <izzabelmds@ gmail.com>.

Acessar publicação original

[MLPDB]

Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar – SPINOZA (CE)

SPINOZA, B. de. Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. Resenha de: ROCHA, Mauricio. Notícia da edição brasileira do Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar, de B. de Spinoza. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 28, 2013.

Esta tradução do Breve Tratado é a primeira em “português- brasileiro” e a primeira em português tout court do Korte Verhandeling van God, de Mensch en deszelfs Welstand. É outro feito editorial que assinala o impulso crescente das atividades de estudos sobre Spinoza no Brasil, e que se fortaleceu após a tradução da Ética por Tomaz Tadeu, em 2007 e das versões brasileiras das traduções de Diogo Pires Aurélio feitas em Portugal (Tratado Teológico-Político, 2003 e Tratado Político, 2009). Cabe assinalar a necessidade de “versões” do português para o “brasileiro”, pois ainda que ambas sejam as “últimas flores do Lácio”, por vezes são notáveis as diferenças entre a matriz ibérica e as transformações impostas pelo esplendor tropical ao idioma de Camões e Fernando Pessoa.

A presente edição é mais um volume da Série Espinosana, que integra a coleção de Filosofia da Editora Autêntica (que já publicou a obra de Chantal Jaquet, A unidade do corpo e da mente – Afetos, ações e paixões em Espinosa, e lançará outros títulos sobre o filósofo). Esta versão do Breve Tratado é de responsabilidade de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Luis César Guimarães Oliva (tradução e notas) e Ericka Itokazu (que escreve a introdução com Emanuel Fragoso), e conta ainda com um prefácio de Marilena Chaui. E não por acaso. O primeiro é editor da revista Conatus, que desde 2007 reúne estudos sobre o filósofo, e os dois últimos constituem o Grupo de Estudos Espinosanos da USP, coordenado por M. Chaui, que dispensa apresentações.

Esta última brinda o leitor com o relato das aventuras do célebre “manuscrito da Ética em holandês”, como teria sido apresentado pelo filho do livreiro Rieuwertsz aos viajantes germânicos Stolle e Halmann em 1703, naquele episódio que dá início a uma trama que em tudo se assemelha à ficção, não fosse verdadeira. Como se sabe, a trama enreda vários  personagens  (Rieuwertsz-Stolle-Halmann;  Boehmer-Muller- Monnikhoff; Van Vloten-Bogaers; Monnikhoff-Van der Linden-Deurhoff etc.) durante um século e meio (1703-1865), sempre em torno do primeiro manuscrito – e de um segundo manuscrito, encontrado em 1851, também em holandês, que acrescentará mais enigmas ao enredo: as duas caligrafias dos manuscritos holandeses, as notas à margem, a indagação sobre um manuscrito original em latim extraviado, a autoria da tradução do original latino para o holandês.

Enigmas que o trabalho de Filippo Mignini ajudou a desfazer em parte, com sua edição crítica do KV em 1986. Conforme Mignini, o Breve Tratado expõe as ideias do jovem filósofo (por volta de 1660) sobre metafísica e ética, por solicitação de amigos e discípulos. Ele teria sido composto em latim e traduzido para o holandês (por tradutor ainda incerto) e teria recebido acréscimos posteriores à primeira redação (os diálogos, as notas, as referências internas etc.). E a edição brasileira segue de perto o trabalho incontornável de Mignini, um dos responsáveis pelo estabelecimento do texto, traduzido por Joël Ganault, que consta do volume Premiers écrits das Oeuvres editadas sob a direção de Pierre-François Moreau a partir de 1999.

Na introdução, os tradutores e editores brasileiros retomam o histórico da obra, sua descoberta, a polêmica sobre seu estatuto e lugar na evolução do pensamento de Spinoza e as conclusões, atualmente estabelecidas, sobre a autenticidade do KV e a autoria pelo filósofo polidor de lentes. A tradução acompanha a edição crítica de Mignini, mas recorreu à versão de Paul Janet (1878) e à inglesa de A. Wolf (de 1910, baseada em Sigwart, 1870). Além dessas, da outra versão em língua neolatina disponível, a espanhola de Atilano Dominguez (1990), são extraídas algumas lições sobre o estabelecimento e a divisão do texto em parágrafos (em particular no Capítulo XIX da Parte II do KV) – opções justificadas pela clareza e menor redundância.

Consta ainda da edição o Breve Compêndio (Korte Schetz) elaborado por Monnikhoff, a partir do original holandês encontrado por Boehmer tal como publicado na edição de Mignini em 1986, confrontado com a edição de Carl Gebhardt e cotejado com as versões de Atilano Domingues, Charles Appuhn, Madeleine Francês, e a mais recente de Mignini-Ganault. A edição brasileira contém uma extensa bibliografia e um glossário português-holandês da tradução.

Referências

SPINOZA, B. de. Breve tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva.

Mauricio Rocha – Professor do Departamento de Direito da PUC Rio. Coordenador do círculo de leitura Spinoza & a filosofia (Rio de Janeiro).

Acessar publicação original

 

História da ética – SIDGWICK (C)

SIDGWICK, Henry. História da ética. São Paulo: Ícone, 2010. Resenha de: SCARIOT, Juliane . Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 3, p. 170-174, set/dez, 2012.

A ética pode ser inserida entre os temas filosóficos que mais despertam o interesse de pensadores de diferentes épocas. Estabelecer o que propriamente ela é, o que é a virtude, qual é a conduta correta, o que é o bem e qual é a relação da ética com a psicologia, a política, a teologia e o direito são algumas das questões tradicionais desse âmbito. Considerando a relevância do tema, Sidgwick (2010) apresenta a História da ética, obra que fornece uma visão geral da ética desde, aproximadamente, 550 a.C. até o século XIX, época na qual Sidgwick escreveu a obra. Obviamente, no tocante aos estudos éticos de seu tempo, o autor enfatiza a ética inglesa, na qual ele próprio se inseria.

Sidgwick nasceu em 1838 e faleceu em 1900, desenvolvendo suas pesquisas na Universidade de Cambridge, instituição na qual trabalhou como professor. A principal obra de Sidgwick é The methods of ethics, de 1874, em que ele compara criticamente o método do egoísmo ético, da moralidade do senso comum e da benevolência universal. Esse livro foi revisado e editado sete vezes, ou seja, há sete diferentes edições da obra e, apesar de sua importância para os estudos éticos, nenhuma das edições foi traduzida para o português. Além das contribuições à filosofia moral, Sidgwick estudou matemática, filosofia política e jurídica, epistemologia, metafísica, parapsicologia, pedagogia, etc. Leia Mais

Poder e administração colonial | Revista Ultramares | 2012

Durante muito tempo Raymundo Faoro com seu clássico, Os Donos do Poder, reinou sozinho e absoluto (permita-me o trocadilho) nas interpretações sobre as estruturas políticas da América portuguesa. Mesmo que autores anteriores a esta obra clássica tenham esboçado flertes e interpretações superficiais sobre a experiência política (a exemplos de Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Edmundo Zenha, só para citar alguns), foi com Faoro que a historiografia ganhava uma construção sistêmica sobre o Estado Brasileiro desde as suas origens até o início do século XX[1].

No que se refere à experiência colonial portuguesa na América, Os Donos do Poder apostava em um Estado Luso forte, poderoso e centralizador. Sem espaços para negociações, as leis e ordens eram aplicadas de cima para baixo e aceitas, sem muitos questionamentos, em todo o território do Atlântico. Assim, configurava-se o Absolutismo português na Época Moderna, com instituições administrativas com jurisdições bem delimitadas pouco replicadas nas conquistas (o que facilitaria o controle) e a opção do uso de agentes régios que fiscalizariam as ações e o cumprimento da lei nas conquistas ultramarinas. Enfim, podemos falar que a intepretação de Faoro complementava perfeitamente as teorias fundadas quase uma década antes por Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil Contemporâneo, especialmente em seu ensaio inicial, O Sentido da Colonização. Se Prado Jr. estruturou o pensamento econômico colonial, Faoro tentava buscar o mesmo caminho no que tange ao político. Leia Mais

Gente de guerra e fronteira: estudos de história militar do Rio Grande do Sul | Paul César Possamai

Como afirma Vitor Izecksohn na apresentação da coletânea organizada por Paulo César Possamai, a guerra e as forças armadas tiveram um papel de destaque na região meridional do Brasil, onde a luta armada, a partir das últimas décadas do século XVII, foi o resultado da colisão de projetos expansionistas das potências coloniais ibéricas, e, a partir do século XIX, do confronto de distintos projetos de Estado-Nação. Os doze capítulos da coletânea apresentam, em sua maioria, abordagens vinculadas à Nova História Militar, salientando a inserção das forças armadas na sociedade sul-rio-grandense, as relações familiares, o recrutamento, as tensões e o cotidiano dos soldados das tropas regulares e auxiliares. O título – Gente de guerra e fronteira – explicita essa mudança de foco em relação às obras tradicionais de história militar, sendo as grandes batalhas e os heróis substituídos por protagonistas anônimos que vivenciam a guerra nessa região de fronteira.

Em A guarnição da Colônia do Sacramento, Paulo César Possamai aborda as condições de vida e estratégias de sobrevivência dos homens mobilizados para a defesa lusa deste posto comercial à margem esquerda do Rio da Prata, objeto de disputa entre as coroas ibéricas entre 1680 e 1777. Apesar do povoamento com casais, o efetivo militar desse posto avançado da fronteira dependeu do recrutamento forçado, o que implicou em um contingente de degredados, condenados, indesejados, “doentes e aleijados” [p.17]; homens considerados despreparados e pouco afeitos à vida militar. Possamai analisa as formas de sobrevivência e resistência desses soldados. Soldos baixos e invariavelmente atrasados, instalações precárias, castigos corporais, alimentação e vestuário insuficientes faziam parte do cotidiano desses homens, empregados não apenas na defesa, mas também em obras diversas. A deserção era meio para escapar às dívidas com comerciantes locais e forma de resistência, a qual encontrava, muitas vezes, apoio e estímulo nas autoridades inimigas.

Outra via de resistência às adversidades da vida militar foi abordada por Francisco das Neves Alves em Uma revolta militar e social no alvorecer do Rio Grande do Sul. O autor analisa a revolta do Regimento de Dragões ocorrida em janeiro de 1742 no Presídio Jesus Maria José, ponto inicial de povoamento português no que viria a ser o Rio Grande do Sul. Com o apoio da escassa população e reafirmando a autoridade e o amor a S.M, os rebeldes representaram ao Comandante do presídio suas queixas. Essas não diferiam daquelas que motivam as deserções na Colônia do Sacramento, mas a essas se somavam aquelas relativas à rigidez da disciplina e aos severos castigos físicos a que eram submetidos os infratores. O arrefecimento da revolta não implicou na pacificação como demonstrou o relato de dois náufragos ingleses. Apesar da tensão e talvez pela proximidade das forças espanholas nessa fronteira indefinida, a ordem e os trabalhos cotidianos foram mantidos dentro da normalidade, mas a deserção e a possível adesão às tropas inimigas eram ameaças sempre consideradas pelas autoridades. Daí, a pacificação a partir da concessão do perdão, da reposição das provisões, do pagamento de soldos e de concessões no relaxamento da disciplina, sem que houvesse a punição dos revoltosos. Deste modo, a fronteira que obrigava à manutenção de uma rígida disciplina, também impunha a condescendência da Coroa em relação às demandas e ao comportamento de seus soldados.

A negociação de lealdades e posições, atendendo a interesses muitas vezes conjunturais, foi discutida por Tau Golin em A destruição do espaço missioneiro. O autor analisa a Guerra Guaranítica (1753-1756), evidenciando que a destruição do projeto de “sociedade alternativa” [p.65], construído pela Companhia de Jesus na região platina, foi resultado da união das potências coloniais ibéricas. Segundo Golin, as determinações do Tratado de Madri (1750) e a ação da expedição demarcadora de limites motivaram cisões internas nas lideranças missioneiras e alteraram as correlações de poder entre padres, caciques e cabildos. A resistência dos povos das missões da margem oriental do Rio Uruguai que deveriam ser trasladados à margem oposta também gerou condições para que Gomes Freire de Andrada expandisse o domínio português, procrastinasse a troca de territórios e transformasse um número expressivo de indígenas em vassalos do rei de Portugal. A Guerra Guaranítica contribuiu assim para o fracasso do Tratado de Madri, levando a sua anulação, mas também acelerou o processo de desestruturação do projeto missioneiro jesuítico na América.

Uma das estratégias lusas para expandir e garantir o domínio sobre o território em disputa era a construção e manutenção de guardas militares. Esse tema é explorado por Fernando Camargo em Guardas militares ibéricas na fronteira platina. Esses postos avançados, guarnecidos por um número pequeno de soldados e oficiais, demarcavam o avanço da soberania portuguesa (ou espanhola), principalmente após a instituição do princípio do uti possidetis pelo Tratado de Madri (1750).Também tinham por objetivo o combate ao contrabando e o controle sobre o movimento de pessoas pela fronteira. A partir do Tratado de Amizade, Garantia e Comércio de 1778, o sistema de guardas foi fator de policiamento e de equilíbrio entre as possessões portuguesa e espanhola. Mas a relativa paz que se seguiu a esse tratado e o reduzido efetivo dessas guardas contribuíram para a lenta degradação desse sistema. Segundo o autor, as guardas militares envolvem uma série de questões cujo estudo demanda o trabalho interdisciplinar como caminho para a compreensão da geopolítica dessa região.

No quinto capítulo intitulado Cabedais militares: os recursos sociais dos potentados da fronteira meridional (1801-1845), Luís Augusto Farinatti estuda o papel da vida militar na formação da “elite guerreira” na fronteira meridional do Brasil. Evidenciando que nem todo estancieiro era um “potentado militar”, o autor demonstra que era estratégia das famílias sul-rio-grandenses, através de casamentos, batizados, créditos, etc., integrar em suas relações pessoas de prestígio e que exerciam diferentes atividades, inclusive o militar, cujo “cabedal” era muito valorizado. Esse “cabedal” envolvia um “conjunto de recursos, juntamente com o prestígio” [p.89] construído por um comandante militar a partir de seu desempenho nas lutas da fronteira e que expressava sua capacidade de mobilizar, armar e liderar homens e de garantir o êxito nas batalhas. Era esse o substrato de sua relativa autonomia de ação, capacitando-o a negociar com subalternos, com aliados e com as autoridades régias/imperiais. Se as relações baseadas nas reciprocidades horizontais e verticais eram a base do poder e da autonomia desses potentados militares, eram também mecanismo de fortalecimento de poderes e, assim, de reprodução e consolidação “de uma hierarquia social desigual” [p.90]. Ou seja, as guerras no sul não eram fator de igualdade e oportunidade de enriquecimento e de ascensão social para todos, mas eram, antes de tudo, estratégias que viabilizavam a conservação da desigualdade. Segundo o autor, ao longo da segunda metade do século XIX, o poder desses homens construído nas guerras sofreu um processo lento de transformação, marcado pela progressiva consolidação do Estado brasileiro, com a paulatina constituição dos poderes civis nas cidades da fronteira e com a profissionalização do Exército.

Em A Revolução Farroupilha, José Plinio Guimarães Fachel afirma o caráter republicano desse movimento que opôs parte da elite sul-rio-grandense ao Império entre os anos de 1835-1845. Através da análise da evolução militar do conflito e dos principais líderes farrapos, o autor salienta os limites impostos às ações e posições defendidas por esses homens que, como membros da oligarquia provincial, eram um grupo heterogêneo e caraterizado pela fragmentação política e por posições controversas. Dentre essas, o autor destaca a questão do escravismo na República Rio-Grandense, cuja manutenção não era ponto pacífico, mas que impôs limites à capacidade farrapa de arregimentar homens e, ao mesmo tempo, ampliou os espaços de resistência dos escravos através da incorporação nas tropas, das fugas e dos quilombos.

Em Tudo isso é indiada coronilha (…) não é como essa cuscada lá da Corte”: O serviço militar na cavalaria e a afirmação da identidade rio-grandense durante a Guerra dos Farrapos, José Iran Ribeiro analisa o papel da cavalaria como elemento de distinção identitária entre os habitantes da Província do Rio Grande de São Pedro e aqueles provenientes de outros lugares do Brasil para servir nas forças legalistas no decorrer da Revolução Farroupilha. Observa que esse fator de distinção persistiu no tempo, apesar da reorganização do Exército Nacional a partir dos anos de 1820, a qual visava criar um corpo uniforme, enquanto grupamento profissional, superando as identidades regionais. Mas, no Rio Grande do Sul, a valorização do serviço na cavalaria teve origem nos conflitos na região platina, onde a topografia criou as condições para que essa arma se tornasse a principal, pois a “guerra gaúcha” impunha o movimento rápido e constante dos contingentes militares [p.118]. Assim, o autor constata que, dentre os batalhões de infantaria nas guerras do sul, predominavam os soldados provenientes de outras províncias brasileiras, já que os soldados sul-rio-grandenses buscavam principalmente o serviço na cavalaria. Fatos que tinham reflexos na composição da Guarda Nacional, com o predomínio dos regimentos de cavalaria. Por fim, o autor conclui que a instabilidade na região e a relevância da cavalaria como principal arma foram fatores para a permanência de oficiais militares rio-grandenses na província, contribuindo para fortalecer sua influência local e sua autonomia de ação frente ao poder central.

O contexto da Guerra do Paraguai mereceu um espaço destacado nessa coletânea, a começar pelo artigo de André Fertig: A Guarda Nacional do Rio Grande do Sul nas guerras do Prata: 1850-1873. Nesse texto, o autor aborda a Guarda Nacional sul-rio-grandense, a qual exerceu um papel estratégico na segunda metade do século XIX, já que era atribuição desses corpos, em regiões de fronteira, o auxílio do Exército regular nos conflitos externos. A eclosão da Guerra do Paraguai levou à formação de vários corpos provisórios que congregavam guardas nacionais e aumentou o ritmo dos destacamentos, com a incorporação de um volume expressivo de guardas nacionais aos Corpos de Voluntários. Terminado o conflito, a partir da década de 1870, teve início a lenta desmobilização e desorganização dessa milícia, passando progressivamente a predominar, também no Rio Grande do Sul, seu caráter honorífico em relação ao militar.

Em A Guarda Nacional sul-rio-grandense e a aplicação da Lei de Terras: expressão de uma política de negociação, Cristiano Luís Chistillino explora a relação entre a expressiva participação da Guarda Nacional sul-rio-grandense nos conflitos platinos da segunda metade do século XIX e a aplicação da Lei de Terras (1850), especialmente nas regiões de fronteira aberta do Planalto e das Missões na Província de São Pedro. Segundo o autor, a singularidade política dessa província que havia ameaçado por dez anos a unidade do Império e o controle da Guarda Nacional permitiram que a elite rio-grandense consolidasse seus laços com o governo central brasileiro; laços esses alicerçados em relações clientelísticas e no controle da terra. Assim, os processos de legitimação de terras teriam sido utilizados como instrumentos de cooptação da elite militar à política da Coroa.

Já Paulo Roberto Staudt Moreira, em Voluntários e negros da Pátria: o recrutamento de escravos e libertos na Guerra do Paraguai, estuda outro segmento da sociedade rio-grandense e sua forma de inserção no conflito: os homens de cor, libertos ou escravos, engajados às forças armadas. A Guerra do Paraguai estabeleceu novos parâmetros à formação das tropas de primeira e segunda linha ao permitir a crescente inserção de homens de cor, escravos ou livres, entre suas forças e ao utilizar novas formas de engajamento, para além do recrutamento forçado: a compra de escravos pelo governo imperial, a indenização de proprietários que cediam seus escravos para a guerra e a aceitação de substitutos. Para os escravos, a “liberdade fardada” [p.182] era esconderijo para os fugitivos, via para obtenção legal da liberdade e estratégia de melhoria de vida. No entanto, aqueles que sobreviveram ao conflito, desmobilizados ou desertores, passaram a enfrentar a repressão imposta pelas autoridades provinciais.

As diferentes visões acerca desse conflito foram abordadas por Mario Maestri em A guerra contra o Paraguai. História e historiografia: da instauração à restauração historiográfica [1871-2002]. O autor parte dos trabalhos que no final do século XIX analisavam a Guerra do Paraguai através da apologia do Estado, das classes dominantes representadas pelos “heróis” nacionais, chegando àqueles que, a partir da década de 1970 introduziram uma versão revisionista a estas interpretações. O revisionismo, chegado tardiamente no Brasil, foi marcado pelas obras de vários autores, com destaque para Julio Chivavenato. No entanto, o real objetivo do texto de Maestri parece ser apresentar sua apurada crítica à obra de Francisco Doratioto, com ênfase no livro “Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai” publicado em 2002. Segundo o autor, nessa obra, Doratioto, desconsidera os avanços da historiografia revisionista, promove a “homogeneização das nações em luta” [p.226], atribuindo a responsabilidade exclusiva da guerra à personalidade de Solano Lopez e faz um “elogio apologético” [p.227] de diversas autoridades da Tríplice Aliança. Ou seja, segundo Maestri, “Maldita Guerra” pode ser considerada uma “ampla restauração da velha historiografia nacional-patriótica” [p.228], exemplo da “historiografia restauradora” brasileira.

A questão da identidade dos militares “gaúchos” é retomada por Jacqueline Ahlert em Teatralmente Heróicos: a participação dos gaúchos na Guerra dos Canudos. Estes gaúchos, integrantes das tropas federais participantes da quarta expedição contra Canudos (1897), aparecem entre as fotografias que compõem a coleção de Flávio de Barros. Em fotos posadas que visavam retratar uma determinada visão sobre a guerra, os soldados provenientes do Rio Grande do Sul distinguem-se pela indumentária: bombachas, lenços, chapéus de abas largas e botas. No entanto, outros aspectos, além da indumentária e da “pose altiva” [p.240], marcaram a participação desses homens, como a banalização da degola como forma de dizimar os prisioneiros, prática disseminada no Rio Grane do Sul no decorrer da Revolução Federalista (1893-95). Concluindo, segundo a autora, essas fotografias “ilustram a ideia da guerra como ato cultural” [p.249], retratando homens que se consideravam identificados com a vida militar e com a guerra.

Observa-se assim, que o livro Gente de guerra e fronteira é uma das primeiras coletâneas que traz alguns dos recentes estudos sobre a nova história militar do Rio Grande do Sul. Desde sua publicação em 2010, outros livros e artigos tem trazido ao público pesquisas que exploram antigos temas da historiografia rio-grandense com novas e promissoras abordagens.

Marcia Eckert Miranda – Professora no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: [email protected]


POSSAMAI, Paulo César (Org.). Gente de guerra e fronteira: estudos de história militar do Rio Grande do Sul. Pelotas: Ed. da UFPel, 2010. Resenha de: MIRANDA, Marcia Eckert. Fronteira feita por homens, cavalos e armas. Almanack, Guarulhos, n.4, p.159-163, jul./dez., 2012.

Acessar publicação original [DR]

Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido | Laura de Mello e Souza

A coleção Perfis Brasileiros, coordenada por Elio Gaspari e Lilia Moritz Schwarcz, tem oferecido aos leitores biografias, algumas delas de excelente nível, prestando importante serviço ao gênero biográfico. Agora vem a lume Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido, da historiadora Laura de Mello e Souza, o que só confirma o acerto dos editores em mobilizar pesquisadores de qualidade acadêmica para biografar personagens de relevo pertencentes ou conectados à tradição histórica brasileira.

A narrativa da vida e morte de Cláudio Manuel da Costa – poeta mineiro do setecentos, quase esquecido fora dos círculos literários mais eruditos ou dedicados aos estudos arcádicos – é mais que a biografia do homem que virou nome de rua em Belo Horizonte, Sorocaba ou Curitiba. Mais do que uma mera biografia, o livro é um mergulho na história das Minas do século XVIII. Sem abdicar da força da erudição histórica, nem desconsiderar a contribuição da cultura acadêmica mais atualizada, a autora soube produzir um texto elegante e fluído que, ao narrar a vida de um homem, estabelece o fundo histórico no qual ele viveu.

Ao reconstruir a trajetória do poeta, Laura de Mello e Souza alude à formação histórica de uma das mais remotas e importantes províncias do Império português. Para o pequeno Reino de Portugal, e seu vasto Império, que se estendia por três continentes, o século XVIII amanheceu sob o impacto da descoberta de ouro no interior da América, que viria rapidamente a se tornar o fulcro de todo o sistema português. A atenção da Coroa e de seus agentes – bem como de reinóis e colonos, modestos ou afidalgados – voltou-se para os ermos do continente, muito além da Serra da Mantiqueira. Ao abordar o homem, a autora expõe a sociabilidade urbana de Ribeirão do Carmo, depois denominada Mariana, e Vila Rica, depois Ouro Preto, com suas festas, igrejas e ordens religiosas. No texto aparecem as relações políticas entre os homens bons e a Coroa. Ou ainda as estratégias de ascensão social, típicas das sociedades do Antigo Regime, ávidas por insígnias, nas quais as relações sociais estavam assentadas em critérios de fidelidade, parentesco, amizade, honra e serviço. Também aparece o peso da escravidão, “talvez o elemento mais importante da sociedade surgida nas Minas: sociedade conflituosa, tensa, complexa e mestiça desde o nascedouro” (p.34). Ao narrar a morte do poeta já idoso – rico e prestigiado, mas inconfidente e preso – a autora contempla em discretas e precisas pinceladas a Inconfidência Mineira, amparada pela leitura dos autos e por fina interpretação histórica, em que o rigor analítico dialoga com a leitura dos poemas.

Cláudio, dilacerado

Cláudio Manuel da Costa nasceu no distrito da Vargem do Itacolomi, perto do Ribeirão do Carmo, hoje Mariana, no dia 5 de julho de 1729. Seu pai, um modesto português de nome João Gonçalves da Costa, e sua mãe, Teresa Ribeiro de Alvarenga, de antiga e tradicional família paulista, haviam sido atraídos pelo ouro, como milhares de outras pessoas. E prosperaram, pois tiveram escravos, terras, minas e honra. Mas não se tornaram verdadeiros potentados da terra, como sugere a documentação relativa ao inventário da morte de João, pai de Cláudio: “A simplicidade da vida material dos cônjuges contrastava vivamente com o fato de terem enviado cinco filhos – todos os homens que nasceram – para estudar em Coimbra” (p.40). Se João e Teresa reuniram recursos o suficiente para mandarem seus rapazes a Coimbra, é lícito imaginar que amealharam alguma riqueza, tiveram gana de ascensão social e certa sofisticação cultural, além de amigos importantes. Entre eles estava o poderoso contratador João Fernandes (pai de outro João Fernandes, talvez ainda mais poderoso e célebre por esposar Chica da Silva). João Fernandes, o velho, era amigo de João Gonçalves da Costa e padrinho de seu filho, o menino Cláudio.

Aos 15 anos o jovem Cláudio atravessa as Gerais a fim de estudar no colégio jesuíta, no Rio de Janeiro. E aos 18, cruza o Atlântico. No dia primeiro de outubro de 1749, já matriculado na Universidade de Coimbra, inicia sua carreira de homem de letras. Às margens do Mondego, entre aulas, leituras e convivências – e versos – começa a construir sua fama de erudito. Cláudio foi capaz de adquirir uma sólida bagagem cultural humanista permanentemente alimentada ao longo da vida.

Em 1754, aos 24 anos, contrariado, retorna a Minas, de onde nunca mais sairia. Jamais abandonou os versos, mas ganhou a vida (e fez fortuna) como advogado e homem de Estado, exercendo diversas funções, de almotacé a cargos na Fazenda pública e na Câmara de Vila Rica. Ao narrar a vida pública de Cláudio, a autora traça interessante perfil do modo como Estado e a administração atuavam, com seus meandros, labirintos e interesses (lícitos e escusos). Naquele mundo bruto, Cláudio jamais deixou de ser poeta e foi capaz de transpor à sua obra a contradição expressa na convivência tensa entre uma cultura urbana e letrada e outra matuta e iletrada, tão característica das Minas do século XVIII, na qual se sentia “vítima estrangeira” na própria terra.

O poeta não apenas viveu em Minas, mas a expressou, sem jamais esquecer a cultura árcade da Europa. O confronto e a convivência entre a civilização e a barbárie no Novo Mundo é um tema recorrente na Ilustração. A saudade da civilização do Reino é sempre lembrada para falar da desolação de sua terra. “Ser letrado na aldeia não o livrava contudo dos tormentos internos. Em 1768, no ‘Prólogo’ à Obras, desabafou que as boas influências recebidas em Coimbra – ‘alguns influxos, que devi às águas do Mondego’ – estavam destinados a sucumbir, uma vez retornado às Minas: ‘aqui entre a grossaria dos seus gênios, que menos pudera eu fazer que entregar-me ao ócio, e sepultar-me na ignorância!’” (p.138).

A saudade – e o sentimento de inferioridade – perante a Europa, que já acometia Cláudio Manuel da Costa, parece ser um antigo traço do homem de letras brasileiro. Um século e meio depois das saudades metropolitanas de Cláudio, Mário de Andrade, em carta a Carlos Drummond, repreendendo-o, diria: “O dr. Chagas descobriu que grassava no país uma doença que foi chamada de moléstia de Chagas. Eu descobri outra doença mais grave, de que todos estamos infeccionados: a Moléstia de Nabuco. (…) Moléstia de Nabuco é isto de vocês andarem sentindo saudade do Sena em plena Quinta da Boa Vista e é isso de você falar dum jeito e escrever covardemente colocando o pronome carolinamichaelisticamente” (referência à filóloga portuguesa Carolina Michaëlis). (Lélia Coelho Frota, Carlos e Mário, 2002, p.128). Muitos dos conflitos vividos por Cláudio, ainda antes da modernidade, são dramas existenciais constantemente reatualizados por certos estratos da elite brasileira, que vivem cindidos entre a crença profunda de pertencer ao Ocidente e o sentimento igualmente profundo de estar à margem.

Concepção e narrativa

Narrar a vida – e de certo modo a obra – de um homem e seu mundo é uma luta com o tempo e com as palavras. Luta ainda mais árdua quando o acervo documental é exíguo e já se vão mais de dois séculos entre o tempo do narrador e do narrado. Reconstruir um tempo e um mundo que já nos são estrangeiros é tarefa por excelência do historiador, cuja missão é traduzir o passado, reconstruindo demoradamente filias e fobias, conceitos e projetos, paixões e ódios, decifrando códigos cuja fluência se perdeu. O Cláudio Manuel exumado por Laura nem é o “verdadeiro”, irremediavelmente perdido, nem é um personagem inventado à maneira de um ficcionista, mas um Cláudio reconstruído a partir de um acurado tratamento documental e bibliográfico, assentado em seu contexto histórico. Para que esse Cláudio exista foi necessário imaginar – ao modo dos grandes historiadores do XIX, como Jules Michelet, que, primando pela qualidade da reflexão e pela exploração crítica das fontes, não recusaram o estilo e a potência interpretativa, capazes de criar uma perspectiva autoral, inconfundível.

Para narrar a viagem de Cláudio Manuel entre o Rio de Janeiro e as Minas, na longa volta para casa, em 1754, depois de seus anos de estudo em Coimbra, a historiadora soube encontrar soluções aos problemas que a pesquisa impunha: na falta de quaisquer documentos relativos à viagem do jovem bacharel, a autora utilizou o relato do reinol Costa Matoso, que na qualidade de ouvidor nomeado àquela capitania, registrou a viagem em minúcias, em 1749; assim, ficamos sabendo que nos estreitos e tortuosos caminhos de Minas não raro a bagagem senão as próprias mulas despencavam ribanceira abaixo; que as chuvas de verão praticamente impediam a viagem entre novembro e março. Narra a biógrafa que, à “medida que a baía do Rio de Janeiro ia ficando para trás, encoberta por véus esgarçados de neblina, ficava também o oceano que ligava a colônia à metrópole, ficavam os navios atracados no cais, as igrejas, os conventos, o palácio dos governadores, o mundo mais lusitano e mais polido que havia desempenhado um papel tão importante na sua formação, e ao qual ele se ligara profundamente, com admiração e culpa” (p.70).

A riqueza do texto, submetido ao rigor da pesquisa histórica, garante à narrativa pelo menos duas camadas de leitura: o leitor especializado encontrará acurada perspectiva analítica, ancorada em erudição bibliográfica e documental; já o leitor não especialista reconhecerá no texto sabor e interesse.

No livro não há notas de rodapé, nem longos balanços historiográficos, como é comum nos textos vazados em linguagem acadêmica. No entanto, no fim do volume, já depois dos agradecimentos, entre as páginas 201 e 215, há uma importante contribuição aos estudantes e estudiosos das Minas do século XVIII. Em “Indicações e comentários sobre bibliografia e fontes primárias” a autora, professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, oferta aos interessados um valioso roteiro de leitura, com comentários acerca da bibliografia e da documentação.

Uma das qualidades da abordagem de Laura está na construção de um retrato de Cláudio e sua época que transcende a dimensão local ou mesmo “nacional”. Inclusive porque o Brasil enquanto nação não existia, nem existiam as nações modernas, com suas sensibilidades românticas e seus projetos de unidade política, cultural, linguística e legal. Consciente de que a história de Cláudio transcorre numa província do Império português, não é de se estranhar que um dos poucos autores citados no livro seja Charles Boxer, historiador que não escreveu sob a égide do estruturalismo e dos recortes estritos (embora aprofundados) no espaço e no tempo, de onde emerge o particular. A obra de Boxer, mais tributária da hermenêutica documental do que da especulação teórica, construiu grandes painéis interpretativos, narrativos, abertos à multiplicidade temporal e espacial da história, como em O império marítimo português, 1415-1825 ou Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda, 1510-1800. Quando as historiografias brasileira e portuguesa – por melhor que fossem – ainda estavam presas aos recortes nacionais, Boxer já praticava uma historiografia de dimensão imperial, o que não significa menosprezar as instituições locais, como a Câmara, ao contrário, pois era através dela que o braço régio atingia os lugares mais remotos do império. Na “vereação de 1781”, da qual Cláudio fazia parte, todos os membros da Câmara, com exceção de um deles, também pertenciam à Santa Casa da Misericórdia, “compondo, assim, o modelo da oligarquia local detectado pelo historiador britânico Charles Boxer para o conjunto do Império português: quem não estava na Câmara, estava na Misericórdia, quando não estava nas duas” (p.90).

A biógrafa é especialista nas Minas do século XVIII, o que, por certo, ajudou a assentar o biografado no chão histórico em que viveu o poeta árcade. Quanto à apreciação propriamente histórico-literária da obra de Cláudio Manoel da Costa, a historiadora travou diálogo com Sérgio Alcides, autor de Estes penhascos. Cláudio Manuel da Costa e a paisagem das Minas (1753-1773) e com a incontornável referência de Sérgio Buarque de Holanda, em Capítulos de literatura colonial. Como Lucien Febvre, nos seus Combates pela História, a autora apostou na contextualização e na humanização do personagem, sem, contudo, desconsiderar o enquadramento do estilo retórico de Claudio Manuel e sua época.

Mapas e viagens

“Viagem dilatada e aspérrima” é a frase com a qual Cláudio descreveu o périplo empreendido pelo governador da capitania, entre agosto e dezembro de 1764, comitiva da qual era integrante. Este é também título do capítulo 15 do livro, em que Laura narra a viagem de 40 léguas, ou 2640 quilômetros, pelo interior selvagem das Minas. A viagem expõe os caminhos, as vilas, os rios, as montanhas, os índios, os negros, os sertanistas, os contrabandistas. O lugar seria perfeito (em linha com a criativa concepção do livro) para presentear os leitores com os esforços cartográficos produzidos nas Gerais do século XVIII. Afinal, mapas ocupavam a imaginação do poeta: “Cláudio guardava duas imagens de santos dentro de redomas de vidro, que ficavam em cima de algum móvel ou dentro de um oratório, ou ainda quem sabe ao pé da cama: as paredes, ele reservava para uma de suas paixões, os mapas” (p.144). Não é possível resgatar os mapas das paredes da casa de Cláudio, mas teria sido interessante imaginá-los, especulando (e integrando ao texto) mapas da época, que nelas poderiam ter estado. Há no livro, no entanto, dois pequenos e extraordinários mapas: um que apresenta a setecentista Vila Rica, em que aparece circulada a fazenda de Cláudio Manuel da Costa (e que havia sido do casal João e Teresa, seus pais); e outro que exibe uma vista panorâmica de Mariana. Mas outros poderiam ter sido evocados, inclusive algum que mostrasse o traçado do caminho que havia sido percorrido por Cláudio (e descrito por Costa Matoso) entre o Rio e as Minas. Ele próprio, conta a autora, havia preparado um mapa, hoje desaparecido, para o governo local. Mapas eram uma das suas obsessões, aliás, não apenas sua, mas de seu tempo.

Honra, lei e a vida

Cláudio Manuel da Costa – um luso-brasileiro branco, educado em Coimbra, enriquecido nas lidas de advogado de prestígio, e um dos maiores poetas da língua portuguesa de seu tempo – jamais se casou, porém viveu por mais de 30 anos com Francisca Arcângela de Souza, negra, provavelmente escrava alforriada, com quem teve ao menos cinco filhos (tampouco se sabe o número exato). Para um homem de sua posição, casar-se com uma moça branca, de sua extração social, teria sido fácil, mas naquele mundo, assumir Francisca impunha um custo elevadíssimo.

Em seu esforço para se nobilitar, Cláudio empenhou-se em ingressar na Ordem de Cristo, a mais aristocrática das ordens militares portuguesas, fundada na Idade Média e herdeira dos templários. Na época dos descobrimentos, o “mestre” da Ordem era El Rei D. Manuel, o Venturoso, o que denota a importância da honraria, cujo valor era simbólico, destinando-se a “homens que haviam se distinguido tanto em feitos de armas como em outras ações dignas de nota, nas letras, no governo, na religião” (p.110). Além disso, pessoas que trabalhassem com as mãos ou fossem de “raça infecta” (ou casadas com gente de “sangue impuro”), por ascendência moura, judaica, negra ou indígena, estavam legalmente impedidas de pertencer à Câmara, às ordens militares ou à Santa Casa da Misericórdia. “Cláudio não podia. Nem casar com a companheira negra que lhe deu cinco filhos, e com quem permaneceu até o final. Como ficariam as honrarias que perseguia, o hábito de Cristo, o cargo de procurador da Fazenda, tudo amarrado pelas exigências restritivas do status e da legislação sobre pureza de sangue?” (p.160). Cláudio – cultor de Ovídio, leitor de Góngora, em termos políticos razoavelmente simpático às reformas do despotismo ilustrado de Pombal – foi, e não poderia deixar de ser, um “homem de seu tempo e de seu país”, parafraseando Machado de Assis (Instinto da Nacionalidade. Obra completa, vol.3, 1994, p.811). Afinal, vivia numa sociedade escravocrata e num Império cioso da pureza de sangue. Apesar da sóbria simpatia que lhe dedica, a biógrafa não deixa de revelar as contradições do poeta: “Cláudio se afeiçoou a uma negra pobre e não teve a coragem do desembargador João Fernandes de Oliveira, filho de seu padrinho, que, milionário e poderoso, assumiu publicamente tanto Chica da Silva quanto a filharada que nasceu da união” (p.141).

Cai o mundo de Cláudio

A partir da década de 1780 vigia, nas Gerais, um clima de sedição e conspiração, manifesto no que Laura de Mello e Souza chamou de “conversas perigosas”. O descontentamento prevalecia entre os grandes da terra – num contexto pós-pombalino, em que o governador nomeado por Lisboa, Luís da Cunha Meneses, gozava de péssima reputação, na medida em que buscava cortar foros e privilégios da elite local. A inquietação se agravava com a rígida política tributária que onerava as finanças dos endividados homens bons. Nesse clima, abundavam reuniões frequentadas pelo cônego de Mariana Luís Vieira da Silva, por Alvarenga Peixoto, que vivia em São João del Rei, por Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa, entre muitos outros, como Domingos de Abreu Vieira, Joaquim Silvério dos Reis e, decerto, Tiradentes.

O sentimento de contradição – que opunha interesses locais e o dever de lealdade à Coroa – deve ter calado fundo no já atormentado Cláudio, de certo modo tão português, mas também sensível às coisas do mundo em que habitava. Além dos conflitos latentes, havia um pano de fundo que a autora nota com muita sensibilidade, o que nem sempre percebem os historiadores ávidos de concretude e pouco afeitos a interpretações mais ousadas: “para completar seu desespero, (Cláudio) deve ter percebido com clareza que os luso-brasileiros não eram, no fundo portugueses: nem se sentiam mais assim, nem eram vistos como tais, quando olhados do Reino” (p.180).

O desastre era iminente. A devassa havia começado no Rio de Janeiro, onde Tiradentes fora encarcerado. Em Minas, na manhã de 22 de maio de 1789 fora preso Tomás Antônio Gonzaga. Outra escolta prendera Abreu Vieira. No dia 24, Alvarenga Peixoto e o padre Toledo foram presos. Todos seguiram para o Rio, “montados em cavalos que os soldados puxavam pelas rédeas e, humilhação das humilhações, agrilhoados nos pés e nas mãos” (p.182). Cláudio contava sessenta anos, era o mais velho dos inconfidentes e estava doente, talvez n’alma também. Ele, cavaleiro da Ordem de Cristo, educado em Coimbra, membro ativo da elite imperial, estava prestes a ser preso por alta traição ao Rei. Na madrugada do dia 25 de maio sua casa fora cercada. O poeta de prestígio, proprietário de escravos, advogado de quase todos os grandes contratadores, rico o suficiente para emprestar dinheiro aos ricos, estava preso. Ele que conhecia como poucos a legislação do Reino, agora era réu e devia depor. O depoente, alquebrado e acovardado, acostumado ao outro lado do balcão, foi logo incriminando amigos e confessando. “Mal lhe perguntaram se desconfiava do motivo que o levara a tal situação e já confessava o terror que o acometera ao saber do envolvimento de Gonzaga ‘numa espécie de levantamento com ideias de República’ e o receio de que o considerassem ‘sócio consentidor ou aprovador de semelhantes ideias’” (p.184). Além de trair seu Rei, traía seus amigos, convivas da Rua Gibu de poucas semanas antes. Ele, que tanto lutara por honra, já não a tinha. Os cargos, já não valiam mais nada. O hábito de Cristo devia soar ridículo.

No dia 4 de julho de 1789 Cláudio decidiu pôr termo à vida.

Ele que, talvez, nem desejasse um efetivo rompimento com a metrópole, contentando-se com maior autonomia da Capitania, um governo mais ilustrado e menos voraz e, principalmente, mais sensível às demandas locais. Cláudio Manuel da Costa foi a primeira vítima da Inconfidência. Antes do degredo de Gonzaga e Alvarenga, ou da morte esquartejada de Tiradentes, fora ele o primeiro a sucumbir.

Laura de Mello e Souza, convincentemente, opta pela tese do suicídio, o que seria visto como algo herético pela historiografia patriótica do século XIX (e por vários outros autores), para quem Cláudio foi assassinado, o que jamais saberemos. Resta ao historiador compreender, reunindo documentos, observando contextos, cotejando informações e refletindo sobre o passado – esse país estrangeiro que, à maneira de um etnógrafo, deve ser inquirido. O historiador não é um ficcionista, mas pode ser um narrador criativo, embora refém das fontes – por isso é também um detetive. Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido é um painel das Minas do século XVIII, acessado a partir da leitura de um homem e suas circunstâncias. Empresa intelectual em que se percebe a influência do historiador italiano Carlo Ginzburg – não por acaso, um cultor do método indiciário. E, ainda mais se nota a herança de Sérgio Buarque de Holanda, que leu a poesia árcade de Cláudio como “o contraste entre o espetáculo da rudeza americana e a lembrança dos cenários europeus (…). Nos poemas que, restituído a terra natal, passa a compor, domina insistente e angustiada a nostalgia de quem – são palavras suas – se sente na própria terra peregrino” (Sergio Buarque de Holanda, Capítulos de história colonial, Brasiliense, 1991, p.227). Laura narrou a vida cindida de Cláudio, como Sérgio havia compreendido a obra cindida do poeta.

Alberto Luiz Schneider – Professor temporário de História Colonial no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH /USP-São Paulo/Brasil). E-mail: [email protected]


SOUZA, Laura de Mello e. Cláudio Manuel da Costa: o letrado dividido. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: SCHNEIDER, Alberto Luiz. A vida (e a morte) de Cláudio Manuel da Costa: poeta árcade, escravocrata e inconfidente. Almanack, Guarulhos, n.4, p. 168-173, jul./dez., 2012.

Acessar publicação original [DR]

As Famílias Principais: redes de poder no Maranhão colonial | Antonia da Silva Mota

Em março de 1743 as autoridades do Senado da Câmara de São Luís, falando em nome dos “moradores”, suplicavam ao Rei que anulasse um privilégio concedido ao irlandês Lourenço Belfort. Este imigrante, que há pouco investira 10 mil cruzados na construção de uma fábrica capaz de processar 8 mil couros por ano em São Luís, havia sido agraciado com o monopólio do comércio de couros. O pedido do privilégio para Lourenço Belfort havia sido encaminhado ao Rei pelo próprio Governador e Capitão General do Maranhão, João de Abreu de Castelo Branco, em outubro de 1741. Em sua petição, Castelo Branco argumentava que tal medida teria o poder de estabelecer um controle maior sobre a circulação do couro na região, coibindo o roubo de gado. Os camaristas, no entanto, suspeitavam que a medida tivesse outras finalidades, o que explicitaram em uma argumentação enviada ao Rei:

A proibição que pertende o dito Lourenço Belfort, para que do Maranhão se não embarquem couros para esta cidade he muito prejudicial aos direitos de Vossa Magestade, e a liberdade do comercio, e se deles tem necessidade para sua fábrica, os pode comprar a seus donos. […] O intento deste Belfort será talvez com este privilégio, ser senhor de toda a courama, que houver, e como seja só a comprallas, os haverá por pouco mais de nada.1 Leia Mais

Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços – PAIVA et al (S-RH)

PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira; AMANTINO, Márcia (Orgs.). Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços. Belo Horizonte: PPGH-UFMG; São Paulo: Annablume, 2011, 284 p. Resenha de: SILVA, Kalina Vanderlei. Um manifesto sobre os usos dos conceitos na História. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [27] jul./dez. 2012.

Dentro do atual cenário acadêmico brasileiro, e de suas rigorosas exigências em torno da produção científica – exigências muitas vezes mais quantitativas que qualitativas –, os grupos de pesquisa vêm agindo como verdadeiros palcos para o desenvolvimento do debate científico e da pesquisa sistemática, chamando a atenção tanto das instituições de investigação quanto das agências de fomento. No entanto, especificamente no campo historiográfico, nem todos conseguem de fato realizar um trabalho efetivo de diálogo entre diferentes instituições e ao mesmo tempo apresentar os resultados para o público mais amplo de pesquisadores.

Nesse sentido, o Grupo de Estudos Escravidão e Mestiçagens tem se destacado positivamente por conseguir ultrapassar as exigências básicas postas a seus congêneres ao reunir regularmente pesquisadores de várias regiões brasileiras. Seus integrantes compartilham um interesse temático que gira em torno da diversidade de situações coloniais – sempre observadas em suas especificidades, mas jamais desligadas das múltiplas conexões externas às Américas – e de uma preocupação teórico-metodológica com os conceitos empregados na construção do saber historiográfico.

Apesar de sediado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, o grupo – cujos primórdios datam de uma primeira reunião realizada no âmbito do XXIII Simpósio Nacional de História2 – não apenas congrega historiadores para discutir conceitos teóricos e metodologias de investigação, mas também vem produzindo obras de qualidade, como o recente Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços.

Privilegiando uma metodologia comparativa, embasada sempre em detalhada pesquisa documental cujos objetos são colocados em espaços coloniais específicos e bem definidos, os autores discutem as possibilidades conceituais no estudo da escravidão e das mestiçagens coloniais, inquietando-se acerca de quais conceitos e categorias podem ser empregados – e de que forma podem ser empregados – a fim de maximizar a compreensão o mais aproximada possível das realidades coloniais, de seus múltiplos personagens e de suas tão distintas identidades.

Terceiro livro da série, ‘… Paisagens e Espaços’ traz questionamentos que aprofundam e espelham outros já visíveis nas duas obras anteriores: no primeiro livro, ‘Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas’, a reflexão principal girava em torno da utilização da metodologia comparativa em estudos sobre os dois grandes conceitos do grupo3; no segundo livro, por sua vez, ‘Escravidão, mestiçagens, populações e identidades coloniais’, a preocupação basilar eram as identidades4.

Por outro lado, tanto a metodologia comparativa quanto os estudos identitários podem ser percebidos também em ‘Escravidão, Mestiçagens, Ambientes, Paisagens e Espaços’, o que dá aos três livros uma coerência interna e os apresenta como obras conectadas, realmente integrantes de uma série.

Assim é que, dando continuidade a essas discussões, os organizadores defendem na apresentação de sua terceira obra, além do cuidado com os conceitos relacionados ao mundo colonial – seu tema mais recorrente –, também a necessidade de focar outros espaços que não os urbanos, já que esses são em geral pensados de forma privilegiada pela historiografia como cenários para os jogos políticos coloniais. E para levar essa proposição a cabo, Eduardo França Paiva, Isnara Pereira Ivo e Márcia Amantino – historiadores em atividade respectivamente em Minas Gerais, na Bahia e no Rio de Janeiro – dividem sua obra em duas partes: a primeira, mais extensa, abrangendo o período colonial e a segunda se debruçando sobre o século XIX. Nesta última, o recorte espaço-temporal privilegiado se distancia do cenário favorito do grupo, a sociedade colonial americana. Apesar disso, os artigos mantêm a conexão temática e teórica ao enfocar aspectos das relações socioculturais estabelecidas por escravos, forros e livres do Império brasileiro a partir de premissas discutidas para os espaços coloniais.

Os capítulos de ‘…Paisagens e Espaços’ seguem uma perceptível divisão temática: o olhar sobre as paisagens urbanas perpassa principalmente os artigos de José Newton Menezes, de Carla Mary de Oliveira, de Maciel Carneiro Silva e de Luiz Gustavo Cota, enquanto o mundo para além das ruas escravistas é estudado por Isnara Pereira Ivo, que se debruça sobre o sertão, e Márcia Amantino, que focaliza as fazendas jesuítas. Por sua vez, a preocupação com os atores sociais dentro desses espaços preenche as páginas de Maria Lemke, Marcelo Rocha e Renato Rangel, que se preocupam com aspectos particulares das vidas de personagens mestiços, usando diferentes conceitos para abordá-los: pardos, mulatos, mamelucos. Já Eliane Garcindo e Eduardo Paiva, por seu turno, propõem reflexões conceituais mais amplas sobre as identidades mestiças, enquanto João Azevedo Fernandes traça uma revisão historiográfica, ou como ele denomina uma ‘arqueologia cultural’, dos mamelucos em autores clássicos tais como Freyre e Darcy Ribeiro.

De forma geral, percebe-se uma coerência teórica na abordagem das mestiçagens pelos múltiplos autores que seguem, basicamente, a definição de mestiçagem estabelecida por França Paiva na apresentação da obra: nela, Paiva expressa a fé de ofício do grupo, propondo a compreensão das mestiçagens enquanto mesclas bioculturais processadas nas dimensões complexas e dinâmicas dos espaços coloniais ibero-americanos5. Por outro lado, as espacialidades – um dos focos temáticos principais do livro – são abordadas com diferentes ênfases ao longo do texto.

O tratamento conceitual mais aprofundado dedicado a estas está no texto de José Newton Coelho Menezes. Em seu artigo ‘Escalas espaço-temporais e História Cultural: reflexão de um historiador sobre o espaço como categoria de análise’, ele se debruça sobre o uso historiográfico de conceitos de espacialidade, estabelecendo definições que pensam o lugar enquanto produto da ação humana, e a paisagem enquanto espaço percebido pelos sentidos. Tomando as Minas setecentistas como recorte, Menezes defende uma abordagem que busque compreender a relação entre identidades e espacialidades sempre considerando as características históricas da construção do lugar estudado. Esse seria o caso do estudo dos limites entre o urbano e o rural que o autor utiliza como exemplo: partindo de uma análise que considera as características urbanas comuns dentro do Império português, ele descreve uma complexa malha de lugares na capitania das minas, buscando pensar dentro dela o lugar dos escravos. Em cima dessa base empírica, ele passa a enfocar a historicidade dos conceitos de espaço, ou seja, como esses conceitos são não apenas construídos mas também mutáveis ao longo do tempo: conceitos tais como lugar – o lugar de determinados personagens na paisagem. Propõe assim que os lugares dos escravos na sociedade colonial, por exemplo, sejam buscados através dos sentidos que possuíam então.

Essa preocupação com a construção e a mutação dos significados dos termos, expressões e conceitos coloniais – uma inquietação que aponta para a preocupação mais profunda com a reconstrução exata das formas de pensar e socializar-se no mundo colonial – perpassa todos os textos do livro. Chamada de “polissemia dos termos colonial”, ela aponta para a busca pelas identidades como objetivo principal da maioria dos autores de ‘… Paisagens e Espaços’. Caso de Marcelo Rocha que em seu artigo ‘Vidas mescladas: mulatos livres e hierarquias na Nova Espanha (1590- 1740)’ reflete, baseado em ampla documentação hispânica, sobre as identidades mulatas no México colonial. Identidades não apenas mutáveis, mas também muito dependentes da relação que os grupos sociais que as construíram mantinham com o sistema de castas vigente no Império espanhol. Para Rocha, inclusive, essas identidades dependiam da capacidade dos atores de “instrumentalizar condições de assimilação aos distintos contextos a partir das relações grupais ou interpessoais”6. O que significa, de fato, que as identidades mestiças nada tinham de estáveis nem de fixas, mudando conforme os personagens se adaptavam a novos cenários, geográficos ou sociais.

Importante ressaltar que ‘… Paisagens e Espaços’ se apresenta como um verdadeiro panorama da diversidade dos espaços coloniais no mundo iberoamericano: seus autores, se em sua maior parte continuam a privilegiar os espaços urbanos, por outro lado privilegiam diferentes espaços urbanos: das vilas mineiras setecentistas às capitanias do norte do Estado do Brasil. E fora dos espaços urbanos a heterogeneidade também prevalece: dos sertões baianos às fazendas jesuítas, do mundo andino à Nova Espanha.

Ainda em torno dos espaços urbanos coloniais, Carla Mary S. Oliveira se apropria de uma abordagem cara ao grupo Escravidão e Mestiçagem ao analisar a produção artística barroca de Minas Gerais e das Capitanias do Norte do Estado do Brasil de forma comparada. Com um olhar treinado pela História da Arte, a autora enfoca trajetórias de vida de artesãos mestiços em um texto cujo repertório documental está fundado sobre os forros de igrejas e os óleos sobre madeiras que constituem o patrimônio visual dos templos das irmandades/ ordens religiosas em Minas Gerais, Recife, Salvador e João Pessoa. Esmiuçando os elementos pictóricos dessas fontes, ela busca compreender as representações artísticas que os artesãos, eles mesmo mestiços, construíam sobre as mestiçagens no mundo colonial.

Sem desconsiderar as rígidas imposições de regras artísticas que a Igreja tridentina trazia para o mundo colonial, a autora reflete sobre as “estratégias de apropriação e ressignificação que se cristalizaram na arte religiosa colonial dos séculos XVII e XVIII no Brasil, estratégias essas que historiadores como Gruzinski chamam de hibiridização”7. E se em seu texto a influência de Serge Gruzinski é mais direta, essa influência paira, por outro lado, em muito da produção dos pesquisadores do grupo Escravidão e Mestiçagem.

Se no capítulo de Oliveira as identidades são buscadas dentro de cenários urbanos coloniais, no trabalho de Isnara Ivo essas identidades são perseguidas nos sertões. Os personagens de Ivo são os chamados ‘homens de caminho’, comerciantes de diferentes etnicidades que percorriam, constantemente, os interiores coloniais da América portuguesa. Trabalhando sobre registros fiscais, a autora procura desenhar um retrato desses personagens, ousando analisar as descrições físicas trazidas pelos documentos. Assim, as descrições setecentistas de barbas, cabelo e cor dos olhos, tornam-se, em sua abordagem, elementos para reflexão não apenas sobre o imaginário e as identidades coloniais, mas também sobre as próprias conceituações generalistas usadas pela historiografia em torno do difícil personagem do mestiço. Tudo isso, todavia, sem fugir do recorte teórico dedicado às espacialidades.

No entanto, se as espacialidades compõem a temática central da obra, em associação com os conceitos de escravidão e de mestiçagem, isso não significa que todos os autores prefiram focá-las de forma central em seu trabalho. Assim é que alguns capítulos, como o de Maria Lemke sobre Goiás e o de Rangel Cerceau sobre Minas Gerais, cuidam menos de especificar as espacialidades, apesar de perceptivelmente focarem urbes coloniais, e mais de analisar identidades e formas de sociabilidades. Por um lado, Lemke se utiliza de uma metodologia cada vez mais atual na historiografia para melhor compreender os contextos e estruturas sociais: o estudo de trajetórias de vida; uma metodologia devedora de Ginzburg, apesar de não creditada a ele no texto. A partir dessa abordagem ela segue alguns ortodoxa’ de alguns governadores régios, ampliaram seus espaços de ação em Vila Boa, Capitania de Goiás. Assim é que através da descrição da correspondência administrativa, a autora descortina um cenário de conflitos políticos que envolviam ‘homens bons’ e representantes régios, mas também pardos ascendidos a posições oficiais.

Já o tema de Cerceau são as famílias. De fato, são “as mesclas envolvendo as uniões familiares constituídas por indivíduos desiguais social e culturamente”8. Assim como Lemke, ele também realiza estudos de caso sobre trajetórias de personagens específicos: no seu caso, as mulheres forras. Com relação à metodologia, sua abordagem dá uma atenção especial às conceituações setecentistas que poderiam influenciar as representações identitárias desses personagens. Assim é que ele analisa as definições de dicionaristas, pintores e cronistas para tentar se aproximar das imagens vigentes, nos setecentos, sobre os crioulos9.

Todas essas considerações conceituais em torno das mestiçagens e espacialidades, associadas ao contexto escravista americano ficam, de fato, bem exemplificadas no texto de Eliane Garcindo de Sá. Em seu artigo, intitulado ‘Identidade, espacialidade e territorialidade: reflexões sobre a presença africana no universo colonial’, Sá se debruça sobre crônicas andinas para questionar as espacialidades em sua relação com as representações construídas sobre as identidades coloniais. Seguindo uma das mais fortes premissas do grupo – a de buscar as interpretações próprias aos muito diversificados grupos mestiços sem concessões às leituras eurocêntricas e teleológicas impostas pela historiografia –, a autora lê as crônicas indígenas andinas em busca de suas versões próprias acerca da presença dos estrangeiros – fossem espanhóis fossem africanos – nos espaços incaicos. E nessa trilha ela identifica em algumas dessas crônicas um “libelo contra a mestiçagem”10. Além disso, a autora percebe a noção de território como um fator fundamental nas definições identitárias estabelecidas dentro dos domínios da Monarquia Católica, contexto no qual seus personagens se inseriam: para ela, os autores indígenas, eles próprios mestiços como Poma de Ayala, definiam africanos, espanhóis e descendentes de ambos como estrangeiros a partir de uma consideração geográfica, associando sempre as identidades desses personagens a seus territórios de origem. O que tornava esses autores – mestiços que nem sempre se autoidentificavam como tal, lembremos – opositores do próprio processo de mestiçagem. Esta mestiçagem, por sua vez, sempre entendida em suas páginas como a permanência de atores sociais estrangeiros, de fora daquelas espacialidades específicas.

Entre os textos que pensam as espacialidades não urbanas está, por sua vez, o capítulo de Márcia Amantino sobre as fazendas jesuíticas. Compondo um detalhado estudo de caso focado em uma fazenda específica – a fazenda de São Cristóvão no Rio de Janeiro setecentista – a autora apresenta dados de extrema relevância para a história da escravidão, bem característicos de uma tradicional História Social: dados populacionais, principalmente. Uma abordagem compartilhada também por Carlos Engelman, que discorre sobre as identidades crioulas no Vale do Paraíba também a partir de densos dados seriais.

Mas Engelman, por sua vez, vem se somar já à segunda parte de ‘…Paisagens e Espaços.’ E se esta é consideravelmente mais curta e menos coesa que a primeira, apesar disso ela traz interessantes contribuições para a discussão temática geral da obra: além de Engelman também Maciel Silva, que compara as ruas de Salvador e Recife a partir do personagem das domésticas, dialoga ativamente com as principais questões do grupo, desde a metodologia comparativa até os problemas identitários. Entre os dois estão os textos de Luiz Gustavo Cota – mais culturalista, centrado em festividades abolicionistas estudadas a partir de uma abordagem que mistura discursos, memória e a própria espacialidade urbana para compreender a difusão e as leituras da ideia de liberdade – e de João Azevedo Fernandes com sua crítica historiográfica que pinça a imagem do mameluco desde Varnhagen até Darcy Ribeiro.

Assim, em seu conjunto todos os textos de Escravidão, Mestiçagens, Ambientes, Paisagens e Espaços se inserem na discussão inicialmente proposta em sua apresentação, apesar de que as diretrizes teóricas esboçadas a princípio não chegam a engessar os resultados de seus diferentes autores. Tal mescla de coerência conceitual e flexibilidade metodológica torna a obra extremamente enriquecedora tanto para os estudiosos das temáticas canônicas do grupo quanto para a historiografia sociocultural que se debruça sobre o mundo colonial americano. Mas, além disso, esse terceiro volume do grupo Escravidão e Mestiçagens funciona também como exemplo do que uma obra historiográfica coletiva deveria ser: pela miríade de diferentes fragmentos desse mundo colonial que apresenta; pela coerência teórica que embasa tantos autores de diferentes contextos; pela seriedade e pertinência do trabalho com as fontes históricas.

Notas

2 Cf. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História – História: Guerra e Paz. Londrina: ANPUH; Editorial Mídia, 2005.

3 Cf. PAIVA, Eduardo França & IVO, Isnara Pereira (orgs.). Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da Conquista: Ed.UESB, 2008.

4 Cf. PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira & MARTINS, Ilton Cesar (orgs.). Escravidão, mestiçagens, populações e identidades coloniais. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGHUFMG; Vitória da Conquista: Ed. UESB, 2010.

5 PAIVA Eduardo França; Ivo, Isnara Pereira & AMANTINO, Márcia. “Apresentação” In: PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira & AMANTINO, Márcia (orgs.). Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços. São Paulo: Annablume, 2011, p. 07-09.

6 ROCHA, Marcelo. “Vidas mescladas: mulatos livres e hierarquias na Nova Espanha (1590-1740)”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 94.

OLIVEIRA, Carla Mary S. “Arte colonial e mestiçagens no Brasil setecentista: irmandades, artífices, anonimato e modelos europeus nas Capitanias de Minas e do Norte do Estado do Brasil”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 97.

8 CERCEAU NETO, Rangel. “Famílias mestiças e as representações identitárias: entre as maneiras de viver e as formas de pensar em Minas Gerais, no século XVIII”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 165.

9 CERCEAU NETO, “Famílias mestiças…”, p. 165.

10 SÁ, Eliane Garcindo de. “Identidade, espacialidade e territorialidade: reflexões sobre a presença africana no universo colonial”. In: PAIVA, IVO & AMANTINO, Escravidão, mestiçagens, ambientes…, p. 39.

Kalina Vanderlei Silva – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Docente da Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata, Universidade de Pernambuco. E-mail: <kalinavan@ uol.com.br>.

Acessar publicação original

[MLPDB]

Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800) | Thais Buvalovas

Hipólito José da Costa é, sem sombra de dúvidas, fundamentalmente conhecido, lembrado e estudado por ter sido o fundador e editor do primeiro veículo de imprensa brasileiro. Apesar de intitulado Correio Braziliense, seu jornal mensal foi publicado em Londres, entre 1808 e 1822. Constitui uma espécie de depositário das ideias de seu criador e gestor, ancoradas essencialmente no liberalismo inglês. Por intermédio do Correio Braziliense, o autor mostrou-se contrário ao poder absoluto, militou pela liberdade de imprensa e de comércio e defendeu o trabalho livre.

A despeito de ter angariado fama com o jornal, as origens de algumas de suas práticas e ideias políticas (como as atividades maçônicas e os ideais abolicionistas) já estavam em desenvolvimento antes de sua atuação como periodista. Elas teriam emergido, ou ao menos se robustecido, durante uma viagem de três anos aos Estados Unidos, para onde partiu quando, aos 24 anos, acabara de se formar em Leis em Coimbra. É o que defende Thais Buvalovas, em Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800), trabalho originalmente realizado como mestrado no Departamento de História da USP, em 2007, que agora a Editora Hucitec traz acertadamente a um público mais amplo, com sua veiculação em formato de livro.

A viagem de Hipólito aos Estados Unidos ocorreu como encargo da Coroa portuguesa, a mando de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Ministro da Marinha de Ultramar. Correspondia às funções de Hipólito da Costa reunir informações sobre a produção agrícola nos Estados Unidos, estudar métodos empregados na mineração, bem como observar a tecnologia usada na navegação dos rios e canais. Também foi incumbido de coletar exemplares da planta e inseto da cochonilha, para que fossem aclimatados no Brasil, mas para isso ele teria que viajar até a fronteira sul dos Estados Unidos e entrar clandestinamente em território mexicano.

A viagem estava situada no contexto da Ilustração, fonte de inspiração para as viagens científicas do século XVIII, por meio das quais estudiosos das nações europeias mais desenvolvidas buscavam investigar e catalogar os elementos da natureza em escala planetária. Também eram instigados por uma nova lógica de mercado, pautada pela busca de domínio comercial sobre importantes centros produtores de recursos naturais. Fazer parte do círculo das viagens científicas significava, de alguma maneira, integrar um processo de modernização que se espraiava pela Europa e que em Portugal vinha sendo fomentado na esteira das reformas pombalinas. Em suma, era preciso garantir o lugar neste circuito.

O périplo de Hipólito pelos Estados Unidos gerou uma gama de documentos, que constitui a base da pesquisa deste livro. Por ordem de importância, o principal documento utilizado é Diário de minha viagem para a Filadélfia, um caderno de anotações pessoais, no qual Hipólito da Costa narra sua estadia nos Estados Unidos, onde fixou-se na Filadélfia (então capital federal), passando também por outros lugares, como, por exemplo, Boston e Nova Iorque. O Diário narra a viagem de dezembro de 1798 a dezembro de 1799. Por razões ainda inexplicadas, não constam do documento as anotações relativas ao ano de 1800, período durante o qual ainda se manteve no país.

Além do Diário, a autora explora outras fontes, como as cartas de ofício, enviadas por Hipólito da Costa a autoridades de Lisboa, e um relatório sobre a viagem, intitulado Memória sobre a viagem aos Estados Unidos (1801). São documentos de naturezas distintas, ainda que todos se relacionem à viagem: o Diário é pessoal, uma escrita sem pretensões literárias ou acadêmicas; as cartas de ofício eram voltadas para superiores hierárquicos, assim como a Memória, ainda que esta guarde a peculiaridade de poder alcançar um público mais vasto.

Tal diversidade possibilitou a comparação entre os diferentes tipos de documentos, evidenciando contrastes nas informações, omissões e liberdades narrativas de um e outro lado, fato bastante enriquecedor numa investigação. Como mostra Luciana de Lima Martins, em O Rio de Janeiro dos viajantes (2001), a pluralidade da documentação contribui para que se obtenha como resultado de pesquisa uma visão menos homogênea, a que um acesso limitado a obras oficiais poderia levar. De acordo com esta autora, “anotações e imagens inacabadas” dos viajantes ajudam a trazer complexidade ao objeto estudado, mostrando diversificados ângulos, sobretudo por se tratarem de documentos “mais abertos e menos polidos”. (p. 38.) As discrepâncias identificadas por Thais Buvalovas nos documentos de Hipólito revelam os artifícios do autor para escolher o que podia ser publicado e relatado em âmbito oficial, e o que deveria ficar resguardado a um universo mais privado, pessoal.

Nesse sentido, um dos resultados centrais de Hipólito da Costa na Filadélfia foi evidenciar, por meio da análise das distintas fontes, que o autor não deu as mesmas informações sobre seus trajetos e ações nos diferentes papéis que produziu ao relatar a viagem. O confronto das fontes mostra certas inconsistências. O exemplo cabal disso se relaciona aos planos de viajar ao sul dos Estados Unidos e adentrar o território sob domínio espanhol. As cartas oficiais mostram uma pretensão nesse sentido, assim como a Memória, por meio da qual Hipólito afirma ter percorrido a região. Contudo, na leitura do Diário tal percurso parece não ter sido realizado. Isso leva a autora a desacreditar no roteiro oficial, que incluía tais viagens ao sul dos Estados Unidos e ao México. A consulta a catálogos de Botânica e a coleta de informações e espécimes na visita ao horto de um amigo naturalista da Filadélfia, teriam poupado o viajante de realizar este roteiro. Não se trata, entretanto, de um consenso. Segundo Neil Safier, em um capítulo sobre Hipólito da Costa em recente coletânea organizada por Bernard Bailyn e Patricia L. Denault (Soundings in Atlantic History, 2009, p.280), não é possível descartar totalmente a possibilidade de Hipólito da Costa ter cumprido tal trajeto, até que novas fontes sejam investigadas.

De qualquer maneira, a discussão que Thais Buvalovas faz em seu livro sobre as fontes é rica e interessante. A autora alerta que as inconsistências na Memória e nas cartas – documentos oficiais – “indicam que eles não refletiam a realidade dos fatos”. Por outro lado, o Diário revela “um esforço muito grande para encontrar alternativas e alcançar resultados em sua missão” (p.73). A despeito disso, a autora não trabalha com a perspectiva de que este seja mais “verídico” do que os primeiros. De acordo com Buvalovas, o Diário também “sonega dados” (p.24), não só em razão de ser uma escrita pessoal, não precisando, assim, esclarecer tudo, mas também porque tem intenção clara e deliberada de omitir nomes, fatos, opiniões, relacionamentos. Mesmo sendo um documento não oficial, está permeado por filtros, omissões e pela auto- censura (como as de motivações políticas).

Este exemplo é particularmente interessante para reforçar os questionamentos, presentes em trabalhos historiográficos contemporâneos, sobre a ideia de fidedignidade das fontes, independentemente do tipo de documento em questão. No caso específico da literatura de viagem, a relativização passa pela discussão do caráter extremamente ambíguo dessa documentação, que trafega entre a materialidade da experiência e a subjetividade do olhar. Para o estudioso que lida com esta fonte, tudo parece ser motivo para dúvidas, e o fato do viajante declarar ter visto, ouvido, sentido, experimentado, nem sempre é suficiente para garantir a credibilidade da narração. Com a viagem e o Diário de Hipólito da Costa não haveria de ser diferente.

Apesar de usar fontes diversificadas, o Diário pessoal de Hipólito da Costa é o documento primordial da pesquisa, que norteia o desenvolvimento dos capítulos, com exceção do primeiro – intitulado A serviço do rei – , que cumpre a função de apresentar as origens familiares e sociais do autor e o contexto histórico no qual se inseria. Neste primeiro capítulo a autora perfaz a trajetória do personagem desde o seu nascimento, na Colônia do Sacramento, em 1774, até se tornar agente da Coroa Portuguesa. Também procura analisar aspectos da história familiar de Hipólito, entremeada nos conflitos entre lusos e castelhanos. Em 1777, quando os portugueses foram expulsos de Sacramento, Hipólito da Costa tinha três anos. A família seguiu para o exílio em Buenos Aires e aí permaneceu até 1778, partindo para Rio Grande de São Pedro, onde Hipólito viveria até os 18 anos, antes de rumar a Portugal.

A respeito deste capítulo, cabe destacar a preocupação da autora em distanciar-se do modelo biográfico. Sua intenção não é saciar a curiosidade a respeito da vida do periodista (p.31-32). A pergunta norteadora no caminho que constrói para explorar as origens de Hipólito da Costa é de cunho social. A autora parece questionar a ideia, por demais geral e talvez banalizada, de que ele fazia parte da elite. Assim, tenta recompor historicamente as condições de vida de seus familiares: as dificuldades enfrentadas pelo lado materno da família, como primeiros lavradores na região da Colônia do Sacramento no início do século XVIII; as inseguranças e deslocamentos a que a família foi submetida em razão das disputas fronteiriças entre lusos e castelhanos, o que resultou na necessidade de exílio em Buenos Aires, onde aparentemente as condições também não foram nada satisfatórias. Uma situação mais favorável só se concretizaria com a mudança para a Vila de Rio Grande, região que se desenvolveu, a partir de fins do século XVIII, seja pela concessão de sesmarias, fruto do processo de demarcação de fronteiras, seja pelo comércio irregular de animais entre os dois lados da fronteira. Na parte referente à fase da vida de Hipólito da Costa como estudante em Coimbra aborda, sobretudo, o contexto de desenvolvimento das reformas ilustradas em Portugal, que acabaram dando ensejo à inserção no circuito das viagens científicas.

Os capítulos que se seguem são primordialmente marcados pela experiência da viagem aos Estados Unidos e calcados na análise das fontes desta viagem. Pode-se dizer que um dos intuitos da autora nos capítulos dois a quatro é identificar as diferentes “vozes” que ajudaram a compor as ideias de Hipólito da Costa e contribuíram para a construção de suas representações. Dessa maneira, temas como a maçonaria, a imprensa, a religião e a política perpassam estes capítulos.

No capítulo 2, intitulado a Aurora da Filadélfia, analisa a “profusão de papéis” que permeiam a construção do Diário de Hipólito da Costa. Segundo a autora, a imprensa fazia a “mediação entre a experiência e a representação da realidade” (p.61). Isto é, entende que o Diário “falava” também por intermédio dos impressos, não sendo compreendido como um tradutor fidedigno da realidade. A ênfase do capítulo é sobre a apropriação que Hipólito fez da gazeta Aurora General Advertiser no Diário. Fundada em 1790, por Benjamin Franklin Bache (neto de Benjamin Franklin), o jornal defendia os republicanos jeffersonianos, grupo no interior do qual alguns emigrados radicais que não tinham espaço na Europa vieram se instalar. Este foi o caso de Willian Duane, diretor do jornal após a morte de Fanklin Bache. A sobrevivência da gazeta se deveu a uma insistência do próprio Thomas Jefferson, que via nela uma chance para a perpetuação da causa republicana.

O contexto político é o da disputa entre os federalistas e republicanos. Ao descrever cada uma das tendências, talvez por forte envolvimento com sua fonte, a autora acaba por tecer um perfil mais simpático dos republicanos, entre os quais se envolveu Hipólito da Costa. De acordo com sua descrição, os federalistas advogavam pelo fortalecimento da União, reuniam grupos do norte, representantes da aliança entre o grande capital e o comércio. Os republicanos, por seu turno, eram adeptos do autogoverno e autonomia em relação ao poder central, concentrados mais ao sul do país e praticantes da agricultura e auto- suficiência da indústria doméstica, incluindo aí o sistema de plantation. Os jeffersonianos criticavam os federalistas pela centralização política, pela cobrança de novos impostos e formação de um exército permanente e apoiavam as liberdades e direitos individuais, o trabalho intelectual, a austeridade moral, o mérito e não os privilégios. A Aurora vinha nesta esteira, denunciando o perfil aristocrático dos federalistas com acusações de um desejo recolonizador. Há algumas questões neste rol de características que merecem ser evidenciadas. Como conciliar a crítica aos privilégios e o apoio às liberdades e direitos individuais com o sistema de plantation? Não haveria interesses concretos, defendidos pelos republicanos, ao criticarem, por exemplo, as propostas federalistas de especularem comercialmente com as propriedades rurais? Até que ponto o perfil assumido pela pesquisadora em relação aos republicanos não reproduz, com pouco distanciamento, a posição mantida por Hipólito no próprio Diário, que possivelmente não diferia da propaganda do próprio partido e os seus partidários?

O livro não trata apenas da política stricto senso. A política, na perspectiva da autora, está entremeada a questões de ordem cultural. É esta compreensão que permite trafegar entre temas como os ideais de limpeza, asseio, simplicidade, austeridade e trabalho, defendidos pelos quacres, entre os quais Hipólito circulou. Também explora temas correlatos, expressões dos republicanos jeffersonianos e da Aurora da Filadélfia, como a crítica ao luxo e ao ócio e a valorização da virtude em oposição à degeneração, ao mundanismo, ao exagero.

Todos estes elementos são recuperados no Diário e explorados pela autora que, recompondo uma trama delicada, consegue enxergar as articulações entre religião, política, partido e imprensa. Situa então o texto do autor num ideário próprio a denominações do protestantismo anglo-americano, entendendo, entretanto, que a leitura religiosa estava conectada com a política. O ideário de ordem, limpeza, trabalho e austeridade estavam presentes também no discurso republicano democrata da Aurora.

No terceiro capítulo explora a presença de uma tendência da maçonaria – a chamada Maçonaria Antiga – nas entrelinhas do Diário de Hipólito. Ele fora admitido entre os “Antigos” da Filadélfia em 1799. Esta ala da maçonaria surgiu em Londres, em meados do século XVIII, formada por irlandeses e ingleses dissidentes da Grande Loja da Inglaterra, que condenavam os “Modernos” por adulterarem antigos rituais da ordem. Do ponto de vista social eram constituídos por grupos menos favorecidos, como os artesãos urbanos, e politicamente eram mais combativos do que os “Modernos”. A corrente prosperou nos Estados Unidos – sobretudo na Pensilvânia –, que acolheu exilados políticos de diferentes partes da Europa (França, Escócia, Irlanda). Ali, associavam-se aos quacres e também aos políticos republicanos. Atuariam politicamente contra os federalistas.

A entrada na maçonaria propiciou a integração de Hipólito da Costa a uma rede de sociabilidades que reunia, além de maçons, republicanos, quacres e refugiados europeus. Sua participação nesta rede garantiu acesso a fontes privilegiadas para a realização de seus encargos. As viagens que faria in loco para estudos e pesquisas teriam sido, de acordo com a autora, poupadas pelo fato de ter conseguido pesquisar material já sistematizado por outros cientistas. No lugar de viajar para coletar espécimes, teria conseguido importá-las por meio de intermediários, para o que seus contatos sociais teriam sido muito úteis. O foco do capítulo é a rede de proteção que a maçonaria significava, que estava interligada aos emigrados, aos quacres e aos republicanos. Para cumprir a tarefa de investigar esta rede, teve que perscrutar as trajetórias dos personagens com quem Hipólito da Costa se relacionou, o que contribuiu, inclusive, para a compreensão de suas afinidades políticas.

Finalmente, o quarto e último capítulo está dedicado a analisar temas que continuariam a ter repercussão no trabalho periodístico de Hipólito da Costa, como o projeto de emancipação gradual dos escravos e a imigração. Nestes pontos, conclui que a experiência nos Estados Unidos foi uma referência importante para o autor, e é esta permanência que Thais Buvalovas busca explorar na análise que faz tanto do Diário, quanto das páginas do Correio Braziliense.

O Diário dá mostras de como o seu antiescravismo pode ter sido assimilado pela via do quacrismo, com a qual conviveu na Filadélfia. Dentre os registros sobre o tema destaca uma visita realizada à Penitenciária da Filadélfia, administrada por quacres. Ali, descreve o clima de relativa tolerância que se impunha como norma, entre brancos e negros, ainda que transparecesse um resquício de segregação. A explicação deste resquício a autora busca na visão de mundo quacre, segundo a qual, a despeito da convivência com a diferença, se mantinha um sentido de diferenciação e de valorização das próprias qualidades em relação à sociedade como um todo.

Ao analisar as ideias antiescravistas no Correio, elenca duas principais possíveis inspirações: uma, de origem quacre, segundo a qual a escravidão destruía a moral de seu senhor, transformando-o num déspota, e a outra, pautada na perspectiva iluminista, por meio da qual a escravidão era considerada um inimigo do Estado e da sociedade. A conclusão da autora é de que a primeira perspectiva pesou fortemente sobre a concepção do autor, o que confirma a sua hipótese em relação ao importante papel que a viagem jogou na constituição de sua ideias.

Por outro lado, parecem discrepar com isso as considerações do autor quando esteve em Nova Iorque. Nesta parte, curiosamente, Hipólito da Costa afirma que os negros eram mais bem tratados no sul do que no norte, onde a agricultura se encontrava decadente, as terras incultas e sem recursos para o cultivo. Afirmações como essa, de acordo com a autora, se deviam ao fato de Hipólito ter também como interlocutores os republicanos, que, além de se posicionarem contra o grande comércio do norte, eram aliados dos escravocratas do sul, que davam apoio a Jefferson. De qualquer maneira, o quacrismo parece ter sido preponderante nas defesas que faria posteriormente, de não sujeição e de abolição gradual da escravidão, nas páginas do Correio Braziliense.

Assim, se confirma a relevância do périplo pela América do Norte na formação do pensamento do autor. Para além disso, se atesta ainda um caminho circular percorrido por suas idéias, pois o Correio Braziliense foi escrito na Inglaterra, isto é, ambiente de origem do ideal de insubmissão defendido pelos quacres, que fora herdado de sua origem leveler. Um jogo interessante e não linear se constrói aqui: o exílio londrino está à frente, na escala cronológica e na biografia do autor estudado; contudo, no universo de pensamento esta viagem é retrospectiva, pois une, por caminhos espiralados e tortuosos, as duas pontas – norte-europeia e norte-americana – de um pensamento de tradição anglo-saxã. Uma curiosa aventura, boa para dar nós nas imagens muito lineares que se possa fazer da história.

Para retomar o título desta resenha, trata-se de uma viagem iniciática. Mas a quê, afinal de contas, a viagem de Hipólito da Costa aos Estados Unidos deu início? Entre a primeira fase da vida (capítulo um) e sua experiência nos Estados Unidos (capítulos três a quatro) parece haver um hiato. A leitura parece sugerir que suas origens luso-brasileiras, com o tempo, vão ficando para trás, num lugar recôndito, para o qual, aliás, o autor nunca mais voltou. Seguindo uma sugestão de Isabel Lustosa, Buvalovas afirma haver, em certas temáticas presentes no Correio Braziliense, como é o caso da escravidão, “pouca identidade [do autor] com o mundo luso-brasileiro”. (p.135).

A viagem, de acordo com esta interpretação, não parece ter sido só experiência cumulativa de conhecimentos. Indica também certo distanciamento em relação a sua origem luso-brasileira e uma incursão profunda numa diferente tradição; enfim, um exercício de resignificação das origens, que marcaria sua trajetória dali por diante. O livro propõe a importância de se entender os caminhos e descaminhos de Hipólito da Costa durante sua viagem aos Estados Unidos para melhor compreender as idéias do editor do Correio Braziliense.

Stella Maris Scatena Franco Vilardaga – Professora no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: [email protected]


BUVALOVAS, Thais. Hipólito da Costa na Filadélfia (1798-1800). Imprensa, maçonaria e cultura política na viagem de um ilustrado luso-brasileiro aos Estados Unidos. São Paulo: Hucitec, 2011. Resenha de: VILARDAGA, Stella Maris Scatena Franco. Uma viagem iniciática. A experiência norte-americana na constituição do pensamento político de Hipólito da Costa. Almanack, Guarulhos, n.3, p.143-148, jan./jun., 2012.

Acessar publicação original [DR]

Diccionario Político y Social del Mundo Iberoamericano | Javier Fernández Sebastián

Não seria exagerado dizer que o Diccionario político y social del mundo ibero-americano, dirigido por Javier Fernández Sebastián, constitui-se em uma das iniciativas de trabalho coletivo mais ousadas e meritórias das últimas décadas no campo da história do mundo ibérico e americano entre os séculos XVIII e XIX. Diante da atual profusão de incentivos à produção histórica sobre o período, alavancada pelas comemorações dos bicentenários das Independências na América e do translado da Família Real portuguesa para o Rio de Janeiro, o presente volume pode ser considerado um dos seus mais sólidos produtos. Primeiramente, por reunir pesquisadores de vários países, do Novo e do Velho Mundo, no projeto internacional El mundo atlántico como laboratorio conceptual (1750-1850) – ainda em andamento, e do qual este é um primeiro volume de resultados –, apostando na elaboração coletiva da reflexão histórica, infelizmente ainda pouco comum na nossa área de maneira geral. Mas a maior prova da importância e pertinência do projeto está, sem dúvida, na sua atual capacidade de gerar novas e pulsantes demandas historiográficas. O que significa dizer que hoje, quando se fala em história dos conceitos, é impossível não se remeter ao volume.

A problemática geral do volume – discutida por Fernandez Sebastián na preciosa introdução à obra – parte da teoria de Reinhart Koselleck que, de forma fecunda, consolidou caminhos de análise da profunda mutação no universo léxico-semântico verificada no período anunciado, a qual evidenciava grandes transformações políticas, institucionais e mentais em curso no mundo ocidental. A síntese desse processo está na sua concepção de nascimento da “modernidade”, caracterizada fundamentalmente pela percepção, entre os coevos, de uma ruptura temporal em relação ao passado e abertura de possibilidade de futuro como um tempo marcado por instabilidade e incerteza. Sua base era a crise de legitimidade das antigas monarquias, e mesmo da História como campo capaz de ensinar pelas experiências do passado, ou seja, como “mestra da vida”.

Se tal “terremoto conceitual” foi amplamente analisado para a Alemanha (e parte da Europa meridional e América do Norte) no magistral dicionário histórico de léxicos políticos e sociais do qual o próprio Koselleck foi um dos organizadores – o Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, publicado na década de 1980 em nove volumes – , sua análise global para o mundo ibero-americano era uma tarefa de fôlego ainda a ser feita. Nesse sentido, a presente obra tanto demonstra a vitalidade das assertivas koselleckianas para se pensar transformações estruturais em curso na Espanha, em Portugal e em seus antigos domínios, como enfatiza sua unidade no mundo occidental, numa perspectiva de interconexões. Nas próprias palavras de Fernández Sebastián, um dos objetivos da obra é:

ensayar uma verdadeira historia atlântica de los conceptos políticos. Una historia que tome em cuenta el utilaje conceptual de los agentes – individuales y colectivos – para lograr así una mejor comprensión de sus motivaciones y del sentido de su acción política (p.25).

Dimensão atlântica que, cada vez mais valorizada pela historiografia nos últimos tempos, tem como grande mérito romper com as fronteiras estabelecidas pelas historiografias nacionalistas desde o século XIX, em especial daninhas para análise do período em que as definições e soluções dos novos Estados fizeram parte de um processo de luta política em curso. O que para o caso brasileiro é ainda pior, haja vista que a construção do discurso da sua excepcionalidade, de um “Império entre repúblicas”, remonta ao próprio Oitocentos e continua a ser uma fonte de retroalimentação de desavisadas análises, a despeito de sua desconstrução crítica por parte de recentes trabalhos historiográficos. Um dos possíveis perigos das abordagens que privilegiam a história atlântica, o de se não respeitar os problemas específicos dos processos que se pretende ver em sintonia, é rechaçado pelo Diccionario, pois que a análise de cada contexto político permite o estabelecimento, bem como a problematização, da relação entre o geral e o particular. Ainda assim, é fato que partir da concepção de uma unidade atlântica pode encerrar outros questionamentos, como veremos adiante.

A escolha dos conceitos aqui tratados partiu de algumas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, do esforço em abandonar definições excessivamente normativas que, concebidas posteriormente, ainda impregnam de um ideal valorativo muitas das palavras aqui analisadas. Daí a ênfase na discussão dos seus significados coevos, bem como dos usos que os homens fizeram delas, ambos tensionados pela profunda reviravolta que se viveu no mundo ibérico, sobretudo, após os anos de 1807-1808. Entendendo que discurso e prática políticos são indissociáveis, poder-se-ia falar em uma verdadeira “guerra” de palavras como uma das dimensões da própria política, cuja esfera ampliava-se significativamente nas décadas aqui tratadas.

Nesse sentido, os termos selecionados justificam-se por terem sido fundamentais no vocabulário político da época, ou seja: sem cada um deles, toda a arquitetura argumentativa encontrar-se-ia comprometida. No entanto, a despeito de se considerar que os coevos se serviram de novas linguagens, sabedores de que as antigas apenas parcialmente lhes serviriam na busca de soluções à crise que se desvendava diante de seus olhos, a obra não se propõe a entender os conceitos como parte de um conjunto coerente, canônico e articulado de significados, aos moldes das proposições consagradas por John Pocock e Quentin Skinner. Ao contrário, é exatamente a fluidez e polissemia dos termos, sua apropriação por vozes e protagonistas de projetos políticos dissonantes, que são tidas como pontos de partida centrais para sua análise. Referenda-se assim, a não menos sugestiva definição koselleckiana do que são conceitos: palavras que unificam em si diversos significados, ao mesmo tempo “concentrados de experiência histórica” e dispositivos de antecipação de soluções futuras. A essa amplitude semântica soma-se um nível de generalização/abstração dos mesmos termos que, servindo a uma grande variedade de usos e interpretações, tendem a uma forte ideologização.

À luz de tais definições, dez foram os conjuntos de conceitos considerados fundamentais e prioritários na composição do volume: América/ americanos, cidadão/vecino, constituição, federação/federal/federalismo, liberal/liberalismo, nação, opinião pública, povo/povos e república/ republicanismo. A cada um deles foi dedicado um capítulo que contém uma síntese transversal e comparativa das transformações ocorridas nos termos para o mundo ibero-americano, além de nove textos de referência, um para cada espaço geográfico ou país previamente selecionado. Estes últimos, longos verbetes, foram na sua grande maioria elaborados por especialistas na história das Independências e serviram de base para elaboração das sínteses. O que, de fato, se pode chamar de um investimento de pesquisa coletivo.

Foram elaborados verbetes para: Argentina (Rio da Prata), Brasil, Chile, Colômbia (Nova Granada), Espanha, México (Nova Espanha), Peru, Portugal e Venezuela. Ou seja, a área contemplada é extensíssima, o que mais que justifica a enorme abrangência do Diccionario. A edição traz também um apêndice cronológico para cada um desses espaços, o que muito ajuda o leitor em função da profusão com que os acontecimentos políticos espelham o turbilhão de alternativas e soluções então colocadas em prática. Mas não há como negar que a ausência da América central (incluindo Cuba), banda oriental, Alto Peru (Bolívia) e Paraguai pode ser lamentada. O que, sem dúvida, tem mais relação com o estado da arte das pesquisas e volume de desenvolvimento das historiografias de cada um dos países, do que com a concepção de história que informa o presente volume. O mesmo pode-se dizer sobre o fato das análises se centrarem nos centros urbanos, tratando muito mais do universo dos crioulos do que de grupos indígenas e de africanos e seus descendentes, cuja inserção no processo político foi inegável ainda que seus discursos e práticas tenham sido menos analisados, e que suas trajetórias sejam mais difíceis de reconstruir historicamente.

A despeito do Diccionario seguir a periodização da “modernidade” proposta por Koselleck (1750-1850), há aqui o cuidado em se marcar que ela se trata apenas de uma referência geral. É notável como para o mundo ibero-americano, a maior ruptura política ocorrerá a partir dos anos de 1807 e 1808, como desdobramento dos acontecimentos que impedirão o monarca tradicional de governar na Espanha, e farão com que a Família Real portuguesa tome a direção de seus domínios americanos. O que pode ser claramente visto nas análises de cidadão, constituição, federalismo, nação, opinião pública e povo. Também fica evidente que muitos dos conceitos tendem a uma maior radicalização na década de 1810, e serão dotados de maior moderação a partir das seguintes que, não à toa, coincidem com a maioria das tentativas de consolidação dos novos Estados independentes na América.

Análises bastante profícuas dos conceitos levam em conta os termos/ideias correlatos a ela. É o que se pode ver claramente no texto sobre federação/federal/federalismo, cuja síntese transversal é de autoria de Carole Leal Curiel. A princípio, esses termos aparecem nos discursos coevos somente após 1810, mas a opção feita também pelo rastreamento da dupla conceitual de confederação/federação, bem como da problematização em relação à questão da (des)centralização que existe desde fins do século XVIII nos Impérios ibéricos, mostra-se muito profícua para no seu desvendamento. Nesse sentido, ainda que tais conceitos tenham sido ainda mais prioritários para as repúblicas ibero-americanas, os problemas que eles evocam tiveram importância central também nos debates que permearam as trajetórias das monarquias brasileira, portuguesa e espanhola.

De todos os termos, marca-se uma possível especificidade para América/americanos, cuja análise abre o volume. Como bem questiona João Feres Júnior em seu artigo transversal, em termos teóricos, ambos poderiam ser considerados “contraconceitos”: primeiro, pelo fato do seu uso ter sido valorizado em oposição às antigas metrópoles, ganhando muita força nos anos de consecução das Independências; além disso, haja vista sua decadência em termos políticos, sobretudo a partir da década de 1830, com a consolidação nacional dos novos Estados (quando todos os outros termos demonstram terem se transformado em essenciais para o debate político). No entanto, é pena que a análise não tenha valorizado a dimensão identitária contida no termo “americano”, a qual dialoga com vários dos vocábulos que passaram a definir os vínculos de pertencimento dos indivíduos e sua relação com os projetos políticos em disputa em cada um dos espaços geográficos aqui analisados. Assim já o demonstraram, de maneira profícua, os trabalhos de José Carlos Chiaramonte para o caso das tensões entre os termos “rioplatense”, “hispanoamericano” e outros termos provinciais (questões devidamente incorporadas por Nora Souto no verbete do Diccionario dedicado à Argentina), bem como os de István Jancsó que tratam de sua importância para se entender as rupturas presentes no processo de construção nacional no Brasil. Nessa chave, trata-se de lugar comum a afirmação de que a América portuguesa teria mantido sua unidade após a Independência, ao contrário da espanhola (Feres, p.64); as clivagens identitárias permitiriam se entender como “pernambucanos”, “baianos”, “maranhenses”, etc., que poderiam ser mais ou menos associados com “americanos”, além de revelarem as disputas políticas endêmicas à unidade nacional do Brasil. Raciocínio, em linhas gerais, válido também para toda a América espanhola.

O universo das tensões entre ibero-americanos e peninsulares logo fica explícito nas pujantes análises dos vocábulos constituição e nação. Na primeira, o texto transversal de autoria de José Portillo Valdés, evidencia com acuidade como a utilização do conceito é chave para entendê-las. Assim o faz analisando como, desde meados do século XVIII, predominava na Espanha, e igualmente em Portugal (conforme os verbetes do próprio Portillo e de Nuno Gonçalo Monteiro, respectivamente), uma percepção da necessidade de reformas para se corrigir o desajuste político e econômico de ambos os Estados no âmbito europeu. A economia política seria vista como um desses instrumentos, e o apego à constituição um “antídoto” para se evitar os posteriores acontecimentos revolucionários. Desde então, a percepção da desigualdade entre espanhóis e portugueses de distintos hemisférios é fortemente sentida; mas revelar-se-á especialmente contundente diante da necessidade de se pensar um arranjo constitucional comum após a instalação das Cortes de Cádis, em 1810, e das de Lisboa, em 1820 – já que constituição passava, cada vez mais, a ser sinônimo de projeção de novos governos. Nas décadas seguintes, seu sentido de disciplina social, com o intuito de tornar o Estado presente, acabaria por se sobrepujar ao anterior, evidenciando o sentido de moderação que o uso do termo viria a adquirir.

Na análise do vocábulo nação a percepção dos conflitos em torno dos projetos políticos em disputa são ainda mais evidentes. Conforme salientado na síntese de Fábio Wasserman, desde meados do século XVIII é possível delinear um sentimento dúbio, vivido de forma distinta em ambos hemisférios e expresso pela tensão no uso dos termos nação e coroa: se na Península os letrados deixavam evidente existirem diferenças entre o reino e suas conquistas, na América tal sentimento seria vivido com certo desconforto, e alimentaria iniciativas de defesa das especificidades locais, de “patriotismo crioulo” (p. 856-7). Com a ressignificação do conceito a partir de 1808, e a difusão de uma concepção unitária de nação, associada à soberania e à definição de novos pactos políticos, os embates no seu uso passam a ser imprescindíveis na definição das alternativas políticas. De forma bastante precisa, a América portuguesa (analisada no verbete de autoria de Marco Antonio Pamplona) não é aqui tratada como exceção em função da associação entre monarquia e nação que, mais do que continuidade, aquela pôde ser aqui lida como uma recriação. À exemplo do que ocorre com constituição, mesmo antes da década de 1830 já era possível observar-se em nação a perda do sentido de soberania popular, e uma ênfase na sua associação com um esforço de institucionalização e consolidação do poder.

Movimento semelhante ocorre com os termos cidadão/vecino. O primeiro sofre profunda politização a partir dos acontecimentos de 1808, ainda que o ritmo das mudanças tenha sido muito mais rápido na América do que na Península, conforme analisado por Cristóbal Aljovín de Losada (p.183). Na primeira, é digno de nota como o desafio da cidadania enquanto paradigma universal de direitos e de igualdade perante a lei possui uma série de questões que passam por clivagens raciais, em toda parte presentes. Mas o conceito traz em si mesmo ambiguidades, sendo uma delas a incorporação de diferenças pautadas pelas desigualdades entre direitos civis e políticos durante praticamente todo o século XIX – pouco analisadas por Losada, mas já profundamente discutidas, para o caso francês, por Pierre Rosanvallon em mais de uma de suas obras. Desse modo, não nos admira que tenha sido possível a definição de quem eram os cidadãos mesmo em um Império escravista como o Brasil. Obviamente que suas contradições, pensadas no âmbito da modernidade, continuariam a ser evidentes.

A análise dos termos povo/povos e opinião pública nos remete diretamente a clivagens na construção dos projetos políticos. É notável a duração mais curta na utilização do termo povos, sua maior abrangência na América espanhola logo após os desdobramentos das Cortes de Cádis, e sua associação com projetos de autonomia local e corte federal. A predominância do vocábulo no singular, no entanto, passa a ser efetiva nas décadas seguintes, conforme salienta Fátima Sá e Melo Ferreira na síntese transversal. Nesse sentido, opinião pública, expressão que ganha imensa expressão após a crise de 1808 (na América portuguesa, sobretudo, após 1820), é inicialmente utilizada para se defender os direitos dos mesmos povos. Mas veja-se como já nos anos 1820 ela é predominantemente evocada como “rainha do mundo”, fonte de legitimidade para defesa de posicionamentos políticos diversos. Nas décadas seguintes, no entanto, sua utilização também traz uma desconfiança ou perda de entusiasmo em relação à sua força inicial transformadora, com o termo associando-se igualmente a visões pejorativas.

É o texto transversal de autoria de Noemi Goldman que insere a opinião pública numa perspectiva altamente instigante. Partindo das análises de Elías Palti, a autora a insere no universo intelectual da época, discutindo como a defesa de unanimidade, representada de forma paradigmática pela evocação de “uma verdadeira opinião”, não era estranha aos coevos no século XIX (p.988). Ao contrário, ela está inserida num verdadeiro afã pela criação de assertivas e verdades objetivas que pudessem guiar a construção do futuro; ao menos, assim se imaginava possível, obviamente. Isso nos faz pensar no enquadramento geral de praticamente todos os conceitos aqui analisados, cuja polissemia só viria a comprovar a importância dos embates em torno dos significados por eles expressos.

O sentido de projeção de futuro que o uso das palavras coloca a nu nesse momento é especialmente desvelado na análise do termo liberalismo. É possível que seja esse o conceito que mais carrega o peso de uma tradição histórica normativa que impede, muitas vezes, a apreensão de seus significados específicos e coevos. Por essas razões, a síntese transversal assinada por Javier Fernández Sebastián salienta elementos especialmente significativos para sua compreensão: de como o termo contemplava, no momento em que ganha evidente sentido político (a partir de 1808), um respeito à tradição monárquica, e não sua completa negação; mas, ao mesmo tempo, serviria à afirmação de um governo representativo que pretendia a “regeneração” da Península e a construção de novos Estados na América. É notável que o ideal de “triunfo da civilização” e a crença no progresso que o mesmo termo viria a contemplar, fossem alvo, especialmente a partir da década de 1830, de clivagens marcadas pelas novas filosofias da história, com a ascensão de projetos que falassem em nome de uma maior moderação. Sem dúvida é essa uma chave para compreensão dos próprios “partidos” que, muitas vezes equivocamente, são por toda parte classificados como “liberais” e “conservadores” em função de imputações anacrônicas. Sua relevância para observarmos, por exemplo, a eclosão do chamado “Regresso conservador” brasileiro num universo mais amplo da Ibero-américa é evidente (perspectiva de análise para a qual desconhecemos quaisquer outros estudos para além das conexões aqui estabelecidos a partir do verbete de autoria de Christian Lynch).

Isso nos remete à questão das comparações, e do quanto elas podem ser válidas na perspectiva adotada pelo Diccionario. É igualmente Fernandez Sebastián que, na introdução, destaca a importância dos estudos comparados para se romper com uma historiografia nacional, tanto por meio da observação de um substrato comum na cultura política no mundo ibérico e americano, como pelas diferenças contextuais que explicariam diversidades de usos e de significados dos conceitos (p.31). No entanto, o mesmo autor é consciente de riscos dessas aproximações: por exemplo, o de valorizar os principais traços de cada país concebendo-os como distintos e específicos em relação a outros e, dessa forma, reforçar bases de historiografias nacionais (p.41, nota 14). É verdade que essa tendência aparece em alguns textos da obra, mesmo em algumas das sínteses transversais que foram pensadas justamente como uma forma de evitá-la; mas o resultado geral, construído sob o desafio de uma história comum, compensa amplamente sua ocorrência.

Diante disso, vale retornar ao tema da unidade atlântica. Ao defender um único processo revolucionário, global, a obra se volta contra uma definição apriorística de centro e periferias como categorias prévias para entender clivagens entre os espaços ibérico e americano. No entanto, sagazmente também se faz a ressalva de que tais ideias podem ser adequadas ao propósito da obra, ao menos quando elas se converterem em parte do próprio imaginário dos atores estudados, das representações mentais que constituem o presente objeto de estudo (Fernandez Sebastián, p.697). Em função disso, pode ser aparentemente banal a crítica ao tratamento homogêneo demais que aqui se dá a uma imensidade espacial, marcada por complexas e desiguais relações nos mais de 300 anos de colonização da América. Só nos arriscamos a seguir avante nessa ponderação, diante dos vários indícios que o pujante Diccionario nos oferece quanto aos diversos sentidos de modernidade no Novo e no Velho Mundo.

As análises dos termos história e república, especialmente, nos conduzem a tais questionamentos. Quanto ao primeiro, Guillermo Zermeño Padilha, autor da vigorosa síntese transversal, parte da premissa de que o termo é, em si mesmo, um conceito de temporalidade, e nos apresenta uma irretocável discussão historiográfica sobre sua relação com a construção da modernidade como uma ruptura temporal. Ao analisar os usos do vocábulo, arrisca marcar uma diferença estrutural na emergência de seus significados entre a Europa e a Ibero-américa. Na primeira, eles se articulariam a um processo de reflexão interna dos letrados, autorreferente em relação ao seu passado e consequentemente ao seu futuro – é notável como nos verbetes sobre Espanha e Portugal, de autoria de Pedro José Chacón Delgado e de Sérgio Campos Matos, respectivamente, as independências da América não parecem exercer nenhuma influência na ressignificação do conceito. No Novo Mundo, no entanto, o uso da palavra não resulta de algo imanente, e seu futuro se apresentaria, nas palavras do próprio Zermeño, “como um cheque em branco ao portador” (p.576). Seguindo sua cautelosa análise, seria mesmo excessivo afirmar que na Ibero-américa não teria existido um campo de “espaço de experiência” aos moldes koselleckianos; mas a tarefa de edificação dos novos Estados nacionais, aliada à negação/incorporação do passado colonial, teve, evidentemente, impasses particulares. O que serve para explicar a sensação de desconforto no esforço de construção de histórias locais americanas, desde meados do XVIII, e mesmo na emergência de crítica à condição colonial que, no mesmo período, extrapolavam a ela.

O termo república igualmente explicita grande parte dos desafios impostos aos coevos quanto à construção do futuro. Conforme analisado por Georges Lomné a partir dos verbetes específicos, é um equívoco associar seu uso apenas a uma forma de governo, conforme praticaria a historiografia posteriormente e que, no caso do Brasil, persistiria em vê-lo apenas como uma completa exceção. O que significa dizer que, nem mesmo onde acabariam por vigorar sistemas republicanos, o sentido do termo não se impõe necessariamente desde sempre – veja-se como no caso da Ata Constitutiva dos “Estados Unidos Mexicanos”, em 1824, o termo usado é “federação” e não “república” (conforme demostra Alfredo Ávila p.1339). Em, Portugal, de outro modo e na mesma época, se podia falar da “monarquia como a melhor das repúblicas” (Rui Ramos, p.1361). A matização do modelo norte americano como base para o significado do termo vem associada à exploração de sua associação aos sistemas representativos opostos à democracia, com a defesa da importância que a invenção republicana ibero-americana teve na sua ressignificação em todo mundo ocidental. Talvez por isso, Lomné não enfatize suas representações vinculadas às leituras e imagens da antiguidade, conforme destacam Gabriel Di Meglio (p.1272) e Alfredo Ávila (p.1333), para os casos da Argentina e do México, respectivamente.

A chave da projeção republicana como utopia de futuro é uma das mais contundentes para que se revalorize as clivagens estruturais entre esses mundos unidos pelo Atlântico. Vale dizer que várias das análises dos conceitos aqui apresentadas apontam para evidentes diferenças na sua utilização nos distintos hemisférios, conforme já indicado por nós. No entanto, república carrega para os americanos uma questão de fundo, que se generaliza amplamente em meados do século XIX: o da sua incompletude. Era dessa forma que Juan Batista Alberdi, em 1852, e uma vez derrotado Juan Manuel Rosas na Argentina, sustentava que:

la república deja de ser una verdade de hecho em la America del Sur, porque el Pueblo no está preparado para regirse por esse sistema (Apud Di Meglio, p.1278) Ou seja, para além da dimensão utópica comum à modernidade ocidental, faz-se presente um sentido de travamento em sua efetivação, por condições objetivas que, de uma forma ou de outra, remontam à história da América, dos seus homens e da sua sociedade. Não é de se espantar que mesmo o “progresso” pudesse aparecer, por vezes, como “decadência” (Zermeño, p.568), ao lado da sempiterna esperança de se alcançar os melhores frutos da civilização. Noção não apenas dos coevos, mas que engendrou raízes na modernidade pelas nossas bandas do mundo. Questão que, como outras, a magnitude do presente Diccionario nos permite pensar.

Andréa Slemian – Professora no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP – Guarulhos/Brasil). E-mail: [email protected]


SEBASTIÁN, Javier Fernández (Dir.). Diccionario Político y Social del Mundo Iberoamericano. Madrid: Ministerio de Cultura, 2009. Resenha de: SLEMIAN, Andréa. Unidade e diversidade das experiências políticas no mundo iberoamericano: Iberconceptos, 1750-1850. Almanack, Guarulhos, n.3, p. 160-167, jan./jun., 2012.

Acessar publicação original [DR]

 Jerusalém colonial – VAINFAS (VH)

VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial. Judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, 376 p. Resenha de: FEITLER, Bruno. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./Jun. 2012.

Nesse livro, que é dos últimos resultados da sua importante produção historiográfica, Ronaldo Vainfas se mantém dentro da temática dos estudos sociorreligiosos, seguindo um veio que iniciou com seu Trópico dos pecados (1989). Vainfas estuda desde então fenômenos vários de desvios religiosos no mundo católico português. Esse prisma na verdade diz muitas vezes mais sobre as instituições e as culturas dominantes do que os estudos a elas diretamente dedicados. Essa história sociológica, voltada para as rupturas e as descontinuidades à la Foucault, e que Vainfas domina com uma extrema sensibilidade e familiaridade, é uma importante contribuição para a compreensão do Brasil colônia e também um estímulo metodológico para os historiadores brasileiros.

Em seu livro, Jerusalém colonialJudeus portugueses no Brasil holandês, mais do que apenas estudar a estrutura e o funcionamento da comunidade sefaradita local (o que não deixa de fazer), Vainfas continua a tratar daqueles comportamentos e personagens heterodoxos. Contudo, não lhe interessa estudar ritos e cerimônias religiosas, mas sim o comportamento social e os dilemas identitários dos seus personagens, tratando assim de uma questão que não deixa de ser de uma extrema atualidade. Com todos os cuidados necessários, ele abre uma janela para as ligações existentes entre religião, cultura, origem geográfica e identidade no mundo português, no qual esses judeus estavam inseridos muitas vezes com extremo gosto, e a despeito da rejeição que sofriam de parte dos “bons” católicos.

Essa leitura sociológica da (curta) história da comunidade judaico-nordestina (1636-1654) tem assim origem no próprio percurso de Vainfas. Mas ela também deve muito à mais recente produção historiográfica sobre a diáspora sefaradita, como ele claramente frisa desde a sua introdução, sobretudo nos trabalhos de Yosef Kaplan e com seu conceito de “judeu-novo”.

Esses judeus, descendentes daqueles convertidos à força no Portugal de 1497, em seguida estigmatizados pelo epíteto de “cristãos-novos”, sofreriam, por sua origem judaica e por uma vivência católica por vezes secular, “dramas de consciência” (p. 15). Assim, Vainfas faz uma história geral da comunidade judaica do Recife de Israel (Kahal Kadosh Tsur Israel), cuidadosamente reconstituindo o percurso da comunidade mãe de Amsterdã, e retomando de José Antônio Gonsalves de Mello, sua principal inspiração, temas como a importância dos sefaraditas para a economia da empresa comercial da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil, concentrando-se na questão identitária. Vainfas intencionalmente quis se manter livre de adotar qualquer conceituação mais ampla de um “espírito judaico” ou sefaradita, como fizeram muitos dos seus predecessores no estudo da diáspora judaico-portuguesa. Ele quer assim evitar reduzir a análise da religiosidade dessas pessoas a algo de unívoco, desviando-se do caminho seguido pelos inquisidores (“Melhor não imitá-los”, p.278), e pondo em causa autores mais recentes como Nathan Wachtel, que defendem a ideia de uma “essência judaica” generalizada dos cristãos-novos ibéricos (p.41). Nosso autor contudo sucumbe, ao meu ver, a uma certa generalização, ao afirmar que “a ambivalência dos judeus novos era, portanto, inerente à identidade cultural – e individual – da maioria deles” (p.75). Mas essa pequena nota não diminui em nada a importância do seu livro. Vainfas aplica ao caso brasileiro, no seu estilo instigante e inconfundível, as mais recentes interpretações historiográficas sobre o judaísmo sefaradita, que até agora permaneceram restritas a limitadas publicações acadêmicas.

Jerusalém colonial também traz novidades. Vainfas revê de modo surpreendente, entre outras questões (a origem recifense do judaísmo de Nova York, a figura do jesuíta Antônio Vieira, as divisões no seio da comunidade judaica, etc.), a personagem de Isaac de Castro Tartas. Preso na Bahia em nome da Inquisição em 1644, e queimado vivo em seguimento ao auto-da-fé lisboeta de 1647, ele foi transformado num verdadeiro mártir do judaísmo pela comunidade de Amsterdã. Vainfas desfaz o mito do erudito e corajoso rapazola que de Recife teria passado a Salvador para proselitizar cristãos-novos, mostrando a trágica indefinição identitária de Isaac.

O autor também consegue, retomando uma documentação de certo modo já surrada, encontrar novas e interessantes leituras da estrutura social da comunidade judaica do Pernambuco holandês. Vainfas mostra que Tsur Israel foi monopolizada por homens vindos da Europa. Ele fala primeiramente de “Uma nova diáspora. Diáspora colonial” para se referir à comunidade pernambucana, tendo em vista a sua intrínseca ligação com a empresa da Companhia das Índias Ocidentais (p.160-161). Mas em seguida mostra que essa colonialidade também pode ser flagrada na preponderância numérica que os “retornados” na Europa tinham sobre os que se tornaram judeus professos no Brasil. Para crescer, a comunidade dependeu sobretudo da imigração. Finalmente, essa preponderância europeia também era social. “Os judeus convertidos no Recife acabaram relegados à condição de judeus de segunda categoria. Judeus incertos. Judeus coloniais” (p.188). É sem dúvida isso que explica que alguns desses judeus-novos tenham escolhido ir para Amsterdã para se fazer circuncidar, em vez de utilizar os serviços dos mohelim locais.1

Já a escolha de uma estrela de seis pontas para ilustrar a capa do livro parece ser um anacronismo editorial, já que a chamada estrela de Davi só se tornou um símbolo especificamente judaico durante o século XVIII, a partir do mundo askenazi.2

Em todo caso, é o trabalho uma grande contribuição aos estudos dos judeus no Brasil, sobretudo em tempos de redefinições identitário-religiosas.

1 Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT). Inquisição de Lisboa (IL). Processo 11562. Processo contra Pedro de Almeida.
2 Ver SCHOLEM, Gershom. L’étoile de David: histoire d’un symbole. In: Le messianisme juif… Paris, 1992, p.367-395.         [ Links ]

Bruno Feitler – Departamento de História – Unifesp. Estrada do Caminho Velho, 333. 07252-312. Guarulhos, S.P. [email protected].

Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos | Cyril Lionel Robert James

I. Sobre o Sr. Cyril Lionel Robert James [2]

O historiador, romancista e jornalista Cyril Lionel Robert James nasceu em janeiro de 1901 na ilha de Trinidad. Teve uma infância e juventude privilegiada, marcada por uma excelente formação escolar e pela prática esportiva do cricket. Com apenas 19 anos deu início a sua carreira docente, lecionando literatura, na Royal Queen’s College.

Em 1932, aos 31 anos, muda-se para a Grã-Bretanha, devido a sua paixão e conhecimento sobre cricket tornasse repórter esportivo do Manchester Guardian. Na terra da rainha, filia-se ao Partido Trabalhista Independente, (Independent Labour Party) e, em 1938, aderiu a IV Internacional Comunista, entrando em contato, mais intensamente, com as ideias de Leon Trotsky.

É notória a influência que as teses marxistas, em especial as interpretações trotskista, exercerão em suas obras “A Revolução Mundial 1917-1937”, publicada em 1937, e os “Jacobinos negros” de 1938. Vale destacar, que nesse período, a Europa passava por grande instabilidade política, devido à ascensão do nazi- -fascismo e pelo totalitarismo stalinista na URSS.

Por conta da Segunda Guerra Mundial, James refugia-se nos Estados Unidos, onde deu prosseguimento a suas atividades acadêmicas e políticas. Membro fundador do Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party ou SWP) publicou em 1948 o manifesto “Uma resposta revolucionária ao problema do negro nos Estados Unidos”.

Devido a sua militância, em 1953, James foi expulso dos Estados Unidos. Ele decidiu voltar à Inglaterra, onde permaneceu até 1958, quando, então, retorna a Trinidad. Em sua terra natal, envolve-se na luta pela libertação anti-colonialista britânica. Ainda na década de 1950 publica a obra “Navegantes, Renegados e Náufragos: Herman Melville e o mundo em que vivemos” em 1953.

A década de 1960 foi bem movimentada para o nosso autor, no campo político James se envolve nos movimentos de independência na África e em Trinidad, é entusiasta dos ideais do Pan-Africanismo e da integração das ilhas caribenhas em uma – Federação das Índias Ocidentais.

No tocante a carreira acadêmica e produção intelectual publica em 1960, “Política Moderna”, em 1962, “Partidos Políticos Livres nas Índias Ocidentais” e, em 1963, “Além da Fronteira”. Em 1968, vem o convite para lecionar na prestigiada Universidade de Columbia nos Estados Unidos.

Durante a década de 1970, James retorna para a Inglaterra e ainda encontra fôlego para publicar “Nkruma e a Revolução de Gana” em 1977. Na década de 1980 retorna para Trinidad aonde veio a falecer em 1989, deixando como legado, uma produção acadêmica respeitada e de referência para estudos nas ciências humanas, bem com, um exemplo de vida marcado pela entrega a militância e a seus ideais.

II. Sobre a obra: Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos

Em 1938 James, residindo em Londres, publica “Os jacobinos negros” (The black jacobins), a obra trás questões referentes à revolução negra de São Domingos e a sua relação com a sua principal liderança: Toussaint L’Ouverture. No Brasil o texto terá sua primeira tradução apenas em 2000, feita por Afonso Teixeira Filho, com uma edição revisada em 2007 pela Editora Boitempo. Em suas 400 páginas a estrutura física do livro está dividida em 13 capítulos acompanhados de um apêndice intitulado “De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro”.

Para maior compreensão do livro, temos que levar em conta o contexto em que foi escrito: descrédito do liberalismo, auge do nazi-fascismo e predominância das teorias eugênicas. Tal cenário acabou motivando o autor a escrever um texto, que denunciava o estado de opressão em que vivam os africanos e seus descendentes, seja na África ou em outras partes do globo, tornando a posteriori leitura obrigatória para estudos sobre a diáspora Africana.

Embora o ano de publicação date de 1938 James já havia escrito sobre o assunto antes, em 1932. O trabalho de levantamento bibliográfico e de fontes foi grandioso, sendo necessário até “importar da França livros que trataram seriamente desses eventos tão célebres na história daquele país.” [3]. A pesquisa também contou com correspondências e relatórios oficiais, compêndios de história do comercio colonial, narrativas de viajantes, dados estatísticos e biografias.

Ainda no tocante a função social da obra e sua importância para a interpretação histórica, James nos aponta, que a grande virtude contida no “Os jacobinos negros” é a ênfase dada ao protagonismo dos escravos no processo revolucionário, nas palavras do autor: “foram os próprios escravos que fizeram a revolução.” [4] , tendo especial destaque a figura do líder do movimento – “foi quase totalmente trabalho de um único homem: Toussaint L’Ouverture” [5] .

III. A tese central

A viabilização da revolução no Haiti deve-se, em parte, ao fato dos escravos já se encontrarem, em certa mediada, organizados e disciplinados, devido o sistema fabril, já implantada, no século XVIII, nas lavouras da ilha. Para o autor:

Trabalhando e vivendo juntos em grupos de centenas nos enormes engenhos de açúcar que cobriam a Planície do Norte, eles estavam mais próximos de um proletariado moderno do que qualquer outro grupo de trabalhadores daquela época, e o levante foi, por essa razão, um movimento de massas inteiramente preparado e organizado [6]. (Grifo nosso)

Observa-se que para o autor, já no século XVIII, havia entre os escravos do Haiti uma consciência de classe, que os permitiu se organizarem para combater a exploração colonial. Deve-se destacar também, que os revoltosos tinham o desejo de libertar-se da tirania a que eram submetidos, deste modo, se insurgiam contra os maus tratos, ainda nos navios negreiros – “Morriam não apenas por causa do tratamento, mas também de mágoa, de raiva e de desespero. Faziam longas greves de fome; desatavam as suas cadeias e se atiravam sobre a tripulação numa tentativa inútil de revolta.” [7]

III. Leitura Marxista Revolta escrava ou uma luta de classes?

Mesmo para os leitores que não tem contato com a biografia de James, a terminologia empregada por ele, deixa claro que se trata de uma leitura fundada no marxismo. Não são poucos os conceitos empregos em seu texto: proletariado, imperialismo, luta de classes, revolta das massas trabalhadoras, exploração dos escravos, dos trabalhadores – constituem a interpretação dado pelo nosso autor para o problema em que se dispões a analisar além das citações a Lênin e a Trotsky.

É possível afirmarmos, diante do seu livro, bem como de sua biografia, que James, como filiado ao Partido Trabalhista Independente, militante da IV Internacional, fundador do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) e integrante ativo de diversos movimentos sociais, de que demarcou sua interpretação sobre a História a partir de sua leitura da “teoria da revolução permanente” proposta por Leon Trotsky.

Respondendo a questão feita acima, se partirmos da leitura de nosso autor sobre o fato histórico que ocorreu no Haiti, foi à demonstração de uma luta de classes. Tal leitura recebeu diversa criticas, uma das mais conhecidas no Brasil foi feita pelo professor Dr. Jacob Gorender

As rebeliões, no começo do século XIX, no continente americano, só podiam ter caráter antiescravista e anticolonialista. No mundo atual, o cenário internacional é sacudido pelas lutas anticapitalistas e antiimperialistas. Trata-se de etapas históricas profundamente diversas. Não obstante, o anacronismo não prejudica o texto que se segue ao Preâmbulo.[]8

Não podemos deixar de mencionar a crítica feita pelo professor Jacob Gorender ao preâmbulo datado de 1980, em que James liga as rebeliões escravas no Haiti com as lutas operárias do século XX cometendo aquele que é considerado o maior dos pecados para o historiador: o Anacronismo. Todavia dentro de uma abordagem histórica e social, entendemos que devemos contextualizar o autor e sua obra com sua leitura de vida, nos parece que a escrita de “Os jacobinos negros” e o prefácio de 1980, antes de um texto acadêmico é um esforço militante, que tem como pretensão denunciar, conforme o próprio autor, a “perseguição e opressão” que vivem os africanos e os afro- descendentes.

VI. O caso Haiti

Em 1789, a colônia francesa das Índias Ocidentais de São Domingos representava dois terços do comércio exterior da França e era o maior mercado individual para o tráfico negreiro europeu. Era parte integral da vida econômica da época, a maior colônia do mundo, o orgulho da França e a inveja de todas as outras nações imperialistas. A sua estrutura era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos.[9]

Basta ligar a televisão, sintonizar o radio ou acessar a internet e entrar em contato com as notícias que vem do Haiti. Logo nos depararmos com as palavras: tragédia, caos, crise, fome, morte, doenças. Estas informações quando soam aos nossos ouvidos nos faz refletir – como uma colônia produtora de açúcar, café, anil, cacau, algodão, entre outros produtos, responsável por dois terços do comércio exterior da França, que em 1789, exportou 11 milhões de libras [10], fracassou no projeto de Estado-nação livre da miséria e das desigualdades? James propôs uma resposta.

Para o nosso autor, o fracasso do projeto Haiti não se deve apenas a falta de diversidade econômica, uma vez que, a produção primária dominava a paisagem, não havendo maiores perspectivas de geração de riqueza, em especial ao desenvolvimento industrial.

Na análise de James o isolamento ou quarentena imposta pelas potências imperialistas e até mesmo as nações latino-americanas, foram responsáveis pelo atrofiamento econômico da ilha caribenha, não permitindo o desenvolvimento de uma economia mais sólida, tendo por consequência o agravamento das desigualdades históricas já bem conhecidas pela massa trabalhadora do Haiti.

V. Considerações finais

Compreendemos o texto de Cyril Lionel Robert James, como sendo um esforço para responder questões que não se restringem somente ao caso da independência do Haiti, mas como uma leitura sobre a exploração do trabalho escravo e as formas de relação do sistema escravista e colonial na América.

Para finalizarmos, podemos dizer que ainda hoje, o texto serve como instrumento de análise para entendermos as relações de trabalho em muitos países latino-americanos, onde encontramos cada vez mais latente essa realidade apregoada pelo método capitalista de exploração, proposta pela manutenção dos grandes latifúndios, das monoculturas de exportação e da exploração da mão de obra dos trabalhadores do campo.

Notas

2. Informações extraídas da comunicação feita pelo doutorando, Unesp/Franca, Rubens Arantes no curso “A escravidão na cultura ocidental”; e pela comunicação de: SILVA, Tiago Hilarino Christophe da. Um marxista caribenho: o pensamento e a práxis de Cyril Lionel Robert James. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

3. JAMES, C. L. R. Op. cit., p. 11.

4. Idem, p. 14.

5. Idem, p. 15.

6. Idem, p. 99.

7. Idem, p. 23.

8. GORENDER, Jacob. O épico e o trágico na história Haiti. Estudos Avançados. V. 18, n. 50, 2004, p. 296.

9. JAMES, C. L. R. Op. cit., p. 15.

10. Idem.

Carlos Alexandre Barros Trubiliano1 – Doutorando em História Política da Universidade Julho de Mesquita (Unesp – Campus Franca)/ Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected]


JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2010. Resenha de: TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 4, n. 7, p. 225-230, jan./jun., 2012.

Acessar publicação original [DR

Escravidão, mestiçagens, populações e identidades culturais / Eduardo F. Paiva, Isnara P. Ivo e Ilton C. Martins

O livro Escravidão, mestiçagens, populações e identidades culturais, organizado pelos historiadores Eduardo França Paiva, Isnara Pereira Ivo e Ilton Cesar Martins contem textos apresentados em mesas redondas e conferências na FAFIUV do Paraná em 2008. A coletânea de artigos é o desdobramento de comunicações e trocas de experiências em pesquisas que tiveram início em 2005, no XXIII Encontro Nacional da ANPUH, em que foi criado o Simpósio “Escravidão: sociedade, cultura, escravidão e trabalho”. Desde então, esses pesquisadores, que ficaram conhecidos como Grupo Escravidão e Mestiçagens, promoveram diversos eventos, nos quais socializam o resultado de suas pesquisas. O primeiro livro publicado pelo grupo foi Escravidão, mestiçagem e história comparadas, em 2008, e foi organizado pelos mesmos historiadores do livro aqui resenhado.

O líder do grupo, Eduardo França Paiva, tem se dedicado ao estudo das mestiçagens e do trânsito de cultura entre os continentes africano, europeu e americano. Ele tem mostrado que o intenso trânsito entre esses continentes resultou em uma realidade nova, multifacetada, cujas configurações sócio-culturais são mais bem compreendidas com o conceito de mestiçagem. É notória a referência ao historiador francês Serge Gruzinski. Apesar dos diversos aportes teórico-metodológicos dos artigos presentes no livro, o fio que os liga é exatamente as ideias de deslocamento e mestiçagem, como é bem ilustrado por Isnara Pereira Ivo. Esses dois fenômenos, que cresceram vertiginosamente na modernidade devido à era das navegações, foram abordados à luz da História Cultural Francesa, da História Social e da Micro-História.

Ancoradas na História Cultural são as análises que se valem das categorias de representação social e apropriação. Os artigos de Eduardo Paiva, Carlos Alberto Medeiros, Maciel Henrique Silva e Caio Ricardo B. Moreira, cujas fontes são mais características da História Cultural, como é o caso da iconografia, dos relatos de viagem e da literatura, enfatizam a forma como a realidade é simbolizada por vários sujeitos históricos; e como tais leituras são essenciais na classificação e hierarquização do mundo social, definindo como os homens vêem a si e aos outros, criando sentidos de identidade.

Já os artigos de Douglas Coli Libby, Ilton Cesar Martins, Márcia Amantino e José Newton Coelho de Menezes tangenciam mais as questões colocadas pela História Social. Têm destaque os “sujeitos anônimos”, as suas experiências e relações com os poderes hegemônicos. Daí a relevância dos estudos dos aparatos jurídicos e da lei e a forma como os agentes históricos se colocam frente a eles, estabelecendo formas de resistência e acomodação. Na mesma senda, cabem os estudos das mobilidades sociais e as estratégias cotidianas, dentro de um panorama em que são importantes a classe, o gênero e a etnia.

Por fim, são evidentes as inspirações da Micro-História nos artigos de Paulo Roberto Staudt Moreira, Rafael Cunha Scheffer e Vinícius Maia Cardoso. Transitando entre a macro e a micro escala, as análises das trajetórias pessoais de personagens anônimos e das histórias locais, dadas por olhar detetivesco, permitem uma compreensão mais pontual e complexa de como os agentes históricos transitam nos vários níveis socioculturais, cuja experiência é a dialética entre a norma e o vivido.

Contudo, não faz sentido estabelecer rígidas compartimentações entre os aportes teórico-metodológicos dessas abordagens. As divisões acadêmicas disciplinares não são critérios aceitáveis quando se analisa estudos que em sua maioria transitam entre essas várias abordagens. Indivíduo, cultura e sociedade, são dimensões intercambiáveis e assim foram tratadas nas várias análises presentes nesse livro.

A presença de profissionais das várias regiões do país oferece um amplo quadro dos atuais problemas, enfoques e abordagens colocados pela historiografia contemporânea sobre escravidão no Brasil. O uso de documentos, até pouco tempo inexplorados pelos historiadores, como é o caso da iconografia, dos testamentos, dos processos crimes, do rol de confessados, dos inventários post-mortem, dos registros de batismos e da literatura, é um destaque do livro. Analisados com sensibilidade e argúcia pelos articulistas, coloca-nos em contato com um passado que parecia distante e estranho. A presença, por exemplo, de práticas religiosas islamizadas dos negros no período colonial é de difícil identificação, devido à intolerância religiosa e à falta de “registros explícitos” que as revelem. A partir do uso de novas fontes, aliadas a novos enfoques, Eduardo Paiva analisa esse aspecto da realidade múltipla da América Portuguesa.

A colonização da África e do Novo Mundo favoreceram as trocas materiais e simbólicas dos três continentes e resultaram em uma realidade americana maleável, dinâmica e diversa de suas matrizes europeias, africanas e nativas. Segundo Isnara Pereira Ivo, os portugueses não arranhavam a costa como caranguejos, como havia afirmado Frei Vicente Salvador. Comerciantes, comboieiros, boiadeiros são tidos pela autora como “agentes integralizadores”, responsáveis pelo trânsito de culturas, produtos e gentes trafegados por caminhos, rotas e picadas, muitas vezes à revelia dos projetos metropolitanos. Daí, o motivo de os conceitos de Antigo Sistema Colonial e de Antigo Regime não comportarem as realidades dinâmicas e móveis plasmadas no Império Português Ultramarino. Tais conceitos pressupõem relações verticalizadas de poder incapazes de dar conta das peculiaridades culturais, hierarquias e relações sociais estabelecidas na colônia. A descoberta do Novo Mundo impactou também significativamente as culturas europeias, sendo mais apropriado falar em circulação, trocas, mediações, negociações, do que apenas dominação cultural. Ao estudar o discurso de intelectuais religiosos e leigos, Carlos Alberto Medeiros de Lima aponta que a descoberta de povos portadores de culturas diferentes levou os europeus a pensarem a si próprios não como superiores moralmente, mas tão degradados quanto os americanos.

Nesta esteira, a mestiçagem, como afirma Eduardo França, assume um lugar central na compreensão do crisol que representou as intensas mesclas culturais e biológicas, favorecidas pelo deslocamento de gentes e produtos que integraram, num mesmo universo, culturas distintas. A diversidade étnica nas Américas é demonstrada pelas classificações dadas aos sujeitos: brancos, pretos, cafuzos, mulatos, cabras, mamelucos e pardos indicam não só qualificação de cor, mas também as diversas posições sociais ocupadas por esses sujeitos que se modificam tanto no tempo como no espaço. O termo pardo, como mostra Douglas Cole Libby, é uma das mais controversas formas de qualificações das populações nas Minas Gerais na segunda metade do século XVIII e ao longo do século XIX. Nos Setecentos, ser qualificado como pardo representava uma associação direta com o passado escravista mais recente. Na passagem para o Oitocentos, devido ao intenso processo de mestiçagem, o termo pardo vai indicando mais a marca da mestiçagem com brancos do que a proximidade da condição de escravo. Em alguns casos estudados pelo autor, aparecem pessoas definidas como “sem cor”. Esse “silenciamento das cores” acontece quando há algum tipo de ascensão social, como bem colocara Hebe Maria Mattos, em seu livro Das cores do silêncio. A cor, portanto, no caso dos pardos, é indício não apenas da tez da pele, mas também de posição social. De qualquer forma, segundo Libby, a ascendência branca possibilitava o afastamento do estigma do cativeiro. A definição mineira de crioulo, por sua vez, referia-se aos negros nascidos no Brasil, independentemente de sua condição legal. Esta identificação era herdada pelos descendentes como forma de ligá-los a uma origem africana e não para ligá-los ao cativeiro. Portanto, se uma pessoa era negra ou crioula não significava que fosse necessariamente escrava. Outro termo controverso é cabra. Se por um lado liga o sujeito a um passado escravista, pois pressupunha a mestiçagem com negros, por outro, esconde a ascendência indígena. Talvez porque a política metropolitana proibia a escravização dos índios, o que poderia representar certamente um constrangimento para os donos de escravos.

Com respeito à escravização de índios, Márcia Amantino destaca um importante aspecto de sua relação com a mestiçagem. Durante muito tempo, pensou-se que o intercurso de índios e negros se deu de forma livre e espontânea. Contudo, a autora aponta que o casamento de índios com negras escravas era também uma forma astuciosa usada pelos fazendeiros para aumentar o seu contingente de trabalhadores. De um lado, porque os índios se mantinham presos à fazenda por laços familiares e afetivos, sendo tratados muitas vezes como escravos; por outro, os ventres escravos geravam filhos escravos, tornando essa uma forma de reprodução da mão-de-obra escravizada. Daí, podemos perceber a complexidade das condições étnicas, sociais, culturais e jurídicas que, segundo Rangel Cerceau Neto, possibilitou o aparecimento de “realidades familiares poliformes, composta de identidades múltiplas e de constantes metamorfoses”. Relações que eram ora toleradas, ora clandestinas, que se estabeleceram, muitas vezes, à revelia das normas rígidas demandadas pela Igreja e pelo Estado.

A complexidade jurídica da América Portuguesa é argutamente analisada por José Newton Coelho de Menezes. Ao estudar o caso de escravos que dominavam algum ofício, Menezes percebe uma contradição em suas condições jurídicas. Os ofícios eram regulamentados pelas câmaras municipais, sendo exigida uma certidão de exame para exercê-los. O profissional, mesmo sendo escravo, deveria submeter-se a todo o longo processo burocrático que o habilitava ao exercício de seu ofício, incluindo o cerimonial de juramento público do compromisso com o bem-comum. Este profissional, portanto, parece ter uma dupla condição jurídica. Se por um lado é considerado como um bem semovente, por outro, era obrigado a cumprir todos os deveres próprios da condição de um civil, “como se livre fosse”.

O aparelho jurídico, a lei e sua aplicabilidade devem ser, portanto, compreendidos levando em conta a tessitura social e o contexto que os engloba, como afirma Ilton Cesar Martins. Seu estudo a respeito da lei, crime e punição em Castro, município do Paraná, discute a legislação escravista no século XIX, dado que nesse período a interferência do Estado Imperial nas relações entre senhores e escravos foi mais marcante do que no período colonial. Esse aparato judicial serviu em alguns casos, segundo o autor, para legitimar a legalidade da violência dos senhores sobre os escravos. As leis, sendo escritas pelos proprietários, favoreciam-nos, além de representar um poder simbólico justificador de sua violência. As penas, aplicadas em caso de homicídio, eram letra morta ou abrandadas quando se tratavam dos senhores. No caso de réus escravos, a morte era a punição mais comum.

Os estudos de trajetórias pessoais e de Micro-História possibilitam dimensionar as complexidades que envolviam as relações entre identidades culturais e hierarquias sociais em contextos e espaços diversos, como bem indicam os artigos de Paulo Roberto Staudt Moreira, Rafael Cunha Scheffer e Vinícius Maia Cardoso. Staudt traça os primeiros anos de Aurélio Veríssimo de Bittencourt, um pardo que se tornou tipógrafo, burocrata e abolicionista. Acompanhamos com o autor as reviravoltas e sobressaltos de um sujeito não-branco que ascendeu socialmente, compreendendo melhor as mediações entre cor da pele e posição social no século XIX. Já Sheffer, leva-nos com João Mourthé, comerciante de escravos de Rio Claro, pelas intricadas teias que davam significado à comercialização de escravos no século XIX. Sua análise é elaborada a partir do desenrolar do processo jurídico que visava à devolução do escravo, sob a alegação de que o mesmo se encontrava doente no momento de sua compra. A análise da escravidão no Vale do Macacu, no Rio de Janeiro, desenvolvida por Vinícius Cardoso, é também instigante quanto à dinâmica, diversidade e maleabilidade da condição social dos mestiços nas Américas. Os estudos do micro, apoiados em vasta e variada quantidade de fonte – sem esquecer, é claro, o cabedal intelectual e a astúcia interpretativa do historiador –, faz-nos ver uma realidade mais verossímil e palpável do que apontariam estudos macro e generalizantes.

A literatura também tem destaque no livro por meio dos artigos de Maciel Henrique Silva e Caio Ricardo B. Moreira. Henrique Silva analisa a obra ficcional dos escritores pernambucanos Mário Sette, Carneiro Vilela e Theotônio Freire, e dos baianos Xavier Marques e Ana Bittencourt, todos eles filhos de senhores de escravos, e suas representações sociais sobre trabalho e escravidão no século XIX. O autor aponta a saudade das relações afetivas e amenas entre senhores e escravos como um traço comum às obras desses escritores. O estilo memorialístico remonta a uma infância idílica: um tempo austero, simples, pródigo, marcado por trocas mais afetuosas e sinceras entre senhores e escravos. Tais sentimentos e representações nos fazem entrever, segundo o autor, a ideologia de uma classe em decadência que encontra refúgio e consolo em lembranças de um passado melhor, fazendo dessas memórias um aparato discursivo de crítica ao seu tempo. Moreira, por sua vez, estuda a obra utópica e mística do escritor curitibano Dário Vellozo, que no fim do século XIX já se referia ao mestiço como personagem ideal de país futuro idealizado em seu livro.

O livro resenhado, como vemos, é uma leitura obrigatória para quem se interessa em compreender o desenvolvimento atual das pesquisas sobre a escravidão no Brasil. Oferece-nos, além do mais, narrativas prazerosas e instigantes, demonstrando que os historiadores estão atentos não apenas em divulgar os resultados de suas pesquisas, como também em apresentá-los sem descurar das formas e estilos de narrar uma história.

Manoel Carlos Fonseca de Alencar – Professor da Universidade Estadual do Ceará – UECE. Doutorando PPGH-UFMG. E-mail: [email protected].


PAIVA, Eduardo França, Org.; IVO, Isnara Pereira, Org.; MARTINS Ilton Cesar, Org. Escravidão, mestiçagens, populações e identidades culturais. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: PPGH-UFMG, Vitória da Conquista: Edições UESB, 2010. 310 p. Resenha de: ALENCAR, Manoel Carlos Fonseca. Outros Tempos, São Luís, v.9, n.14, p.244-249, 2012. Acessar publicação original. [IF].

Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil | Mary Del Priore

Recentemente a teledramaturgia brasileira protagonizou o primeiro beijo lésbico: representada em Amor e Revolução, a cena durou aproximadamente cinqüenta minutos. Os pontos a mais na audiência que a cena garantiu para o SBT mostram como este gênero televisivo, bem como os demais meios de comunicação, sempre funcionou como termômetro da sexualidade brasileira. Se em Amor e Revolução a temperatura subiu, em 2005 a temperatura despencou devido ao que deveria ser o primeiro beijo gay da televisão brasileira: a Rede Globo chegou a gravar a cena, mas não a levou ao ar no último capítulo de América. Caso se volte mais de duas décadas, contudo, o termômetro registrou novamente elevada temperatura: em 1979 o seriado Malu Mulher, também da Rede Globo, apresentou o primeiro orgasmo da televisão brasileira. Leia Mais

Açúcar e Colonização – FERLINI (S-RH)

FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e Colonização. São Paulo: Alameda, 2010, 267p.  Resenha de:  LOPES, Gustavo Acioli. Identidades, mentalidades e sistema colonial. SÆCULUM REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [26] jan./jun. 2012.

Os estudos e pesquisas sobre a história do Brasil colonial têm crescido sobremaneira, tanto do ponto de vista quantitativo, quanto qualitativo, nas últimas duas décadas. Se, em parte, este crescimento pode ser atribuído à multiplicação das pós-graduações, com linhas específicas de pesquisa, também se deve ao renovado interesse que o período vem despertando entre as novas gerações de historiadores. E este, por sua vez, ganhou considerável impulso com os debates que se seguiram às críticas que parte desta nova geração enumerou contra a linha de análise que privilegia o Antigo Sistema Colonial como elemento explicativo principal. Juntamente com a história econômica, esta linha esteve na defensiva nos anos 1990, quando as abordagens totalizantes, em particular as de viés marxista, foram seriamente questionadas (fenômeno que atingiu as Ciências Sociais em todo o Ocidente). No entanto, a partir das críticas e debates que resultaram destas, a abordagem do Antigo Sistema Colonial também se viu renovada, particularmente pela ampliação dos temas abordados e pelo aprofundamento da pesquisa documental, seja em história econômica, seja em história social e cultural.  América portuguesa ou Brasil colônia? Antigo Sistema Colonial ou Antigo Regime nos Trópicos? Colonos/colonizadores ou cidadãos/súditos do império? Leia Mais

Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na pintura – HORNÄK (CE)

HORNÄK, Sara. Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na pintura. São Paulo: Paulus, 2010. Resenha de: PAULA, Marcos Ferreira de. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.

Sobre arte, Espinosa nos fala muito pouco. O termo, com o sentido estético que costumamos lhe atribuir, ocorre poucas vezes em toda a sua obra. Não é por acaso. No século XVII arte ainda conserva o sentido de um ofício específico, embora, como se sabe, o conceito de já arte estivesse em transformação desde o Renascimento, quando então ela tornou-se definitivamente inseparável das noções de beleza, estilo e originalidade, caminhando cada vez mais, sobretudo a partir do século XVIII, em direção ao sentido estético contemporâneo que hoje conhecemos. A arte no tempo de Espinosa não está longe, portanto, dos valores da contemplação e dos prazeres estéticos, mas é certamente menos importante a presença seja do artista ou do expectador que se situam num campo artístico sem pretender avançar para além de seus limites propriamente estéticos. Espinosa, por exemplo, situa as ciências e as artes no rol de todas as atividades humanas (e coletivas) que são necessárias ao aperfeiçoamento da “natureza humana” e à conquista da “beatitude”. A arte não se separa, para ele, de sua utilidade ética, sem a qual ela talvez nem faça sentido. É o que parece nos indicar esta passagem do Tratado teológico-político :

[…] ninguém teria a força e o tempo necessário se fosse obrigado a lavrar, semear, ceifar, cozer, tecer, costurar e fazer sozinho tudo o mais que é preciso para o sustento, não falando já nas artes e ciências, que são também sumamente necessárias à perfeição da natureza humana e à sua beatitude (Espinosa 2, p. 85, grifos nossos) .

Fazer arte não é o mesmo que tecer e cozer, certamente, mas deve servir, em última análise, aos mesmos propósitos éticos. Se é assim, a arte, enquanto tal, não poderia servir à própria tarefa de compreensão filosófica do mundo, de si e da Natureza? De fato, sabemos que quando Espinosa fala em “perfeição da natureza humana” e “beatitude” devemos entender o exercício de uma mente humana na compreensão de si, da essência singular de seu corpo, das coisas singulares e da Natureza inteira, da qual mente e corpo são expressões modais imanentes; e se a arte pode ser útil nessa tarefa, é porque deve conservar algum poder de compreensão. Haveria, assim, entre arte e filosofia, uma ligação talvez mais íntima do que alguns comentadores ou leitores de Espinosa gostariam de ver – justamente aqueles leitores ou comentadores para os quais a arte, pertencendo ao campo do primeiro gênero de conhecimento, a imaginatio, não teria nenhuma importância na obra do filósofo holandês, não podendo sequer poderia ser tomada como via de compreensão de sua filosofia.

Não é este o caso, felizmente, de Sara Hornäk, autora de Espinosa e Vermeer: imanência na filosofia e na pintura, livro publicado na Alemanha em 2004 e que chegou até nós no final de 2010 pela editora Paulus. Trata- se de uma obra em que a arte é iluminada pela filosofia e a filosofia, pela arte; uma obra na qual vemos que um artista pode ser também filósofo, e um filósofo, artista. É que – Hornäk não hesitaria em afirmar – artista e filósofo habitam um mesmo mundo, um mesmo Universo, no sentido metafísico da palavra, de tal maneira que compartilham um mesmo “plano de imanência”, para utilizar, em sentido menos sério, a expressão deleuziana. A relação que Hornäk estabelece entre Espinosa e Vermeer (consequentemente, entre filosofia e arte), é de tal ordem que a noção de imanência ganha um destaque e uma relevância que escapam muitas vezes até mesmo aos leitores de Espinosa. A imanência, como sugere o título da obra, é o elemento pelo qual a autora constrói sua argumentação que une a arte de Vermeer à filosofia de Espinosa; mas é também o alvo do livro, cujo objetivo principal parece ser o de mostrar que uma experiência estética da imanência realizaria por outros meios o mesmo que uma filosofia da imanência proporcionaria por meio do trabalho do pensamento.

Para chegar a esse resultado, contudo, a autora seguiu um caminho um tanto longo, mas muito acertado e talvez quase inevitável. Ela primeiro expôs toda a filosofia de Espinosa contida na Ética . Essa exposição, que ocupa a primeira parte do livro, tem antes de tudo o mérito de oferecer ao leitor um verdadeiro trabalho de introdução ao pensamento de Espinosa. Aí estão presentes os principais conceitos espinosanos. Substância, atributos, modos, conatus, afetos, afecções, liberdade e eternidade, entre outros, são apresentados ao leitor com o cuidado de quem deseja introduzi-lo no universo dessa difícil filosofia da imanência.

Nesta primeira parte, que ocupa mais da metade do livro, o pensamento de Espinosa é apresentado com certa fidelidade e clareza. Há contudo um momento de sua exposição em que a autora parece trair tanto o “espírito” quanto a “letra” do texto espinosano. Ela traduz amor Dei intellectualis por “amor espiritual a Deus” (Hornäk 3, p. 246). E devemos frisar que não há erro na tradução para o português, realizada por Saulo Krieger e revisada por Rachel Gazolla: no original alemão, a expressão da autora é die geistige Liebe zu Gott (“amor espiritual a Deus”, grifo nosso). Trata-se sem dúvida de uma opção por “espiritual”, uma vez que uma das edições alemãs da Ética consultadas por Hornäk (elencadas no “Índice Bilbiográfico”) é justamente a Ethik de W. Bartschat, que traduziu corretamente o amor Dei intellectualis por Die intellektuelle Liebe zu Gott . Caberia, então, uma nota de rodapé da autora explicando tal opção, assim como seria útil ao leitor brasileiro uma nota explicativa por parte do tradutor ou da revisora. É que não estamos aqui diante de uma questão menor: “amor espiritual a Deus” é uma tradução inaceitável para todos aqueles que sabem o quanto o “amor intelecutal de Deus” de Espinosa está longe de receber o sentido espiritualista do “amor a Deus” das tradições religiosas e teológicas judaico-cristãs. Ademais, tal opção seria menos problemática, não fosse o fato de estarmos, aí, num momento conclusivo do percurso filosófico realizado por Espinosa e que Hornäk reproduz em seu livro: precisamente no ponto de chegada do caminho filosófico espinosano, no ápice da tarefa da Ética, o leitor desprevinido pode ser levado a confundir Espinosa justamente com aqueles aos quais ele se contrapôs ética e filosoficamente. Afora esse deslize – que pode ser pequeno ou grande, a depender de se o leitor de Hornäk é ou não também um leitor de Espinosa – não há problemas na exposição da autora, embora tampouco haja aí novidades interpretativas.

Realizando esse longo percurso pelo pensamento espinosano, na primeira parte do livro, a autora pôde se desincumbir, na terceira parte, de explicar cada conceito espinosano, ao tratar da relação entre a arte de Vermeer e a filosofia de Espinosa. Mas antes de chegar a ela, a autora também nos oferece uma segunda parte, espécie de intermezzo histórico no qual o leitor se vê às voltas com os problemas da imanência e da transcendência, num percurso que vai de Platão a Giordano Bruno, passando pelos neoplatônicos e Nicolau de Cusa, sem deixar de nos oferecer ainda, ao final, algumas considerações sobre o “plano de imanência” de Gilles Deleuze. Mas é sem dúvida a terceira parte do livro que concentra o que ele tem de melhor. Aí encontramos as teses principais da autora; aí vemos a filosofia juntar-se à crítica e à história da arte para se chegar a bons resultados, seja no que concerne à compreensão do pensamento espinosano, seja no que toca à interpretação das obras de Vermeer.

A ideia central de Sara Hornäk é que a imanência pode ser não apenas pensada, mas também mostrada . A imanência, para além de sua expressão recebida no trabalho de pensamento filosófico, se exprimiria também em outros campos do fazer humano – na arte, por exemplo, e Vermeer seria aqui exemplo privilegiado, particularmente A leiteira, obra sobre a qual se centram as interpretações da autora.

Na forma, na tecedura e combinação das cores, assim como no uso da luz, Vermeer deixaria ver ou daria visibilidade à mesma imanência de que nos fala Espinosa. Hornäk vê no tratamento de temas cotidianos precisamente uma recusa da transcendência em Vermeer. Não se trata de que nas obras do pintor encontraríamos a representação da imanência: dá- se antes que a própria imanência estaria aí presente, visível, expressa na tela mesma. Em Vermeer, assim como na teoria da mente da Ética, não haveria então a representação de ideias, motivos ou objetos; a própria imagem produziria seu sentido, assim como um sentido emerge no próprio texto da Ética – e Hornäk fala aqui em “autorreferencialidade”, em “estrutura de expressão horizontal”, para dar conta dessa potência expressiva imanente ao texto e à imagem (Hornäk 3, p. 329).

Arte e filosofia, entretanto, conservam esta potência expressiva de maneiras diferentes, cada uma a seu modo, em seu próprio campo e com seus próprios recursos. Hornäk não sonha estabelecer qualquer relação causal entre Vermeer e Espinosa. Ao mesmo tempo, ela vê no “conhecimento da imanência, que, segundo Espinosa, se dá intuitivamente” (Hornäk 3, p. 331), o elemento comum que os une. A intuição, que a autora corretamente vê, não como uma superação mística do racionalismo, mas como uma ampliação da própria razão, seria assim o meio pelo qual a imanência é inteligida e vivida, tanto em Espinosa quanto em Vermeer. Essa experiência intelectual e afetiva da imanência, que Espinosa exprime no conceito de amor intelectual de Deus, em Vermeer estaria presente na “quietude profunda” que Hornäk vê “expressa” em seus quadros, os quais permitiria uma certa “contemplação da eternidade”… (Hornäk 3, p. 331-333).

Mas de que forma, do ponto de vista da filosofia de Espinosa, tudo isso seria possível? A arte não é de fato uma atividade que se dá antes de tudo no campo da imaginação e portanto da ideia inadequada? Contudo, segundo Hornäk devemos superar a ideia de imaginatio como mero conhecimento inadequado. Lembremos que a imaginação, enquanto tal, está inscrita no rol das atividades dos modos finitos, o que significa que ela mesma é algo, é modo e constitui um modo de ser. Sabemos, ao mesmo tempo, onde está o problema teórico e prático da imaginatio : caímos no inadequado ao afirmarmos de um conteúdo imaginativo que ele é verdadeiro ou falso, bom ou mau, quando o próprio conteúdo não nos oferece tanto. Como estamos sempre no exercício do nosso conatus, é quase inevitável que a imaginação não venha acompanhada dessas afirmações ou negações. No entanto, o próprio conatus pode exercer-se de tal forma que a imaginação não seja um obstáculo, mas um reforço. A imaginação, muitas vezes, é antes uma potência, em vez de impotência e passividade. Flaubert e Machado de Assis nos dão a ver certas paixões humanas. Mas no ato mesmo em que escrevem, não são dominados por elas.

A imaginação no artista é, em casos como esses, um potente instrumento de criação, não de dominação daquele que imagina. Hornäk nos lembra que, na abertura do Breve Tratado, a forma de exposição é já artística; ademais, a própria forma de exposição geométrica da Ética é, para a autora, igualmente artística, pois faria emergir uma “estrutura complexa” em que definições, axiomas, proposições e demonstrações se mostrariam de tal forma interligados que, ao fim do texto, seríamos capazes de vê-lo todo, seríamos capazes de ver a simultaneidade da forma, assim como seríamos capazes de apreender a nossa essência singular inseparavelmente do Universo (o todo), da mesma maneira que a autorreferencialidade presente nos quadros de Vermeer nos dariam a ver o próprio real em sua simultaneidade.

Hornäk vê nos quadros de Vermeer a expressão do que ela chama de “força substancial” em meio às próprias coisas cotidianas. Os elementos cotidianos do pintor realizam a imanência pictoricamente. A arte pode tornar a imanência visível. Em Vermeer, mais do que em qualquer outro pintor do XVII, segundo Hornäk, dá-se justamente essa visibilidade da imanência. Para a autora, a imanência não é uma ideia puramente conceitual, e portanto não se trata de buscar na arte o sentido da imanência, mas sim de entender como ela se exprime na arte.

Vermeer retrata o cotidiano de tal forma que o que se exprime na tela é o singular (não o geral, isto é, não uma casa, um quarto, um vaso ou uma mulher, mas esta casa, este quarto, este vaso, esta mulher). Tomando sempre como referência A leiteira, Hornäk considera que o humano e o mundo estão igualmente presentes na tela de Vermeer, através da figuração plástica de uma mulher, um lugar e uma ação singulares. A singularidade do gesto da leiteira exprime-se em sua total concentração na realização do ato cotidiano de despejar o leite que sai de uma recipiente e entra em outro. Concentração e movimento, aqui, encerram a “quietude” que se exprime no gesto da leiteira. Para Hornäk, a apreensão intuitiva do “verter do leite” equivale a uma experiência da eternidade, uma vez que a Natureza se exprime nos modos e portanto também nos gestos mais cotidianos.

Para chegar a essas conclusões, Hornäk analisa o uso das cores, da luz e do que ela chama de “superfície de imagem e espaço de imagem”, em Vermeer. O trabalho de composição e combinação das cores mostra o quanto elas formam uma trama, uma tessitura, pela qual Vermeer “escreve” o “texto” da tela, de tal maneira que a imanência se faria presente no próprio ato criativo do pintor. Para Hornäk, entretanto, sem o uso específico que Vermeer faz da luz essa trama das cores seria impossível. Aqui, como muitos historiadores lembraram, o procedimento estético é o chiaroscuro . Hornäk lembra, porém, que o uso desse procedimento é de tal ordem que o chiaro não se opõe ao oscuro . Claro e escuro não são oposições irredutíveis. Em vez disso, eles formariam uma “unidade harmônica”. O homem não se opõe ao mundo; é dele um elemento discernível mas inseparável, componente intrínseco do todo. Mas de onde vem a luz, em A leiteira ? Segundo Hornäk, a luz intensa da parede não pode advir dos vidros da janela à esquerda da tela, porque eles estão demasiados embaçados para produzir uma tal luminosidade 1 . A luz da parede, intensa e profunda, seria produzida ali mesma, por ela mesma: ela seria, assim, figuração pictórica da causa imanens, da causa que não se separa do efeito após causá-lo. Certamente a importância que a autora dá ao papel da luz não é casual. Ela mesma nos lembra que para uma longa tradição de religiosos e pensadores a luz sempre foi considerada “símbolo do divino”. Mas a luz, em Vermeer, não seria o que remete a outra coisa, a algo fora da tela, ao transcendente: ela se dá e se constitui no cotidiano mesmo, alia onde as coisas estão, em meio a elas e por meio delas.

É contudo no momento em que analisa o problema da superfície e do espaço da imagem que a interpretação de Hornäk fica ao mesmo tempo mais interessante e mais controversa. Mais interessante porque aprofunda a interpretação da obra de Vermeer pela ótica da imanência espinosana; mais controversa porque, nesse aprofundamento, parece realizar uma leitura “piedosa”, “espiritualista” e um tanto mística da filosofia de Espinosa. E, realmente, a partir da análise de elementos formais de A leiteira, Hornäk identifica a figuração pictórica de temas como a “concentração” e a “quietude”. A mulher que no centro da tela faz jorrar o leite na vasilha sobre a mesa realiza esse ato com toda a atenção, compenetrada em seu gesto, a ponto de ela, sua ação, os objetos que a cercam, o próprio lugar, enfim, comporem uma “cena hermética” que exprime “concentração” plena e, por isso mesmo, certa “quietude”.

Nesta “cena hermética” encontra-se, porém, a abertura para todo o Universo, afirma Hornäk. A autora fala no “mundo sumamente próprio” e na “interiorização absoluta” que as telas de Vermeer deixariam ver. E, no entanto, precisamente aí encontraríamos “o atrelamento, tão difícil de apreender, entre finitude e infinitude” (Hornäk 3, p. 378). Haveria, então, uma espécie de “filosofia da imanência”, não dita, não escrita, mas figurada nas telas de Vermeer, particularmente em A leiteira ? As análises e interpretações de Hornäk parecem querer levar o leitor a essa conclusão. E de fato uma tal conclusão em Vermeer seria tanto mais possível quanto, segundo Hornäk, “o pintor suprime dualismos em teoria do conhecimento, como o que se tem entre imaginatio e ratio, corpo e alma, percepção e conhecimento” (Hornäk 3, idem).

Não é que autora desconheça o lugar da imaginatio na Ética de Espinosa. Sabe que na imaginação estamos sempre às voltas com o inadequado. Mas ela lembra que a conquista do adequado, em Espinosa, não se faz pela defesa “de um ponto de vista puramente racionalista”, já que Espinosa vai além da razão sem dispensá-la: a ciência intuitiva, o terceiro gênero de conhecimento, faz de Espinosa um racionalista sui generis no século XVII, pois com ela a própria razão se vê ampliada – não porque seja agora capaz de apreender mais generalidades, mas, ao contrário, porque capaz de captar singularidades, antes de tudo da essência singular do corpo de que esta mente intuitiva é a ideia. Contudo, precisamente a ciência intuitiva dá à imaginatio um outro estatuto: à imaginação não é mais dado o valor de verdade que era fonte de todo o erro (lembremos que a imaginação em si não é nem falsa nem verdadeira), mas antes um lugar na contemplação adequada de si que envolve uma outra imagem de si mesmo, das coisas e da Natureza (ou Deus), assim como da ligação necessária (eternidade) entre nós, as coisas e a Natureza.

A ciência intituitiva, portanto, envolve razão e imaginação, mas agora sob o aspecto da eternidade. Ora, precisamente esse conhecimento intuitivo corresponde, na arte, segundo Hornäk, à “uma atitude contemplativa, na qual o homem, mergulhado em si mesmo, assume um estado de interiorização”. Essa “interiorização” intuitiva estaria presente em A leiteira : “A criada parece espreitar a si mesma” (Hornäk 3, p. 382). Evidentemente, não estamos aqui diante de uma interiorização que nos faria cair num sopsismo sem saída de si, precisamente porque, realizando- se no campo da ciência intuitiva, ela é por isso a expressão da ligação que mente tem com a Natureza inteira, e, portanto, em vez de nos fechar em nós mesmos, ela é capaz de nos abrir a todas as coisas, ou, o que é o mesmo, de realizar uma abertura ao “múltiplo simultâneo”, para utilizar uma expressão de Marilena Chaui (Chaui 1, p. 103). É aqui que, para Hornäk, somos capazes de apreender o eterno no temporal, o infinito no finito, a Substância nos modos.

O que, entretanto, em A leiteira de Vermeer, revela-nos esse poder de apreensão intuitiva do real e de nós mesmo na Natureza? Aqui aparece com mais clareza aquele ponto controverso a que nos referimos acima. Para Hornäk, pode-se ver na ação da criada, em sua expressão, em seu gesto, uma atitude de “concentração”, “paciência” e “quietude”. E a autora chega mesmo a falar em “humildade”, dando-lhe outro sentido, que não é o de Espinosa: se para este a humildade é contemplação da própria impotência, para a autora ela é “dedicação plena de devoção”, que o gesto da criada deixaria entrever. Se, agora, reunirmos estes termos e expressões àquele “amor espiritual a Deus”, não poderíamos ver aí uma interpretação um tanto “piedosa”, isto é, religiosa, e espiritualista da filosofia de Espinosa, mas também das obras de Vermeer? Mas deixamos ao leitor um julgamento mais apurado e justo do livro. Em todo caso, é verdade que, por outro lado, o texto de Hornäk deixa entrever que humildade, paciência, quietude e concentração querem exprimir apenas um estado de alegria ativa, em que se fundem atividade e passividade, ação e contemplação, obra e expectador, texto e leitor. Para Hornäk, Vermeer desfaz de tal forma a oposição entre interioridade e exterioridade, que o observador pode tomar parte na atitude contemplativa da personagem figurada na tela.

Mas a conclusão talvez mais importante de Hornäk, nesse momento de seu percurso interpretativo, é a de que as figuras retratadas nos quadros de Vermeer não narram acontecimentos, mas exprimem a eternidade. Na concentração tem-se o elemento da atenção – e Hornäk não deixa de lembrar pelo menos um intérprete de Vermeer que tenha destacado o fato de que na arte holandesa do XVII ocorreu a representação do mais alto grau de atenção envolvido na atividade doméstica (Hornäk 3, p. 384). Concentração, atenção, presente. Para os zen-budistas, a beatitude não se faz fora do tempo presente, esse tempo que é o mais difícil de ser vivido, como dizia Jorge Luis Borges. E se não narra acontecimentos, nem por isso Vermeer figura naturezas mortas congeladas no tempo (como se tal fosse possível). Em vez disso, o pintor “dilata o passo temporalmente mensurado para uma duração que nos possibilita a eternidade” (Hornäk 3, p. 394), escreve Hornäk. E então compreendemos que o leite jorrado da leiteira “flui eternamente” (Hornäk 3, p. 396). O leite sendo derramado é um “transcurso”, é duração eterna ou um “demorado agora” no todo da eternidade.

Muitos intérpretes falaram do “enigma” na obra de Vermeer. Para Hornäk este enigma consiste em tornar visível o que é da ordem do invisível: a eternidade e a imanência. Mas não é isso o que precisamente Espinosa nos faz ver, sobretudo com sua Ética ? A diferença é que enquanto aí os “olhos da alma” são as demonstrações geométricas da mente, em Vermeer os “olhos da mente” são os próprios olhos do corpo diante da visibilidade de uma obra que mostra a imanência e eternidade dos gestos, das coisas, do homem. Hornäk não hesita em afirmar que “na obra de Vermeer se realiza a imanência”. E poderia ser diferente? Não seria correto dizer que, se todos os modos são modificações da Substância única que lhes é imanente, como eles a ela, a própria Substância está de algum modo em todas as coisas, em todos os gestos, em todos os homens, em todas as obras? Correto, mas, precisamente, ela se faz presente de maneiras diferentes. Há maneiras e maneiras de exprimir o Ser. Podemos fazê-los mais ou menos. Às vezes se está mais próximo de si mesmo; às vezes se está tão longe de si que é então a quase pura passividade o que impera. Neste último caso, um gesto, uma obra, uma ação exprimem apenas a exterioridade das relações e já não dizem quase nada, ou fazem muito pouco pela perfeição de nossa natureza e por nossa beatiude.

Sara Hornäk relembra uma passagem de O Olho e o espírito, na qual Merleau-Ponty afirma que na obra de Cézanne se “produz um cintilar do ser […] em todos os modos do espaço e também na forma” (Hornäk 3, p. 415-416). O mesmo, segundo Hornäk, se passa em Vermeer. Há nele a criação de uma “outra” realidade, sua obra remete a um “para além” do que se vê e se sente, mas ele o faz justamente no que se vê e se sente . “A segurança e capacidade com que a figura representada”, escreve Hornäk ainda sobre A leiteira, “realiza sua atividade permite que a cena apareça à luz da necessidade”. Eis, em Vermeer, a potência intrínseca da própria obra, a figuração do instante que se inscreve numa ontologia do necessário e que por isso mesmo torna visível a eternidade e imanência dos gestos, dos modos, dos acontecimentos. E, assim, por caminhos diferentes encontraríamos, em Vermeer como em Espinosa, uma mesma unidade de ser e agir, uma mesma afirmação da vida no presente, uma mesma potência de agir que se inscreve no seio da atividade eterna (sempre presente) dos atributos divinos que constituem a essência da Substância absolutamente infinita.

Deleuze amava dizer que a alegria espinosana realiza-se no mesmo ato de um bom encontro. Não se sabe se algum dia Espinosa encontrou-se com Vermeer, apesar de terem morado próximos um do outro, pelo menos durante os 17 anos em que Espinosa, mesmo tendo habitado diferentes cidades, não se afastou muito de Delft, a cidade de Vermeer. Mas Hornäk consegue realizar agora, para nós, esse bom encontro entre o filósofo e o pintor, entre a filosofia e arte, percorrendo o mesmo fio imanente que une um e outro, uma e outra, e todos nós. .

Notas

  1. Há um pequeno buraco, num dos vidros, que deixa ver o quanto eles estão embaçados, provavelmente pelo calor do ambiente interno em oposição ao frio do exterior

Referencias

  1. CHAUI, Marilena de S. “Ser Parte e Ter Parte: Servidão e na Ética IV”. In: Discurso, no. 22, 1993.
  2. ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  3. HORNÄK, Sara. Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na píntura. São Paulo: Paulus, 2010.

Marcos Ferreira de Paula – Professor de filosofia do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Acessar publicação original

A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa – JAQUET (CE)

JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: D ’AMBROS, Bruno. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.

Lançado na França em 2004, o livro de Chantal Jaquet chega ao Brasil em 2011, publicado pela editora Autêntica. A tese da união entre mente e corpo de Espinosa tem despertado o interesse de neurobiologistas e psicomotricistas pelo filósofo holandês. Porém, como toda popularização implica quase sempre numa simplificação, surge o receio de que possa haver tal simplificação de Espinosa. É neste intuito que surge o livro de Chantal Jaquet, como precaução de eventuais abusos e simplificações extremas da filosofia de Espinosa e também como um estudo aprofundado das relações entre a mente e o corpo “sob o prisma dos afetos.” (JAQUET 1, p.17)

O livro se divide em cinco capítulos, cujos títulos são: “A natureza da união do corpo e da mente”, “A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”, “A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico-político e na Ética”, “A definição do afeto na Ética III”, “As variações do discurso misto.”

“A natureza da união do corpo e da mente”

Há muito tempo, desde Leibniz, os comentaristas de Espinosa sempre falaram na união psicofísica em termos de paralelismo entre o corpo e a mente. No entanto Chantal Jaquet sustenta que a doutrina do paralelismo não é adequada para compreender Espinosa.

A doutrina do paralelismo é nociva à compreensão da unidade psicofísica e não conduz à uma compreensão adequada do monismo de Espinosa porque “conduz a pensar a realidade com o modelo de uma série de linhas similares e concordantes que, por definição, não se encontram.” (JAQUET 1, p.25). A doutrina do paralelismo, ainda, supõe “homologias e correspondências biunívocas entre as ideias e as coisas, a mente e o corpo”; supõe que a natureza está “condenada à uma ecolalia sem fim, a uma perpétua repetição do mesmo em cada atributo”; supõe que a unidade é uniformidade; supõe  também “uma tradução sistemática dos estados corporais em estados mentais”; e, assim, que o paralelismo “mascára tanto a unidade quanto a diferença” da união psicofísica. (JAQUET 1, p.29 – 30).

Mais adequado do que a doutrina do paralelismo, para pensar Espinosa, é a doutrina da igualdade. O próprio Espinosa sustenta que há uma igualdade entre potência de pensar e de agir, tanto em Deus como no homem, usando o mesmo adjetivo latino æqualis, tanto para a potência de pensar e agir de Deus como para a do homem. Quando Espinosa diz ordo idearum ordo rerum ele quer dizer que a ideia de um sujeito é a expressão igual de alguma coisa externa, extensa, a este sujeito pensante. Portanto “a teoria da expressão em Espinosa é regida inteiramente pelo princípio da igualdade.” (JAQUET 1, p.32)

“A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”

Chantal Jaquet sustenta que Espinosa e Descartes não estariam tão distantes no que tange aos afetos, ambos têm alguns pontos de convergências. Podemos resumir as convergências entre Descartes e Espinosa em alguns pontos básicos, principalmente nas obras As paixões da alma e na Ética : em ambos há um esforço para superar o dualismo mente/ corpo, em ambos há uma abordagem física e mental dos afetos, ambos fazem uma abordagem dos afetos por um método físico-geométrico, em ambos há uma naturalização e racionalização dos afetos, para ambos as paixões são inerentes ao ser humano, para ambos há uma ordem causal por detrás da desordem das paixões, para os dois a mente tem poder sobre as ações e ambos fundam uma “ciência” dos afetos.

Mas, quanto às divergências sobre os afetos, elas se resumem a dois pontos: um concerne à causa das paixões; o outro, à “natureza do poder da mente sobre elas” (JAQUET 1, p.57). Descartes sustenta que a causa das paixões são as ações do corpo sobre a alma e da alma sobre o corpo, ou seja, para ele as paixões são movimentos ativos. Espinosa sustenta que a causa das paixões não está de forma alguma nas ações do corpo ou da alma, ou seja, para ele as paixões são movimentos passivos tanto do corpo quanto da alma, já que ambos são igualmente ativos ou passivos, conforme aquele “princípio de igualdade” das potências que nos fala Chantal. A proximidade entre Descartes e Espinosa, segundo Chantal, está em que ambos concebem corpo e mente em termos de relação psicofísica; mas a distância que os separa está em que Descartes, em última análise, atribui a causa das paixões a uma ação corpo (JAQUET 1, p.58), enquanto Espinosa a atribui à relação do corpo e da mente com a exterioridade, na qual as ideias na mente são determinados pelo exterior (ideias inadequadas). Mas, como lembra Chantal, esse diferente entre os dois filósofos acarreta uma outra, que concerne ao poder da alma sobre os afetos (JAQUET 1, p.60): Descartes acreditava num poder absoluto da alma sobre o corpo, já que ela era a detentora de uma vontade livre capaz de controlá-lo; Espinosa fala em moderação dos afetos a partir de seu conhecimento, isto é, a partir da formação de uma “ideia clara e distinta”, ou adequada, sobre o próprio afeto passivo que, então, deixa de ser passivo (JAQUET 1, p.63).

“A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico- político e na Ética”

Chantal Jaquet trata de uma diferença significativa em duas obras de Espinosa, uma da juventude, o Breve Tratado (1660), e a Ética (1677) . No primeiro, a percepção do corpo pela mente é um efeito do corpo ainda; assim, há uma “ação recíproca da alma sobre o corpo” e vice- versa que configuraria um parentesco com Descartes. Na última, a percepção do corpo pela mente é um efeito das ideias das afecções do corpo; aqui ele “exclui toda causalidade recíproca e toma a forma de uma equivalência e de uma correspondência entre modos e atributos diferentes” estabelecendo uma ruptura completa com Descartes.

A questão, portanto, para Jaquet, é “saber se as diferenças são o índice de uma simples mudança de pontos de vista compatíveis entre si ou se elas revelam divergências que atestam uma mutação do pensamento de Espinosa.” (JAQUET 1, p.73).

Para compreender esta questão Chantal Jaquet vai para uma obra intermediária de Espinosa, que fica entre o Breve Tratado e a Ética, o Tratado teológico-político (1670), que, por sua localização intermediária entre as duas obras iniciais mostra a evolução do pensamento de Espinosa em direção à Ética.

O Tratado teológico-político tem muitas diferenças em relação à Ética; as principais tangem aos afetos, que são diferentes dos apresentados na Ética. Uma distinção importante é que no Tratado teológico-político não há, ainda, a distinção entre afetos ativos e passivos. Ali os afetos são vistos como passivos sempre. Aquilo que mais tarde a Ética vai chamar de afetos ativos estão agrupados sob a categoria de fortitudo, subdivididos em animositas e generositas.

Outro ponto que é ressaltado por Jaquet é que no Tratado teológico-político o apetite e o desejo são opostos à razão. O Tratado teológico-político não tem a intenção de fazer uma teoria dos afetos, seu objeto é outro, por isso ele não contém explicitamente uma teoria dos afetos e quando cita os afetos, cita-os sempre como paixões, não mencionando que há afetos ativos. Já na Ética há uma virada em Espinosa. Nela o afeto é definido como fruto de uma causalidade adequada ou como fruto de uma causalidade inadequada: no primeiro caso o afeto é ativo, no segundo é passivo; ou seja, os afetos ativos são ações e os afetos passivos são paixões. Os três afetos básicos – desejo, alegria e tristeza – são decorrentes desta definição. A distinção entre afetos ativos e passivos é uma inovação da Ética. Na Ética há uma “razão apetitiva e um apetite racional.” (JAQUET 1, p.93). A Ética oferece assim “uma visão mais unificada do homem, o qual não é dotado senão de uma única natureza apetitiva que se declina seja sob um modo passivo, seja sob um modo ativo.” (JAQUET 1, p.93). Na Ética “a razão torna-se essa potência ativa capaz de engendrar afetos que coíbem as paixões tristes.” (JAQUET 1, p.94).

Portanto, há uma evolução do pensamento de Espinosa, em direção à Ética, que “confirma essa orientação do sistema rumo a uma concepção mais e mais dinâmica do potência de agir.” (JAQUET 1, p.96).

“A definição do afeto na Ética III”

Uma primeira questão que aparece na Ética é referente à palavra affectus. Chantal Jaquet aponta que, dentre as várias palavras latinas à disposição – emotio, passio, commotio – Espinosa utiliza a palavra affectus e que dentre as várias traduções – emoção, paixão ou sentimento – a mais adequada é afeto.

Quanto à definição de afeto, na parte III da Ética há duas definições, uma no início (SPINOZA 2, III, def.3) e outra no final (SPINOZA 2, III, def. geral). Na primeira o afeto é ativo e passivo. Na segunda o afeto é somente passivo. Esta segunda definição é a mais problemática, porque ela é uma definição geral dos afetos e, no entanto, restringe o afeto ao seu aspecto de passividade e mental.

O problema da segunda definição do afeto é que ela é uma definição geral (generalis) e está no final da parte III, o que induz a pensar que ela é uma definição genérica que tenta abranger todos os afetos. Porém ela foca só o aspecto mental e passivo dos afetos, excluindo os ativos. Chantal Jaquet diz que ela é uma definição generalis no sentido de gênero e não de genérico, por isso ela enfatiza o aspecto passivo e mental do afeto porque desta forma, prestando atenção às características genéricas das paixões, pode-se determinar sua força, sua utilidade, sua nocividade e a potência da mente para contrariá-las: “ela é dita geral pois remete todas as paixões a um só gênero, a ideia confusa, e permite em seguida compará-las em função de sua aptidão a aumentar ou diminuir a potência de agir do homem.” (JAQUET 1, p.115)

Espinosa diz que os afetos são afecções corporais que aumentam e ajudam ou  diminuem e contrariam a potência de ação deste corpo e também que os afetos são as ideias destas afecções do corpo (SPINOZA 2, III, Def.3, p.98). Nesta definição, o afeto é definido primeiro em relação ao corpo e depois em relação à mente.

A primeira questão que o aspecto corporal do afeto implica é sobre a distinção entre afeto e afecção. Todo afeto é uma afecção corporal mas nem toda afeção corporal é um afeto, portanto, o que distingue afetos de afecções? O critério de diferenciação é a potentia agendi do corpo, ou seja, “uma afecção é um afeto se e somente se tem um impacto sobre a potência de agir do corpo.” (JAQUET 1, p.129). Desta forma os afetos se diferenciam das afecções porque eles tem a capacidade de fazer variar a potentia agendi.

Tudo tem uma potentia agendi porque a potentia agendi é uma vis existendi. Portanto, devemos entender a potência de agir como força de existir e a verdadeira potência de agir é a que tem a ver com as ações, pois repousa sobre um conhecimento adequado, porque aumenta a potência como força de existência. As ações, isto é, aquilo que um sujeito ativo faz, é causa adequada dos efeitos corporais, aumentando a potentia agendi como vis existendi.

Há quatro tipos de afetos que impactam a potentia agendi : os que aumentam ou diminuem e os que ajudam ou coíbem. Chantal Jaquet sustenta que há uma diferença entre os que aumentam/diminuem e os que ajudam/coíbem, dizendo que o segundo grupo não é somente um recurso de insistência, mas que há uma diferença de grau e natureza entre eles. O segundo grupo, que ajuda/coíbe a potência, são afecções que não aumentam nem diminuem a potência de agir do corpo, mas que “só fazem neutralizar as forças contrárias ou favoráveis.” (JAQUET 1, p.142).

Então, Chantal Jaquet elenca cinco tipos de afecções que ajudam ou coíbem a potentia agendi: 1) ajuda ou coíbe o que se opõe à destruição do que se ama ou à conservação do que se execra; 2) ajuda ou coíbe que a imagem da alegria do que se ama seja vista como causada por nós; 3) ajuda ou coíbe sentimentos que mudam de hostis à amigáveis ou de amigáveis a hostis; 4) ajuda ou coíbe alguém que faz o bem ao outro ou não; 5) ajuda ou coíbe a concepção adequada ou inadequada da impotência humana.

O afeto também é definido em relação ao atributo pensamento, à mente. Os afetos são as afecções corporais, mas também são ao mesmo tempo (et simul) as ideias destas afecções corporais, e estas ideias são modos certos e determinados da atividade eterna e infinita do atributo pensamento.

Chantal Jaquet diz que há três maneiras de compreender o advérbio et simul, que se refere à simultaneidade das afecções corporais e mentais. Primeiro, et simul significa que os afetos são psicofísicos. Segundo, et simul significa que os afetos são psíquicos. Terceiro, que eles são físicos. Desta forma há três categorias de afetos, os psíquicos, os físicos e os psicofísicos.

“As variações do discurso misto”

Espinosa faz três divisões concernentes aos afetos: ações e paixões, primitivos e compostos e bons e maus. Desta forma ele não visa uma enumeração exaustiva dos afetos porque os afetos, de um modo geral, se reduzem à três, o desejo, a alegria e a tristeza. Os outros afetos compostos são decorrentes destes afetos primitivos.

Mas Chantal Jaquet estabelece três categorias de afetos, segundo a referência seja mais o corpo, a mente ou ambos, embora todo afeto conserve uma natureza psicofísica. Primeiro há os afetos que se referem ao corpo e à mente, simultaneamente: são os propriamente psicofísicos, que têm “uma realidade psicofísica, sendo objeto de um discurso misto exprimindo a mente e o corpo em paridade.” (JAQUET 1, p.168). Dentro dos psicofísicos, estão os três afetos originários – desejo, tristeza e alegria – e alguns derivados, como o orgulho, a humildade e o amor a Deus. Depois, há os afetos propriamente corporais e Espinosa põe a carícia, a hilaridade, a dor e melancolia como afetos corporais também porque eles “têm um impacto sobre a potência de agir e a fazem variar” (JAQUET 1, p.172). Além destes há também o fastio e o tédio. Por fim, há os afetos mentais. Chantal Jaquet elenca o amor intelectual de Deus, a glória, o arrependimento e a saudade como afetos propriamente mentais.

Diz Espinosa que “Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente.” (SPINOZA 2, III, prop.11). Desta forma, todo discurso sobre os afetos, sejam eles mentais ou corporais, é “de essência psicofísica.” (JAQUET 1, p.176). Apesar de a ordem das ideias ser a mesma que a ordem das coisas, nem todo afeto concerne à mente e ao corpo da mesma maneira. Isso remete à tese de Chantal Jaquet de que o monismo espinosano deve ser concebido como igualdade de potência e não paralelismo. “O corpo e a mente são apreendidos ao mesmo tempo sem ter necessariamente o mesmo tempo” (JAQUET 1, p.181, grifo da autora). Por isso o discurso sobre os afetos é sempre misto, nunca é só corporal nem só mental.

Desta forma Espinosa “convida a romper com uma concepção simplista da igualdade entre a potência de pensar e de agir que faria dela a resultante de uma atividade análoga no corpo e na mente ou o reflexo idêntico do que se passa em cada um dos objetos.” (JAQUET 1, p.183). Isto quer dizer, a título de conclusão, que a doutrina da expressão de Espinosa  não supõe paralelismo nem causalidade recíprocas, mas, sim, igualdade, que é antes de tudo uma igualdade de potência; e esta é a tese central de Chantal Jaquet. A mente tenta sempre ver paralelismo e causalidade recíproca entre o corpo e a mente, mas, na verdade, eles não existem, a não ser como pensamentos. A igualdade da potência de pensar e de agir não elimina, contudo, as desigualdades de expressão da mente e do corpo, porque eles exprimem atributos que são diferentes (pensamento e extensão, donde a desigualdade expressiva), mas que constituem a essência de uma mesma Substância (donde a igualdade de potência).

“Conclusão”

É importante ressaltar que o livro da filósofa francesa Chantal Jacquet está em diálogo com o livro do neurocientista português António Damásio Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos . Nesta sua obra, o neurocientista resgata o filósofo holandês para justificar a atualidade de seu monismo sobre o dualismo cartesiano dentro da neurociência contemporânea.

No entanto, ao ver de Chantal Jaquet, o neurocientista português “não está sempre à altura de seu modelo e carece às vezes de rigor, porque continua a falar de emergência da mente a partir do corpo, de passagem do neural ao mental.” (JAQUET 1, p.188). Esta crítica da filósofa francesa se confirma no trecho onde o próprio Damásio diz que “é preciso compreender que a mente emerge de um cérebro ou de um cérebro situado no corpo propriamente dito com o qual ela interage; que, devido à mediação do cérebro, a mente tem por fundamento o corpo propriamente dito.” (DAMÁSIO 3, p.91). Para Jaquet, Damásio tende a pensar a mente em termos de emergência a partir do corpo, quer dizer, do cérebro. Para Damásio o cérebro causaria a mente – a alma, a consciência, o pensamento – porque ele pensa a relação psicofísica em termos de paralelismo. António Damásio erra ao apresentar a unidade do corpo e da mente “sob a forma de um paralelismo.” (JAQUET 1, p.189). Do estudo dos afetos em Espinosa, Chantal Jaquet extrai duas lições. A primeira lição é “banir toda busca de interação, de influência ou de causalidade recíproca entre a mente e o corpo para pensar unicamente em termos de correspondência e de correlação.” (JAQUET 1, p.187). A segunda lição é que “o modelo espinosista da união psicofísica não repousa sobre um paralelismo, mas sobre uma igualdade.” (JAQUET 1, p.188). Dessas duas lições sobre o estudo dos afetos conclui-se que há uma identidade entre a ordem e a conexão das ideias e das coisas; mas que tal identidade não “deve mascarar a diferença de expressão própria aos modos de cada atributo.” (JAQUET 1, p.190).

Referências

  1. JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
  2. SPINOZA, Benedictus de. Ética . Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
  3. DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das letras, 2004.

Bruno D ’Ambros – Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Acessar publicação original

Livros e impressos: retratos do Setecentos e do Oitocentos – NEVES (HH)

NEVES, Lúcia Maria P. das (org.). Livros e impressos: retratos do Setecentos e do Oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009, 333 p. Resenha de: Resenha de: CAMPOS, Adriana Pereira. Crítica e opinião na imprensa brasileira dos Setecentos e Oitocentos. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p. p.350-356, nov./dez. 2011.

Com o fenômeno da expansão das pós-graduações no Brasil, as coletâneas registraram crescimento conjunto. Essa feliz combinação permite que hoje se produzam no país livros temáticos em diversos campos de pesquisa, com enriquecedora contribuição de distintos autores. Esse é o caso da obra Livros e impressos, organizada pela historiadora carioca Lúcia Maria Pereira das Neves, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. O objeto central de análise do livro compreende a constituição histórica da imprensa e do mercado editorial no país, abordados a partir da visão particular dos autores-colaboradores.

A diversidade de abordagens reunidas no volume em questão, contudo, só fez realçar a unidade temática que uma obra do gênero deve perseguir, deixando ao largo o risco, sempre presente, de o empreendimento não ultrapassar os limites de uma simples compilação. Os leitores poderão observar, assim, a recorrente preocupação dos autores em examinar a construção de uma esfera pública de crítica, bem como a constituição da opinião pública no Brasil na passagem do Setecentos para o Oitocentos. A imprensa e o mercado editorial convertem-se em objeto das inquietações dos autores, assim como, a formação da cultura política nacional. Não se estranha, portanto, que dos dez capítulos da coletânea, seis façam referência explícita a Jürgen Habermas (1984), formulador do conceito de esfera pública, foco de análise do livro. Outra preocupação recorrente da obra consiste na constituição dos espaços de formulação das linguagens políticas. Com efeito, o leitor confronta-se com o fato de a imprensa possuir papel fundamental na formação do Estado brasileiro, enquanto lugar da crítica e da autonomia. O livro dedica-se, portanto, ao ambicioso projeto que inclui objeto e instrumental teórico da história cultural para decifrar problemas da história intelectual (do livro e dos impressos) e da história política.

A coletânea examina também algumas noções fundamentais para a compreensão do surgimento da imprensa no Brasil. Mais precisamente, como a formação da esfera pública no país se processou por meio da transição entre periódicos mais típicos do Antigo Regime, submetidos ao escrutínio do monarca, para outros de conteúdo mais crítico e de opinião. Os primeiros compreendiam as gazetas e, os segundos, os jornais. Essa delimitação fica mais claramente demarcada na Parte I da coletânea intitulada Imprensa, livros e representações.

No capítulo de abertura desta parte, Maria Beatriz Nizza da Silva elabora um quadro dos primeiros anos de desenvolvimento da imprensa no Brasil, quando se criou a Impressão Régia em 13 de maio de 1808. A autora explora a Gazeta do Rio de Janeiro e a Idade d’ouro do Brasil (Bahia), que seguiam rigidamente o modelo das gazetas, cujo objetivo resumia-se a divulgar notícias recolhidas das grandes metrópoles europeias. De igual modo, houve a tentativa de reproduzir no Rio de Janeiro e na Bahia o sistema dos almanaques, periódico de divulgação de informações dos calendários solar, lunar, religioso, histórico etc. A iniciativa não logrou êxito, talvez porque os brasileiros já dispusessem de notícias da Corte no Rio do Janeiro por meio do Almanaque de Lisboa, que circulava amplamente no Brasil. O experimento mais crítico da época constituir-se-ia nos jornais literários, que versavam sobre história, literatura, mineralogia, entre outros assuntos, e pretendiam despertar o interesse do leitor nas artes, na literatura e na ciência. Além disso, durante a década de 1820, começavam a circular no Brasil os primeiros periódicos de divulgação do saber político, tais como o Seminário cívico, O bem da ordem, O amigo do rei e da nação e o Conciliador do Reino Unido. Obedecendo ao formato dos jornais, essas folhas já revelam a necessidade de liberdade da imprensa e a recusa em obedecer às limitações do rígido modelo das gazetas.

No segundo capítulo da primeira parte, Neil Safier discute a contribuição de um editor em particular à formação da opinião pública emancipacionista no Brasil. O autor examina a adesão de Hipólito da Costa à causa da emancipação dos escravos e da erradicação do tráfico por meio de seus artigos publicados no Correio braziliense. Debate ainda, amplamente, a posição de Hipólito da Costa em relação a sua defesa da extinção gradual da escravidão, que previa como fase preliminar a abolição do comércio de escravos, após o que se perseguiria, prudentemente, a extinção total da escravatura. Neil Safier julga a posição de Hipólito da Costa como ambivalente e ambígua, desconsiderando, porém, ser essa a posição de diversos defensores da emancipação dos escravos prevalecente no exterior. O juízo parece mais uma cobrança anacrônica do que uma apreciação balanceada do posicionamento político do editor, que escrevia do exílio na Inglaterra. Hipólito, cumpre notar também, reproduzia a ideia predominante à época na Europa, justamente a de emancipação gradual, o que não era pouco ao se considerar tratar-se de um membro da elite brasileira. À parte essa ressalva pontual, a contribuição de Neil Safier é importante por colocar Hipólito como editor e formador de certa opinião pública no país, propugnando teses emancipacionistas em pleno alvorecer do século XIX.

Empalmando a polêmica da emancipação escrava, o jornal de opinião editado por Hipólito inaugurava a sua trajetória preocupado com a divulgação de ideias novas no Brasil, reverberando as noções de liberdade numa terra marcada pelo cativeiro.

Lúcia Maria Bastos encerra a parte primeira do livro com a discussão da imprensa como espaço de crítica e de consagração servindo-se das resenhas de livros publicadas em folhas científicas e literárias no Oitocentos. A divulgação das obras convertia-se, segundo a autora, em ponto de interesse comum para uma elite intelectual em formação à época. As livrarias e as tipografias transformavam-se em espaços de socialização dos integrantes dessa elite, despertando em tais indivíduos o interesse por novidades políticas veiculadas nas obras debatidas. A historiadora, ademais, conclui que as reuniões conferiam prestígio aos participantes que, assim, alcançavam destaque na boa sociedade do Rio de Janeiro.

Na segunda parte do livro, constituída de quatro capítulos, verifica-se clara preocupação com a análise do papel dos impressos nas práticas políticas do período. No primeiro capítulo, Roger Chatier introduz a discussão conceitual a respeito da revolução da leitura operada no século XVIII. Do inventário de suas pesquisas, Roger Chatier afirma que essa transformação no século do Iluminismo foi apenas uma das revoluções da leitura, pois outras a precederam “ligadas à invenção do códex, às conquistas da leitura silenciosa, à passagem do modelo monástico da escrita para o escolástico da leitura” (NEVES 2009, p. 101). Outras ainda a sucederiam no século XIX, como “a democratização do público do impresso, e, hoje, com o aparecimento do texto eletrônico” (NEVES 2009, p. 102). Ele discorda das teorias que opõem uma leitura tradicional (intensiva) a uma leitura moderna (extensiva), esta última como a característica revolucionária única no século XVIII. Na primeira, o leitor encontrar-se-ia limitado a um corpus tradicional de textos lidos, relidos e memorizados. Na segunda, consumiria avidamente impressos novos e efêmeros, submetendo-os à crítica. O autor alerta, porém, que os romances e a literatura de cordel eram lidos, relidos e memorizados em pleno Setecentos. Subsistia, portanto, nessas novas formas de impressos, certa leitura intensiva. Desse fato, conclui Chartier ter havido, sim, certa multiplicidade das leituras à época. Com efeito, a variedade da produção impressa e a criação de novos tipos de jornais contribuíram não apenas para a formação de uma esfera pública de opinião, mas também para o estabelecimento dos pilares de uma sociabilidade política que colocou os negócios do Estado sob o escrutínio da crítica. A revolução ocorrida no século XVIII residiu, por conseguinte, na capacidade de multiplicar a leitura dos impressos.

Ainda na segunda parte do livro, José Augusto dos Santos Alves destaca a oralidade como um dos elementos constitutivos da opinião pública na passagem do século XVIII para o XIX. O autor evidencia a associação entre a oralidade e a escrita na divulgação da notícia e da informação, bem como na constituição do sujeito político e da opinião pública. A ocorrência do espaço público liberal firma- -se não apenas no encontro de leitores cultivados, esclarece o autor, como também no de leitores populares, tanto alfabetizados quanto iletrados, instaurando o debate mais amplo dos acontecimentos, anteriormente restrito aos grupos dominantes. As notícias transmitidas em voz alta, a leitura em círculos e outros encontros de divulgação oral das informações escritas configuram o transbordamento da crítica para grupos mais extensos, convertendo a palavra em “coisa pública” (NEVES 2009, p. 10).

Marco Morel, de sua parte, aborda a mudança no modelo de imprensa regular do Oitocentos, quando as chamadas gazetas, periódicos tradicionais das monarquias cederam lugar aos jornais, que se pretendiam formadores de povos e nações. A imprensa do Antigo Regime, como as gazetas, experimentou mudanças importantes e assimiladas posteriormente. Marco Morel expõe as transformações na Gazeta do Rio de Janeiro, órgão oficioso da Corte recém- -chegada à América portuguesa. Atribui a ampliação no tamanho das folhas do periódico à afluência de notícias e à liberdade de imprensa após a adesão de D.

João ao moderno constitucionalismo. Incluíam-se em suas páginas, por solicitação da própria gazeta, cartas dos leitores interessados em divulgar as luzes. Introduziam-se, paulatinamente, comentários do editor aos textos e documentos transcritos, assim como se noticiavam proclamações políticas de diversas localidades do Brasil. O movimento de autonomia do país provocaria a ampliação das opiniões e a redução das transcrições, demarcando a transição da Gazeta para um jornal, que se consolidaria em maio de 1824 com a nova denominação de Diário fluminense. Semelhante trajetória, como mostra Marco Morel, percorreu a Gazeta pernambucana, cuja conversão operou-se entre os anos de 1822 e 1824. Da trajetória descrita, portanto, observa-se que a mudança de um periódico do tipo do Antigo Regime para um mais crítico e de opinião pode ter se operado ainda no interior mesmo das gazetas, cujos redatores transformavam sua intervenção “na busca de se formular um ideário que se tornasse hegemônico, das tentativas de imposição de determinadas linhas políticas e de campos de interesse” (NEVES 2009, p. 179).

O último capítulo da segunda parte, de autoria de Marcello Basile, trata da questão federalista, cuja faceta ficou mais conhecida na historiografia como a descentralização promovida pela reforma constitucional concretizada pelo Ato Adicional. Segundo o autor, o assunto adentrou o Parlamento a partir da emergência do grupo de liberais exaltados que, por meio da imprensa e de suas associações, tiveram amplo êxito na repercussão do tema junto à sociedade.

Desse capítulo, depreende-se a importância da imprensa na mobilização política durante o período, que impunha certa pauta de assuntos no legislativo do Império. Verifica-se, igualmente, aquilo que Marco Morel e outros autores da coletânea chamam de imprensa de opinião, pois se nota os jornais dos liberais exaltados propalando a federação como princípio de participação política, enquanto a imprensa moderada e, sobretudo, áulica, rejeitava a ideia. O autor explora a imprensa como fonte, pois em sua narrativa a respeito das inúmeras votações da matéria, ele se deparou com diversos intervalos temporais sem registro nos anais. A solução empregada foi o recurso a jornais como o Aurora fluminense e o Jornal do commercio, solucionando, assim, tais omissões e resgatando importantes pronunciamentos que forneceram a sucessão quase diária das votações da questão federal no parlamento brasileiro.

A terceira parte do livro, intitulada “Livros, cultura e poder”, adentra os meandros da produção e da mercantilização dos livros. O primeiro capítulo, de lavra de Luiz Carlos Villalta, discute a vigilância do Antigo Regime sobre os livreiros, os livros proibidos e as livrarias em Portugal. Essa interessante investigação desvenda os caminhos, ou melhor, os descaminhos dos livros interditos e os expedientes empregados pelos livreiros para satisfazer o mercado.

O autor utiliza os documentos da Intendência Geral de Polícia e da Inquisição, responsáveis pela censura literária em fins do Setecentos e inícios do Oitocentos. De tais fontes, o autor identificou, por exemplo, as artimanhas dos importadores em encomendar os livros em folhas, deixando para encaderná-los em Portugal.

Outro recurso para contornar os censores consistia na alteração dos títulos para o correspondente em latim, despistando o conteúdo interdito dos livros.

Um estratagema adicional residia no envio de listas truncadas aos fiscais, omitindo-se, convenientemente, autores das obras ou mencionando-se vagamente o seu título. Eventualmente, recorria-se à autorização expressa de algumas pessoas poderem receber livros defesos como professores e membros do clero. A vigilância, no entanto, recaía sobre a troca desses livros com pessoas não autorizadas. Certos livreiros, assim, obtinham licenciamento para realizar o comércio de obras proibidas, mas os censores se incomodavam com os desvios que esse comércio autorizado assumia depois do ingresso das obras em Portugal.

Inclusive, os próprios comerciantes participavam dos esquemas para o contrabando dos títulos cujo destino deveria ser estrito às pessoas autorizadas pelo governo português. Outro ponto que o capítulo colabora para a reflexão geral da coletânea é a formação de certo ambiente de discussão e crítica, de onde germinaria uma esfera pública, conforme definição de Habermas. As livrarias convertiam-se em espaços de acesso à leitura de livros defesos e, amiúde, cediam lugar a discussões sobre o próprio conteúdo apreendido. Os indivíduos podiam dar voz à razão pública por meio do debate e da reflexão coletiva das obras lidas. O autor sugere em suas conclusões que as obras que ultrapassaram o bloqueio da censura contribuíram, de certa forma, para minar as representações e a fidelidade ao soberano, na medida em que seus leitores terminaram por instaurar um ambiente de crítica e de recepção de novas ideias.

O penúltimo capítulo do livro (segundo da terceira parte), de Ana Carolina Galante Delmas, recorre também a uma abordagem criativa e cuja interpretação parece muito sugestiva dos modos particulares de as pessoas lidarem com o poder. As dedicatórias às autoridades constantes nos impressos, para a autora, não revelam simplesmente um gesto de subserviência ao poder. Em sua opinião, significam importante expressão textual da interdependência na política. Mais uma vez, neste capítulo, verifica-se a preocupação com a formação da esfera pública pelo debate que se veiculava nos periódicos e livros em circulação. No início do Oitocentos, no entanto, a impressão constituía-se em privilégio concedido ao livreiro que se dispunha a ingressar na tarefa de editoração. As obras, por consequência, possuíam significado semelhante, uma vez que as bibliotecas tornavam-se a personificação de prestígio, avaliadas pela qualidade e raridade de seus volumes. A biblioteca real, portanto, deveria corresponder ao prestígio do soberano. Por outro lado, a obra que constasse nas prateleiras da realeza ganhava em prestígio e a homenagem postada no livro podia garantir o ingresso nesse templo dignitário. O autor, ao dedicar seus escritos ao monarca, por exemplo, podia garantir sua exclusão no rol dos defesos, o que representava grande vantagem. Além disso, a dedicatória poderia contribuir para o estreitamento dos laços com o rei e denotar, por outro lado, como bem observou Ana Carolina, os impulsos políticos de uma época. No Brasil, por exemplo, as homenagens postadas nos livros demarcaram, nos anos iniciais do Oitocentos, o desejo de permanência de D. João, o desejo de melhorar a sorte do Brasil com a presença da Corte nos trópicos. O levantamento das obras, elevadas à posição de reverência às autoridades, mostra que circulavam no período colonial, inclusive nos dois lados do Atlântico, volumes portadores de ideias ilustradas, em parte porque seus respectivos autores logravam alcançar a graça real por meio do galanteio registrado nas páginas iniciais.

Tania Maria Bessone encerra a coletânea com a história do rico e numeroso acervo da biblioteca de Rui Barbosa, conservado por toda a família após a morte de seu proprietário. Mantida na íntegra, fato raro na história das bibliotecas particulares, o conjunto desses livros demonstra, consoante a autora, a ambição consciente de Rui Barbosa em causar impacto com suas aquisições. Mais uma vez o livro, ou melhor, a sua coleção, conferia marca distintiva de prestígio a um cidadão. Tânia Bessoni evidencia em seu texto que poucas bibliotecas com essa natureza sobreviveram aos seus donos e isso, talvez, constitua-se numa das características mais preciosas da Biblioteca de Rui Barbosa. Nela é possível não apenas encontrar valioso acervo, mas também contabilizar obras que podiam granjear distinção ao colecionador. A preservação do mobiliário, bem como da organização dos livros, demonstra a dedicação de homens como Rui Barbosa para com suas bibliotecas. Ademais, trata-se da prova como os impressos adquiriram prestígio no Brasil e passaram a ocupar lugar de destaque na residência dos homens cultos do país.

Como última palavra, é mister louvar a iniciativa de Lúcia Maria Pereira Neves, que com o livro em tela não apenas nos remonta à história dos impressos e dos livros no Brasil, como também esclarece ao leitor os meandros da formação da opinião pública no Brasil imperial. Os diferentes textos, ao cobrirem o fenômeno da construção da imprensa e do mercado editorial, bem como da formação da opinião pública no país, revelam, em suas diferentes abordagens e temas, aspectos essenciais da política na passagem dos Setecentos para o Oitocentos, além de apontar aos interessados fecundas linhas de investigação futura.

Referências

 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigação quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

NEVES, Lúcia Maria P. das (org.). Livros e impressos: retratos do Setecentos e do Oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.

Adriana Pereira Campos – Professora associada Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: [email protected] Avenida Fernando Ferrari, 514 29075-910 – Vitória – ES Brasil.

Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1531-1800) – FRANÇA (HH)

FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1531-1800). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, 356 p. Resenha de: GANDELMAN, Luciana. A cidade e o mar: o olhar dos viajantes sobre o Rio de Janeiro e os circuitos marítimos entre os séculos XVI e XVIII. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p.325-330, nov./dez. 2011.

Um soldado alemão rumando para a região do Rio da Prata a serviço da Coroa espanhola. Um piloto francês embarcado nos sonhos da França Antártica. Um capitão holandês de uma fragata corsária retornando de confrontos com portugueses no Golfo da Guiné. Dois irmãos galegos marinheiros em viagem à Terra do Fogo, a serviço da Coroa espanhola, comandando uma tripulação portuguesa. Um poeta e suposto religioso inglês vira-mundo que chega ao Rio de Janeiro na fragata do recém-nomeado governador português. Um marinheiro inglês que chega ao Rio de Janeiro em uma embarcação de comerciante londrino com 500 pipas de vinho. Um engenheiro francês vindo à América do Sul, a mando do rei da França, para estabelecer uma colônia-presídio no estreito de Magalhães. Um tipógrafo alemão a caminho de uma missão inglesa na Índia, carregado de 250 cópias do Evangelho de São Mateus em português. Um pastor alemão em rota para a Índia abordo de um navio inglês, repleto de adoentados e esfomeados, que ancora na Guanabara. Degredados seguindo para cumprirem suas penas na Oceania. Franceses e ingleses se aventurando na empreitada da circum-navegação. Essa é uma amostra da grande riqueza de trajetórias cujos testemunhos nos oferecem a cuidadosa pesquisa histórica e seleção de textos empreendida por Jean Marcel Carvalho França em sua antologia: Visões do Rio de Janeiro colonial.

A cidade que emerge desses testemunhos também é múltipla e em transformação. E isto torna-se bastante claro quando percorremos as descrições selecionadas pelo organizador da coletânea. Segundo o poeta Richard Flecknoe, escrevendo em 1649, A cidade antiga, como testemunham as ruínas das casas e igreja grande, fora construída sobre um morro. Contudo as exigências do comércio e do transporte de mercadorias fizeram com que ela fosse gradativamente transferida para a planície. Os edifícios são pouco elevados e as ruas, três ou quatro apenas, todas orientadas para o mar (FRANÇA 2008, p. 43).

Nas palavras do comandante inglês John Byron, escritas em 1764, por sua vez, podemos entrever a cidade enriquecida do período posterior ao auge do ouro e de seu estabelecimento como cabeça de governo e um dos portos predominantes sobre o Atlântico: O Rio de Janeiro está situado ao pé de várias montanhas […]. É dessas montanhas que, por meio de um aqueduto, vem a água que abastece a cidade. […] O palácio (do vice-.rei), além de ser uma suntuosa construção de pedra, é o único edifício da cidade que conta com janelas de vidro, pois as casas só dispõem de pequenas gelosias. […] As igrejas e os conventos locais são magníficos. […] As casas, quase todas de pedra e ornadas com grandes balcões, têm em geral três ou quatro andares (FRANÇA 2008, p. 148-149).

A cidade se modifica, portanto, não somente diante dos diferentes olhares que seus observadores lançam sobre ela, mas também em virtude das intensas transformações enfrentadas por este porto de crescente importância na América portuguesa ao longo de três séculos. Constante nas observações dos viajantes é a menção à existência de numerosa população de escravos e agregados familiares, fossem estes de origem africana ou nativos e mestiços. Igualmente predominantes são as observações acerca das manifestações religiosas e as descrições de igrejas e mosteiro, sendo essas observações previsíveis em um grupo de viajantes estrangeiros, muitos deles protestantes. Uma bibliografia bastante extensa, produzida não só por historiadores, estabeleceu e estabelece ainda um profícuo diálogo com a literatura de viagens, ainda que focada especialmente na dos viajantes do século XIX, e já discutiu as implicações e os desafios daqueles que buscam trabalhar com o olhar dos viajantes.1 Conforme referenciado pelo autor em seu texto de introdução à antologia, a obra apresenta 35 descrições da cidade do Rio de Janeiro elaboradas por viajantes de diversas procedências, cujas viagens respondiam igualmente aos mais variados propósitos, sendo a primeira datada de 1531 e a última de 1800.

Trata-se da seleção de trechos de livros, cartas e escritos que fazem algum tipo de referência ao Rio de Janeiro e seu entorno. Alguns destes trechos já haviam sido transcritos ou referenciados por historiadores e memorialistas, sem, no entanto, contar com um trabalho tão circunstanciado de contextualização e organização. Cada relato é precedido por um breve, porém bem elaborado, artigo de introdução onde são oferecidas notas biográficas do viajante em questão e explicações acerca da viagem na qual se insere o relato. Reside nesses textos explicativos uma parte da preciosidade do trabalho feito por Carvalho França e que possibilita ao leitor um aproveitamento dos testemunhos que não se limita à descrição da cidade do Rio de Janeiro, mas que oferece também, por exemplo, pistas acerca dos circuitos mercantis do período, da organização da navegação e da paulatina reestruturação dos impérios ultramarinos no período moderno.

A escolha das edições foi cuidadosa e deu preferência, como afirma o autor, sempre que possível, às primeiras edições ou edições consideradas mais completas e cuidadas das obras. Característica essa confere à antologia um caráter bastante útil, não somente para o leitor em geral, mas também para o público acadêmico. Houve por parte do autor um investimento e uma preocupação com a elaboração das versões para o português, uma vez que se trata na sua quase totalidade de textos publicados em língua estrangeira, havendo, como este reconhece na introdução, a modificação dos mesmos em nome da clareza da leitura. Isto significa que, se para o leitor em geral o texto ganha em facilidade de compreensão, para o especialista pode tornar necessário o cotejamento com os originais.

Organizados em ordem cronológica, os 35 testemunhos selecionados pelo autor podem ser divididos da seguinte maneira: 1) três são anteriores à União Ibérica e estão concentrados nas décadas de 1530-1550; 2) dois devem ser situados no período do domínio filipino; 3) dois são marcados pelo contexto dos conflitos da chamada Guerra de Restauração, entre 1640 e 1668; 4) um, pertencente a François Froger, diz respeito justamente à década das primeiras descobertas na região mineradora e aponta notícias, inclusive, sobre a região de São Paulo; 5) dois relatos são das primeiras décadas do século XVIII, sendo um deles testemunha da invasão francesa liderada pelo capitão Duguay-Trouin; 6) cinco testemunhos encerram a primeira década do século XVIII, incluindo os cruciais anos do governo de Gomes Freire de Andrade, 1º Conde de Bobadela, que se encerraria com a transformação da cidade em cabeça do governo geral do Estado do Brasil, já no governo de Antônio Álvares da Cunha; 7) vinte dos relatos dizem respeito à segunda metade do século XVIII e testemunham o definitivo adensamento da presença de reinos europeus, como a Inglaterra, na Ásia e na Oceania.

O espaço da resenha seria pequeno para tentarmos mapear devidamente os contextos aos quais pertencem todos esses depoimentos e suas respectivas implicações para esses mesmos relatos. Deve-se destacar, entretanto, a amplitude cronológica e histórica dos testemunhos reunidos.

Publicado pela primeira vez em 1999, e contando presentemente com a terceira edição de 2008,2 a antologia proposta por Jean Marcel Carvalho França tem por objetivo tirar as descrições do Rio de Janeiro da obscuridade e do desconhecimento. Os testemunhos selecionados, entretanto, como argumenta o próprio organizador, não se limitam a descrições acerca da cidade e seu cotidiano, muitas vezes nos dão indicações acerca da visão que esses europeus registraram da natureza circundante e do próprio continente americano de maneira mais ampla. Além disso, o leitor passa a conhecer bastante as características do porto da cidade e suas condições de navegação. Pode-se dizer que a obra cumpre seus objetivos e justifica, desta maneira, as reedições disponíveis, bem como as que futuramente sejam realizadas com o intuito de garantir aos leitores e pesquisadores acesso a esse rico acervo de testemunhos.

Para concluir, cabem alguns breves comentários suscitados pela própria fertilidade da antologia reunida na obra resenhada. França nos apresenta mais do que a riqueza das descrições da cidade do Rio de Janeiro e seu entorno, revela-nos igualmente um pouco das mudanças sofridas no papel da América dentro do Império colonial português e mesmo a transformação dos circuitos comerciais, da navegação e do papel desempenhado por outras nações europeias no desenvolvimento dos demais circuitos coloniais do período. Esse verdadeiro mosaico contradiz, de certa maneira, as próprias alegações de França quando este, na introdução, ressalta a política “ciumenta” da Coroa portuguesa e o consequente isolamento de sua colônia americana em relação a seus visitantes estrangeiros. Mesmo quando os testemunhos nos deixam entrever as cautelas e receios de governadores e representantes régios ou colonos em comercializar e permitir contato com navegadores e embarcação de súditos de outros 2 A antologia de França foi desdobrada ainda em outra importante seleção de relatos de viajantes, ver: FRANÇA 2000.

monarcas, a própria riqueza dos depoimentos e das circunstâncias que os envolvem nos permite pensar mais em conexões do que em isolamento.

Conexões, circulação, alianças, confrontos e compromissos, às vezes os mais improváveis, fizeram parte desse universo, como procuramos destacar no início deste texto. Entre o “ciúme mercantilista” e os entrecruzamentos de uma aventura ultramarina que se constrói por meio de diferentes níveis de interdependência e que se espalha concomitantemente nas mais diversas direções, encontramos, para retomarmos uma imagem de A. J. R. Russell-Wood, um mundo em movimento (RUSSELL-WOOD 2006). São justamente esses movimentos conectados, em alusão ao conceito de Sanjay Subrahmanyam, que aparecem belamente representados em Visões do Rio de Janeiro colonial (SUBRAHMANYAM 1999).

Referências

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. 3 vols. São Paulo: Metalivros, 1994.

FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos (1582-1808). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

GALVÃO, Cristina Carrijo. A escravidão compartilhada: os relatos de viajantes e os intérpretes da sociedade brasileira. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 2001.

KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

LEITE, Miriam L. Moreira. Livros de viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

LISBOA, Karen M. A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec, 1997.

MARTINS, Luciana de Lima O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

RUSSELL-WOOD, A. J. R. Um mundo em movimento. Lisboa: DIFEL, 2006.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SELA, Eneida Mercadante. Desvendando figurinhas: um olhar histórico para as aquarelas de Guillobel. Dissertação de mestrado. Campinas: IFCH/ UNICAMP, 2001.

______________________. Modos de ser, modos de ver: viajantes europeus e escravos africanos no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Ed. da UNICAMP, 2008.

SLENES, Robert W. A Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected histories: notes towards a reconfiguration of Early Modern Eurasia. In: LIEBERMAN, Victor (ed.). Beyond binary histories: re-imagining Eurasia to c. 1830. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1999, p. 289-316.

VIANA, Larissa Moreira. As dimensões da cor: um estudo do olhar norte americano sobre as relações interétnicas, Rio de Janeiro, século XIX. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 1998.

Notas

1 Gostaria de citar entre outros: BELLUZZO 1994; GALVÃO 2001; KARASCH 2000; LEITE 1997; LISBOA 1997; MARTINS 2001; SCHWARCZ 1993; SELA 2001; SELA 2008; SLENES, 1999; VIANA 1998.

Luciana Gandelman – Professora adjunta Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro [email protected] Km 07 da BR 465 23890-000 – Seropédica – RJ Brasil Palavras-chave América portuguesa; Colônia; Relatos de viajantes.

Estado e políticas educacionais na educação brasileira – SAVIANI (RBHE)

SAVIANI, Dermeval. Estado e políticas educacionais na educação brasileira. Vitória: EDUFES, 2011. Resenha de: CASTANHO, Sérgio. Revista Brasileira de História da Educação, v. 11, n. 3 (27), p. 153-182, set./dez. 2011

Uma fecunda parceria entre a Universidade Federal do Espírito Santo, por sua editora, e a Sociedade Brasileira de História da Educação, para comemorar os dez anos de existência desta última, completados em 28 de setembro de 2009, resultou numa iniciativa editorial das mais importantes: uma dezena de volumes sobre dezeixos temáticos em torno da história da educação. O volume de número 6 é este de que aqui nos ocupamos. Organizado pelo renomado educador Dermeval Saviani, cuja contribuição à história da educação brasileira tem sido das mais relevantes, este livro acrescenta muito à reflexão histórica sobre o papel do Estado nas políticas educacionais no Brasil. Sem mais delongas, passemos ao conteúdo do volume.

Abrindo a coletânea, deparamo-nos com o capítulo de seu organizador, Dermeval Saviani, intitulado “O Estado e a promiscuidade entre o público e o privado na história da educação brasileira”. O autor revela essa “promiscuidade” (termo que ele próprio questiona, mas defendendo sua utilização) entre as esferas pública e privada na educação brasileira. Isso é feito rastreando a simbiose público-privada desde o período da “Educação pública religiosa (1549-1759)” até o atual, objeto da indagação “Educação pública: dever de todos, direito do Estado? (1961-2007)”, passando pelos momentos da “Educação pública estatal confessional” (1759-1827)”, da “Instrução pública e ensino livre (1827-1890)”, da “Instrução pública para os filhos das oligarquias (1890-1931)” e da “Educação pública e industrialismo: o protagonismo das três trindades (1931-1961). Ao chegar à atualidade, Saviani mostra o paroxismo dessa promiscuidade “assumindo novas e variadas formas que estão em curso”. O autor é incisivo na sua crítica: “Tudo se passa como se a educação tivesse deixado de ser assunto de responsabilidade pública a cargo do Estado, transformando-se em questão da alçada da filantropia”. Na conclusão, o caminho aventado por Saviani é o de radicalizar o caráter da educação como coisa pública (res publica): “Republicanizando a educação, estaremos radicalizando uma das promessas da burguesia liberal e, com isso, explorando seu caráter contraditório tendo em vista a superação dessa forma social”.

O segundo artigo, “Estado e cristandade nos primórdios da colonização do Brasil: implicações para a política educacional”, é assinado por José Maria de Paiva, autor clássico no estudo desse período de nossa história da educação. O capítulo traz a marca registrada de Paiva, que imprime a seus trabalhos invulgar profundidade de reflexão e análise, a par de um extremo cuidado no trato com as fontes. A gênese do Estado, na passagem do medievo para a modernidade, é estudada a partir de textos de Tomás de Aquino e John Locke. Referência central no pensamento histórico do autor é a necessidade de partir da cultura social para o entendimento do Estado. É por esse caminho que Paiva chega ao Estado português no período da colonização americana, ininteligível fora do âmbito da cristandade – que é o “modo de ser social” conformador da esfera pública. Como era a relação entre o Estado e a educação? Talvez uma passagem do texto em foco possa contribuir para responder a indagação: “Pela tradição, a escola refletia o religioso, como toda a vida social, mas tinha como objeto o cultivo do que então se entendia por ciência. Pelo papel que lhe cabia – de assegurar a manutenção da cultura – era ofício real; em termos atuais, ofício do Estado”. Realeza, Igreja, Educação – tudo fazia parte de um mesmo bloco, eu quase diria um “bloco histórico”, marcado ademais pela prática mercantil, que na modernidade passou a reclamar o tipo de conhecimento que a escola podia fornecer, basicamente a leitura e a escrita. Do geral o autor passa para o específico, o colégio jesuítico no Brasil. Os jesuítas, no entender de Paiva, foram a única ordem religiosa a estabelecer colégios no Brasil, o que se deve a que a eles, e a mais ninguém, o rei delegou a tarefa de evangelizar os índios e preparar os futuros evangelizadores. Trabalhando com a categoria histórica de “experiência”, o autor mostra que os colégios foram organizados tendo por base a experiência das universidades que os antecederam cronologicamente. Conjugados, os conceitos de cultura social e de experiência dão conta, no trabalho de Paiva, de explicar a política educacional na América colonial portuguesa a cargo dos agentes inacianos.

Ainda trabalhando com esse tema, com fundamentos e propósitos que ora se aproximam ora se afastam do precedente, o artigo terceiro tem o timbre de Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro, intelectual atuante na docência e pesquisa da UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. O título do capítulo é “O Estado e a política educativa dos jesuítas na história da educação brasileira”. Iniciando por evidenciar as raízes da ordem jesuítica no cenário mundial marcado pelo concílio tridentino, Ana Palmira detém-se no estabelecimento e expansão da Companhia em Portugal e seu posicionamento no contexto da Igreja e da Realeza nessa parte da Ibéria. Só então estuda os jesuítas no Brasil, suas províncias, suas casas de profissão, seus colégios e seus seminários. Taxativa, para ela a “história da companhia de Jesus confunde-se com a própria história da educação brasileira colonial”. Alargando a mirada, Ana Palmira afirma que “os jesuítas palmilharam todos os espaços d território colonial: o campo econômico, pacificando e adestrando a mão de obra indígena e negra; a seara política, exercendo forte influência na Coroa Portuguesa e participando das mais importantes decisões de caráter político e religiosa da época; as diversas instâncias da vida cultural, veiculando ideologias literárias, imagéticas e religiosas; e, finalmente, o terreno prático, mediante o exercício do apostolado missionário da educação formal, ministrada nos colégios, e do sermonário religioso, pregado no púlpito das igrejas”. Não resisto à tentação, para usar uma expressão que cabe à talha ao tema em foco, de uma citação final, em que Ana Palmira sintetiza o sentido da educação jesuítica no Brasil: “Nesse sentido, especialmente o ensino religioso, compreendido no seu sentido lato (a catequese, as normas religiosas impostas e obrigatórias, a doutrinação, os castigos, as representações imagéticas, os rituais, os cultos e, principalmente, a pregação), foi a forma mais eficiente de educação daquele tempo, pois doutrinava, simultaneamente, os senhores e os escravos, os possuidores e os despossuídos, os poderosos e os subjugados. Os jesuítas educaram para o êxito da empresa colonial, para a manutenção do status quo de um pequeno grupo e para a instauração de formas de mentalidades peculiares, que ultrapassaram as barreiras daquele período e que perduram, até hoje, como traços característicos da sociedade brasileira”.

O quarto artigo é da uspiana e pesquisadora do CNPq Carlota dos Reis Boto, tendo por título “Pombalismo e escola de estado na história da educação brasileira”. Para a autora, é preciso deixar de lado a ideia de que o ensino público no Brasil foi obra dos republicanos, pois remonta à ação do Marquês de Pombal, bem antes da eclosão da República no país. Boto não se restringe a mapear os feitos pombalinos. Ad astra per aspera: ela procura o caminho mais penoso, pesquisando o iluminismo português, de que Pombal foi adepto e coautor. Vendo uma das características desse iluminismo, a secularização, como “um modo de ser mundo”, ela esclarece por que a educação pombalina, no contexto iluminista, não poderia deixar de ser secularizada, ainda que não laicizada. Em seguida, ela destrincha a vida e obra de três pilares do iluminismo português que estiveram intimamente vinculados à política educacional desencadeada por Pombal: D. Luís da Cunha, Ribeiro Sanches e suas Cartas sobre a educação da mocidade e Verney com seu Verdadeiro método de estudar. Passando das bases teóricas às diretrizes práticas, Boto mostra o que foi e como foi a escola pública traçada por Pombal. Nas conclusões, revisita o legado pombalino, considerando-o como “um modo de ser escola do Estado-Nação”. E considera, fechando o artigo, que a escola pública é “o lugar mais progressista em matéria de educação”.

O capítulo seguinte é de Maria Cristina Gomes Machado e versa sobre “Estado e políticas educacionais no Império brasileiro”. A autora é especialista em educação no Império e já nos havia brindado com seu indispensável Rui Barbosa: pensamento e ação. O problema que Machado coloca e procura resolver no artigo é o de como a educação atuou no período imperial para constituir o Estado-nação no Brasil. Para isso vasculha a política educacional imperial, desde as primeiras iniciativas sob D. Pedro I até o desfecho republicano. Grande destaque é dado às reformas Couto Ferraz (1854) e Leôncio de Carvalho (1879), esta última com mais amplidão por ter ensejado os pareceres de Rui Barbosa. No ocaso do Império – mostra Machado – dá-se a emergência das questões da liberdade de ensino e do caráter religioso ou laico do ensino conduzido pelo Estado.

Segue-se o capítulo de Luís Antônio Cunha sobre essa última questão: “Confessionalismo versus laicidade no ensino público”. Cunha – ou LAC como ele se autorrefere utilizando suas iniciais – principia com uma bem centrada conceituação de “laico” em confronto com “leigo”. Depois disso volta-se para os primórdios da educação na América portuguesa: a educação religiosa no Estado confessional. Nas três décadas finais do século XIX LAC vislumbra o surgimento da laicidade como superação da incomodatícia “simbiose Igreja-Estado”. Essa laicidade (“de elite”, acentua LAC) acaba por marcar a institucionalização do Estado republicano. A despeito da laicidade, o ensino religioso acaba por retornar à política educacional, como forma de “controle político-ideológico”. Entre outras pontuações históricas interessantes, LAC mostra que o manifesto dos “pioneiros” de 32 não teve consequências práticas no tocante à laicidade do ensino público, pois a Igreja Católica saiu-se amplamente vitoriosa na Constituição de 1934. Passando em revista a questão após a era Vargas, atravessando o debate ocasionado pelas vicissitudes da nossa primeira LDB (1961) e a problemática da “religião, moral e civismo na ditadura militar”, Cunha chega aos dias atuais percebendo algo de novo, a “emergência do movimento laico”, que se distingue do laicismo republicano.

Chegamos assim ao sétimo artigo, a cargo da dupla Geraldo Inácio Filho e Maria Aparecida da Silva. Seu título: “Reformas educacionais durante a Primeira República no Brasil (1889-1930)”. A primeira constatação dos autores é que as reformas imperiais deixaram intocado o panorama educacional que vinha do período pombalino: “Dessa forma, a nascente República herdou as escolas isoladas e o descaso com a instrução pública”. A partir desse ponto de partida, não é difícil à dupla mostrar os avanços na política educacional da Primeira República, que implanta os grupos escolares, garante a laicidade do ensino público, promove reformas estaduais significativas e dá ênfase ao ensino primário, vale dizer, ao que na ocasião se poderia entender por “educação popular”. Tópicos especiais do artigo são dedicados à educação de adultos, ao ensino secundário e à educação superior. Nas conclusões, não deixa de causar impacto a constatação dos autores de que as políticas educacionais da Primeira República “não eram formuladas como um projeto de Estado, mas como iniciativas de governo, sem continuidade, após as eleições substitutivas dos governantes”.

O oitavo capítulo, de autoria de Marcus Vinicius da Cunha, tem por título “Estado e escola nova na história da educação brasileira”. O artigo é inovador por não se contentar com as análises correntes da escola nova, que por vezes datam-na do manifesto de 1932, mas aprofunda-se na questão, buscando as origens e bases teóricas do escolanovismo. No Brasil Cunha localiza, na esteira de Antunha, em Oscar Thompson o primeiro ato da cena escolanovista, apesar de seu caráter elitista, que não chega a impressionar o professorado. O interessante é que o autor vê no escolanovismo uma expressão educacional do ideário liberal. E é com esse fundamento que analisa as contribuições de Sampaio Dória, de Lourenço Filho, de Anísio Teixeira, de Francisco Campos e de Fernando Azevedo. Maior destaque vai para Anísio Teixeira, apesar da ressalva de que seus argumentos e conceitos eram “extraídos diretamente da filosofia de Dewey, filha do mesmo ambiente que deu à luz Jefferson”. O último parágrafo é imprescindível: “As iniciativas e as ideias de Anísio Teixeira redefiniram as relações da Escola Nova com o Estado: a realização do Estado Educador exigia, antes de tudo, manter contato íntimo com a sociedade (…). Restava saber se, até que ponto ou até quando o Estado seria sensível essa proposta. A resposta veio em 1964”.

“A política educacional do Estado Novo” é o trabalho com que José Silvério Baia Horta comparece a esta coletânea. Trabalho de historiador, o artigo de Baia Horta garimpa os discursos oficiais do varguismo. E encontra, na política educacional que tais documentos revelam, uma constante: “colocar o sistema educacional a serviço da implantação da política autoritária”. É com essa ótica que o autor repassa a política educacional do Estado Novo (1937- 1945), examinando a reforma do Ministério da Educação e Saúde empreendida pela dupla Getúlio Vargas-Gustavo Capanema e em seguida a legislação de ensino do período, detendo-se nos seus níveis primário, médio e superior. Deixando de lado a identificação fácil e nem sempre convincente entre o varguismo e o fascismo mussolinista, Baia Horta conclui: “(…) a não concretização das diferentes propostas oficiais mostra que o regime nunca chegou a impor à escola um papel político idêntico àquele instituído na Itália fascista. Assim, a escola no Brasil pôde conservar, durante todo o período, uma relativa autonomia”.

José Luís Sanfelice, que já havia percorrido algumas salas e muitos porões da ditadura militar com seu trabalho sobre o movimento estudantil no período, volta ao tema de sua predileção com o décimo capítulo deste volume, intitulado “O Estado e a política educacional do regime militar”. Revolução? Golpe? Sanfelice não se furta a responder a tais perguntas, mas inova mesmo ao caracterizar o Estado pós-64 como “Estado de Segurança Nacional e Desenvolvimento”. Qual foi a política educacional a cargo desse Estado? De imediato, responde Sanfelice, falou mais alto a Segurança Nacional. Nesse sentido, a política do início da ditadura foi de repressão, tanto ao movimento estudantil quanto às universidades e aos profissionais que atuavam no seu âmbito. Paulatinamente, porém, passou a falar alto a outra face, a do Desenvolvimento, e foi assim que medidas de financiamento do ensino primário via salário educação foram implantadas, juntamente com outras como a da Reforma Universitária (1968), a do MOBRAL (1967) e a da reforma do ensino de 1º e 2º graus (1971, Lei 5.692). Sanfelice, em parágrafo abrangente, sintetiza: “A política educacional dos governos militares pode então ser definida como a política da modernização conservadora e que expressou: o autoritarismo dos mandatários (os docentes, as resistências das universidades, o movimento estudantil foram calados); a subordinação a um modelo econômico excludente e, portanto, elitista, de privilegiamento do grande capital; o tecnicismo burocrático (as medidas em geral não contaram com a participação dos educadores); a mentalidade empresarial no campo da educação, assaltada por princípios de eficiência, produtividade, racionalidade e economia de recursos”.

O volume se encerra com um instigante artigo de Carlos Roberto Jamil Cury sobre “Reformas educacionais no Brasil”. Antes de entrar no mérito, Cury investiga o significado de “reforma” em geral e de “reforma educacional” em particular. Ao conceituar a reforma da educação, o autor considera-a como uma decisão de autoridade para mudar, com base em lei, a política educacional, tornando “a situação considerada mais congruente com a realidade”. Como é preciso, segundo essa conceituação, uma base legal, Cury passa em revista as principais leis sobre matéria educacional no país, dadas sob as diferentes Constituições que aqui tivemos. Como a primeira Constituição foi a imperial de 1824, o estudo abarca as leis a partir desse marco. São revistas as reformas no Império, na Primeira República, na Era Vargas, no Regime Militar e enfim no atual Estado Democrático de Direito. Encerrando o artigo, Cury aposta: novas reformas virão. E deixa no ar uma pergunta: “Será que elas serão de molde a serem inovadoras de modo a conduzir a uma verdadeira mudança social?”.

Em conclusão, trata-se de uma visão panorâmica, porém profunda, sobre o Estado e as políticas de educação na história educacional brasileira. Cobrindo todos os períodos em que essa relação entre Estado e educação se dá no Brasil, o livro traz inestimável contribuição para todos aqueles que se dedicam a seu estudo, apresentando, ademais, preciosa colaboração ao contemporâneo debate sobre os rumos da educação brasileira.

Sérgio Castanho

Acessar publicação original

Hobbes e a liberdade republicana – SKINNER (C)

SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana. Trad. de Modesto Florenzano. São Paulo: Edunesp, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 3, Set/dez, 2011.

A história intelectual tem buscado forjar padrões de análise que a convertam num campo de estudo estabelecido e fixado como outros já consagrados, a exemplo da história política, da econômica, da social e da cultural. Por suas íntimas aproximações com a história filosófica e com a história das ideias, definir seguramente suas fronteiras teórico-metodológicas e seu alcance interpretativo do objeto, assim como seu corpus documental, torna-se, além de um problema tenso e contraditório, um desafio para o estudioso da temática. Se mesmo entre os lugares principais de produção, a história intelectual é ao mesmo tempo ambígua, sem necessariamente construir procedimentos de pesquisa comuns, como se observa nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Alemanha e na Itália, como então se deveria proceder ao seu estudo e à sua apropriação? A obra de Skinner está entre aquelas que, desde os anos 60 (séc.XX), tem se debruçado com afinco sobre a questão. Agrupando-se ao que ficou definido como contextualismo linguístico inglês, ele se esforçou para a criação de procedimentos adequados para que a história intelectual fosse, entre outras coisas, um instrumento apropriado para o estudo do pensamento e da ação política no tempo. Estudioso da história moderna, preocupou-se com a investigação do pensamento renascentista, reformista, contrarreformista, liberal e conservador, e com a maneira como estabeleceriam relações com seu contexto. Para ele, somente ao se agrupar o contexto de produção das obras é que se torna possível visualizar os jogos linguísticos usados pelos letrados e políticos do período e reconstituir como agem e se movimentam no campo de produção das obras e da ação política, estabelecer os nexos de ação do grupo e do indivíduo, analisar os discursos e as estratégias de ação, além de permitir definir quais são as intenções dos agentes sociais em sua escrita, por já formar nela uma ação política, com desdobramentos sociais profundos, ao ser apropriada pela sociedade.

Evidentemente, a proposta analítica do autor é consistente e articulada, o que não quer dizer que seja isenta de fragilidades. O ponto, talvez, mais criticado em sua proposta é justamente a de agrupar e definir as intenções dos agentes sociais, por meio do estudo de seus escritos. Leia Mais

Cabeza de Vaca – MARKUN (HU)

MARKUN, P. Cabeza de Vaca. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 283 p. Resenha de: KALIL, Luis Guilherme Assis. Comentários sobre Cabeza de Vaca. História Unisinos 15(3):468-471, Setembro/Dezembro 2011.

Cabeza de Vaca não descobriu novas terras, não colonizou territórios, não encontrou as riquezas da Serra de Prata, não manteve o controle sobre seus subordinados e não conseguiu ser absolvido nos tribunais espanhóis. Apesar da sequência de negativas acima, seu biógrafo afirma que este personagem foi um dos grandes “heróis” do século XVI.

A decisão de escrever sobre um personagem pouco estudado pela historiografia brasileira coube a Paulo Markun, escritor e jornalista que já havia publicado outras biografias, como a dedicada a Anita Garibaldi. Fruto de uma extensa pesquisa (cujo resultado pode ser consultado no site criado pelo biógrafo, onde foram disponibilizadas centenas de documentos relativos ao personagem), a obra acompanha a vida deste navegador que, ao longo do século XVI, realizou duas viagens ao Novo Mundo.

Descendente de nobres espanhóis nascido no final do século XV, Álvar Núñez Cabeza de Vaca (cujo sobrenome remete à guerra contra os mouros, quando um de seus ancestrais indicou a melhor rota para os cristãos através do crânio de uma vaca) viajou pela primeira vez à América, em 1527, como tesoureiro real da esquadra comandada por Pánfilo de Narváez à região da Flórida. As tempestades e furacões, aliados a uma série de decisões equivocadas, resultaram em uma sequência de naufrágios que, acompanhados pelo desconhecimento sobre a região e os embates contra grupos indígenas, dizimaram os espanhóis.

Da fracassada expedição restaram apenas quatro tripulantes. A fome extrema e a insegurança acabaram levando esses homens a atuarem como curandeiros dos indígenas, realizando rituais descritos pelo viajante em um de seus relatos:

Vimo-nos, pois, numa situação de tanta necessidade, que tivemos que fazer algo, na certeza de que não seríamos punidos por isso […] A forma como procedíamos em nossas curas era fazendo o sinal da cruz, soprando sobre os doentes, rezando um pai-nosso, uma ave-maria e rogando a Deus nosso senhor que lhes desse saúde e fizesse com que nos tratassem bem. Quis Deus Nosso Senhor, em sua divina misericórdia, que todos por quem pedimos e que abençoamos dissessem aos outros que estavam curados. Por causa disso nos tratavam bem e deixavam de comer para nos alimentar; nos davam peles e outras coisas (Markun, 2009, p. 56-57).

Com o “sucesso” das curas, os denominados “filhos do sol” passaram a ser acompanhados por milhares de indígenas, que lhes forneciam abrigo, alimento e proteção. Cerca de oito anos depois de desembarcarem na América, os quatro sobreviventes alcançaram a Nova Espanha, sendo Cabeza de Vaca o único que decidiu retornar à Europa. De volta à Espanha, publicou os Naufrágios, obra que, como o próprio título aponta, descreve os infortúnios enfrentados em sua viagem. O fracasso, contudo, não o impediu de continuar a investir suas posses na busca pelas riquezas que acreditava estarem ocultas no interior do Novo Mundo. Diante da negativa da Coroa para que chefiasse uma nova expedição à Flórida, o navegador aceitou o cargo de governador e adelantado da região do rio da Prata.

Neste trecho da biografia, Markun deixa de lado, por alguns momentos, a trajetória de Cabeza de Vaca para analisar as disputas entre Portugal e Espanha pelo controle da região onde estaria localizada a mítica Serra de Prata, com suas riquezas incalculáveis2. Como apontado por Sérgio Buarque de Holanda (1969), em seu clássico Visão do Paraíso, os contatos iniciais com esta parte da América ocorreram após a chegada à Europa dos primeiros carregamentos de metais preciosos do Peru e da Nova Espanha, o que reforçava a crença na existência desses minerais.

Quando as primeiras expedições chegaram à região, muito do “esperado” pelos europeus foi “confirmado” pelas próprias características das novas terras3 e também através das informações dadas pelos grupos indígenas – que, segundo os relatos, faziam recorrentes indicações sobre a existência de metais preciosos nas terras do interior –, o que fez com que o início da presença europeia na região fosse marcado por inúmeras expedições em direção às riquezas existentes em locais como a Serra de Prata, o reino do Rey Blanco, a cidade dos Césares, o reino dourado das Amazonas, entre outros.

O autor passa, então, a centrar suas atenções na segunda viagem de Cabeza de Vaca ao Novo Mundo, marcada pelas frustradas expedições em busca de metais preciosos e pelas constantes disputas de poder com Domingos Martinez de Irala, organizador de um motim que conseguiu aprisionar o governador e enviá-lo de volta à Espanha. Seus últimos anos de vida são descritos como um período marcado por longas disputas judiciais, onde o navegador tentou, sem sucesso, comprovar sua inocência. Ao mesmo tempo, Cabeza de Vaca publicou, em conjunto com seu escrivão, Pero Hernández, sua segunda obra: Comentários.

Imprescindíveis para um estudo sobre a trajetória do navegador, os dois textos publicados por Cabeza de Vaca são amplamente utilizados por Paulo Markun como fontes de informações. Ao longo do livro, entretanto, o biógrafo acaba tomando para si a tarefa de determinar em quais trechos das obras o viajante se aproximava ou se afastava da narrativa “real” dos fatos. Dessa forma, enquanto Markun elogia alguns trechos dos Naufrágios, por permitirem ao leitor observar como eram os hábitos dos indígenas da região do atual Texas, através de descrições “dignas de um antropólogo aplicado” (Markun, 2009, p. 59), o conteúdo dos Comentários é criticado, por se tratar de “um oba-oba sobre o tumultuado governo de Cabeza de Vaca, em que, no mais das vezes, Pero Hernández aproveitava cada lance para ressaltar a coragem, o altruísmo, o espírito cristão e o bom senso de seu chefe” (Markun, 2009, p. 256).

Acreditamos, entretanto, que a análise dos relatos coloniais ganha em relevância quando são abandonadas as pretensões em buscar o que haveria de “verdadeiro” em seu conteúdo para analisar o processo de construção das representações sobre o Novo Mundo. Dessa forma, seguimos as premissas apontadas pelo historiador francês Roger Chartier: “O real assume assim um novo sentido: o que é real, de fato, não é somente a realidade visada pelo texto, mas a própria maneira como ele a visa, na historicidade de sua produção e na estratégia de sua escritura” (Chartier, 2002, p. 56).

Essa postura é adotada por Paulo Markun em alguns momentos de sua obra. Como exemplo, podemos citar a análise das passagens dos Naufrágios em que o viajante descreve sua atuação como curandeiro, chegando a indicar a ressurreição de um indígena4. Segundo o biógrafo, havia uma preocupação do conquistador em exaltar sua atuação entre os nativos sem, contudo, sugerir poderes que pudessem ser interpretados como heresia pelo Santo Ofício. O mesmo ocorre quando o biógrafo identifica aproximações entre o conteúdo das narrativas de Cabeza de Vaca com o de passagens bíblicas, como o trecho onde o navegador afirma que teria morrido se não tivesse encontrado uma árvore em chamas (semelhante à sarça ardente vista por Moisés). Para Markun, essas aproximações fariam parte de um processo de “autoglorificação” de seu personagem, que se descreve como um líder diferente dos outros espanhóis por ter conseguido manter um contato pacífico com os indígenas, o que explicaria as revoltas contra seu governo e sua expulsão do Novo Mundo.

É interessante observarmos que esta imagem construída por Cabeza de Vaca em suas obras acabou sendo reiterada por vários autores ao longo dos séculos. Um deles é Henry Miller. O célebre escritor norte-americano descreve o navegador espanhol como um dos poucos seres humanos que “viram a luz”:

Qualquer análise mais profunda deste livro [Naufrágios] eleva seu drama a um plano que pode ser comparado a outros eventos espirituais na cadeia dos esforços incessantes do homem em busca da autolibertação. Para mim, a importância deste registro histórico não está no fato de que de Vaca e seus homens foram os primeiros europeus a atravessar o continente americano […] mas sim porque, em meio a suas provações, depois de anos de infrutíferas e amargas peregrinações, um homem que já havia sido um guerreiro e um conquistador, fosse capaz de dizer: “Ensinarei o mundo a conquistar pela bondade, não pela matança”. […] a experiência deste espanhol solitário e deserdado no sertão da América anula toda a experiência democrática dos tempos modernos. Creio que, se vivesse hoje e lhe mostrassem as maravilhas e horrores de nosso tempo, ele voltaria instantaneamente ao modo de vida simples e eficaz de quatro séculos atrás. Acredito que São Francisco faria o mesmo, assim como Jesus, Buda e todos aqueles que viram a luz (Núñez Cabeza de Vaca, 1987, p. 10-13).

Ponto de vista semelhante é adotado na introdução da única tradução – parcial – para o português dos Naufrágios e Comentários5, onde o viajante é descrito como alguém que, com sua “utopia plausível”, poderia ter alterado os rumos da conquista do Novo Mundo: “Mesmo que tenha permanecido apenas alguns meses em terras hoje brasileiras, sua experiência poderia ter significado uma radical mudança de curso no trágico relacionamento entre brancos e índios neste país – e em todo o continente.

Caso suas estratégias de ação tivessem encontrado eco entre os demais conquistadores, o genocídio dos povos indígenas, as dificuldades pelas quais passaram os próprios colonizadores e talvez até a destruição dos ambientes selvagens – tudo poderia ter sido evitado” (Núñez Cabeza de Vaca, 1987, p. 18)6.

Postura diferente é adotada por Paulo Markun em sua biografia: “O mítico conquistador fracassado e sonhador – cujos planos para outro modelo de conquista, mais humano, teriam sido destruídos pela ganância dos subordinados – revelou-se um homem de seu tempo, repleto de contradições. A vivência entre os índios norteamericanos afetou sua visão de mundo, mas foi incapaz de produzir uma alternativa eficiente e humana para a conquista – pelo simples fato de que tal hipótese não se sustenta, sejam quais forem os protagonistas desse tipo de intervenção” (Markun, 2009, p. 261).

Ao concluir sua obra problematizando a imagem de Cabeza de Vaca como um injustiçado defensor do contato pacífico e harmônico com os indígenas, Markun tenta escapar da postura adotada por muitos escritores, que tentam “absolvê-lo” ou “condená-lo”, para enfatizar a força da narrativa deste “soldado, alcoviteiro, conquistador, náufrago, escravo, comerciante, curandeiro, governador, prisioneiro e escritor”.

Por fim, julgamos ser necessário deixar claro que a premiada7 obra de Paulo Markun não tem o propósito de ser uma análise aprofundada da trajetória de Cabeza de Vaca e/ou de suas narrativas sobre o período em que esteve no Novo Mundo. Destinada ao público leitor não especializado, este livro segue uma estrutura diferente da presente nos trabalhos acadêmicos, o que exige uma análise diferenciada. Como apontado pelo professor da Universidade de São Paulo Elias Th omé Saliba, esse tipo de produção do conhecimento histórico é tão válido quanto os outros, mas responde a lógicas próprias8. Dessa forma, acreditamos que, apesar de, em certos momentos, apresentarem uma visão reducionista do processo histórico (como a tentativa de equiparar a atuação de Cabeza de Vaca com as de Hernán Cortés e Francisco Pizarro), obras como a analisada nesta resenha têm o mérito de aproximar algumas questões históricas a um grupo não especializado de leitores que vêm crescendo nos últimos anos.

Referências

AGUIAR, R. [s.d.]. Cronistas europeus e a etno-história carijó na ilha de Santa Catarina”. In: A. ESPINA BARRIO (ed.), Antropología en Castilla y León e Iberoamérica – IV Cronistas de Indias. Salamanca, Ediciones Universidad Salamanca, p. 324-335.

CHARTIER, R. 2002. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude.

Porto Alegre, Editora Universidade/UFRGS, 277 p.

HOLANDA, S. 1969. Visão do Paraíso – motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo, Edusp, 380 p.

NUNES CABEÇA DE VACA, A. 1893. Comentários. Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, s.n., tomo LVI (pt. 1), p. 193-344.

NÚÑEZ CABEZA DE VACA, A. 2000. Naufragios y comentarios.

Madrid, Editora Dastín, 356 p.

NÚÑEZ CABEZA DE VACA, A. 1987. Naufrágios e comentários. Porto Alegre/São Paulo, L&PM Editores, 180 p.

SALIBA, E.T. 2011. Conhecimento não é monopólio acadêmico. História Viva, 8(90):16-18.

Notas

2 A crença na existência de um monte composto de prata foi impulsionada pela New zeutung ausz presillandt (conhecida em português com o título de “Nova Gazeta da Terra do Brasil”). Inspirado nos escritos de Américo Vespúcio, esse folheto anônimo foi editado em 1515, na cidade de Augsburg, e obteve uma ampla repercussão, sendo republicado diversas vezes nos anos seguintes. Seu conteúdo descreve uma expedição realizada à região sul da América, local este que, além de cruzes e marcas dos passos de São Tomé, possuiria grandes reservas de metais preciosos.

3 Cabeza de Vaca afirmou que, durante uma de suas expedições, avistou uma região cuja “falta de árvores e ervas” indicaria a presença de metais preciosos. Entretanto, tais metais não teriam sido extraídos devido à grande quantidade de doentes e à falta de aparelhos de fundição (Núñez Cabeza de Vaca, 2000, p. 252).

4 “O que estava morto e fora tratado diante deles havia se levantado, redivivo, andado, comido e falado com eles; e todos os outros que haviam sido tratados estavam sãos e muito alegres” (Markun, 2009, p. 80).

5 Alguns trechos dos Comentários também foram publicados na Revista trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1893. Contudo, Tristão de Alencar Araripe, tradutor desta versão, afirma ter se dedicado apenas às partes que “interessavam a nossa história pátria” (Nunes Cabeça de Vaca, 1893, p. 193-344).

6 Em artigo sobre os índios Carijós, Rodrigo L.S. de Aguiar também chega a uma conclusão similar. O autor apontou que, certamente, foi Cabeza de Vaca quem estabeleceu o contato mais pacífico com os indígenas, fruto do período que passou entre os nativos da América do Norte durante sua primeira viagem ao Novo Mundo, que “mudou seu conceito de mundo” e sua compreensão de que “aqueles povos da América eram humanos livres, com costumes próprios, e não bárbaros, servos por natureza. Tal visão, ao contrário à da maioria dos conquistadores, veio a lhe custar o exílio, anos mais tarde” (Aguiar, s.d., p. 334-335).

7 Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor biografia de 2009.

8 “As obras de difusão mais popular da história operam segundo uma lógica reducionista: um princípio organizador simples é usado para explicar acontecimentos que a história acadêmica considera infl uenciados por princípios múltiplos. Isso produz uma nitidez argumentativa e narrativa que falta aos trabalhos universitários e parece responder plenamente às perguntas sobre o passado. Ao contrário da boa história acadêmica, essas obras não partem de um problema específico, não oferecem um sistema de hipóteses, mas certezas, ainda que circunstanciais. Esse é o seu principal defeito. Por outro lado, como se trata de uma história fundamentalmente narrativa, ela pode produzir conhecimento novo ao redescobrir significados inéditos. Contar a história de outra maneira também pode mudar o foco e estimular novas pesquisas. Essa é a grande virtude desses livros. Obras desse tipo cumprem também o papel de trabalhar com estudos monográficos e dar a visão geral para o público. Isso deveria ser papel do historiador. Se ele não faz isso, ele fracassou. Mas esses livros desempenham uma função de divulgação que eu acho extremamente importante” (Saliba, 2011, p. 17).

Luis Guilherme Assis Kalil – Universidade Estadual de Campinas Rua Cora Coralina, s/n 13083-896, Campinas, SP, Brasil . E-mail: [email protected].

A Companhia de Jesus na Índia (1542-1622): actividades religiosas, poderes e contactos culturais – MANSO (HU)

MANSO, M. de D.B. A Companhia de Jesus na Índia (1542-1622): actividades religiosas, poderes e contactos culturais. Macau: Universidade de Macau e Universidade de Évora, 2009. 274 p. Resenha de: AMANTINO, Marcia. A Companhia de Jesus na Índia (1542-1622): atividades religiosas, poderes e contactos culturais. História Unisinos 15(3):466-467, Setembro/Dezembro 2011.

O livro A Companhia de Jesus na Índia (1542-1622): actividades religiosas, poderes e contactos culturais, da professora Maria de Deus Beites Manso, é uma importante contribuição aos estudos que buscam entender os diferentes papéis desempenhados pelos jesuítas em áreas variadas do vasto império colonial português. A proposta da autora é analisar o que representou a chegada dos padres da Companhia de Jesus no Oriente em 1542 a partir dos trabalhos apostólicos de Francisco Xavier e identificar como agiram para conviver com grupos sociais tão heterogêneos como os encontrados na região. Sua análise restringe-se até as primeiras décadas do século XVII, momento da criação da Propaganda Fide e do envio de missionários não mais por Lisboa, mas sim pelas Missões estrangeiras de Paris.

A obra apresenta ao longo de sete capítulos os avanços e recuos nas relações entre os religiosos da Companhia de Jesus, as autoridades coloniais, as outras ordens religiosas e as diferentes etnias que formavam a complexa sociedade que ocupava a região conhecida hoje como Índia. Resultado de antigas e sucessivas invasões e migrações, a sociedade local apresentava-se pluriétnica com inúmeras religiões e suas variantes, mas com claro predomínio do hinduísmo e do islamismo. Além destas características religiosas e, em função delas, assistia-se também a variadas organizações políticas e econômicas. Os jesuítas e mesmo o poder político português tiveram que se adaptar, negociar e, em muitos casos, guerrear para conseguir impor suas determinações. E mesmo assim, nem sempre conseguiram. De qualquer forma, a associação entre os interesses portugueses e missionários era clara e se confundia. Um dependia do outro para permanecer nas regiões abordadas. Poder religioso e poder temporal se mesclavam, criando situações onde o papel dos jesuítas, à frente das populações que visavam catequizar, às vezes não ficava muito claro.

Na realidade, segundo a autora, a presença portuguesa e, consequentemente, jesuítica na região ficou restrita basicamente a Goa e a Malabar. O jesuíta Francisco Xavier chegou a Goa em 1542. Três anos depois, fundava o Colégio Jesuítico de São Paulo e, a partir daí, assistiu-se a uma disseminação destes religiosos pelo território. O primeiro colégio em Malabar foi fundado em 1560. As duas regiões apresentavam condições bastante diversas para o trabalho dos jesuítas. Na primeira, ainda que com dificuldades variadas, conseguiram criar uma cidade cristã com diversos colégios e residências que tinham como objetivo também preparar novos religiosos que fossem capazes de continuar a missão catequética. Em Malabar, a situação era outra. Tratava-se de uma área de intensos contatos e convívios com populações variadas, dominada por membros ligados ao islamismo e ao hinduísmo que dificultaram ao máximo e chegaram mesmo, em alguns momentos, a impedir o trabalho catequético dos inacianos.

É importante destacar que a autora aponta para o fato de que os inacianos não foram a primeira ordem a chegar a esta região do Oriente. Antes deles, os franciscanos já estavam presentes, mas, devido ao tipo de preparação que possuíam, poucos avanços haviam conseguido com as populações locais. Os jesuítas chegaram com o apoio total do rei D. João III certos de que conseguiriam avançar a colonização e o cristianismo nestas paragens. Entretanto, também sofreram muitas derrotas e não conseguiram, com exceção de Goa, implantar efetivamente uma sociedade cristã modelar na região. De acordo com Maria de Deus Manso, muitos se convertiam apenas para garantir a sobrevivência ou ainda ter uma chance de sair do intricado e impeditivo sistema de castas.

Complicando ainda mais esta complexidade étnica e cultural, havia também os cristãos de São Tomé. Estes seguiam o cristianismo com alguns dogmas modificados. A tarefa dos religiosos de Santo Inácio era convencê-los a abandonar estas variantes consideradas heréticas e adotar a verdadeira religião. Pouco ou nenhum avanço conseguiram, e, através do Sínodo de Diampaer, ocorrido em 1599, os cristãos de São Tomé foram considerados heréticos.

De qualquer forma, a vida dos jesuítas na Província da Índia não foi nada fácil. A autora argumenta que estes religiosos tiveram que lidar com quatro realidades sociais e políticas claras que pautavam as missões no Oriente: havia aquelas voltadas apenas para atender às necessidades espirituais de populações ocidentais e cristãs; havia missões que buscavam catequizar populações locais nos territórios controlados pelos portugueses; as que pretendiam evangelizar povos sob o contato direto dos islâmicos; e, por último, as missões que se destinavam a evangelizar as populações precisando para isto se adaptar aos valores locais devido à força destes grupos.

Os jesuítas utilizaram inúmeras formas de atrair as populações locais para a cristandade. Negociaram, cederam, adaptaram seus dogmas e também guerrearam quando preciso. Usaram o poder econômico que possuíam para promover festas suntuosas que se aproximavam do que as populações conheciam como “festividades religiosas”. Com estas festas, procuravam demonstrar serem poderosos, generosos e capazes de auxiliar a população mais pobre. Como resultado, conseguiram converter uns poucos membros das elites e alguns mais das categorias sociais mais baixas. Além destes, as mulheres pobres também foram um grupo onde os padres conseguiram avançar um pouco mais em função de sua situação social inferior no sistema de castas.

A partir do início do século XVII, momento também caracterizado por uma grave crise econômica, começaram ou se intensificaram radicalmente as reclamações contra os jesuítas e o poder econômico da ordem. Se, por um lado, este crescimento econômico alcançado pelos religiosos contribuiu para aumentar o prestígio e, consequentemente, atrair seguidores, por outro, deixou-os vulneráveis às reclamações de seus contrários, inclusive, de outros religiosos. Desde que chegaram ao Oriente, houve “uma sistemática apropriação e transferência das rendas e terrenos dos ‘pagodes’ para os colégios e residências dos jesuítas com evidentes implicações nas estruturas das sociedades locais”. Com a chegada de novas ordens religiosas não ligadas à Coroa portuguesa, aumentaram as disputas religiosas locais, e os jesuítas foram, em alguns casos, acusados de serem os responsáveis pelo pouco avanço na conversão e também pela queda dos arrecadamentos enviados a Portugal.

A autora finaliza sua obra lembrando que o sistema de conversão usado pelos jesuítas ao longo do período estudado não pode ser visto de maneira uniforme. Foram vários métodos utilizados e variadas abordagens utilizadas por cada um dos religiosos à frente da conversão. Acima de tudo, condicionando ainda mais os rumos da catequese, havia o indivíduo ou o grupo social o qual estavam tentando converter. De qualquer maneira, o que se pode perceber é que, em nenhum momento, estas culturas, quer fossem hindus, islâmicas, cristãs de São Tomé ou de qualquer outra religião, foram identificadas pelos jesuítas como equiparáveis à sua e merecedoras de qualquer consideração. Caberia a eles eliminá-las, criando uma sociedade cristã modelar.

Marcia Amantino – Universidade Salgado de Oliveira Rua Marechal Deodoro, 211, Centro. 24030-060, Niterói, RJ, Brasil.

The recovery of Roman Britain 1586-1906. A colony so fertile – HINGLEY (RA)

HINGLEY, Richard. The recovery of Roman Britain 1586-1906. A colony so fertile. Oxford: Oxford University Press, 2009. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Revista Archai, Brasília, n.7, p.151-152, jul., 2011.

Richard Hingley esteve no Brasil, como parte de programa da Escola de Altos Estudos da Capes, em 2008, em atividade sediada no programa de pós-graduação em História da Unicamp, em parceria com cursos de mestrado e doutoramento da UFPR, USP, UNESP, UFRJ, Unirio, UFPel, UFRGS, UEL, entre outros. Voltou, ainda, em 2009, com apoio da secretaria de cultura de Campinas e da Unicamp, tendo fortalecido parcerias com estudiosos brasileiros e publicado um livro,  Imperialismo Romano  (São Paulo, Annablume/Capes, 2010). O estudioso britânico, uma das mais importantes referências vivas no estudo do mundo romano, tem se dedicado à recepção dos antigos, aos usos do passado e às origens do pensamento ocidental. Destaca-se na abordagem crítica das apropriações modernas dos vestígios e herança clássicos, como neste volume destinado ao estudo da Bretanha romana.

Logo na introdução, os objetos são considerados como agentes que são capazes de influenciar as maneiras de agir e pensar das pessoas. O conceito de agência (agency) aplicado à cultura material deriva de perspectivas antropológicas e permite explorar como os artefatos contribuem para dar forma às interpretações do mundo. Um segundo aspecto epistemológico deve ser lembrado: as rupturas, descontinuidades e desacordos no estudo do desenvolvimento do pensamento, em paralelo às continuidades e mudanças graduais, tal como propõe Foucault na  Arqueologia do Saber.  Os objetos antigos, incluindo inscrições latinas, já eram usados por Camden, no século XVI, para demonstrar que uma civilização podia ser reconstruída pela coleção sistemática relíquias do passado. Diversos autores modernos compararam, de forma explícita, os bretões antigos, frente aos romanos, aos ameríndios encontrados pelos ingleses, como Theodor De Bry, em 1590: as imagens “mostram como os habitantes da Grã- Bretanha foram, no passado, tão selvagens como os da Virgínia”(p. 46). Havia, pois, uma mescla explícita entre os antigos selvagens ou bárbaros e os ameríndios encontrados no Novo Mundo, de tal forma que a colonização moderna exercia papel crucial na recriação do mundo antigo. O contato dos bretões com Roma deu a ordem romana à coragem dos bárbaros. Como colonizadores na Irlanda e no América, os ingleses do início da época moderna recorriam a analogias percebidas entre sua própria situação militar e civil e aquela dos antigos romanos. Os séculos seguintes adicionaram outras preocupações, em particular no que diz respeito à colonização interna nas Ilhas Britânicas, quanto aos escoceses e outros celtas.

A partir do grande incêndio de Londres (1666), multiplicaram-se os achados romanos na cidade e, desde meados do século XVIII, expandiram-se as construções de inspiração clássica em Londres, Oxford, Cambridge, Lincoln e Winchester. Vestígios e construções clássicas reforçavam a noção que o Império Britânico assumia o manto imperial da Roma imperial. A idealização de Roma/Grã-Bretanha atingia níveis altíssimos, como quando Gibbon afirmou, no final do século XVIII que “se um homem fosse instado a marcar o período na história do mundo durante o qual a condição da raça humana tenha sido a mais feliz e próspera, ele nomearia, sem hesitar, aquele entre a morte de Domiciano e a ascensão de Cômodo”. Na mesma linha, surgia o dístico sobre “a ocupação romana da Bretanha e nossa ocupação da Índia”, titulo do quarto capítulo. Pitt Rivers, o grande militar fundador da moderna Arqueologia, buscava, no final do século XIX, testemunhos materiais que mostrassem a predominância celta na população britânica, de modo a desvalorizar a matriz germânica dos anglos. O surgimento da Arqueologia como disciplina de matriz militar viria a intensificar os usos da Antiguidade para fins imperialistas. Ao final do século XIX e no início do XX, a possibilidade ou não de aculturação dos subordinados, sob os nomes de romanização antiga e civilização moderna, angustiava os ingleses.

O volume se conclui com a observação que a História antiga serviu para desenvolver narrativas (tales) nacionais e imperiais modernas, tanto por meio do uso de autores antigos, como dos vestígios materiais. Hingley rompe, no volume, com as barreiras disciplinares tradicionais entre historiadores,  classicistas,  arqueólogos, geógrafos, filósofos, e outros especialistas, e mostra a relevância de uma investigação fundamentada em discussões epistemológicas bem informadas e ao corrente das discussões mais recentes. As origens do pensamento ocidental mostram-se, em suas observações atinadas, mais profundas e contraditórias do que muitas vezes se supõe. Leitura agradável e instrutiva, a obra contribui para uma abordagem crítica e inovadora da herança clássica.

Pedro Paulo A. Funari – Professor Titular do Departamento de História. Coordenador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp.

Acessar publicação original

Cronología de los naufragios. La Habana colonial – LÓPEZ et al (M-RDHA)

LÓPEZ, Alessandro; PAVÍA, Mónica; DÍAZ, Iván. Cronología de los naufragios. La Habana colonial. Habana: La Habana, Colección Raíces, Edición Boloña-Oficina del Historiador de la Ciudad de La Habana, 2011. 267p. Resenha de: MATÍN, Juan Guillermo. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.15, jul./dez. 2011.

En Colombia el patrimonio sumergido ha cobrado relevancia en los últimos años, sobre todo a raíz del problema jurídico desatado por el famoso naufragio San José y su valiosísima carga. Sin embargo es poco lo que se ha hecho desde el Estado por fortalecer la legislación en este aspecto. Sigue en mora la firma, por parte del estado colombiano, de la Convención de la Unesco sobre la protección del patrimonio cultural subacuático de 2001. Y ni hablar de la investigación especializada en este campo. No se ha llevado a cabo ningún proyecto de investigación formal, a excepción de esporádicos reconocimientos aislados.

Por su parte, Cuba tiene una prolongada y sostenida investigación subacuática, que alcanza ya las tres décadas, desde cuando el grupo de investigaciones Carisub, inició un intenso trabajo de prospección e investigación de naufragios en el Caribe. Un esfuerzo invaluable si se tienen en cuenta las enormes dificultades logísticas y técnicas de nuestros colegas cubanos.

El libro de Alessandro López, Mónica Pavía e Iván Díaz es un esfuerzo más en ese sentido; una detallada compilación de información histórica inédita, de fuentes primarias, relacionada con un sinnúmero de naufragios, entre los siglos XVI y XIX en aguas cubanas, comenzando con el primer naufragio documentado en Cuba para 1509. El grueso de la publicación, por supuesto, nos ofrece una completa cronología de tales naufragios con sus respectivas operaciones de localización, buceo, rescate y salvamento entre 1509 y 1898.

Se destaca el minucioso trabajo de archivo, haciendo uso de fuentes diversas, libros de historia naval, documentos históricos del Archivo General de Indias y el Archivo Nacional de Cuba, así como estudios arqueológicos, cubriendo cronológicamente cuatro siglos.

En San Cristóbal de La Habana se organiza el negocio de rescate de caudales desde muy temprano en la Colonia. Se hizo evidente, muy pronto, la importancia económica que representaba esta actividad, en donde los intereses particulares, en la mayoría de los casos, se vio favorecida sobre los de la Corona. Cuando las mercancías eran privadas, el asentista pagaba las operaciones. Sin embargo se daba generalmente una apropiación indebida de mercaderías, ya que era frecuente el contrabando. Buena parte de la carga estaba fuera de registro y por ello no era posible reclamar durante su rescate.

Por su parte estos caza-tesoros implementaron una serie de técnicas que permitieran ubicar los naufragios y recuperar su valiosa carga, incluso en condiciones adversas. No solo el clima, las traicioneras corrientes y la profundidad estaban en contra. También los corsarios y piratas que merodeaban el Caribe hacían más peligrosa esta actividad, por demás, bastante lucrativa. Había serias limitaciones en las técnicas de navegación. No es sino hasta el siglo XVIII, con la invención del cronómetro, que se pudo solventar el margen de error en longitud.

El libro aporta también información relacionada con las técnicas coloniales para acceder a las mercancías de los barcos, con una completa síntesis sobre el desarrollo de la tecnología para la incursión bajo el mar, enumerando una variedad de inventos, para uso militar y/o comercial, relacionados con la posibilidad de acceder a mayores profundidades y contar con más autonomía bajo el agua, llegando hasta la invención de la escafandra en 1819.

El procedimiento de rescate se iniciaba con los testimonios de los sobrevivientes, con el fin de precisar su localización, cercanía a las costas y profundidad. Después se organizaba la búsqueda y ubicación del pecio. Se determinaba la profundidad y características del fondo, que permitieran diseñar la estrategia de rescate. Finalmente se despejaba la arboladura y se procedía al rescate. Era un proceso que implicaba la utilización de diversas embarcaciones, así como un complejo equipamiento que iba desde baldes con cristal en el fondo, hasta campanas de inmersión y toda una suerte de aparejos para izar los caudales.

Por supuesto se dieron innumerables irregularidades que iban desde supuestos acuerdos entre compañías de rescate y pilotos, que hacían encallar las naves, hasta denuncias por falta de supervisión de los funcionarios de la Corona.

Sin lugar a dudas un tema apasionante al que se puede acceder a través de esta reciente publicación.

Juan Guillermo Martín – Universidad del Norte

Acessar publicação original

[IF]

 

 

Indios y españoles en la antigua provincia de Santa Marta, Colombia, Documentos de los siglos XVI y XVII – LANGEBAEK (M-RDHA)

LANGEBAEK, Carl Hernik. Indios y españoles en la antigua provincia de Santa Marta, Colombia, Documentos de los siglos XVI y XVII. Bogotá: Ediciones Uniandes, 2007. 251 p. Resenha de: CASTILLO, Guissepe D’Amato. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.15, jul./dez. 2011.

El nivel de relaciones que generaron el encuentro entre europeos y nativos americanos durante los tres siglos posteriores al descubrimiento, son uno de los aspectos a los cuales la historiografía en general ha realizado un mayor énfasis. Precisamente Langebaek se ocupa de una de las características que este tipo de relaciones generaron, los conflictos. Esta obra toma como fuente algunos documentos —especialmente

correspondencias— que dirigieron algunos protagonistas a los reyes de España; depositados en el Archivo de Indias en Sevilla. Un primer capítulo denominado El esplendor perdido: Jerónimo Lebrón informa a su majestad de las necesidades de la ciudad de Santa Marta, 1538, describe muy superficialmente la deplorable situación que atravesaba la ciudad después de algunas proezas en la consecución de oro por parte de los ejércitos de su Majestad; esto en parte debido a los conflictos generados con los nativos, los cuales dificultaban un fácil acceso a las minas de oro de la Sierra Nevada de Santa Marta,

el autor encamina esta primera parte bajo un informe elaborado por Jerónimo Lebrón (Párroco general de Santa Marta) en 1538, quien comunica algunos desafueros y fallas en la administración de la ciudad, por parte del gobernador Alonso Luis de Lugo. De igual manera Lebrón muestra en su relato una amplia perspectiva de los riesgos que vivían los conquistadores al momento de penetrar en la Sierra, sumada a los inconvenientes que generaba una real provisión emitida por la corona española, la cual amparaba bajo cierta medida a las mujeres y jóvenes menores de veinte años ¿donde surgía el problema de tal obediencia? El párroco hace mención, a que las mujeres y jóvenes amparados por la real provisión se encargaban de flechar a los ejércitos realistas.

No sería una de las únicas problemáticas enfrentadas por los realistas en Santa Marta, ya que Gonzalo de Vega, procurador de aquella provincia describe en un segundo capítulo Esperanza y frustración: La población de Tairona en 1571 las ventajas que generaba Santa Marta hacia el Nuevo Reino de Granada en comparación con Cartagena, si recibieran un mayor apoyo de la corona. El capitulo siguiente Una nueva relación geográfica: La descripción histórica y geográfica de la ciudad de Nueva Salamanca de la Ramada, 1578. Se encarga de mostrar la función realizada por el capitán Bartolomé de Alva, quien funda la Nueva Salamanca de la Ramada en la desembocadura del rio Dibuya, región que generaba un gran atractivo entre los conquistadores, ya que era considerada “muy rica” debido a la variedad de especies que presentaba — tanto animales como vegetales—, minas de oro que no se explotaban por falta de mano de obra, piedras preciosas, jaspe y cristal; cerca de lagunas donde se hacía sal. A esta descripción se le suma dos años después, la del obispo franciscano Sebastián de Ocando. Nombrado en 1559, quien escribiría varias veces al consejo real de su Majestad para informar sobre el estado de guerra, que vivían con los nativos a pesar de que las autoridades civiles informaban lo contrario, sus desavenencias con el gobernador Lope de Orozco tuvo que ver con sus denuncias sobre el mal trato a los indios, y que en la provincia —Santa Marta— había reducido su número de 20.000 existentes a 2.000 nativos, quien también menciona que en cincuenta años de promulgar el cristianismo en esta región, no existían iglesias hechas por los nativos y, no se hacía nada para darles doctrina. Estas “faltas” por parte de los nativos, toca su punto álgido en 1599 Levantamiento y venganza en 1599 cuando los cronistas Juan de Castellanos y Gonzalo Fernández de Oviedo, acusaron a los habitantes de la Sierra Nevada de sodomía; los nativos provocan un levantamiento, en protesta de no querer cambiar sus costumbres, motivados por la visita del gobernador Juan Guiral Betón a Jeriboca para condenar los pecados; este levantamiento en Chengue provoco la matanza a un sacerdote, un capitán español, a un hombre de servicio y otro español, luego tomando la Ramada asesinando al sacerdote, mujeres y niños.

Después de la tormenta, el sometimiento. Informe del obispo Sebastián de Ocando siete años después del levantamiento titula el sexto capítulo, describe la respuesta de una orden real, que da a conocer el estado de los repartimientos siete años después, en ella se denuncia una red corrupta para designar las encomiendas y todo tipo de atropellos contra los indios. Encomiendas, indios y tributos en la provincia y gobierno de Santa Marta, 1625. Relaciona el repartimiento de las encomiendas y de los indios tributarios (Denuncia de Lucas García Miranda sobre el maltrato a los indios en 1628) teniendo en cuenta las actividades económicas, que tienen una marcada especialización; en este capítulo seria Jerónimo de Quero el encargado de hacer tal descripción. A la cual se le suma el atropello a los indios denunciado por Lucas García Miranda, quien testimonia en su carácter de obispo de Santa Marta, el maltrato sufrido de los españoles como azotes, cepos y grillos —específicamente por los encomenderos y muchos frailes— se desligaban del propósito original de Dios, la cristianización.

En 1693 el padre agustiniano Francisco Romero publica en Milán la crónica Llanto sagrado de la América Meridional, donde enfatiza en la destrucción de los santuarios y los ídolos en la Sierra algunos de los cuales serian llevados a Roma. Dirigida las autoridades religiosas y laicas, en el tema de la conversión indígena, esta descripción hace parte del noveno capítulo La idolatría de los indios en el siglo XVII: El caso de los Arhuacos. Ya en el decimo y ultimo capitulo Santa Marta en la grandeza de las indias de Gabriel Fernández de Villalobos, Marqués de Varina, 1683 se recopila una serie de documentos, que cierran con una descripción de la Sierra Nevada. Seduce con una visión romántica donde los describe —a los nativos— como amigos de la libertad; abiertos a la entrada de la cristianización, sabiendo la imposibilidad de un triunfo militar. Propone a la corona la entrada de los frailes capuchinos, como parte de una mejor estrategia para incorporarlos al dominio colonial y, abrir la explotación comercial allí donde abundaban las piedras preciosas y el oro. Su voz fue escuchada, y en el 1693 los capuchinos se encargarían de catequizar a los indios Arhuacos.

Guissepe D’Amato Castillo – Historiador – Joven Investigador. Universidad del Norte

Acessar publicação original

[IF]

Liberdades Negras nas Paragens do Sul | Gabriel Aladrén; Egressos do Cativeiro, c.1798 – c.1850) | Roberto Guedes; A Remissão do Cativeiro, c.1750 – c.1830 | Márcio de Sousa Soares

A historiografia brasileira já conta com um número substantivo de pesquisas sobre alforrias e a vida de africanos e afro-descendentes no período posterior à libertação. Em se tratando do primeiro tema, as investigações versam, em especial, sobre as modalidades de manumissão e o perfil de escravos alforriados. No que tange aos libertos, as pesquisas apresentam conclusões dicotômicas, ora associando-os à pobreza e marginalidade, ora à ascensão econômica. A primeira vertente teve início em 1942, com algumas considerações feitas por Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo, 1942), como a relação estabelecida entre esse segmento da população e os grupos intermediários da sociedade colonial, ou seja, aqueles que não se inseriam nas categorias de senhores nem de escravos. Os estudos subsequentes como os de Laura de Mello e Souza (Desclassificados do Ouro, 1982) e Núbia Braga Ribeiro (Cotidiano e Liberdade, 1996) adotaram essa linha interpretativa ao considerarem esse segmento social como desclassificado, temido socialmente e sujeito a políticas de controle pela administração portuguesa. Outros trabalhos, porém, negligenciaram a associação à pobreza e marginalidade e deram lugar às investigações acerca da ascensão econômica desses grupos, como Sheila de Castro Faria (A Colônia em Movimento, 2004), Eduardo França Paiva (Escravos e Libertos nas Minas Gerais, 1996 e Escravidão e Universo Cultural na Colônia, 2001), Cláudia Cristina Mól (Mulheres forras, 2002), dentre outros.

Os três livros recentes de Roberto Guedes, Márcio de Sousa Soares e Gabriel Aladrén se destacam nesse campo por procurarem integrar o estudo das alforrias ao exame das trajetórias sociais dos egressos do cativeiro durante a vigência do regime escravista. As referidas publicações são fruto de trabalhos apresentados em programas de pós-graduação: os trabalhos de Guedes e Soares foram originalmente defendidos como teses de doutoramento na UFRJ, em 2005, e na UFF, em 2006; o livro de Aladrén resultou de uma dissertação de mestrado defendida na UFF, em 2008.

Guedes e Soares priorizam a análise das famílias de libertos e seus descendentes e sua atuação na dinâmica econômica local. O primeiro estudou Porto Feliz, em São Paulo, e, o segundo, Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. Já Aladrén se deteve nas trajetórias individuais e analisou os ex-escravos a partir dos acontecimentos políticos que inquietaram a região de Porto Alegre nas três primeiras décadas do século XIX.

Esses autores atribuem importante papel aos escravos em prol da liberdade e de melhoria das condições de vida após a sua efetivação. Embora fosse um acordo entre desiguais, a alforria consistia em uma doação feita pelo proprietário, mas, acima de tudo, aceita pelos escravos. Tratava-se, portanto, de uma troca que gerava novos vínculos entre os forros e seus antigos senhores, os quais se perpetuavam para o resto de suas vidas. Os ex-senhores esperavam dos escravos alforriados (gratuitamente ou sob condição) constante respeito e subordinação. Qualquer desvio ou rompimento dessas referências colocava em risco a legitimidade do novo status.

Várias discussões já propuseram que as manumissões estariam vinculadas à negação da ordem escravista, mas os três autores as analisam como parte de um sistema composto pela tríade tráfico, escravidão e liberdade. A alforria seria parte estrutural da escravidão, amortecendo conflitos inerentes à relação existente entre escravos e seus proprietários. Outro ponto marcante desses trabalhos consiste na idéia de que, após a conquista da liberdade, os libertos buscavam melhores condições de vida. Ainda que encontrassem limitações inerentes à condição social, estiveram atentos às oportunidades que lhes eram apresentadas e conseguiram trilhar caminhos diferenciados daqueles em que se encontrava grande parcela dessa população.

A ascensão econômica não indicou necessariamente ascensão social. Em especial, Roberto Guedes e Márcio de Sousa Soares mostram que a mobilidade social era geracional, ou seja, acontecia predominantemente para gerações que descendiam dos libertos. Os casamentos com pessoas livres contribuíram fortemente para isso. Também evidenciam que as categorias de cor encontradas em registros coloniais e do período imperial eram fundamentais para a inserção de pretos e pardos na hierarquia social vigente.

Os três livros contribuem de maneira decisiva para os estudos sobre a escravidão no Brasil. Além de levantar dados sobre as alforrias em regiões pouco exploradas pelos historiadores que os antecederam, como as áreas rurais e o sul do país, ainda avançaram na análise da vida dos escravos após a libertação. Os três pesquisadores utilizaram métodos qualitativos e seriais. Recorreram à micro- história e reuniram fontes diferenciadas que permitem conhecer múltiplas experiências dos homens e mulheres investigados. Os registros referentes à justiça colonial e imperial como os processos crime e as ações cíveis forneceram importantes recursos para tal perspectiva.

O trabalho de Roberto Guedes consiste na análise de quatro gerações de famílias de Porto Feliz, compostas por libertos e seus descendentes, entre os anos de 1798 e 1850. A partir de cruzamento onomástico, o autor acompanha a dinâmica econômica e social de seus membros, com o objetivo de compreender as principais estratégias de mobilidade social em âmbito familiar. Márcio Soares fez um estudo da escravidão, priorizando a região de Campos dos Goytacazes no período que compreende a segunda metade do século XVIII e as três primeiras décadas do século XIX. Seu foco, contudo, é a investigação das complexas relações entre senhores e escravos em uma região rural. Observou principalmente as estratégias sociais que favoreciam o acesso à liberdade e a inserção social de libertos e seus descendentes.

Gabriel Aladrén trata basicamente dos padrões de alforrias encontrados nas proximidades de Porto Alegre e das experiências dos egressos do cativeiro e seus descendentes entre os anos de 1800 e 1835, período de grandes conflitos militares como as Guerras Cisplatinas e a dos Farrapos. O autor acredita que esse conturbado momento contribuiu para o recrutamento de escravos e libertos para o exército, milícias e guerrilhas, favorecendo, por sua vez, a incidência de alforrias, inserção e mobilidade social dos mesmos.

Os estudos desses autores partem de uma abordagem que relaciona as forças econômicas e sociais. As três localidades sofreram mudanças significativas na economia. Em Porto Feliz, o crescimento da produção de alimentos e de açúcar na primeira metade do século XIX foi responsável por um considerável aumento do contingente populacional na região, acompanhado também pelo crescimento de escravos. O mercado de gêneros alimentícios passou a ser controlado por pequenos proprietários. Isso implicou uma população composta por pessoas de parcos recursos em meio a uma parcela reduzida de produtores que concentravam maiores posses. Campos dos Goytacases verificou grande expansão açucareira entre os anos de 1750 a 1830, voltada para a exportação. Esse processo foi acompanhado por uma concentração de propriedade de escravos, sem impedir, contudo, que pequenos e médios proprietários tivessem acesso à sua posse. Já a região de Porto Alegre era formada pela vila e algumas freguesias como a Aldeia dos Anjos e Viamão. Caracterizada por extensa área rural, suas fazendas, chácaras e campos conjugavam a produção agrícola e agropecuária para o abastecimento interno.

O ponto de partida dessas pesquisas foi o estudo das alforrias. Os autores buscam conhecer as principais características dessa prática a partir do levantamento de fontes como registros de batismos, testamentos, cartas de liberdade e livros de notas. Analisam os perfis dos senhores, dos escravos alforriados e o significado dessas libertações para ambos. As incidências foram significativas nas três localidades, seguindo os padrões anteriormente vigentes na América Portuguesa. Eram predominantes as concessões para as mulheres e escravos nascidos na colônia, favorecidos com libertações gratuitas, condicionais ou pagas por terceiros, em detrimento dos africanos que compravam a própria liberdade.

No final da década de 1970, Jacob Gorender (O Escravismo Colonial, 1978) afirmou que as manumissões foram associadas aos interesses senhoriais, e que um escravo estaria mais propenso a receber a liberdade em momentos de crise econômica. Contudo, Aladrén, Souza e Guedes adotaram outro viés para a compreensão das alforrias, valorizando o papel que tiveram no contexto do sistema escravista. Para esses autores, as concessões em testamentos e pias batismais foram compreendidas como um reforço do paternalismo inerente à escravidão. Essa atribuição cabia unicamente ao proprietário, e seu desdobramento era a produção de dependentes, pois era fruto de um arranjo entre desiguais. Obediência, respeito e gratidão deveriam pautar as relações entre o ex-senhor e o liberto para que o mesmo pudesse manter o novo status alcançado. Salvo algumas exceções, o empenho desses homens e mulheres era sempre em função de ganhos pessoais. Seus esforços visavam a conquista da própria liberdade ou de terceiros, sem nunca questionar a instituição da escravidão.

Roberto Guedes ainda destaca a função importante que os casamentos entre escravos desempenhavam no incentivo à liberdade. No primeiro momento, os senhores acabavam adquirindo status quando incentivavam as uniões entre seus cativos. Em Porto Feliz, as alforrias eram prerrogativas mais direcionadas às escravas, que passavam a ser agregadas, enquanto seus maridos permaneciam na condição de escravos. Essas uniões eram duradouras e somente rompidas pela morte de um dos cônjuges. Predominavam as uniões exogâmicas entre os próprios crioulos e entre os africanos.

Soares destaca que as liberdades concedidas em testamentos e pias batismais, de alguma forma, se associavam a razões morais e afetivas. Do intercurso sexual entre escravas e seus senhores acabavam nascendo crianças que recebiam alforria como forma dos pais se redimirem do erro de ter gerado um filho em cativeiro. Os altos índices de ilegitimidade entre as crianças batizadas levam a crer que as alforrias em pia batismal eram formas veladas de reconhecimento da paternidade. Já o momento da morte mostrou-se propício para que os senhores concedessem a liberdade a seus cativos, ou parte deles. Em ocasiões de doenças ou mesmo velhice, alguns fiéis buscavam a salvação da alma e a remissão de suas culpas.

Tendo em vista a incidência de concessões de manumissões onerosas, esses estudos abordam os artifícios empregados pelos libertos como forma de acumularem pecúlio e até mesmo ascenderem economicamente. A idéia de que a ascensão econômica não significou necessariamente mobilidade social é comum aos três trabalhos; o que os diferencia são as metodologias utilizadas para a análise desse aspecto.

A partir do levantamento de inventários post mortem, Gabriel Aladrén busca conhecer as ocupações dos libertos da região de Porto Alegre. Os indícios apontam para o envolvimento em atividades agrícolas e o acesso à terra. Utiliza processos crime como forma de viabilizar a reconstituição de algumas trajetórias de libertos que praticaram ou sofreram algum tipo de delito. A análise de dados pessoais e de depoimentos de pessoas próximas permitiu identificar eventos marcantes na vida de ex-escravos daquelas paragens. A inserção no meio social, o estabelecimento de redes de sociabilidade, o acesso a bens materiais e até mesmo o alcance de uma posição mais favorável são alguns deles.

O método utilizado por Roberto Guedes em seu estudo é peculiar. O autor acompanha gerações de cinco famílias de egressos do cativeiro da região de Porto Feliz e se reporta a diferentes momentos de suas vidas para mostrar que a combinação entre estabilidade familiar, trabalho e boas relações contribuíam para a ascensão econômica. Encerra seu livro afirmando que os escravos contraíam matrimônio, conseguiam a liberdade, herdavam bens, tornavam-se proprietários de escravos e contribuíam para que seus descendentes deixassem de carregar o estigma da escravidão a partir da percepção social da cor.

Soares chega às mesmas conclusões; porém, seu método se baseia na análise de casos específicos, sem acompanhar registros de uma mesma família, como o fez Guedes. Mostra que as possibilidades de obterem melhores condições de vida eram condicionadas a fatores como bons casamentos, relações com pessoas influentes da sociedade, mas também às ocupações de postos militares ou em irmandades. A presença de ao menos um desses aspectos era suficiente para diferenciar um liberto de outras pessoas com a mesma condição social. Ao analisar testamentos e inventários post-mortem, verifica que eles acumularam posses e acabaram se comprometendo com a escravidão ao se tornarem proprietários de escravos. As alforrias recebidas e acompanhadas de bens que os senhores, por vezes, os deixavam, contribuíram muito nesse sentido. Para esse autor, a mudança de status favoreceu a alteração da identificação da pessoa quanto à cor. Essa atribuição era dinâmica e variava conforme as diferentes gradações da hierarquia social.

A análise das hierarquias raciais vigentes nos períodos colonial e imperial é outro ponto abordado nesses trabalhos, porém mais explorado por Aladrén. O autor lembra que a escravidão no Brasil não foi pautada em bases raciais, embora a classificação da população, sobretudo no que se referia a escravos e seus descendentes, tivesse sido estruturada a partir das categorias estamentais vigentes no Antigo Regime português. Nesse sentido, concorda com Hebe Mattos (Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, 2000) ao considerar que, na prática social, houve uma hierarquia relativa à raça nos tempos coloniais, que foi redefinida a partir da independência da América Portuguesa e da construção da nova nação.

Em se tratando da colônia, as designações dos escravos, libertos e seus descendentes eram determinadas pela classificação de cor e origem. Fatores como riqueza, posição social e comportamento também tinham peso. Tais critérios não eram rígidos; formas diferenciadas podiam ser atribuídas de acordo com a época, região e a pessoa que os empregava. Os autores observam que a alteração ou até mesmo o desaparecimento dos designativos de cor ocorriam quando se tratava de pessoas que provinham da terceira geração de descendentes de escravos e, principalmente, no caso de ex-escravos que contraíam matrimônio com livres. O trabalho supracitado de Hebe Mattos e também o de Sheila de Castro Faria (A colônia em movimento, 1998) evidenciam ainda que o termo pardo indicava miscigenação, embora não deixasse de eximir a marca da ascendência escrava. Já o termo “pardo livre” surgiu a partir do aumento da população de egressos do cativeiro e de seus descendentes, em fins do século XVIII e início do XIX, como uma necessidade de diferenciar aqueles que não passaram pela experiência do cativeiro.

Aladrén compara ainda os designativos conferidos aos escravos no momento em que iam receber a liberdade e as assinaturas encontradas depois de libertos. Assim, verifica que os mapas de população elucidam uma linguagem oficial, porém não tão distinta daquela utilizada nas práticas cotidianas da população. Com o processo de independência e de construção da nação brasileira nas primeiras décadas do século XIX, foram observadas “formas específicas de racialização”. As expressões utilizadas acabavam delimitando socialmente as fronteiras entre pessoas brancas, libertos e seus descendentes.

Para compreender as estratégias de inserção social dos pretos e pardos no período das Guerras Cisplatinas e da Independência do Brasil, Aladrén estudou o recrutamento das tropas regulares. No final do período colonial, a convocação seguia critérios raciais. As tropas classificadas como de primeira linha admitiam somente homens brancos ou de pele bem clara. Já as de segunda aceitavam brancos, pardos e também pretos. Segundo Aladrén, os conflitos ocorridos na região de Porto Alegre e, sobretudo, a conjuntura gerada com os movimentos de emancipação da América Portuguesa contribuíram de maneira decisiva para que a composição do exército tomasse novos formatos, passando a recrutar escravos, livres e também libertos. Os escravos e libertos se alistavam voluntariamente nos batalhões visando futuramente a alforria e a melhoria das condições de vida ou a mobilidade social. Parcela considerável daqueles que lutavam ao lado de seus senhores recebiam a liberdade.

O reconhecimento social dos direitos garantidos a libertos e seus descendentes pela legislação do Império do Brasil é outro tema que chama a atenção do autor. Para conhecer esse aspecto, ele analisa alguns conflitos cotidianos por meio de processos crime. Assim, avalia o posicionamento desses e das demais pessoas envolvidas em demandas judiciais. Conclui que os brancos daquela sociedade, nas primeiras décadas do século XIX, ainda operavam de acordo com os padrões hierárquicos do Antigo Regime. Alguns continuavam desqualificando negros com discursos racialistas, provando que, mesmo conquistando postos mais elevados, acabavam sendo vistos com desconfiança.

O principal aspecto que diferencia o trabalho de Aladrén dos demais autores resenhados é o peso que ele confere às mudanças políticas como determinantes na inserção social dos libertos e seus descendentes. De maneira geral, os três livros trazem avanços notáveis para o campo de estudos sobre os ex- escravos e seus descendentes. No primeiro momento, analisam as alforrias locais sem perder de vista as características estruturais que engendravam essa prática. As modalidades, o perfil dos escravos libertados, as possibilidades de anulação de status alcançado, são fatores que ajudam a visualizar a complexidade da escravidão na América Portuguesa e no Brasil Independente. Não há como apreender esse complexo sistema sem passar pelas alforrias, pois elas são parte constitutiva do mesmo. Em um segundo passo, buscam compreender a inserção social dos egressos do cativeiro. Enquanto Guedes e Soares se baseiam no estudo de casos de famílias de libertos e suas estratégias de mobilidade social em um contexto de expansão econômica, Aladrén se detém nas trajetórias individuais em um período compreendido por profundas mudanças políticas.

A passagem da escravidão para a liberdade acarretou mudanças significativas. A aquisição de capacidade civil foi a principal delas, pois permitiu o direito à constituição de família, à mobilidade, à herança e à propriedade. Por maior que fosse a autonomia de um escravo, suas prerrogativas não se equiparavam às de um liberto. Em um momento de intensas transformações políticas como as da virada do século XVIII para o XIX e, especificamente, no contexto de independência da América Portuguesa, ocorreram mudanças significativas para a população liberta. Soares e Guedes não exploram esse contexto político; Aladrén, por sua vez, enfrenta a questão, mas valoriza basicamente a inserção social incentivada pela necessidade de novos recrutamentos para as forças militares em conflito. Em função disso, restringe-se à análise do gênero masculino, mesmo tendo em vista que as mulheres eram as mais alforriadas no período por ele abordado.

O exame da inserção de libertos e seus descendentes na América Portuguesa e no Brasil Independente é o principal fio condutor desses trabalhos. Os três autores conduzem suas pesquisas na contramão de parte da historiografia, anteriormente mencionada, que tende a considerar os ex-escravos como uma subcategoria social. Ao contrário, Guedes, Soares e Aladrén empregam métodos peculiares e revelam as diferentes estratégias por eles adotadas em função de galgarem melhores condições de vida. Mais do que discutir os caminhos para a manumissão e o perfil dos manumissos, esses historiadores mostram que homens e mulheres forras souberam alongar o horizonte da liberdade, fosse por meio da constituição de família, da inserção em irmandades e ou ordens militares.

Os referidos estudos ainda somam- se à historiografia e tornam evidente que as esferas públicas foram palco das mais variadas reivindicações iniciadas por egressos do cativeiro na passagem do século XVIII e XIX. O acesso à justiça, sobretudo no período colonial, pode indicar que ela funcionou como um importante instrumento de garantia do que hoje entendemos por direitos civis para os ex- escravos. É possível que os litígios tivessem uma conotação de luta pela afirmação das conquistas dos ex- escravos após a obtenção da liberdade. A investigação das práticas cotidianas nos contextos de inserção política nos momentos que antecederam a Constituição de 1824, enfim, ainda não foi explorada.

Renata Romualdo Diório – Doutoranda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil). E-mail: [email protected]


ALADRÉN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: alforria e inserção social dos libertos em Porto Alegre. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: trabalho, família e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798 – c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2008. SOARES, Márcio de Sousa. A Remissão do Cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c.1750 – c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. Resenha de: DIÓRIO, Renata Romualdo. Alforria e mobilidade social nos séculos XVIII e XIX: os casos de Porto Feliz, Campos dos Goitacases e Porto Alegre. Almanack, Guarulhos, n. 1, p.155-161, jan./jun., 2011.

Acessar publicação original [DR]

Baluartes da Fé e da Disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1759) – PAIVA (LH)

PAIVA, José Pedro. Baluartes da Fé e da Disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1759). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. Resenha de: XAVIER, Ângela Barreto. Ler História, n.61, p.189-194, 2011.

1 O título deste livro propõe uma tese que é, por assim dizer, contraintuitiva: a de que se verificou um enlace – uma aliança? – entre os bispos e a inquisição no processo de controlo da ortodoxia (e, em concreto, de repressão da heresia) e de disciplinamento social que se pode identificar no Portugal da época moderna. Para quem defende a natureza jurisdicional da monarquia portuguesa, na qual cada «corpo» da respublica era demasiado ciente das suas prerrogativas, a ideia de um enlace entre inquisição e bispos não é, de facto, evidente. Partindo do conceito de campo forjado por Pierre Bourdieu, é o próprio José Pedro Paiva a lembrar, aliás, nas páginas introdutórias do livro, e cito, que a Igreja era «uma instituição heterogénea, um corpo pluricelular, formada por diversos grupos e uma multidão de indivíduos. Estes possuíam uma cultura heteróclita, uma formação moral e princípios religiosos com alguma margem de diferenciação» (p. 8). E é o próprio autor a afirmar que o surgimento da Inquisição em Portugal, em 1536, tinha originado uma situação inédita, obrigando a uma reorganização dos equilíbrios de poder no campo religioso.

2 Apesar disso – e é sobre esta situação improvável que o livro incide – a história da relação entre os bispos e a inquisição, dois incontornáveis protagonistas do campo religioso, seria, até 1745, uma história feliz, mais feita «de laços do que de limites» (p. 188). Contrapondo-se aos que têm atribuído quase exclusivamente ao Santo Oficio a missão de velar pela defesa da ortodoxia católica no Portugal da época moderna, José Pedro Paiva apresenta, ao invés, uma paisagem na qual esta missão era executada por esses dois baluartes da fé que eram o episcopado e o Santo Ofício.

3 Mas antes de passar aos conteúdos do livro, creio que, para o melhor podermos apreciar, ele deve ser situado, em primeiro lugar, na produção historiográfica do próprio autor. Os primeiros dois livros de José Pedro Paiva – Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740) (Coimbra: Livraria Minerva, 1992), e Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas: 1600-1774 (Lisboa: Editorial Notícias, 1997) – incidiram, como é sabido, sobre temas sobre os quais pouco ou nada se escrevera em Portugal, mas que eram amplamente discutidos no contexto internacional. Dessa forma, José Pedro Paiva deu um contributo muito importante para o entendimento das práticas inquisitoriais a este nível, mas também, para um conhecimento mais aprofundado da sociedade portuguesa da época e, nomeadamente, a sua religiosidade. Com os capítulos de sua autoria publicados no 2º volume da História Religiosa de Portugal, os quais providenciam um excelente mapeamento de muitos aspetos da história institucional da Igreja da época moderna, nomeadamente na sua relação com o poder político, começa a configurar-se, com alguma visibilidade, aquilo que se poderia apelidar de projeto sistemático – para o qual os anteriores livros acabam por concorrer. Com a publicação, em 2006, de Os Bispos de Portugal e do Império – 1495-1777 (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra), de Os Baluartes da Fé, em 2011, bem como de um outro projeto bibliográfico já na forja, parece tornar-se claro que José Pedro Paiva se constitui como um dos mais importantes renovadores da história portuguesa da época moderna – nomeadamente da sua história religiosa –, recolocando o fenómeno religioso, as instituições e os agentes religiosos, numa história mais geral, e, em concreto, na história política, da qual foram muitas vezes expulsos.

4 Este output historiográfico torna cada vez mais visível, importa dizer, a impossibilidade de se fazer uma boa história política, social, cultural, da época moderna, sem atender ao papel estrutural que a dimensão religiosa nela teve. Note-se, ainda, que este revisionismo historiográfico que em Portugal tem contributos essenciais de outros autores – Francisco Bethencourt, José Adriano Freitas de Carvalho, Maria de Lurdes Correia Fernandes, Federico Palomo, e mais recentemente Giuseppe Marcocci –, dialoga diretamente com o que de melhor se faz, a este nível, internacionalmente.

5 Dito isto, passe-se, então, a uma descrição muito sucinta do livro que se desenvolve em cinco longos capítulos.

6 Os primeiros dois capítulos privilegiam a dimensão institucional do diálogo entre bispos e Inquisição e o modo com ambos colaboraram na repressão da heresia.

7 A fundação da Inquisição, as alterações que necessariamente comportou para o campo religioso, potenciadas pelas estratégias desenvolvidas (com frequente proteção do poder político, nomeadamente do cardeal D. Henrique, e do poder papal) no sentido de aumentar as suas competências sobre matérias de jurisdição da fé, colidindo com áreas tradicionalmente reservadas à esfera episcopal (nomeadamente em matéria de confissão, de repressão das heresias, e até mesmo de censura), constituem as temáticas abordadas no primeiro capítulo.

8 Apesar das áreas de inevitável colisão entre ambos, e apesar da complexidade do processo, o autor mostra que o ajuste do episcopado em relação à nova situação jurisdicional, ocorreu desde muito cedo – a começar pelos bispos diretamente envolvidos no processo de fundação da Inquisição, ou nos que foram inquisidores, e continuando na «estrutura estável disseminada por todo o reino, que o esquadrinhava até ao nível da mais pequena paróquia» que os bispos dispunham, cujos agentes – párocos, vigários, curas –, e dispositivos – as visitas pastorais – reuniam um caudal de informação que desembocava na Inquisição, sugerindo, inclusive, matérias nas quais esta podia e devia intervir. Em suma, esse ajuste de objetivos permitiu que entre bispos e Inquisição houvesse uma relação de «grande harmonia, estreita colaboração e profunda complementaridade» (p. 140), relação que é atestada por um conjunto de documentação que Paiva utiliza de forma convincente.

9 Os dois capítulos seguintes incidem sobre «o enervamento de matriz ideológica» que impregnava a boa relação entre as duas instituições – objeto do terceiro capítulo –, o qual melhor se entende no contexto dos processos de disciplinamento social que caracterizaram os «estados confessionais» da época moderna, analisados no quarto capítulo.

10 Esse enervamento de matriz ideológica tinha no mal-estar em relação aos cristãos-novos o principal pólo unificador, expresso em sermonários, tratadística e catecismos. A sintonia ideológica de que nos fala José Pedro Paiva, fazia tanto mais sentido quanto era estruturante a convicção de que os cristãos-novos eram um perigo para a coesão da respublica, constituindo-se, por isso mesmo, como um obstáculo ao próprio poder político. Daí a relevância da aliança entre a coroa e a igreja – da qual a relação entre bispos e inquisição se constituía como mais uma, e muito importante, declinação.

11 No capítulo seguinte, uma excelente introdução à operatividade do conceito de «disciplinamento social» para analisar os processos políticos e sociais que ocorreram na época moderna, e o papel que bispos e inquisição aí tiveram, Paiva mostra que, e cito, «bispos e inquisição vigiaram espaços diferenciados, concentraram a atuação sobre estratos de populações distintos, puniram crenças religiosas e comportamentos de diferente tipo (…)» – apesar de os bispos terem julgado mais gente e de, no geral, terem uma severidade punitiva bastante menor, marcados pelo seu ethos de pastores, revelado, aliás, na opção por «estratégias mais pedagógicas, educativas e doces» (p. 292), em contraponto com a «severa e pública repressão das heresias» que caracterizava o trabalho dos «vigias», i.e., dos inquisidores.

12 Estes quatro capítulos visam demonstrar a tese central do livro: de que a relação entre estas duas instituições foi feita, nestes dois séculos, mais de laços do que de limites. Contudo, e de modo a complexificar a paisagem, o autor dirige a sua objetiva, no capítulo final, para dois pontos distintos: para o lado, e para o interior.

13 Na primeira parte do capítulo final, compara as experiências antes descritas, com os casos espanhol e italiano, para reiterar a ideia – antes enunciada – que a experiência portuguesa, fazendo jus ao tradicional provérbio dos «brandos costumes», tinha sido muito mais pacífica do que as vizinhas. Isto é, o «corporativismo institucional» – se é legítimo falar assim – seria muito maior naqueles territórios do que em Portugal, onde, no final de contas, as próprias instituições de disciplinamento eram disciplinadas…

14 Na segunda parte deste capítulo mostra que esse disciplinamento de ambas instituições – e repare-se que no livro fala-se, quase sempre de bispos e de Inquisição, e raramente de bispos e inquisidores – não silenciava posições dissonantes. Como em qualquer bom e duradoiro enlace, também no casamento entre o Santo Oficio e os bispos «existiram desconfianças, receios, problemas e até discórdias» (p. 322), e grandes conflitos. Ou seja, a harmonia entre as duas instituições também se construiu tensionalmente, no século XVIII, com a querela que opôs Inácio de Santa Teresa à Inquisição, prolongada na questão do sigilismo, cavar-se-ia um fosso inultrapassável entre Inquisição e bispos, os quais deixariam de se submeter, doravante, à hegemonia entretanto alcançada pela Inquisição. Ao mesmo tempo que se anunciavam os novos ventos da secularização. Ou seja, o enlace que caracterizara dois séculos de relação e que, para muitos, explicava esse Portugal «limpo de scismas e erros» (p.427) perderia agora a vitalidade que o caracterizara, nele passando a medrar, nas palavras do autor, «mais limites do que laços» (p. 418). Intui-se, pela leitura do livro, que no fim desse casamento vislumbrava-se, também, o fim de um sistema, cujos primeiros golpes surgiriam, logo, com a chegada do Marquês de Pombal ao poder.

15 Para além das inúmeras virtualidades que o livro encerra que se podem declinar das observações anteriores, e de outras que, por economia de espaço, não podem aqui ser desenvolvidas, algumas opções de caráter metodológico também devem ser salientadas. Desde logo, a sua amplitude geográfica e o jogo de escalas que permite, pois aí se contam, simultaneamente, uma história macro, uma narrativa maior – e não apenas portuguesa –, e várias histórias micro (e aí se pressente a lição de Ginzburg) que, de uma ou de outra forma, para ela concorrem. Por exemplo, ficamos a conhecer mais sobre a densidade e variabilidade das vidas no interior do reino, em vez de nos ficarmos por alusões ao que se passava nas grandes cidades, i.e., as cidades onde havia Inquisição. Esse pulsar da vida das gentes de Viseu até Évora, e daqui a Goa ou a Lisboa, é, a meu ver, muito enriquecedor. Ou seja, José Pedro Paiva consegue apresentar um elegante equilíbrio para as difíceis articulações entre o macro e o micro, entre estrutura e agency, entre análise e processo, o que, como é sabido, é extremamente difícil de alcançar.

16 Esta verificação convida a uma segunda observação: a dimensão sociológica (e a marca de Pierre Bourdieu é explícita) e antropológica de trabalhos anteriores do José Pedro Paiva, também aqui está bem presente. Não só na identificação de regularidades grupais (a Inquisição como bloco, os bispos), mas também no mapeamento das minudências da vida concreta, e ao modo como estas deram textura ao processo histórico, não se deixando domesticar completamente (não se deixam disciplinar?), pelo olhar, pelos modelos teóricos, pela escrita do historiador.

17 Ainda assim, a autora destas páginas não ficou totalmente convencida com o argumento desenvolvido por José Pedro Paiva. A meu ver, os Baluartes da Fé e da Disciplina permitem uma contraleitura. I.e., uma leitura igualmente densa da narrativa aí contada – assente na mesma documentação e nos muitos casos elencados pelo autor – pode suscitar mais dúvidas em relação à «grande harmonia, estreita colaboração e profunda complementaridade» (p. 140), que, segundo José Pedro Paiva, teria caracterizado a relação entre bispos e Inquisição nos séculos XVI e XVII, e para além das ambiguidades referidas pelo próprio. O exemplo de D. Gaspar de Leão, primeiro arcebispo de Goa, a quem coube estabelecer a Inquisição naqueles lugares é, a esse respeito, sintomático. A carta pastoral com que abre a tradução do tratado de Jerónimo de Santa Fé, publicado em Goa em 1565, expressa uma tendência, presente em vários outros prelados em optar pelas vias doces em vez de escolher as vias repressivas que a Inquisição corporizava na relação entre cristãos e judeus e/ou cristãos-novos. Mas outras situações, também exploradas por José Pedro Paiva, como as dificuldades dos anos iniciais, os conflitos de precedências no âmbito cerimonial, ou as discórdias mais substantivas às quais o autor dedica várias dezenas de páginas, podem também revelar que não foi com bons olhos que os bispos assistiram à implantação da Inquisição, e às suas tentativas desta – e dos seus inquisidores – em ser reconhecida como a principal instituição eclesiástica portuguesa. Mas estas minhas dúvidas são, também elas, ancoradas em posicionamentos historiográficos igualmente explícitos, os quais formatam, inevitavelmente, a interpretação deste livro incontornável para quem quiser compreender os processos políticos, institucionais, sociais e culturais do Portugal da época moderna, pelo que convido o leitor a, por si só, inquirir da natureza da relação entre estes dois baluartes da fé – bispos e inquisidores – e avaliar as suas características.

Ângela Barreto Xavier – ICS – Universidade de Lisboa

Consultar publicação original

Monuments, Empires, and Resistance: The Araucanian Polity and Ritual Narratives – DILLEHAY (C-RAC)

DILLEHAY, Tom D. Monuments, Empires, and Resistance: The Araucanian Polity and Ritual Narratives. Nueva York: Cambridge University Press, 2007. 484P. Resenha de: Chungara – Revista de Antropología Chilena, Arica, v.42 n.2, p.539-540, dic. 2010.

Este libro ofrece una nueva mirada sobre la organización sociopolítica y religiosa de los Araucanos en la región central sur de Chile entre 1550 y 1850, a través del análisis arqueológico de paisajes sagrados, fuentes etnohistóricas y las narrativas rituales de chamanes (machi) contemporáneos. Dillehay aborda los amplios contextos regionales, intelectuales y materiales del monumentalismo araucano desde diferentes ángulos, incluyendo la economía política, la historia cultural, el materialismo cultural, la ideología, la teoría de la práctica, el simbolismo y el significado. Los montículos de tierra ceremoniales (kuel) son monumentos estéticos, líneas temporales, monumentos conmemorativos, identidades e ideologías arquitectónicas. Ilustran cómo se desarrollaron los paisajes sociales como parte de una nueva organización política, muestran cómo los líderes políticos tradicionales y los chamanes sacerdotales habitaban espacios sagrados y cómo les conferían valor a estos espacios para articular sistemas ideológicos dentro de la sociedad en general. El mapa araucano de rutas y lugares sagrados conecta los kuel con el mundo espiritual, cosmológico y natural así como con la historia de estos lugares en un recorrido topográfico sagrado. La articulación del poder ritual, social y del conocimiento era, por lo tanto, esencial para la construcción y expansión de la organización política regional araucana. Esta organización resistió eficazmente el avance extranjero durante tres siglos -primero de los españoles y luego de los chilenos-, hasta su derrota definitiva en 1884. Dillehay demuestra cómo los Araucanos manipulaban los conceptos de espacio, tiempo, memoria y pertenencia para oponerse a los intrusos y expandir su poder geopo-lítico en una organización política unificada, a medida que cambiaban las relaciones interétnicas a lo largo de la frontera española.

Dillehay cuestiona las percepciones anteriores de los Araucanos como grupos patrilineales descentralizados de cazadores y recolectores enfrentados unos con otros. Muestra que los valles de Purén y Lumaco utilizaron modelos andinos de autoridad estatal y su propio esquema cosmológico para desarrollar una organización política agrícola regional compuesta por patrilinajes dinásticos confederados con un alto grado de complejidad social y poder político. Esta confederación de organizaciones geopolíticas cada vez más amplias se constituyó en primera instancia en el nivel local de multipatrilinaje (ayllarehue) y, finalmente, en el nivel interregional (butanmapu). Dillehay sostiene que la organización política era jerárquica, aunque al servicio de un sistema religioso y sociopolítico heterárquico horizontal en el que los líderes compartían posiciones de poder y autoridad. Dillehay cuestiona la idea de que el control político esté ligado a la acumulación de riqueza material y poder ritual. Los Araucanos apreciaban y rivalizaban en gran medida por el prestigio y el respeto y el control del pueblo, pero existían muy pocas diferencias materiales entre los distintos líderes araucanos hasta fines del siglo XVIII. El período de uso del kuel dependía de la capacidad de liderazgo y de la sucesión de linajes dinásticos. Hoy en día las alianzas entre los kuel establecidas a través del matrimonio y su distribución en los valles de Purén y Lumaco emulan la organización espacial y de parentesco de los linajes que habitan el valle.

Los montículos interactivos de aspecto humano construidos por los Araucanos entre 1500 y 1850 requerían rituales para apaciguar, ofrendas de chicha y sangre de oveja, y obediencia a la ideología panaraucana a cambio de bienestar, protección, fertilidad agrícola y predicciones futuras. Los montículos, volcanes y montañas son equivalentes conceptuales y están asociados con las necesidades araucanas de defensa, territorio, refugio, contención e identidad relacional con volcanes y espíritus ancestrales. Los kuel son parientes vivos que unen a los Araucanos de diferentes regiones y promueven la soberanía étnica. Los kuel eran enterratorios de chamanes y jefes, monumentos conmemorativos de ancestros y genealogía, señales de estatus para líderes de linaje y lugares de ceremonias, festividades y poder político. Los sacerdotes chamanes (machi) realizaban rituales colectivos en los kuel para obtener consuelo, curación y bienestar. Los líderes políticos y militares (Ulmén, longko toqui) utilizaban los kuel para sus discursos políticos. Estas performancias públicas reorganizaban los conceptos araucanos de culto a los ancestros, religión e ideología comunitarios en un marco más amplio y complejo para brindar apoyo a la organización política, y servían para reclutar mano de obra y soldados.

Si bien con Dillehay hemos documentado anteriormente y en forma independiente la práctica de los chamanes sacerdotales araucanos en los valles centrales del sur de Chile en el siglo XVII y en contextos contemporáneos, este libro es el primero en vincular las prácticas rituales sacerdotales de las machi con los montículos sagrados. El libro detalla cómo las machi contemporáneas se comunican con los montículos a través de ñauchi (alfabetización de montículos) y ofician de mediadores entre el montículo, la comunidad y otras deidades y espíritus. Los montículos son espíritus parientes que interactúan con machi contemporáneos, lugares de conocimiento donde las comunidades recuerdan su historia y expresiones materiales de la cosmología araucana. Los Araucanos contemporáneos de los valles de Purén y Lumaco continúan utilizando montículos para mantener relaciones entre pratilinajes y entre los vivos y muertos, el pasado, el presente y el futuro. Queda por ver el rol que los montículos y sus marcos sociopolíticos desempeñan en los movimientos contemporáneos de resistencia panaraucana.

Monuments, Empires and Resistance es un texto importante para arqueólogos y antropólogos interesados en los procesos demográficos, ideológicos y sociopolíticos asociados con el monumentalismo.

Ana Mariella Bacigalupo – State University of New York En Buffalo, USA. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

Os índios na história do Brasil – ALMEIDA (RBH)

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. 168p. Resenha de: GARCIA, Elisa Frühauf. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.59, jun. 2010.

Até muito recentemente, os índios eram sujeitos praticamente ausentes em nossa historiografia. Relegados à condição de vítimas passivas dos processos de conquista e colonização, seu destino inexorável era desaparecer à medida que a sociedade envolvente se expandia. Nas últimas duas décadas, porém, significativas mudanças teórico-metodológicas, associadas a criteriosas pesquisas empíricas, proporcionaram o surgimento de uma nova perspectiva sobre as populações nativas.

A trajetória da inserção dos índios em nossa historiografia, contemplando as mudanças conceituais e os avanços obtidos pelas pesquisas recentes, foi muito bem sistematizada por Maria Regina Celestino de Almeida em Os índios na História do Brasil. A publicação, inserida na coleção FVG de Bolso, Série História, sem dúvida será de grande valia àqueles que têm interesse na temática, cumprindo sua função de divulgação do conhecimento produzido na academia. Além disso, o lançamento também ocorre em momento pertinente. Em 2008 foi sancionada pelo governo federal a Lei 11.645, que estipula a obrigatoriedade do ensino da história indígena nas escolas de nível fundamental e médio, tanto públicas quanto privadas. Diante dessa exigência, muitos professores encontram dificuldades para ministrar tal conteúdo, pois ele ainda não foi devidamente inserido nos cursos de graduação em história do país.

A autora inicia o livro apresentando a mudança no lugar ocupado pelos índios na história do Brasil, os quais, nas suas palavras, passaram dos “bastidores” ao “palco”. Debatendo em linhas gerais as principais modificações teórico-metodológicas que possibilitaram tal mudança, demonstra como as novas perspectivas sobre os significados de cultura e identidade foram fundamentais para uma alteração no paradigma sobre as ações dos índios em diferentes conjunturas. Como demonstrado de forma clara e concisa no texto, a aproximação entre a história e a antropologia, ancorada no diálogo entre os profissionais dessas áreas, possibilitou que as antigas noções de cultura e identidade, percebidas como “fixas e imutáveis” (p.21), passassem a ser consideradas como fruto de processos históricos, resultado das interações dinâmicas dos diferentes agentes envolvidos em situações específicas.

Articulando as questões teórico-metodológicas às pesquisas recentes na temática, a autora aborda aspectos fundamentais para a compreensão do lugar dos índios na história do Brasil, começando com uma discussão sobre a dinâmica das guerras. Sem negar a sua importância para os grupos nativos, como demonstrado por autores como Florestan Fernandes, Regina Celestino enfatiza a impossibilidade de analisá-las sem referência ao seu contexto, pois, a partir dos primeiros contatos e das disputas pelo território americano, as guerras indígenas passaram a convergir com as guerras coloniais. Associada às guerras e à construção da sociedade colonial, a autora enfrenta ainda a difícil questão da formação das etnias, uma das grandes discussões atuais nos estudos sobre os povos indígenas. Pesquisas sobre o surgimento e a operacionalidade dos etnônimos desenvolvidas em várias regiões das Américas, inclusive no Brasil, demonstraram como muitas etnias, antes consideradas anteriores aos contatos com os europeus, originaram-se no decorrer do processo de conquista e das diferentes formas de inserção dos índios na sociedade colonial. Para exemplificar a questão, a autora utiliza como base os dados de sua tese de doutorado, demonstrando como os temininós, aliados fundamentais dos portugueses na Guanabara, provavelmente nada mais eram do que uma dissidência dos tamoios consolidada com o processo de conquista.1

Ao analisar a formação dos etnônimos, a autora enfatiza como eles estavam entrelaçados com o domínio dos povos indígenas por parte do Estado colonial. A criação e cristalização de etnônimos e a rígida separação dos índios entre aliados e inimigos eram uma forma de classificar a população nativa e viabilizar o empreendimento colonial através da sua alocação em determinados lugares na hierarquia social. Regina Celestino, porém, demonstra muito bem como esse processo era mais complexo, pois aborda ainda os mecanismos através dos quais os índios se apropriaram dessas categorias, utilizando-as como base para elaborar as suas próprias estratégias para interagir com a sociedade colonial. Afinal, como apontou John Monteiro, “a tendência de definir grupos étnicos em categorias fixas serviu não apenas como instrumento de dominação, como também de parâmetro para a sobrevivência étnica de grupos indígenas, balizando uma variedade de estratégias”.2

Um dos espaços por excelência de inserção dos índios na sociedade colonial e, consequentemente, de redefinição de suas identidades e culturas eram os aldeamentos, analisados com propriedade pela autora no capítulo quatro. Até muito recentemente, nossa historiografia abordava os aldeamentos pela ótica do Estado colonial, dos moradores ou dos missionários. Eles eram então definidos como espaços de agrupamento de índios de origens diversas, que deveriam servir aos intuitos coloniais, possibilitando tanto a concentração da mão de obra disponível, a ser empregada em atividades variadas, quanto a implementação do projeto de catequização dos nativos. Em tal perspectiva, os índios eram sempre objeto de diferentes políticas e de disputas entre determinados agentes, mas nunca sujeitos atuantes na construção do espaço dos aldeamentos. Para a autora, porém, eles devem ser considerados também a partir das motivações dos nativos. Pesquisas recentes permitem afirmar o seu interesse em tais estabelecimentos, pois eles “participaram de sua construção e foram sujeitos ativos dos processos de ressocialização e catequese” ocorridos naqueles espaços (p.72).

Outra importante discussão contemporânea abordada no livro, especialmente nos capítulos quatro e cinco, é a relação dos índios com as diretrizes coloniais, articulando políticas indígenas com políticas indigenistas. Novamente, Regina Celestino redimensiona certos pressupostos historiográficos. De maneira geral, a política indigenista da Coroa portuguesa era apresentada como inoperante, na medida em que não se fazia valer nas práticas coloniais, especialmente em relação à condição de liberdade jurídica outorgada à maioria dos índios, ameaçada diante das estratégias dos moradores interessados nessa mão de obra. Como já assinalado por Thompson, porém, mais do que um mero instrumento de dominação, a legislação também se configura como um campo de lutas.3 Assim, tal como outros sujeitos históricos, os índios, ainda que em posição subalterna, aprenderam a utilizá-la em prol dos seus interesses. Como muito bem demonstrado pela autora, se é fato que a legislação indigenista colonial era aplicada de acordo com conflitos e negociações envolvendo vários agentes (principalmente missionários, funcionários reais e moradores), é imprescindível considerar o papel dos índios nesse processo. Em tal discussão, adquire importância fundamental o capítulo cinco, sobre a aplicação das políticas pombalinas, cujas linhas gerais se orientavam à extinção da categoria dos índios aldeados, promovendo a sua diluição no conjunto da população. Na análise dessa legislação, uma das mais pesquisadas pelos historiadores da temática, fica evidente como a constante negociação com os índios foi uma das marcas da construção e manutenção da sociedade colonial.

No último capítulo a autora aborda o século XIX, enfocando as diferenças entre as políticas imperiais em relação aos índios do presente e o lugar a eles destinado na identidade nacional então em construção. Os índios do presente, especialmente aqueles que habitavam as aldeias fundadas durante o período colonial, deveriam ser rapidamente integrados ao conjunto da população, consonante às linhas anteriormente estabelecidas por Pombal. Já os índios ainda não inseridos plenamente na sociedade imperial, comumente chamados “selvagens”, deveriam ser aldeados, também com o objetivo de preparar a sua diluição no conjunto da população, ou implacavelmente combatidos, caso não aceitassem o aldeamento e resistissem à expansão das frentes de ocupação. Assim, o Império projetava uma população homogênea, sem espaço para a permanência dos índios como grupo diferenciado. Reservava, porém, lugar de destaque aos nativos no passado da jovem nação. Apesar de significativas divergências, prevaleceu entre os intelectuais envolvidos na construção da identidade nacional a proposta de atribuir aos índios importante papel no momento fundador do Brasil, simbolizado na sua união com os portugueses.

Ao abordar o lugar dos índios na história do Brasil contemplando diferentes conjunturas, interesses e agentes, Regina Celestino oferece ao leitor uma importante iniciação na temática. Após a leitura, ficará evidente que não se trata apenas de perceber as histórias específicas de diferentes grupos nativos, certamente importantes, mas de considerá-los agentes fundamentais no processo de construção da sociedade colonial e pós-colonial. Apesar de terem enfrentado situações extremamente difíceis e uma série de restrições jurídicas e sociais, eles ajudaram também a delinear os limites e possibilidades daquelas sociedades.

Notas

1 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.         [ Links ]

2 MONTEIRO, John. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do indigenismo. Tese (Livre Docência em Antropologia) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas (SP), 2001, p.58.         [ Links ]

3 THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.358.         [ Links ]

Elisa Frühauf Garcia – Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense. Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Campus Gragoatá. Bloco O, 5º andar, Gragoatá. 24210-350 Niterói – RJ – Brasil. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

Grandes Expedições à Amazônia Brasileira, 1500-1930 – MEIRELLES FILHO (BMPEG-CH)

MEIRELLES FILHO, João. Grandes Expedições à Amazônia Brasileira, 1500-1930. São Paulo: Metalivros, 2009. 241 p.  Resenha de: DRUMMOND, José Augusto. Expedição literária pela Amazônia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.5, n.2, maio/ago. 2010.

Este livro de Meirelles é capaz de abalar, mesmo entre os mais céticos, a noção de que os brasileiros não se esforçam para conhecer a Amazônia, mais da metade da qual pertence ao território do Brasil. É verdade que a atenção maior dada à região nas últimas décadas originou-se em boa parte fora do país, incentivada por estudos, relatos e preocupações de não-brasileiros. De resto, o mesmo aconteceu no passado mais distante, conforme registrado pela própria obra resenhada, pois grande parte das expedições abordadas teve iniciativa, apoio e participantes estrangeiros. No entanto, temos há algum tempo uma massa crítica instalada no país, dentro e fora da região amazônica, dotada da capacidade de estudar, conhecer e divulgar as suas singularidades e os seus significados em escala nacional, continental e global.

Resultado de um longo e abrangente trabalho de pesquisa e de um admirável esforço de síntese de escrita, este livro exemplifica essa capacidade. Foi composto por uma grande equipe de pesquisadores, consultores, tradutores, revisores, diagramadores, designers e técnicos em reprodução de imagens, trabalhando numa empreitada de longa duração. Embora seja principalmente uma obra de divulgação para um público ampliado, a alta qualidade dos textos e das ilustrações e o rigor da documentação das informações fazem dela uma rica fonte para estudos acadêmicos, monográficos e técnicos. Ela sobressairia mesmo se fosse apenas uma obra de divulgação, pela seriedade, pelo capricho e pela resolução impecável.

João Meirelles é escritor e ativista ambiental (dirigente do Instituto Peabiru), envolvido com diversas instituições do Terceiro Setor e participante de projetos de proteção de áreas naturais, dentro e fora da Amazônia. É autor de “O Livro de Ouro da Amazônia” (Ediouro, 2004). É o responsável pelo texto deste novo livro, que, com a ajuda de riquíssimas ilustrações, narra e costura entre si 42 expedições selecionadas que percorreram diferentes partes da Amazônia brasileira entre 1500 e 1930. Este amplo período é delimitado no seu início pelas primeiras viagens periféricas de navegadores europeus em torno da foz do rio Amazonas e, no seu final, pelas últimas expedições basicamente terrestres de Cândido Rondon até o coração continental da Amazônia.

Escolher essas 42 expedições, deixando de fora cerca de 30 outras, deve ter sido uma das tarefas mais difíceis do autor na montagem desta publicação, mas o seu esforço de síntese funcionou: permitiu que o livro ficasse dentro de dimensões razoáveis para o tipo de obra que ele pretendia fazer – um livro de textos, fartamente ilustrado e com o adicional de apresentar uma alta qualidade de impressão. Pode-se esperar, com fundamentadas razões, que a obra aqui resenhada vá merecer pelo menos um segundo volume, que inclua as três dezenas de expedições que, embora registradas e estudadas, ficaram de fora. Para dar a dimensão do contexto ainda maior de expedições na região amazônica, Meirelles teve o cuidado de listar, em breves verbetes que compõem um anexo, outras 525 viagens que percorreram trechos da Amazônia, muitas em territórios dos demais países que compartilham a Grande Amazônia com o Brasil. A amostra de expedições analisadas por Meirelles pode até ser considerada pequena em face desse universo enorme, mas a obra é de peso, pois parece ser única, pela sua abrangência e pela sua concepção.

O formato adotado na obra merece ser comentado, pois é sistemático e eficaz. Cada expedição analisada recebe um texto padronizado, acompanhado por uma programação gráfica que combina beleza e funcionalidade. O texto é distribuído por quatro colunas em cada página, com inserções de ilustrações que variam em tamanho, forma, natureza e cores – mapas, fotografias, gravuras e pinturas (com paisagens, animais, plantas), roteiros etc. Muitas ilustrações são de página inteira. Todos os textos contêm as mesmas seções – contexto, líder, colaboradores, percurso, obra (textos ou outros materiais produzidos pelos expedicionários), principais contribuições (literárias, científicas, econômicas, geopolíticas, etnográficas etc.) e as notas bibliográficas. As duas primeiras páginas referentes a cada expedição trazem, ao alto, informações adicionais e sintéticas sobre duração, financiadores e percursos. Cada ilustração é acompanhada da identificação de autores, das datas e da sua fonte original – livros, coleções de museus e arquivos, acervos científicos, acervos particulares, álbuns de exposições e muitas outras.

O autor explica brevemente, na introdução, porque incluiu alguns viajantes e excluiu outros. Ressalta que o critério principal foi o de incluir aqueles que “empresta[m] um novo olhar, nova perspectiva sobre a região, a partir de [suas] andanças” (p. 17). Ele buscou evitar redundâncias, fazendo variar as particularidades individuais e as missões dos expedicionários escolhidos – bandeirantes, clérigos, missionários, militares, demarcadores de fronteiras, cientistas (etnólogos, arqueólogos, botânicos, zoólogos, geólogos, linguistas), pintores etc. Fica patente que era impossível incluir todos. No entanto, em face da relevância dos aspectos humanos e naturais da região e da própria abundância de expedições e de documentação conexa, nenhum critério de seleção agradará a tantos leitores quanto a esperança de que Meirelles e a sua equipe produzam um ou mais volumes que incluam as expedições que a obra resenhada foi obrigada a excluir.

Dada a homogeneidade dos 42 relatos, é difícil destacar qualquer um deles. Algumas expedições e alguns expedicionários chamam a atenção exatamente por serem mais conhecidos – Pedro Teixeira, Condamine, Alexandre Rodrigues Ferreira, Spix e Martius, Langsdorff, Wallace, Agassiz e Rondon. Em outros relatos há ilustrações de qualidade excepcional que seduzem o leitor predisposto a usufruir de um livro tão ricamente ilustrado. As cristalinas fotos das expedições de Rondon, as suaves borboletas pintadas por Bates e as densas gravuras de Orton são exemplos disso.

Apenas para enriquecer a apreciação da obra, destaco o capítulo dedicado a Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), militar brasileiro, já que brasileiros propriamente ditos (como Couto de Magalhães, Euclides da Cunha e Mário de Andrade) formam uma pequena minoria dos líderes das expedições selecionadas. Além disso, Meirelles destaca que Rondon, entre todos os expedicionários estudados, foi o “grande viajante”, ou seja, aquele que percorreu as maiores distâncias, acumuladas ao longo de quatro décadas de excursões por áreas hoje incorporadas aos estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rondônia, Acre, Amazonas, Pará, Goiás, Tocantins, Amapá e Roraima.

Meirelles registra outros feitos notáveis de Rondon. As suas numerosas expedições geraram abundantes 140 relatórios (mais de 20.000 páginas) e outros materiais impressos. Mesmo exercitando a sua notável capacidade de síntese, Meirelles se viu obrigado a dividir as numerosas expedições de Rondon em 14 ciclos, cada um dos quais abrange muitas viagens. Essas expedições foram também as maiores coletoras de materiais científicos e etnográficos depositados no Museu Nacional do Rio de Janeiro e em outras instituições. É relevante notar também que Rondon cumpriu uma grande variedade de missões em sua longa carreira de viajante – construtor de picadas e de linhas e estações telegráficas; produtor de documentação cartográfica; fornecedor de materiais para estudos científicos; demarcador de fronteiras internacionais; pacificador e protetor de indígenas; fundador e primeiro diretor do Serviço de Proteção ao Índio. Rondon exerceu até o curioso papel composto de líder expedicionário e guia do ex-presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, que se incorporou como convidado do governo brasileiro a uma de suas mais difíceis expedições (ao rio da Dúvida). Roosevelt quase morreu nessa expedição e escreveu sobre ela um ótimo relato de viagem, com fartos elogios a Rondon. Dessa forma, Meirelles ajuda a recuperar a memória deste grande brasileiro que foi Rondon.

Resta dizer que o texto não tem uma ‘tese’ central a argumentar ou provar, conforme destaca o próprio autor na sua introdução. No entanto, seria errado dizer que o livro é meramente descritivo, pois nenhum autor, ao reunir, refletir sobre, selecionar e usar tantos materiais sobre uma região de tão grande complexidade poderia se comportar como um narrador descomprometido. Com efeito, o autor manifesta as suas preocupações e a sua atenção para com questões como a dizimação física, territorial e cultural dos povos indígenas da região, a repartição da região entre a soberania de vários países, a escassez de instituições científicas e de cientistas brasileiros instalados na e estudiosos da região, o papel do avanço das fronteiras agrícolas, pecuárias, mineradoras e madeireiras contemporâneas na degradação do bioma Amazônia, entre outras. No entanto, a alma do livro é a recuperação da memória e dos feitos dos expedicionários e das expedições.

Meirelles produziu um livro vitorioso que merece ser lido pelo público mais variado e amplo possível, desde estudiosos da Amazônia a cidadãos comuns, brasileiros da região e de fora dela e estrangeiros que se interessam por ela. Conforme sugerido acima, fica a esperança de que ele e sua equipe produzam um ou mais novos volumes que tratem de outros expedicionários e outras expedições, para assim enriquecer o acervo de produções nacionais sobre a Amazônia.

José Augusto Drummond – Doutor em Land Resources pela Universidade de Wisconsin, USA. Professor Associado do Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[MLPDB]

 

 

 

O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano / Sandra J. Pesavento

O Imaginário da Cidade é uma obra que se insere no que chamaríamos de história cultural do urbano, que se propõe a estudar a cidade através de suas representações. É através dessas que a autora, Sandra Jatahy Pesavento, professora e historiadora formada pela UFRGS, mestre em História pela PUCRS e doutora em História pela USP, pós-doutora pela Sourbonne e EHESS, na França e ex- professora do departamento de História da UFRGS, busca retratar o “real do passado”.

No caso, Pesavento vai se apropriar das representações literárias como meio de acesso à investigação do passado, percebendo, nas metáforas e nas imagens mergulhadas em seu seio, o imaginário das sensibilidades de uma época que procura se construir a partir do pensar e do agir dentro de um parâmetro de urbano, preso na ideia que chamaríamos de modernidade.

Pois, para ela, a literatura, ao “dizer a cidade”, condensa a experiência do vivido na expressão de uma sensibilidade “feita texto”. Essa é, pois, uma “estratégia de abordagem teóricometodológica que aponta para o cruzamento das imagens e discursos da cidade e que, por sua vez, conduz a um aprofundamento das relações entre história e literatura, além de ter por base o contexto da cidade em transformação” (PESAVENTO, 2002, p.10). Ora, “textos literários e de arquivo não são da mesma natureza, mas fazem parte, ambos, do que chamamos de referencial de contingência, que é socialmente construído e, como tal, histórico” (PESAVENTO, 2002, p.391). Mais do que isso, entendemos que o discurso urbano, o texto literário, a narrativa do historiador, os artigos de jornal, e outros tantos registros de linguagem são todos representações do real e, no caso, recriam a cidade.

Vale salientar que a autora já tem certa experiência nessa linha de pesquisa como pode ser percebido em outras obras de sua autoria, tais como: Os pobres da cidade (1994), Imagens Urbanas (1997), Uma outra cidade: O mundo dos excluídos no final do século XIX (2001), entre outras reflexões.

Por intermédio desse corpus documental, a autora vai investigar e analisar recortes temporais e espaciais diferenciados e significativos na sua espacialidade: “da Paris do final do século XVIII às reformas de Haussmann, na segunda metade do século XIX, o Rio de Janeiro da belle époque e de Pereira Passos do início do século, e a Porto Alegre do final do século às primeiras décadas do século XX, mais precisamente, até a gestão de José Montaury na prefeitura dessa cidade, finda em 1924” (PESAVENTO, 2002, p.22). Nesse percurso, investiga com um olhar literário as construções de perfis e paradigmas de modernidade e de como discursos e imagens construídas sobre o urbano são capazes de migrar no tempo e no espaço. Essas ideias e representações ganham um novo significado ao se mesclarem com as especificidades locais, fazendo com que possamos retratar o padrão identitário dessa cidade e consequentemente termos acesso às sensibilidades e às experiências vividas por seus habitantes.

A obra é composta por 5 capítulos, cujo primeiro, “A pedra e o sonho, os caminhos do imaginário urbano”, apresenta a temática do livro e conceitos aplicados pela linha de pesquisa escolhida pela autora, tais como representação, imaginário e alegoria. Pesavento aborda a cidade como o “lugar do homem”, que se presta à multiplicidade de olhares entrecruzados que, de forma transdisciplinar, busca entender a pluralidade da cidade e o conhecimento sobre essa. Esses discursos e essas visões não se hierarquizam, vão se cruzar e não vão se excluir, vão se justapor e darão ao leitor do urbano uma forma de entender o que chamaríamos de “cidade plural”, fenômeno múltiplo e poliocular.

Nesse capítulo, a autora deixa clara a distinção do oficio do historiador e do escritor: o historiador busca recriar o que teria se passado um dia, e o escritor de literatura cria um enredo que poderia também ter ocorrido. Nesse sentido, “ambas as representações são plausíveis e trata de convencer o leitor e transportá-lo há outro tempo, mas só o historiador empenha-se em demonstrar que a sua versão não é apenas, poderia ter sido, mas efetivamente foi” (PESAVENTO, 2002, p.13).

A problemática é apresentada nesse capítulo para evidenciar o modelo de metrópole difundido pelo mito de modernidade da capital da França, em que o imaginário do urbano dessa se universaliza, ultrapassando o além mar, influenciando, assim, os padrões estéticos e arquitetônicos das cidades brasileiras, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Assim, Paris serve como referência de civilidade e progresso.

No segundo capítulo, “O imaginário de Paris – no final do século XVIII ao final do século XIX, procura-se entender as transformações de Paris num contexto marcado pela ascensão da burguesia e pela influência do Iluminismo, em que a cidade acaba sofrendo algumas mutações decorrentes do apelo e do desenvolvimento do capitalismo francês. Em virtude do crescimento exagerado de sua população, essa capital passa por profundas mudanças em sua forma arquitetônica, estética, cultural e moral para atender os anseios dos indivíduos que compõem uma classe privilegiada.

Aos poucos, a capital da França vai ganhando nova forma. Renunciará a tradição, as muralhas e entrará em um processo rumo à modernidade. Paris ganha, portanto, uma nova concepção de “cidade aberta” e é nesse sentido que se colocam os discursos literários em busca de mostrar uma cidade em pleno progresso econômico e social, um símbolo de civilização. Dessa forma, autores como Mecier, Bretonne e Vitor Hugo, por exemplo, vão retratar, através de metáforas, a nação de urbanidade, ora identificada com um alto grau de civilização e cultura, ora de barbárie e repúdio.

No capítulo 3, Rio de Janeiro uma cidade no espelho, a autora busca investigar a cidade carioca à cultura ocidental moderna. A ideia do “mito de Paris”, como referência emblemática, incentiva o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, nas transformações urbanísticas dessa urbe. Ao longo do século XIX, o Brasil passará por algumas mudanças no âmbito político, econômico e social. De uma monarquia, passará para um regime republicano.

As cidades com perfis de “cidade colonial brasileira, com suas ruas estreitas, seu casario baixo entremeado de alguns sobrados, com um traçado irregular de ruas, ruelas e becos, entremeados de paços, praças e chafarizes” (PESAVENTO, 2002, p.164) começariam a ser substituídos, no século XIX, pela proposta européia de metrópole moderna, de uma urbe ideal, ordenada e planejada. Assim, “a Paris mística não é só a capital da França, mas a de um século, como definiu Walter Benjamin, além de se tornar a referência imagética, o porto de ancoragem para os sonhos da cidade almejada” (PESAVENTO, 2002, p.392). Sendo assim, a remodelagem da cidade do Rio de Janeiro atenderia os anseios de apresentar esse centro urbano como o cartão postal de um país que aspirava ser civilizado; essa imagem, porém, não agradava a todos, principalmente os literatos da época como João do Rio e Lima Barreto, sendo, o segundo, quem mais criticou e debochou da “capital das aparências” e declarava, nessa época, que essa ainda era “uma velha e feia cidade, de ruas estreitas e mal calçadas, mas, não sei porque, mais interessante, mais sincera, do que esse Rio binocular que temos agora, Rio trompe d`oeil, com avenidas e palácios de fachadas, só cascas de casa, espécie de portentos cinematográficos” (PESAVENTO, 2002, p.222). O Rio de Janeiro foi o microcosmo de análise para a reflexão de Lima Barreto sobre o Brasil e sobre esse poder mágico dos nacionais de se conceberem de forma diferente daquilo que eram. Daí “o país se enxergar da maneira como desejava ser e viver essa transfiguração do real como verdadeira.

Todos se julgavam lordes, mistificando um país de mestiços e miseráveis” (PESAVENTO, 2002, p.227). A imagem do espelho era, em tudo, melhor do que o mundo do lado de cá. “Por que resistir à tentação do imaginário? As pessoas acreditavam naquilo que queriam ver, e o Rio apresentava aquela situação de fachada, de teatralização da vida, distorcendo o real ou, então, ignorando o lado incômodo da existência” (PESAVENTO, 2002, p.227). A obra de Lima Barreto é, nesse caso, pejada de figuras e situações metafóricas, cujo significado último encontraria na capacidade do homem de se conceber diferente daquilo que é. Os Bruzundangas é o texto no qual a paródia atinge a dimensão global: neste “país das maravilhas”, os cidadãos da elite cultivada se julgavam outros, distantes daquilo que são”.

(PESAVENTO, 2002, p.227). Com essa via literária, Lima Barreto tinha à intenção, segundo a autora, “de criticar o governo republicano, sua burocracia e seus métodos violentos como o meio literário medíocre e, sobretudo, o preconceito de cor que leva à discriminação social” (PESAVENTO, 2002, p.227).

Mas seria a cidade apenas com vícios ou uma cidade com virtudes? Pesavento nos leva a compreender que a urbe é o espaço que se situa acima do bem e do mal, amoral e relativa. A cidade é sempre um desafio, “uma personificação da modernidade, que atrai e seduz, mas, ao mesmo tempo, que aterroriza e faz recuar” (PESAVENTO, 2002, p.231), portanto, ela deve ser analisada a partir daquilo que ela representa para cada indivíduo. O Rio de Janeiro, para alguém do interior, era, “sobretudo conforto e facilidades da vida moderna, elementos que davam beleza e encanto à vida, e até mesmo no seu lado pernicioso tinha uma capacidade de envolver”( PESAVENTO, 2002, p.230).

Vendo o desenvolvimento da capital do país, outros lugares do Brasil, como Porto Alegre, começaram a se espelhar no Rio de Janeiro. As oscilações valorativas da cidade-vício e da cidade-virtude, o desencantamento com o mundo e do reencantamento proporcionado pela modernidade urbana vão implicar em uma requalificação do campo. E, sendo assim, o Rio Grande do Sul, mais especificamente Porto Alegre, aufere a atenção da autora no 4º Capítulo – Os Ecos do Sul- Porto Alegre e seu duplo (1890-1924).

As visões do desenvolvimento da capital gaúcha vão oscilar entre o viver modernourbano, agitado pelo crescimento acelerado de sua população e por audaciosas boemias, e no oposto, mais visível, a inércia e a vida simples de campo ou aldeia. Assim, Porto Alegre fica em um dilema: seguir o progresso proposto pela positividade das referências identitárias transmitido por Paris e pelo Rio de Janeiro, para assim se configurar enquanto metrópole ou preservar as tradições e os hábitos de aldeia que trazem a sensação de nostalgia.

Através do olhar literário que também se expandia sobre o urbano dessa cidade, podemos perceber o confronto dessas imagens do passado com as do presente. O olhar se volta para o positivo do rural voltado para o passado, num trabalho de recuperar, pelo imaginário, um tempo e um espaço preciso. Assim, a visão que se tem da cidade supracitada é bipolar, “que transita pelos paradigmas da metrópole, com o seu agito, a multidão, as atrações da rua, o luxo, a ostentação, o prazer fácil, o povo apreensivo e nervoso” (PESAVENTO, 2002, p.310) e uma cidade tranquila e cheia de lembranças.

No último capítulo, Um Fim e um Começo, mas sempre cidade, a autora mostra todo o estudo feito durante a obra, resumindo, portanto, cada um dos textos que a compõem e evidenciando a problemática central, trazendo uma conclusão que nos faz enxergar na literatura um palco repleto de possibilidades para o historiador se debruçar. Ao usar o seu olhar investigativo sobre esse campo, os “mestres da história”, sobre essa determinada fonte, poderão enxergar um “real” de um mundo trazido por essas imagens pictóricas e metáforicas enraizadas nesse tipo de documento, para assim confirmar, ou não, um sonho almejado por uma época, no caso exemplificado nessa obra, as cidades que procuravam se tornar urbanomodernas e seguir certos padrões de civilidade.

Adson Rodrigo Silva Pinheiro – Graduando em História – Uece e bolsista FUNCAP. E-mail: [email protected].


PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. 400p. Resenha de: PINHEIRO, Adson Rodrigo Silva. Embornal, Fortaleza, v.1, n.1, p.1-5, 2010. Acessar publicação original. [IF].

Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição / Ronaldo Vainfas

A chamada microstoria – versão italiana onde nascera este movimento nos anos 1970-80 – já deitou suas raízes no Brasil, definitivamente. Seus defensores, em distintas partes do mundo acadêmico ocidental, nos principais centros científicos de produção em História e nas Ciências Sociais deixaram delineadas as linhas-mestras da arrojada perspectiva da mudança de escala nas análises sociais e da rejeição aos aportes macroanalíticos que se pretendiam unívocos e inflexíveis; enfim, mesmo que de forma variada, a micro-história e seus defensores “se esforçam para dar à experiência dos atores sociais (o ‘cotidiano’ dos historiadores alemães, o ‘vivido’ de seus homólogos italianos) uma significação e uma importância frente ao jogo das estruturas e à eficácia dos processos sociais maciços, anônimos, inconscientes” [2]; que, por muito tempo, pareciam ser os únicos a chamar a atenção dos pesquisadores.

É no âmago dessa discussão, no Brasil, que o trabalho de Ronaldo Vainfas – professor titular do departamento de História da Universidade Federal Fluminense – com o sugestivo título “Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição” deve ser apreciado. Aliás, este autor já havia deixado claro, em momentos anteriores, a sua simpatia e abertura teórico-metodológica para o microssocial [3].

Traição desvenda a história de uma biografia nada comum, mas nem por isso inverossímil em um império lusófono de um território entrecortado por mares e oceanos e ainda em processo definitivo de integração sob o governo de um único rei pós- Restauração portuguesa (1580-1640). O protagonista desta história é Manoel de Moraes, mameluco nascido em São Paulo de Piratininga, filho de um outro mameluco “destro na arte da canoagem” e irmão de bandeirantes apresadores de índios. Teria pelo ambiente onde nascera o destino de seus parentes, se não fosse a outra faceta do mundo colonial brasílico a lhe arrebatar desde criança: a religiosidade católica. Com isso, fez votos solenes no Colégio da Bahia, tornando-se jesuíta professo de três votos, em 1623.

Por pouco não convivera com o mais ilustre filho do colégio jesuítico baiano, padre Antônio Vieira.

O livro, diga-se de passagem, sem introdução, é desenvolvido ao longo de quarenta capítulos com títulos bem sugestivos e que parece indicar de forma clara a intenção do autor em demonstrar a fluidez e a dinâmica das identidades: “Mameluco de São Paulo” (cap. 2); “Jesuíta na Bahia” (cap. 3); “Missionário em Pernambuco” (cap 4); “Capitão do gentio” (cap. 6); “Soberba do padre” (cap. 8); “A traição do jesuíta” (cap. 10); “O fantasma de Manoel” (cap. 13); “A vanglória do traidor” (cap. 14); “A serviço da WIC” (cap. 15); “Licenciado em Leiden” (cap. 16); “Paixões flamengas” (cap. 18); “Manoel calvinista” (cap. 19); “De volta a Pernambuco” (cap. 26); “Manoel brasileiro” (cap. 27); “Regresso ao catolicismo” (cap. 29); “Capelão da guerra divina” (cap. 30); “Manoel delator” (cap. 32); “Manoel pertinaz” (cap. 35); “Manoel valentão” (cap. 39); “Réquiem para Manoel” (cap. 40).

Mas, o que parecia ser o início de uma vida ascética trabalhando entre os índios como missionário e “língua” – ofício de tradutor que, sem dúvida, era uma das heranças de sua família mameluca – logo se mostrou apenas o princípio de uma vida conturbada; pois ela fora vivida dilacerada entre o desejo de acumular riquezas através de mercês régias e a ortodoxia de sua religião que simplesmente não deixava espaços para qualquer tipo de heresia.

Ainda jesuíta em Pernambuco, Manoel de Moraes foi um dos missionários da Companhia de Jesus que logo aceitara a convocação do governador, Matias de Albuquerque, para a defesa das capitanias do Norte contra o iminente ataque holandês.

Os cronistas da guerra o chamavam “capitão de emboscada”, liderando até mesmo as forças indígenas de Antônio Felipe Camarão – seu antigo neófito na aldeia de Meritibi – no Arraial do Bom Jesus, um dos baluartes da resistência após a derrocada do Recife, em 1630. Mas o padre guerreiro, “capitão do gentio” (cap. 6), nunca poderia ter sido um capitão oficial de guerra, pois era então jesuíta, deixando perplexos e enciumados pela sua ação os outros oficiais militares da restauração pernambucana, entre eles, o conhecido personagem dos pesquisadores da história cearense, Martim Soares Moreno, também ele comandante de forças potiguaras.

Ronaldo Vainfas descortina, a meu ver, um dos aspectos da guerra pernambucana ainda pouco discutido na historiografia: as rivalidades entre os oficiais (cap. 7 e 8). Da relação entre o capitão jesuíta e o capitão por ofício, “não seria absurdo dizer, sobre Manoel e Martim, que um era o espelho do outro” (p. 52). Entretanto, Soares Moreno era por ofício o capitão do jesuíta comandante de índios, sendo que aquele “tornar-se-ia, na verdade, inimigo figadal de Manoel de Moraes. O pior de todos” (p. 53). Com a conquista da Paraíba, em 1634, Manoel de Moraes se entregara as forças holandesas, sendo acusado por traição pelos oficiais militares luso-portugueses; em sua defesa no Tribunal do Santo Ofício, as rivalidades ganharam uma nova ressonância, ao afirmar ele que Martim Soares Moreno o havia abandonado à própria sorte em uma das mais importantes batalhas na Paraíba: “Martim Soares não tolerava o jesuíta metido a capitão” (cap. 9, p. 67).

A conquista da Paraíba, como diz o autor, trouxera uma inflexão não apenas quanto à dominação holandesa no andamento dos recontros, mas também na vida de muitos, entre eles, o jesuíta comandante de índios. Manoel de Moraes de prisioneiro de guerra, logo passou a informante precioso, nomeando todas as aldeias de índios e suas respectivas lideranças, uma das mais relevantes informações naquele contexto de batalhas. Mas não apenas isso. Em Recife, chegou mesmo a lutar ao lado dos holandeses contra os filhos da terra, vestido como “flamengo” em “traje de gente militar”, portando um “vistoso uniforme escarlate dos soldados holandeses”. Na mudança dos trajes – o que não era pouca coisa naquele mundo instavelmente perigoso – a partir de então o ex-jesuíta havia mudado mesmo de identidade: “Garboso e cheio de si, Manoel não trazia mais a tonsura que sempre tinha usado, mesmo quando lutava contra os holandeses na defesa da capitania, senão cabelo comprido e barba crescida” (cap. 10, p. 75).

Ao renegar a tonsura sacerdotal – marca característica dos inacianos – e vestir os trajes do vencedor, Manoel de Moraes aumentou a fúria que já lhe era devida pelos militares e religiosos. Para os primeiros, ele era mais um traidor à sombra de Calabar, “patriarca dos traidores” (cap.11), para os últimos, todavia, um herege que merecia a fogueira expiatória. A bem da verdade, nem um nem outro o deixaria em paz por essa afronta pública naquele mundo brasílico.

Ainda em 1635, o provincial da Companhia de Jesus, padre Domingos Coelho toma as providências para a expulsão de Moraes que, à época, mesmo antes de passar ao lado dos holandeses, diziam alguns, “já andava de chamego com as índias”. Acusado de fornicação, apostasia, heresia, e ainda por cima, de traidor dos portugueses, em junho deste ano, Manoel de Moraes fora avisado de sua expulsão dos quadros da Companhia de Jesus. A essa altura, contudo, o destino lhe traçara uma nova vida e, porque não dizer, uma nova identidade: no mesmo mês de 1635, Manoel de Moraes estava na Holanda, vivendo como consultor da Companhia das Índias Ocidentais (WIC).

Nos oito anos em que vivera nos Países Baixos calvinistas, entre 1635 e 1643, o ex-jesuíta casou duas vezes, contraindo as segundas núpcias à moda de Calvino após enviuvar-se. Protegido do humanista Joannes de Laet – renomado intelectual e diretor da WIC – a quem auxiliava em seus escritos sobre o Brasil, conseguiu entrar na prestigiada Universidade de Leiden e obter o grau de Licenciado em Teologia (cap. 16).

Dentre as suas produções, a mais importante foi um “plano para o bom governo dos índios”, documento desconhecido, mas citado em uma carta dos Dezenove Senhores ao Conselho Político do Recife, em 1635. Nela se previa o reconhecimento das lideranças indígenas leais e o reforço do trabalho dos missionários calvinistas e, como atentou o autor, tratava-se de “um modelo de catequese calvinista com metodologia inaciana” (p.121).

O Manoel ex-jesuíta não esquecera, como nunca esqueceria ao longo da vida, sua vinculação católica. A repercussão dessa maneira holandesa de governar com os índios pode ser constatada na troca de correspondência entre Pedro Poti e Felipe Camarão, índios potiguaras que defendiam lados distintos na guerra, já bem conhecida dos pesquisadores do Brasil colonial (cap.7 – Imbróglio indígena).

Mas o lado brasileiro de Manoel de Moraes não o deixava sossegado, sua ânsia era voltar ao Brasil. Contraiu um empréstimo com a WIC e voltou a Pernambuco, em 1643, onde se tornou um explorador de pau-brasil. Juntou cabedal e logo se tornou senhor escravista, auxiliado por uma feitora: a negra Beatriz. Logo, a luxúria do exjesuíta, aliás, esse era seu único pecado como sustentará por algum tempo no Tribunal da Inquisição, novamente era aflorada e Beatriz passa a ser sua amante. Vainfas, mais uma vez, sintetiza em poucas linhas os meandros da vida de seu biografado: “Manoel tornou-se um senhor de escravos como tantos outros, tinha escrava em casa, sua mulher estava na Holanda, e de padre ele já não tinha nem o hábito” (p. 233).

Em Recife, o ex-jesuíta e então ex-calvinista passa a freqüentar as igrejas e capelas; afinal, seu passado era católico e mesmo sob a pecha de traidor lhe era movido um sentimento de se reconciliar com a Igreja, quem sabe defender-se no próprio Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa, que nos idos de 1642 já o havia queimado em estátua pelos agravos públicos de 1635. Seja como for, “Manoel vivia com a consciência pesada. Identidade fragmentada”. (p. 245).

Para o leitor absorvido na intrigante vida dessa personagem, o ponto alto do livro Traição é, sem dúvida, a luta de Manoel de Moraes diante dos inquisidores. Sua intenção antecipada de se reconciliar com a Igreja e sua participação na “guerra da liberdade divina”, novamente empossado como capelão de tropa por ninguém menos que o general da restauração pernambucana, João Fernandes Vieira, não foi impeditivo para ele ser preso e remetido a Lisboa, a dar conta de sua vida ao Santo Ofício. (Cf. cap. 30 e 31).

A partir da documentação inquisitorial, Ronaldo Vainfas vai pouco a pouco desvendando os enredos construídos entre os acusadores e o réu. Para os inquisidores do Tribunal, traição e heresia eram lados da mesma moeda, por isso a relutância de Manoel de Moraes em esconder tanto quanto possível sua vida de traidor no ano de 1635.

Acusado de heresia pelo tempo em que vivera na Holanda, onde contraiu dois casamentos à moda calvinista, o réu insistirá que não conhecia nem mesmo a língua de seus anfitriões, e que casara apenas por luxúria, ou seja, pecado grave, mas que fugia da alçada da inquisição, preocupada com os crimes de fé: “Por causa da luxúria, era sua alma que arderia eternamente no inferno. Por causa da heresia, ele mesmo poderia arder na fogueira” (p. 287).

Entre 13 de abril e 23 de outubro de 1646, Manoel de Moraes preso nos cárceres de Lisboa, sustentará sua versão “catolicizante” de que, no Brasil e na Holanda, dera provas de sua identidade católica. Mas nada disso parecia reter um palmo sequer a convicção de seus acusadores. Sem confessar o que queriam ouvir os ministros do Tribunal, o ex-jesuíta foi mandado ao suplício na “sala do tormento” (cap.36), com o fim de ser içado pelos pulsos até o teto e de lá ser despencado ao chão numa polé.

Diante do instrumento de tortura, o bravo “capitão de emboscada” tremeu, e a imaginar o tempo de sua reclusão naquela atmosfera de ser queimado vivo, não viu outra alternativa e confessou.

Em Traição, o autor consegue realizar aquilo que se considera mais importante numa biografia ao estilo da micro-história: ajudar seus leitores a compreender um pouco melhor um mundo distanciado pelo tempo cronológico, mas trazido a tona percorrendo as pegadas de uma única vida jogada entre as estruturas e as conjunturas de um tempo historio pretérito4.

Aqui, peço licença ao leitor para usar uma das sutilezas argumentativas do escritor-historiador Ronaldo Vainfas que insiste em deixar para o próximo capítulo aquilo que procura demonstrar no anterior. No mais, os dois últimos capítulos de Traição nos apontam o destino dessa personagem excepcional. Contudo, na parte da cronologia, ao final do livro, há uma pista instigante e bem ao estilo do autor: “1651. Manoel de Moraes morre, provavelmente em Lisboa. Amém” (p. 342).

Notas

1. Cf. “Apresentação”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Tradução de Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 10. Vide também o capítulo primeiro.

2. Vale a pena uma leitura demorada da discussão elaborada entre Ronaldo Vainfas e Ciro Cardoso, paradoxalmente, num mesmo livro que organizam juntos. Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Especialmente a introdução e a conclusão, na mesma obra. Ainda do autor, vide: VAINFAS, Ronaldo & SANTOS, Georgina S. & NEVES, Guilherme P. Retratos do império – trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói: EdUFF, 2006.

3. Cf. LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In: REVEL, Jacques (org.). Op. Cit., pp. 225-249.

Ligio José de Oliveira Maia


VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 384p. Resenha de: Embornal, Fortaleza, v.1, n.2, p.1-6, 2010. Acessar publicação original. [IF].

Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas – SILVA (RBH)

SILVA, Flávio Marcus da. Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 293p. Resenha de: BASSO, Rafaela. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.60, 2010.

Subsistência e poder: a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas, escrito por Flávio Marcus da Silva, traz uma contribuição significativa para o campo da historiografia sobre Minas Gerais colonial, na medida em que analisa a dinâmica do abastecimento alimentar na região no século XVIII, a partir de uma perspectiva política. Nesse sentido, a proposta do historiador é atentar para as diferentes estratégias empreendidas pela Coroa Portuguesa para garantir o acesso da população aos gêneros alimentares de primeira necessidade e evitar qualquer desordem pública. Porém, acreditamos que essa não é a única importância da obra, uma vez que o estudo desenvolvido por ela perpassa várias instâncias da sociedade mineradora, buscando decifrá-la e repensá-la não só no âmbito geral da política e da economia, mas também no cotidiano, através do estudo da alimentação. Vejamos por quê.

O problema da instabilidade do mercado de víveres, no que diz respeito ao suprimento regular da população, era frequente em várias regiões da América Portuguesa. Ainda mais na sociedade mineira, que nesse período estava em seus primórdios e sem estrutura para receber o contingente de pessoas que para lá migravam, vindas de várias partes, inclusive da metrópole, em busca de ouro e pedras preciosas. Não foram raros os problemas referentes à escassez, à má qualidade e à carestia dos gêneros alimentares, os quais afligiam a população dessa região na primeira metade do século XVIII e geravam conflitos com as autoridades locais. Esses conflitos criavam um ambiente propício para a sublevação dos povos, o que de fato ocorreu algumas vezes no período. O livro analisa, portanto, a questão do abastecimento, cujo papel era fundamental para garantir

o êxito da administração na região e também para aquietar a população. Para se embrenhar nas tessituras da cultura política metropolitana, o his toriador revisita obras de autores como Adam Smith, E. P. Thompson, John Bohstedt, Adrian Randall e Andrew Charlesworth, que também se dedicaram ao estudo das políticas intervencionistas no âmbito do abastecimento alimentar. Esse debate forneceu ao autor acesso a conceitos explicativos, tal como o de economia moral extraído da obra A economia moral da multidão inglesa no século XVIII, de E. P. Thompson. Nesse trabalho, o historiador inglês aponta como as intervenções do poder público na comercialização de gêneros de primeira necessidade na Inglaterra moderna foram resultado de uma série de motins da população contra a fome generalizada no período. De acordo com Thompson, as revoltas eram motivadas por uma visão “consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos da comunidade, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres”. Tal postura estaria relacionada com noções que a comunidade tinha sobre o que era direito e dever do Estado, as quais seriam legitimadas por antigas tradições.

Deve-se ressaltar que essa categoria analítica será reavaliada por Flávio Marcus da Silva, tendo em vista dar conta da especificidade da realidade colonial de Minas. Para ele, o conceito deve ser mais abrangente a fim de esmiuçar

o equilíbrio de forças estabelecido entre governantes e classes populares, mediante um acordo implícito para garantir o cumprimento das obrigações sociais. Nesse ponto entra em cena a teoria corporativa do Estado, de António Manuel Hespanha. De acordo com essa teoria, a sociedade portuguesa – incluindo também suas possessões coloniais – deveria ser entendida como um organismo onde cada indivíduo tinha uma função para o bom funcionamento do corpo social e político. Nesse sentido, o soberano ocupava a posição da cabeça do “corpo”, cuja função deveria ser a de garantir o cumprimento da justiça mantendo a ordem e a harmonia dentro de seus domínios.

O uso dessas noções, em seu arcabouço teórico, permitiu a Flávio Marcus da Silva analisar as seguintes estratégias empreendidas pela Coroa para sanar os problemas advindos da crise de subsistência: a concessão de terras para a agricultura, a taxação dos gêneros de primeira necessidade, a fiscalização dos pesos e medidas, bem como a preocupação com a manutenção das estradas. Por desenvolver essa análise, acreditamos que o autor se propõe a romper com interpretações que, através de uma perspectiva política, trabalham com a dicotomia entre colonizadores e colonizados, como se não houvesse interesses comuns entre ambas as partes. Tais interpretações seriam advindas de uma visão que entende a colonização portuguesa somente como um vasto empreendimento predatório, voltado a explorar a colônia para atender os interesses da Coroa, sejam eles econômicos, políticos ou religiosos, entre outros. O historiador, por sua vez, quer trabalhar de uma nova maneira a relação entre colônia e metrópole, pois a pesquisa por ele desenvolvida o levou à elaboração da tese de que uma das preocupações centrais da administração em Minas era garantir a subsistência dos povos.

Nesse contexto não podemos deixar de mencionar que Flávio Marcus da Silva não se centra apenas nas ações das autoridades, pois ele nos possibilita visualizar a atuação dos mais diversos agentes históricos envolvidos, desde a produção e a circulação até o consumo dos alimentos. O que nos chama atenção é a negociação desses sujeitos com as autoridades e as relações sociais mantidas entre ambas as partes. De acordo com o autor, os habitantes de Minas perceberam que uma vez o Estado estando estabelecido por aquelas partes, sua obrigação seria garantir a subsistência da população. Além do mais, havia a noção da vulnerabilidade do aparelho administrativo metropolitano e o temor de que a população se amotinasse contra a falta de víveres. As autoridades, desta forma, não poupariam esforços para evitar conflitos, pois haveria o receio de que esses fossem duradouros, a ponto de ameaçar a estabilidade do controle sobre a área.

O que se pretende mostrar é a ação dos mais diversos indivíduos pressionando as autoridades por meio de ameaças, protestos e pequenas sublevações, a fim de que atitudes fossem tomadas com relação ao problema do abastecimento alimentar. Mesmo que na maioria dos casos as ações dos moradores não objetivassem solapar o domínio dos portugueses na região e sim firmar as bases legítimas desse domínio, sua postura política não pode ser deixada de lado, uma vez que demonstram a capacidade do povo de se organizar e defender seus interesses. Nessa proposta, Flávio Marcus da Silva analisa ainda o papel de indivíduos que, de certa forma, representaram um empecilho para o estabelecimento eficaz das políticas de controle sobre a dinâmica do mercado alimentar, tais como proprietários de terras, quilombolas, mercadores, negras de tabuleiro e atravessadores.

Podemos propor que o livro, além de trazer um olhar inovador sobre a política colonial empreendida em Minas, também traz contribuições no que diz respeito à maneira como aborda a economia local. O autor, influenciado por trabalhos que buscam repensar o papel da economia interna dentro da sociedade colonial,1 relativiza algumas ideias consagradas acerca da pobreza da Capitania, a qual estaria ligada ao exclusivismo da extração mineral e à lógica externa desse setor econômico. Dessa forma, ele se opõe à interpretação que relega para segundo plano a estrutura produtiva interna e a comercializa ção alimentar da região, preocupando-se em acompanhar o dinamismo da produção e do comércio interno. Para tanto, o diálogo com obras mais recentes sobre a historiografia de Minas Gerais2 é também fundamental, visto que elas apontam para uma diversificação desses setores, através de uma rede de abastecimento que procurava atender a demanda crescente dos moradores da zona aurífera. Contexto este que existia desde o início dos Setecentos, contrariando a imagem consagrada em outros estudos, segundo a qual a produção alimentar só teria ganhado espaço com a crise da mineração, no final do XVIII.

Ademais, acreditamos que a importância da obra Subsistência e poder reside no fato de que nela a alimentação é utilizada como chave para o entendimento das relações estabelecidas entre colônia e metrópole. Não é de hoje que a alimentação tem chamado atenção dos historiadores. Tal interesse veio se desenvolvendo desde o início do século passado, porém esse campo ainda é muito recente e pouco explorado pelos historiadores brasileiros. Acreditamos que ao trabalhar na perspectiva da História da Alimentação, a obra de Flávio Marcus da Silva é uma das contribuições que surgiram nos últimos anos para suprir essa lacuna.

O autor, ao se mover nessa perspectiva, faz uso dos mais variados enfoques para adentrar seu objeto de estudo, tais como o econômico, o social e o cultural. A presença do primeiro se manifesta na medida em que Flávio Marcus da Silva se preocupa com os problemas referentes à economia de subsistência e à sua dinâmica interna, abrangendo desde a produção até o consumo dos alimentos e sua comercialização com outras partes. O enfoque social se faz presente, visto que são abordados no livro os temas da fome e da desordem social, provenientes dos problemas de abastecimento, bem como a questão da atuação “estatal”, cujo objetivo era sanar o problema através de políticas públicas. Quanto ao enfoque cultural, apesar de não ser uma preocupação do autor e de infelizmente ser o menos explorado pelos trabalhos na área de História da Alimentação, visualiza-se sua presença ainda que tímida no livro, pois temos alguns indícios do cotidiano desenvolvido em torno da alimentação. O autor nos fornece um panorama dos hábitos alimentares daquela região, mostrando alimentos consumidos, bem como alguns de seus usos.

A obra Subsistência e poder de Flávio Marcus da Silva traz várias contribuições para os estudos históricos sobre Minas Colonial, na medida em que reflete sobre aspectos da colonização portuguesa empreendida naquelas terras. Dentre esses aspectos destaca-se a oposição à ideia de pobreza generalizada, decorrente do exclusivismo da indústria mineradora. Tal exclusivismo teria consumido todos os esforços dos colonos e relegado a produção dos gêneros de subsistência para um segundo plano. Além de apontar a importância desta última produção para o mercado interno, o autor apresenta outra face da colonização, diferente daquela intransigente e alheia aos problemas que afetavam a população. Nesse sentido, ao buscar penetrar na sociedade mineira partindo das tensões que a constituíam, ele move constantemente as fronteiras do econômico, do político e do social, apresentando um estudo revelador de toda uma complexa rede de relações que permearam tal sociedade.

Notas

1 Dentre essas obras podemos citar os trabalhos pioneiros de LINHARES, Marie Yeda. História da agricultura brasileira, combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1982;         [ Links ] e de LAPA, José Roberto do Amaral. Economia colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973,         [ Links ] bem como outros que os seguiram, como o de FRAGOSO, João. Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça do Rio de Janeiro 1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.         [ Links ]

2 GUIMARÃES Carlos Magno. Uma negação da ordem escravista: quilombos em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Ícone, 1988;         [ Links ] FURTADO, Júnia. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999;         [ Links ] e MENESES, José Newton Coelho de. O Continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina (MG): Maria Fumaça, 2000.         [ Links ]

Rafaela Basso – Mestranda da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Departamento de História. Rua Cora Carolina, s/n – Campinas – SP. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

Cultura escrita: séculos XV a XVIII – CURTO (RBH)

CURTO, Diogo Ramada. Cultura escrita: séculos XV a XVIII. Lisboa: ICS, 2007. 438p. Resenha de: DURAN, Maria Renata da Cruz. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.30, n.60, 2010.

O livro Cultura escrita: séculos XV a XVIII, de Diogo Ramada Curto, é categórico em sua proposta: “orientado analiticamente … desafia toda e qualquer forma de modelação dos sistemas de comunicação, visando trazer para o centro da análise a instabilidade criativa que se encontra presente na intervenção de cada agente (autores, impressores, mecenas, censores, leitores, etc.)” (p.12).

Seu autor, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, na Escola dos Altos Estudos, nas universidades de Brown e Yale, no King’s College e no Instituto Universitário Europeu, funda a proposta ora apresentada na prerrogativa de que “tais estruturas podem ser vistas como definindo lugares onde se enraízam regimes de práticas” (p.14). Tal constructo nos é apresentado por meio de 12 capítulos, dispostos segundo uma lógica em que as fontes de pesquisa, a noção de história, os agentes do processo, seu modo de produzir e seu tipo de produção são concatenados em textos já conhecidos do público europeu, seja por meio de palestras ou de artigos. Separados, em sua escrita, por cerca de dez anos, os ensaios serão abordados pontualmente.

No primeiro capítulo, intitulado “Gravura e conhecimento do mundo em finais do século XV”, Curto procura abstrair do estudo do modo de produção dos livros que circularam na Alemanha, na Itália e na Península Ibérica a longevidade da combinação entre textos e imagens impressas, e as interferências entre a forma de transmissão de uma mensagem e o sentido dos conteúdos transmitidos.

No segundo capítulo, “A língua e a literatura no longo século XVI”, o foco são as “questões que supõem a possibilidade de determinar a vitalidade do uso social de uma língua” (p.58), por meio de um estudo sobre o estabelecimento de hierarquias em luta pela imposição de discursos legítimos.

No terceiro capítulo, “Historiografia e memória no século XVI”, o autor se volta para a corte de d. João II, propondo uma sondagem acerca da genealogia das obras no âmbito cotidiano e ordinário de sua existência.

No quarto capítulo, “Orientalistas e cronistas de Quinhentos”, Curto pretende demonstrar o vínculo entre feitos e obras a partir de um sentido comum, por ele afixado nas lógicas de família e de parentesco.

No quinto capítulo, “Uma tradução de Erasmo: Os louvores da parvoíce“, Curto reproduz palestra proferida no colóquio “Erasmo na Cultura Portuguesa”, realizado pela Academia de Ciências de Lisboa em maio de 1987.

No sexto capítulo, “Uma autobiografia de Seiscentos: a Fortuna de Faria e Sousa”, o autor repassa a figura do bricoleur, apontando registros autobiográficos, discursos confessionais, relatos picarescos e memoriais de serviços como interessantes fontes de pesquisa para o estudo dos homens de letras. Para mais, recorre à noção de tomada de consciência para traçar o percurso e distinguir a consciência de si de homens como Faria e Sousa.

No sétimo capítulo, “Grupos de rapazes, violência e modelos educativos”, o descentramento em relação aos processos de organização social, a valorização da esfera privada e o fim de “uma determinada concepção de espaço público” compõem o texto.

No oitavo capítulo, “Mercado e gentes do livro no século XVIII”, Ramada Curto é diligente, procurando nos arquivos notariais, comerciais e religiosos as referências pessoais das “gentes do livro” residentes em Portugal. O que o autor, outrora editor da coleção Memória e Sociedade da Difel portuguesa, acompanha são as mudanças na forma de trabalhar do escritor ocidental, o que encontra é o estabelecimento de uma relação com um público alargado e com novos tipos de mecenas.

No capítulo nono, a presença da corte portuguesa nos domínios da cultura escrita lhe permite traçar sua noção de iluminismo. Com “D. Rodrigo e a Casa Literária do Arco do Cego”, apresentam-se “numa lógica de relações claramente cortesãs” as tensões de uma época em que coabitavam figuras como d. Rodrigo e Pina Manique, protagonistas do excerto.

No décimo capítulo, “Literaturas populares e de grande circulação”, o historiador português prossegue na companhia dos documentos notariais, mas, agora, sai das casas e vai para as ruas, procurando valorizar o espaço urbano “a partir dos significados atribuídos a cada espaço particular, bem como às suas respectivas relações” (p.299).

Em “Notas para uma história do livro em Portugal” e em “Da tradição bibliográfica à história do livro” o autor problematiza as pesquisas lusófonas sobre o livro. Primeiro apontando a subalternização da produção e da divulgação de novos conhecimentos em função da cristalização de algumas explicações; depois, afirmando que suas observações têm “a ambição exclusiva de poder funcionar como guia crítico de futuras investigações” (p.414).

Nessa construção de uma “história dos sistemas de conhecimento imperiais” tendo em vista o modo como nela se desencadearam “novas perspectivas em relação ao estudo da cultura escrita” (p.17), Curto procura orientar seu pensamento a partir de dois modelos historiográficos: o de Lucien Febvre, com seu Rabelais “vivendo numa época cujas estruturas mentais não lhe permitiam pensar sequer no problema da descrença”, e o de Carlo Ginzburg, com seu Menocchio “que, uma vez interrogado pelos inquisidores, demonstrava a sua originalidade em fabricar uma visão própria do mundo” (p.14). Não se trata, todavia, de optar por um desses rumos, mas, sim, de “reforçar um ponto de vista capaz de explorar as diferentes dinâmicas sociais presentes mesmo quando se trata de sociedades altamente hierarquizadas e caracterizadas – como sugeriu Vitorino Magalhães Godinho – por diversos bloqueios” (p.15).

Do mais, que Ramada Curto traga novas questões e novas fontes para enriquecer o estudo dos domínios da cultura escrita é tão certo quanto sua proposta de movimentar a historiografia lusófona. Acerca dessas provocações e do lançamento de Cultura imperial e projetos coloniais (séculos XV a XVIII), editado pela Unicamp em 2009, deu-se um encontro ocorrido no dia 23 de outubro de 2009, no IFCH da Unicamp, aqui descrito para melhor esclarecer o lugar do autor na historiografia contemporânea.

No encontro, Silvia Hunold Lara apresentou e Alcir Pécora debateu um texto de Ramada Curto pautado pela discussão do barroco, da cultura letrada e do período compreendido entre o final do século XVI e o início do XVII. Em sua fala, o historiador português ponderou que a assistência teria contato com uma visão estrangeira de sua terra e, então, anunciou a pretensão de analisar um “conjunto de atitudes” capaz de desenhar uma autorrepresentação da época à luz dos seus “diversos contextos pertinentes”.

A arguição de Alcir Pécora distinguiu o ardil de Curto: cria-se no seu tipo de historiografia um inventário calculado que dissolve lugares comuns, mas que, ao mesmo tempo, esquiva-se de polêmicas. Ramada Curto respondeu mencionando a necessidade do historiador de buscar novas fontes e de tirar das mais comuns o estatuto absoluto por elas alcançado, não para desautorizá-las, mas para avançar com a pesquisa – no que evoca Irving Leonard, afirmando a prerrogativa de se fugir às totalizações para não perder as distinções.

A réplica de Pécora foi enfática – “Mas seu texto não responde o que pergunta!” –, no que Curto se explicou descrevendo a própria formação: lecionou uma Sociologia da Literatura Brasileira em universidades norte-americanas; aprendeu, na juventude, a ideia de mosaico; participou da efervescência francesa sobre o estudo do fragmento (o que considera um privilégio). Em Portugal, tomou lições sobre o neolusotropicalismo e aprendeu a manter o discurso sobre as colônias “a panos quentes”. Em seguida, Ramada Curto afirmou que sua intenção não é tanto fazer uma proto-história, quanto ressaltar os contrastes de cada época para dar a ideia de sua dinâmica, tendo em vista que “uma cultura deve ser vista a partir de seus fragmentos e em relação a um conjunto de práticas que envolva pessoas concretas”. Alcir Pécora não expressou convencimento ou concordância. Os espectadores, inquietos, passaram a perguntar.

Laura de Mello e Sousa foi a primeira, indagando sobre sua proximidade com Nathalie Zamon Davies na obra “A ficção no arquivo” e sobre sua opinião acerca de uma construção literária que permite o tipo de história que ela detectava nos livros do historiador português.

Para responder, Curto citou Naipaul, se disse longe de Davies e afirmou sua posição como a de alguém que busca na realidade, e não na ficção, os seus recursos. Concluiu essa resposta recomendando a leitura de Pierre Chaunu para os espectadores mais jovens.

Silvia Hunold Lara, brincando com a expressão de Pécora sobre o texto de Curto – “uma muralha” –, refere-se a ele como um mar, cujos vagalhões vêm na forma de notas de rodapé e onde as correntes têm maior importância que a desembocadura. Para ela, Sérgio Buarque de Holanda é correnteza subterrânea nesse mar, no que um aceno de Ramada Curto nos faz crer que estava certa.

Iris Kantor assinalou que não apenas os historiadores portugueses não conhecem a bibliografia brasileira, como os brasileiros não conhecem a historiografia portuguesa; que talvez esse seja um problema geracional, mas que ele só tem aumentado. Menciona a ideia de uma geografia política de intelectuais e pede que Ramada Curto se localize ali.

Ramada Curto enunciou Pierre Vilar a propósito do que colocou como uma de suas principais perguntas: “Como pensar a nação?”. Depois, descreveu suas preocupações acerca do desconhecimento da historiografia e, sobretudo, das fontes históricas assinalando, relutante, que as bibliotecas e arquivos possuem muito mais manuscritos guardados que catalogados, e que, destes, “basta que a ficha seja roubada, para se perder a memória do mesmo”.

Faço uma pergunta: de onde vem e para onde vai a ideia de uma tomada de consciência em sua obra? Ele responde: vem de uma tradição marxista e da necessidade, no momento em que vivemos, de suscitar ideias como essa. Daí por diante, entre fragmentos dispersos, tais como algo sobre a impossibilidade de classificar o passado, mas buscando conferir se seus agentes o fazem, recordo que Ramada Curto, respondendo a uma reivindicação de Pécora sobre sua metodologia, assinalou: “Não digo isso no próprio texto porque não posso estar sempre a dizer das regras do jogo que estou a jogar”.

Maria Renata da Cruz Duran – Doutora pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Quadra 02, Bloco L, 7º andar Brasília – DF. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

Le devenir actif chez Spinoza – SÉVÉRAC (CE)

SÉVÉRAC, Pascal. Le devenir actif chez Spinoza. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2005. Resenha de: PAULA Marcos Ferreira de. Como tornar-se livre e feliz. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 22, 2010.

Lançado na França há cinco anos, Le devenir actif chez Spinoza, de Pascal Sévérac, é uma dessas obras de comentário que se tornam “referência obrigatória” assim que são publicadas. O tema de que trata Sévérac toca o cerne da filosofia de Espinosa: como “tornar-se ativo”? Pergunta que, em Espinosa, pode ser perfeitamente reescrita assim: como afinal chegamos a ser livres e felizes? É por isso que devenir, aqui, é melhor traduzido por “tornar-se”, em vez de “devir”, já que o tema do livro não é outro senão o processo mesmo de conquista da felicidade e da liberdade. Há contudo, como veremos, um lugar da obra em que o termo pode ser traduzido como devir.

A importância das paixões alegres

Um pouco na esteira de Deleuze, Sévérac põe a “alegria passiva” no centro do problema do “torna-se ativo”. De fato, pergunta-se Sévérac, pode-se ser feliz, isto é, potente, em meio a uma passividade que é constitutiva, já que somos parte da Natureza em relação com outras partes? Como pensar a passividade ou impotência numa filosofia que propõe uma ontologia da afirmação absoluta? São problemas éticos e ontológicos que poderiam ser focalizados num só ponto: a existência de alegrias passivas. De um lado, elas mostram que não se pode identificar passividade e sofrimento; de outro, elas deixam ver há um paradoxo: enquanto alegria é aumento da potência, mas enquanto paixão é negação da potência; paradoxo que, porém, não chega a ser uma contradição, já que a alegria passiva não é ao mesmo tempo aumento e diminuição, mas aumento e negação que só podem ocorrer em momentos afetivos diversos, e por causas que não dizem respeito à alegria em si mesma. Como se poderia, com efeito, distinguir subjetivamente a alegria passiva da alegria ativa? A diferença objetiva, como bem lembra Sévérac, não é um problema: somos causa parcial do afeto de alegria, num caso, e causa total no outro. Mas se não há diferença, o que explica a passagem? Qualquer leitor de Espinosa sabe que não se trata de dever moral: não somos obrigados a buscar a felicidade, por uma determinação extrínseca à nossa própria experiência afetiva. A questão, portanto, não é o que se deve ou não fazer, mas o que se ganha e o que se perde ao se passar da alegria passiva à ativa. Assim, como indica a leitura atenta que Sévérac faz de Espinosa, é preciso perguntar como se explica o problema, considerando-se a realidade efetiva do desejo. E aqui questão do livro ganha toda a sua força e coerência, indo ao cerne do problema ético: como afinal chegamos a desejar, no interior mesmo da vida passiva, o tornar-se ativo? É assim que a abordagem do problema do “tornar-se ativo” ou da conquista da felicidade passa pela consideração, por um lado, daquilo que na própria vida passiva nos impede de ser ativos, mas, por outro lado, daquilo nela justamente nos leva a desejar o tornar-se ativo. Vê-se então que não saímos do campo das paixões ao explicar a passagem à atividade, porque é aí que o problema se explica.

A estrutura da passionalidade admirativa

E a explicação de Sévérac nos traz uma contribuição original, ao enfatizar o papel de um afeto em particular: a admiratio. A admiração é de fato um afeto bastante particular na teoria das paixões de Espinosa: ela mantém a mente fixada numa coisa através de uma “imaginação singular” (singularis imaginatio) que não tem nenhuma conexão com as outras coisas (Spinoza 2, Def. dos Afetos 4, p. 241). Dada assim a sua estrutura particular, a admiração é o afeto que, segundo Sévérac, oferece o maior obstáculo ao processo liberativo. O problema maior é que, afirma o autor, muitos afetos passivos não comportam a mesma estrutura da admiração, e é por isso que a esses afetos nós tendemos a aderir tenazmente, isto é, de forma obessiva (fixação afetiva).

A fixação e a obsessão nos distraem de outros bens que poderiam aumentar nossa capacidade de agir e pensar. Elas limitam nossa potência. Riqueza, libido e honras são assim, na leitura de Sévérac, bens que nos distraem (o termo de Spinoza é distrahitur), mas a distração não é ela mesma um sofrimento, uma tristeza – ou seja, uma diminuição da atividade de pensar: ela é um impedimento dessa atividade, um obstáculo, uma barreira. Nessa medida, escreve Sévérac: “ (…) a distractio, a qualquer bem que ela se reporte, não envolve nenhum sofrimento em si mesma. Ela consiste de fato em um impedimento para aceder ao verdadeiro bem, mas esse impedimento não é sentido como tal: ele não é sentido como um mal (Sévérac 1, p. 235). A admiração, portanto, impede a potência sem necessariamente entristecer. Eis por que os afetos que ocorrem sob a estrutura da admiração podem nos manter fixados e obsedados num determinado bem, numa determinada coisa ou alegria, limitando nossa capacidade de agir e pensar. Se o tornar-se ativo é a aptidão para o “múltiplo simultâneo”, para usar uma expressão de Chaui, então o maior problema é o pensamento ou afeto obsessivo. É portanto sob a estrutura da admiração que um afeto adere tenazmente. E o afeto tenaz é justamente o grande inimigo a ser combatido, na interpretação de Sévérac. As teorias da admiração, do afeto tenaz e da distração levam a uma outra: a “Teoria da ocupação da mente”, assunto de todo o capítulo IV do. Todas estas teorias estão intimamente interligadas, em Sévérac: a admiração é a estrutura afetiva que leva à fixação em certos afetos, aos afetos que aderem tenazmente; com isso, causando um desejo excessivo e nos fazendo admirá-los sem cessar, nós somos distraídos a tal ponto que não podemos pensar noutra coisa, e portanto não podemos pensar em outro modo de vida melhor, o que em Espinosa significa não pensar num “modelo de natureza humana”; assim, a mente então pode estar ocupada, ou com o que nos distrai, ou com o que nos permite pensar no novum institutum. É da distração, e da fixação num “modelo de natureza humana”, esses dois modos por excelência de ocupação da mente sob as paixões, que trata o capítulo IV.

A idéia de modelo é importante na argumentação de Sévérac. Trata-se de pensar, ainda no campo próprio das paixões, um novo modo de vida. É portanto ainda no campo do imaginário que o tornar-se ativo se impõe. Se tudo se passa no universo passional, ser salvo é ser salvo através do corpo: não podemos, só pela razão, abandonar nossas alegrias. É que a negação da potência não significa necessariamente tristeza, como o demonstra a alegria passiva, mas antes polarização dos afetos, fixação e obsessão afetiva. Mas justamente toda a dificuldade em tornar-se ativo está em que a conquista da felicidade deve ser realizada em meio à passividade alegre, em que o problema é, especificamente, o afeto tenaz. É sob o afeto tenaz que somos dominados pelas paixões, e é esse o maior obstáculo ao devir ativo. O pensamento de um “modelo de natureza humana”, tal como aparece no Tratado da Emenda do Intelecto e no prefácio da Parte IV da Ética, exemplifica a utilidade da imaginação. Para Sévérac, o devir ativo exige a substituição de um “imaginário da obsessão” por um “imaginário da salvação”.

Assim, as paixões que nos dominam devem ser combatidas no próprio campo da passividade: forjamos um “modelo de natureza humana” que é ele mesmo um objeto admirado e sobre o qual nos fixamos de algum modo. Há portanto, ainda no campo da imaginação, uma mudança de idéia, isto é, de afeto. Mas se toda obsessão se dá, como toda paixão, sob a estrutura da passionalidade admirativa; se todo imaginário fixo é “imaginário admirativo”, de que modo o imaginário do modelo não nos manteria fixos numa outra ilusão? A resposta está em como se opera uma tal mudança. E aqui Sévérac não hesita em nos remeter à idéia de que tudo se passa num campo de forças: não basta que uma idéia seja verdadeira para nos livrar de uma paixão, é preciso que ela nos seja um afeto mais forte e contrário aos afetos a serem combatidos. A própria racionalidade encontra então seus meios de se afirmar contra os amores excessivos, exclusivos e fixadores, pela constituição de um imaginário que a toma por objeto (Sévérac 1, p. 434).

o eterno devir ativo

O livro de Sévérac é extenso e sua análise é minuciosa. O leitor tem a impressão de que o autor tenta resolver todos os problemas que aparecem no desenrolar da argumentação, de que todas as questões devem ser enfrentadas sem economia (na medida do possível) de tempo e espaço. Não cabe aqui tratar de todas elas. Mas uma questão importante que Sévérac teve que enfrentar, evidentemente, é a do problema da eternidade em Espinosa. Aqui talvez o termo devenir possa ser melhor traduzido por devir. É o problema do “devenir actif éternel”: como se poderia falar de um devir ativo numa metafísica em que nossa participação no Real, na Natureza e na Substância é proclamada eterna? Ou seja, se somos já de algum modo eternos, como pensar um devir ativo, ou um vir-a-ser feliz? Em outras palavras, o problema da conquista da felicidade, o tornar-se ativo, se colocaria então em termos da conquista de nós mesmos, daquilo sempre fomos mas não sabíamos que éramos. É o assunto do último capítulo do livro.

A eternidade em Espinosa parece pôr em questão a possibilidade do tornar-se ativo como conquista através de um “supremo esforço”, summum conatus. A eternidade é uma descoberta ou uma revelação? Uma invenção ou uma produção? (Sévérac 1, p. 417). O escólio da proposição 34 da Parte V da Ética afirma que os homens têm consciência de sua eternidade, mas a confundem com a imortalidade. Para Sévérac, há duas maneiras possíveis de ler essa afirmação: ou bem há uma eternidade em si que não é por si (ela está lá, dada, mas não temos – a maior parte dos homens – consciência dela); ou bem a crença na imortalidade é uma consciência da eternidade, mesmo que seja uma idéia confusa, e neste caso não há eternidade que não seja ao mesmo tempo em si e para si. O escólio da proposição 23 da Parte V parece concordar com essa segunda interpretação, já que afirma que toda mente é em parte eterna, e, mais do que isso, afirma que nós “sentimos e experimentamos” ser eternos.

Mas o problema da eternidade, diante do tema do tornar-se ativo, aparecerá com toda clareza no escólio da proposição 31 do De libertate, onde Espinosa afirma que, embora só agora estejamos certos da eternidade da mente, consideraremos como se só a partir de então ela começasse a o ser, como se a eternidade da mente tivesse tido um começo no momento em que compreendemos que ela é eterna em parte. Por esse escólio Sévérac afirma que podemos diferenciar o fato de a mente ter uma parte eterna do fato de temos a certeza disso (Sévérac 1, p. 423). Para ele, é justamente porque nos tornamos eternos, porque começamos a experimentar o amor intelectual, que nós fazemos como secomeçássemos a ser eternos (Sévérac 1, p. 424). Contudo, assim como, para formar uma idéia verdadeira do círculo forjando o movimento de um semi-círculo em torno de seu centro, é preciso já ter uma idéia de círculo, assim também, para formar a idéia verdadeira de nossa eternidade é preciso forjar a idéia de seu começo. Porque, segundo o autor, é a ficção do devir eterno que engendra a certeza do devir eterno, da eternidade, com o que nos tornamos verdadeiramente mais e mais eternos:

“Os comentadores sem dúvida insistiram bastante sobre o fato de que nos é preciso ser eterno para em seguida tornarmos-nos certos dessa eternidade; é preciso quanto a nós insistir sobre o fato de que só podemos nos tornar certos de sermos eternos se engendramos a partir da ficção de um devir essa certeza, e portanto essa existência eterna” (Sévérac 1, p. 425).

É então a ficção do devir eterno que nos permite ter a certeza de nossa eternidade (Sévérac 1, p. 426), e é a idéia fictícia do devir ativo – o que ele chama de “ficção verdadeira” – que eliminará contudo a idéia de um engendramento da eternidade: “…a ficção do devir faz vir efetivamente o que retrospectivamente não pode mais ser concebido adequadamente em termos de devir” (Sévérac 1, p. 427). Assim a passagem à atividade é uma idéia fictícia que precisa ser forjada. Não há de fato passagem: o que há é um esforço que vai de uma atividade reduzida, porque limitada pelas potências exteriores, à uma atividade expandida, porque determinada antes de tudo pela atividade interna da mente na produção dos afetos.O devir ativo eterno não é portanto inexplicável. Ele se deixa apreender no momento mesmo em que se realiza. No ponto onde tudo pareceria problemático – de onde um devir eterno se já estamos necessariamente na eternidade? –, tudo se resolve, segundo Sévérac, pois no momento mesmo em que nos tornamos eternos, já não podemos mais nos pensar como não eternos (Sévérac 1, p. 435). Sévérac nos fala assim em processo eterno de engendramento da certeza da eternidade. Partindo da passividade, cabe-nos engendrar a atividade eterna, e é a isso que nos conduz nosso “supremo esforço”, que recorre à ficção de nosso “nascimento na beatitude”, mas essa ficção “faz advir o que retrospectivamente não pode mais ser concebido senão como eterno”. O devir ativo reabsorve todo o passado, que se torna ele mesmo eterno, sendo concebido em sua eternidade. Os estudiosos de Espinosa não deixarão de encontrar, nessas leituras de Sévérac, os motivos de um grande prazer intelectual.

Referencias

  1. SÉVÉRAC, Pascal. Le devenir actif chez Spinoza. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2005.
  2. SPINOZA, B. de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

Marcos Ferreira de Paula – Professor de filosofia do Departamento de Saúde, Educação e Trabalho da Unifesp-Santos.

Acessar publicação original

Qaraqara-Charka. Mallku, Inka y Rey en la Provincia de Charcas (Siglos XV-XVII) – PLATT et al (C-RAC)

PLATT, Tristan; BOUYSSE-CASSAGNE, Thérèse; HARIS, Olivia. Qaraqara-Charka. Mallku, Inka y Rey en la Provincia de Charcas (Siglos XV-XVII). Historia Antropológica de una Confederación Aymara. La Paz: Instituto Francés de Estudios Andinos, Plural Editores, University of St. Andrews, University of London, ínter American Foundation, Fundación Cultural del Banco Central de Bolivia, 2006. 1088p. Resenha de: ORÍAS, Paola Revilla. Chungara – Revista de Antropología Chilena, Arica, v.41, n.2, p.309-311, dic. 2009.

En abril del año 2006 apareció: Qaraqara-Charka. Mallku, Inka y Rey en la provincia de Charcas (siglos XV-XVII). Historia antropológica de una confederación aymara [en adelante QQCH]. Se trata de la cristalización de un proyecto de investigación emprendido por Tristan Platt, Thérése Bouysse-Casagne y Olivia Harris [en adelante TTO], antropólogos e historiadores comprometidos en la indagación del pasado andino, quienes durante años recopilaron, estudiaron e interpretaron el material que presentan en este volumen.

El sólido análisis crítico propuesto se centra en las manifestaciones políticas, económicas, sociales y culturales del territorio Qaraqara-Charka -confederación de etnias regionales y señoríos prehispánicos de América del Sur que se fue constituyendo en conjunto político después del eclipse de Tiwanaku (Platt et al. 2006:25)-, durante las épocas prehispánica y colonial, atendiendo particularmente al papel y desenvolvimiento de los señores naturales en los diferentes contextos en que ejercieron su autoridad. La idea parece haber sido gestada en Sucre (Bolivia) en los años ochenta, con el aliento de intelectuales como John Murra, Thierry Saig-nes y Gunnar Mendoza.

En el propósito colaboraron estudiosos como Thomas Abercrombie, Mercedes del Río, Roger Ras-nake, Carlos S. Assadourian, Teresa Gisbert, Rossana Barragán, Jorge Hidalgo, Martti Parssinen, Ana María Presta y Nathan Wachtel entre otros, lo que junto a la amplia covertura institucional internacional de que fue objeto la publicación, nos señala la envergadura del proyecto acometido. Hasta aquí, ningún investigador o grupo de investigadores se había enfrentado a un reto historiográfico de tal magnitud sobre las raíces profundas de Charcas.

Tres son los momentos y escenarios cuyos pormenores analiza este libro: el mundo prehispánico, la incorporación de la Confederación Qaraqara-Charka al Estado Inca y posteriormente al Imperio español sobre la base de una alianza de intercambio recíproco.

Al inicio encontramos un rico, puntual y breve ensayo de interpretación antropológica de conjunto, pero no estamos aquí ante una historia monográfica concluyente sobre Charcas, sino ante una mirada indagatoria y reflexiva en torno a las manifestaciones socio-culturales, similitudes, diferencias, trato e interacción que se estableció entre los señoríos Qaraqara y Charka, de éstos con las demás federaciones de Charcas y con otras regiones.

La obra está dividida en cinco capítulos principales: Culto, Encomienda, Tasa, Tierra y Mallku, cada uno con un conciso ensayo de interpretación que introduce el contexto específico de la documentación transcrita en extenso al final del libro. Muchos de los documentos presentados, hasta aquí inéditos, nos llegan por primera vez reunidos y con un sólido aparato crítico.

Atendiendo a la subjetividad inmanente a cada texto y los criterios de verdad de la época, el análisis crítico documental le da especial relieve a la indagación en las condiciones de producción, en lo que dicen y parecen callar las voces interactuantes, sumergiendo la atención del lector en diferentes procesos de construcción de la memoria. No olvidemos que hay historiadores y antropólogos envueltos en una empresa que combina técnica y método de archivo con trabajo de campo, además de algunos acercamientos arqueológicos e incluso climatológicos. La práctica interdisciplinaria ciertamente enriquece el trabajo y suscita interrogantes desde diferentes ángulos. Estamos ante una moderna exégesis de fuentes que deja entrever formas alternativas de integración y análisis de datos, y que permite la (deReconstrucción de la vida prehispánica y colonial en Charcas. Diferentes lecturas parecen posibles. No podía ser de otra manera al tratarse de la historia de una sociedad en esencia polifónica y multicultural, donde las voces de los sujetos históricos parecen yuxtaponerse.

El capítulo “Culto” presenta dos probanzas de méritos, una de un cura vasco de la diócesis de Charcas y otra de un párroco de Chayanta. El valor de estos textos está en relación con la poca documentación que hay al respecto para Charcas. En el capítulo “Encomienda”, encontramos tres cédulas bastante tempranas que permiten entender la organización de Qaraqara y de Charka, así como la constitución de los centros de poder de la zona. “Tasa” por su parte remite a documentos sobre pleitos entre indios y encomenderos, así como a cálculos oficiales que, elaborados en diferentes momentos, proporcionan valiosos datos sobre contabilidad y monetización colonial, aclarando el panorama tributario. En “Tierra”, los autores seleccionan y abordan el estudio de algunos casos individuales documentados, los mismos que, ampliando el lente analítico, permiten comprender la realidad política local y regional de las fronteras entre ayllus.

Dada la variedad de los problemas planteados y la dinámica de su estructura, los capítulos suelen entrecruzarse y complementarse en su contenido, lo que a su vez indica que diferentes recorridos son posibles dependiendo del interés del lector.

El marco temporal abarca a grandes rasgos los siglos XV-XVII, aunque hay documentos que sobrepasan estos límites. Por otro lado, algunos textos podrían pasar como piezas de microhistoria, ya que, si bien toman en cuenta la coyuntura individual, con un cambio de lente permiten identificar un contexto más amplio. En otros casos, en un mismo texto se entrecruzan varias temporalidades relacionadas por cierto lugar común, el mismo que permite reconocer elementos de larga duración dentro de una visión braudeliana. Y es que, antes que buscar huellas prehispánicas en el tiempo diacrónico, el afán de contextualización de TTO busca entender cómo prácticas culturales concretas lograron ir cobrando nuevos sentidos por medio de la interacción de los actores.

El territorio de la Confederación Qaraqara-Charka se presenta como un espacio diferenciado -política y culturalmente hablando- del Collao, cuya tendencia hegemónica en la zona antes de la llegada de los Inca se debió a su privilegiada posición económica, política y geográfica estratégica dentro del Qullasuyu (Platt et al. 2006:28). No obstante, fuera de todo presentismo concluyente, los mapas presentados se anuncian sólo referenciales, dando prioridad al estudio de las personas en relación al de los territorios. Así, los autores nos dejan sospechar el dinámico contacto que hubo entre grupos de puna y de valle, sobre la base de obligaciones de reciprocidad política, religiosa y militar entre comunidades, trayéndonos a la mente aquel modelo de autosuficiencia estudiado por Murra y Condarco Morales para la zona andina (Condarco Morales y Murra 1987). La postura es más cautelosa a la hora de reflexionar sobre la posible tradición dual de gobierno, pero llega a proponer que se trató de una confederación formada por Charka vila y Charka hanco: “Así se justificaría que, más tarde, los Qaraqara siguiesen clasificándosejunto con los Charka” (Platt et al. 2006:47).

Una de las reflexiones más interesantes que nos ofrece QQCH gira en torno al estudio de la autoridad indígena en Charcas. Esta es presentada como una fuerza dinámica y transformadora de sí y de su entorno en el contacto y la convivencia diaria en el escenario colonial. Precisamente, el último capítulo “Mallku”, presenta probanzas de méritos y servicios de señores naturales, relatos personales sobre el linaje de algunas familias que, en la larga duración, permiten descubrir ciertos objetivos de encumbramiento y de poder escondidos entre líneas dentro de un escenario más amplio que el individual. En este sentido una pieza clave es el “Memorial de Charcas”, pronunciamiento de los mallku de la zona en que instan al Rey a proveer los remedios necesarios en diferentes aspectos concernientes a la situación del indígena después de las reformas toledanas; pero, particularmente, buscando el restablecimiento de sus derechos y estatus de altas autoridades prehispánicas, enumerando los servicios hechos a los Inca y al Rey y pidiendo ser tratados como nobles españoles. Resalta aquí el acusioso análisis del papel y estrategias de los mallku de Charcas para acomodarse en contexto colonial. Este documento reúne los puntos esenciales abordados en los diferentes capítulos, y cuya preocupación de transcripción y reedición parece haber sido una de las motivaciones principales de la gestación de QQCH.

En pos de comprender mejor la posición, relación e influencia de los señores naturales de Qaraqara y Charka, así como la transformación diacrónica de las sociedades andinas, TTO proponen una aproximación rigurosa a dos momentos ineludibles: La llegada del Inca Wayna Qhapaq, y el posterior reordenamiento del Estado Inca por Gonzalo y Hernando Pizarro en 1538.

Por los datos expuestos evidenciamos que lejos de rebelarse, los aymarás habrían optado por una política de alianzas con Pachakuti y Wayna Qhapaq, la misma que les ayudó a garantizar ciertos privilegios y una notable autonomía dentro de su territorio. Teniendo en cuenta que los Inca dependían bastante de Charcas en su empresa de conquista, el sometimiento habría sido más bien una especié de pacto de intercambios recíprocos (Murra 1975:IV). Bouysse-Casagne sostiene incluso que los Inca no sólo dejaron su impronta en Charcas, sino que éstos tomaron muchos elementos sociales y culturales de esta región del Sur para el gobierno del Estado multiétnico.

A pesar de la innegable dificultad que implica reconocer la superposición de derechos y obligaciones en este escenario de reciprocidad y rivalidades entre mallku, la perspectiva antropológica de este estudio nos muestra la importancia que conservaron los señoríos de Charcas en la vida política del Tawantinsuyu o Estado multiétnico andino, a partir de la relación de sus autoridades con el Inca.

En lo que a la imposición del dominio hispano se refiere, éste no habría sido el resultado del enfrentamiento entre dos bandos opuestos, pero de un combate desde varios frentes rivales (dos Inca, dos sacerdotes, varios mallku, los españoles). Para TTO, la capacidad de negociación del príncipe Pawllu con los señores naturales locales lo convierten sin duda en: “el que conquistó el Qullasuyu para el Rey de España” (Platt et al. 2007:111).

Sea como fuere, QQCH muestra mediante estas reflexiones cómo desde los primeros años de convivencia entre españoles e indígenas, pero particularmente después de 1569, se puso en marcha todo un proceso de desestructuración que sufrieron las sociedades andinas, en el que el Virrey Toledo dejó una fuerte impronta. La documentación expuesta y la lectura propuesta traza el desarrollo de las interacciones entre los actores, las mismas que llevaron a la organización paulatina de una nueva sociedad en Charcas. TTO sugieren incluso que en este período se habría ido organizando poco a poco en Potosí un “archipiélago colonial”, con una lógica radial en torno al mercado naciente integrado por la minería, la agricultura, el trabajo artesanal y una serie de nuevas tareas dentro de una red comercial inédita en la zona1. La coyuntura política posterior a la llegada del Virrey, así como el accionar de los señores naturales, habrían sido desde esta perspectiva fundamentales para consolidar los cambios. Toledo habría motivado por ejemplo que el mallku tradicional se convirtiera intermediario entre el indígena y la Corona, intentando dar fin a la antigua organización dual, y distanciándose sustancialmente de la autoridad tradicional.

No obstante, y considerando que la historia está llena de matices, como bien muestran TTO es necesario destacar que muchos de los documentos presentados en esta obra dejan ver que ciertas reglas internas de sociabilidad andina tradicional perduraron -aunque no intactas- en diferentes aspectos dentro de celebraciones o en muestras de generosidad (Platt et al. 2006:659). El interés de este libro radica precisamente en ver cómo, en qué medida y bajo qué circunstancias fueron cambiando estas prácticas y sus referentes dentro del imaginario cultural de Charcas, para articularse dentro de la nueva sociedad colonial.

La contribución de este volumen a la historiografía andina es sin duda sumamente rica y sólida. Su lectura es absolutamente recomendable y necesaria para los estudiosos del pasado andino.

Agradecimientos: Comprometo especialmente mi gratitud el Doctor Jorge Hidalgo L. cuyas acertadas recomendaciones fueron de gran ayuda. Asimismo, agradezco los valiosos comentarios de los evaluadores que ayudaron a mejorar la calidad de este trabajo.

Notas

1 Aunque hubo algunos lugares como Macha, donde Platt argumenta que la organización vertical logró subsistir marcando una continuidad en la larga duración (cf. Platt et al. 2006:538).

Referencias

Condarco Morales, R. y J. Murra 1987 La Teoría de la Complementariedad Vertical Eco-Simbiótica. HISBOL, La Paz.         [ Links ]

Murra, J. 1975 Formaciones Económicas y Políticas del Mundo Andino. IEP, Lima.        [ Links ]

Platt, T., T. Bouysse-Cassagne y O. Harris 2006 Qaraqara-Charka Mallku, Inka y Rey en la Provincia de Charcas (siglos XV-XVII) Historia Antropológica de una Confederación Aymara. IFEA, Plural, University of St. Andrews, University of London, ínter AmericanFoundation, Fundación Cultural del Banco Central de Bolivia, La Paz.        [ Links ]

Paola Revilla Orías – Magíster Historia. Mención América, Departamento de Ciencias Históricas, Universidad de Chile, Santiago. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659-1662 – FRANZEN et. al (HU)

FRANZEN, B.V.; FLECK, E.C.D; MARTINS, M.C.B. (orgs.). Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659-1662. São Leopoldo: Editora Unisinos/EdUFMT/Oikos Editora, 2008. 143 p. Resenha de: KARNAL, Leandro. Um documento jesuítico. História Unisinos 13(3): 312-313, Setembro/Dezembro 2009.

Pela primeira vez, é publicada no Brasil a Carta Ânua sobre a Província do Paraguai, que o provincial Andrés de Rada assinou em 1663. Esta Carta cobre o período 1659-1662 e, na edição organizada pelas pesquisadoras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, encontramos uma espécie de rascunho sobre os anos 1658-1660.

Os que trabalham com a documentação colonial jesuítica sabem o quanto esta publicação é importante. A documentação da Companhia de Jesus no período colonial é a fonte privilegiada para estudos religiosos, econômicos, políticos, antropológicos e até para os trabalhos sobre gênero. Escritores compulsivos, os membros de uma ordem que incorporou a noção moderna de texto e de sistematização de informações – a Companhia de Jesus – produziram uma pletora de cartas, relatórios, textos e imagens sobre quase tudo em sua época.

As Cartas Ânuas, síntese de muitas cartas parciais enviadas pelas unidades como colégios ou missões, constituem a atividade obrigatória de um jesuíta Provincial perante o religioso Geral em Roma, posto que fundamentam as decisões sobre a atuação dos jesuítas.

O documento publicado oferece uma rica oportunidade para as pesquisas brasileiras. Primeiro, porque fornece a visão corporativa e de conjunto da Companhia em sua ação no Novo Mundo. O texto revela um fl uxo de consciência com regras de retórica e apresenta os percalços da tarefa gigantesca que os padres enfrentavam. Entre estes se destacam o território imenso de atuação, os atritos com autoridades locais e até a defesa diante da acusação sobre a falta de empenho dos missionários.

Questões candentes como a tributação e o debate sobre o fornecimento de armas para as comunidades indígenas mostram que o olhar jesuítico concebe a Carta como um relatório amplo e não apenas religioso. Melhor dizendo: a visão sobre a eficiência da catequese parece incluir tudo que possa facilitar ou atrapalhar este projeto. O “mundo indígena e colonial em suas múltiplas facetas” (Franzen et al., 2008, p. 26) são o escopo do texto. Nesse sentido, a aspiração metafísica da Companhia de Jesus não parece excluir nada da imanência colonial.

O documento instiga o leitor, linha após linha, a reflexões e à formulação de perguntas que despertam pesquisas. De que maneira funcionavam colégios como os de Córdoba, Assunção ou Buenos Aires? Que modelos hagiográficos ou retóricos existem na descrição de cada necrológio da Carta, constituindo vidas exemplares, as quais, inclusive, poderiam conduzir a leituras mais amplas? Quais os modelos de missão descritos na obra? Como foram concebidos e implementados os projetos de evangelização dos indígenas? Qual o grau de maleabilidade tolerado pelos jesuítas em relação aos signos da cultura do outro? Como a alteridade é compreendida na pena dos padres? Quais redes de comunicação são constituídas e descritas pela Carta? Como as aparições da Virgem, indicadas pela narrativa, interagem, justificam ou corrigem a ação missionária? Que relações de gênero fluem da pena do provincial, ao descrever, por exemplo, a resistência de uma jovem índia ao assédio de um jovem tomado pela luxúria? Como as epidemias atuam nas comunidades? Quais conclusões demográficas podem ser retiradas de números registrados, como a cifra de 40 mil indígenas e 9525 famílias sob o cuidado da Companhia de Jesus na região? (Franzen et al., 2008, p. 106).

A publicação já é extraordinária pelos dois textos em si. Porém, o valor é aumentado pelo acréscimo de introdução, notas explicativas, mapas, relação de gerais, tabelas e índice onomástico final. A atual edição é a tradução realizada pelo P. Carlos Leonhardt, em 1927.

Como indicação final, resta sonhar com a ampliação da clareira aberta pelas pesquisadoras. Pensando no céu sobre esta estrada, resta também almejar que surjam outras publicações com a reprodução fac-similar do texto, sua transcrição paleográfica e tradução. Pensando na terra simples do chão do terreno, que despontem edições com a versão em português para o grande público. A lufada de ar fresco trazida pelo esforço das pesquisadoras Beatriz Vasconcelos Franzen, Eliane Cristina Deckmann Fleck e Maria Cristina Bohn Martins permite imaginar horizontes ainda maiores. Os pesquisadores sobre o período colonial agradecem.

Leandro Karnal – Doutor em História Social pela USP. Atualmente é RDIDP da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/ Unicamp). Universidade Estadual de Campinas Cidade Universitária Zeferino Vaz, s/n, Caixa Postal: 1170 13083-970, Campinas, SP, Brasil. E-mail: [email protected].

Guerras e Açúcares: política e economia na Capitania da Parayba (1585-1630) – GONÇALVES (S-RH)

GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Açúcares: política e economia na Capitania da Parayba (1585-1630). Bauru: Edusc, 2007, 329 p. Resenha de: MELO, Josemir Camilo de. Conquista da Paraíba sob foice, espada e cruz. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [21] jul./ dez. 2009.

Sob o título de Guerras e açúcares, a historiadora paulista radicada na Paraíba, Regina Célia Gonçalves, estudou um pequeno recorte da colonização da Paraíba em sua tese de doutorado, pela USP, defendida em 2004, sob a orientação da Dra.

Vera Lúcia Amaral Ferlini, prefaciadora da obra. Trata-se de um belo livro da Editora da Universidade do Sagrado Coração. Apesar de seu recorte ser de apenas 45 anos (1585-1630) procura desvendar as tramas políticas para dizimar os Potiguara e obter suas terras para o açúcar, principalmente a partir do acordo de paz firmado com os Tabajara em 1585. Gonçalves fez um excelente trabalho sobre esse período incipiente da construção da Paraíba, mas o mais importante é sua premissa, a de que se criou na mentalidade local uma paraibanidade tabajarina, fruto da representação que o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano tem feito desde sua criação, em 1905. Leia Mais

Havana and the Atlantic in the Sixteenth Century (Envisioning Cuba) | Alejandro La Fuente

LA FUENTE, Alejandro. Havana and the Atlantic in the Sixteenth Century (Envisioning Cuba). Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2008. Resenha de: SANTOS, Ynaê Lopes. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.10, n.19, jul./dez., 2009. Arquivo indisponível na publicação original. [IF]

 

Educação, história e cultura no Brasil Colônia – PAIVA (RBHE)

PAIVA, José Maria de; BITTAR, Marisa; ASSUNÇÃO, Paulo de. Educação, história e cultura no Brasil Colônia. São Paulo: Editora Arké, 2007. Resenha de: TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de; BARBOZA, Marcos Ayres. Revista Brasileira de História da Educação, n° 19, p. 227-234, jan./abr. 2009

A presente obra é o resultado do trabalho de pesquisa de nove pesquisadores de universidades públicas e privadas brasileiras, ligados ao Grupo de Pesquisa “Educação, História e Cultura: Brasil, 1549-1759”, liderado pelo pesquisador José Maria de Paiva, professor da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP).

O grupo de pesquisa, criado em 2000, está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIMEP, com núcleos de pesquisa na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR, São Carlos-SP); na Universidade Estadual de Maringá (UEM, Maringá-PR); no Centro Universitário Assunção (UNIFAI, São Paulo-SP) e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ, Rio de Janeiro-RJ).

O objetivo do livro é apresentar ao campo científi co da área de ciências humanas, notadamente da educação e da história da educação, o resultado de pesquisas e debates promovidos nos encontro de apresentação e discussão de trabalhos do grupo de pesquisas, ocorridos em sua trajetória. Para tanto, está organizado em sete capítulos da seguinte maneira: capítulo um, “Religiosidade e cultura brasileira – século XVI”, escrito por José Maria de Paiva; capítulo dois, “Educação jesuítica no império português do século XVI: o colégio e o Ratio Studiorum”, escrito por Célio Juvenal Costa; capítulo três, “As relações epistolares: humanistas e jesuítas”, escrito por Edmir Missio; capítulo quatro, “Os exercícios espirituais e o teatro”, escrito por Paulo Romualdo Hernandes; capítulo cinco, “Educação e cultura na América portuguesa: as reformas de Sebastião José de Carvalho Melo”, escrito por Paulo de Assunção; capítulo seis, “A pesquisa em história da educação colonial”, escrito por Marisa Bittar e Amarílio Ferreira Júnior e, por último, capítulo sete, “Educação jesuítica no Brasil colonial: estudo baseado em teses e dissertações”, escrito por Maria Cristina Innocentini Hayashi e Carlos Roberto Massao Hayashi.

No capítulo um, “Religiosidade e cultura brasileira no século XVI”, José Maria de Paiva afi rma que não se pode compreender a religiosidade brasileira sem que se faça referência à cultura, considerada como a maneira de ser da sociedade e, na qual, as pessoas se expressam por meio das relações. Na primeira parte, “A religiosidade nas práticas sociais”, analisa documentos ofi ciais de um período histórico em que a cultura portuguesa, como um tudo, tinha um único objetivo, o cuidado da religião. A religiosidade cristã era a forma de ser da sociedade portuguesa. A existência humana em conformidade com a fé era uma exigência cultural e, como tal, uma obrigação pública e social. A vida em sociedade era regida pela “nossa santa fé”; os comportamentos considerados de  “bons costumes” fundamentavam-se na doutrina da Igreja e, também, na legislação do Reino. Aqueles que se desviavam dos “bons costumes”, aos olhos dos indivíduos e da sociedade mereciam reprovação social e punição pelos seus pecados. Na segunda parte, “A religiosidade na sua expressão devocional”, o professor José Maria de Paiva analisa a prática devocional e cultural dos portugueses na colônia, visando demonstrar a formação da subjetividade portuguesa alicerçada sobre a religiosidade. Ser cristão, nesse período, significava ir a missa e comungar; além disso, uma maneira de apreender e pregar os “bons costumes”. A devoção era caracterizada como o novo modo de vida que se assumia, por meio de jejuns, abstinência e disciplina para a renovação ou reformulação da espiritualidade. A fé cristã, na sociedade portuguesa, não implicava na conformidade com os ensinamentos dos padres, mas no viver uma vida em que Deus se põe presente. Assim, para não se cair em contendas com a figura do poder sagrado, a solução era ganhar as boas graças pelo cumprimento da obediência.

No capítulo dois, “Educação jesuítica no império português do século XVI: o colégio e o Ratio Studiorum”, Célio Juvenal Costa afi rma que o objetivo inicial da Companhia de Jesus era a reconquista da cidade de Jerusalém para os cristãos, mas, no decorrer dos primeiros decênios de sua existência, por infl uência dos fundamentos teológicos e fi losófi cos da escolástica, igualmente pela austera formação dos clérigos, contribuíram com os objetivos da Igreja que visavam lidar com questões novas, como a expansão do comércio e a descoberta do novo mundo. Para discutir o papel do colégio e do Ratio Studiorum no trabalho jesuítico de formação escolar no século XVI, dividiu o trabalho em quatro partes: a primeira, “O jesuíta como instrumento da Reforma Católica”; a segunda, “A racionalidade educacional jesuítica”; a terceira, “O colégio” e, por último, a quarta, “Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu”. Segundo o autor, os colégios e o programa de formação elaborado pelos jesuítas, disponíveis aos jovens em geral, desenvolviam uma educação séria e exigente, o que se observa na análise dos cursos de humanidades, fi losofi a e teologia do Ratio Studiorum. Nas colônias, os colégios não se restringiam somente à formação, eram responsáveis também pela administração de povoações, cidades, igrejas e fazendas. Desse modo, conclui que tanto o plano de estudos como os colégios foram a expressão de experiências históricas que, avaliadas e reavaliadas, instituiu a forma de ser da Companhia de Jesus.

No capítulo três, “As relações epistolares: humanistas e jesuítas”, Edmir Missio analisa o papel exercido pelas cartas como instrumento de formação, que contribuía para a educação dos filhos da família Sforza, futuros governantes do ducado de Milão. Nas cartas, os filhos relatavam suas experiências e, também, serviam como um instrumento à manutenção das relações e hierarquias. A escrita das cartas exprimia as ações e os pensamentos, exigindo um grande esforço argumentativo, com o qual se verificava a formação recebida. Tratava-se de “uma técnica de composição e elaboração [dos] estudos de retórica e poética” (p. 46); elas eram avaliadas como um instrumento, “[…] de propaganda política e difusão cultural” (p. 46). Desse modo, o aprendizado das cartas passou “[…] a fazer parte do currículo das escolas fundadas pelos humanistas, as quais proverão quadros administrativos dos governos, como secretários e diplomatas” (p. 49). Assim, no decorrer do século XVI, a expansão do comércio e a descoberta do novo mundo, transformaram as relações sociais e culturais, e exigiram o desenvolvimento de uma educação mais apropriada aos desafi os da época, isto é, uma educação de caráter utilitário.

Capítulo quatro, “Os exercícios espirituais e o teatro”, Paulo Romualdo Hernandes discute a importância histórica dos exercícios espirituais, entendidos como um exame mental criado por Inácio de Loyola que, depois de aperfeiçoado, tornou-se um manual de educação e ensino da religiosidade cristã católica. Tratava-se de um método rigoroso, constituído por quatro semanas de exercícios; na primeira, o exercitante era convidado a realizar orações, colóquios, penitências e arrependimentos para se livra de seus pecados e, assim, purgado e penitenciado, o exercitante passa para a segunda semana de exercícios. A principal característica desse período chamado de semana era a iluminação divina; nela, o exercitante seguia a Jesus em todos os seus passos. As tarefas do diretor espiritual, como um mediador pedagógico, era possibilitar as condições necessárias para que o exercitante chegasse a experiência interior. Imitar Cristo significa “morrer para a vida que se tem, realidade real, para ressuscitar e viver eternamente espiritualmente” (p. 64). Ao aceitar o caminho de imitação de Cristo, o exercitante entra na terceira semana que também é iluminativa. Nela, ele vivia intensamente a Paixão de Cristo com todas as implicações que ela pudesse causar. Segundo Hernandes, “o que faz a plástica e a didática dos exercícios são o sentir interiormente trazendo para a memória, entendimento e vontade as dores da Paixão” (p. 65). Pelo renascer com Cristo, o exercitante entrava na quarta semana, caracterizada como um momento de União com Deus. Os exercícios espirituais não eram simples experiências místicas mas, também, uma dramatização, representações interiores que possibilitaram aos que não viveram na época de Jesus, conhecer a história da salvação do povo de Deus. Enfi m, as dramatizações tinham como objetivo tornar possível, por meio das representações, o conhecimento das verdades do sofrimento de Cristo e, notadamente, viver a alegria de Cristo Ressuscitado.

No capítulo cinco, “Educação e cultura na América portuguesa: as reformas de Sebastião José de Carvalho Melo”, Paulo de Assunção analisa o contexto histórico de Portugal após a morte do monarca dom João V, em 31 de julho de 1750, com a nomeação de Sebastião José de Carvalho e Melo, como primeiro-ministro de Portugal. Ele, ao assumir suas funções, implementou um conjunto de medidas para ampliar o poder do Estado, por meio da centralização do poder monárquico em relação ao poder exercido pela Igreja e pela nobreza. O rompimento com a Igreja ocorreu entre 1760-1770, período em que o Estado português delegou aos tribunais civis poderes para legislar sobre assuntos de ordem pública, revogando o cumprimento dos documentos oficiais da Igreja. A reformulação institucional “procurou atuar por meio de leis que clarificassem o papel das instituições, bem como das relações entre elas” (p. 76). A reorganização do império português visava o saneamento das contas do Estado, debilitada pelos acordos celebrados entre Portugal e a Inglaterra. As transformações repercutiram também no campo subjetivo e social, influenciadas pela efervescência das idéias iluministas. “O pensamento iluminista foi profícuo na discussão da liberdade e autonomia do Estado em relação à Igreja” (p. 78). Esses debates ainda repercutiram na educação e nos sistemas pedagógicos, já que a afirmação do poder do Estado evidenciou um ideal progressista que exigia o estabelecimento de uma educação de base científica, sobretudo da formação recebida nas escolas e universidades, que se encontravam sobre a influência da educação jesuítica.

No capítulo seis, “A pesquisa em história da educação colonial”, os autores, Marisa Bittar e Amarílio Ferreira Júnior discutem a produção científica no campo da educação, referente ao período colonial em que os jesuítas tiveram o domínio sobre a sistematização do trabalho pedagógico na colônia brasileira. A criação de um grupo de pesquisa, intitulado “Educação Jesuítica no Brasil colonial”, desenvolvido na UFSCAR, ligado ao Diretório de Pesquisa “Educação, História e Cultura Brasileira: 1549-1759”, liderado por José Maria de Paiva, possibilitou a análise de lacunas temáticas sobre essa produção, o que objetivou o desenvolvimento de pesquisas para ampliar a historiografia da educação brasileira desse período. Os autores, para analisarem a produção científica sobre a educação colonial, entre 1549 a 1759, estabeleceram seis categorias analíticas: a primeira, “A hegemonia dos jesuítas e a presença de sua ação pedagógica nos eventos científi cos”; a segunda, “As correntes interpretativas sobre a ação pedagógica dos jesuítas”; a terceira, “O tema nos manuais didáticos”; a quarta, “O tema em artigos e capítulos de livros”; a quinta, “O tratamento teórico-metodológico” e, por último, a sexta, “A questão das fontes”. Na conclusão, afirmaram que ainda existe uma enorme gama de assuntos não pesquisados, relacionados ao tema, sendo que as chances de estudos inéditos são maiores, porém, essa temática atrai um número restrito de profissionais em razão da necessidade de afeição com a história de nossos primeiros séculos; da disciplina de estudo para trabalhar com documentos históricos, da abrangência do campo de pesquisa em educação e a exigência de um tratamento epistemológico que dê materialidade a totalidade histórica dos primeiros séculos da formação social brasileira.

E, por fim, no capítulo sete, “Educação jesuítica no Brasil colônia: um estudo baseado em teses e dissertações”, Maria Cristina Innocentini Hayashi e Carlos Roberto Massao Hayashi analisam a produção científica sobre a educação jesuítica no Brasil colônia. Omaterial de estudo constituiu-se de teses de livre docência e doutorado e dissertações defendidas em programas de pós-graduação de instituições de ensino superior; para a coleta de materiais elegeu-se as bibliotecas digitais de teses e dissertações como fonte de pesquisa com base em uma abordagem bibliométrica. Essa abordagem consiste no estudo da atividade científi ca, visando o desenvolvimento de indicadores de avaliação da produção de conhecimento. De acordo com o levantamento bibliográfi co disponibilizado em diversas fontes de dados na Internet, das instituições de ensino superior, os resultados demonstraram que a maior parte da produção científica relacionada ao tema encontra-se em programas de pós-graduação da Região Sudeste do Brasil. A distribuição das 275 teses e dissertações realizadas possibilitou verifi car que a maioria dos trabalhos encontra-se vinculados a programas de história (119 trabalhos); educação (46); letras (16) e antropologia social (12). A análise bibliométrica da produção científica relacionada ao tema da educação jesuítica no Brasil colônia possibilitou a afirmação de que, a partir dos anos de 1990, houve um aumento significativo do número de trabalhos acadêmicos sobre a temática, sendo que a maioria desta produção concentra-se nas áreas de história e educação.

O trabalho desenvolvido pelo grupo envolve pesquisas relacionadas à presença jesuítica no Brasil colônia. Tem como centro a história da educação, defi nida como a aprendizagem da maneira de ser, a qual se constitui pela formação da identidade dos indivíduos e da sociedade. A educação e a cultura são compreendidas como dois elementos de análise do mesmo processo social; nele, a educação é ligada à aprendizagem e a cultura às formas de ser. A história, nesse contexto, é analisada com base na ação dos homens, que transformam e são transformados pelo produto de sua própria atividade material.

A disponibilização das pesquisas realizadas pelo grupo de pesquisa tem o mérito de abordar uma área de pesquisa que não tem recebido a devida atenção na área de educação. A tarefa de revisitar as fontes já conhecidas e de tratar temas também conhecidos, além de descortinar novas possibilidades interpretativas, pode apontar novos rumos e novas fontes para a pesquisa acadêmica. O livro é bem apresentado e cumpre uma importante função de apresentar, de forma acadêmica, temas e assuntos conhecidos.

A editora Arké traz ao público brasileiro uma importante referência temática da história da educação no Brasil, uma vez que a história da educação colonial é uma área pouco estudada entre os pesquisadores brasileiros que, nos últimos anos, tem ganhado expressividade com o trabalho realizado pelo Grupo de Pesquisa “Educação, História e Cultura: Brasil, 1549-1759”. Além disso, contribui para a divulgação do trabalho desenvolvido por pesquisadores da área. O livro destaca especialmente a atuação dos jesuítas no Brasil e, esse destaque, mostra a proeminência incontestável da Companhia de Jesus no campo da educação e mesmo da religião.

Cézar de Alencar Arnaut de Toledo – Doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, 1996), professor no Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UEM

Marcos Ayres Barboza – Mestre em educação (2007) pela Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Cézar de Alencar Arnaut de Toledo. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição – VAINFAS (Tempo)

VAINFAS, Ronaldo. Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 384 p. Resenha de: SANTOS, Maria Cristina dos. Lições da Traição: a redução da escala na análise histórica. Tempo v.14 no.27 Niterói  2009.

Desde a década de 1980, a quantidade de traduções e publicações acerca das discussões sobre os novos paradigmas teóricos e metodológicos da pesquisa histórica supera em muito os títulos resultantes de pesquisas que ousaram aplicar os novos paradigmas em discussão, indicação clara de que, na produção do conhecimento histórico no Brasil, muito se discute sobre como fazer, mas pouco se arrisca ao realizar uma pesquisa documenta. Esta particularidade pode ser observada no boom editorial que ocorreu nas publicações sobre a História das Mentalidades, História Cultural, de Gênero, da Vida Privada, entre outras.

Algo semelhante ocorria, até então, com a metodologia da redução da escala de análise histórica. Entre as inúmeras discussões realizadas, alguns autores tentaram vincular à metodologia da microanálise os restritos resultados de suas pesquisas locais e/ou regionais. Nada mais distante. Essas tentativas cômodas, oriundas de leituras superficiais, foram usadas para justificar pesquisas, ou melhor, recopilação de documentos, sem alcance analítico para ultrapassarem os limites locais onde foram realizadas. O impulso metodológico da microhistória não é small is beautifull; não é a pequenez do gesto, mas a análise, a escala de observação.1 Conforme Medick, é importante destacar a perspectiva de conhecimento microanalítica como um, mas de forma alguma o único, método específico de investigação. Mas só ele permite – partindo das ações, experiências e condições de vida de pessoas individuais – localizar, de uma maneira nova, seu envolvimento em redes sociais, culturais e econômicas, incluindo seus efeitos e limites nos contextos globais.2

Não foi por mera coincidência que Vainfas iniciou seu ensaio sobre Os Protagonistas Anônimos da História, apresentando de forma crítica a micro-história em meio a uma “teia de equívocos”, evidenciando, assim, o que ela “não é”.3

Entre os inúmeros debates realizados no âmbito acadêmico, Sandra Pesavento não titubeou ao afirmar: “realizar microanálise é dizer mais sobre um recorte do real a partir de um método, mas isto é dado também pela bagagem de conhecimento prévio e à parte deste recorte de escala”.4 A peremptória afirmação beira o desafio: dizer mais sobre um recorte do real. Isso pressupõe que realizar uma pesquisa documental, conforme os paradigmas conceituais e metodológicos da micro-história, não é tarefa fácil, tampouco para principiantes. Tal constatação fica demonstrada na forma, no conteúdo e nos enlaces descortinados por Vainfas na Traição.

A construção da narrativa seduz o leitor, quer pela forma, quer pelo conteúdo. Sobre a forma, cabe salientar que Vainfas subverte o formato da narrativa histórica clássica, ao começar pela descrição do ambiente das cenas finais da trama urdida por Manoel de Moraes, tal como num romance policial. A realização de uma exaustiva pesquisa histórica não é, nesse caso, justificativa para apresentar os resultados em textos longos, aborrecidos e recheados de um vocabulário hermético. As aventuras e desventuras desse protagonista, até então quase anônimo, são apresentadas numa sequência de quarenta capítulos, em sua maioria, curtos e construídos literariamente de maneira a prender o leitor e desconcertar o historiador, sobretudo aquele mais tradicional. Mas, o que parece inusitado na forma avança ainda mais no conteúdo.

Vainfas reconstituiu a história de Manoel de Moraes em uma narrativa envolvente que não abandona em nenhum momento o necessário rigor acadêmico. O prazer da leitura de um texto literariamente sedutor traz consigo vários questionamentos teóricos e metodológicos sobre a historiografia do período colonial.

Manoel de Moraes nasceu em São Paulo, tornou-se jesuíta e atuou como missionário em Pernambuco. Participou de forma ativa, junto com Felipe Camarão, das guerras entre Portugal e Holanda, na primeira metade do século XVII. No posto de Capitão do Gentio, Manoel atuou, com armas em punho e em uso, na frente de batalha. “O lado paulista de Manoel de Moraes veio à tona com força máxima nos combates contra o holandês […] na verdade, lutava e matava com garra, agindo como autêntico paulista nos matos, esquecido dos mandamentos de Deus e de suas obrigações como sacerdote”(p. 43-45). Mas, ao perceber a iminente derrota, Manoel cruza o campo de batalha e se oferece aos holandeses. O limite entre a rendição e a traição no final da guerra da Paraíba é quase invisível – o que, segundo Vainfas, dá quase no mesmo. Manoel de Moraes passou para o lado dos holandeses e levou consigo todos os índios que comandava. “No mínimo salvou a própria vida e logo vislumbrou novos horizontes”(p.65).

A partir daí, o leitor, seja alheio ao assunto ou um especialista, será levado a caminhos inimagináveis, traçados tanto pela trajetória oblíqua do personagem, como pela habilidade de Vainfas como narrador. Manoel de Moraes passa, então, a protagonizar uma sequência de traições – que estão para muito além de gregos, troianos e pernambucanos.

Depois de trair os princípios contrarreformistas do Concílio de Trento, onde havia começado sua formação religiosa, mudou-se do Brasil para a Holanda. Foi aí que se casou por duas vezes, dentro dos rituais calvinistas. O primeiro casamento foi por conveniência política e econômica; já o segundo, nosso Manoel acabou por ceder “às fraquezas da carne e aos excessos contra o sex[t]o mandamento”(p.126-154). Foi também na Holanda que ele se escondeu do primeiro processo da Inquisição portuguesa, quando foi julgado e condenado à fogueira. Na ausência do réu, uma estátua deste foi queimada em praça pública (p.180), conforme as determinações do Santo Ofício. Tornou-se um informante privilegiado dos holandeses contra os portugueses, inclusive na questão da forma de como atuar junto aos indígenas no Brasil. Entre as várias obras que produziu, elaborou um “Plano para o Bom Governo dos Índios”, utilizando o modelo jesuítico, porém sem jesuítas (p.121). Trocou uma Companhia (de Jesus) por outra (a das Índias Ocidentais), como um padre troca de batina.

missa de Manoel, no entanto, não está nem na metade. Surpreendentemente, ele faz o caminho de volta. Atormentado pelos dramas de consciência, talvez resquícios de sua formação jesuítica, empreende uma viagem de retorno ao Brasil e ao catolicismo, porém não à vida sacerdotal strictu sensu. Nesta circunstância é que Manoel de Moraes se converte num traidor perfeito.

Traiu os jesuítas, traiu os portugueses na guerra de resistência; voltou a traí-los, prometendo servir a D. João IV em troca de mercês e perdões, enquanto arrancava dos holandeses o contrato do paubrasil; traía, ao mesmo tempo, a WIC [West International Company], oferecendo-se aos embaixadores portugueses para combater os holandeses no Brasil; traiu Adriana Smetz, não nos esqueçamos dela [e de sua beleza estonteante], ao abandoná-la com três crianças em Leiden. Não haveria de ser como brasileiro que Manoel honraria algum contrato (p.230).

De volta a Pernambuco, com um empréstimo da WIC, Manoel torna-se senhor escravista, negociante de pau-brasil, e passa a viver provavelmente amancebado à “negra Beatriz”, que desempenhava nada menos do que a função de feitora [!] (p.232). Durante seus últimos anos no Brasil, consegue algumas outras façanhas, tais como: enriquecer como negociante, passar o calote na Companhia das Índias e ainda conceber “a peculiar e absurda perspectiva de vir a ser uma espécie de predicante católico. Católico na fé, com direito a pregar e oficiar missas, mas sem o voto de obediência (exceto a militar), muito menos os de pobreza e de castidade. Uma espécie de mescla entre o predicante calvinista e o padre católico”(p.259). Tanto fez que, por fim, foi preso e levado ao Tribunal do Santo Ofício da metrópole lusitana.

Em Lisboa, encarcerado na Casa Negra do Rocio, Manoel de Moraes começa uma terceira e derradeira etapa de suas estratégias. Será durante seu segundo julgamento que as habilidades retóricas e as artimanhas mais audaciosas desse memorável personagem terão mais espaço.

Atitudes, propósitos e convicções, aparentemente contraditórias, são constantes na tortuosa vida de Manoel de Moraes. Pelo texto de Vainfas, tais contradições convertemse em luzes sobre um passado cristalizado pela historiografia tradicional, como blocos homogêneos, quase sempre antagônicos. De um lado está o Ocidente católico e civilizador; de outro, os nativos a serem cristianizados e cooptados pelas forças colonizadoras. Nesta historiografia de antagonismos, não há espaço para fraturas, para desvios de comportamento ou para qualquer exceção.

Não foi pouco o esforço teórico e metodológico que a academia empreendeu, em particular, na última década para demonstrar as diversidades internas de supostos conjuntos sócio-religiosos-econômicos e culturais dos nativos, com os quais um Ocidente se enfrentou. Vainfas apresenta muito além da vida de altos e baixos de Manoel de Moraes e ressalta a importância de uma pesquisa séria como base de uma análise histórica consistente. Por meio das traições de Manoel de Moraes, Vainfas constrói uma audaciosa trilha até então minoritária na academia. Ao longo do texto, são apontados inúmeros elementos para relativizar a suposta constância do Ocidente nas Américas. Em particular, a pretensa homogeneidade de uma instituição como a Companhia de Jesus, criada com o intuito de atuar como elemento de coesão do mundo católico ameaçado pelas fraturas provocadas pelos diversos movimentos reformistas, tais como o Luteranismo, Anglicanismo e Calvinismo.

Ao leitor leigo, as peripécias de Manoel como Capitão dos Gentios, Fantasma, Calvinista, Delator, Pertinaz Valentão, ou entre Paixões Flamengas, despertará curiosidades e dúvidas no conhecimento sobre a América Portuguesa, o Brasil Holandês e as disputas europeias do século XVII, disseminadas no senso comum. Ao leitor acadêmico, a trajetória deste personagem, aliada ao refinamento teórico-metodológico de Vainfas, evidencia por que e como a rigorosa pesquisa documental ainda se mantém como o grande diferencial entre o pensar, fazer e escrever História e o escrever sobre História.

Todas as afirmações estão documentalmente comprovadas e a cronologia incluída no final da obra contextualiza os eventos narrados. Se para alguns leitores tais informações podem servir como bússola das intrigas na qual Manoel esteve inserido, para outros servirá também para evidenciar que o período moderno, tanto na Europa Ocidental quanto em suas ramificações coloniais, não pode ser explicado somente como a transição do feudalismo ao capitalismo, ou como a época de ouro do pensamento mesti ço. Manoel de Moraes é tudo isso e muito mais.

Ao longo do texto, no século XVII, Espanha, Portugal, Holanda e Brasil aparecem formando complexas redes de poder e de conflito que possibilitaram circunstâncias nas quais as lealdades eram naturalmente volúveis. Manoel de Moraes, com suas aventuras e dramas pessoais, é utilizado para expor os conflitos religiosos, os ambientes em que viviam os personagens e os processos de mediação cultural que desenham uma conjuntura colonial muito mais complexa do que aquelas estabelecidas pelas macroanálises.

No ofício da pesquisa, o historiador deve questionar suas fontes e estabelecer conexões, por meio do cruzamento de informações. Se o momento vivido por Manoel de Moraes assim o exige, Vainfas não se abstém de ampliar a escala de análise, demonstrando, assim, como esse exercício é fundamental na pesquisa histórica.

Em contrapartida, o Santo Ofício desconhecia completamente o que se pode alcançar noutras fontes, a exemplo das preciosas informações que Manoel dera aos holandeses logo depois de se render na Paraíba, as quais, sem dúvida, adensavam suas culpas. Se soubessem disso, ou do que Manoel tinha contado ao irlandês O’Brien em Amsterdã, em junho de 1635 (!), os inquisidores talvez estreitassem a relação entre traição e heresia, percebendo essa última já nas ações do ex-padre desde fins de 1634. Não deixa de haver, portanto, alguma semelhança entre o mameluco paulista e o irlandês aventureiro, seja na audácia das atitudes, seja no ânimo irrefreável de romper fronteiras, seja ainda na fluidez das lealdades e compromissos (p.186).

Nesta ocasião, entre outras, Vainfas evidencia as particularidades da aplicação metodológica na pesquisa, pois

é próprio do método da microhistória estabelecer esta rede de relações […] na medida em que estas relações pressupõem um in e um out com relação à escala escolhida, a micro-história seria um método que jogaria com as dimensões do geral e do específico, do todo com a parte, do particular com o geral, da regra com a anomalia, do consensual com a diferença ou ainda do texto com o contexto5 .

Portanto, seja qual for o intuito do leitor ao se aproximar da mais recente obra de Vainfas, encontrará muito mais que os caminhos da construção/compreensão das intrigas do passado, tal como já advertiu Paul Veyne, no clássico texto Como Escrever História.6 Com toda a certeza, entenderá que o mérito de o verdadeiro métier do historiador pode ser tão, ou mais, encantador que o do curioso que se apropria de temas históricos com o intuito de popularizar a História. As constantes traições cometidas por Manoel de Moraes foram utilizadas também para mostrar como a produção do conhecimento histórico tem avançado na forma e no conteúdo. É bem verdade que nosso Manoel não chegou a questionar as origens do Universo como Menocchio.7 Entre este último e Manoel de Moraes há mais de um século e um oceano que os separa. Mas, os resultados apresentados por Vainfas são exemplares para demonstrar como fazer a redução da escala de análise, constituindo-se assim, numa referência historiográfica made in Brazil. Como oposição complementar, Vainfas manteve-se fiel a sua vinculação acadêmica e transformou uma rigorosa pesquisa documental num texto sedutor. A Traição traz várias lições; basta tentar aprendê-las.

1 Brad S. Gregory, “Is small beautiful? Microhistory and the history of everday life”, History and Theory Studies, Middletown, Wesleyen University, vol. 38, nº 1, p. 100 -110, 2002.         [ Links ] 2 Hans Medick, “Quo Vadis Antropologia Histórica? A pesquisa histórica entre a ciência histórica da Cultura e a Micro-História”, Aula Inaugural na Faculdade de Filosofia de Erfurt, 03 jul. 2000. Tradução René Gertz, Métis: história & cultura, Caxias do Sul, EDUCS, vol. 2, nº 3, p. 199-216, 2003, p. 209.         [ Links ] 3 Ronaldo Vainfas, Micro-história: Os Protagonistas Anônimos da História, Rio de Janeiro, Campus, 2000, p. 07-51.         [ Links ] 4 Sandra Jatahy Pesavento, “O corpo e a alma do mundo. A micro-história e a construção do passado”, História Unisinos. Dossiê: Teoria e metodologia da História, São Leopoldo (RS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos, vol. 8, nº 10, 179-189, 2004. p. 180.         [ Links ] 5 S. J. Pesavento, op. cit. 2004, p.183.
6 P. Veyne, Comment on écrit l’histórie, Paris, Editions du Seuil, 1971.         [ Links ] Tradução portuguesa: Como escrever História, Lisboa, Edições Anos 70, 1987, p. 107-136.         [ Links ] 7 Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pel a Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. Edição original: 1976.         [ Links ]

Maria Cristina dos Santos – Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].

A Invenção de Goa: Poder Imperial e Conversões Culturais nos Séculos XVI e XVII – XAVIER (LH)

XAVIER, Ângela Barreto. A Invenção de Goa: Poder Imperial e Conversões Culturais nos Séculos XVI e XVII. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008. Resenha de: GUPTA, Pamila. Ler História, n.57, p. 149-152, 2009.

1 The idea of «invention» invokes a double dislocation, one of space and time. This is the premise upon which Ângela Barreto Xavier sets out to explain how Goa – what we understand it to be, that is – was invented in the context of the experience of imperial Portuguese expansion overseas during the span of the 16th and 17th centuries and in a particular region of South India. Certain viable political and economic conditions allowed for this invention to happen diachronically, and thus for there to be a very real Portuguese presence in Goa. At the same time, «Goa» was equally determined by the role of what Xavier describes as «another Goa» that consistently articulated with the first, that of the place of rural Goa and its inhabitants. Both factors were integral in shaping the nature of Portuguese imperial power during the historical period under study. This finely researched book is a revised version, including an updated bibliography, of a doctorate successfully defended by the author at the Instituto Universitário Europeu (Florença), four years prior.

2 In the very first pages, Xavier introduces us to the intriguing figure of António João Frias, an Indian Catholic clergyman living and evangelizing at the end of the 17th century in Goa. He serves as an emblematic figure for understanding the complexities of colonial expansion in this transitional period between pre-modern and modern, between the articulation of power and their consequences in the construction of new identities (social, cultural and political), and between the colonizer and the colonized. For Xavier, Frias is also a point of anchorage amidst the «grand narratives, inquietudes, and contradictions» (p. 19) that sustained imperialism. His personhood invokes the idea of «tensions of empire» (following Cooper and Stoler, 1997) that were necessarily part of the hierarchy and difference upon which colonialism more generally was predicated, and which took on a particular guise under the Portuguese at Goa. Thus to examine processes of Christianization in Goa is to not assume the existence a priori of an (Indian) population ripe for conversion; instead, persons were necessarily dynamic subjects who very often intervened (and collaborated in and were compromised by) the historical processes in which they were involved. Frias, as a subject of and in history, once again reiterates Xavier’s larger argument–to give space to the multiple voices that constituted and were constituted by the imperial experience (p. 23) in Goa. Moreover, it is both contexts of power and contexts of interpretation (p. 25) following Foucault that allows us to think of dichotomies (of dominator, dominated; colonizer/colonized) as less rigid in space and time, as having plasticity and as directly tied to the histories (parallel, consonant, and divergent) of all those actors involved, Frias being one of many who defines what we consider «Goa» to be. Finally, Xavier’s introduction also serves as an object lesson in Goan historiography at the interstices of postcolonial studies, subaltern studies, and comparative colonialisms. She delineates – very effectively I might add – different schools of thought and discusses the writings of particular authors on the topic of Goa (Catarina Madeira Santos, Luís Filipe Thomaz, Maria Jesus dos Mártires Lopes, Rowena Robinson, Teotónio de Souza, P.D. Xavier) who have been seminal in conceptualizing and contextualizing «Goa» as a subject for historical inquiry and analysis, including some of their often veiled sentiments of Orientalism. To use the Portuguese case to understand colonialism as a history of transformation is to view it as colonizing both the imaginary (following Serge Gruzinski, p. 27) and the conscience (following the Comaroffs, p. 27) such that changes in behaviors, attitudes, ethics, and aesthetics were not only first produced in (colonial) subjects, but then, just as importantly, were taken up by their descendents.

3 The monograph is organized into seven chapters. The first two chapters, set in the period between 1530 and 1540, take up as their subject of inquiry the attempts of D. João III to politically and administratively reorganize the Portuguese overseas territories, the result being a specific conceptualization of the «idea of imperialism» (p. 31). Herein the kings of Portugal were set up to oversee a vast territory with people living under their jurisdiction, in a territorial sense, and depending on both direct and indirect forms of domination. The first chapter then is dedicated strictly to providing a general overview from the extant historiography on the rule of João III, relying on the idea of «reform» rather than «crisis» to understand his reign. Here the role of political power (inspired by the Roman model) and religious power (both Catholic and Protestant) in Europe more generally serves as a backdrop for «recasting» the tensions of empire that took place between metropole and colony in the Portuguese case and during its beginning conceptualization, that is in the crucial period between the 15th and 16th century specifically. The second chapter picks up where the first leaves off. Its object of inquiry is those ways in which certain political, religious, and cultural practices were homogenized and thus developed specifically for export to the subject populations in the overseas territories. However, as Portugal created for itself the image of a new republic, this had repercussions, both short and long term, setting up processes of imperialism as far more heterogeneous, and thus with more arbitrary options available to both colonizer and colonized. The political culture of the elites, now relatively well established locally in Goa’s territories, could potentially filter down through to the subject populations.

4 These same aspirations are evidenced in the clergymen who are the main protagonists of chapters three and four. Here it is members of the Franciscan and Jesuit religious orders who, in their attempts to Christianize and convert the people of Goa, upheld these same ideals of political culture, inserting themselves into village life to transform local cultures more fundamentally. Whereas chapter three focuses specifically on the means by which the clergy was able to accumulate power in the context of the longstanding political alliance between church and crown, and at the same time inscribe themselves into pre-existing local networks, chapter four addresses the social mechanisms (education, aid, etc.) that Franciscan and Jesuit fathers adopted and adapted to reproduce distinct «cultures of conversion», and thus to effect change on a quotidian basis.

5 Chapter five is groundbreaking research in its attempt to complicate our anthropological understanding of conversion. By taking up Vicente Rafael’s crucial argument to look at conversion as a process of translation,1 only now applying it to the historical and cultural specificities of the Goa case, Xavier returns to her thesis, complicating Goa’s «invention» in the process. Her case study is the island of Chorão, and the attempts to convert the native population on the part of the clergy based there. Only her analysis is from the viewpoint of those subject to conversion, rather than from those Portuguese holding elite positions of power. This «inversion of perspective» (p.33) or writing of «history from below» to return to one Xavier’s central arguments set out in the introduction, allows the reader to realize the full range of behaviors and attitudes – from acts of resistance to those of pragmatism – that local groups and individuals took on in the face of conversion. Here Xavier argues convincingly that conversion, seen in this light, can more effectively be understood as also always a political act of dissension, following the work of Gauri Viswanathan who examined similar processes in the context of British India. Thus, for some of the more impoverished social groups on this island, conversion to Christianity constituted a choice, one which rejected pre-existing social and economic patterns of local dominance for a different set of political matrices. Chapter six takes on the idea of resistance as a set of explicit modalities, using the well documented case of the «Martyrs of Cuncolim» that took place in 1583 to frame a larger discussion of resistance in the quotidian (following the works of Scott, 1992 and Adas, 1985). Even as realized acts of resistance such as that of Cuncolim failed to destroy the dominance of imperial power and presence in Goa, it did have serious consequences – in the types of concessions the imperial crown ceded afterwards, in the way the memory of the repression affected the shape of future acts of resistance, and finally, in the way that subsequent generations of local indigenous elites, an expanding group now, including seminal figures like Frias whom Xavier introduced early on, defined and configured themselves in relation to imperial power.

6 The final chapter, with its intriguing title, «Apologias da ‘verdadeira nobreza’. Conflitos de memória, identidade e poder» returns to the author’s set of original themes by looking at how the diachronic effects of Portuguese imperial rule produced a distinct culture of conversion, one which allowed for a subject such as António João Frias to exist between colonizer and colonized. His spiritual writings, glorifying the faith of God, alongside many others produced by native subjects not dissimilar to him with regard to their identity politics, contributed to the beginnings of a collective local memory in Goa, one produced very importantly by members of the elite who operated as the mediators of crown rule, in the interstices of religious and political power. Relying on the language of the Bible, having access to local social and economic networks, and in the name of or for love of country, members of the local nobility of Indian origin like Frias flourished, reproduced, and in some ways set the pre-conditions for the infamous «Pinto Rebellion» which was to take place in 1787, and which was dramatically poised to expose the fissures between the ideals of Portuguese domination and the realities of social equality for Goa’s native populations moving up the political, religious and social ladders of hierarchy and difference.

7 Historian Anthony Pagden’s argument that «the world is a place much larger and more varied than we can imagine» (p. 24) is not only taken up in historically «inventive» ways by Xavier in this theoretically grounded monograph, but contributes greatly to understanding the complexities of the colonizer/colonized dichotomy by focusing on the historically little known figure of the colonized (and converted) elite who functioned in the in between niches, both constitutive of and constituting «Goa» through space and time. At another level, Xavier builds on and contributes to our deeper understanding of Goan history and historiography for the 16th and 17th centuries, respectively. I only hope that in the near future, Xavier takes up this same endeavor, only to extend her historical analysis to the later centuries of Portuguese colonial rule in Goa.

Notas

1 Rafael, Vicente L., Contracting Colonialism: Translation and Christian Conversion in Tagalog Societ (…)

Pamila Gupta – University of the Witwatersrand (África do Sul)

Consultar a publicação original

Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica (1549-1773) | Manoel Marzal e Luis Bacigalupo

Desde a renovação historiográfica de que a Companhia de Jesus foi objeto − agora há mais de vinte anos −, sua história esteve especialmente relacionada à questão da modernidade. Isso porque o movimento que consistiu no désenclavement [1] da história da Ordem (até então controlada quase exclusivamente por seus membros e limitada a um enquadramento nacional de cunho apologético) resultou em sua apropriação por historiadores leigos, na qualidade de um “observatório” do período moderno. O que se procura, desde então, não é mensurar a contribuição dos jesuítas, mas antes questionar a modernidade por meio da história da Companhia de Jesus. Instituição essa que, de fato, se apresenta como campo privilegiado de observação, por uma dupla razão: seu apostolado universalista, e a sua organização institucional responsável pela formação de um corpus documental contínuo, capaz de trazer elementos de resposta a muitas das questões sobre o período moderno [2].

Esse renovamento atendeu em parte ao anseio de abordar a história moderna da Europa a partir de um espaço supranacional, correspondendo à identidade e forma de operação da Ordem inaciana [3]. Contudo, se teve ares programáticos primordialmente na França e Itália, rapidamente o debate adquiriu uma dimensão internacional e, dos vários campos em que se desenvolveu, sem dúvida o da história da ciência e educação e o das missões e evangelização confirmaram-se os mais dinâmicos [4].

Assim, a pergunta que de imediato se coloca a respeito de uma publicação que leva o nome de “Los jesuitas y la modernidad en iberoamérica” é a de saber qual a sua relação com esse contexto de renovação historiográfica. O livro foi publicado em 2007, e traz a lume as atas de um colóquio internacional de mesmo nome realizado no Peru, em 2003. A proposta dos organizadores − um dos quais ele próprio jesuíta [5] − aos participantes do encontro era a de avaliar a contribuição da Companhia de Jesus para o desenvolvimento da modernidade na América. Em outras palavras, solicitou-se aos colaboradores a tarefa de delinear algumas características da modernidade na tradição cultural americana, a partir dos diferentes âmbitos em que atuaram os jesuítas, partindo da hipótese inicial segundo a qual a produção intelectual e a atividade educacional e missionária de “alguns padres” da Companhia de Jesus teriam representado o “primeiro e decisivo resplendor da cultura moderna no mundo católico” [6]. Colocada nesses termos, a questão de fato não parece atender ao novo delineamento metodológico acima referido. Porém, como se explicita na própria introdução, ela foi superada pelas contribuições que, em muitos casos, fizeram realmente valer os ganhos da, ainda recente, renovação. Optou-se então por uma organização da publicação em função das questões levantadas no encontro, e é justamente esse o aspecto mais interessante do livro a se observar.

A obra tem dois volumes: o primeiro, um impresso de portentosas dimensões (pouco mais de quinhentas páginas), conta com uma introdução e vinte e dois artigos. O segundo, em suporte eletrônico (mini-cd) que acompanha o volume impresso, conta com dezessete artigos, além de um apêndice onde foram publicados dois documentos de interesse para os estudiosos da Companhia de Jesus na América Latina: uma apresentação do projeto de reconstituição do acervo histórico da Universidade Javeriana de Bogotá e uma extensa bibliografia sobre os jesuítas na história do Peru. Em ambos os tomos, os artigos foram distribuídos em três seções. A primeira pretende ser uma relação dos textos que tratam dos aspectos teológicos e filosóficos da contribuição jesuíta à construção da modernidade (Los jesuitas y la razón moderna). A segunda reúne os artigos que tratam, em seus múltiplos âmbitos de atuação − ciências naturais e humanas, educação, missão, tecnologia, economia, arte, arquitetura etc. −, a inserção “multifacetada” dos jesuítas no contexto histórico e cultural das colônias americanas (Los jesuitas y la patria criolla). Por fim, a terceira seção agrupa artigos que abordam temas relacionados à expulsão dos jesuítas das colônias americanas, englobando aspectos econômicos, políticos e culturais (Los jesuitas y la crisis de la expulsión).

É compreensível que numa obra que traz a contribuição de quase quarenta autores, de várias áreas e relações diversas com a instituição objeto do debate, as visões sobre a mesma questão sejam defasadas, e revelem a presença tanto de autores que se vêem diretamente engajados nessa renovação historiográfica quanto de outros que lhe são visivelmente alheios. Com efeito, é difícil encontrar nesse livro um eixo que dê realmente conta de todas as contribuições. Mas o fato é que, independentemente da qualidade desigual dos artigos, essa publicação permite-nos esboçar algumas tendências na maneira como a história da Companhia de Jesus vem sendo emprestada pelos pesquisadores interessados na modernidade, especificamente ibero-americana.

Modernidade é, pois, o conceito-chave deste livro. A partir daí, dois problemas de definição se apresentam: um relativo à sua cronologia, e outro, ao delineamento dos seus principais traços característicos. Cada autor opera com uma concepção distinta da modernidade, ora associando-a ao Renascimento, ora à Ilustração, e às vezes ao século XVII. Alguns não consideram o problema, outros o colocam claramente, explicitando seu posicionamento, outros, ainda, o tomam como principal objeto de reflexão. Porém, para Luis Bacigalupo, autor da introdução, o termo moderno abarca menos o sentido do período que se inicia no fim da Idade Média e termina com a Revolução Francesa do que aquilo que representa o pensamento questionador do consuetudinário, sendo que a modernidade se caracteriza, então, como uma era da “cultura em crise” (p. 24). Ainda segundo o organizador, um dos seus principais traços característicos é o fato de ser expansiva, isto é, de tender a aplicar os êxitos da razão a todos os campos do conhecimento e das atividades humanas; a ciência e a educação revelando-se, pois, âmbitos importantes de sua definição e veiculação. Assim, o eixo escolhido no livro para caracterizá-la é o da tensa relação entre princípios de ações divergentes: se por um lado, a razão moderna impele o homem a se emancipar das irracionalidades que o “escravizavam”, por outro, estimula o Estado a ações que visam o seu fortalecimento, pela expansão comercial, industrial e burocrática, gerando forças paradoxais entre a liberdade do indivíduo e a soberania do Estado.

Nessa encruzilhada, a Companhia de Jesus que, justamente por conta do seu apostolado universal, sempre ocupou um lugar central, do ponto de vista social, político e cultural, no processo de expansão do velho mundo e de formação das novas sociedades americanas [7], desempenhou um papel importante, tanto na sistematização de estruturas do colonialismo quanto na formação dos quadros que posteriormente foram responsáveis pela emancipação das colônias. Entendida nesses termos, a atuação da Companhia de Jesus na América revela uma contradição crucial para a modernidade americana, na sua relação com a Europa, e parece ser esse paradoxismo do sistema colonial o eixo em torno do qual se reúnem as questões colocadas pelas diversas, e heterogêneas, contribuições.

Em uma apreciação alheia à distribuição dos artigos nas seções definidas pelos organizadores, é possível notar a presença marcante de duas classes de contribuições: artigos que aproximam o tema da modernidade ao da formação das sociedades coloniais, e outros que determinam ênfase na construção da “pátria criolla”. Quanto a esta última, duas questões são nomeadamente abordadas: a responsabilidade dos jesuítas na educação da elite nativa e seu papel na construção de uma identidade nacional.

Assim, o debate teológico-jurídico, que por uma reavaliação do aristotelismo, procurou justificar moralmente a escravidão, é explorado nos artigos de Josep Ignasi Saranyana e de Francisco Moreno Rejón. No que concerne à formulação de um modelo e aos aspectos relacionados à empresa missionária propriamente dita há que se conferir, por exemplo, as contribuições de Jeffrey Klaiber, S.J., Javier Baptista, S.J., Ignacio del Río e Norberto Levinton. Já o texto de Antonella Romano − que se destaca por chamar a atenção para a missão como espaço de produção de ciência, por conta da mobilização de técnicas e saberes que visavam ao domínio territorial − submete a relação entre centro e periferia a uma perspectiva mais ampla, mostrando que a América não somente importou e mestiçou, mas também foi protagonista na construção da cultura moderna. Nesse mesmo sentido vai o argumento de Carmen Salazar-Soler, em seu artigo sobre o desenvolvimento de técnicas mineradoras no Peru nos séculos XVI e XVII.

O tema das atividades educativas dos colégios administrados pelos jesuítas é especialmente mobilizado pelos autores desse livro, e responde a interrogações de enquadramento nacional, desde a abordagem da educação dos caciques, por Monique Alaperrine-Bouyer, até a organização e consolidação de uma estrutura de ensino e formação dos espanhóis e filhos de espanhóis. Nesse sentido, para Maria Cristina Torales Pacheco, os jesuítas teriam assentado na Nova Espanha as bases de uma “esfera pública burguesa” [8], na qual se teria formado a geração que posteriormente foi responsável pela emancipação política “e construção do México como país independente” (p. 158).

Porém, adverte Pacheco, não foi apenas na formação de uma classe social que a Companhia de Jesus desempenhou um papel importante: os jesuítas também se implicaram diretamente na construção da identidade nacional. É o que procuram revelar, por exemplo, os estudos sobre os conflitos no seio da própria Ordem, entre os jesuítas nativos e aqueles oriundos da Europa. Bernard Lavallé demonstra que, embora tenha tentado, a cúria generalícia romana não conseguiu coibir a entrada, na instituição, de membros americanos, que acabaram se impondo: pouco tempo depois da chegada dos jesuítas, conclui o autor, os criollos instruídos em seus colégios chegaram a dominar os postos do clero secular em suas respectivas dioceses, gerando conflitos. Pedro Guibovich Pérez identifica no Poema hispano-latino, do jesuíta peruano Rodrigo de Valdés (1619-1682), uma exaltação nacionalista: evidenciando as disputas entre nativos e estrangeiros dentro da própria Companhia, segundo o autor, Valdés mostrava erudição como estratégia de defesa da capacidade intelectual dos criollos, e fazia uso do gênero corográfico como instrumento de exaltação da “pátria chica”.

Também Clavijero (1731-1787) é apresentado, por Beatriz Domingues, como um dos construtores do “patriotismo” mexicano. Como ele, outros jesuítas exilados na Itália, após as expulsões de 1767, contribuíram à construção de uma identidade nacional ao contradizer as teorias de Buffon e De Pauw sobre a degenerescência da natureza americana. Este mesmo assunto passa por vários outros artigos, um dos quais trata especificamente do jesuíta Juan de Velasco, com relação à história equatoriana (Carmen-José Alejos Grau). Quanto a isso, é de se notar as referências obrigatórias aos estudos de Antonello Gerbi e Miguel Batlori [9].

A questão dos nacionalismos levantada pela análise da “literatura de exílio” aproxima-nos então de outro importante tema tratado em artigos que também lhe fazem referência, e que acabou originando uma seção à parte: os contextos das expulsões (José del Rey Fajardo, S.J., Francisco de Borja Medina, S.J., Manuel Marzal, S.J., Sandra Negro). Porém, não só essa literatura do exílio, como igualmente aspectos econômicos da expulsão (Guillermo Bravo Acevedo e Kendall W. Brown), relativos aos conflitos no Paraguai (Martín Maria Morales, S.J. e Barbara Ganso) e à definição das fronteiras amazônicas (Fernando Rosas Moscoso) são assuntos levantados, deixando patente a predominância da questão nacional no tratamento da história da Companhia de Jesus na América.

Ora, a correspondência dos marcos cronológicos da história do período moderno e da colonização da América com os da história dos jesuítas (1540-1773) não é fruto de mera coincidência. Se a história da Companhia de Jesus nos momentos de sua fundação e consolidação institucional possibilita questionar o período moderno por um enquadramento supranacional, entretanto, no contexto da sua supressão, a história da Ordem proporciona fecundo campo de análise da questão nacional. E, se o debate franco-italiano privilegiou os séculos XVI e XVII − de construção da identidade jesuíta e definição do apostolado universalista e missionário −, abrindo espaço para a análise da atuação dos padres no âmbito das ciências e das missões, nos meios acadêmicos hispano-americanos (onde aliás a presença de jesuítas historiadores se faz notar de maneira mais evidente), os temas permanecem associados sobretudo ao século XVIII, contexto em que se encadeou uma série de fenômenos que desembocaram na expulsão dos jesuítas dos domínios imperiais europeus e, por fim, na supressão da Ordem. Sob o aspecto historiográfico, então, o livro “Los jesuitas y la modernidad en iberoamérica”, parece confirmar uma tendência própria ao debate hispânico, em que as circunstâncias, causas e conseqüências das expulsões constituem objetos privilegiados de estudo [10].

Não é de pouco interesse notar, quanto a isso, um desequilíbrio na publicação que, se reúne na sua maior parte textos referentes à história do México e Peru, conta apenas com a colaboração de Rafael Chambouleyron no que diz respeito aos jesuítas na América portuguesa (embora a baliza cronológica da publicação se inicie em 1549, ano da fundação, no Brasil, da primeira missão jesuíta americana). Se incorporasse a vertente brasileira desse debate, o livro talvez apresentasse um outro tom − contudo ainda em vias de se delinear [11].

Notas

1. Termo que, em francês, significa desenclausuração; foi cunhado por Luce Giard, curadora de um volume considerado marco desse novo significado conferido aos estudos jesuítas. Les jésuites à la Renaissance. Système éducatif et production du savoir, dir. Luce GIARD, Paris: Presses universitaires de France, 1995.

2. ROMANO, Antonella & FABRE Pierre-Antoine, Présentation, in Revue de Synthèse. Les jésuites dans le monde moderne. Nouvelles approches. T. 20, n. 2-3, avril-septembre 1999, pp. 247-260.

3. CANTÚ, Francesca. I gesuiti tra vecchio e nuovo mondo. Note sulla recente storiografia, in Carlo OSSOLA, Marcello VERGA & Maria Antonietta VISCEGLIA (eds.), Religione cultura e política nell’Europa dell’età moderna. Studi offerti a Mario Rosa dagli amici, Firenze: Leo S. Olschki, 2003, pp.173-187.

4. FABRE, Pierre-Antoine. L’histoire des jésuites hors les murs. L’état de la recherche em France. Annali di storia dell’esegesi. Anatomia di un corpo religioso: l’identità dei gesuiti in età moderna, 19/2, 2002, pp. 357-367. Citamos apenas algumas das publicações coletivas mais recentes sobre missão, ensino e ciência: CAROLINO, Luis Miguel & CAMENIETZKI, Carlos Ziller (coord.), Jesuítas, Ensino e Ciência. Séculos XVI-XVIII, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2007. CHINCHILLA, Perla & ROMANO, Antonella (coord.), Escrituras de la modernidad. Los jesuitas entre cultura retórica y cultura científica, Cidade do México: Universidad Iberoamericana, 2008; FABRE, Pierre-Antoine & VINCENT, Bernard (comp.), Missions religieuses modernes. “Notre lieu est le monde”, Roma: École française de Rome, 2007. Não se pode deixar de mencionar a contribuição dos Estados Unidos a esse renovamento historiográfico, da qual podemos citar, ainda restringindo-nos a publicações coletivas, O’MALLEY, J., BAUILEY, G.A., HARRIS, S.J. & KENNEDY, T.F. (eds.), The Jesuits: Cultures, Sciences and the Arts, 1540-1773, Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 1999 e, dos mesmos organizadores, The Jesuits II: Cultures, Sciences and the Arts, 1540-1773, Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 2006. Também na relação entre poder e religião, a Companhia de Jesus inspirou sólidas pesquisas, como se pode conferir em MOLINIÉ, Annie, MERLE, Alexandra & GUILLAUMEALONSO, Aracelo (dir.), Les jésuites en Espagne et en Amérique. Jeux et enjeux du pouvoir (XVIe-XVIIIe siècles), Paris: PUPS, 2007.

5. Esse colóquio foi organizado pela Universidade Católica do Peru, por Luis Bacigalupo e Manuel Marzal Fuentes, S.J. († 2005).

6. “La hipótesis general que motivó la convocatoria a este coloquio es que la producción intelectual y la obra educativa y misionera de algunos padres da Compañía de Jesús habrían sido el primer y decisivo resplandor de la cultura moderna en el mundo católico. Para explorar esa hipótesis, la comisión organizadora del coloquio invitó a académicos de prestigio, quienes aceptaron delinear algunas características de la modernidad en la tradición cultural iberoamericana, partiendo de los diferentes ámbitos en que actuaron los jesuitas entre 1549 y1773”, BACIGALUPO, Luis E. Introducción, in Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica. 1549 y 1773, p.15.

7. ROMANO, Antonella & FABRE Pierre-Antoine, “Présentation”, in Revue de Synthèse. Les jésuites dans le monde moderne. Nouvelles approches. T. 20, n. 2-3, avril-septembre 1999, p. 255.

8. No seu artigo intitulado “Los jesuítas novohispanos, la modernidad y el espacio público ilustrado”, a autora se diz tributária dos estudos de Roger Chartier e Jürgen Habermas.

9. BATLORI, Miguel. La cultura hispano-italiana de los jesuítas expulsos, Madrid: Biblioteca Românica Hispánica 1966. GERBI, Antonello. La disputa del Nuovo Mondo. Storia de una polemica. 1750-1900, Milano-Napoli, Ricciardi, 1955.

10. De fato, os organizadores do livro Les jésuites en Espagne et en Amérique (cf. supra n. 4) notam que temas relacionados ao destino dos jesuítas no século XVIII ou as missões do Paraguai constituem uma parte importante dos estudos referentes à influência da Companhia de Jesus no mundo ibero-americano. Alguns trabalhos recentemente têm procurado outros caminhos: além do livro em questão, ver, por exemplo, Julian J. LOZANO NAVARRO. La Compañía de Jesús y el poder en la España de los Austrias, Madrid: Cátedra, 2005.

11. Embora pesquisadores brasileiros se dediquem aos estudos jesuítas há vários anos, os empreendimentos coletivos são bastante recentes. Em 2007, também foram publicadas no Brasil as atas de um colóquio referente à Companhia de Jesus, por iniciativa dos próprios jesuítas: BINGEMER, M. C. L., MAC DOWEL, J. A. & NEUTZLING, I. (orgs.), A Globalização e os Jesuítas: origens, história e impactos. Anais do Seminário Internacional realizado entre 25 e 29 de setembro de 2006 na PUC-RJ, Unisinos-RS e na Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia (FAGE), de Belo Horizonte, São Paulo: Loyola, 2007. Apesar de o próprio título da publicação expressar uma diferença importante com relação ao debate hispano-americano, não é suficiente para definir o tom das discussões brasileiras. Acompanhado deste presente volume e da edição, que deve sair em breve, das atas do colóquio internacional realizado em 2007 na Universidade de São Paulo, “Contextos missionários: religião e poder no Império português”, seus contornos se tornarão mais claros. Este último colóquio, embora não estivesse centrado especificamente nos jesuítas, contou com a colaboração de alguns importantes especialistas em história da Companhia de Jesus. De todo modo, importa aqui salientar o recorte imperial atribuído ao objeto, como indicado no próprio título do encontro.

Camila Loureiro Dias – Doutoranda EHESS, Paris.


MARZAL, Manuel; BACIGALUPO, Luis (Eds.) Los jesuitas y la modernidad en Iberoamérica (1549-1773). Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú; Universidad del Pacífico; Instituto Francés de Estudios Andinos (IFEA), 2007. Resenha de: DIAS, Camila Loureiro. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.27, n.1, p. 417-425, jan./jun. 2009. Acessar publicação original [DR]

Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos | Ira Berlin

O professor Ira Berlin, da Universidade de Maryland, Estados Unidos, já ganhou diversos prêmios em razão de seus livros publicados em 1975 e 1999, intitulados, respectivamente, Slave without masters: the free negro in the Antebellum South e Many thounsands gone: the first two centuries of slavery in Mainland North America. O mesmo aconteceria com a publicação de outro livro em 2002, e traduzido para o português em 2006, Gerações de Cativeiro, que foi agraciado pela Associação Histórica Americana. Com essa publicação, o professor americano prossegue suas pesquisas na área da história dos Estados Unidos e do mundo Atlântico, enfocando o trabalho escravo.

No livro Gerações de Cativeiro, Berlin trabalha novamente com a escravidão nos Estados Unidos, dando ênfase no escravo, pois, como afirma, apesar da relação entre proprietários e cativos ser desigual, tendo estes pouco poder se comparado aqueles, havia um embate entre ambos. Os escravos eram ameaças constantes aos seus senhores e, portanto, era necessária uma contínua relação de disputas entre estes dois grupos, sendo que, às vezes, o resultado desta era a realização de algumas “concessões” em prol dos cativos. Apesar da proibição de casarem-se, muitos escravos formaram famílias; apesar de não poderem ter religião própria, criaram-se igrejas à revelia dos senhores; apesar de não poderem ter propriedades, muitos cativos adquiram posses. Deste modo, neste livro o escravo é o centro da narrativa mesmo sem esquecer outros atores sociais como os proprietários de escravos, os brancos livres, negros livres ou libertos e indígenas.

O criativo título Gerações de Cativeiro expressa a outra ideia que permeia a análise no livro: a perspectiva de mudanças. Mudanças nas gerações em cativeiro, nas gerações de comunidades escravas, as quais, como a própria palavra geração expressa, foram influenciadas pelas que as precederam e diferenciadas das posteriores. Assim, Berlin demonstra a descontinuidade, as variações e opõe-se a uma história linear dos quase 300 anos de escravidão nos Estados Unidos bem como a uma história que retrata os escravos como “socialmente mortos”, sem enraizamento, isolados no Novo Mundo trazendo à tona a ideia do escravo como ativo, como sujeito na sua própria história e na sua geração.

Observando o escravo por este viés, Berlin percebe, portanto, a escravidão como algo negociado e não simplesmente imposto e mantido através da violência. No centro deste processo está o trabalho desses cativos. Todavia, Berlin não se concentra somente na história do trabalho; ele amplia seus estudos para as relações familiares, religiosas e para o próprio vocabulário desenvolvido pelos grupos de africanos e de seus descendentes que se estabeleceram nas plantações de tabaco, arroz, índigo e nas cidades. Embora não oficiais, essas práticas formularam instituições escravas, as quais se diferenciavam da dos seus senhores.

Conectando o título com a divisão do livro, Berlin intitula e separa seus capítulos baseando-se também na concepção de gerações, as quais organizaram-se e estabeleceram-se a partir do final do século XVI até meados do XIX, com o término da escravidão nos Estados Unidos. Há, portanto, as gerações da Travessia, da Plantation, Revolucionárias, de Migrantes e, por fim, da Liberdade. Nesses capítulos, além da observação de diversas formas de relações dos cativos entre si e entre estes e seus superiores, há a análise das variações dessas relações referentes aos espaços onde estas foram constituídas. Desta forma, nos capítulos iniciais, as narrativas têm como palco as treze colônias americanas enquanto, no fim do livro, temos os Estados Unidos como nação e dividido, principalmente, entre norte e sul.

As Gerações da Travessia são os grupos iniciais de africanos trazidos para a América. Berlin nomeia esses como crioulos do Atlântico, uma vez que eram um grupo de origem não somente africana, mas também europeia. A formação desse grupo deu-se pelo contato ocorrido em virtude do estabelecimento de feitorias e pontos comerciais europeus na costa oeste da África a partir do século XV. Desta relação surgiram os crioulos, um terceiro grupo, o qual não era reconhecido nem como europeu e nem como africano. Esses crioulos eram extremamente hábeis no comércio, pois tinham maleabilidade e conhecimentos para ir e vir tanto no mundo dos europeus como no dos africanos. A despeito das vantagens comerciais e linguísticas, esse aspecto limítrofe do crioulo trazia dificuldades na sua identificação com determinados grupos detentores do poder e, por conseguinte, na obtenção de proteção por parte destes. Deste modo, questões como crimes, dívidas ou má sorte poderiam significar escravização.

Os crioulos do Atlântico, em diversas situações, desempenhavam as atividades diárias lado a lado com os europeus, os quais, em alguns casos, trabalhavam como servos. Aqueles puderam continuar e expandir sua cultura nascida no continente africano. Diferentemente do que aconteceu com as gerações posteriores, a travessia do Atlântico não desfez os laços entre os cativos: simplesmente, deslocou-os para outra localidade. Além disso, participavam das atividades religiosas europeias e tinham mais possibilidades de acesso a terras bem como a alforrias e ao casamento do que as gerações posteriores.

Com a introdução das plantations essa pequena prosperidade vivenciada pelos crioulos do Atlântico desapareceu e a segunda geração de escravos surge: estamos na Geração da Plantation. Apesar das especificidades regionais, o que compreende toda esta segunda geração é a introdução das grandes plantações e a rigidez e a brutalidade com que o sistema escravista se estabeleceu, haja vista que, neste momento, temos a necessidade de maior produção em menos espaço de tempo visando à exportação. Com a plantation, almejava-se o lucro, custe o que custar. Essa geração é o retrato que pintamos da escravidão como tal, com trabalho árduo e castigos corporais mais acentuados, com altas taxas de mortalidade, desequilíbrio entre homens e mulheres, poucas alforrias e famílias.

Não eram mais os crioulos do Atlântico, os escravos trazidos da África. Saiu-se do litoral e mirou-se nos nativos do interior do continente. Assim, a língua crioula deixou de ser corrente para dar voz às africanas do interior. O contato entre trabalhador o escravo africano e o europeu esvaiu-se, aumentando a distância entre brancos e negros.

Nesse segundo capítulo, o autor trabalha com a escravidão na região norte dos Estados Unidos. A priori, a ideia comum é considerar os estados do norte como abolucionistas e livres de escravos. Mas, Berlin demonstra que esta região quase chegou a vias de tornar-se uma sociedade escravista, ou seja, uma sociedade em que este tipo de mão de obra é o alicerce central da produção econômica e todas as relações sociais estão construídas em torno no modelo patriarcal de senhor e escravo. Todavia, a expansão da escravidão freou antes desse processo ocorrer como aconteceu na região sul.

Após o estabelecimento da Geração da Plantation, vêm, no final do século XVIII, as Gerações Revolucionárias, acompanhando e vivenciando as revoluções por igualdade e liberdade que borbulhavam tanto na Europa quanto na América. A Revolução Americana desestruturou internamente a organização da sociedade escravocrata de então, sendo que não havia mais uma uniformidade entre os proprietários de escravos, os quais estavam divididos entre legalistas e patriotas, e nem havia mais um Estado forte para a proteção da instituição escravista. Deste modo, esse período de conflitos internos gerou uma válvula de escape para os cativos.

Além da guerra, a ideologia, que permeava essa e as outras revoluções contemporâneas, também foi extremamente significativa para a erosão do poder dos senhores escravocratas. Apregoava-se, tanto na Declaração Americana de Independência como na Declaração Francesa dos Direitos do Homem, a igualdade universal. Portanto, surgiam questionamentos como: se todos eram iguais como uns poderiam ser subjugados a outros? Além disso, havia outra questão: os americanos desejavam a independência por estarem sendo escravizados pelos países metropolitanos, mas como poderiam almejar sua liberdade se continuavam a escravizar em suas terras? Esse paradoxo fortaleceu ainda mais os escravos.

Com o fim das revoluções, os escravos iriam vivenciar outro momento: a expansão das grandes plantações para o interior do sul dos Estados Unidos, criando as Gerações de Migrantes. Acompanhando a plantation, seguiram mais de um milhão de escravos vindos de outras regiões do país, haja vista que o tráfico Atlântico de africanos havia sido extinto em 1808. Esse mercado interno de cativos aqueceu-se entre os anos de 1810 a 1861 quando as terras do interior sulista foram protagonistas das plantações de algodão e de açúcar.

Enquanto no sul as relações escravocratas enrijeciam-se e se fortaleciam com os lucros das plantações, no norte, após as ondas revolucionárias, mudanças estavam em prosseguimento. Leis para a gradativa abolição da escravatura estavam sendo elaboradas e aplicadas. Em algumas regiões, a abolição aconteceu mais rápido do que em outras, apesar de a escravidão, em certos locais, perdurar com outras formas e nomes, porém com o mesmo conteúdo e objetivo. Além disso, a liberdade para os negros não significava igualdade no norte e muito menos proteção contra investidas dos brancos sulistas, haja vista que a temática da reescravização esteve sempre presente na vida desses indivíduos no século XIX. Mesmo sendo estados considerados livres e sendo refúgio e esperança de muitos ex-excravos, negros livres e cativos sulistas fugidos, o norte auxiliou na recaptura e envio de escravos para os seus senhores sulistas.

Mas, a escravidão não viveria para sempre. A partir de meados do século XIX, a possibilidade da liberdade com o fim da escravidão estava ganhando mais força. A abolição da escravatura em diversos países e o fortalecimento do movimento abolicionista no norte dos Estados Unidos eram os carros chefes desse movimento. Assim, chega-se às Gerações da Liberdade.

Com a guerra civil entre o norte e o sul, iniciada em 1861, os escravos viram o sistema escravista em colapso e aproveitaram essa fragilidade. Contudo, em seus primeiros momentos, a decepção dos escravos quanto à liberdade e a salvação vinda do norte foi grande. A guerra, diferentemente do que geralmente aprendemos, não tinha inicialmente motivos abolicionistas, como expõe Berlin. Os soldados federais não estavam lutando pelo fim da escravidão; a maioria nem se importava com estas questões. Esta relação mudou somente quando os sulistas passaram a utilizar os cativos nas fortificações e na luta contra os soldados da União. Indo de encontro com as políticas federais, os soldados do norte começaram a também fazer uso dos escravos e a não mais devolver os cativos fugidos aos seus donos sulistas. Com o passar da guerra, o governo necessitou de mão-de-obra, o que favoreceu as fugas escravas, que só aumentavam. Para o fugitivo, o envolvimento com o serviço militar significava não só liberdade, mas também a possibilidade de ter acesso à cidadania. Entretanto, foi somente em 1863 que o presidente Lincoln declarou todos os cativos dos estados rebeldes do sul como livres. Portanto, vale ressaltar que a abolição aconteceu quase dois anos depois do início da guerra, demonstrando que esta não era a intenção inicial do governo de Lincoln.

Porém, a escravidão não solapou somente com as forças externas dos federais. Dentro das plantações, os escravos também resistiam, protestavam e se rebelavam. Assim, com o fim da guerra civil, a instituição escravista estava destruída e a nova lógica em jogo era a da liberdade. A construção dessa nova sociedade era um misto de antigos e novos desejos. A história desses libertos não poderia ser elaborada ser as marcas e as vivências da escravidão. E, segundo Berlin, a herança da escravidão são essas marcas e vivências que delinearam e delineiam a formulação da vida em liberdade e do direito de ser cidadão.

O livro Gerações de Cativeiro é um trabalho de síntese histórica uma vez que o autor percorre desde as feitorias na África do século XV até as batalhas da Guerra de Secessão nos Estados Unidos no século XIX. Neste caso, ser um trabalho de síntese não significa um termo depreciativo, ao contrário. Berlin consegue entrelaçar num livro de poucas centenas de páginas diversas pesquisas menores sobre este extenso período. Os dados que apresenta não são retirados de fontes primárias e sim, dessas pesquisas que estão expressas nas notas no fim do livro. Devido ao grande número de trabalhos citados, verificamos uma grande carga de leitura e formidável capacidade de organizá-la de forma coerente e concisa por parte do autor. Porém, além desses trabalhos de outros pesquisadores, Berlin apresenta os resultados das suas próprias pesquisas anteriores resultando num livro dos quase 300 anos de escravidão nos Estados Unidos com questionamentos e apontamentos revisados e inseridos nos atuais estudos da história social da escravidão.

Ana Paula Pruner de Siqueira – Mestranda pela Universidade Federal de Santa Catarina, financiada pela CAPES. E-mail: [email protected].


BERLIN, Ira. Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Record, 2006. Resenha de: SIQUEIRA, Ana Paula Pruner de. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.3, p. 287-292, jan. / jun., 2009.

Acessar publicação original [DR]

a Ravardière e a França Equinocial: os franceses no Maranhão (1612-1615) – MARIZ; PROVENÇAL (RIHGB)

MARIZ, Vasco; PROVENÇAL, Lucien. La Ravardière e a França Equinocial: os franceses no Maranhão (1612-1615). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. 231p. Resenha de: DEL PRIORE, Mary. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.168, n.438, p.355-356, jan./mar., 2008.

De livro em livro, Vasco Mariz e Lucien Provençal vão construindo uma obra, se entendemos por obra um conjunto de textos atravessados por uma questão. No caso: as relações históricas entre Brasil e França. Autores de vários livros sobre personagens importantes da aventura americana, eles têm se debruçado sobre episódios que a história deixou no limbo. Depois de Villegagnon e a França Antártica, quem ganhou carne e osso foi este La Ravardiére e a França Equinoxial. Após as lutas na baía da Guanabara, àquelas nas praias pantanosas do Maranhão. Num texto coloquial e amistoso, os autores conjugam simplicidade e competência para nos contar o que alguns tentam esquecer : que por mais de um século, regiões inteiras do que, hoje, chamamos Brasil foram terra de ninguém. De ninguém, não. Pois os franceses sempre demonstraram enorme habilidade em se instalar e, diferentemente dos portugueses, estabelecer relações amistosas com seus moradores, os tupinambás

No Rio de Janeiro foi assim, e em São Luíz também. A idéia de uma colônia francesa no Norte, nasceu depois que alguns franceses aí estiveram, ao final do século Dezesseis. A idéia foi aplaudida por Daniel de La Touche, Senhor de la Ravardière, que já conhecia o litoral da atual Guiana. Em 1611, a primeira bandeira com a flor-de-lís foi hasteada e os “papagaios amarelos”, – alcunha amistosa que lhes foi dada pelo índios – davam início ao projeto de construir um forte, manter um convívio pacífico com os tupinambás e preparar a posterior ocupação por colonos. A campanha era escorada pelos chamados “grandes da Corte”: François de Razilly, Senhor des Aumels, chegado à família real, Nicolas de Harlay, barão de Molle et de Gros-Bois, e o senhor de Danville, almirante da Bretanha e primo do rei, Henrique IV. Com o sucesso da primeira parte da missão, passou-se à segunda. No ano quatro padres capuchinhos, entre os quais um dos primeiros etnógrafos a escrever sobre a região : Claude d´Abbeville. A chegada no porto de Jeviré tem banquete “tão magnífico quanto poderia ser em França”, reunião com os chefes aliados e uma decisão : a construção do forte São Luís : “feito de estacadas, com baluartes altos, casamatas e fosso de 40 palmos”.

Seguros para passar a etapa seguinte? Não. Aí que os problemas começam. E de um e de outro lado do Atlântico. De comum acordo com companheiros que levavam adiante uma campanha de alianças comerciais entre os diferentes grupos tupinambá, Razzily partiu para a França. Ia em busca de capitais, soldados e colonos. Deixava aqui disputas discretas com La Ravardière. Este, por ser protestante, era tratado como “herege” pelos capuchinhos e com pequenas humilhações por parte de seus subordinados católicos. Entretempos, Henri IV, que era um entusiasta da idéia, foi assassinado. Na mesma época programou-se o casamento de seus filhos com os de Felipe III, rei de Espanha e Portugal – sob a conjuntura da União Ibérica. Não era de bom alvitre, portanto, arranjar confusão no Brasil. Por aqui, os portugueses resolvem reagir.

Tem início as “jornadas importantíssimas do Maranhão”, dos melhores capítulos do livro, com detalhes das várias escaramuças, traições e operações estratégicas que levam à vitória de Guaxenduba. O fim da França Equinoxial se consolida com a rendição do forte São Luís – “Saint Louis des Français” –, no dia 3 de novembro de 1615. Foram tres curtos anos em que fatos externos ajudam a abortar uma experiência que poderia ter vida longa.

Se no século Dezesete, o Brasil continua como o país do ouro e das especiarias, para La Ravardière a França Equinoxial foi um sonho. Sonho decifrado com autoridade por especialistas capazes da arte sutíl de reunir a melhor informação com uma narrativa que deixará qualquer leitor por dentro do assunto. Trata-se de um exercício de precisão levado a cabo por dois colegas historiadores e que contribue de maneira esclarecedora para a compreensão das relações entre dois países amigos.

Mary Del Priore – Sócia honorária do IHGB.

Acessar publicação original

[IF]

La insubordinación fundante: breve historia de la construcción del poder de las naciones / Marcelo Gullo

La insubordinación fundante, de Marcelo Gullo, é obra que se propõe original em pelo menos dois aspectos: a perspectiva analítica e a criação de conceitos. Para tanto, percorre a trajetória dos casos de sucesso no processo de desenvolvimento econômico e construção do poder nacional, desde o século XIV – Portugal, Espanha, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha, Japão e China –, em uma perspectiva periférica; e propõe novos conceitos para serem aplicados aos atuais países emergentes, principalmente o de umbral de poder. Nos últimos capítulos, o autor analisa a presença de novos atores no jogo político internacional e os desafios que se lhes apresentam na busca pelo desenvolvimento socioeconômico, e desenvolve análise prospectiva, incluindo a atual posição dos Estados Unidos no cenário internacional. Dessa forma, Gullo se lança em um estudo de caráter multidisciplinar, situado na interface da História Moderna e Contemporânea com a Economia Política e a Teoria do Desenvolvimento.

No prefácio do livro, Hélio Jaguaribe destaca que o conceito de periferia utilizado pelo autor apresenta duas dimensões, a de uma perspectiva e a de um conteúdo, ou seja, de um autor sul-americano que analisa as condições de possibilidade de um país periférico deixar de sê-lo. Ao longo do texto, a tese central – que todos os processos de crescimento comercial e/ou industrial exitosos resultaram da conjugação de uma atitude de insubordinação ideológica em relação ao pensamento dominante com um impulso estatal eficaz – é construída em perspectiva comparada. Aproxima-se, assim, de forma explícita, da interpretação cara ao neoestruturalismo econômico latino-americano referente às estruturas hegemônicas de poder e à necessidade de superá-las.

Na realização do duplo intento do autor, os dois primeiros capítulos, de natureza essencialmente teórica, discutem a teoria da subordinação e o conceito de umbral de poder. A teoria da subordinação considera que a igualdade jurídica entre os Estados é uma ficção e que as regras criadas no jogo do sistema internacional expressam os interesses das grandes potências, disfarçados na forma de princípios éticos e jurídicos universais. Para enfrentar as estruturas hegemônicas e as regras do jogo internacional, os países periféricos precisariam acumular recursos de poder e alcançar o umbral que se redefine a cada conjuntura histórica distinta. Por exemplo, Portugal e Espanha alcançaram o papel de pioneiros na expansão europeia dos séculos XV e XVI por intermédio da capacitação tecnológica, da vantagem estratégica (a opção por buscar outra rota para as Índias que não o Mediterrâneo) e do impulso estatal, com base na organização administrativa do Estado moderno e da racionalidade que o sustentava. Em linhas gerais, foi o mesmo processo seguido pelo Japão com a Revolução Meiji e com a China das últimas décadas do século XX e início do XXI.

Quanto ao conceito de umbral de poder, Gullo o conceitua como o quantum mínimo de poder necessário para se alcançar o desenvolvimento socioeconômico e a construção da potência, abaixo do qual cessa a capacidade de autonomia de uma unidade política. Em outras palavras, é o poder mínimo que necessita um Estado para não cair na subordinação, em um momento determinado da história. Os Estados que, historicamente, se transformaram em potência obtiveram em determinado momento o quantum mínimo de poder para atuar de maneira autônoma no cenário internacional e projetar o seu poder. Na verdade, do estudo aprofundado da história da política internacional se revela que, na origem do poder nacional dos principais Estados que conformam o sistema internacional, se encontra sempre presente o impulso estatal. Por impulso estatal entende o autor todas as políticas realizadas por um Estado para criar ou incrementar quaisquer dos elementos que conformam o poder desse Estado. Com efeito, o conceito de impulso estatal envolve todas as ações levadas a cabo por uma unidade política para estimular o desenvolvimento ou o fortalecimento dos elementos de poder nacional. O exemplo utilizado como paradigmático pelo autor foi a Lei de Navegação inglesa, de 1651, segundo a qual era permitido importar somente mercadorias transportadas em navios ingleses que estivessem sob comando inglês e cuja tripulação fosse de maioria inglesa. Assim, ao tratar da noção de impulso estatal, Gullo se aproxima nitidamente da corrente realista das relações internacionais, em diálogo indireto com o historiador Edward Carr e seus ensinamentos na obra Vinte anos de crise, publicada originalmente na conjuntura do início da Segunda Guerra Mundial.

Nos capítulos 3 a 9, são percorridas as experiências dos países bem sucedidos em seu processo de desenvolvimento, com a preocupação voltada para o momento no qual tais Estados decidiram pela insubordinação diante da ideologia predominante em determinada época e, por meio de forte ação estatal, envidaram esforços no sentido da construção do poder nacional. O mais importante exemplo contemporâneo de processo de construção do poder nacional é o da China que, a partir de Deng Xiaoping, iniciou uma mudança metodológica e, na visão do autor, não uma ruptura com o passado, na busca da construção – ou reconstrução – do poder da nação chinesa.

No caso da China, a ênfase da análise recai sobre a figura política de Sun Yat-Sen que, nascido em 1866, se converteu progressivamente, após a revolta nacionalista dos Boxers (1900-1901), na figura chave dos revolucionários chineses que lutavam contra a monarquia Manchú e na defesa da democracia e do fim da dependência chinesa em relação às potências estrangeiras.

A revolução contra a monarquia eclodiu em outubro de 1911 e, no início do ano seguinte, uma assembleia constituinte elegeu Sun Yat-Sen como presidente da nascente República da China. No entanto, o general pró-monarquia Yuan She-Kai, com um golpe de mão, provocou a renúncia de Sun Yat- Sen e assumiu o cargo de presidente.

Foi após esses episódios que Sun Yat-Sen desenvolveu um conjunto de concepções que afirmavam que uma revolução, para ser vitoriosa na China, precisaria da aproximação com operários, camponeses e com a burguesia nacional. Tais ideias orientaram, sob sua liderança, a fundação do Kuomintang – partido nacional e popular – que aspirava organizar uma frente única para a libertação da China, mas que enfrentou uma conjuntura interna politicamente caótica. Sun Yat-Sen faleceu em 1925 e deixou o Kuomintang firmemente organizado como um partido policlassista, dotado de um exército eficaz e reforçado pelos comunistas. Sua doutrina política, porém, encontrou terreno fértil para se desenvolver, tendo por base a ideia dos três princípios, utilizada pela primeira vez por Sun Yat-Sen em 1905 e significando a integração, em um mesmo projeto político e revolucionário, de suas teses sobre o naci que tais princípios devem ser adaptados a cada conjuntura histórica.

É nesse sentido que Marcello Gullo sustenta que a influência de Sun Yat-Sen chega a Mao Zedong e seus sucessores, sob o princípio da adaptação da teoria à realidade e não a realidade à teoria. A trajetória do modelo chinês de desenvolvimento, desde sua abertura no final da década de 1970, confirma a presença dos três princípios e revela extraordinária capacidade de adaptação a cada conjuntura histórica, além de um modelo planejado e gradual de desenvolvimento. Se até os anos noventa o governo chinês orientou a maior quantidade de capitais estrangeiros para a produção em setores intensivos em mão de obra, a partir de então, tratou de orientá-lo para os setores intensivos em capital e tecnologia. A nova estratégia ficou conhecida como desenvolvimento em paralelo, que consiste em desenvolver simultaneamente a indústria “tradicional” e a intensiva em conhecimento.

São esses exemplos de desenvolvimento econômico que, analisados em perspectiva histórica, podem auxiliar países emergentes, como os latinoamericanos, a encontrar seus próprios caminhos. Para tanto, Gullo sugere que líderes políticos, jornalistas especializados e estudiosos das relações internacionais na América Latina devem procurar ultrapassar a agenda, o debate e o vocabulário produzidos nos grandes centros de excelência acadêmica dos Estados Unidos. Significa pensar as relações internacionais desde a periferia latino-americana, para gerar ideias, conceitos, hipóteses e, certamente, um vocabulário próprio, capaz de dar conta da nossa própria realidade e dos nossos problemas específicos no sistema internacional. Na visão do autor, o pensar desde a periferia não deve levar à repetição das lamentações do passado, mas à ação no sentido da superação da condição periférica. Nosso debate teórico principal deveria ser cómo alcanzar el nuevo umbral de poder.

É justamente em sua análise prospectiva que Gullo deixa de contemplar o que tem sido o debate regional mais recente, voltado para a discussão em torno da existência ou não de consensos nacionais em relação ao tema do desenvolvimento e, no caso de resposta afirmativa, a discussão sobre os limites políticos enfrentados pela maioria dos países latino-americanos em seus esforços de desenvolvimento econômico e social. Gullo não aborda a questão das alternativas de desenvolvimento apresentadas por países como Bolívia e Equador, tomando o desenvolvimento econômico como um valor em si, principalmente quando o toma apenas como caso de crescimento e não de desenvolvimento em seu sentido amplo.

Outro aspecto a ser destacado é o fato de o autor não fazer referências a uma obra muitíssimo próxima da sua, o livro Chutando a escada, de Ha-Joon Chang (CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Editora UNESP, 2004). Chang analisou a trajetória histórica de potências como a Grã-Bretanha e retirou dessas experiências algumas lições, principalmente a necessidade de se rever algumas das ideias fartamente divulgadas na década de 1990, como a de que os países em desenvolvimento têm que seguir as sugestões dos desenvolvidos, a de que devem fazê-lo porque é o desejo dos investidores internacionais e a de que há um “padrão mundial” de desenvolvimento institucional das nações.

O diálogo com Chang daria condições a Gullo de aprofundar a dimensão institucional do desenvolvimento, tanto nos aspectos que freiam o desenvolvimento dos países periféricos quanto na busca de alternativas.

Não obstante as observações acima, La insubordinación fundante – livro premiado em Buenos Aires como melhor livro de 2008 – é obra original que consegue cumprir os objetivos de sustentar uma visão sul-americana dos casos históricos de êxito no processo de desenvolvimento e de propor novos conceitos nos estudos sobre o desenvolvimento. Os conceitos de umbral de poder e de insubordinação fundante trazem, indubitavelmente, novo vigor ao tema do desenvolvimento latino-americano.

Carlos Eduardo Vidigal – Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade de Brasília.


GULLO, Marcelo. La insubordinación fundante: breve historia de la construcción del poder de las naciones. Buenos Aires: Biblos, 2008. Resenha de: VIDIGAL, Carlos Eduardo. Textos de História, Brasília, v.16, n.2, p.307-311, 2008. Acessar publicação original. [IF]

Señores de la tierra … los empresarios jesuitas en la sociedad colonial | Guillermo Bravo Acevedo

“Señores de la tierra … “ constituye un trascendental aporte, tanto para la historiografía de la América hispana, como para los estudiosos de Historia Moderna, dedicados a estudiar las múltiples actividades desarrolladas por los jesuitas en las regiones incorporadas al dominio europeo desde el siglo XVI.

La aparición de este libro no puede sorprendemos, pues, sin lugar a dudas, Guillermo Bravo es el más destacado investigador en Chile sobre las temporalidades jesuitas y su variado quehacer misionero, económico y educativo. Leia Mais

Esclavos de la ciudad letrada. Esclavitud, escritura y colonialismo en Lima (1650-1700) – MARTÍN (E-CHH)

MARTÍN, José Ramón Jouve. Esclavos de la ciudad letrada. Esclavitud, escritura y colonialismo en Lima (1650-1700). Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2005. Resenha de: WANDERLEY, Marcelo da Rocha. Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas, Ilhéus, v.10, n.8, p.797-804, jul./dez., 2007.

Nos últimos vinte anos a historiografia brasileira tornou-se responsável por uma parcela considerável e significativa da produção sobre a problemática da escravidão nas Américas, fato incontestável tendo em vista importantes evidências, tais como o papel de destaque ocupado pela matéria nos currículos dos cursos universitários de história, nos catálogos editoriais e nos diversos congressos sobre a história do Brasil realizados desde então.

Por sua vez, o incremento do debate sobre o tema nos meios universitários brasileiros haveria de privilegiar marcadamente a interlocução com os estudos provenientes dos meios acadêmicos norte-americanos, tendo em vista algumas pautas de similaridades entre ambos os processos quanto às formas de organização da instituição escravista e, sobretudo, em razão do interesse comum quanto aos problemas relacionados à escravidão rural.

Menor ressonância tiveram os trabalhos dedicados à questão da escravidão no mundo hispano-americano – excetuando-se relativamente o Caribe hispânico de Manuel Moreno Fraginals e Fernando Ortiz. As razões vão desde raros e descontínuos intercâmbios acadêmicos até o desinteresse ocasionado pela percepção da limitada importância do trabalho africano nos territórios da monarquia castelhana quando comparados a magnitude de sua utilização nas denominadas América Portuguesa e Inglesa, recortes territoriais evidenciados pela historiográfi ca mais tradicional.

Neste contexto de abstenção do debate sobre os rumos da historiografi a da escravidão em diferentes países da América hispânica, encontram-se principalmente a obras de Rolando Mellafe – de caráter mais global e que seria durante largo tempo uma sólida referência sobre a questão – e de Enriqueta Vila Villar sobre o problema do tráfico de escravos naquela região e finalmente os trabalhos paradigmáticos de Gonzalo Aguirre Beltrán para o México e de Frederick Bowser e de Carlos Aguirre para o caso Peruano.

No caso dos estudos sobre a escravidão no Peru durante o período do Antigo Regime, despontam nos últimos anos alguns trabalhos que inspirados nas linhas abertas por Bowser e Aguirre se encaminham a uma análise da questão da escravidão a partir da perspectiva da História Cultural. É este exatamente o caso do livro de José Jouve Martín, professor do Departamento de Estudos Hispânicos da Universidade de McGill em Montreal.

O livro se dedica principalmente a analisar a problemática das interseções entre a cultura letrada e cultura oral tendo como objeto particular a comunidade de africanos e seus descendentes, todos residentes na cidade de Lima na segunda metade do século XVII, período quando já estão consolidadas as estruturas burocráticas nos reinos americanos. Aliás, uma Lima percebida pelos cronistas e ainda recenseada entre o século XVI e a primeira metade de XVII como uma cidade de caráter africano, por conta de uma população majoritariamente formada por grupos provenientes do Congo e de Angola.

Concentrado no campo da escravidão urbana, tal estudo revela como negros, mulatos e zambos participavam ativamente das articulações da cultura letrada sem que necessariamente houvessem adquirido a habilidade de ler e principalmente a de escrever. É justamente esta evidência das interações dos segmentos africanos com os signos da cultura letrada e com os textos escritos sem necessariamente implicar a aquisição de habilidades cognitivas num sentido estrito que demarca o inovador deste trabalho. Ainda que condicionada pela instituição da escravidão os usos da escrita servem aqui como referência para evidenciar a extrema complexidade dos processos de inserção dos africanos nas sociedades americanas – tal qual a historiografi a brasileira tem demonstrado nos últimos anos.

Sendo assim, os problemas destacados por Jouve encontram inspiração em larga medida nos fundamentos de interpretações anteriores voltadas para a comunidade indígena – sobretudo as de Serge Gruzinski para o México. Tais perspectivas buscaram dar conta das práticas de apropriação da cultura escrita pelos nativos como meio de adaptação à complexidade do aparato jurídico castelhano e ainda como garantia de ver reconhecido suas posições na sociedade e ainda requerer privilégios de isenção tributária.

O autor robustece o argumento da mescla da cultura letrada com a oral, ao pretender comprovar em particular que os contatos dos africanos chegados à cidade de Lima com a cultura escrita ocorrem quase exclusivamente por meio dos mecanismos da predicação cristã levados a cabo pelas ordens religiosas. Em segundo plano, o processo de assimilação imposto aos negros se dava principalmente através dos materiais de catecismo, a exemplo do Catecismo para los rudos y ocupados editado em Lima no fi nal do século XVI.

Tais fatos não produziram necessariamente as condições de aquisição conjunta das habilidades de leitura e escrita, mas sim uma evidente assimetria entre ler e escrever que caracterizaria tanto a aquisição parcial de habilidades como também os distintos níveis de interação dos indivíduos pertencentes às nações africanas com o mundo letrado.

Ainda que tivessem sido excluídos das instituições formais de educação, negros, mulatos e zambos adquiriram familiaridade com a cultura letrada através de diferentes modalidades que estavam profundamente demarcadas pela convivência entre os textos alfabéticos e visuais. As relações com instituições civis e eclesiásticas – como ocorre por exemplo, com o zambo Santiago Benítez em relação ao Tribunal da Santa Inquisição e o mulato Francisco de Santa Fé no tocante ao Arcebispado -, bem como a participação em atos públicos e festas civis e religiosas constituíram situações onde a tradição escrita dos setores proeminentes desta sociedade eram de certo modo assimiladas mediante formas visuais inscritas no cotidiano daquelas comunidades.

Outra questão debatida diz respeito ao papel desempenhado por diferentes elementos do mundo jurídico como mediadores nos processos de inserção dos africanos na sociedade colonial.

Tal contexto se explica pela relação estabelecida com os escrivães, facilitada imensamente pela condição ladina da população de origem africana, justo em razão da produção de eventos onde se buscavam por exemplo obter as “cartas de liberdade”. Ao lado destes especialistas da escrita encontram-se também na documentação – ainda que de forma mais difusa – os escribas, gente dedicada à elaboração de textos fora dos domínios burocráticos da administração do reino.

Os processos de concessão de liberdade, a quitação de obrigações como as cartas de pagamento, os episódios de estabelecimento de acordos e contratos com indivíduos de origem africana ou de castas superiores, acabam demarcando alguns aspectos da inserção desta população na vida econômica e gremial de Lima como faz ver José Jouve através da referência às chamadas “causas de negros”.

Além disso, tais processos mostram-se fundamentais à hora de compreender tanto os meios de os africanos negociarem posições dentro da sociedade – que não são independentes da condição de subordinação – como os casos de outorga de um poder agenciador a negros e mulatos livres que fi ndava por garantir o cumprimento de certas condições em suas relações contratuais com pessoas de posição superior na sociedade limenha.

O tema da negociação das identidades de grupo nas sociedades coloniais é retratado ainda através das formas de resistência expressas através do recurso à cultura legal. Nesta dimensão, são os registros de maus tratos, queixas e demandas apresentadas aos tribunais pelos de origem africana que elucidam a interação com as autoridades coloniais por meio do uso de textos e ainda descortinam as disputas e os confl itos muitas vezes infrutíferos com os proprietários de escravos, tal como no caso do escravo Antonio Português apresentado no texto.

Do mesmo modo, os registros em questão sublinham os esforços de amigos e familiares do reclamante de modo a fazer chegar os papéis das denúncias às mãos das autoridades legais. Por conseguinte, indicam a ação concertada com outros indivíduos, dado que em muitos casos há evidências de que os solicitadores das causas em favor dos escravos podiam ser na verdade tanto funcionários do tribunal, advogados ou ainda quem sabe um procurador.

Neste sentido, cabe ressaltar também as disputas decorrentes das operações legais para embargar a venda dos cônjuges dos escravos, proibida tanto pela justiça civil e mais que tudo pela eclesiástica; proibição continuamente desrespeitada pelos proprietários.

Jouve sublinha o papel desempenhado pelas redes sociais dos escravos no sentido de tornar possível a apresentação da denúncia quanto aos abusos relacionados às operações de venda mencionada.

Ainda nesta linha, se apresentam as petições que denunciam situações ambíguas de liberdade do escravo e por sua vez evidenciam as disputas em torno do pagamento do “jornal”, uma prática em geral bastante associada à escravidão urbana em Lima. Segue-se a esta realidade, as demandas apresentadas contra os espanhóis por negros e mulatos livres como modo de defender-se de abusos praticados contra eles ou mesmo com o objetivo de proteger bens e propriedades acumuladas.

Após analisar as relações verticais dos africanos no cotidiano daquela sociedade, o autor dedica-se a partir de então ao problema das relações entre os membros do grupo africano, sobretudo as contendas internas. A principal conclusão é a ausência de coerência nas formas de oposição a ordem colonial. Discute-o considerando os confl itos entre casais verifi cados nos tribunais em razão de promessas de matrimônio descumpridas, da anulação de matrimônios em decorrência de coação ou registrar-se situação de maus tratos e por fi m, tendo em vista os problemas oriundos das uniões entre livres e escravos com todos os seus efeitos sobre o status social.

Contudo, é a análise das petições encaminhadas às cortes judiciais coloniais pelas confrarias, tendo em vista as disputas em torno da regulação e controle destas instituições, uma das etapas mais signifi cativas da problemática das relações horizontais na vida da comunidade. Neste sentido, as confrarias funcionaram tanto como espaços de conservação de elementos das identidades africanas como de integração dos africanos a cultura americana de matiz europeu pela via da religiosidade.

Sem embargo, como demonstra Jouve, é o papel destas instituições como mediadoras entre esta população, a administração e a sociedade que explica as tensões no interior daquelas comunidades. Organizadas em muitos casos a partir dos vínculos com as “nações”, a exemplo da Confraria de Nossa Senhora do Rosário formada por Nalúes e Cocolíes, tais irmandades são apontadas como meios de articulação das identidades coletivas que mantinham entre si acirrada disputa. Isto explica as fortes lutas internas em torno do seu controle e em particular a necessidade de conhecer as estratégias e os discursos legais vigentes.

O domínio dos conhecimentos legais serviria também para garantir aos africanos participar no mercado de escravos como compradores, evidenciando claros processos de diferenciação social no interior desta comunidade e de controle sobre indivíduos de uma mesma casta. Aqui sobressaem as disputas judiciais em razão do direito de posse dos escravos – travadas tanto com outros membros da comunidade e com os espanhóis -, seguidas pelos casos de omissão nas escrituras daqueles “defeitos” dos escravos objetos da venda e por fi m as contendas empreendidas por criollos ou peninsulares com vistas a recuperar os escravos que estivessem em poder dos negros.

A obra se encerra na análise do papel dos testamentos para esta comunidade, diante tanto do seu papel como difusor da cultura notarial entre negros, mulatos e zambos, como por haver sido capaz de redefi nir suas posições em relação às identidades dos grupos. Como demonstra Jouve tais documentos serviam especialmente à articulação de lealdades, como confi rmação do domínio e infl uência de certos membros na sua comunidade, ou ainda melhor, como elemento de ligação entre membros de diferentes castas que a escrita preservaria em face da morte.

Marcelo da Rocha Wanderley – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Professor Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRural (RJ), Departamento de História e Economia (DHE). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial | Cristina Pompa

Abordagens interdisciplinares são recorrentes nas histórias das etnias americanas. Embora viabilizem uma análise mais consistente das sociedades indígenas, sobretudo de seus ritos e mitos, elas nem sempre se coadunam com a perspectiva da análise diacrônica. De todo modo, esses historiadores buscam harmonizar a diacronia à sincronia dos modelos teóricos, mas, de fato, ao recorrer às Ciências Sociais, eles, muitas vezes, negligenciam a temporalidade dos registros do passado. Este procedimento raramente é explicitado nas obras dedicadas à etno-história que, em geral, acabam por apresentar critérios pouco objetivos para estabelecer similitudes entre os conjuntos mítico-rituais. Essas filiações teóricas também incentivam uma apropriação do passado que, não raro, contraria a crítica aos testemunhos, a análise dos contextos narrativo e cultural, bem como a sua inserção social e geográfica.

Esses impasses, porém, não se encontram apenas nos escritos da história das etnias americanas. Nos anos 1990, o ambicioso livro de Carlo Ginzburg, História noturna (1989), provocou uma enorme polêmica ao combinar a morfologia e a história do Sabá, seus significados sincrônicos e desenvolvimento diacrônico. O historiador italiano pretendia, então, harmonizar o estruturalismo à perspectiva histórica dos mitos, descobrir homologias formais e reconstruir seus contextos espaço-temporais.1 Para explicar a existência de substrato comum de crenças e rituais eurasianos, Ginzburg recorreu à difusão cultural promovida pelas migrações e a uniformidade psíquica, combinação capaz de promover o entrelaçamento entre história e morfologia. Leia Mais

Paranambuco. Poder e herança indígena. Nordeste – Séculos XVI e XVII – BARBOSA (CA)

BARBOSA, Bartira Ferraz. Paranambuco. Poder e herança indígena. Nordeste – Séculos XVI e XVII. Recife: Editora da UFPE, 2007, 220p. Resenha de: MARTIN, Gabriela. Clio Arqueológica, Recife, n.22, p.251-252, 2007.

Gabriela Martin

Acesso apenas pelo link original

[IF]

Brasil-França: relações históricas no período colonial – VASCO (RIHGB)

VASCO, Mariz. Brasil-França: relações históricas no período colonial. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército (Bibliex), 2006. Resenha de: BELCHIOR, Elysio Custódio Gonçalves de Oliveira. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.168, n.434, p.283-287, jan./mar., 2007.

Acesso apenas pelo link original

[IF]

Señores de todo el mundo. Ideologías del Imperio en España,Inglaterra y Francia (en los siglos XVI, XVII y XVIII) – PAGDEN (PR)

PAGDEN, A. Señores de todo el mundo. Ideologías del Imperio en España, Inglaterra y Francia (en los siglos XVI, XVII y XVIII). Barcelona: Ed. Península, 1997. 313p. (1ª edición). Traducción de M. Dolors Gallart Iglesias. Resenha de: MOLINA-NIÑIROLA, Francisco Javier Asturiano. Panta Rei – Revista de Ciencia Y Didáctica de la Historia, Murcia, 2ª época, p. 2007.

Autor 

El autor del libro que reseñamos es Anthony Pagden, historiador inglés formadoen Santiago de Chile, Londres, Barcelona y Oxford. Fue profesor adjunto de Historiaintelectual moderna de la Universidad de Cambridge y miembro del consejo dedirección del King’s College, y titular de la cátedra «Harry C. Black» de Historia dela Universidad Johns Hopkins, Baltimore (Estados Unidos). Ha colaborado regularmenteen The Times Literary Supplement, The New Republic y The New York Times. En la actualidad es profesor en la Universidad de California.

Pagden es autor de varios libros de historia de la teoría política y social del imperialismoeuropeo. Entre sus obras destacan European Encounters with the New World:From Renaissance to Romanticism; La caída del hombre natural; El Imperialismoespañol y la imaginación política; y entre sus obras más recientes Civil SocietyHistory and Possibilities (2001), Peoples and Empires (2001), La Ilustración y susenemigos (2002); y, como editor, The Idea of Europe from Antiquity to the EuropeanUnion (2002).

Estructura de la obra

Se trata de un extenso libro de 313 páginas de denso pero riguroso contenido histórico. Tras una extensa Introducción en la que el autor enmarca y centra su obra y nos avanza algunos de los grandes temas que va a tratar, y que casi por sí sola podríaconstituir un capítulo aparte, Pagden articula el desarrollo del libro en 7 capítulos dediferente longitud. Se extiende sobre todo en los capítulos 2 («Monarchia universalis»), 3 (Conquista y colonización) y 4 (Expansión y conservación), mientras que losrestantes son bastante más reducidos.

El libro se enriquece con una extensa Bibliografía (19 páginas) y un enorme aparatocrítico (nada menos que 32 páginas de Notas al final del libro), además de undetallado Índice onomástico y un Sumario.

Comentario

En esta obra, que parece ser la primera en comparar teorías del imperio en elmundo moderno, Anthony Pagden realiza un minucioso trabajo sobre colonialismoe imperialismo, en la línea habitual de su campo de estudio, con un profundo y detalladoanálisis de las ideologías que inspiraron tres de los grandes imperios de Europa occidental.

Aunque el subtítulo del volumen nos indica que el período temporal estudiadoson los siglos XVI, XVII y XVIII, el autor nos hace un verdadero recorrido porel pensamiento político de la Antigüedad Clásica y además se adentra en el sigloXIX, llegando hasta la emancipación de Hispanoamérica. Así pues, el estudio dePagden se centra temporalmente entre los siglos XVI y XIX y se limita solamentea tres de los imperios europeos (España, Inglaterra y Francia), y únicamente en suproyección americana. Aunque aparecen citadas otras potencias imperiales europeas(en especial Holanda y Portugal), sólo se hace brevemente y en relación conlas otras tres.

Pagden señala que el mundo moderno se ha configurado a partir de los cambiosiniciados con la creación y caída de los modernos imperios coloniales. Para él, elcolonialismo que comienza con la expansión europea de finales del s. XV dio lugara migraciones masivas, ocasionó la destrucción de pueblos enteros, generó nuevasnaciones y en su fase final creó nuevos Estados y nuevas formas políticas, además decrear las modernas rutas comerciales y vías de comunicación.

El autor explica que los imperios europeos tienen dos historias distintas, pero interdependientes. El libro se centra en la primera de estas fases, que empezaría conel descubrimiento y colonización de América por los europeos, que comienza conel primer viaje de Colón (1492) y termina hacia 1830 con la derrota de los ejércitosrealistas en Sudamérica. La otra fase, de la que el libro apenas trata, es posterior yempieza con la ocupación de Asia, África y la zona del Pacífico hacia 1730, pero queno toma fuerza hasta finales del s. XVIII, cuando empieza el declive de la hegemoníaeuropea en América.

El mismo autor nos explica que ha realizado un estudio eurocéntrico, un intentode comprender qué pensaban los europeos de los imperios que habían creado y delas consecuencias a las que tuvieron que hacer frente. También intenta ilustrar laevolución que experimentó este pensamiento, y mostrar que en torno a las primerasdécadas del s. XIX se habían forjado unas pautas de expectación que determinaríanen gran medida las relaciones posteriores que mantendría Europa con casi todo elresto del mundo.

A lo largo del libro, el autor analiza los argumentos de diversos ideólogos, teóricosy pensadores de diferentes países (ya que no sólo aparecen autores españoles,ingleses y franceses, aunque lógicamente sean los más abundantes) en relación conlos tres grandes imperios objeto de estudio. El método que para ello utiliza es el de lacomparación, un método no usual, aunque el autor ya tiene en cuenta que los distintos aspectos tratados no tuvieron la misma importancia ni recibieron igual atenciónde modo simultáneo en los tres imperios.

Anthony Pagden describe el curioso proceso ideológico que tuvo lugar durantetoda la Edad Moderna en relación con los imperios que se fueron creando. Un procesoque comenzó con la apología de la evangelización y la conquista del siglo XVI,dio paso a la crítica y descrédito de la misma idea de imperio ante los problemas ydificultades que iban surgiendo, y finalizó con el nacimiento de un nuevo ideal decosmopolitismo en la época de la Ilustración, pasándose de esta forma a la idea desustituir a los imperios por federaciones de estados libres, independientes e iguales.

Al mismo tiempo, y paralelamente al estudio ideológico, estamos asistiendo aldesarrollo de la evolución política de los imperios coloniales americanos, desde sucreación en el siglo XVI hasta su crisis y desaparición por los procesos emancipadoresque comenzaron a finales del siglo XVIII.

El autor va señalando a lo largo de los capítulos la importancia de aspectos quefueron motivo de amplias discusiones ideológicas como la conquista y colonización; lamisma creación, evolución y significado de los imperios; el papel de los metales preciososy sus consecuencias; la emigración, la agricultura, el comercio, la esclavitud, eldebate entre expansión y conservación, la relación entre la metrópoli y las colonias…CríticaSe cumplen ahora 10 años de la publicación en castellano de esta obra. Podemosdecir que nos encontramos con un libro verdaderamente moderno y original, ya quese trata del primero que analiza comparativa y paralelamente las teorías e ideologíasdel imperio en tres países (España, Inglaterra y Francia) de modo simultáneo a lolargo de toda la Edad Moderna, teniendo en cuenta además los precedentes y las consecuenciasposteriores.

184Para ello el autor ha realizado una enorme labor de documentación, consultandonumerosas fuentes históricas de muy diversa temática y procedencia, desde la AntigüedadClásica hasta las fuentes historiográficas actuales. Por ello la labor de recopilacióny organización del material bibliográfico nos parece digna de mención, configurandoasí una obra erudita y muy completa, aunque no exenta de complejidad.

Se trata, pues, de un trabajo de historia intelectual en su más amplio sentido: profundo,original, intenso, sólidamente argumentado e intelectualmente estimulante, dealto nivel científico.

Sin embargo, al mismo tiempo se podría comentar que en algunos momentos dela lectura es difícil distinguir las opiniones personales y conclusiones a las que vallegando el historiador de las desarrolladas por los escritores o pensadores históricoscitados en el texto, ya que ambas van apareciendo entremezcladas en el discurso y enmuchas ocasiones no queda muy clara la separación entre ellas. Y debido al lenguajey tecnicismos utilizados en ciertos momentos, algunos pasajes pueden parecer dedifícil comprensión.

La enorme cantidad de Notas que aparecen en cada capítulo, y que Pagden hapreferido colocar todas juntas al final del libro en vez de colocarlas a pie de página, esquizás un aspecto que también podría destacarse. Si por una parte la proliferación denotas enriquece el libro aportando muchos más datos complementarios (algunas notasen sí mismas son bastante extensas), por otra parte puede hacer más compleja (ylenta) su lectura y restarle al libro agilidad. Si el lector opta por ir consultando a cadamomento las notas que van apareciendo a lo largo de la lectura, ésta puede hacerse untanto ardua.

Anthony Pagden ya nos señala en el Prefacio que su libro es una versión muyampliada y revisada a partir del núcleo inicial del curso semestral que impartió en lacátedra Carlyle de la Universidad de Oxford, en 1993. Esto ya puede ser indicativode que el historiador ha realizado un estudio de alto nivel intelectual y científico, ypara enfrentarse a él el lector debe estar previamente preparado y formado, porqueaparecen numerosos datos, conceptos y personajes históricos que deben conocersey enmarcarse en su contexto histórico y en su corriente de pensamiento, o de otramanera el lector corre el riesgo de extraviarse o no sacar el máximo provecho de sulectura.

Por ejemplo, como una muestra de la erudición de la que Pagden hace gala, en ellibro aparecen varias citas en la lengua original del escritor que se menciona (latín,inglés, francés), y también muchas obras, conceptos o palabras en su idioma original(en latín, griego, inglés, francés, alemán o italiano), lo que presupone una buenapreparación intelectual y lingüística por parte del lector. Algunas veces aparece sutraducción al castellano, pero otras no. Esta misma preparación cultural previa podríaser necesaria también ante el uso de una terminología jurídica en la discusión de cier185tos asuntos, con conceptos de derecho romano, derecho civil y derecho natural porejemplo; e incluso cuando el autor realiza un profundo estudio lingüístico sobre elorigen y significado de algunos términos importantes como imperio, monarquía, etc.

Se podría criticar la aparición de algunas aseveraciones discutibles, como la alusiónal «azar» en el caso del imperio español (un concepto abstracto y relativo quemerecería quizá un mayor debate histórico, tanto fuera como dentro del libro); o lacrítica a la democracia que aparece al final del libro. Y en general hay una escasa alusiónal papel de la religión y a las Iglesias cristianas europeas, ya que no sólo el papelde la Iglesia católica en América no aparece muy desarrollado (aunque por supuestosí hay alusiones al Papado y a las bulas de donación), sino que apenas se menciona elpapel del protestantismo y de las diversas iglesias protestantes.

Es interesante la utilización que hace Pagden en este libro del Método comparativo,señalando que desde Raynal los historiadores han permanecido indiferentes antelas posibilidades que ofrecía la comparación. Es quizás esto lo que hace de esta obraun verdadero libro moderno y original, que pudiera abrir el camino a otros estudiossimilares.

En definitiva, con este libro creemos que Anthony Pagden hace una interesanteaportación a los estudios coloniales e imperialistas, enfocado desde el punto de vistade cómo el pensamiento europeo afectó a las relaciones entre los pueblos y los Estadosde Europa; un pensamiento cuyo impacto no sólo influyó en el desarrollo de esosmismos imperios, sino que tiene aún profundos efectos en las relaciones internacionalesde la actualidad.

Francisco Javier Asturiano Molina-Niñirola

Acessar publicação original

[IF]

 

Bruxaria e Superstição num país sem caça às bruxas / José P. Paiva

As práticas mágicas no Brasil foram até agora bem pouco exploradas, o que não acontece com relação à Europa, onde o tema tem sido insistentemente trabalhado. Uma provável razão para isso pode ser encontrada no texto do Professor Pedro Paiva, da Universidade de Coimbra, que parte de uma problemática interessante: ele quer saber o porquê de em Portugal, apesar de encontrarem-se reunidas todas as condições para a deflagração de uma violenta “caça às bruxas”, esta efetivamente não ocorreu. C) problema colocado é ousado e interessante, sobretudo porque inverte expectativas alimentadas por tantos trabalhos historiográficos que enfatizam a violência deste processo em várias partes da Europa.

O estudo parte da constatação de que em Portugal houve “dezenas de milhar” de denúncias de práticas mágicas e supersticiosas consideradas ilícitas; que estas eram muito semelhantes às perseguidas no resto da Europa; que os Tribunais inquisitoriais, episcopais e régios tinham competência e meios para perseguir seus agentes (feiticeiros, bruxos, curandeiros); que os doutos conheciam bem a doutrina do diabolismo que inspirou grande parte da repressão às bruxas em outros contextos e que estes eram considerados os pré-requisitos necessários para que a eclosão da repressão aos agentes mágicos ocorresse, como de fato ocorreu na Europa Central e do Norte entre os inícios do século XVI e final do XVII.

Como o Brasil, à época, era simplesmente a América portuguesa, as respostas encontradas por ele para a brandura da repressão às práticas mágicas servem também para explicar o caso deste, apesar das peculiaridades da situação colonial.

Para ele, a brandura da repressão portuguesa pode ser localizada na confluência de uma série de fatores, dentre eles, a formação intelectual conservadora, de cunho Tomista, predominante ali, que não concedia ao diabo a relevância dada por outras tradições teológicas e que resultava em uma menor difusão e utilização dos tratados de demonologia. Este elemento seria responsável, porém, pela manutenção da forte crença em poderes sobrenaturais por um tempo maior, pois, até meados do século XVIII, não permitiu a penetração do pensamento científico, responsável pela consolidação de uma doutrina totalmente cética em relação à existência de fenômenos como a bruxaria.

Outro fator ao qual Paiva atribui importância seria o poder e solidez da Igreja, pois, em Portugal, esta não teria passado pelas crises vividas em quase toda a Europa durante o Antigo Regime. A tradição antijudaica também seria um fator explicativo, pois a canalização das atenções do principal agente repressor das práticas mágicas para as atividades dos cristãos novos teria reduzido a severidade para com estas. Ele realça ainda o esforço de evangelização, principalmente após Trento, voltado para as culturas populares. A Igreja portuguesa passou a editar com freqüência os catecismos, a colocar em prática as visitas pastorais recomendadas, a realizar missões, a estimular a confissão e a se preocupar mais com as prédicas dos sermões. Tudo isso passou a ser feito em um ritmo cada vez mais acelerado, além de passarem a ler, durante as missas, as normas inscritas nas Constituições diocesanas. Enfim, encetaram uma vasta campanha visando atender às recomendações feitas pelo Concilio de Trento.

O último aspecto considerado por Paiva como importante para explicar a brandura da repressão portuguesa, se localizava não nos inquisidores, mas nos próprios acusados, pois, segundo ele, para os rústicos era inconcebível realizar um pacto com o diabo e renegar o seu Deus, dois dos elementos indispensáveis à condenação à pena capital: a fogueira. Sua explicação para isto é de que a crença em Deus e a aversão ao Diabo estariam profundamente enraizadas na crença popular.

Paiva afirma que apesar de não ter havido caça às bruxas em Portugal, isso não significa que não tenha ocorrido “um controlo dos agentes de práticas mágicas”, resultando num número elevado de condenações. Para ele, a Igreja e a Inquisição, que se ocuparam destas questões, não as colocaram em posição central e as reflexões mais profundas produzidas sobre o tema versam sobre a doutrina do pacto diabólico, que em última instância, definia se a ação era herética ou não. A heresia era o que interessava e que definia a gravidade do fato.

Analisando o relativo ceticismo das elites intelectuais portuguesas ele diz acreditar que este “decorria de uma interpretação das limitações do poder do Diabo face à omnipotência divina” ao que “Juntava-se uma sensação de proteção divina e eclesial, face aos poderes do diabo e de seus aliados”. A conseqüência desta postura foi não ter surgido em meio às elites portuguesas reações de pânico e pavor tão comuns em outros países, o que ele atribui à confiança dos fiéis nos remédios que a Igreja disponibilizava para o combate destes males.

Um diferencial entre o que ocorria na Metrópole e o que se passava na colônia americana é que a cristianização ali já tinha alcançado um patamar de aceitação bastante elevado, apesar da imperfeição da catequese realizada até então.

A inexistência de luta entre duas concepções cristãs — popular e erudita – não exigiu um aprofundamento da pregação contra o demônio, coisa, aliás, colocada em prática de maneira muito freqüente na colônia para atemorizar os negros e índios e induzi-los a buscar remédio para sua salvação na doutrina da Igreja.

Apesar da perseguição aos mágicos não ter sido colocada como prioridade durante os séculos XVI e XVII, não tendo gerado, portanto, uma corrente persecutória muito acirrada em direção a eles, o assunto foi colocado sistematicamente em discussão pelos Editos da Fé. Esta colocação se devia à situação vivida em outros locais onde a insegurança foi maior devido à maior penetração da reforma protestante, gerando uma intolerância e uma severidade sem limites e onde os soberanos encontravam resistências à implantação de seu poder.

A crença na existência e presença de bruxos, feiticeiros, curandeiros e supersticiosos, em Portugal, é comprovada pelo número de denunciados por essas práticas ao Santo Ofício, indicando a incidência da mentalidade ligada ao sobrenatural e às explicações mágicas do mundo vigentes no restante da Europa e territórios freqüentados pelos europeus. O que muda é a relaüva tranqüilidade com que as autoridades reagiam a elas, deixando sem investigação e castigo uma parte considerável das pessoas denunciadas.

Apesar da brandura, lembra Paiva, alguns momentos de pico podem ser observados com relação à repressão às práticas mágicas em Portugal. Observa que a partir de 1620 passa a haver um interesse maior por estes casos, resultando em uma elevação do ritmo de repressão, mas que após a Restauração ele teria sido estancado.

Aponta ainda dois outros momentos de intensificação: um instalado a partir de 1680 e outro a partir de 1710, este mais voltado para a repressão de curas supersticiosas. De acordo com os dados de sua pesquisa (ele trabalhou o período compreendido entre 1600 e 1774), a maior parte dos mágicos processados pelo Santo Ofício era de origem rural e as principais acusações que pesavam sobre eles eram de práticas curativas e, em menor escala, de malefícios. Os de origem urbana, minoritários, eram normalmente acusados de inclinar vontades e adivinhação.

Em decorrência destes dados o autor se lançou à análise microscópica de uma paróquia rural: São Martinho do Bispo, passando pelo levantamento de dados geográficos e econômicos da localidade, por uma tentativa de reconstrução do cotidiano daquela aldeia e fechando com uma tentativa de análise da dinâmica de uma acusação de bruxaria. Apesar de ser um capítulo que se propunha a dar uma idéia do padrão dos locais onde casos de bruxaria poderiam ter eclodido, não se localiza nele o ponto forte do livro. Seu maior mérito é o de encontrar uma explicação plausível para a convivência relativamente pacífica, ocorrida em Port ugal, entre uma legislação altamente repressiva e uma ação relativamente benevolente de todas as instâncias que possuíam foro sobre a questão – inquisitorial, eclesiástica e real — com relação aos agentes de práticas mágicas.

Helen Ulhôa Pimentel – Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).


PAIVA, José Pedro. Bruxaria e Superstição num país sem caça às bruxas. 1600- 1774. 2a ed. Lisboa: Notícias, 2002, 397p. Resenha de: PIMENTEL, Helen Ulhôa. Textos de História, Brasília, v.14, n.1/2, 2006. Acessar publicação original. [IF]

Los Incas del Cuzco. Siglos XVI-XVII-XVIII – ROWE (C-RAC)

ROWE, John Howland. Los Incas del Cuzco. Siglos XVI-XVII-XVIII. Cusco: Instituto Nacional de Cultura; Multi; Imprenta Edmundo Pantigoso EIRL, 2003. 417p. Resenha de: OCHOA, Jorge A. Flores. Chungara – Revista de Antropología Chilena, Arica, v.37, n.2, P. 269-271, dic. 2005.

Con el título de Incas del Cuzco. Siglos XVI-XVII-XVIII, se presenta esta antología de investigaciones realizadas por el Dr. John Howland Rowe. Así culmina la tarea de alcanzar al público cuzqueño muestra de su vasta y valiosa producción intelectual, que durante años estuvo dirigida a investigar aspectos poco tocados, o ignorados, por otros investigadores de los incas preinvasión, como de los que continuaron con la tradición incásica, ya viviendo bajo el gobierno colonial de los siglos XVII y XVIII. La selección es decisión del Dr. Rowe, a base de la propuesta que le presenté. La antología tiene su sello, mostrando que uno de los temas principales de su preocupación intelectual fueron los incas. Es el interés que lo trajo al Cuzco, a donde llegó a comienzos de la década de los años cuarenta del siglo pasado. Desde entonces se convirtió, durante casi cincuenta años, no en visitante temporal o estacional de nuestra ciudad, sino residente, que se ausentaba por meses para ocupar su cátedra en la University of California en Berkeley. Allí capacitó y formó legión de estudiosos que dedicaron su afán a la investigación de los andes centrales, unos dedicándose al trabajo arqueológico, otros al etnológico y también a la etnohistoria, aunque es frecuente que combinen todas esas tácticas. Sus discípulos forman importante conjunto de estudiosos con prestigio logrado por la calidad de sus investigaciones del antiguo Perú.

Así como formó especialistas en los andes desde su posición académica en Estados Unidos, aquí en el Cuzco fue guía permanente para estudiantes, jóvenes que preparaban tesis de grado. Los comentarios, a los trabajos que le pedían leer, fueron siempre estimulantes, animando al trabajo serio, que estuviera lejos de la fácil publicidad. También ejerció docencia no en el aula, sino de manera informal, individual, coloquial, que es muy fructífera. Dejó profunda huella en todos los que tuvieron el privilegio de acceder a sus enseñanzas.

Su contribución al desarrollo científico cuzqueño, merece valoración especial. Señalemos parte de ella. Fue fundador de la Sección de Arqueología en la Universidad Nacional de San Antonio Abad en 1946, siendo muy joven, casi estudiante universitario. Las clases se iniciaron el 14 de julio de 1946. San Antonio Abad fue la primera universidad nacional que incluyó el estudio de esta ciencia e inició su enseñanza universitaria. Entre los primeros alumnos estuvieron Luisa Béjar Núñez del Prado, Oscar Núñez del Prado, Gabriel Escobar, Carlos Kalafatovich, Guillermo Fuentes Díaz. Funcionó hasta 1948, cuando el dictador Odría nombró una Comisión Reorganizadora de la Universidad, que intentó clausurarla, trasladándola a la Facultad de Letras, donde funcionó como Sección de Historia y Antropología.

El Dr. Rowe también tuvo a su cargo la Dirección del Museo e Instituto Arqueológico -ahora Museo Inka-. Inició la catalogación científica, organizó la administración, dando énfasis a la biblioteca, a la que dotó de valiosa colección de libros. Hasta ahora se utiliza el libro de registro hecho de su puño y letra.

Con el Dr. Rowe comienza la arqueología científica en el Cuzco. Abrió el inmenso capítulo de lo pre-inca, puesto que hasta entonces todo vestigio arqueológico era considerado inca. Este capítulo comenzó con el descubrimiento del asentamiento de Chanapata, que dio origen al estilo cultural del mismo nombre. Mediante excavaciones precisó la existencia de lo inmediato a lo inca imperial, que bautizó como Killki. Con estas y otras evidencias, diseñó la primera secuencia del desarrollo cultural del valle del Cuzco, como expuso en su conocido libro An Introduction to the Archeology of Cuzco, publicado en 1944, que además incluye el plano del Qorikancha, que posee vigencia a pesar del tiempo transcurrido desde entonces. Este libro, no traducido aún al castellano, es fundamental para quienes trabajan en la arqueología del Cuzco. Vale aquí hacer presente una posición del Dr. John Howland Rowe. No es partidario de publicar libros, considera que la mejor contribución se halla en los artículos científicos, que dan a conocer los últimos avances de la investigación científica. El aporte que se realiza de esta manera responde mejor a la velocidad con que avanza el conocimiento científico.

Su contribución al conocimiento del Tawantinsuyu, ha merecido el reconocimiento del gobierno peruano, que le ha conferido la Orden del Sol, la más alta condecoración con que se honra a quienes contribuyen de manera significativa con el país. Por la misma razón la Universidad Nacional de San Antonio Abad del Cuzco le confirió el grado de Doctor Honoris Causa y le nombró Profesor Honorario. Siguiendo el antiguo dicho, nuestro centro de estudios se honró honrando.

El tiempo que pasaba en el Cuzco, estaba totalmente dedicado a la investigación, sea realizando exploración de sitios arqueológicos, cuando no excavaciones, revisando colecciones, buscando documentos en el Archivo Histórico. “Los papeles”, como decimos a la documentación histórica, son de su permanente interés. Recordemos -por ejemplo- que cuando el Dr. Sergio Quevedo Aragón fue Presidente de la Comisión Reorganizadora de la Universidad, le comunicó al Dr. Rowe que en el rectorado había unos papeles antiguos. De inmediato el Dr. Rowe se interesó por ellos. Contaba el Dr. Quevedo que al ingresar al rectorado encontró al Dr. Rowe sentado en el piso, revisando los documentos. Muy contento le comunicó que era nada menos que el expediente del juicio que José Gabriel Thupa Amaro sostuvo con los Betancourt. Documento importante que está intercalado con pinturas de escudos de armas, todo el gran valor para conocer más del caudillo del movimiento nacionalista del siglo XVIII.

El tiempo que pasaba en el Cuzco, aunque corto para sus múltiples propósitos, no impedía que aceptara participar en la vida intelectual del Cuzco, ofreciendo conferencias, que siempre tuvieron nutrida y atenta audiencia. Junto con su esposa, la Dra. Patricia J. Lyon, fueron activos participantes en los Tinkuy, el Encuentro Anual que organiza el “Centro de Estudios Andinos Cuzco”, en el mes de agosto, desde hace veinticinco años. Varios trabajos que forman parte de la presente antología originalmente fueron ponencia que presentó en los Tinkuy.

La búsqueda de información en el Archivo Histórico, la combinaba con salidas de campo, para cotejar y verificar la información escrita con las evidencias arqueológicas. Para estas excursiones invitaba a estudiantes o jóvenes graduados, que aprendían en el campo la importancia de la información escrita, que permitía conocer mejor lo que se visitaba y el valor de recorrer los sitios arqueológicos de inmediaciones del Cuzco.

Los trabajos, especialmente los de los últimos años de su residencia en nuestra ciudad, estuvieron dirigidos a la investigación histórica de los incas. Me permitiría llamarlo al estudio etnohistórico de los incas, aunque creo que el Dr. Rowe no compartiría completamente este punto de vista. Sin embargo, es innegable que su formación antropológica era la que le permitía tener el conocimiento detallado que tiene de los incas, desde los de los siglos XV y XVI preinvasión, a los que vivieron ya bajo el doloroso gobierno colonial de los siglos XVII y XVIII.

Considero que esta preferencia temática es la que primó para que eligiera sus trabajos que tienen que ver con la perspectiva cultural e histórica de los incas, sin incluir ninguno de los que son estrictamente de tipo arqueológico. La distribución, agrupándolos en tres capítulos, con que se los presenta en esta compilación, sigue su preferencia, considerando grandes temas culturales, antes que siguiendo un orden de sentido cronológico. En la Primera Parte trata de la Historia y Organización Social, preinvasión. Resalto, en forma arbitraria, el de los grados de edad, porque su tratamiento muestra cómo se analiza un tema que es clásico en los estudios antropológicos. Aportes significativos son los incas no reales, que ayudarán a entender reclamos modernos de filiación incásica. La constitución Inca es de singular importancia para comprender la forma como estuvo organizada la ciudad del Cuzco. El “misterio” de Machupiqchu, que ha dado lugar a tanta lucubración, es mostrado con coherencia, tanto en la persona de su constructor como del sentido y función que tuvo.

La religión es el tema central de la Segunda Parte. Siendo importante en las antiguas civilizaciones clásicas, lo fue igualmente entre los incas, que fue sociedad de grandes manifestaciones religiosas. Es de mención especial el que trata el origen del culto al Dios Creador, tanto por esclarecer su existencia, como porque forma parte de un permanente debate. Se complementa con el análisis de las oraciones con que se dirigían al Creador.

En la Tercera Parte los trabajos van dirigidos a delinear lo que denomina el Movimiento Nacionalista Inca en la Colonia. Expone una propuesta original del Dr. Rowe. Resumiendo en pocas líneas, considera que lo Inca, como cultura, sentimiento e ideología, no desapareció con la invasión española y la posterior imposición del gobierno colonial. Los incas continuaron su tradición, desarrollando una cultura de resistencia, que puede ser verificada en el presente. La cultura Inca continuó asumiendo nuevas formas de organización social, con fuerte sentido del ser Inca, que devendría en verdadera ideología. Se manifiesta en varias formas, como la creación estética plasmada, por ejemplo, en los retratos de los nobles incas o arte visual en los qeros, los polícromos vasos rituales Inca de los siglos XVII y XVIII. El nacionalismo Inca inspiró los movimientos de la liberación del siglo XVIII, que llegaron al clímax con José Gabriel Thupa Amaro, quien dirigió la mayor rebelión de toda América contra el gobierno colonial.

En la publicación se conserva la bibliografía de cada trabajo, para evitar confusiones u omisiones que pudieran ocurrir al fundirlas en una bibliografía general. Por expresa disposición del autor, reiterada por su esposa la Dra. Patricia J. Lyon, los nombres propios de etnias, grupos, individuos, lugares y de otro tipo, conservan la escritura de los originales. Resalto la de palabras sujetas a controversia como Inca escrito con “c” en lugar de “k” y Cuzco con zeta. Subrayo que el Dr. John H. Rowe tiene suficiente solvencia académica y usa argumentos científicos que respaldan su decisión para la forma de escribir las palabras quechua y del español de los siglos que investiga.

Hago mención especial a la decisión del Dr. John Howland Rowe de permitir la publicación de esta antología como una pequeña parte de su gran producción bibliográfica. Espero que en un futuro cercano haya otras

con las investigaciones de la arqueología del Cuzco. El reconocimiento especial es también porque tuvo ofertas de universidades y editoriales de Lima, para publicar una selección de sus trabajos, las que siempre rechazó, porque su decisión fue que un libro de ese tipo debía ser publicado en el Cuzco. Ahora que se hace realidad su deseo, deseamos compartirlo por quienes tenemos el privilegio de conocerlo y esperábamos ver publicada parte de su extraordinaria labor. Es también un homenaje a los incas y a la ciudad que tanto quiere el Dr. Rowe, hecho realidad gracias al consentimiento y colaboración de la Dra. Patricia J. Lyon, compañera de actividad y afanes científicos, así como de su hija, la investigadora de tejidos andinos, Ann Pollard Rowe. Les agradecemos por su comprensión y colaboración, puesto que sin su apoyo no hubiera sido posible que este libro sea realidad. Nuestro agradecimiento al Dr. Jorge Villafuerte Recharte, Director del Instituto Nacional de Cultura Región Cuzco, por decidir la publicación, así como a Percy Ardiles, Director de Actividades Culturales del INC por el esfuerzo y dedicación puestos para que culmine el proyecto de Los Incas del Cuzco. Siglos XVI-XVII-XVIII.

Comentario de Jorge A. Flores Ochoa – En el prólogo del libro en comento. Cuzco, mayo del 2003. Centro de Estudios Andinos. Cuzco, Perú.

Acessar publicação original

[IF]

Cartagena de Indias y la región Historica del Caribe, 1580-1640 – ORTEGA (M-RDHAC)

ORTEGA, Antonino Vidal. Cartagena de Indias y la región Historica del Caribe, 1580-1640. Sevilla: Escuela de Estudios Hispano-Americanos Universidad de Sevilla-Diputación de Sevilla, 2002. 323p. Resenha de: BARBOSA, Armando Luis Arrieta. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.2, jan./jun., 2005.

Armando Luis Arrieta Barbosa – Profesor e investigador del departamento de Historia y Ciencias Sociales y membro del Grupo de Investigación en Historia y Arqueología del Caribe Colombiano de la Universidad del Norte.

Acesso apenas pelo link original

[IF]

 

História das mulheres no Brasil – DEL PRIORI (RIHGB)

DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico (Org.). Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade – biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. MOTT, Luiz. Homosexuais da Bahia. Dicionário biográfico, século XVI-XIX. Salvador: Grupo Gay da Bahia, 1999. Resenha de: MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.167, n.430, p.319-327, jan./mar., 2005.

Teresa Cristina de Novaes Marques – Doutora em História Social pela UnB. Professora Adjunta pela mesma Universidade.

Acesso apenas pelo link original

[IF]

Historia Andina en Chile – HIDALGO (C-RAC)

HIDALGO L, Jorge. Historia Andina en Chile. Santiago:
Editorial Universitaria, 2004. 705p. Resenha de: MARTÍNEZ C, José Luis. Chungara – Revista de Antropología Chilena, Arica, v.36, n.2, p. 525-530, jul. 2004.

Comentado por José Luis Martínez C.*

Cuando se reseña un libro, pocas veces se tiene el extraño privilegio de reseñar simultáneamente una vida intelectual y hacer, además, un recuento sobre la historia de una disciplina. No sé si estaré a la altura de las circunstancias, dado que no sólo se trata de un libro muy especial, sino de que soy deudor de varios de los hitos que marcan la trayectoria del pensamiento de su autor. Y si a eso se le agrega que se trata, también, un poco de historiarnos a nosotros mismos, la pequeña cofradía de etnohistoriadores e historiadores indígenas en Chile, se comprenderá que la tarea no es pequeña.

Este volumen reúne algunas de las investigaciones -no todas-que Jorge Hidalgo fue realizando, solo y acompañado con otras y otros investigadores, y que se tradujeron en diversos artículos entre los años 1971 y 2003. Sus treinta capítulos son, claramente, expresión de toda una vida intelectual, de las pasiones, las búsquedas, los debates (por qué no) que marcaron a Jorge Hidalgo y que, también, nos influyeron a muchos de nosotros. En esos primeros años de las décadas de los años setenta y ochenta la tarea parecía aún más titánica que ahora. No sólo había que investigar y publicar sobre temas en su gran mayoría inéditos para una disciplina como la historia, sino que había que hacerlo al amparo de los grandes debates que cruzaban a todos nuestros países. ¿Era (y sigue siendo) posible construir una historia andina o debemos restringirnos a las historias nacionales, que cortan, segregan a partir de fronteras construidas recién en el siglo XIX? y que incorporara a los colectivos indígenas, usualmente silenciados en las historiografías nacionales? ¿Una historia que fuera en parte común a varios países (más allá del hecho colonial)? ¿No era eso también parte del esfuerzo colectivo de una América latina que quería entenderse a partir de sus propios procesos, elaborando sus propias categorías analíticas? Cada uno de estos capítulos se encuentra íntimamente ligado a alguno de esos momentos de debate y representa una propuesta. Me parece interesante destacar que, a pesar del tiempo transcurrido y del evidente desarrollo de los estudios sobre las sociedades indígenas en los países andinos así como en Chile, esas continúan siendo tareas pendientes y los enfoques permanecen vigentes. Los invito a leerlos agregándoles esa perspectiva, a reconocerlos como parte de un proceso mayor que les da unidad y que les proporciona nuevos sentidos.

Este es un libro que ha sido largamente esperado por generaciones de alumnos. La dispersión en la publicación de los trabajos de Jorge Hidalgo (muchos de ellos editados en Inglaterra, Estados Unidos o Perú, por nombrar algunos) hacía que -a ratos- la tarea de los y las estudiantes por conocerlos fuera en sí misma un verdadero trabajo de investigación, cuando no significaba que -como profesores- teníamos que abrir nuestras bibliotecas personales para que ellos pudieran leerlos. Y es que tenían que leerlos, porque, como lo verán los lectores de este volumen, se reúnen en éste muchos artículos que, en un determinado momento, fueron pioneros: “Incidencia de los patrones de poblamiento en el cálculo de la población del Partido de Atacama desde 1752 a 1804” (publicado en 19781), por ejemplo, fue el primer trabajo publicado en Chile que planteaba que las dinámicas sociales y culturales de las poblaciones atacameñas, acostumbradas a movilizarse a lejanos lugares para asegurar el acceso a recursos remotos, habían incidido de manera determinante en la realización de los padrones de revisita coloniales (los censos de la época) y que era necesario, entonces, replantear completamente el análisis demográfico de esas comunidades. “Algunos datos sobre la organización dual en las sociedades protohistóricas del Norte Chico de Chile” (escrito en 19712) fue, tal vez, uno de los primeros trabajos que plantearon, en Chile, la posibilidad de que algunas estructuras sociales y políticas indígenas fueran más complejas que lo percibido hasta entonces y que propuso una manera diferente de analizar los datos de los cronistas del siglo XVI, línea de reflexión que fue continuada en un análisis posterior (Culturas y etnias protohistóricas: área Andina Meridional, 19823) en el que Jorge Hidalgo elaboró una primera mirada desde la etnohistoria sobre América andina meridional y que apareció en la “Historia de América Latina” de la Universidad de Cambridge4. Los trabajos recién citados son tan solo algunos de los muchos que abrieron camino a nuevas investigaciones y que impulsaron a varias generaciones de investigadores a interesarse por esos temas.

Jorge explica, en su Introducción, tanto la organización del libro como algunos de los temas abordados en sus trabajos y nos entrega, así, un primer marco de comprensión de su libro. Pero quiero decir que su trabajo va mucho más allá de lo que él, con humildad, no se atreve a destacar. Por esos años (comienzo de los setenta), por ejemplo, por primera vez teníamos una visión etnohistórica más o menos de conjunto sobre esa América Andina meridional a la que me acabo de referir, con una propuesta que vinculaba la problemática de una sociedad con otras, que se atrevía a incursionar en análisis de datos estadísticos y demográficos proporcionando materiales para una discusión -por ejemplo- de la gran crisis demográfica de los siglos XVI y XVII. No sólo eso, Jorge, destacado discípulo de John Murra, generó este análisis sobre América a partir de los modelos teóricos más actualizados en ese momento, los que proporcionaban los estudios sobre las sociedades andinas centrales, abandonando viejos esquemas descriptivos que clasificaban a las sociedades prehispánicas en más o menos primitivas, más o menos civilizadas, para adentrarse en un intento de comprensión de sus estructuras sociales y políticas, o en sus dinámicas culturales. Podemos discutir hoy día la validez o aplicabilidad de varios de los conceptos o del modelo general, pero no me cabe duda que abrió nuevas perspectivas.

Y los artículos sobre Atacama de los siglos XVII y XVIII son clásicos en el más amplio sentido de la palabra. Fue el primero en constituir a Atacama en una unidad de estudio, en plantearse la pregunta por sus singularidades y lo hizo no desde la simple descripción de una región o de sus poblaciones, sino desde el análisis de sus estrategias de vida, de sus formas de resistencia ante la dominación colonial y las presiones tributarias, de sus huidas hacia otros territorios aprovechando viejas pautas culturales y antiguos lazos sociales, así como, también, desde el análisis de los efectos e impactos del dominio colonial, de la desestructuración que significó en las estructuras políticas, sociales y culturales indígenas la dominación española, sin dejar afuera el estudio de los cambios culturales y de la emergencia de nuevas estructuras políticas.

Posteriormente yo también me dediqué al estudio de las sociedades indígenas en Atacama y con los años se han ido incorporando varias y varios colegas. Personalmente estoy convencido de que fue Jorge Hidalgo, con los artículos que ahora se publican reunidos en este libro, el que nos abrió el camino para hacerlo. Y valga aquí una mención adicional: no se trata de reconocer únicamente el impacto académico y científico de sus trabajos. Jorge ha sido siempre extraordinariamente generoso para facilitar sus materiales, para permitir que otros los conociéramos y trabajáramos con ellos. Aprovecho esta tribuna para agradecérselo públicamente.

Hace ya tiempo que todos sabemos que Jorge puso a Atacama, Tarapacá y Arica en el mapa de las rebeliones antiespañolas del siglo XVIII. No sólo las tupamaristas, las más conocidas, sino también contribuyó a hacer visible la inestabilidad anterior, que precedió a las grandes revueltas. Y lo hizo en muchos casos con una finura que provoca el placer de la lectura. El rastreo de los pasos de Tomás Paniri (uno de los líderes de la rebelión en Aiquina y el río Loa) o el análisis de los aspectos mesiánicos de las rebeliones que permiten entender parte del marco ideológico que las rodeó; la descripción de las vinculaciones entre una y otra localidad durante y después de alguna rebelión (el caso de Ingahuasi), son trabajos que trascienden lo anecdótico y local para permitirnos pensar situaciones similares ocurridas más allá de los bordes de la región atacameña o de los Altos de Arica.

No quiero resumir ni describir todos los capítulos, sería largo y para eso ya el mismo Jorge hizo un agrupamiento analítico en su Introducción. Quiero más bien señalar -en mi caso personal- cómo mi propia reflexión y la de algunos y algunas de mis colegas fue siendo impactada y alentada por estos trabajos. Y en esta línea de conversación, hay una dimensión del trabajo intelectual y disciplinario de Jorge, que está en los artículos presentados en este libro, que quiero destacar: es la que resulta de una colaboración interdisciplinaria (tan cara y central a la etnohistoria andina) sobre todo con los arqueólogos. Los intentos de correlacionar datos documentales con arqueológicos no siempre terminan siendo felices. Muchas veces -las más- son mayores las objeciones que destacan las dificultades metodológicas que subyacen a una u otra proposición, o al uso acrítico de materiales arqueológicos y documentales, en fin… Y así es frecuente que uno termine siendo su propio “interdisciplinario”, si se me permite la expresión, porque resulta más fácil trabajar con uno mismo, usando los materiales arqueológicos, etnolingüísticos o antropológicos de los otros en su propio análisis, que trabajando directamente con los otros. Pero Jorge intentó un camino más difícil: escribir con los amigos arqueólogos, estar en terreno con ellos para hacer allí la reflexión común. A mí siempre me han resultado interesantes su trabajos con Focacci sobre la multietnicidad en Arica y los trabajos sobre el período incaico (que lamentablemente no fueron incluidos en este volumen, ¿podemos esperar el tomo 2?).

¿Y qué hay con los desafíos intelectuales y éticos? Hay aquí varios envites que quiero destacar. El primero es el que se anuncia en el título: Historia andina en Chile. En un país que con frecuencia olvida su carácter latinoamericano y que fija sus ojos -a veces con obstinación- en otros mundos como el europeo y el norteamericano, se olvida aun con más frecuencia nuestro carácter -también- de país andino. Lo andino ha quedado relegado a “los otros”, los “indios”, los que están más allá de nuestras fronteras y que, a ratos, incomodan; o a lo folclórico en la música, en algún carnaval o en lo exótico.

Y Jorge viene a desafiar esas miradas para recordar, para insistir, para impedir negar que hay una historia andina en Chile. Que no es únicamente la historia de los otros que un grupo de locos hace desde Chile (como podría ser si entre nosotros hubiera un grupo de africanistas, por ejemplo), sino en su sentido más profundo y perturbador, de señalar que en Chile hay una parte de nosotros que es historia andina, que algunos pueden intentar seguir negando pero que forma parte de nuestros procesos humanos y que no se restringe al norte de Chile anexado después de la guerra de 1879, sino que tiene que ver también con el periodo prehispánico del valle central y que durante el período colonial y el siglo XIX impactó también en la historia -al menos- del norte chico.

Usualmente, entre los historiadores chilenos más tradicionales, se suele pensar, representar y describir a las sociedades indígenas como parte de “los otros”, los que están o estuvieron “más allá”, siempre en unas fronteras y al lado de afuera de ellas. No nos olvidemos que la historiografía oficial, la más difundida, ha señalado majaderamente que “en Chile” se produjo un pronto mestizaje y que los indios, los “verdaderos” indios quedaron más allá de los ríos o en los desiertos, siempre distintos a nosotros. O, también, se nos señala que es necesario estudiar a las sociedades indígenas en tanto nuestras “raíces”, parte de un pasado en el que podemos -más o menos y nunca tanto- reconocernos, pero que son, por lo mismo, objeto del estudio no de los historiadores, sino ante todo de los arqueólogos. Y lo que Jorge ha venido planteando desde hace ya 30 años es que eso no es cierto. Que durante todo el período colonial y el republicano nuestro país y toda América fueron un espacio de convivencias y confrontaciones (nada de espacios de refugio). Que las economías coloniales no pueden ser entendidas sin considerar la participación indígena en mercados, haciendas, obrajes y minería; que no se pueden dejar al margen los espacios de ruralidad en los cuales operaron y tuvieron una vida propia tantas instituciones coloniales y republicanas; que las haciendas y los hacendados (una de las estructuras más relevantes en la formación de naciones como las nuestras como lo han destacado tantos historiadores) no pueden ser entendidas, o lo serían muy mal, si olvidamos que en muchísimas de ellas fueron los encomendados, los habitantes de los pueblos de indios, los fugados antitributarios, los que las hicieron funcionar. Pero no sólo como mano de obra, sino que en muchos casos manteniendo estructuras políticas, sociales y culturales que permearon la misma vida colonial y republicana. Consecuentemente, este es, también, un libro de historia colonial.

Pero lo relevante, finalmente, es que Jorge Hidalgo ha sabido mostrarnos a las sociedades andinas en Chile como sujetos históricos (que a ratos fueron incluso sujetos de su propia historia) y en esa dimensión el desafío que sigue ahí, latente, es el de construir análisis históricos que los incluyan como parte de una historia social que será incompleta si no los considera. Tengo la convicción de que todas estas son razones más que poderosas para leer Historia Andina en Chile.

Comentado por Celia L. Cussen*

Diego Barros Arana, en el primer tomo de Historia General de Chile, describió el viaje de regreso de Chile al Perú que hizo Diego de Almagro en la primavera de 1536. El viejo español se negó a volver por el difícil camino de la cordillera que había recorrido para llegar a Chile, y prefirió atravesar los desconocidos desiertos de Atacama y Tarapacá. Barros Arana, basando su versión de los sucesos en los cronistas de la Conquista, nos dice que al salir de Copiapó el valiente militar “se halló en el desierto” donde “redobló su paso” hasta llegar, a mediados de octubre, al pequeño pueblo de Atacama. “Allí fue reuniéndose todo el ejército para renovar sus provisiones antes de penetrar en las llanuras desiertas de Tarapacá. Sus caballos estaban tan flacos y extenuados que tuvieron que darles dieciocho días de descanso en Atacama para poder proseguir la marcha”5. Este relato de la temprana estadía de un grupo de españoles en un pueblo atacameño es bastante curioso, sobre todo porque habla del poblado sin mencionar a sus habitantes, quienes, se puede suponer, tuvieron algo que ver con el reabastecimiento de la fuerza expedicionaria. Barros Arana no se detiene para averiguar la reacción de los indígenas del lugar a la forma de ser del bando de españoles, ni siquiera para comentar su evidente buena disposición para cobijar y alimentar a estos europeos sedientos y sus caballos extenuados. El historiador chileno estaba limitado por sus fuentes, por cierto, y también por una visión de la historia que tiende a pasar por alto el punto de vista indígena, una actitud que compartía con los demás historiadores del siglo diecinueve y de la mayor parte del siglo veinte. Hasta hoy se observa que el ninguneo del indígena mantiene su vigencia entre aquellos que prefieren fijar su mirada en la experiencia hispana de los sucesos, y que ubican las raíces culturales de esta nación mestiza en los valores ibéricos del honor, el prestigio y la dominación a la fuerza. Esta visión del indígena inerte vencido por el astuto y ambicioso español fue puesta a prueba por un grupo de investigadores hace ya tres décadas. El reciente libro de Jorge Hidalgo, Historia Andina en Chile, demuestra el desarrollo y el alcance del desafío historiográfico a esa perspectiva.

Historia Andina en Chile contiene capítulos de la historia del norte de Chile escritos por Jorge Hidalgo a lo largo de más de treinta años. Algunos estaban inéditos hasta ahora, otros habían aparecido en diversas revistas especializadas, incluyendo Estudios Atacameños y Chungara. Varios de estos artículos son frecuentemente citados por los especialistas de la historia andina, pero otros estaban prácticamente perdidos para el mundo académico chileno e internacional. Juntos, forman un cuadro de la historia de los pueblos originarios de Arica, Tarapacá y Atacama desde los primeros años de la época colonial hasta avanzado el siglo 18. También encarnan la revolución en la manera de escribir la historia en que participó Jorge Hidalgo.

Jorge Hidalgo forma parte de un grupo internacional y cosmopolita de historiadores que, en los años 60 y 70, se comprometieron a cuestionar la visión tradicional de la historia colonial como herencia hispana y emprendieron la difícil tarea de reconstruir el pasado de las comunidades indígenas de América Latina desde otra perspectiva. En este grupo figuran hombres y mujeres de Latinoamérica, Europa, y los Estados Unidos, entre ellos Enrique Tandeter, Brook Larson, Thierry Saignes y Nancy Farriss, un grupo formidable de historiadores quienes han dejado un legado intelectual que inspira a sus muchos alumnos.

Algunos de estos investigadores se encontraron a mediados de los años sesenta en el Centro de Historia Americana de la Universidad de Chile, con Rolando Mellafe y John Murra como sus maestros. Allí, Jorge Hidalgo, Karen Spalding, Osvaldo Silva y Luis Millones, entre otros, compartieron ideas y formaron grandes lazos de amistad, haciendo de la solitaria disciplina de la investigación histórica un proyecto compartido. Después partieron a las mayores universidades de Europa y Estados Unidos para perfeccionarse y luego emprender la imponente y, para ellos, urgente tarea de reconstituir las historias de los grupos étnicos que sobrellevaron el dominio hispano6.

La dificultad de percibir la reacción indígena al régimen colonial era inmensa. Había que crear nuevos métodos y buscar más allá de los cronistas que formaban la fuente principal de las generaciones precedentes. Había también que mirar más allá de su propia disciplina, y así estos historiadores echaron mano de las técnicas de otros campos académicos. Participaron en excavaciones con colegas de arqueología para descubrir patrones precoloniales del comportamiento indígena, y estudiaron las técnicas de antropólogos emergentes, como Clifford Geertz, quienes se dedicaron a descifrar los códigos culturales de las sociedades no-occidentales de Oceanía y África. Estos antropólogos daban pistas que ayudaron a ver cómo una sociedad entiende su mundo y cómo crea estructuras de poder sostenidas en el tiempo por soportes ideológicos y simbólicos. Los nuevos historiadores aplicaron estas herramientas al estudio del pasado indígena, en un método que ellos llamaban la etnohistoria, y que Jorge Hidalgo ha definido como una “disciplina que combina las preguntas, las hipótesis y modelos desarrollados por los antropólogos con las técnicas documentales de los historiadores” (p. 651).

Con la sensibilidad por la cultura material del arqueólogo y la preocupación por el contexto sociocultural del antropólogo, Jorge Hidalgo, como sus colegas, empezó a trabajar con las herramientas imprescindibles de nuestra disciplina, los documentos escritos. Este libro da cuenta de los múltiples viajes de Jorge Hidalgo a los archivos coloniales fuera de Chile, incluyendo el Archivo de Indias por cierto, pero también a los depósitos documentales de Argentina, Bolivia y Perú. Como la zona desértica del norte de Chile carecía de los grandes recursos humanos y naturales que solían atraer a los españoles, los documentos sobre la región eran relativamente escasos. Más encima, casi siempre habían sido producidos por los españoles para sus propios propósitos, con conceptos y categorías mentales que poco o nada tenían que ver con la forma indígena de sobrellevar en términos económicos, sociales y culturales la pesada realidad colonial. Por lo tanto, había que leerlos de soslayo, buscando en títulos, procesos judiciales y visitas, las referencias a los diferentes grupos originarios de la zona. En estos documentos Jorge Hidalgo logró encontrar la voluntad y acción del indígena, opacadas y deformadas por el idioma y la jerga notarial de los españoles.

Después de pasar años revisando documentos, Jorge Hidalgo y sus colegas encontraron que había tendencias que se repetían en uno y otro lugar de la América española. El principal descubrimiento de este grupo de historiadores provocó una revolución en la forma de mirar el mundo indígena: los pueblos originarios de América demostraron una creatividad asombrosa para remendar de mil maneras las redes sociales rotas y rasgadas por las epidemias, las exigencias tributarias, y los desplazamientos producidos por el régimen colonial. Como escribe Jorge Hidalgo, “La capacidad política y creativa de los pueblos originarios, si bien sufrió por la desorganización o destrucción de sus aparatos creados en una historia milenaria, no se detuvo y dentro de los estrechos límites de la dominación colonial, fueron capaces de hacer su propia historia. Conocer estas realidades, acciones y proyectos históricos ha sido nuestro programa de investigación por varias décadas” (p. 16).

Jorge Hidalgo presenta muchos ejemplos rigurosamente documentados de estas realidades, en los cuales se aprecia “la voluntad o capacidad de los indígenas para organizarse, cambiar las tradiciones y hacer uso de los elementos coloniales favorables a sus intereses… para superar condiciones históricas críticas” (p. 381). Así, por ejemplo, nos presenta el caso notable de la formación del nuevo cacicazgo de Codpa en los altos de Arica en el siglo XVII. En el vacío político creado por el régimen colonial, diversas poblaciones étnicas removidas de sus lugares y grupos de origen se reconstituyeron en un nuevo grupo étnico.

En algunos casos, Jorge Hidalgo fija su atención sobre las grandes fisuras en la historia andina. Uno de esos momentos de ruptura se materializó en una serie de rebeliones de los grupos indígenas entre 1770 y 1781, como reacción a los esfuerzos de los Borbones de darle una vuelta más a la tuerca tributaria que ya tenía atoradas a las comunidades indígenas. Fue un movimiento que atravesó toda la zona andina sur. Sin embargo, para Jorge Hidalgo era imprescindible entender las variaciones que se daban de este gran movimiento en cada localidad, un estudio que exigía un esfuerzo historiográfico micro-regional basado en un examen minucioso de las fuentes. Así, logró demostrar que la resistencia armada de 1781, la rebelión de Tupac Amaru, afectó de manera muy diferente a las comunidades de los altos de Arica, Tarapacá y Atacama debido a variables como la capacidad de negociación y acción política que algunos caciques ejercían dentro de los marcos legales, y la calidad de las relaciones entre los pueblos y sus curas doctrineros.

En este libro, Jorge Hidalgo también realza los cambios de pequeña escala, fracturas más que fisuras en términos históricos, pero de gran relevancia para la supervivencia de las comunidades indígenas como grupos étnicos. Está, por ejemplo, el caso del corregidor de Atacama que estableció escuelas para enseñar castellano a los niños de la zona, prohibiéndoles hablar su propio idioma, el cunza, dentro o fuera de la sala, una política de profundas consecuencias para las comunidades andinas. Entre los otros impactos del régimen colonial está el abandono de sus pueblos de parte de los hombres que no podían pagar su tributo, quienes dejaban a sus familias y comunidades con una carga aún más pesada. O el caso de la curandera indígena que falló en sus esfuerzos por sanar a una española, y, como consecuencia, fue acusada de participar en un maleficio y desterrada de la provincia por bruja. Estos episodios son sintomáticos de las presiones que seriamente amenazaban cualquier capacidad de respuesta cultural de parte de los pueblos de indios.

Aquí no hay una sola narrativa, sino una variedad de temas, descubrimientos, y aportes teóricos. Tampoco vemos a los indígenas totalmente aislados de la población hispana, mestiza y negra de la zona. Jorge Hidalgo demuestra cómo los indígenas compartían el espacio urbano de Arica con los españoles, y, de alguna forma, un espacio cultural también: los indígenas que participaron en la rebelión general de 1781 sustentaron sus acciones en sueños milenaristas que incorporaron supuestas profecías de Santa Rosa y San Francisco Solano al discurso simbólico que prometía el retorno del orden moral de sus antepasados.

La publicación de Historia Andina en Chile no sólo presenta la oportunidad de resaltar los logros alcanzados por medio de herramientas interdisciplinarias para investigar el pasado. También pide que nos preguntemos acerca del propósito de escribir la historia y la relación entre la historiografía y nuestra imagen de país. En una nación democrática como Chile, la forma en que los ciudadanos piensan colectivamente sobre su pasado está en manos de sus historiadores. Jorge Hidalgo, al estudiar con herramientas renovadas las perspectivas y reacciones creativas de los grupos étnicos de la época colonial, de alguna forma desordena la narrativa heroica de corte hispánico del pasado nacional. Propone pensar en un Chile que incluye grupos indígenas cuyas experiencias históricas no son necesariamente compatibles con la forma acostumbrada de concebir el país, y pide que ampliemos nuestra mirada histórica para abarcar el pasado de una ciudadanía pluriétnica.

Esta obra de Jorge Hidalgo nos guía por el mundo colonial de los indígenas del norte de Chile, y, en el trayecto, establece una vara muy alta en la investigación de problemas de la historia. Para muchos, los métodos que él y sus contemporáneos desarrollaron para estudiar las comunidades indígenas han sido la inspiración de investigaciones centradas en otros grupos de la época colonial, tales como los indígenas radicados en los centros urbanos, los esclavos negros y castas e incluso las dueñas de casa criollas. Al igual que las comunidades indígenas, estos grupos, alejados de los centros de poder, elaboraron su visión del mundo en respuesta a las cambiantes realidades coloniales, y participaron en la formación de una sociedad colonial mucho más compleja que aquella imaginada por los historiadores en el pasado.

Los especialistas de la antropología y la historia no son los únicos beneficiados de los aportes de Jorge Hidalgo. En 2003 la comunidad indígena Aymara de Ticnamar le dirigió una carta pidiendo que les mandara en forma urgente la Revisita de los Altos de Arica de 1773, un documento que él descubrió en el Archivo Departamental de Tacna, y que forma la base de sus estudios de etnogénesis del cacicazgo de Codpa. Este documento, reza la carta, les ayudará “una enormidad” a proteger sus tierras porque les permitiría “conocer con exactitud [de] qué troncos de familias venimos, quiénes desaparecieron, y quiénes se incorporaron a través del tiempo”. Concluye la carta: “Una vez más, Sr. Hidalgo, le reiteramos nuestros infinitos agradecimientos, el habernos dado la oportunidad de leer su libro publicado el año de 1978, sobre lo que fue el pasado colonial del cacicazgo de Codpa, del cual ahora podemos decir con orgullo que tenemos un pasado histórico y [que permite] recuperar nuestra identidad aymara”7.

Notas

1 Estudios Atacameños 6:53-111.

2 Boletín del Museo de Historia Natural año XV, N° 78.

3 Chungara 8:209-253.

4 The Cambridge History of Latin America, editado por Leslie Bethell, vol. II, pp. 91-117. Cambridge University Press, Cambridge, 1984.

5 Diego Barros Arana, Historia General de Chile Tomo I (Santiago: Editorial Universitaria/Centro de Investigaciones Diego Barros Arana, 1999), 156-157.

6 Nota de los editores. En este grupo se incluye en Chile Agustín Llagostera, arqueólogo, todos impulsados por John Murra quien insistía en la necesidad de estudios superiores.

7 Nota de los editores. Este documento y la carta en comento se publicaron en Chungara Revista de Antropología Chilena 36:103-204. Jorge Hidalgo, Nelson Castro y Soledad Gonzalez.

José Luis Martínez C. –  Universidad de Chile, Santiago. E-mail: [email protected][email protected]

Celia L. Cussen – Departamento de Ciencias Históricas, Universidad de Chile. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

Direito e Justiça no Brasil colonial (O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro – 1751-1808) – WEHLING; WEHLING (RIHGB)

WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil colonial (O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro – 1751-1808). Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Renovar, 2004. Prefácio de Alberto Venâncio Filho, 680p. Resenha de: MARIZ, Vasco. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.165, n.423, p.319-321, abr./jun., 2004.

Vasco Mariz – Sócio emérito do IHGB.

Acessar publicação original

[IF]

A África e os africanos na formação do mundo atlântico / John Thornton

Uma das principais lições da exposição sobre a arte africana realizada no ano passado, que apresentou ao público brasileiro uma parte do acervo do Museu Etnológico de Berlim, foi a de mostrar que a África subsaariana, região de profundas ligações com o Brasil e de onde vieram muitos de nossos ancestrais, era formada por sociedades com um alto nível tecnológico e artístico. Isso foi revelado quando se deparava, com certa dose de emoção, com as esculturas em bronze, latão e mesmo terracota, produzidas nos reinos dos lundas, em Ifé, no Benin e nos Camarões, entre os séculos X I I I e XIX, ou quando se observava os registros históricos feitos na perspectiva dos africanos sobre os primeiros tempos de contato, deixados nas placas que revestiam o palácio do Benin e nas quais estavam reproduzidas as imagens dos portugueses recém-chegados.

O mérito da obra de John K. Thornton, A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800) —cuja tradução há muito aguardada f o i , sem dúvida, bem vinda— é o de tratar de maneira eqüitativa os mundos que se encontram a partir da expansão marítima ibérica, nos inícios da modernidade. Referência obrigatória para os estudos sobre as relações entre a América, a Europa e a África pré-colonial, as teses de Thornton contribuem para que seja ampliado o entendimento do papel das sociedades africanas na formação do complexo intercontinental atlântico.

E tema que nos interessa de maneira particular. Não só a América Portuguesa foi constituída como parte do mesmo processo, como a escravidão africana f o i o eixo em torno do qual a sociedade brasileira se desenvolveu durante pelo menos três séculos de história. Por este motivo, as conexões entre a África e o Brasil tem sido a tônica de importantes estudos sobre a sociedade do Brasil colonial e imperial —de Pierre Verger a José Honório Rodrigues e Maurício Goulart e, mais recentemente, João José Reis, Luis Felipe de Alencastro, Manolo Florentino, Alberto da Costa e Silva, Selma Pantoja e Roquinaldo Ferreira, só para mencionar alguns. Alargando os horizontes da pesquisa sobre um período crucial das histórias dos dois lados do oceano, a preocupação que Thornton compartilha com estes autores é a de tratar as sociedades africanas como parte integrante e ativa da constituição do Atlântico Sul; o ponto de partida é o rompimento com os vieses eurocêntricos, de fundo colonialista e racial, que deixaram marcas profundas nos estudos históricos e que precisam ser constantemente revistos.

A obra f o i publicada em 1992, por este historiador responsável por um conjunto expressivo de trabalhos sobre diversos aspectos da história da África subsaariana. Especialista nas sociedades centro-ocidentais, analisou desde estruturas políticas e conflitos do mundo pré-colonial às figuras femininas de projeção histórica como a rainha Njinga (ou Nzinga), do reino de Ndongo-Matamba, em luta pelo reconhecimento de seu poder político, e a profeta D . Beatriz Kimpa Vita, líder dos antonianos que sonhava, nos finais do século X V I I , com a restauração do reino do Kongo. Perseguiu, além disso, em artigos publicados nas principais revistas internacionais, imbricações entre dinâmicas africanas e movimentos ocorridos na América, perscrutando a presença de ideologias políticas e estratégias militares africanas em movimentos de escravos, como na Revolução de São Domingos de 1791, e na Revolta de Stono, nos Estados Unidos, em 1739. Temas audaciosos que abrem novas perspectivas não só para o entendimento dos nexos entre os dois continentes como para o significado amplo da diáspora africana.

O trabalho em questão encontra-se dividido em duas partes. A primeira examina aspectos das sociedades africanas substanciais para se entender a relação com os europeus e o envolvimento progressivo destas no comércio de escravos. Após pontuar características da navegação e da expansão atlânticas do século X V , acompanha a natureza dos laços estabelecidos entre parceiros comerciais (africanos e europeus), analisando o rol de mercadorias trazidas à costa, em grande parte artigos supérfluos ao gosto dos dignitários africanos e de suas cortes. N um movimento analítico similar, mas com implicações contrapostas à idéia da vitimização do continente, considera que a inserção das sociedades da África no tráfico atendeu a dinâmicas internas, mobilizou uma rede de intermediários locais e fortaleceu o poder de elites e de senhores da guerra. Estabelecendo as correlações entre armamentos-guerras- escravos, Thornton deixa no ar, no entanto, uma questão substancial: considerando o século X V I I I , indaga-se até que ponto as sociedades africanas, antes soberanas, tornam-se prisioneiras de um circuito do qual dificilmente conseguem sair. A não ser quando, a partir dos inícios do X I X , os europeus mudam de perspectiva e passam a questionar a própria continuidade do tráfico. Mas, política que preconizava, de fato, um outro e mais formidável ataque.

A segunda parte trata dos africanos em diáspora e aprofunda temas relativos às mudanças que introduziram nos territórios coloniais para os quais foram levados. A começar pela fisionomia de muitas das cidades americanas que mais se assemelhavam a Guinés transplantadas do que a mundos de colonização branca. Embora não ofereça, nesta parte, a mesma densidade de informações que na anterior, a interpretação de Thornton é sugestiva, pois se orienta a importantes direções. Uma delas pontua os movimentos da escravidão na perspectiva do conjunto das colônias na América, nas ilhas atlânticas e no Caribe. Sem perder de vista as singularidades de cada uma das sociedades, acompanha as condições de vida e de trabalho dos escravos nos engenhos de açúcar do nordeste brasileiro, nas plantations antilhanas e no sul dos Estados Unidos, bem como nas haáendas da América Espanhola e oferece ao leitor um quadro das diferenças e recorrências existentes entre os mundos da escravidão americana.

Numa outra direção analítica, o autor destaca a diversidade africana que se transfere para a América não só por meio de culturas transformadas pela diáspora, como por meio de agrupamentos étnicos criados pela escravidão.

Assinala que escravos e forros de uma mesma nação —tal como estes agrupamentos foram chamados nas fontes portuguesas, bem como de terre nos documentos franceses e de country, nos de língua inglesa — trabalhavam juntos ou próximos, encontravam-se com freqüência em cerimônias das irmandades religiosas e nas reuniões de sociedades secretas, e consolidavam uniões matrimoniais, relações de compadrio e parentelas amplas. Entre estas nações, Thornton sublinha grupos como os minas, os nagôs, os lucumis, os congo-angolas e os bambaras que, de fato, não existiam como tais no continente africano, mas que se tornaram referência para a organização dos africanos e dos afrodescendentes no Novo Mundo. Nesse aspecto particular, suas interpretações decorrem da premissa — inovadora para a época em que o livro f o i escrito — de que o tráfico não f o i exclusivamente um elemento de dispersão e ruptura. A o contrário, na ótica de conceitos interpretativos amplos como o de grupos de procedência e de zonas culturais, concentrou determinados grupos em regiões e épocas históricas específicas.

Na área de conhecimento histórico num campo relativamente recente, Thornton não se exime de estabelecer polêmicas ao longo das argumentações. Discute com Walter Rodney os efeitos das ações européias sobre o desenvolvimento africano pré-colonial e o sentido de ruptura social atribuído ao tráfico; com Paul Lovejoy, a natureza da instituição da escravidão na África; com Sidney Mintz e Richard Price, a fisionomia das culturas escravas.

Além disso, suas colocações oferecem aos leitores a oportunidade de refletir sobre a produção historiográfica brasileira que amplia o debate sobre relações étnicas, identidades afro-brasileiras e nações diaspóricas —entre outros, os trabalhos de João José Reis, Mary Karash, Robert Slenes, Mariza Soares, Maria Inês Cortês de Oliveira, Luis Nicolau Pares, Lorand Matory etc. Produção que sublinha, acima de tudo, a propriedade de serem historicizadas as trajetórias de africanos e afrodescendentes na diáspora.

Sem minimizar a importância da publicação, é necessário considerar dois percalços. O primeiro diz respeito à extensão cronológica dada ao estudo em sua segunda edição (de 1998 e base para a tradução brasileira), que levou até 1800 os marcos da edição de 1992, limitados ao período de 1400 a 1680. Dada a complexidade do tema, acredito que a ampliação para o longo século XVIII mereceria explanações mais profundas não plenamente contempladas no capítulo adicional — o 11, “Os africanos no mundo atlântico do século XVIII”. O segundo refere-se a imprecisões da tradução que poderia ter sido feita com mais cuidado. Só para exemplificar, chamo a atenção para a tradução literal de New-Christians por “novos-cristãos” (pp. 435,242); a denominação da Escola dos Annales como “Escola dos Anais” (p. 44); ou a expressão the English-speaking world (p. 321 da 2a . ed. norte-americana) como “no mundo do inglês falado” (p. 415).

Num mercado editorial carente, a disponibilidade para o público brasileiro da tradução de África e os africanos naformação do mundo atlântico deve ser dimensionada, por f i m , à luz de uma proposta programática ampla, acompanhando o estudo de parte dos temas exigidos pela Lei 10.639/03. O livro de John Thornton oferece, sem dúvida, um ótimo começo para se problematizar os novos conteúdos.

Maria Cristina Cortez Wissenbach – Professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo.


THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Tradução Marisa Rocha Morta; Coordenação editorial Mary dei Priore; Revisão técnica, Márcio Scalercio. Rio de Janeiro, Editora Campus / Elsevier, 2004, 436 páginas. XVIII. Resenha de: WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Textos de História, Brasília, v.12, n.1/2, p.223-227, 2004. Acessar publicação original. [IF]

Ensaios sobre a intolerância; inquisição, marranismo e anti-semitismo – GORENSTEIN; TUCCI CARNEIRO (RIHGB)

GORENSTEIN, Lina; TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza (orgs.). Ensaios sobre a intolerância; inquisição, marranismo e anti-semitismo. São Paulo: Humanitas; FFLCH/USP, 2002. Resenha de: ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.164, n.418, p.209-217, jan./mar., 2003.

Angelo Adriano Faria de Assis – Doutorando. Universidade Federal Fluminense.

Acesso apenas pelo link original

[IF]

Black Imagination and the middle passage | Maria Diedrich, Henry L. Gates e Carl Pedersen

Danilo Rabelo

DIEDRICH, Maria; GATES, Henry Louis; PEDERSEN, Carl. Black Imagination and the middle passage. Oxford University Press, 1999. 320p. Resenha de: RABELO, Danilo. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.3, n.6, jan./jun., 2003. Arquivo indisponível na publicação original. [IF]

 

Inquisição: prisioneiros do Brasil (séculos XVI0XIX) – NOVINSKY (RIGHB)

NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2002. Resenha de: GORENSTEIN, Lina. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.163, n.415, p.209-211, abr./jun., 2002.

Lina Gorenstein – Doutora em História Social da USP.

Acesso apenas pelo link original

[IF]

Born to Die: Diease and New World Conquest / Noble D. Cook

COOK, Noble David. Born to Die: Diease and New World Conquest, 1492-1650. Cambridge: Cambridge University Presss, 1998. 248p. Resenha de: NOELLI, Francisco Silva. Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n.3, p.140-141, fev., 2000.

Francisco Silva Noelli – Universidade Estadual de Marigá.

Acesso somente pelo link original

[IF]

 

Erário Mineral – FERREIRA (VH)

FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral.  Organização de Júnia Ferreira Furtado. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos e Culturais. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002, 2 Vol. ilustr. (Coleção Mineiriana, Série Clássica). Resenha de: MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. Óleo de ouro: as Minas e seus tesouros médicos e minerais. Varia História, Belo Horizonte, v.18, n.26, p. 156-163, jan., 2002.

Em 1735, Luís Gomes Ferreira, natural de São Pedro de Rates, na Província do Minho, fez estampar em Lisboa um grosso volume com o relato de mais de vinte anos de experiência a combater as doenças dos novos sertões da América Portuguesa. Denominou-o Erario Mineral dividido em doze Tratados, dedicado e offerecido á Purissima, e Serenissima Virgem Nossa Senhora da Conceyçaõ: título digno, alto e elegante embora engenhoso, logo à partida, e equivocamente alusivo às virtudes do ouro. Dele houve notícia Diogo Barbosa Machado, que o registou de forma sucinta no tomo terceiro da Bibliotheca, enobrecendo as circunstâncias do seu autor (“cirurgiaõ approvado”), em “professor de Chirurgia”.

Outros letrados da altura parecem haver acolhido com mostras de estima o lançamento desse trabalho de vulto. A começar pelos censores, que lhe gabaram a utilidade, e pelos poetas que compuseram versos encomiásticos, também publicados antes do texto de Gomes Ferreira. Estudos recentes de história do livro indicam que ele figurou com alguma freqüência em coleções coloniais, sobretudo na zona das Minas (José Maurício de Carvalho, “O que se lia no Brasil Colonial”, Cultura, Vol. XIV, 2002, p. 44). Chegou-se a notar, inclusive, ser o Erario o único título constante em várias listagens de impressos setecentistas da região de Sabará (cf. texto introdutório de Júnia Ferreira Furtado, p. 26). Estranhamente, porém, ao fim de umas décadas, tornar-se-ia muito difícil conseguir encontrá-lo.

Inocêncio Francisco da Silva, no início dos anos de 1860, dizia ter visto somente um exemplar, em poder de João José Barbosa Marreca, conservador da Biblioteca Nacional de Lisboa. Nada, de resto, aduzia de novo sobre o formato da obra, nem a respeito da origem de quem a escrevera. Num curto verbete do Diccionario, o que se acha é um juízo bastante severo sobre o valor das doutrinas de Gomes Ferreira, que sofreriam de uma aflitiva falta de “precisão, methodo, ordem, e conhecimento dos termos facultativos”, como se via de suas receitas para tratar a gafeira das bestas (sarna ou morrinha) ou os “sonhos medonhos e tristes”. A esse respeito, merecedora de referência seria também uma breve passagem em que o autor aludia à maneira como utilizava “os seus segredos nos enfermos encarregados a seus collegas, mas occultamente, porque elles lhos costumavão impugnar, de certo com boa razão”. Aos olhos severos de Inocêncio, os preciosos saberes de Gomes Ferreira, por não guardarem qualquer paralelo com “formulas e dimensões pharmaceuticas”, só soavam apenas “disparatados”.

O vagaroso processo subseqüente de reabilitação processou-se sobretudo no campo da história da medicina, e no Brasil. Ainda em meados da década de 1880, pôde o Erario assegurar a sua presença numa importante iniciativa universitária para valorizar o patrimônio bibliográfico nacional (v. Carlos António de Paula Costa, Catálogo da exposição medica brasileira…, Rio de Janeiro, Typografia Nacional, 1884). Anos depois, seria citado num estudo de Álvaro A. de Sousa Reis (“História da literatura médica brasileira”, Revista do Instituto Histórico e Geografico Brasileiro, Vol. 9, 1922, pp. 501-549), basicamente com o mesmo propósito de enumeração que ainda se havia de observar num pequeno apanhado sobre práticas médicas coloniais que em 1960 Lycurgo Santos Filho redigiu para o volume segundo da História Geral da Civilização Brasileira (p. 157), dirigida por Sérgio Buarque de Holanda. Este foi, aliás, um dos raros autores que, até ao final da década de 1950, parece ter lido Gomes Ferreira em busca de dados originais: com a espantosa familiaridade de quem freqüentava os títulos mais obscuros, no seu ensaio “Metais e pedras preciosas” Sérgio Buarque de Holanda recorreu ao Erario para aduzir um efêmero exemplo individual em favor da idéia da probabilidade de um ingresso significativo de estrangeiros na região das Gerais, no início do século XVIII (Ibidem, p. 289).

Muito menos contido se veio a mostrar, logo em seguida, o erudito e historiador anglo-saxônico Charles Ralph Boxer. Vários parágrafos de um dos capítulos centrais de A Idade do Ouro do Brasil (1962) assentam sobre passagens de Gomes Ferreira. Dele são, entre outros, alguns testemunhos das condições inumanas a que se viam submetidos os negros faiscadores, das diferentes categorias em que na altura os próprios colonos os classificavam, e das doenças ou ferimentos que afligiam tanto os escravos, como os senhores da zona das Minas. Na pena de Boxer, as qualidades profissionais de Gomes Ferreira merecem leitura compreensiva: pelo cuidado em prescrever o banho diário e pelo empenho com que evitava o recurso à sangria e ao purgante, “nosso cirurgião estava muitos anos à frente de sua época” e sua obra constituiria “fascinante prólogo para um moderno Manual de Medicina Tropical”.

Tamanho encanto foi o de Boxer, que, após alguns anos, foi ele outra vez quem teve o cuidado de assinalar a obtenção para o acervo da Lilly Library de um espantoso novo espécime bibliográfico: Erario mineral, utilissimo, não só para os professores de cirurgia que residem na America Portugueza, a cujo beneficio particularmente se escreveo, mas universalmente para todos, os que professão a mesma faculdade… Agora novamente impresso, e augmentado com hum copioso numero de exquisitas, e admiraveis receitas… Lisboa, 1755. Dois volumes in-quarto (“A Rare Luso-Brazilian Medical Treatise and its Author: Luís Gomes Ferreira and his Erario Mineral of 1735 and 1755”, Indiana University Bookmark, Vol. 10 [Nov., 1969], pp. 48-70, in Opera Minora, Edição de Diogo Ramada Curto, Vol. II [Orientalismo], Lisboa, Fundação Oriente, 2002, pp. 221-234). Até ao momento, essa segunda edição nunca fora devidamente descrita. Voltando portanto a insistir no interesse da obra, Charles Boxer soube agarrar a ocasião para alargar os seus comentários na Idade do Ouro, debater um recente trabalho de Ivolino de Vasconcelos sobre o trajeto de vida de Gomes Ferreira (“Notícia histórica sobre Luís Gomes Ferreira e sua obra, o Erario Mineral”, Anais do Congresso Comemorativo do Bicentenário da transferência da sêde do governo do Brasil da cidade do Salvador para o Rio de Janeiro, 1763-1963, Vol. III, Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1967, pp. 375412) e sugerir a existência de algumas passagens revistas e ampliadas no Tratado Terceiro do exemplar recém-descoberto. A apurada comparação das duas versões demoraria mais de três anos a efetuar-se, por causa da dificuldade de acesso ao texto de ‘35. Quando por sorte, em Indiana, se adquiriu um exemplar da primeira impressão, Charles Boxer pôde afinal confirmar a validade de suas hipóteses (“A Footnote to Luís Gomes Ferreira, Erario Mineral, 1735 and 1755”, Indiana Universty Bookmark, Vol. 11 [Nov., 1973], pp. 89-92 in Opera Minora [Supra cit.], pp. 235-237).

Atualmente, parece não haver notícia de outro qualquer conjunto completo de 1755. Ao que se sabe, apenas existe o registro de uma cópia do segundo volume na Biblioteca da Faculdade de Medicina de Lisboa (Catálogo das obras da Colecção Portugueza anteriores à fundação das Régias Escolas de Cirurgia em 1825, Lisboa, 1942, p. 138). Rubens Borba de Moraes limita-se a informar que se trata de edição ainda mais rara que a primeira (Bibliographia Brasiliana, Rio de Janeiro, Livraria Kôsmos Editora, [1983], Vol. I, p. 307).

Quanto ao tomo de ’35, Charles Ralph Boxer referiu a existência de oito exemplares; quatro, no Brasil. Infelizmente, pouco mais disse a esse respeito, além de que um deles estava na posse de familiares de Gomes Ferreira, no Rio de Janeiro. Sabe-se agora que, ainda no Rio, se acha também um exemplar na Fundação da Biblioteca Nacional, e um segundo, na FIOCRUZ. Em Belo Horizonte, o Centro de Memória da Medicina da UFMG possui uma cópia em que falta uma folha. Por fim, em Sabará, encontra-se outra a necessitar de restauro na coleção da Biblioteca Borba Gato.

As indicações bibliográficas das “Bases de dados sobre história da ciência, da medicina e da técnica em Portugal e Brasil, do Renascimento até 1900” (Lusodat), do Grupo de História e Teoria da Ciência da Universidade de Campinas (http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc/lusodat.htm), permitem a localização de um bom exemplar na Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Os Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa têm uma cópia em estado satisfatório, originária da livraria de D. Francisco de Melo Manuel da Câmara (Cabrinha); possivelmente, a que leu Inocêncio. É, no entanto, na Biblioteca de Mafra que parecem estar dois dos mais soberbos espécimes da rara edição de 1735: encadernados em inteiras de pele e com lombadas marcadas a ferros de ouro, praticamente não apresentam indícios de uso. Foram descritos em 1963 no catálogo datilografado de Guilherme José Ferreira de Assunção, “O Brasil nas obras da Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra”, que nos últimos anos de vai ampliando (muito agradeço as informações facultadas a este respeito pela bibliotecária, Dr.ª Teresa Amaral).

Cabe agora ao Centro de Estudos Históricos e Culturais da Fundação João Pinheiro a importante iniciativa de facilitar o acesso ao texto do Erario, lançando-o na Série de Clássicos da sua já longa “Mineiriana”. Trata-se de edição acadêmica em dois volumes fartamente ilustrados. Logo a abrir, vê-se a imagem do frontispício do exemplar da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, singularizado por marcas de traça marginais. Não aparece aí o carimbo de posse “Da Real Bibliotheca”, porque o puseram na folha de rosto da dedicatória “Á Puríssima Virgem Maria Nossa Senhora da Conceyção”. Quem o quiser conferir, encontrará igualmente na folha de guarda um pequeno lembrete em caligrafia cursiva setecentista: “Este Livro entregou/ o Pe Fr Antº de S Martinho/ da Provª da Solede pª q lho goar/dassem”.

Do dossiê iconográfico, também fazem parte algumas dezenas de reproduções de ex-votos do século XVIII, cenas de práticas médicas, interiores de hospitais, instrumentos de cirurgiões, utensílios de farmácia e plantas curativas. O quotidiano das Minas do Ouro surge em imagens de catas e negros. Algumas delas, oitocentistas. De interesse especial é um retrato de um homem maduro, de condição mediana, que, segundo se crê, representa Gomes Ferreira.

Esta nova publicação atualiza a ortografia do texto de ’35, mesmo nos versos encomiásticos introdutórios. Preserva, porém, as regências verbais, as contrações de preposição e artigo, e a maior parte das letras maiúsculas. Realça, além disso, em tipos de itálico, os nomes das obras e dos autores citados e as palavras e construções em latim. Graficamente, conservam-se ainda os pequenos resumos de colocação lateral e a disposição do índice de “coisas notáveis”, no fim do volume. Capitulares da “Officina do Impressor do Senhor Patriarca”, Miguel Rodrigues, rematam, por vezes, o termo das páginas.

Mais de uma dúzia de profissionais colaboraram neste projeto. Só para os glossários, contam-se sete. Escrevem ensaios temáticos cinco outros estudiosos: Eliane Scotti Muzzi, Ronaldo Simões Coelho, Maria Cristina Cortez Wissenbach, Maria Odila Leite da Silva Dias e a organizadora, Júnia Ferreira Furtado. É esta que abre o primeiro volume, com um trabalho em que procura reconstituir o percurso do autor, valorizando uma série de dados que ele próprio fornece, pelo cotejo com informações de caráter geral. Merece destaque a bem-sucedida reconstrução dos laços sangue e afinidade dos Gomes Ferreiras em diferentes paragens da arquidiocese de Mariana. Mesmo o leitor menos atento à história das Minas há de encontrar interesse nos vários indícios de proximidade do cirurgião e seu sobrinho José ao negociante João Fernandes de Oliveira, titular do primeiro contrato de diamantes na região do Tejuco e pai do senhor de Chica da Silva (pp. 20-23).

Maria Odila Leite da Silva Dias parte também do pormenor biográfico, para propor uma nova visita a todo o “Sertão do Rio das Velhas e das Gerais”, como “frente de povoamento”. As desventuras de Gomes Ferreira e os relatos de suas curas permitem rever a constituição dos grupos humanos que se encontraram no território, e observar as modalidades de interação que entre eles se foram tecendo, muitas vezes à margem da lei. Em Sabará, por exemplo, a autoridade dos governadores apenas chegou anos depois do surgimento de várias fazendas e arraiais. Ainda assim, por muito tempo, a maioria das “vilas” da zona das Minas conservaria feições bastante precárias, com suas casas de pau e taquara cobertas de barro, que a força da chuva trazia para as ruas, em forma de lama. A capacidade de reunir testemunhos escritos que hoje permitem rememorar vizinhanças inteiras de núcleos urbanos tão frágeis (pp. 91-95) não deixa de ser espantosa.

Os quinze poemas que antecedem o “Índex dos Tratados e Capítulos” existentes no Erario têm direito a um ensaio em separado. Ciente da relativa estranheza que o leitor atual deve sentir diante dos “protocolos que codificavam os gêneros do discurso nos século XVII e XVIII”, Eliane Scotti Muzzi dedica-se a apresentar em linhas gerais a estrutura do sistema de ensino neoescolástico e a esclarecer a importância que, na altura, se atribuía ao retórico. Especificamente sobre a origem das obras poéticas da edição de ‘35, que se supõem compostas por indivíduos “participantes da realidade das Minas”, parece assumir-se uma certa dificuldade em descobrir elementos de comparação inteiramente operativos no patrimônio setecentista da literatura colonial (p. 34). A referência (quase canônica) à atividade das academias provinciais, como a do Aureo Throno Episcopal (1748), sugere a hipótese de que um tão grande conjunto de versos talvez também se pudesse haver concebido, “precocemente”, para ofertar ao autor do Erario, em ato público. Nele teriam, portanto, participado Tomás Barroso Tinoco, Tomás Pinto Brandão, João Bernardes e dois ou três outros “poetas de circunstância” (ibidem), amigos de Gomes Ferreira – que, por suposta modéstia, se não assinaram.

Dessa seqüência de nomes, ressalta o de Pinto Brandão. Embora ainda não se conheçam em pormenor as circunstâncias da sua vida, sabe-se há muito que escreveu em Lisboa poemas satíricos e joco-sérios durante a maior parte do longo reinado de D. João V (Diogo Barbosa Macado, Opus cit., Vol. III, pp. 747-748). Tem-se tido por certo que visitou o Brasil por mais de uma vez, chegando a travar amizade com Gregório de Matos. No Rio de Janeiro, parece haver conseguido ajustar matrimônio com uma certa Josefa de Melo, antes de retornar ao mundo da corte, no início da Guerra da Sucessão Espanhola (v. Tomás Pinto Brandão, Antologia. Este é o Bom Governo de Portugal, Prefácio, leitura de texto e notas de João Palma-Ferreira, [Mem Martins], Publicações Europa América, 1976, pp. 5-7, Alberto Dines, Vínculos do Fogo, 2ª edição, [São Paulo], Companhia das Letras, [1992], pp. 508-509, Jair Rattner, Verdades pobres de Tomás Pinto Brandão. Edição crítica e estudo, Lisboa, Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1993, pp. 21-29, e Adriano Espínola, As Artes de Enganar. Um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Matos, [Rio de Janeiro], Topbooks, [2000], pp. 203 e ss.). Ao publicar a mais volumosa das suas obras (Pinto renascido empenado, e desempenado. Primeiro Voo, Lisboa, Officina da Musica, 1732), morava na rua do Picadeiro, ao Bairro Alto (cf. Júlio de Castilho, Lisboa Antiga. O Bairro Alto, 3ª ed., Vol. II, Lisboa, Oficinas Gráficas da Câmara Municipal de Lisboa, p. 209). Não é improvável que conhecesse e cultivasse o convívio com indivíduos que, tal como ele, tinham passado uma parte importante das suas vidas em territórios coloniais; mais de uma vez, já se mostrou uma efetiva tendência para a conservação desse tipo de laços (v., por exemplo, Jaime Cortesão, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, T. I, Vol. I, Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exteriores, [1952], pp. 107-119, e Alberto Dines, Opus cit., passim), praticamente inevitável em alguns grupos, como o dos grandes comerciantes (v. Jorge Pedreira, “Brasil, fronteira de Portugal. Negócio, emigração e mobilidade social”, in Mafalda Soares da Cunha [coord.], Do Brasil à Metrópole. Efeitos Sociais, séculos XVII-XVIII, [Évora], Universidade de Évora, 2001, pp. 63-69). De qualquer modo, nada comprova que Tomás Pinto tenha, de fato, “participado da realidade das Minas” em condições equiparáveis às do autor do Erario.

Os dois derradeiros ensaios da série de cinco tratam do tema da inserção social dos cirurgiões da colônia e do saber e experiência acumulados por Gomes Ferreira. Maria Cristina Cortez Wissenbach reúne com desenvoltura as trajetórias de mais de uma dezena de profissionais, mostrando a disparidade de suas origens e estatutos. Ao discorrer sobre o Erario, mostra também a existência de um intrincado convívio entre a “ciência” colhida nos livros e as tradições forjadas na prática: na expressão de Pedro Nava, “amálgama inseparável na obra dos mestres portugueses” até ao final do XVIII (p. 132). Se algo se encontra, a este propósito, que singularize Gomes Ferreira é o cuidado com que descreve as condições específicas do interior do Brasil e as receitas aí adoptadas, com largo recurso às riquezas nativas. Botânicas e minerais.

Mesmo no centro do livro, há um tratado “da rara virtude” de um dos mais nobres medicamentos que na altura se utilizava: o “óleo de ouro”. Diz o autor que “assim como o ouro é o soberano de todos os metais, assim também o seu óleo é o mais soberano remédio que até o dia de hoje se tem descoberto […]” (p. 489). Formulação grandiloquente, mas acadêmica e assisada; pois, nesses tempos, não falta quem creia que o ouro “[…] conforta o coração, & as faculdades vitaes […]”, podendo inclusive ser consumido como “ouro potável”, na esperança de reduzir os achaques e prolongar os anos de vida (Raphael de Bluteau, Vocabulario Portuguez e Latino, Vol. VI, pp.148-152 e 651-652). Gomes Ferreira resiste a deixar que o brilho das Minas o leve tão longe: sempre que trata do uso do ouro, mantém-se restrito à consagrada receita do “óleo”. A abundância com que depara permite, porém, empregá-lo nas mais variadas patologias, que ele enumera pelo relato de casos concretos, com um orgulho de pioneiro: gangrenas, furúnculos, carbúnculos, fleumões, antrazes, panarícios, apóstemas, cirros, cancros, feridas de peito e carnes supérfluas. Todo o senhor que possa pagá-lo, deve deter uma pequena porção de óleo de ouro em sua casa. Não só para si, ou para a sua família, mas, igualmente, em benefício dos pobres (p. 513). Como resume Ronaldo Coelho, o alegado sucesso de Gomes Ferreira se assenta de fato num amplo conjunto de qualidades (pp. 151-154 e 167-168).

Fica o desejo de que esta última iniciativa do Centro de Estudos Históricos e Culturais da Fundação João Pinheiro possa ser divulgada como merece e, se possível, que incentive outros trabalhos de reedição de textos setecentistas pouco comuns.

Tiago C. P. dos Reis Miranda– Centro de História da Cultura/ Universidade Nova de Lisboa.

Acessar publicação original

[DR]

 

Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (século XVI-XVIII) – PALAZZO (VH)

PALAZZO, Carmen Lícia. Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (século XVI-XVIII). Coleção Nova Vetera. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. Resenha de: PIERONI, Geraldo. Varia História, Belo Horizonte, v.18, n.26, p. 153-155, jan., 2002.

André Thevet, Jean de Léry, Claude d’Abbeville, Yves d’Evreux… Voilà les français! Estes são apenas alguns dos Messieurs que atravessaram o mar oceano e, deslumbrados, desembarcaram na costa brasileira. O que procuravam nesta imensa Terra Brasilis estes nossos cultos viajantes? Talvez poderíamos arriscar uma resposta comum a todos eles: conhecer o Novo Mundo: exótico, diferente, antítese da Europa civilizada.

Relatar o que eles observaram não é o objetivo primeiro de Carmen Lícia Palazzo ao escrever Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII). Sua intenção vai muito além do evidente. A autora, historiadora experiente, doutora em História pela Universidade de Brasília, com muita competência e domínio da historiografia, apresenta ao leitor um excelente trabalho. Sua investigação é criteriosa acerca dos múltiplos e matizados olhares que os viajantes franceses lançaram sobre o Brasil, desconhecido em muitos aspectos, porém fascinantemente atraente.

Os documentos utilizados foram, sobretudo, os registros de viagens e obras eruditas de pensadores que debruçaram, embora muitas vezes sem o contato direto, sobre estas novas terras d’além mar.

Com relação à idéia sobre o Brasil, há interrupção ou prosseguimento nos olhares dos franceses? Problematizou a autora! Sua conclusão foi que estes viajantes e pensadores dos séculos XVI ao XVIII deixaram registrados inúmeros comentários e obras onde se pode perceber pontos de vista que foram se transformando. Este movimento de mudanças, no entanto, não se dá no ritmo dos cortes cronológicos tradicionais. Uma leitura cuidadosa dos escritos e, a título complementar, da iconografia de cada época, permitiu à historiadora detectar continuidades relevantes inseridas no universo mental dos viajantes – continuidades estas que se mantêm até quase o final do século XVII. Somente a partir do século XVIII, particularmente com o iluminista La Condamine, é que se pode verificar uma efetiva mudança nas visões francesas do Brasil.

Recorrendo aos recursos da história comparativa, a historiadora aborda e confronta dois momentos específicos: o das permanências (séculos XVI-XVIII) e o da ruptura capturada pelas visões da modernidade (século XVIII).

A exemplo de Jacques Le Goff, defensor, entre outros, de uma “longa Idade Média” que se prolonga até quase às portas da Revolução Industrial, a autora utiliza semelhantes conceitos fixando-os no contexto das grandes viagens e mentalidades culturais dos séculos XVI e XVII. A própria iconografia corroborou a idéia das permanências. Gravuras e telas da época evidenciaram elementos que remetiam ao imaginário medieval. As narrativas e ilustrações dos viajantes assimilaram abundantemente figuras extraordinárias, demônios e monstros. Seus discursos são destoantes das características culturais e políticas da Idade Moderna. Neles prevalecem os componentes ainda amarrados ao imaginário Medievo. O espaço dedicado aos mitos e utopias é enorme: o fantástico predomina. Só a partir do século XVIII, com a razão iluminista, é que se evidenciam as rupturas da assim chamada modernidade. Daí para frente ciência e razão são os principais instrumentos para a leitura do Outro – distante e diferente – para buscar entendê-lo e, sobretudo, explicá-lo. E como conclui a autora: “Com o abandono de mitos e maravilhas, é o espaço do sonho que se retrai”.

O trabalho de base contido no livro permite melhor compreender os mecanismos das transformações que se tornam visíveis somente se inseridas no tempo longo. Foi exatamente este recurso teórico que Carmen Lícia utilizou para confeccionar a textura do seu livro. No prudente labor de perceber as mutações na longa duração, como já referido acima, foram estudadas iconografias da época e escritos de pensadores, como o abade Raynal, Voltaire e Buffon. Neste conjunto de representações é possível desvelar perfis de comportamentos e imagens que, prolongando ou alterando-se gradativamente no tempo, resultam novas e movediças nuanças das representações do Brasil.

Entre mitos, utopia e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (século XVI a XVIII) é uma obra profundamente instrutiva e sua cronologia é primorosa. Rupturas ou continuidades? Permanências medievais ou triunfo das Luzes? Neste caso a razão iluminista não foi mais aberta à alteridade do que o foram os viajantes anteriores que aceitaram o mítico e o maravilhoso como explicações para a diferença.

Geraldo Pieroni – Doutor em História pela Université Paris-Sorbonne (Paris IV). Professor na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Autor, entre outros, dos livros: Os Excluídos do Reino, editora UnB, Brasília: 2000 e Vadios, Ciganos, Heréticos e Bruxas: os degredados no Brasil colônia. Editora Bertrand do Brasil, Rio de Janeiro: 2000.

Acessar publicação original

[DR]

 

O pensamento mestiço – GRUZINSKI (RBH)

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 398p. Resenha de: GIL, Antonio Carlos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

Neste seu novo livro, Serge Gruzinski, historiador francês, diretor de pesquisa do Centre Nacional de la Recherche Cientifique (CNRS) e diretor de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), comenta em suas páginas iniciais a experiência precursora de Aby Warburg, um famoso historiador da arte de inícios do século XX. Warburg, imbuído de um olhar antropológico, descobrira um vínculo entre a cultura dos índios hopis do Novo México e a civilização do Renascimento. Gruzinski também se volta para esta relação, pois um dos objetivos centrais deste seu novo livro é observar como os povos ameríndios da segunda metade do século XVI, estão impregnados de diversos elementos europeus e vice-versa. Ou seja, se trataria de fato do estudo de culturas mestiças.

Gruzinski, ao abordar este tema, faz sempre uma ponte com o presente. Afinal, vivemos ainda mais radicalmente hoje as influências do processo de mundialização que se iniciou com a expansão européia no século XVI. Da Amazônia a Hong Kong vivemos em mundos mesclados, onde temos que nos esforçar para juntar os fragmentos que nos chegam por todas as partes, hoje em escala planetária. Nossas práticas atuais foram inauguradas no México do Renascimento (p. 90). A narrativa de Gruzinski demonstra que o arcaico é um engodo e que estamos profundamente contaminados pela modernidade. Sua epígrafe retirada de Mário de Andrade: “Sou um tupi tangendo um alaúde”, que também encerra o seu livro, exprime de maneira simbólica o que o autor irá demonstrar em todo o decorrer do livro. Vários traços característicos das sociedades analisadas, no caso, as sociedades indígenas da América Espanhola do século XVI, provêm da Península Ibérica e da Itália do Renascimento e não do distante passado pré-hispânico. O fenômeno da mestiçagem manobra com um número muito grande de variáveis que muitas vezes fogem à percepção dos historiadores. Além da grande complexidade das mestiçagens, o autor demonstra que havia e ainda há uma grande desconfiança em relação ao tema. Gruzinski estende a sua crítica aos antropólogos amantes de arcaísmos e de “sociedades frias” ou de tradições autênticas. Gruzinski certamente, ao escolher o título de seu livro, quer marcar sua distância do autor de “O pensamento selvagem”. Em seu primeiro capítulo, de fato, critica a antropologia estruturalista por ter desprezado a importância dos processos de recomposição permanente, privilegiando por sua vez as totalidades coerentes, estáveis e com contornos tangíveis. A todos que ignoram os efeitos da colonização ocidental e as reações que se desencadearam, o autor acusa de ocultadores da história, sem a qual é impossível conhecer a profundidade essencial desse processo.

Gruzinski tem a preocupação de tentar definir o que seria o conceito de mestiçagem. Tarefa difícil na medida em que os termos “mistura”, “mestiçagem” e “sincretismo” são carregados de diversas conotações e a priori (p. 42). Gruzinski alerta que a compreensão do termo choca-se com os hábitos intelectuais que preferem os conjuntos monolíticos e os clichês e estereótipos em vez dos espaços intermediários (p. 48). Alerta também para as ciladas que se impõem quando se utilizam os conceitos de cultura ou identidade. Neste sentido, o autor critica aos que “evocam a existência de uma ‘América Barroca’ ou uma ‘economia do Antigo Regime’ como se pudesse se tratar de realidades homogêneas e coerentes, das quais só restasse estabelecer os traços originais” (p. 54). Ou seja, Gruzinski adverte que para analisarmos as mestiçagens, nós, historiadores, precisamos “submeter nossas ferramentas de ofício a uma crítica severa e reexaminar as categorias canônicas que organizam, condicionam e, com freqüência, compartimentam as nossas pesquisas” (p. 55). Na análise que Gruzinski se propõe, emprega o termo “mestiçagem” para designar as misturas que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos imaginários e formas de vida, vindos de quatro continentes, América, Europa, África e Ásia. Já o termo “hibridação” é utilizado por Gruzinski na análise das misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilização ou de um mesmo conjunto histórico (p. 62).

Ao analisar o momento da conquista, Gruzinski relembra que a chegada dos europeus gerou altas turbulências e foi sinônimo de desordem e caos, e que sem esta noção em mente não podemos compreender a evolução da colonização e as misturas provocadas pela conquista (p. 73). Surgiram o que o autor chama de “zonas estranhas” onde a improvisação venceu a norma e o costume, ou seja, os vínculos que ligaram os espanhóis e as populações ameríndias foram profundamente marcados por indeterminações, precariedades e improvisações. Havia um déficit constante nas trocas que se estabeleciam, visto que se relacionavam fragmentos e estilhaços da Europa, da América e da África. Além do impacto da conquista, Gruzinski desenvolve em um de seus capítulos outro processo que considera importante na formação das mestiçagens na América Espanhola: a ocidentalização. Ela operou a transferência para o nosso lado do Atlântico dos imaginários e das instituições do Velho Mundo (p. 94). Um dos elos essenciais dessa ocidentalização foi a cristianização.

Ao considerar o processo de ocidentalização, Gruzinski passa a abordar a cópia indígena. Fruto da demanda de uma clientela espanhola ou indígena, ávida por objetos de estilo europeu, a reprodução indígena, ou melhor, a noção de cópia acabou por se revelar extremamente elástica. Gruzinski demonstra que a concepção européia de reprodução deixava um campo considerável à interpretação e à invenção. Neste ponto, o autor começa a analisar o que consideramos o cerne deste seu novo livro: as mestiçagens da imagem.

De uma forma bastante criativa, Gruzinski, ao analisar os frisos do desfile das Sibilas que se encontram na “Casa do Decano” em Puebla ou os afrescos que enfeitam a igreja agostiniana de Ixmiquilpan, foge dos esquematismos e clichês construídos em relação aos índios da América, que sempre se referem aos esplendores das civilizações pré-colombianas ou à decadência inapelável que teria se sucedido (p. 131). Gruzinski demonstra que os indígenas, que pintaram as imagens analisadas, se inspiraram nas obras de Ovídio, principalmente em “As metamorfoses”, e adaptaram motivos clássicos de modo a dar às cenas indígenas um aspecto antigo. Gruzinski acredita que a razão para tantos esforços em unir os motivos ovidianos e indígenas seria maquiar as inúmeras reminiscências pagãs cujas conseqüências reflexivas poderiam assim estar fora do alcance de um espírito europeu.

Gruzinski direciona o nosso olhar para um espaço ornamental — os frisos. Seriam estes espaços um local dedicado às frivolidades da decoração, aos efeitos superficiais e ao culto do pormenor? Gruzinski afirma que é preciso reconsiderar o papel das margens e do ornamento na arte européia e a devolver a esses espaços o papel e o significado que lhes cabem. Gruzinski também põe em relevo a importância do maneirismo na proliferação do gosto pelo bizarro, pelos fenômenos estranhos e monstruosos, que influenciou o uso dos grotescos europeus pelos artistas mexicanos — os tlacuilos. Os grotescos revelam o gosto da época pelos arabescos e bestiários fantásticos. Em sua análise, Gruzinski demonstra que os grotescos permitiram a troca entre dois mundos — o indígena e o europeu. Neste sentido, o autor se volta para este objeto tão pouco estudado mas essencial para o processo de localização de engrenagens e processos de mestiçagem. Os grotescos europeus, ainda que explorem tendências decorativas, privilegiam metamorfoses e hibridações que estão presentes no pensamento do Renascimento. A contribuição de Gruzinski se dá pelo fato de constatar que a hibridação presente nas gravuras analisadas se transforma, em solo mexicano, em mestiçagens, uma vez que houve naquele momento um alargamento gigantesco de horizontes (p. 193). Cabe ressaltar que Gruzinski, em relação ao seu conceito de mestiçagem, não trabalha com a idéia de choque, justaposição, substituição ou mascaramento. O autor considera que o processo resultante da mestiçagem não é um puro produto dos meios que o engendraram. Neste sentido, o autor prefere trabalhar com a idéia de “atraidor” que à maneira de um ímã permite ajustar entre si peças díspares, reorganizando-as e dando-lhes um sentido (p. 197). Ou seja, ao unir concepções diversas, o atraidor possibilita a expressão de um pensamento mestiço, como podemos ver nos afrescos indígenas, no mapa-paisagem da cidade de Cholula ou nos cantares indígenas mexicanos.

Gruzinski se apropria da expressão “culture of disappearance” utilizada pelo sociólogo Ackbar Abbas, que analisa a situação de Hong Kong no último decênio do século XX (p. 315). Gruzinski considera míopes os que reduziram o passado do México a uma história de massacres e destruições, e que por muito tempo ignoraram ou fizeram desaparecer as formas singulares do Renascimento indígena (p. 316). Os nobres mexicanos, para evitar serem assimilados ou reabsorvidos, tiveram que aprender a “sobreviver a uma cultura de desaparecimento” adotando estratégias para tirar partido de mutações, evitando a hispanização pura e simples (p. 316). Portanto, o autor de uma maneira bastante feliz descarta as ciladas da marginalidade que apenas consolida o centro, assim como escapa às ilusões do local, percebido de forma ideal como um porto seguro que teria conservado a antiga pureza (p. 317).

Gruzinski, o tempo todo, nos alerta que o conjunto de componentes extremamente diversos como os pictogramas, os grotescos, as fábulas antigas, os cromatismos, os efeitos luminosos, frutos do encontro e do enfrentamento, não de duas culturas, mas do que ele chama “dois modos de expressão e comunicação” (p. 273), pertencem a um espaço novo, a uma “zona estranha” (p. 243), cuja compreensão depende da invenção de novos procedimentos de análise.

Os artistas da cidade do México no século XVI, assim como os cineastas de Hong Kong, segundo o autor, elaboraram novas práticas da imagem, ao mesmo tempo que desestabilizaram e distorceram os gêneros, sejam eles os grotescos do Renascimento, os velhos cantares ameríndios ou os filmes de kung-fu (p. 319).

Este livro de Gruzinski, além de ser uma obra de grande erudição, também é uma lição de método. A nós, historiadores, propõe que estejamos atentos à interdisciplinaridade e a todas as formas de expressão que permitam um enriquecimento das formas de análise de nosso objeto de estudo. Como disse anteriormente, Gruzinski faz diversas pontes com o presente. O seu estudo do México espanhol após a conquista não impede que analise certas questões contemporâneas como a mundialização, a “World Culture” e a influência cada vez mais predominante dos Estados Unidos. Gruzinski, por exemplo, analisa em seu livro os filmes de Peter Greenaway “Prospero´s Books” e “The Pillow Book”, e o cinema do diretor Wong Kar-wai procedente de Hong Kong. Um dos filmes de Wong Kar-wai, “Happy Together”, que narra as peripécias de dois chineses em Buenos Aires, dá título a sua conclusão. Ao analisar este filme, Gruzinski, através do olhar do diretor, expõe a força das mestiçagens num mundo onde imperam os fluxos de informação e poder do capitalismo em nível mundial.

Gruzinski está atento à complexidade do tema na medida em que realça os limites que uma mistura pode alcançar, uma vez que pode se transformar em uma nova realidade ou adquirir uma autonomia imprevista. Portanto, o autor sugere que o estudo destes limites com suas conseqüências para o fenômeno da mestiçagem está sendo reservado para um livro futuro. Nele, talvez o autor possa nos mostrar algo que ainda não foi abordado neste livro. Qual será o lugar da cultura mestiça neste processo de mundialização engendrado em escala planetária pelo capitalismo? Gruzinski já demonstrou a impossibilidade do retorno ao passado, do despertar das culturas submetidas. Resta-nos indagar se a cultura mestiça se manterá refém dentro dos limites da tradição ocidental ou se permitirá o surgimento de algo novo que romperá com a lógica do sistema de dominação atualmente vigente.

Certamente o leitor que se dispuser a ler “O Pensamento Mestiço” de Serge Gruzinski, não se decepcionará e poderá se deixar levar pelo prazer de descobrir uma outra América.

Antonio Carlos Amador Gil – Universidade Federal do Espírito Santo.

Acessar publicação original

[IF]

Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII) – FRAGOSO et al (RBH)

FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 473p. Resenha de: GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.44, 2002.

Com um prefácio impecável de A. J. R. Russell-Wood, chega-nos uma obra coletiva inovadora que une pesquisadores lusos e brasileiros. Não se trata de mais uma publicação que acompanha o crescimento do mercado editorial sobre os tempos coloniais, embalado pela comemoração dos descobrimentos, mas de uma contribuição definitiva para a revisão do chamado “antigo sistema colonial”. Lá se vão pouco mais de vinte anos desde que Ciro Flamarion Cardoso chamou a atenção, de forma ensaística, para a preocupação obsessiva com a extração de excedentes pela metrópole na historiografia colonial brasileira. Ao cabo deste período, a pesquisa acadêmica tomou fôlego e trouxe novas evidências empíricas para a cena do debate.

A historiografia portuguesa, independentemente das discussões acerca da autonomia do modo-de-produção escravista colonial que marcou profundamente os estudos brasileiros, também se renovou com o revisionismo de seu Antigo Regime, particularmente sobre o fracasso das reformas pombalinas, o crescimento industrial gorado com a Independência brasileira e o questionamento sobre a centralização do poder pelo Estado monárquico lusitano.

Ambos os percursos historiográficos se amalgamam nesse livro, nos dando uma visão ampla e diversificada sobre a complexidade do que foi o Império luso, tendo como elemento catalizador o controvertido “pacto colonial”.

O primeiro bloco de ensaios, através da pesquisa de múltiplas fontes primárias manuscritas e inéditas, traça a trajetória da elite econômica e política da capitania do Rio de Janeiro. João Fragoso, Antonio Carlos Jucá de Sampaio e Helen Osório vão abrir o conjunto de doze artigos, situando a praça mercantil carioca no centro de uma vasta rede de operações abrangendo rotas no ultramar africano e asiático, bem como as linhas do abastecimento do mercado brasileiro da época. Atuação que caracterizou a elite mercantil de grosso trato daquela cidade pelo menos até os anos de 1830 e que se consolida no setecentos (Fragoso, p. 333).

A passagem da elite agrária dos fundadores da Guanabara para o predomínio dos homens de negócios na hierarquia social é marcada pela crise da economia açucareira que acompanhou a reativação mercantil do Rio de Janeiro, causada pelo impacto da mineração e o controle carioca no abastecimento das Minas Gerais. Também a subordinação da economia sulista ao domínio dos capitais mais elevados dos negociantes guanabarinos fica patente nos dados de arrematação dos impostos sobre as mercadorias rio-grandenses, estudados por Helen Osório.

Os três artigos iniciais vão sublinhar as estratégias de enriquecimento dentro de uma economia chamada do “bem comum”, dominada pelas melhores famílias da terra. Nessa economia de distribuição de benesses e privilégios, as alianças familiares e clientelistas são decisivas para acumulação de fortunas. Nota-se a influência, entre outras, da abordagem de Giovanni Levi, Braudel e Polanyi, para a análise da reciprocidade dos favores entre famílias e o mercado pré-capitalista imperfeito, bem como do método genealógico das famílias, propalado por Adeline Daumard e Jacques Dupâquier, imprescindível para a reconstituição dos mecanismos de formação dos patrimônios privados nas sociedades pré-industriais.

Talvez, neste bloco inicial e ao longo do livro, o leitor sinta a falta de trabalhos que cuidassem mais detidamente da participação das demais capitanias no sistema complexo das rotas mercantes e no funcionamento administrativo dos vice-reinados, notadamente da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e Grão-Pará. Embora esse desejo pudesse soar excessivo ao plano que alinhava a obra, o do esforço de análise dos aspectos centrais do Antigo Regime lusitano revisto pelo papel desempenhado pelas instituições e elites coloniais, com ênfase na praça do Rio de Janeiro.

Nas duas seções seguintes, a diversidade de assuntos partilha de um denominador, o das relações de poder na administração do Mare Lusitano. A figura de um regime colonial centralizado no poder da Coroa é substituída pela imagem de um espaço de negociação, que edifica as relações mutualistas ou simbióticas entre a grande autonomia das câmaras municipais, instituições eclesiásticas ou senhoriais e o poder real, que se beneficiava do bom andamento dos negócios coloniais (ver artigos de Maria Fernanda B. Bicalho, Antonio Manuel Hespanha, Nuno Gonçalo F. Monteiro e Maria de Fátima S. Gouvêa). Afinal a economia política dos privilégios, institucionalizada pelas monarquias do Antigo Regime nas colônias, estava assentada numa cadeia de negociações entre redes pessoais e institucionais do poder local e o trono metropolitano, hierarquizando os homens e o acesso à obtenção das benesses imperiais. O outro lado desta realidade seria a coesão política necessária para o governo do Império. Antonio Manuel Hespanha, investigando as regras formais para a atuação das instituições coloniais diante do poder real, indicará as inconsistências da suposta uniformidade da estrutura jurídica do Império, como corolário da idealização do centralismo do poder do monarca. Trabalhando comparativamente com a diversidade de situações entre a organização da justiça em Goa, Bahia e Rio de Janeiro, Antonio Hespanha torna visível a pluralidade dos laços de políticos que iriam se estabelecer entre o poder local e a Coroa a partir das distâncias e realidades da conquista, nas quais o direito colonial moderno se ajustava e os nativos estabeleciam suas práticas legislativas próprias. Portanto, a centralização não poderia ser efetiva sem um quadro legal uniforme e o poder restrito ao mando dos oficiais metropolitanos.

A experiência da evangelização é tratada por Ronald Raminelli e Hebe de Mattos. O primeiro, enfatizando as diferentes estratégias missionárias no Congo, Brasil e Japão, que pretenderam unir povos diversos sob a defesa da fé cristã. O projeto missionário que cimentava a conquista, ao criar a identidade cultural entre povos subjugados e os valores metropolitanos, continha elementos para a sua corrosão ao se manter dentro dos limites da desigualdade representada pela exclusão dos gentios no corpo social hierarquizado.

Num dos artigos mais polêmicos da coletânea, Hebe de Mattos vai se contrapor às motivações de ordem econômica utilizadas pela historiografia brasileira para explicar o estabelecimento do regime escravista nas Américas, tais como a falta de braços para as tarefas da colonização ou a lógica mercantilista das monarquias modernas. A construção de justificativas religiosas para a escravidão, a exemplo da guerra justa para a salvação dos gentios, não foi forçada pela lógica mercantil da expansão. Ao contrário, antecederia a empresa ultramarina e teria fabricado as referências mentais e políticas, de fundo corporativo e religioso, que permitiram a aventura colonial, inclusive em sua dimensão mercantil. A escravidão seria a mola propulsora para os colonos portugueses motivados pela possibilidade de se afidalgarem no além-mar, conquistando o status de senhores de homens e terras. Caímos, assim, na polêmica das determinações históricas e poderíamos nos perguntar se não deveríamos separar as motivações das razões impostas pelas necessidades da experiência da colonização. Ou ainda, distinguir as aspirações que moviam os colonos e as estratégias da Coroa para o seu enriquecimento, dentro da lógica mercantilista do Estado moderno. De qualquer maneira, deixemos o leitor tomar partido.

A última parte do livro vincula múltiplos aspectos da obra à construção da noção de uma economia colonial tardia, que se define pela hegemonia do capital mercantil residente no Rio de Janeiro, e se constituiria na nova elite econômica da América portuguesa. João Fragoso persegue um modelo explicativo para a economia colonial já definido em sua tese de doutorado (Homens de grossa aventura), e do qual alguns trabalhos aqui apresentados lhe são tributários. Por conseguinte, modelo forjado no programa de história agrária da UFF, sob a batuta de Maria Yedda Linhares. Nele, a autonomia da economia colonial é sustentada, com base numa cuidadosa pesquisa empírica, diante das flutuações externas e do poder da metrópole. A hegemonia econômica dos negociantes do Rio de Janeiro é meticulosamente recuperada por fontes cartoriais e arquivísticas diversas. Neste novo livro, Fragoso procura remontar seu estudo ao momento da transformação da acumulação de capitais pela economia da plantation em direção à constituição de uma elite mercantil colonial, que se mostrará autônoma e capaz de amealhar sua fortuna nas redes do comércio interno e ultramarino. As implicações dessas constatações são imensas para a historiografia brasileira, ainda não explorada de todo nas suas dimensões políticas e sociais.

E, finalmente, os textos de Roquinaldo Ferreira e Luís Frederico Dias Antunes ajudam a fundamentar os argumentos de Fragoso. Ambos, com riqueza de detalhes, reconstroem os circuitos intra-ultramarinos do comércio carioca com a costa africana e Goa. Negociantes do Rio, da Bahia e Pernambuco são identificados com freqüência nos portos indianos, participando ativamente do comércio de tecidos asiáticos (Luís Antunes). As três praças também usufruíam da vantagem do comércio direto com Angola, com a presença de suas embarcações representando cerca de 85% de toda a movimentação portuária de Luanda entre 1736 e 1770 (Roquinaldo Ferreira). Do Brasil partiam os panos asiáticos reexportados, as cachaças (“geribitas”), pólvora e armamentos para as trocas no sertão angolano, especialmente os escravos. E nesse tráfico novamente o Rio de Janeiro se destaca, absorvendo 48,5 % dos navios negreiros que zarparam de Luanda na década de 1760 (Idem).

Ao concluirmos nossa leitura, no mínimo podemos afirmar que se os argumentos não convencerem os mais céticos, a profusão de indícios e as comprovações empíricas, especialmente sobre a vinculação da praça carioca com a navegação de longa distância e suas triangulações de mercadorias com a Costa da Mina, Angola e Goa, alteram em definitivo a percepção do “pacto colonial”, reafirmando a autonomia que o capital mercantil sediado nas colônias ousou possuir ante o poder metropolitano. É prova também de que a história econômica e das estruturas se renova, sem esgotar as suas possibilidades de contribuição para o saber histórico. Aqui, os resultados das pesquisas regionais se sintonizam e dialogam com uma totalidade revisitada, o Império colonial português. Aguardamos ansiosos pelas controvérsias que o livro certamente causará no meio acadêmico.

Afonso de Alencastro Graça Filho – Universidade Federal de São João del Rei.

Acessar publicação original

[IF]

Anarquia e organização | Mary Del Priore

Resenhista

Edgar Rodrigues Barbosa Neto – Acadêmico de História ICH/UFPEL.

Referências desta Resenha

PRIORE, Mary Del. Festas e utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994. Resenha de: BARBOSA NETO, Edgar Rodrigues. História em Revista. Pelotas, v.2, p. 261-265, 1996. Acesso apenas pelo link original [DR]

Amor y opresión en los Andes coloniales – LAVALLE (VH)

LAVALLE, Bernard. Amor y opresión en los Andes coloniales. Lima: IEP/IFEA/UPRP, 1999 (Estudios Históricos, 26). Resenha de: CAMPOLINA, Cristina. Varia História, Belo Horizonte, v.17, n.24, p. 278-281, jan., 2001.

Aqueles que têm os interesses voltados para o estudo da história dos Andes por seguro já conhecem a obra de Bernard Lavalle e a grande sensibilidade do autor em relação aos sinais do passado colonial andino. Neste livro, o autor nos apresenta doze textos elaborados durante as duas últimas décadas, tendo alguns já sido publicados em revistas especializadas.

Embora o autor não seja pioneiro no tema, a leitura desse livro nos leva ao lugar das possibilidades de liberdade e reivindicações das classes oprimidas no interior de um sistema de repressão. A criatividade na busca das fontes e a perspicácia na leitura dos documentos tornam seus textos essenciais para aqueles que procuram outras vias para a construção do passado histórico. No caso, a sociedade andina comporta uma outra história àquela marcada apenas pela exploração de uns pelos outros, pela profunda desigualdade social e marginalização de alguns grupos sociais. Através de uma postura não preconceituosa e livre dos entraves da história tradicional e parcial, Lavalle desvenda realidades ocultas enfocando micro acontecimentos para enfeixá-los como expressão do coletivo e daí entender a globalidade do sistema. Respaldado por vasta documentação, o ponto para o qual todos os textos convergem será a peculiaridade do diálogo entre dominadores e dominados. Pelo exposto, o surpreendente resultado dessa coletânea é uma fascinante revisão da complexidade social e política andina.

A obra está composta por três eixos principais: “Casal e Família Como Reveladores Sociais”; “O Longo Caminhar da Resistência Negra”; “Falhas e Fendas do Sistema Colonial”.

Na primeira parte, o autor se alimenta de uma fonte vital, o Arquivo Arcebispal de Lima (herdeiro do antigo Tribunal Eclesiástico), nas seções relativas às causas criminais de matrimônio, aos litígios matrimoniais, aos divórcios e anulações de matrimônio. Lavalle identifica o lugar ocupado pela família e suas relações mais íntimas sob o olhar controlador e regulador da Igreja, então sob a mira de uma sociedade eminentemente machista. Grande parte das fontes primárias utilizadas pelo autor são os testemunhos sobre as desavenças conjugais. O fenômeno mais comum no contexto dos divórcios e anulações de casamento foi a violência doméstica e familiar. As razões que levaram à abertura dos processos multiplicam-se desde as incompatibilidades pessoais, étnicas, financeiras, às questões sexuais. Por razões óbvias, o discurso do corpo relacionado com a líbido e desempenho no intercurso sexual se manifestam de maneira alusiva ou metafórica em consonância com a codificação social da época. A Igreja não considerava esta uma causa para o divórcio. No outro extremo, os expedientes que denunciavam trangressões sexuais às normas vigentes, como o homossexualismo e a sodomia, eram encaminhados aos Tribunais da Inquisição.

Segundo o autor, essa documentação é insuficiente para julgar as normas de conduta matrimonial limenha dadas as distorções as quais se pode conduzir o manejo unilateral de ações judiciais. No entanto, ela fornece os subsídios para investigar os comportamentos abusivos e a subsequente atitude das vítimas, em geral mulheres e índios, frente aos mesmos. Assim, ainda que as relações estáveis e duradouras não possam ser checadas, os documentos analisados revelam uma parte significativa do panorama mental e social da época e a relação de força onde amor e rendimento pareciam normais e parte da potestade marital.

Na segunda parte do livro, Lavalle utiliza os Atos do Cabildo de Trujillo na série Causas Criminales, localizado no Archivo Regional de la Libertad e no Archivo Nacional del Ecuador. Essa parte está dividida em 4 capítulos que tratam da resistência negra no contexto da violência, abuso e marginalização do escravo, o qual respondia com fugas e outros comportamentos que serão julgados pelas autoridades como mera criminalidade. Ser “cimarrón” nos Vales de Trujillo, no século XVII, foi a forma mais difundida e espontânea da contestação negra sem resultar na ruptura com o mundo dominante. O autor decreve as diferentes formas de “cimarronage”, revelando seus esconderijos, tipos de assalto e bandoleirismo, tamanho dos grupos (em geral pequenos) e o isolamento dos fugitivos, que muitas vezes os levaram ao suicídio, expediente drástico para interromper com a misérias da escravidão e as angústias de um castigo anunciado quando capturados. As manifestações de violência negra eram dirigidas contra os amos e, de uma forma geral, contra a população branca. No entanto, havia a possibilidade para o negro, autor de um delito grave, acolher-se ao sagrado, isto é, refugiar-se em uma Igreja onde a Justiça jamais o capturava. Sabia-se muito bem que o promotor fiscal do bispado defendia com zêlo e eficiência as fronteiras dos foros eclesiásticos. Ao lado disso, os proprietários de escravos civilmente responsáveis pelos seus negros tinham justos interesses na proteção oferecida pela Igreja. A eles eram cobradas multas pelas faltas de seus escravos, além de serem acusados de negligência e correção dos negros. Daí a tentação de encobrir os culpados. Conhecedores da convergência de interesses, os negros infratores, escravos ou livres, serão, em última análise, beneficiados.

No século XVII, os palenques ofereceram uma alternativa frágil, mas clara ao mundo escravista. Esses palenques evoluíram até a formação de quadrilhas de salteadores de caminhos e estradas. Nos finais do século XVIII, o bandoleirismo “cimarrón” contribuiu para questionar em outros termos a ordem e as relações de forças escravistas. Houve um aumento acentuado da demanda de escravos para o cumprimento da lei pela manumissão, paródia da liberdade pois o escravo nem sempre saía ganhando.

Todos esses dados são amostras do que estava ocorrendo no Peru como em todo o Império. O questionamento da escravidão adotou formas que, assomadas a uma série de movimentos índigenas e de mestiços contra a nova política fiscal, só faziam aumentar as angústias dos dominadores. As explosões de ressentimento e as exigências então expressadas nas mais diferentes formas sinalizavam para o desmoronamento geral da estrutura de autoridade na qual o mundo escravista descansava. Enquanto os senhores qualificavam os negros de insolentes, esses, paralelamente a uma atitude agressiva, recorriam com grande freqüência à Justiça.

A partir da última década do século XVIII, os expedientes estudados contém frases e expressões muito mais duras contra os amos e seus excessos. O notável é que, por essa época, os pleiteantes insistiam sobre o fato de que ser escravo ou escrava não invalidava o fato de continuarem a ser seres humanos. Como conclusão, diríamos que: as Luzes cunhadas no século XVIII abriram um espaço para a afirmação da igualdade fundamental; que o sistema jurídico espanhol abria um espaço para combater os excessos cometidos contra os escravos; que os negros demonstravam a pertinaz vontade de sacudir o jugo que lhes foi imposto; e que entre certos elementos das classes dominantes soavam discrepantes vozes abolicionistas. Embora não se possa inferir daí que os donos de escravos estivessem abrindo mão de seus interesses, o tempo já conspirava em sentido contrário.

A terceira e última parte do livro, “Falhas e Fendas do Sistema Colonial” , está organizada em 4 capítulos que tratam das táticas da violência indígena, das demandas dos naturais e da doutrinação dos índios. Esta última tarefa que, por definição, deveria ser norteada apenas pelo espírito religioso, foi, também, motivada pelas grandes vantagens econômicas que proporcinava aos padres. Isso não significa que a catequese não tenha sido feita por homens de fé, mas aponta para outros aspectos que esvaziam a catequese de um purismo religioso. Inteirados dos abusos dos padres, recorrentes em todo o período colonial, os administradores espanhóis tomaram sérias providências moralizantes que esbarraram com fortes reações das ordens religiosas contra a ingerência do Estado na missão da fé. As Cédulas Reais que tentaram corrigir essa deformação de parte do clero foram pouco eficazes e, em que pese a atuação de padres bem intencionados, muitos deles não se diferenciaram dos “encomenderos”, corregedores, “hacendados” ou mineiros.

As evidências mostram que o século XVII pode ser considerado um século de paz em comparação com as reações de violência indígena que pontilharam o século XVIII. A resistência podia se manifestar desde atos de extrema violência ao mais intenso silêncio, no marco de uma sutil tática de auto-exculpação bem organizada desde há muito tempo, frente a um adversário, o poder colonial, todo poderoso, mas conhecido, e perante o qual os índios sabiam como manobrar.

Em pesquisa realizada no Arquivo Departamentel de Trujillo e no de Cajamarca, na seção intitulada “Protector de Naturales”, o autor analisa o conjunto de demandas e pleitos indígenas que indicam a capacidade dos índios de recorrer ao direito que o sistema colonial espanhol havia organizado e que com o tempo transformou-se em válvula de escape para a população oprimida. Se a eficácia do “Protector” foi comprometida pela pressão do poder colonial, essa mesma eficácia toma lugar através da honra de muitos funcionários encarregados do manejo das leis e também da tomada de consciência daqueles que do fundo de sua miséria seriam beneficiados.

Sendo as mulheres, os índios e os negros parte da grande massa dos silenciados da História, a pesquisa aponta para a validade dos espaços de questionamento que as próprias forças de coesão social, no caso a Igreja e o Estado Espanhol, davam a esses indivíduos que, por outro lado, enquadravam e pressionavam. Finalmente, o livro de Lavalle pode ser sintetizado como um exemplar estudo da “história vivida dos homens”.

Cristina Campolina – Departamento de História – FAFICH-UFMG.

Acessar publicação original

[DR]

 

Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas Setecentistas – CHAVES (RBH)

CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas Setecentistas. São Paulo: Annablume, 1999, 184p. (Selo Universidade. História, 87). FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de Negócio: A Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas Setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, 289p. (Estudos Históricos, 38). RODRIGUES, André Figueiredo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.42, 2001.

O país das Minas é, e foi sempre, a capitania de todos os negócios.

Para Waldemar de Almeida Barbosa.

A exploração econômica e a evolução populacional sentidas na América portuguesa no período colonial deveram-se a inúmeros fatores, tanto externos quanto internos. Relativamente a estes últimos, salienta-se prioritariamente, estudando o século XVIII, o povoamento e a colonização de Minas Gerais.

A penetração rumo ao interior exigiu que Portugal abrisse novas rotas comerciais que ligassem o litoral e os seus portos de abastecimento de mercadorias ao intricado, afastado e desconhecido “sertão” central da América portuguesa. O descobrimento e a exploração do ouro e das pedras preciosas definiram a forma de ocupação da capitania mineira. A concentração de grande quantidade de habitantes, nos centros urbanos das Minas Gerais, acelerou o desenvolvimento das novas rotas de abastecimento.

Desde o início do século XVIII, produtores rurais estabeleciam-se na circunvizinhança desses centros urbanos e ao longo dos principais caminhos que levavam às zonas mineradoras, com o intuito de fornecer os suprimentos básicos à sobrevivência daquela população.

Não só de produtores rurais vivia o abastecimento da região mineira. Para lá, também se dirigia um grande número de comerciantes ligados às casas comerciais do Rio de Janeiro, Bahia e de Portugal. Estes ofereciam aos mineiros toda a sorte de gêneros, sobretudo artigos de luxo, destinados à população mais abastada, como, por exemplo, comestíveis importados do reino, equipamentos para a mineração e instrumentos agrícolas, além de uma série de utilidades domésticas.

Os estudos das relações comerciais e dos mercadores que atuaram na capitania de Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII, ganharam duas novas contribuições: os livros de Cláudia Maria das Graças Chaves, Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas setecentistas, e de Júnia Ferreira Furtado, Homens de Negócio: A Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas Setecentistas.

Estas obras estão ligadas às novas abordagens historiográficas que vêm procurando entender a história mineira do século XVIII para além da economia mineradora. Tributárias de análises que chamam a atenção para a importância da agricultura de subsistência e a constituição de um mercado de abastecimento interno, articulado aos demais mercados regionais na época, esses estudos abarcam novas interpretações que nos ajudam a compreender a história brasileira, separando-a daquela vinculada ao grande latifúndio exportador, das discussões teóricas acerca do “tradicional” sistema colonial e dos ganhos obtidos com a atividade mineradora, assim como das teses que apontam para a estagnação da economia mineira após a retração aurífera, na segunda metade do setecentos. As autoras superam, destarte, esses temas para tratar da constituição e do desenvolvimento de um vigoroso mercado interno na América portuguesa. Em ambas, a preocupação central é analisar o comércio e os comerciantes mineiros da primeira metade do século XVIII.

A obra de Cláudia Chaves, Perfeitos Negociantes, tem por objetivo estudar a atuação dos tropeiros, responsáveis por quase todo o transporte de mercadorias destinadas ao comércio mineiro, e como se tornou possível a existência de um mercado interno que garantisse a circulação dos produtos importados e dos produzidos no interior das Minas Gerais.

Assim, compreender as Gerais, levando-se em consideração as práticas agrícolas e a formação de um mercado interno, praticados intensa e independentemente dos interesses metropolitanos, conduziu a autora a detectar a articulação dos tropeiros no transporte e no comércio de mercadorias, tanto originários de outras capitanias quanto os produzidos nas Minas.

Valendo-se dos códices da “seção colonial” do Arquivo Público Mineiro e das Câmaras Municipais de Ouro Preto, Mariana e Sabará, além dos códices dos livros de registro ou de passagem da Delegacia Fiscal — que são livros de “contagem” da capitania que contêm as anotações diárias dos fiéis desses postos sobre os produtos que circulavam no interior das Minas Gerais — o livro de Cláudia Chaves centra sua pesquisa na movimentação de mercadorias nas comarcas de Rio das Velhas e de Serro Frio.

A obra é dividida em quatro capítulos. No primeiro, “A economia colonial: velhos problemas, novas abordagens” procura, a partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema do mercado interno colonial, traçar alguns pontos específicos do comércio sobre o abastecimento na capitania mineira. A seguir, em “O mundo do comércio nas Minas setecentistas”, identifica os principais agentes do comércio mineiro, as suas regras e as taxas que incidiam sobre esta atividade.

No terceiro (“Um negócio bem sortido: as mercadorias do comércio mineiro”) e quarto (“Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas”) capítulos, trabalhando especificamente com a documentação fazendária, Cláudia Chaves procurou levantar as rotas que levavam às Minas e os produtos que passavam pelos postos fiscais localizados naqueles caminhos. É nesse momento que encontramos a presença de personagens como Manoel Gomes Cruz, que comerciava com várias regiões das Minas Gerais e com outras capitanias, passando por vários registros, anos sucessivos, com grandes carregamentos. Ou ainda, e em grande número, diversas outras pessoas, como Antônio, Francisco, João, José, Juliana — todos “fulanos de tal” (são nomeados na obra) — que andavam pelos caminhos comercializando pequenas e variadas cargas. Comerciantes eventuais que, em muitos casos, passavam uma única vez pelos registros para vender prolongamentos de suas lides produtivas — milho, feijão, linho, açúcar, arroz, trigo, etc.

Assim, enquanto Cláudia Chaves estuda os pequenos e “itinerantes” comerciantes, Júnia Furtado analisa em Homens de Negócio a correspondência trocada entre o grande homem de negócio português Francisco Pinheiro e seus agentes comerciais, que se localizavam nas comarcas de Rio das Velhas, Serro Frio e Ouro Preto, em Minas Gerais, entre os anos de 1712 e 1744.

O livro de Júnia divide-se em quatro capítulos. No primeiro (“Fidalgos e, lacaios”) apresenta o que é ser comerciante no Brasil e em Portugal no século XVIII. Trata neste item das origens da classe mercantil, sua distinção em Portugal como cristão-novo, a ordenação das companhias privilegiadas de comércio, o papel do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, mais tarde marquês de Pombal, no desenvolvimento do comércio luso-brasileiro. Assim como da intrincada rede comercial, que os agentes comerciais portugueses estabeleceram no além-mar, fazendo com que vários interesses metropolitanos aqui se enraizassem e se misturassem aos dos mineiros, ocorrendo o que Maria Odila Leite da Silva Dias nomeou de “a interiorização dos interesses metropolitanos na colônia”1. Idéia central da obra Homens de Negócio, de Júnia Furtado.

Ao longo do segundo capítulo (“O fio da narrativa”), do terceiro (“As Minas endemoniadas”) e do quarto (“Negociantes e caixeiros”), percebemos que havia duas ordens de interesses circundantes nas práticas comerciais. A primeira refere-se aos interesses portugueses que se expandiam nas Minas Gerais por meio de atividades mercantis, como o controle do abastecimento, a arrecadação de impostos sobre o transporte e o comércio de mercadorias nos registros e nas lojas abertas nos centros urbanos, e os mecanismos de endividamento da população que ficavam nas mãos dos comerciantes. A segunda dizia respeito aos interesses dos agentes de Francisco Pinheiro que, por outro lado, enraizavam-se em outras atividades comerciais, como a pecuária, a agricultura e a mineração, sendo estas práticas econômicas difíceis de serem, muitas vezes, definidas como puramente metropolitanas, uma vez que seus interesses estavam tão enraizados na terra. Esses comerciantes passavam também, com o transpor dos anos, a atuar como colonos.

A figura central da documentação estudada na obra — Francisco Pinheiro — era extremamente atenta aos seus negócios, como se percebe pelo montante de correspondência analisada por Júnia. Esses documentos estão pontilhados de instruções, repreensões e exigências quanto ao cumprimento de suas instruções e à manutenção da ordem na prestação de contas devidas. Sua fortuna foi feita à sombra da corrida do ouro, na primeira metade do século XVIII. Portanto, ao utilizar as correspondências comerciais, os inventários e/ou testamentos de 212 negociantes que atuaram nas Minas na primeira metade do setecentos e que tinham ligações com Francisco Pinheiro, assim como livros de devassas das visitações eclesiásticas, Júnia Furtado procurou acompanhar o processo de expansão e interiorização da colônia para o interior da América portuguesa. O relato de acontecimentos cotidianos, tanto públicos quanto privados, que existiram naquela época e que repercutiram nas práticas comerciais: motins, fome, intempéries, cobranças de impostos e inépcia de administradores são assuntos tratados pela autora em sua obra.

Cláudia Chaves e Júnia Furtado levam-nos instigantemente a penetrar no universo setecentista, em que as práticas comerciais permitem-nos pensar nos mecanismos metropolitanos, para levar o seu poder ao interior das Minas Gerais através das práticas comerciais e das redes informais de comerciantes que se estabeleceram nas diversas partes do reino e da América portuguesa. Tanto assim que, em 1732, o secretário das Minas enviou representação ao rei dom João V, comentando que Minas Gerais era, “e foi sempre, a capitania de todos os negócios”2. Negócios sortidos e de pequeno porte, como estudou Cláudia, e/ou grandes empreendimentos comerciais, como pesquisou Júnia.

Enfim, vendia-se nas Gerais toda a sorte de gêneros da América e de outras partes do mundo. Os mercadores mineiros especializaram-se em tudo para se tornarem perfeitos negociantes, como nos indicou Cláudia Chaves no título de sua obra.

Notas

* São Paulo: Annablume, 1999, 184p. (Selo Universidade. História, 87).

**São Paulo: Hucitec, 1999, 289p. (Estudos Históricos, 38).

1 Conferir: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “A interiorização da metrópole (1808 — 1853)”. In MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1982, pp. 160–184.

2 “Representação do secretário das Minas ao rei, 1732”. Arquivo Público Mineiro. Seção Colonial, Códice 35. In FURTADO, Júnia. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 197.

André Figueiredo Rodrigues – Mestre-História/USP

Acessar publicação original

[IF]

A Short History of Quebec and Canada – DICKINSON (CSS)

DICKINSON, John A; YOUNG,  Brian. A Short History of Quebec and Canada, 2nd Ed. Montreal: McGill-Queen’s University Press, 2000. 388p. Resenha de: BRADLEY, Jon G. Canadian Social Studies, v.35, n.3, 2001.

American historian Aileen Kraditor, in responding to student concerns about wanting to deal with ‘more modern and relevant’ events in her university classes, noted that history, by necessity, had to allow a number of decades to pass so that respectful contemplation could occur. More personally and cogently, she explained that if I can remember it then it is not history but current events! In light of such opinions and conscious of general mounting political and societal pressures to pass immediate judgement on unfolding events, one may well ask, Why is there a need for another book, a revision at that, on history?

Divided into nine chapters and structured in a mostly traditional chronological manner, A Short History of Quebec and Canada begins this historical adventure with the First Peoples prior to the European onslaught and brings the reader up to what the authors generously call Contemporary Quebec which is realistically the mid-1990’s. There are numerous black and white photographs, diagrams, maps and renditions. Additionally, each chapter is immediately followed with a concise, focused and annotated Further Readings section.

A more comprehensive and somewhat less user-friendly esoteric bibliography is printed at the back of the book. All in all, notwithstanding the odd irritating anomalies – such as small maps that are most difficult to read, the use of a space in place of a comma to separate large number segments, and the total absence of colour especially with various art work renditions – A Short History of Quebec and Canada is a nicely packaged volume which provides a comprehensive view of 400 or so years of history in the territory now known as Quebec.

While it is easy for any reviewer to comment upon tangible facets of a book – such as pages, drawings, map size and location, layout, – it is much more difficult to deal with those more ethereal aspects. Particularly, I feel that two of these less than concrete notions stand out in A Short History of Quebec and Canada.

By serious design and conscious effort, the authors have utilized a writing format that is easy to follow. They have consciously attempted to maintain what one might characterize as a direct style. In no way demeaning or condescending, the authors are able to deal with all manner of complex historical issues in a straight-forward manner. They have avoided long and tedious sidebars and patterned their tale in such a way as to bring the reader to the heart of various issues via a direct linguistic route. To a large extent, they have respected the ‘short’ designation in their title.

In sum, this book flows! Chapters melt away as the authors flirt with numerous topics, personalities, and notions. Additionally, the internal chapter sections focus the reader on selected events, issues and complexities within the overall framework of people interacting with people. In the most complex of historical issues and scenes, there is a feeling of immediacy and even a sense of modern relevance.

Additionally, while acknowledging that one cannot avoid the big political issues that mark any sweep of history, the authors have attempted to focus as much as possible on what one might broadly call a social or people orientation. Perhaps this orientation more clearly indicates their own historiography and biases as they forthrightly note: Without denying the importance of political events such as the Conquest or Confederation, we have subordinated them to a socio-economic framework that explains them in a broader perspective (p. ix).

By combining a light and unencumbered writing style with a more personal societal orientation, Dickinson and Young have been able to some extent to challenge Kraditor’s separation of history from current events. Via the overall structure of A Short History of Quebec and Canada, the reader is able to bring historical antecedents up to the present. The reader is provided with the tools to make concrete connections and to more realistically place past events onto their contemporary template.

In my view, A Short History of Quebec and Canada is a valuable volume. Cleverly designed for senior level secondary students as well as anyone interested in Quebec, its history, and possible futures within North America, Dickinson and Young are to be congratulated for a second edition that is a must for anyone with even a passing interest in the complexity and interconnectedness of Canadian history.

Jon G. Bradley – McGill University. Montreal, Quebec.

Acessar publicação original

[IF]

Origenes de la Monarquía Hispanica: propaganda y legitimación (ca. 1400-1520)

NIETO SORIA, J. M. Origenes de la Monarquía Hispanica: propaganda y legitimación (ca. 1400-1520). Madrid: Dykinson, 1999. Resenha de: ALMAGRO, Pérez. Panta Rei – Revista de Ciencia Y Didáctica de la Historia, Murcia, n.4, p. 1998.

Se trata de un Proyecto de Investigación Multidisciplinar dirigido por J. M. Nieto Soria, catedráticode Historia Medieval de la Universidad Complutense de Madrid, y un equipo de investigadores dediversas áreas: Historia Medieval, Moderna, del Arte, Paleografía y Diplomática, Derecho,Literatura, Ciencias y Técnicas historiográficas. Sus análisis contrastados con otros especialistaseuropeos han dado esta compleja y atractiva visión de un tema muy influenciado por el momentoactual en la Historia.

El estudio aborda dos cuestiones: la ‘propaganda’ y la ‘legitimidad’ de la ‘Monarquía Hispánica'(unión de la Corona castellana y aragonesa con Isabel y Fernando) entre la fecha 1400-1520(transición de la época medieval a la moderna bajo un velo de transformaciones ideológicas,políticas y sociales). Ambos conceptos, muy debatidos en los últimos años, explican la plasmaciónde los intereses de una institución a través de sus mañas y manipulaciones para con el resto de losgrupos sociales; mientras hay, en palabras de los autores, ‘creación de consenso’ desde la legalidadde las instituciones, política y manifestaciones artístico-literarias.

‘Sociedad política’ (págs. 25-173), ‘Instrumentos Institucionales’ (págs. 177-272), ‘Retóricaspropagandísticas’ (págs. 273-368) y ‘Apéndice documental’ (págs. 369-604) son los epígrafes en quese compartimenta el libro. La primera parte se ocupa de la figura de la realeza (dinastía Trastámara),nobleza, ciudades y clero, y los instrumentos de propaganda y expresión del poder y legitimaciónideológica que utilizan a través de la retórica, símbolos, ceremonias, escenarios, manifestaciones eimágenes.

La segunda parte ronda la cuestión de representatividad y legitimación política desde la creación deun aparato burocrático (Asamblea y Cortes), el ordenamiento de la justicia y moneda en base a lalegalidad de la norma y centralización por parte del Estado; y la propaganda y mecanismosinquisitoriales hacia el grupo de judeoconversos.

El tercer nivel se centra en las manifestaciones escritularias, literarias y artísticas: conjunto defacetas que alcanzan con su simbología todos los niveles de vida.

Para finalizar la obra, diversas fuentes documentales y fotográficas complementan la temática depropaganda y legitimación de poder; tal es el siguiente texto:”Exhortaçión o y formación de buena e sana doctrina, fecha por Pedro de Chinchilla al muy alto emuy poderoso y esclareçido prinçipe y señor don Alfonso, por la graçia de Dios rey de Castilla y deLeón, en grand cuydado y deseo de servir a vuestra clara y real señoría e dobdiçia de laconservaçión e acreçentamiento de vuestro alto e magnífico estado.

Magnánimo e bienaventurado rey y señor, puse en obra de escribir en este breve tratdo algunascosas que pareçcieron san doctrina para el uso de buena e virtuosa vida, con las quales vuestra realseñoría podrá dar orden al derecho y buen regimiento de vuestros regnos e a la pacificaçión esosiego dellos…” (Biblioteca Menéndez y Pelayo de Santander, Ms. 88, fols. 1v-3v -son 57 fols. Laobra completa-).

Acessar publicação original

[IF]