Tempo presente e usos do passado / F. F. Varella, H. M. Mollo, M. H. F. Pereira e S. Mata

A profusão de acontecimentos e velozes transformações que marcaram “o breve século XX” provocaram nos historiadores, especialmente após a Segunda Grande Guerra, o interesse por investigar as questões de seu próprio tempo. Enfrentando preconceitos historiográficos estabelecidos no século XIX, quanto à (im)possibilidade de historicização do presente, os que se dedicaram a essa empreitada atravessaram décadas de questionamentos acerca da legitimidade científica de seus estudos. Nessa trajetória de enfrentamentos, que resultou na institucionalização da chamada história do tempo presente, a criação de institutos em vários países europeus voltados para a abordagem do pós-guerra e as demandas sociais pelo conhecimento da história próxima – muitas vezes, guiadas pela ideia de justiça e “preservação” da memória, a “aceleração” do tempo e o contexto de renovação historiográfica, a partir dos anos 1970 – exerceram importante papel, no terço final do século passado.

No Brasil, especificamente, a preocupação com problemas relacionados ao tempo presente começou a ganhar fôlego na historiografia nos anos 1990, como atesta, por exemplo, a tradução e publicação de importantes obras de historiadores europeus dedicados à análise do presente e luta por sua legitimação como objeto de investigação histórica. O surgimento de revistas especializadas, a instituição de laboratórios, grupos de pesquisa e a promoção de eventos com foco na temática demonstram o crescente espaço que o tempo presente vem conquistando na constelação das preocupações historiadoras em nosso país.

Podemos considerar o lançamento de Tempo presente e usos do passado como representativo desse percurso. A coletânea organizada por Flávia Varella, Helena Mollo, Mateus Pereira e Sérgio da Mata reúne trabalhos apresentados por pesquisadores de diferentes universidades brasileiras no IV Seminário Nacional de História e Historiografia, realizado em 2010 na cidade de Mariana, cujo tema deu título ao livro. A introdução e os oito artigos que o compõem discutem, especialmente a partir do diálogo com autores franceses e alemães, temas, como presentismo, memória, esquecimento, trauma, comemorações, identidade, patrimônio, justiça e testemunho. São problemáticas que tem pautado as reflexões sobre a história do tempo presente há três décadas.

Em seu conjunto, os textos articulam o enfrentamento dessas questões pelos historiadores do tempo presente, geradas por acontecimentos-limite que marcaram e repercutiram de modo mais sensível nos últimos decênios do século XX, aos questionamentos lançados à própria epistemologia da disciplina história, e sua escrita de uma forma geral, em nossa contemporaneidade. Nesse sentido, os artigos conduzem-nos por debates empreendidos em torno da prática do historiador, dos “usos do passado”, da função social da história, de sua apropriação para além dos domínios da corporação – estimulando os seus profissionais a repensarem sua identidade epistemológica – e do lugar e papel do historiador na sociedade.

Precedendo a discussão dessas questões, na introdução do livro, encontramos articuladas, a partir da contribuição de intelectuais de distintos campos do conhecimento, algumas polêmicas em torno da definição e diagnóstico do “presente”. Em meio às querelas, e referenciados em Henri Bergson, Johan Huizinga e Hermann Lübbe, seus autores apontam a possibilidade de entendimento do presente como aquele que só se torna passado quando os eventos ocorridos perdem sua atualidade: “Eventos já ocorridos são um “presente” para nós pelo tempo em que nossos interesses por eles estiver aceso”, ou dito de outra forma, “haverá presente enquanto estiverem ativos determinados interesses de presentificação do passado” (p.14 e 15). Quanto ao seu diagnóstico e utilizando-se das considerações de Lübbe e Gumbrecht, as discordâncias giram em torno das ideias de “aceleração”, “desaceleração”, “dilatação” e/ou “encolhimento” do tempo presente. Na seara historiográfica, a hipótese de presentismo, construída por Hartog para se referir à atual experiência europeia com o tempo, é trazida à discussão.

Nesse ponto, a questão que se impõe é pensar as possibilidades e limites da transposição do diagnóstico do historiador francês sobre a realidade europeia para o contexto brasileiro. Assim, interrogam-se sobre uma possível crise do futuro em nosso país, crise ou perda de legitimidade da história e excessos de memória para que seja avaliado o alcance dessa categoria para a reflexão sobre a experiência do tempo no Brasil. Colocando então em questão o que identificam como “hiperbolização” e “unilateralidade” desses diagnósticos sobre o tempo presente e, portanto, do possível “abandono da experiência do tempo moderna”, propõem que “talvez o mais sensato seja mesmo falar em „dinâmica civilizacional‟ moderna […]. Tal como Lübbe o concebe, este termo contempla e pressupõe ambas as possibilidades – a aceleração e o seu oposto”(p.26).

Articulando todas essas complexas questões, a leitura do livro também possibilita-nos conhecer a trajetória de constituição e consolidação da história do tempo presente no campo historiográfico. Destacam-se, nesse aspecto, as demandas sociais e o interesse de historiadores pelo conhecimento da história próxima, provocados pelas guerras e crises que assolaram o inicio do século XX; a criação em alguns países da Europa de centros de pesquisa logo após a II Guerra, voltados para seu estudo; a chamada renovação historiográfica, a partir dos anos 1970; a fundação do Institut d´Histoire du Temps Present (IHTP) e a superação das interdições levantadas à possibilidade de legitimidade científica dessa história, como o problema das fontes, dos métodos, da delimitação cronológica, objetividade e perspectiva histórica.

Sobressaem também as reflexões em torno da pressão exercida pelas demandas midiáticas, memoriais e identitárias sobre os historiadores do tempo presente, que normalmente abordam eventos traumáticos. Como lidar com o “dever de memória” e os riscos de “judicialização” da história? Como trabalhar com sua midiatização e vulgarização? Como evitar os conflitos discursivos que, frequentemente, surgem entre vítimas-testemunhas e historiadores? Quais as possibilidades e limites da representação histórica das experiências traumáticas? São desafios que dizem respeito à história do tempo presente, mas que se referem também à própria construção do conhecimento histórico, à responsabilidade social do historiador e à função idêntica da história.

Contudo, apesar das convergências de leituras teóricas e concordâncias entre eles em muitas das problemáticas em que a história do tempo presente está inscrita, os artigos também anunciam posicionamentos teóricos discordantes, como as interrogações lançadas pelo autor do artigo “História que temos vivido” em torno do que de fato constituiria sua singularidade em relação às outras histórias. Para ele, demandas teóricas e metodológicas relacionadas ao testemunho (fontes orais, memória e esquecimento), à proximidade ou mesmo ao protagonismo do historiador em relação aos eventos narrados (objetividade e subjetividade) e que, em muitos casos, ainda estão em aberto (perspectiva histórica), não seriam exclusivas da “modalidade”, mas dizem respeito à própria disciplina história: “a particularidade estará, talvez, na circunstância de que a história do tempo presente mescla política e pesquisa acadêmica em uma “rede estreitamente entrelaçada”(p.84).

Da mesma forma, o autor coloca em questão as discussões em torno da matriz da história do tempo presente (evento traumático?) e de sua nomenclatura como problemáticas que a vinculariam e definiriam como uma especialidade ou ramo da história. Defende, pois, a tese de que a história do tempo presente refere-se a um novo período histórico e não à delimitação de um objeto de estudo específico: “[…]o período que temos chamado (sabemos que inadequadamente) de história do tempo presente apenas se iniciou no século XX, adentrou o século XXI e não podemos ainda dizer quando terminará. Trata-se, portanto, do estabelecimento de uma periodização, não da delimitação de um objeto[…]”(p.79). Essa posição entra em conflito com aqueles que argumentam que, por ser um tempo móvel, definido pelas subjetividades dos atores sociais e marcado por processos ainda em aberto, não pode ser tomado como uma época ou período.

A coletânea, portanto, tem como mérito situar-nos na abrangência e complexidade das reflexões sobre o tempo vivido, sua configuração historiográfica, sob a denominação de história do tempo presente e das apropriações do passado em nossa contemporaneidade. As questões teóricas e os autores destacados nos artigos não são estranhos para nós, mas sua reunião e articulação nas discussões desenvolvidas nos textos fornecem-nos um bom quadro do estado em que se encontram as reflexões, especialmente na Europa, sobre o tema proposto. A obra expressa os dissensos que tanto têm marcado a história do tempo presente e que podem ser percebi dos, inclusive, nas escolhas teóricas e metodológicas dos autores em torno de seu marco inicial e de sua substância (evento traumático?), de sua consideração ou não como campo da história, de sua compreensão como período entre outras. Apesar disso, todos reconhecem a necessidade e legitimidade na abordagem histórica dos eventos recentes e das questões sociais de nossa contemporaneidade. Nesse sentido, o livro contribui para que pensemos os limites e possibilidades de historicização do presente e a atuação do historiador na sociedade.

Deixa-nos desejosos, no entanto, de discussões que articulem e balizem as reflexões teóricas importadas da realidade europeia e a experiência do tempo presente no Brasil, intenção anunciada e empreendida na introdução, mas não realizada nos artigos que compõem a coletânea. Lamentamos, também, não haver nenhuma discussão que articule a temática do livro com o ensino de história. Afinal, a incorporação da proximidade temporal no ensino escolar remonta ao século XIX. A ampliação cronológica até o presente dos alunos, por exemplo, é, ainda, uma característica da escrita didática da história até hoje. Além do mais, como pensar a história como campo disciplinar distanciada de sua função de orientação na vida prática dos alunos?


Resenhista

Jane Semeão – Mestre em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora do Departamento de História da Universidade Regional do Cariri (URCA). Email: janesemeãO endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots.janesemeã[email protected].


Referências desta resenha

VARELLA, F. F.; MOLLO, H. M.; PEREIRA, M. H. F. MATA, S. (orgs). Tempo presente e usos do passado. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. 195p. Resenha de: SEMEÃO, Jane. Boletim do Tempo Presente, Rio de Janeiro, n.8, 2014. Acessar publicação original. [IF].

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