Ahlan wa Sahlan: uma introdução aos mundos árabes | Karime Ahmad Borraschi Cheaito

Capa de Ahlan wa Sahlan uma introducao aos mundos arabes. Karime Ahmad Borraschi Cheaito Imagem Sheike Culinaria Arabe
Capa de Ahlan wa Sahlan: uma introdução aos mundos árabes. Karime Ahmad Borraschi Cheaito | Imagem: Sheike Culinária Árabe

Ahlan wa sahlan, 1 provavelmente “a primeira coisa que vocês ouvirão ao chegar em um país árabe ou ao entrar na casa de árabes”, é o título de recém lançada coleção de artigos sobre os ditos “mundos árabes”. 2 A obra não poderia ter timing mais pertinente, uma vez que o ano de 2021 foi marcado por três importantes fatos que se relacionam com o Oriente Médio: a efeméride dos 10 anos desde o início da Primavera Árabe; o marco de 20 anos do atentado ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001; e o retorno do Talibã ao poder no Afeganistão.

Organizada por Karime Cheaito, a obra possui proposta multidisciplinar3 e reúne alguns dos grandes nomes brasileiros da pesquisa em ciências humanas sobre Oriente Médio. A proposta é apresentar dimensões dos “mundos árabes” para o público leigo de forma simplificada, mas não simplista. Cada artigo apresenta ao leitor um olhar verticalizado e bem embasado, deixando ensejos para pesquisas ulteriores, fornecendo bibliografia especializada, respaldando uma construção de conhecimento com leitura crítica sobre o Oriente Médio, e produzindo um panorama síntese para a abordagem da história, política e cultura destes povos sem tom generalista. Comumente, na grande mídia e veículos ou autores mais tradicionalistas, nos deparamos com exposições que tratam o Oriente Médio como um grande bloco homogêneo, ahistórico, primitivo. Isso não é fenômeno recente: como já afirma Edward Said, autor seminal para os estudos culturais e sobre o Oriente, já desde os fins do século XVIII os orientais são referidos como “mais ou menos a mesma coisa”. 4 Leia Mais

Jesus de Nazaré. O Que a História tem a dizer sobre Ele | André Leonardo Chevitarese

Este texto analisa a mais recente publicação da autoria do professor Dr. André Leonardo Chevitarese, intitulada: “Jesus de Nazaré, o que a história tem a dizer sobre ele”. O livro, com aproximadamente cento e dez páginas, busca fazer uma síntese sobre a personagem que fundou a sociedade ocidental: Jesus de Nazaré.

O livro é dividido na seguinte sequência: a “Apresentação”, escrita pelo filósofo e professor Dr. Gabrielle Cornelli, a “Introdução”, redigida pelo próprio professor Chevitarese, na qual sinaliza a distribuição da obra em seis capítulos bem estruturados, a saber, “I – Uma Outra Narrativa de Nascimento”, “II – Uma Vida em Nazaré”, “III – Um Caminho sem Volta”, “IV – O Reino de Deus Instaurado em Cafarnaum”, “V – O Ensino e a Performance de Jesus”, e “VI – A Crucificação de Jesus”. Além disso, há quatro apêndices que ajudam na compreensão do leitor menos familiarizado com a temática. Leia Mais

Fighting the Last War: Confusion, Partisanship, and Alarmism in the Literature on the Radical Right | Jeffrey M. Bale e Tamir Bar-On

Estado Islamico BBC News
Estado Islâmico | Imagem: BBC News

Tudo parece tranquilo entre os investigadores das novas direitas do eixo Europa-América nos últimos cinco anos. Eles divergem conceitualmente (fascismo, neofascismo, posfascismo, ultradireita, nova direita etc.), ocupam-se de objetos distintos (ideologias, partidos, eleições, movimentos, redes, subculturas, líderes, programas, eleições e ações de governo), mas convergem na ideia de que a maior parte dos seus fenômenos-objeto representa ameaças à democracia liberal. Não sem razão, parte deles encerra os seus ensaios ou teses com a clássica alusão ao “que fazer?”, de Vladmir Lênin. Essa harmonia tem chance de ser abalada após a publicação de Fighting the Last War: Confusion, Partisanship, and Alarmism in the Literature on the Radical Right (2022). Nesse ensaio estendido, Jeffrey M. Bale e Tamir Bar-On denunciam a incompetência dos acadêmicos e jornalistas para interpretar fenômenos designados como “direita radical”, “extrema direita” ou “nova direita radical”, e a esperteza de políticos, empresários e oligarcas das Big Tech que tiram proveito dessa espécie de “histeria” intelectual para “deslegitimar e demonizar virtualmente todos os oponentes da atual ideologia ocidental reinante do globalismo progressista” (p.xvi).

Fighting the Last WarJeffrey Bale e Tamir Bar-On são dois experimentados professores universitários e investigadores de movimentos extremistas há décadas. Bale é historiador e especialista em movimentos religiosos e políticos “propensos à violência” e docente no Nonproliferation and Terrorism Studies (NPTS) e no Program at the Middlebury Institute of International Studies at Monterey (MIIS). O sociólogo Bar-On estuda ideologias políticas e novas direitas e é professor na School of Social Sciences and Government e do Monterrey Institute of Technology and Higher Education, no México. Para chamar os colegas às falas, eles apontam preconceitos acadêmicos, uso equivocado de conceitos, desinformação sobre o imperialismo islâmico, sobre seus traços teocrático, fundamentalista e (no caso dos jihadistas) violento.

Leia Mais

Entre osos y dragones. Miradas transdisciplinares sobre las realidades de Asia | Diana Andrea Gómez Díaz, Hernando Cepeda Sánchez

Diana Andrea Gomez Diaz Imagem Radio Unal
Diana Andrea Gómez Díaz | Imagem: Radio Unal 

Que Asia juega un rol central en el mundo actual es indiscutible, y que en este contexto el rol de China es fundamental, es algo que Entre osos y dragones. Miradas transdisciplinares sobre las realidades de Asia, editado por Diana Andrea Gómez Díaz y Hernando Cepeda Sánchez, evidencia claramente. Abordando distintas temáticas y distintos periodos, con una predominancia de capítulos sobre China, además de un capítulo dedicado al caso ruso, se presenta aquí una obra que enriquece las actuales y crecientes discusiones en América Latina sobre Asia, y específicamente sobre las maneras y perspectivas por medio de las cuales se aborda el estudio de Asia en la región. Leia Mais

Mobilidade e desenraizamento no Mediterrâneo: introdução | Ler História | 2021

Mapa do Mar Mediterraneo

This paper was financially supported by the COST ACTION project People in Motion: Entangled Histories of Displacement Across the Mediterranean (1492-1923) (PIMo) as a result of the PIMo workshop “Movement and Displacement”, Centro de História, University of Lisbon, 9-10 March 2020.

1 Mobility, immobility and displacement appear as frequent phenomena in the history of the Mediterranean. The twenty-first century has witnessed an increase in public interest in these themes, with the Mediterranean continuing to be a vehicle of mobility for peoples from around the world, in what the scholarly debate and public discourse have often labelled as a “refugee crisis” or “migratory flood”. Growing societal apprehension about mobility in and around the Mediterranean has been at the very core of the Cost Action project People in Motion: Entangled Histories of Displacement across the Mediterranean (1492-1923) (PIMo).[1] This interdisciplinary historical project aims to problematise current views of mobility around the Mediterranean by regarding mobility, immobility and displacement as part of the Braudelian structures of the Mediterranean (Braudel 1949). As a structure, people in motion across the Mediterranean’s liquid space and its extended hinterlands should not be perceived as problematic, but rather as a historical phenomenon substantially impacting on the personal and communal lives of those located in the orbit of this “great sea” (Abulafia 2011).

2 The “refugee crisis” in 2015 has expanded the boundaries of Mediterranean mobility and has affected even countries not traditionally considered to be part of it or in its orbit. Under the emergency relocation scheme initiated by the European Commission, the EU Member States have committed to expressing their solidarity with the frontline Member States (Italy, Greece, Spain and Malta) by agreeing to accommodate asylum seekers whose first step on European soil was in these countries.[2] While the initial plan was for a two-year commitment, this has since been extended multiple times. But as these extensions have, in practice, failed to increase, increment or intensify intra-European solidarity, new policy instruments have been created to further this cause. The “Pact on Migration and Asylum” has been particularly insistent in establishing mechanisms aimed at promoting continuing solidarity among EU Member States on matters of relocation.[3] The changing patterns of mobility in many EU Member States, particularly those further removed from the Mediterranean’s historical paths, have mostly been “welcomed” with ignorance and resistance. Acceptance has been particularly challenging in those states without a long tradition and experience of mobile resettlement and hosting of international migrants. Indeed, recent studies in some of these states suggest an essential need to raise awareness and inform local communities of the “facts about migrants and refugees in order to be persuaded away from anti-immigrants’ attitudes, prejudices, and stereotypes” (Blažytė, Frėjutė-Rakauskienė and Pilinkaitė-Sotirovič 2020, 15).

3 PIMo connects the past and the present, and individual and community experiences, in seeking to understand which factors have contributed to shaping contemporary representation of migration in the Mediterranean region and beyond, as well as explaining similarities and differences in the experiences and emotional expressions of human movement between the fifteenth century and today. In this way, PIMo has been designed to follow the historiographical premises first proposed by Fernand Braudel (1949) and later amplified and diversified by David Abulafia (2011). However, it also innovates through its perspective and framing. The starting point of the project is that individuals departing from their places of origin become uprooted after a specific window of absence. During their journey, they engage in mobility and, as such, contribute to defining their communities of origin as immobile. In this context, reconstructing the departure of one individual or one community translates into three research axes: mobility (of the individual or community moving), immobility (of the community of origin) and displacement (integration of the individual into the host society). This three-dimensional approach thus introduces an individual and communal-centred focus to a theme often portrayed as a collective abstraction.

4 Individual and communal mobilities have an equally transformative effect on their societies of origin as on their host societies. Upon arrival, individuals, even when transient, fit in and integrate through complex processes of adaptation, inclusion and exclusion. In these processes, three elements are crucial for framing the place that individuals assume in the new society. The first of these is the personal experience of mobility as voluntary, forced or traumatic, with this experience formatting the way individuals perceive their own existence. The second reflects the emotions surrounding the experience of mobility (of the self) and immobility (of the group of origin), given that emotions define the extent of tolerance and acceptance of and in the new society (O’Loughlin 2017). The third and final element entails reconstructing a memory of displacement, whereby new identities are forged and belonging is redefined. The ultimate result of this process is the development of construed ergo- and exo-identities, the former referring to the identity conceived of by the “self”, and the latter to the identity assigned by host societies to the individuals or groups (Hoppenbrouwers 2010).

5 For historians, exo-identities can be found in institutional archives (of states, towns, religious institutions and so on). Ergo-identities, by contrast, are more difficult to pinpoint, given that ergo-documents (such as diaries, personal descriptions, personal correspondence and novels) for the period before the eighteenth century do not abound (Antunes 2014). However, the combination of institutional archives and ergo-documents offers a unique window for understanding the emotions individuals experienced while moving, while their feelings of displacement, integration and mobility shed unique light on the human experience of the multiple Mediterranean crossings (Tarantino 2020). In the case of this special issue, religious minorities, maritime groups, diplomats, merchants and writers take centre stage. Even though other groups deserve particular attention, as is the case of armies, captives, refugees or intellectuals, the allotted space of reflection (a total of four articles) imposes some unavoidable analytical constraints.

6 This special issue provides insight into the way different individuals and communities moved and circulated in and around the Mediterranean from the Middle Ages up until the early nineteenth century. It unites four complementary and innovative ways of looking at Mediterranean mobility, immobility and displacement. In the first place, it covers a geographical space that includes the Eastern, Central and Western Mediterranean in its internal dynamics and connections to worlds beyond the “great sea”. This approach highlights the importance of not limiting studies of the Mediterranean to its geographical constraints. The work by Barros and Tavim privileges the circulations between Morocco, Portugal and, to a lesser extent, Spain, with a particular focus on the Moorish and Jewish communities on both sides of the Mediterranean and the way these communities reacted, dealt with and responded to the mobility of specific individuals. Hugo Martins, on the other hand, looks at Mediterranean mobility as a consequence of communal customs and needs of Jewish groups located primarily outside the direct scope of the Mediterranean and, as such, redefines a geographical conceptualisation of the “great sea” well beyond the boundaries imposed by its shores. David do Paço, meanwhile, combines the centrality of the Mediterranean as a space of circulation and connection between empires (Ottoman and Habsburg) in seeking to conceptualise the importance of the sea as a means of imperial integration of political entities perceived as socially and geographically distant. Lastly, Katrina O’Loughlin analyses how the Mediterranean geography was paramount in defining an abstract space for incorporating displacement and establishing who may be perceived as “the other”.

7 Secondly, the authors rethink the Mediterranean geography through the lens of mobility and as a result these articles provide innovative insights into the human experience of motion. All the authors reflect on how historical actors’ mobility determined their fate (historically or fictionally), but also on how the same mobility condemned communities and families left in places of origin to immobility. The articles reflect the many ways in which this dichotomy seems to have weighed heavy in how people perceived, felt and communicated their sense of displacement and, in so doing, greatly influenced the forming of individual and communal identities in the host society. It was this latter process that ultimately determined the levels of integration into, adaptation to or rejection of people’s new social context, thus influencing the core of their identity transformation and reshaping of belonging (Antunes 2014).

8 The third way in which these articles advance scholarly understanding of human motion in and around the greater Mediterranean is by examining how specific individuals framed their mobility as a life experience and, as such, re-created, construed and shaped what Pierre Nora (1984-1992) has long associated with the lieux de mémoire. The articles demonstrate how spaces that Nora would readily associate with a lieu de mémoire were shaped and imagined by the individual and communal experiences of the few and entered the collective memory of the many as truisms. This insight is particularly helpful for historians as the often almost emotional relationship that scholars develop with their historical actors can endanger the neutrality that historians have been required to contemplate ever since Marc Bloch (1949) defined the major principles of the profession.

9 The fourth and final way in which these articles contribute to a new understanding represents a direct response to three historiographical challenges posed by Maria Fusaro, Rogers Brubaker and Joep Leerssen. In revising Braudel’s oeuvre, Fusaro (2010) calls on historians to view the mobility of goods (trade) as being inherent and concomitant to human mobility. This revisionist approach thus envisages a Mediterranean playing its part in a global world of human and material exchanges extending from China to Scandinavia. Although less geographically extensive, the articles in this issue translate the human geography of Mediterranean mobility well beyond the constraints of its shores and, as such, highlight the need to include the Mediterranean in the current historiographical turn towards global history. In adopting this global approach to Mediterranean mobility (here understood as motion, displacement and immobility), the authors reflect on the crucial problem of identity formation and identification. In doing so, they replicate the call by Rogers Brubaker (2004) to rethink and reconceptualise ethnicity as a social phenomenon outside the group and not necessarily aligned with it. The consequence of such realisation is that labelling human mobility as diasporic or communally based falls short when seeking to explain the development of construed identities, identity hybridity and, ultimately, alterity as postulated by Joep Leerssen (2007).

10 The solution that this special issue found for resolving the apparent paradox between answering Brubaker’s call and responding to Leerssen’s premises is to offer a multidisciplinary approach to the identity/hybridity/alterity problem by combining methodologies and scientific queries well known to historians and complementing them with the enriching analytical views of anthropologists and creative writers. This collaboration represents a first step towards rethinking the meaning and impact of mobility in the Mediterranean in both the past and the present. One final note is in order. While preparing this special issue, we learned, discussed and reconceptualised our approaches and the interpretation of the respective primary sources. This was an enjoyable and fruitful exchange that we will cherish moving forward. However, we faced a great loss during the last phase of this project. The sudden passing of Filomena Barros, co-author of one of the articles, left us shocked and stunned, leaving Medieval and Early Modern historiography on mourisco communities in Portugal and elsewhere poorer. This special issue stands partially as a celebration of her work on mobility, displacement and identification of religious minorities.

Notas

1. See www.peopleinmotion-costaction.org.

2. The Council of the European Union. Council Decision (EU) 2015/1523, dated 14 September 2015 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:32015D1523).

3. The European Commission. Migration and Asylum Package: New Pact on Migration and Asylum, dated 23 September 2020 (https://ec.europa.eu/info/publications/migration-and-asylum-package-new-pact-migration-and-asylum-documents-adopted-23-september-2020_en).

Cátia AntunesLeiden University, The Netherlands. E-mail: [email protected]

Giedrė Blažytė – Diversity Development Group, Lithuanian Centre for Social Sciences, Lithuania. E-mail: [email protected]


ANTUNES, Cátia e BLAZYTÊ, Giedré. Mobilidade e desenraizamento no Mediterrâneo: Introdução. Mobility and Displacement in and around the Mediterranean: An Introduction. Ler História, Lisboa, n.78, p.9-15, 2021. Acessar publicação original [IF]

Acessar dossiê

Burning the Books / Richard Ovenden, The lost library / Dan Rabinowitz

OVENDEN Richard
Richard Ovenden – Foto: Library of Congress /

OVENDEN R Burning booksThe burning of books is a highly emotive subject. The Nazis’ bonfires of Jewish books and other ‘degenerate’ literature in 1933 horrify, and not only because they presaged the incinerators of the Holocaust. From the paradigmatic (and, we learn, probably apocryphal) conflagration of the ancient library of Alexandria, which consumed most of the corpus of Classical literature, to the torching of the Baghdad National Library following the invasion of Iraq in 2003, the destruction of books (and archives) seems to shock more than the loss of any other form of material culture. Why should this be? Although Richard Ovenden does not directly address the question in his excellent Burning the Books, the answer may lie both in the unparalleled capacity of books and archives to preserve the past—they constitute our collective memory—and in their limitless potential to generate new knowledge, Milton’s ‘potencie of life’. Perhaps, as Sappho’s enigmatic ‘you burn me’ fragment intimates, something of ourselves perishes in the destruction of books.

Burning the Books, which has justly garnered considerable critical and popular attention, eloquently and powerfully describes numerous attacks upon knowledge across four millennia, from the destruction of Ashurbanipal’s cuneiform library in 621 BCE to the ‘Windrush’ scandal of 2010 when Home Office officials were revealed to have destroyed records that would have proved migrants’ entitlement to British citizenship. While Burning the Books may not break new ground in the scholarship on libraries and book history—it largely draws upon existing literature—it is meticulously researched and referenced, compellingly argued, and likely to prove a landmark in the history of libraries and the preservation of knowledge.

Leia Mais

Repensando los vínculos con Asia desde América Latina y Asia | Intus-Legere Historia | 2021

En tiempos marcados por el creciente intercambio económico y exponencial aumento de movimientos migratorios entre América Latina y Asia, se vuelve necesario reflexionar críticamente sobre las formas en que estos intercambios son percibidos, comunicados, y cómo son aproximados en términos teóricos. Este número especial resalta las formas y mecanismos del intercambio político y cultural y la producción de conocimiento y comunicación a través del océano Pacífico desde el siglo diecinueve hasta nuestros días. Esta constituye una propuesta que favorece los acercamientos inter y multi- disciplinarios, y que presten particular atención a los discursos teóricos, como «Orientalismo», y otras aproximaciones para casos y experiencias del presente como del pasado. A partir de una convocatoria abierta, invitamos a investigadores a enviar sus contribuciones regidas por los temas centrales mencionados; luego, el equipo editorial de Intus-Legere Historia seleccionó los artículos que aquí se presentan. En su conjunto, estas contribuciones exhiben las conceptualizaciones de la relación con Asia desde América Latina, explorando como las miradas y relación con Asia son mediados por actores e imaginarios. Como es posible de ver, miradas estereotipadas y esencialistas continúan en la actualidad, a pesar de que es posible encontrar resistencias históricas a esas mismas visiones. Esas «resistencias» configuran miradas alternativas, estableciendo diálogos que problematizan nociones ancladas exclusivamente en discursos de alteridad.

Un primer grupo de artículos incluidos en este número especial abordan la aproximación por medio de los imaginarios y las representaciones en la ficción, incluyendo el cine y la literatura, así como sobre formas de otredad disponibles en la región. Las formas de orientalismo en Chile son estudiadas en un trabajo ambicioso por Pablo Álvarez, quien identifica elementos «orientalistas» en un grupo de intelectuales del siglo XIX y también presentes en algunos artículos del diario La Nación durante la primera mitad del siglo XX. En «Orientalismo chileno entre Periferia y un Orientalismo Invertido», se estudian las imágenes orientalistas sobre la zona de Asia menor y el mundo islámico en Chile. A través de un marco teórico que destaca las aproximaciones al tema en Argentina, Álvarez advierte una mutación histórica de las representaciones orientalistas, lo que demuestra que la visión sobre el «otro» oriental fueron modificándose en el tiempo. El texto de Mauricio Baros Townsend, intitulado «De la alfombra al kimono. El orientalismo en las trasformaciones del concepto de interior en la premodernidad chilena» empalma el origen de la vivienda moderna con la influencia del orientalismo decimonónico; siendo éste, un cruce del que emerge una nueva visión sobre el confort y el lujo en el ámbito del hogar chileno. Baros Townsend presenta un texto que rescata la historia social de algunos objetos mobiliarios, como las alfombras o vestimentas como el kimono para sugerir dos tiempos del orientalismo en la vivienda, primero con influencias árabes y luego japonesas. Concluye que el eclecticismo, la ambigüedad y un nuevo espacio para la mujer son elementos heurísticos para comprender el fenómeno del japonismo en Chile. Leia Mais

Key Thinkers of the Radical Right | Mark Sedgwick

SEDGWICK M
SEDWICK Mark. Foto: Rascunho.com /

SEDGWICK M Key thinkers of the radical rightQuando pensamos em uma direita radical, podemos imaginar skinheads e neonazistas usando suásticas. Existem, porém, intelectuais da direita radical que ocupam um espaço cada vez mais relevante e, embora alguns tenham explicitamente apoiado nazistas e fascistas, outros, de fato ou retoricamente, se afastam dos estereótipos mencionados. O livro organizado por Mark Sedgwick, historiador especializado no estudo do tradicionalismo, islamismo, misticismo sufi e terrorismo, busca expor, de forma sintética, os pontos centrais do pensamento de 16 intelectuais ligados à direita radical.

Cada capítulo é escrito por um autor diferente e dedicado a um dos intelectuais, passando por autores clássicos, da chamada Nouvelle Droite, identitários, libertarianos (ou libertários), neoconservadores, paleoconservadores, contrajihadistas, neorreacionários e a denominada alt right.

É importante ressaltar que a obra não é uma apologia dos pensamentos desses formadores de opinião da direita radical, mas uma relevante ferramenta para compreender os argumentos, posicionamentos e táticas desse campo ideológico bastante plural, uma vez que é possível verificar no decorrer do livro uma variação muito grande de pensamento e uma forte discordância entre os autores, o que serve para demonstrar as nuances existentes dentro da direita radical, a qual poderia ser considerada, erroneamente, como monolítica.

O livro é dividido em três partes: Classic Thinkers, Modern Thinkers e Emergent Thinkers. O primeiro capítulo aborda quatro pensadores clássicos: Oswald Spengler, Ernst Jünger, Carl Schmitt e Julius Evola. Todos, exceto Spengler, produziram durante o período em que o nazismo alemão e o fascismo italiano estavam no poder, mas apenas Schmitt foi um membro ativo do partido nazista, enquanto Evola teve aproximações com nazistas e fascistas.

A obra mais conhecida de Spengler [2] é “O declínio do Ocidente” cujo primeiro volume foi publicado logo após o final da Primeira Guerra Mundial. A filosofia histórica de Spengler era baseada em dois pontos: a existência de entidades sociais chamadas de “culturas” como os maiores atores da história, sendo que esta não possuiria objetivo ou sentido metafísico. O segundo ponto é que a evolução dessas culturas corresponderia aos estágios de um ser vivo, tendo uma infância, juventude, idade viril e velhice. A cultura ocidental teria adentrado seu último estágio com a ascensão de Napoleão e as ideias calcadas na tecnologia, expansão, imperialismo e sociedade de massas. Seu declínio se daria a partir do ano 2000. Esse pensamento é responsável por duas ideias importantes da direita radical: a visão apocalíptica de um declínio e o foco em culturas e civilizações em detrimento de nações ou Estados.

Jünger [3], por sua vez, possui como obra de destaque In Stahlgewittern (Tempestades de aço), uma memória de sua participação na Primeira Guerra Mundial e que apresentava um olhar sobre sua atuação na guerra, apresentada como heroica e masculina. Na sua visão, a guerra trazia os homens de volta a um estado natural, revelando os ritmos primordiais violentos da vida que ficavam abaixo do verniz da civilização. As suas ideias de virilidade e luta, bem como uma construção posterior de que a única forma de se proteger de demagogos e tiranos que manipulavam a tecnologia para atingir as massas seria se afastar para um “eu autônomo”, ou, como Jünger coloca, um Anarco, repercutem até hoje nos meios da direita radical.

O jurista alemão Carl Schmitt [4] talvez seja o mais conhecido fora dos círculos de direita, uma vez que foi considerado o jurista principal do nacional-socialismo. Sua maior contribuição para a direita radical é sua distinção entre amigo e inimigo, nós e eles, um pensamento binário ainda facilmente encontrado na retórica extremista. Schmitt também opôs dois conceitos, o “Estado de Normalidade” e o “Estado de Exceção” para argumentar que, em certos casos, seria necessário um governo ditatorial para representar uma comunidade política através de decretos, não da lei, como forma de estabilizar as relações legais. Obviamente esses argumentos possuíam um potencial antidemocrático e foram utilizados pelos nazistas.

O italiano Julius Evola [5] tem forte ligação com o tradicionalismo no sentido dado pelo francês René Guénon [6], apesar de possuírem pontos de discordância. Seu estudo do tradicionalismo é mais bem refletido em sua obra “Revolta contra o mundo moderno”. A tradição integral derivaria de um perenialismo no qual todas as visões metafísicas de mundo e as mais importantes religiões seriam teriam uma origem divina, imutável e inquestionável. O mundo moderno, caracterizado pela civilização ocidental, tecnologia e baseado no materialis materialismo, seria “vindo de baixo”, o exato contrário da tradição. O tradicionalismo poderia ser visto em suas últimas luzes no catolicismo medieval, entrando em declínio durante a Renascença e, especialmente, após a Revolução Francesa. O mundo estaria, portanto, em declínio, e uma recuperação só seria possível após o colapso do mundo moderno, ou seja, seria necessário “cavalgar o tigre” (Cavalcare la tigre, título de sua obra pós-guerra) até que ele desabe.

A segunda parte do livro, destinada aos pensadores modernos, inicia com dois autores franceses ligados à Nova Direita (Nouvelle Droite), Alain de Benoist e Guillaume Faye. De Benoist [7], autodeclarado pagão, assim como Evola, publicou 106 livros e mais de 2 mil artigos. Após a independência da Argélia, de Benoist decidiu deixar de lado o ativismo nas ruas, visto como inútil, e focar na metapolítica, retirando do comunista Antonio Gramsci a ideia de que a hegemonia ideológica é a condição da vitória política. Assim, se alguém quer que suas ideias modelem a sociedade, é necessário trabalhar no plano das ideias antes.

As bases principais nas obras escritas por de Benoist podem ser sumarizadas em três pontos: primeiramente, a crítica à primazia dos direitos individuais, que seriam uma consequência do humanismo do século XVIII e resumidos nas Revoluções Americana e Francesa. A segundo base é que o perigo central que o mundo estaria enfrentando poderia ser visto na hegemonia do capital e na busca de interesses próprios. Sua crítica ao capital não deve ser tomada em um sentido marxista, mas dentro da tradição anticapitalista nacionalista, uma vez que o risco do consumismo e do livre mercado seria o apagamento das identidades dos povos. Por fim, o terceiro ponto é sua oposição ao Estado-nação, favorecendo a ideia de uma Europa federalizada com o reconhecimento de comunidades baseadas na etnia, linguagem, religião ou gênero.

Faye [8], por sua vez, contribuiu para a direita radical com o que chamou de “arqueofuturismo”, a aceitação dos avanços científicos e tecnológicos combinada com uma sociedade que permaneceria tradicional. Após considerar os regimes árabes como aliados naturais da França e criticar o papel dos EUA, Faye se transformou em um defensor do nativismo, discursando contra a imigração e os muçulmanos e em defesa dos interesses étnicos europeus. Os imigrantes estariam colonizando a Europa através de altos índices de natalidade, impondo uma substituição étnica. Seguindo uma ideia pseudodarwinista, a luta pela sobrevivência se daria no plano das civilizações.

Os três autores seguintes explorados no livro são norte-americanos: Gottfried, Buchanan e Taylor. Os dois primeiros são conhecidos paleoconservadores, sendo que Gottfried [9] se destaca pela sua desconfiança em relação às elites globais que, segundo ele, suportariam um “Estado gerencial” contrário às bases tradicionais da sociedade, aproximando-se, portanto, do tradicionalismo.

Buchanan [10] assemelha-se a Gottfried na visão de que a sociedade norte-americana é baseada na sua história e na herança europeia branca, não em princípios universais abstratos. É possível verificar uma visão apocalíptica em seu pensamento, especialmente em sua obra principal, The Death of the West, segundo a qual os EUA e os países europeus estariam na linha de frente de um ataque. Os europeus (brancos) estariam enfrentando uma ameaça comparável à peste negra, uma vez que as taxas de natalidade teriam caído drasticamente. Um dos culpados por essa decadência seria o feminismo, que, somado a outras formas de ataques culturais à tradição ocidental, poderia ser ligado a pessoas com objetivos marxistas ou à Escola de Frankfurt, a qual Buchanan considera um suspeito principal. Sua combinação de um comunitarismo europeu branco, hostilidade às elites globais que não dariam importância às raízes locais e preocupação com a imigração mexicana nos EUA teve impacto nas eleições norte-americanas de 2016.

Jared Taylor [11], de seu lado, possui um foco quase exclusivo na questão racial. Apesar de acreditar em fatores culturais e históricos, Taylor enfatiza o papel da genética e das raças nos tipos de sociedades existentes. Uma das intenções de Taylor é fazer com que as pessoas brancas possam se expressar em relação a si mesmas e à questão racial sem ser demonizadas em relação a isso. Vendo como imprescindível para a nação uma homogeneidade cultural, racial e linguística, argumenta que a maior preocupação nos EUA deveria ser a limitação ou impedimento da imigração de não brancos.

O autor abordado na sequência é Alexander Duguin [12], conhecido ideólogo russo que mistura doutrinas diversas, passando pelo tradicionalismo, a nova direita francesa e o eurasianismo, pregando uma renovação do nacionalismo russo por meio das tradições europeias. Para isso, seu pensamento se apoia em dois conceitos-chave: a questão da Eurásia, através da qual Duguin acredita no papel central da Rússia como Estado e da Eurásia como civilização capaz de regenerar a nação russa. Em segundo lugar, o conceito de uma revolução conservadora. Ao contrário de prezar mudanças graduais, Duguin acredita em uma revolução conservadora para se opor ao liberalismo e avançar as pautas conservadoras. No seu livro The Fourth Political Theory, ele renuncia ao que chama de segunda e terceira teorias políticas (comunismo e nacionalismo/ fascismo) e considera o liberalismo uma ideologia totalitária em virtude de seu caráter normativo. A quarta teoria política viria para negar a modernidade como um todo. Duguin talvez tenha mais impacto fora da Rússia do que dentro, tendo inclusive participado de um debate online com Olavo de Carvalho em 2011.

A última autora abordada é Bat Ye’or [13], proeminente contrajihadista que descreve a existência de uma conspiração envolvendo a União Europeia e países de maioria muçulmana do norte da África e Oriente Médio que buscariam estabelecer o controle muçulmano da Europa, ou “Eurábia”. Seu trabalho inspirou o terrorista de extrema-direita Anders Breivik na Noruega e continua a ser debatido no campo da direita radical em relação a uma “islamização” da Europa.

A terceira e última parte do livro diz respeito aos pensadores emergentes, mais jovens que os tratados anteriormente e que propagam suas ideias principalmente através da internet. Dos cinco autores tratados, quatro são norte-americanos e um é sueco, o que revela que a direita radical europeia ainda está dominada por pensadores da geração anterior, especialmente ligados à nova direita francesa e Duguin.

Mencius Moldbug [14], apelido de Curtis Yarvin, é um ex-libertariano (ou libertário, como preferem se autodenominar no Brasil) que prega a necessidade de se livrar do “controle de pensamento” feito por uma elite progressista e rejeitar o “vírus” da democracia, fazendo uma fusão entre o libertarianismo radical e o autoritarismo no que denomina “neorreação”. O regresso a uma autoridade e hierarquia contra a democracia e o igualitarismo poderia salvar a sociedade do seu declínio. Sua utopia envolve liberdade máxima, exceto na política. A ordem econômica seria gerida por uma sociedade inteiramente privatizada, enquanto a ordem política teria o modelo de uma corporação, com o Estado privatizado encabeçado por um CEO-monarca eleito por grandes proprietários.

Apesar de suas ideias parecerem esdrúxulas, Moldbug possui contatos com o site Breitbart, Steve Bannon e o bilionário Peter Thiel, além de ter boa inserção nos meios jovens ligados à tecnologia, bem como na alt right.

Greg Johnson [15], por sua vez, também esteve próximo do libertarianismo e é editor-chefe do site Counter–Currents, que se propõe a criticar a liberdade liberal na América do Norte à luz do tradicionalismo e das ideias da nova direita europeia. Johnson é mais um pensador que foca seus esforços na questão da metapolítica, visando criar um movimento cultural e intelectual que seja capaz de promover mudanças políticas reais e, finalmente, o estabelecimento de um etno-Estado branco, uma vez que ele é defensor de uma etnopluralidade, segundo a qual todas as raças e etnias deveriam ter sua própria pátria. Johnson é o único entre os autores modernos e emergentes que expressamente revela simpatia pelo nazismo.

O terceiro pensador emergente tratado é o conhecido Richard Spencer [16], presidente do National Policy Institute, um think tank nacionalista branco fundado pelo multimilionário William Regnery II. Spencer se diz responsável pela criação do termo “alt right”. Tamir Bar-On, autor do capítulo sobre Spencer, sintetiza os contornos do seu pensamento:

Uso da internet como o principal veículo para provocar tanto conservadores quanto liberais com ideias e linguagem politicamente incorretas; rejeição do multiculturalismo liberal; desdém pelo capitalismo, já que ele tem a tendência de homogeneizar diversos povos e culturas; apoio a comunidades políticas unidas a identidades europeias brancas; o desafio a elites “heroicas”, brancas e europeias a criar uma revolução nas mentalidades e valores […] contra o multiculturalismo e a imigração; e o desejo de criar etno-Estados brancos homogêneos (“pátrias”) dos dois lados do Atlântico (2019, p. 225).

Como pode ser visto, a questão racial é central no discurso de Spencer, bem como o chamado à ação para uma direita revolucionária, antiliberal e anticapitalista que tenha como foco a metapolítica e as táticas da nova direita.

O capítulo 15 é dedicado a Jack Donovan e seu tribalismo masculino.[17] Donovan acredita que a igualdade é uma farsa, a violência é necessária e que a questão principal não é a raça, mas sim o gênero. Não somente homens brancos, mas todos os homens devem ser livres e fortes. Donovan é abertamente homossexual e prega o tribalismo masculino, uma ideologia de supremacia masculina formada ao redor da ligação entre guerreiros através de rituais de união. Na sua visão, a masculinidade é atacada atualmente por feministas, burocratas e homens ricos que buscam a passividade dos homens. Em 2013, Donovan passou a defender o que denominou de “anarcofascismo”, em que tribos de homens se unem em oposição à ordem institucional feminista, corrupta e antitribal. Donovan possui influência na chamada manosphere, uma subcultura da internet que acredita que as mulheres possuem poder em demasia, e na alt right, que adota sua posição misógina.

O último autor abordado é Daniel Friberg [18], sueco, para quem o método é mais importante do que a própria questão ideológica. Assim como outros autores citados, Friberg acredita que a mudança política só pode ser obtida através da educação, mídia e expressão criativa, ou seja, na metapolítica. Em virtude disso, Friberg tomou diversas inciativas para popularizar obras tradicionalistas, como a Arktos, maior editora de obras da direita radical e tradicionalistas, e o site Metapedia, uma alternativa à Wikipedia. Em 2015, publicou o livro The Real Right Returns, um manual de estratégias para ativistas da direita radical de como se conduzir politicamente e atacar o establishment liberal.

A obra editada por Sedgwick é de extrema importância na atualidade, permitindo compreender a pluralidade de pensamentos existentes dentro de uma direita radical que se torna cada vez mais proeminente em vários países do mundo, especialmente na América Latina, Estados Unidos e Europa.

Assim, o livro se mostra como uma importante ferramenta para todos os que buscam entender as linhas de pensamento da direita radical desde seus primórdios até a atualidade, sem, claro, esgotar todos os autores que impactam nesse meio. René Guénon e Frithjof Schuon, por exemplo, são escritores interessantes para o estudo da ala da direita brasileira encabeçada por Olavo de Carvalho, enquanto David Duke poderia ainda ser visto como uma influência para os supremacistas brancos norte-americanos.

A leitura de Key Thinkers of the Radical Right é bastante agradável; todos os capítulos contam com extensas referências e deixam em aberto um caminho para quem pretende se aprofundar em algum dos pensadores abordados. Certamente historiadores que pesquisam movimentos ligados à extrema radical tirarão bom proveito da obra, uma vez que são raros os livros que tratam de forma séria e criteriosa a respeito do tema.

Notas

3. Capítulo escrito por Elliot Y. Neaman.

4. Capítulo escrito por Reinhard Mehring.

5. Capítulo escrito por H. Thomas Hakl.

6. Os autores tradicionalistas possuem divergências entre si. Para melhor compreensão sugerimos o livro Against the Modern World: Traditionalism and the Secret Intellectual History of the Twentieth Century, também de Mark Sedgwick.

7. Capítulo escrito por Jean-Yves Camus.

8. Capítulo escrito por Stéphane François.

16. Capítulo escrito por Tamir Bar-On.

17. Escrito por Matthew N. Lyons.

18. Capítulo escrito por Benjamin Teitelbaum.

Referências

SEDGWICK, M. (org). 2019. Key Thinkers of the Radical Right: Behind the New Threat to Liberal Democracy. New York, Oxford University Press, 325 p.

SEDGWICK, Mark. 2009. Against the Modern World: Traditionalism and the Secret Intellectual History of the Twentieth Century. New York, Oxford University Press, 2009, 369 p.

Felipe Cittolin Abal –  Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. BR 285, Bairro São José. 99052-900 Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]


SEDGWICK, Mark. Key Thinkers of the Radical Right: Behind the New Threat to Liberal Democracy. Resenha de: ABAL, Felipe Cittolin. Os pensadores da direita radical: de Oswald Spengler a Daniel Friberg. História Unisinos, Porto Alegre, v.25, n.1, p.168-171, jan./abr., 2021. Acessar publicação original 

Capital et idéologie | Thomas Piketty

PIKETTY, Thomas. Capital et idéologie. Paris: Seuil, 2019. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A perspectiva histórica das ideologias das desigualdades no recente livro de Thomas Piketty. Revista de Teoria da História, v.23, n.2, p.349-357, 2020.

Flávio Dantas Martins – Universidade Federal do Oeste da Bahia. Barreiras, Bahia, Brasil. Email: [email protected].

Acesso apenas pelo link original

[IF]

Educational memory of Chinese Female Intellectuals in Early Twentieth Century – JIANG (SEH)

JIANG Lijing
Lijing Jiang /

JIANG L Educational memory of Chinese Female Intellectuals JIANG, L. Educational memory of Chinese Female Intellectuals in Early Twentieth Century. Singapore: Springer, 2018. Resenha de: GUO, Mengna. Social and Education History, v.9, n.2, p.224-226, feb., 2020.

Educational Memory of Chinese Female Intellectuals in Early Twentieth Century describes the campus life, teacher-student interaction, academic career, and ideological change of the first generation of female intellectuals trained in higher education in China as the Chinese society changed in the early 20th century.

Using the research methods of life history, oral history, and history of mentalities, the author reveals the special experiences and ideological journeys of Chinese female intellectuals by the literature works of three firstgeneration Chinese female intellectuals and other people’s interpretations and commentary on their works. It also analyzes the relationship between many factors such as society, academia and education, especially higher education, and female intellectuals.

Chapter 1 is the introduction of the whole book. It explains the emergence of Chinese intellectuals, in particular, Chinese female intellectuals. The author also illustrates two essential factors that promote the transformation of traditional Chinese intellectuals into contemporary intellectuals, and states research methods.

Chapter 2 Flexible Borderline: Beijing Female Normal School in 1917 describes the architectural structure design of Beijing Female Normal School and the relationship between its design and traditional Chinese culture. After that, the author introduces the educational life of the students of Special Training Major of Chinese Literature and Language in Beijing Female Higher Normal College and compares the traditions of female education in feudal China with the educational situation of Peking University that only recruit male. The process and obstacles of Beijing Female Normal School transformed to Beijing Female Higher Normal University are also mentioned, as well as the role played by key men during this process. All of the above indicate the variability of the external environment and the reconstruction of social order in China, providing possibilities for social and educational changes.

Chapter 3 Diversified Traditions: Early Education Life of Female Individuals describes the early life and educational experience of three firstgeneration female intellectuals in China– Cheng Junying, Feng Shulan and Lu Yin. Their early experience reveals their reasons for giving up traditional female identities and lifestyles, as well as their motivation to study. It is a very unique growth experience and life story different from the male intellectual.

In the 19th century, there were three schools of thought in the mainstream of Chinese literature academia in the 1990—Tongcheng Style, Wenxuan Style, Jiangxi Style inherited from Song Dynasty. In chapter 4 Education Situation Plagued by Academic Conflicts: Beijing Female Higher Normal College During May Fourth Movement, since Hu Shi proposed literary reform, the concept of orthodox literature ideas began to be criticized at the end of 1916, and two Chinese literature masters coming to the Special Training Major of Chinese Literature and Language of Beijing Female Normal School in August 1918 proposed to “carry on extinct studies and support marginal studies”. But this cannot stop the rejection of the new trend of thought. The reform of Chen Zhongfan and the emerging of intellectuals such as Hu Shi and Li Dazhao not only contributed to the establishment of a modern academic education system, but also provided indispensable conditions for the generation of Chinese female intellectuals.

In Beijing Female Higher Normal College, the three female intellectuals underwent the impact of traditional Chinese learning and new culture, revolutionists and reformists. Their obedience and stubborn abidance to traditions and authority were replaced by independent choice-making rights.

Chapter 5 Seeking for and Recognizing the New Identity: Female Individual’s Transmutation and Rebirth deeply describes the transformation of three females, Cheng Junying, Feng Yuanjun (Feng Shulan), and Lu Yin, in Beijing Female Higher Normal College and their academic interaction with the teacher. Meanwhile, the three female intellectuals also gradually found their true vocation and the “irreplaceable” inner aspiration and interest through constant attempts and exploration under the intricacies of influences.

Although the three Chinese female intellectuals’ early experiences and specific careers are different, they all “had the responsible sense of ‘mission in life’ inherited from Chinese traditional culture or inspired by the society behind their personal interest and pursue”. Chapter 6 Scholars and Academia: Female Individuals’ Long Journeys for Gentry introduces the educational life, academic life and family life of the three female intellectuals after they left the campus. In this period, they have encountered harsh life and challenges, but the spirit which transcends personal interest and considers culture inheritance as personal responsibility has driven them to move forward.

This book shows the changes in thoughts and interests experienced by three Chinese female intellectuals with the changes of the broad social context. At the same time, it also tries to show the special role played by higher education in promoting academic transformation and establishing a modern academic education system.

Mengna Guo – Universidad de Barcelona. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

A 500 años del hallazgo del Pacífico: la presencia novohispana en el Mar del Sur | Carmen Yuste López, Guadalupe Pizón Ríos

A despeito dos aspectos artificiais e anacrônicos, datas “redondas” de determinados eventos são marcadas pelo aumento do interesse por parte do grande público, dos meios de comunicação e do mercado editorial, gerando publicações, encontros acadêmicos e cerimônias oficiais. Tomando o México como exemplo, podemos citar as comemorações realizadas em 2010 pelo bicentenário do início do processo de independência e os cem anos da Revolução Mexicana, que geraram programas de televisão, a construção de monumentos, celebrações realizadas pelo Governo Federal em todo o País, além do envio de dezenas de milhares de livros de história e bandeiras nacionais para os lares mexicanos. Eventos da mesma magnitude estão previstos para ocorrer em 2021, envolvendo os 700 anos de fundação da cidade asteca de MéxicoTenochtitlán, os 500 anos de sua conquista pelas forças lideradas por Hernán Cortés e os 200 anos da independência mexicana.

Entre essas duas grandes celebrações nacionais, outra efeméride passou praticamente despercebida, mas gerou interessantes reflexões no âmbito acadêmico. Em 1513, uma expedição comandada por Vasco Núñez de Balboa pela região do atual Panamá alcançou o Mar del Sur. O contato europeu com os limites a oeste do Novo Mundo e com o Oceano Pacífico foi fundamental para a compreensão dos desdobramentos da presença espanhola não apenas no continente americano, mas também no seu estabelecimento na Ásia. Segundo Carmen Yuste López e Guadalupe Pinzón Ríos, esse feito teria reacendido na Coroa espanhola o sonho anteriormente perseguido por Colombo de obter acesso às míticas riquezas que se escondiam no Oriente em locais como Catay e Cipango. Leia Mais

Improving Educational Gender Equality in Religious Societies – AL-KOHLANI (SEH)

AL-KOHLANI, S. A.. Improving Educational Gender Equality in Religious Societies. United Arab Emirates: Palgrave Macmillan, 2018. Resenha de: CUEVAS, Sara Gómez. Social and Education History, v.9, n.1, p.124-126, feb. 2019.

l libro presenta una investigación interdisciplinaria realizada en base a 29 países musulmanes y 26 no musulmanes dentro del periodo de tiempo de 1960 a 2010, con el fin de dar respuesta a la “Teoría de la religión” que relaciona ciertas religiones con la desigualdad de género y la “Teoría de la modernización”, que resta importancia al papel de la religión en la desigualdad de género y asocia la desigualdad de género con factores socioeconómicos.

El estudio está compuesto por seis partes. Primero hace una introducción donde cuestiona la relación entre la equidad de género y religión. Plantea que ni el laicismo es la solución, ni el islam es la solución, y que cualquier aportación radical no será útil ya que no incluirá todas las voces de la sociedad.

Fundamenta que el derecho de las mujeres al acceso a la educación se ha cumplido en gran cantidad de países occidentales, y, sin embargo, aún queda recorrido por hacer en otros países no occidentales para que este derecho se logre. En la indagación de las posibles causas de esto, Al-Kohlani expone que en una buena parte del mundo árabe, el progreso ha sido frenado por el rechazo gubernamental.

Esta reivindicación que llevan años exigiendo, parte de liderar el cambio religioso, educativo y social sin dañar a los hombres ni a su propia imagen como mujeres musulmanas. Dentro de las contradicciones que se plantean en las diferentes posturas de los autores y autoras académicos, como los debates más amplios del mundo de la vida sobre el papel de la religión en el Estado, el trayecto que parece discernir, es el diálogo entre los diversos resultados de las investigaciones y muy diversos grupos feministas para llegar a acuerdos que logren el derecho al acceso a la educación de todas las mujeres del mundo árabe.

Durante los siguientes capítulos, intenta traer la relación entre la igualdad de género en el acceso a la educación, la religión y la modernización.

Para ello, presenta un método con el que categoriza el nivel de conservación religiosa de los gobiernos para analizar los 55 países musulmanes y no musulmanes en los 50 años. Muestra los datos y el método que se ha utilizado para este análisis, dónde desarrolla cómo se eligieron los países que han sido objetos de este estudio y la justificación para cada variable aportada. Asimismo, argumenta cómo se realizó el Índice de religiosidad de la Constitución de Al-Kohlani y las carencias que éste presenta.

En el siguiente capítulo, indaga en la relación entre las constituciones religiosamente conservadoras y de la modernización, y la posible influencia de varios factores como la urbanización y la fertilidad. Examina si las religiones tienen relación con el acceso igualitario a la educación, indagando en las posibilidades de que la modernización disminuya este efecto.

A continuación, se presenta un estudio de caso donde se expone la historia religiosa de Turquía e Irán en el siglo XX y por qué hoy se considera Turquía como un país secular e Irán como un país conservador, así como la buena situación educativa y laboral de ambos países de las mujeres. El debate entre las personas que han defendido el laicismo y aquellas personas que han mantenido sus creencias tradicionales es más rígido en Turquía que en Irán. De este modo, Al-Kohlani plantea que podría ser una razón más por la cual en Irán, la ciudadanía se ha mostrado menos resistente al cambio que en Turquía.

Finalmente, el capítulo 6 concluye el libro con recomendaciones para los responsables de las políticas e ideas para futuros estudios de investigación.

Entre otras conclusiones, destacar que cada aportación, desde su perspectiva, busca lograr este derecho para todas las mujeres, por ejemplo, algunos grupos feministas religiosos han argumentado que la educación de las mujeres es requerida por la religión musulmana, por lo que este debate sobre el desigual acceso de las mujeres a la educación no puede explicarse mediante la religión. Tanto el feminismo religioso como el no religioso busca la igualdad y la justicia para y con todas las mujeres. Hallar ese encuentro de diálogo e interacción entre los diferentes feminismos, es clave para el futuro libre de todas las mujeres.

Sara Gómez Cuevas – Universidad de Barcelona. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

History Education and (Post)Colonialism. International Case Studies – POPP et al (IJRHD)

POPP Susanne1
Susanne Popp. www.researchgate.net /

POPP S History Education and post colonialismPOPP, Susanne; GORBAHN, Katja; GRINDEL, Susanne (eds). History Education and (Post)Colonialism. International Case Studies. Peter Lang, 2019. Resenha de: HAUE, Harry. International Journal of Research on History Didactics, n.40, p.245-252, 2019.

This anthology on colonialism discusses the reasons for its upcoming in different parts of the world as a fundamental contribution to the development of modern times, and the substantial impact the decolonization process has on the new modern era after World War II. In the introduction the editors make an overview of the content of the book, which has the following structure: Part 1: Two essays, Part 2: Three narratives, Part 3: Five debate contributions and Part 4: Three approaches.

The editors also present the fundamental problems in the study of colonialism and postcolonialism, and quote UN resolution 1514 from 1960: All peoples have the right to self-determination; by virtue of that right they freely determine their political status and freely pursue their economic, social and cultural development. Consequently, one of the questions raised in education is to what extent actual history teaching in schools represents and communicates the items of colonization and decolonization as well in the former colonies and in the countries of colonizers. The process of globalization has in the last decades made this question urgently relevant and moreover inspired to formulate the question of culpability.

In the wake of decolonization and globalization, especially Europe and the US have experienced a migration movement, which inspire classes to reflect on questions of inequality, and the former subordinates right to travel to high developed countries. This challenge to the national history might lead to fundamental changes in syllabus and teaching, which prompt a focus more on global history and postcolonial studies. As the editors point out: history educationalists need to take the issue of the ‘decolonization of historical thinking’ seriously as an important task facing their profession.

It is not possible in this review to refer and comment all 13 contributions in detail. However, I will present a thematic discussion of the four parts.

In part 1 Jörg Fisch, professor of History, University of Zürich, Switzerland, discusses the concepts of colonization and colonialism. He presents and reflect on the conceptual development on from the Latin idea of ‘colere and colonus’, in the late renaissance changed into ‘colonialist and colonialism’. The last concept is ‘aimed at making political, economic, cultural and other gains at the cost of his competitors and is often consolidated into colonial rule.’ Whereas the colonus occupied contiguous territory, the colonialist thanks to his technological superiority conquered land distant from the colonizer’s own country. The result was foreign rule, which required a new theoretical basis: Francisco de Vitoria postulated in 1539 that all peoples had the right to free settlement, trade and free colonization.

Another theory was that the indigenous populations had the right to be fully sovereign. Above those two theories, raw power was to decide to what extent the one or the other should be respected, if any of them. When the national state in the 19th century came into being in Europe and when ideas from the French Revolution gained impact in the Americas, independence was the answer. But this was not the end of colonialism which developed in the same period in the not yet unoccupied areas of Asia and Africa. Colonies became in the period from 1850 to 1914 part of European based empires divided between the big powers at the conference in Berlin in 1884-85. The process was called imperialism. World War I changed this development fundamentally, Germany lost all its colonies and the indigenous elite in the colonies began to question their subaltern status. After World War II the process of decolonization began, and the concept of anticolonization gained momentum in the aforementioned UN declaration form 1960. As Fisch underlines, the postcolonial world was not synonymous with a just world. In ‘Colonialism: Before and After’ Jörg Fisch has written a well-structured presentation of the main lines of this complex phenomenon and the conceptual development. His article is an appropriate opening to the following chapters in the anthology.

Jacob Emmanuel Mabe, born and raised in Cameroon, now a permanent visiting scholar at the French Center of the Free University of Berlin, has written a chapter on: ‘An African Discourse on Colonialism and Memory Work in Germany’. His aim is to demonstrate the significance of the concept of colonialism in intellectual discourse of Africans and to show how the colonial question is discussed in Germany.

It was the intellectuals among the colonial peoples who formed the critical discourse against European colonial rule in Africa, which Mabe calls a ‘ruthless territorial occupation’. The first materialization of this opposition to European rule was the formation of the ‘Pan- African Movement’ maybe inspired by the US-based initiative: ‘Back to Africa Movement’, which culminated in the founding of the Republic Liberia in 1879. On African soil, however in the interwar years a new concept was developed by especially Leopold Sédar Senghor, who was to become one of the most dominant voices among African intellectuals. He and his followers used the concept ‘Negritude’ and the aim was to create a philosophical platform for the promotion of the African consciousness by means of a literary current, a cultural theory and a political ideology. Mabe gives a short description of the reasons for the many barriers for the fulfilment of Senghor’s program.

Mabe ends his article with a discussion of the German attitudes to its colonial past. When the decolonizing process took off after World War II, the Germans were mentally occupied with the Nazi-guilt complex, which in comparison to the regret of the brutal treatment of the Africans, was much more insistent. Nonetheless, Mabe indicates that researchers of the humanistic tradition in the two latest decades have ‘presented some brilliant and value-neutral studies which do justice do (to) both European and, in part African epistemic interest. However, a true discipline of remembering which is intended to do justice to its ethics and its historical task can only be the product of egalitarian cooperation between African and European researchers.’ Florian Wagner, assistant professor in Erfurt, ends his chapter with a presentation of African writers in modern post-colonial studies. In competition with the USSR Western historians invited African writers to contribute to a comprehensive UNESCO publication on the development of colonialism. Wagner’s aim is to underline that transnational historiography of colonization is not, as often has been thought, a modern phenomenon, but has been practiced by European historians over the last century. His main point is that although nationalism and colonialism went hand in hand, transnational cooperation in the colonial discourse has been significant. It is an interesting contribution, which partly is a supplement to the chapter of Fisch according to use of concepts about the colonial development. It brings a strong argument for the existents of a theoretical cooperation between the European colonial masters, notwithstanding their competitive relations in other fields.

This statement can give the history teacher a new didactical perspective, as Wagner emphasizes in his conclusion: ‘Colonialism can provide a basis of teaching a veritable global history – a history that shows how globality can create inequality and how inequality can create globality.’ Elize van Eeden, professor at the South West University, South Africa, has written a chapter on: ‘Reviewing South Africa’s colonial historiography’. For more than 300 years South Africa has had shifting colonial positions, and consequently the black and colored people had to live as subalterns. The change of government in 1994 also gave historians in South Africa new possibilities, although the long colonial impact was difficult to overcome. For a deeper understanding of this post-colonial realities it is important to know African historiography in its African continental context. Elize van Eeden’s research shows that the teaching in the different stages of colonialism plays a minor role in university teaching. Therefore, new research is needed, exploiting the oral traditions of the subaltern people, and relating the local and regional development to the global trends. As van Eeden points out: ‘A critical, inclusive, comprehensive and diverse view of the historiography on Africa by an African is yet to be produced.’ Van Eeden’s contribution gives participant observers insight into especially South Africa’s historiography and university teaching and provide a solid argument for the credibility of the former quotation.

In the third chapter on narratives, written by three Chinese historians: Shen Chencheng, Zhongjie Meng and Yuan Xiaoqing: ‘Is Synchronicity Possible? Narratives on a Global Event between the Perspectives of Colonist and Colony: The Example of the Boxer Movement (1898-1900)’, the aim is to discuss the didactical option partly by including multi-perspectivity in teaching colonialism and multiple perspectives held by former colonies and colonizers, instead of one-sided national narratives, partly teaching changing perspectives, instead of holding a stationary standpoint. Another aim is to observe ‘synchronicity of the non-synchronous’ inspired by the thinking of the German philosopher Reinhard Koselleck. The chapter starts with a short description of the Boxer War, which forms the basis for an analysis of the presentation of the war in textbooks produced in China and Germany, i.e. colony and colonizer. Then the authors provide an example to improve synchronicity in teaching colonialism, followed by didactic proposals.

The Boxer War ended when a coalition of European countries conquered the Chinese rebellions and all parties signed a treaty. Germany in particular demanded conditions which humiliated the Chinese. This treaty is of course important, however at the same time, one of the Boxer-rebels formulated an unofficial suggestion for another treaty, which had the same form and structure as the real treaty, however, the conditions war turned 180 degrees around, for example, it forbade all foreign trade in China. The two treaties were in intertextual correspondence and expressed the demands of the colonizer and the colonized. The question is whether the xenophobic Boxers in fact were influenced by western and modern factors or whether the imperialistic colonizers were affected by local impacts of China? The ‘false’ treaty was used as a document in the history examination in Shanghai in 2010, with the intention of giving the students an opportunity to think in a multi-perspective way, and to link the local Chinese development to a global connection. Nonetheless, the didactical approaches in history teaching in schools are far behind the academic state of the art. It is an interesting contribution to colonialism, but it is remarkable that the authors do not use the concept of historical thinking.

In the third part of the anthology, there are five contributions. Raid Nasser, professor of Sociology, Fairleigh Dickinson University, discusses the formation of national identity in general and its relations to cosmopolitanism. The idea of a global citizenship conflicts with nationalism and the differentiations according to social, economic and ethnic divisions, and Kant is challenged by Fanon.

Nasser’s own research concerns the history textbooks in the three counties where the state has a decisive say in determining the content of those books and therefore it might have a decisive influence on the identity formation of the pupils, in this case from the year four to twelve. How much room is there for cosmopolitanism? This is a question which Nasser has thoroughly addressed in this chapter.

Kang Sun Joo, professor of Education, Gyeongin National University South Korea, discusses the problems with the focus on nation-building in the history teaching in former colonies and the need for new ‘conceptual frames as cultural mixing, selective adoption and appropriation.’ She gives an interesting view on the conformity of western impact on Korean history education.

Markus Furrer, professor of History and History Didactics, teacher training college Luzern, examines post-colonial impact on history teaching in Switzerland after World War II. He has the opinion that we all live in a post-colonial world, including countries with no or only a minor role in colonial development. He emphasizes that there are ‘two central functions of post-colonial theory with relevance to teaching: (1) Post-colonial approaches are raising awareness of the ongoing impact and powerful influence of colonial interpretive patterns in everyday life as well as in systems of knowledge. (2) In addition, they enable us to perceive more clearly the impact of neo-colonial economic and power structures.’ He analyzes six Swiss textbooks and concludes that there is a need in this regard for teaching materials which enable students to understand and interpret the construction and formation process which eventually end with ‘Europe and its others’.

Marianne Nagy, associate professor of History, Karoli Gáspar University, Budapest, has made an examination of history textbooks used in Hungary in 1948-1991 on the period between 1750 and 1914 when Hungary was under Austrian rule. This is an examination of Hungary’ s colonial status seen from a USSR- and communistinfluenced point of view. In the communist period only one textbook was accepted, and in this book, Austria was perceived as a kind of colonial power which controlled Hungary for its own benefit. The communist party had the intention to present Habsburg rule in a negative light, with the wish to describe Hungary’s relation to USSR as a positive contrast. Today the Orbán-led country uses the term colony in relation to the EU.

Terry Haydn, professor of Education, University of East Anglia, has made an explorative examination of how ‘empire’ is taught in English schools. His findings are somewhat surprising. In the history classes of the former leading colonizing country, most schools taught ‘empire’ as a topic, however with emphasis on the formative process of colonization and not ‘the decline and fall’. Haydn has with this short study focused on an item which should be the target of more comprehensive research.

The last three chapters concern the teaching of colonialism in a post-colonial western world. Philipp Bernard, research assistant at Augsburg University in Germany, discusses the perspectives in teaching post- against colonial theory and history from below. His basic assumption is that: ‘No region on the earth can evade the consequences of colonialism’, therefore, ‘A post-colonial approach emphasizes the reciprocal creation of the colonized and the colonizers through processes of hybridization and transculturation.’ The aim of teaching, in this case in the Bavarian school, is to achieve decolonization of knowledge. The author gives interesting reflections from his teaching which could be of inspiration in the schools both of colonized and colonizing countries.

Dennis Röder, teacher of History and English in Germany, writes about ‘visual history’ in relation to the visual representation of Africa and Africans during the age of imperialism. The invention of the KODAK camera in 1888 brought good and cheap pictures, which could be printed and studied world-wide. Soon those pictures could be used in education, and thereby history teaching got a new dimension, and a basis for critique of the white man’s brutal treatment of the natives. These photos were used in the protests against Belgian policy in Congo. Röder emphasises that the precondition for the use of photos as teaching material is the need for some methodological insight both on behalf of the pupils and students. Moreover, it is important to select a diverse collection of photos so that all sides of life in the colonies are represented. Then it would be possible to make a ‘step toward the visual emancipation and decolonization of Africans in German textbooks.’

Karl P. Benziger, professor of History, State University of New York, College at Fredonia, in the last chapter of the anthology has reflected on the interplay between the war in Vietnam as a neocolonial enterprise and the fight for civil rights in the US. Benziger discusses different approaches to teaching those items in high schoolclassrooms. An interesting course was staged as a role play on the theme: The American war in Vietnam. The purpose of the exercise was ‘to develop students’ historical skills through formulating interpretations and analyses based on multiple perspectives and competing narratives in order to understand the intersection between United States foreign and domestic policy from a global perspective.’

The editorial team should be acknowledged for its initiative. The anthology could be perceived as a didactical patchwork which gives inspiration to new research in the subject matter as well as innovations in history didactics. The current migration moveme would prompt to include colonialism and post-colonialism in history teaching and moreover these aspects are part of any pupil’s/student’s everyday life.

Harry Haue

Acessar publicação original

[IF]

 

Estranho à nossa porta | Zygmunt Bauman

O presente trabalho de Zygmunt Bauman, é muito rico e capaz de nos informar e, mais que isto, capaz de tornar compreensível um tema contemporâneo, que clama por uma atenção e solução. O tema abordado pelo eloquente sociólogo e filósofo polonês (1925- 2017) se refere à questão da “crise migratória”, que em suas próprias palavras “inunda os noticiários” que comunica seu “avanço sobre a Europa”. Leia Mais

The Age of Agade. Inventing empire in ancient Mesopotamia – FOSTER (PR)

FOSTER Benjamin R
Benjamin R. Foster and Karen Polinger Foster— 2011 Felicia A. Holton Book Award . www.archaeological.org/

FOSTER B The age of agadeFOSTER, B. R. The Age of Agade. Inventing empire in ancient Mesopotamia. Londres y Nueva York: Routledge, 2016. 438p. Resenha de: GARCÍA, J. Álvares. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, Murcia, p.185-189, 2019.

Profesor de Asiriología en la Universidad de Yale, Benjamin R. Foster es un gran especialista en estudios sobre el Próximo Oriente antiguo. De entre sus líneas de investigación están la Historia, general, económica y social de Mesopotamia así como también sus estudios sobre literatura mesopotámica contando con trabajos como el galardonado Civilizations of Ancient Iraq (2010) o la obra Before the Muses (última edición de 2005), una antología de la literatura acadia ya considerada una obra clave en los estudios sobre historia intelectual del Próximo Oriente antiguo.

En el presente trabajo, encuadrado en esa línea de investigación más centrada en los estudios históricos, la intención del autor es mostrar las características políticas sociales, económicas y culturales que se desarrollaron en la región de Mesopotamia durante el periodo de Akkad y por qué motivos este periodo fue visto como un referente a lo largo de la Historia posterior del Próximo Oriente durante la antigüedad.

El primer capítulo está dedicado a la historia política de Akkad. Este periodo comienza con la llegada al trono de Kish de Sargón y sus diferentes campañas de conquista, ganándose la fama de gran rey con la que se le recordará en periodos posteriores. No obstante, su hijo y sucesor, Rimush, tendrá que hacer frente a un conjunto de revueltas tras la muerte de su padre; incluso es posible que acabara sus días asesinado. Tras esto, su hermano Manishtushu alcanzó el trono iniciando un programa de conquistas y de consolidación de las mismas. Posteriormente, su hijo Naram-Sin toma las riendas del estado y su reinado constituirá el apogeo del Imperio. Al igual que antecesores suyos tuvo que hacer frente a levantamientos, por lo que es posible que el recuerdo de la represión ejercida contra los sublevados le valiera la fama posterior de rey soberbio. Durante el reinado de Naram-Sin se llevó a cabo un amplio programa constructivo y una serie de reformas administrativas y burocráticas. En política exterior, junto a las conquistas también se desarrolla la diplomacia, con matrimonios dinásticos con reinos fronterizos. Por último, el sucesor de Naram-Sin, Sharkalisharri será el último gran rey de Akkad. Finalmente, las sublevaciones e invasiones exteriores, en un contexto de crisis económica y descontrol territorial, provocarán la caída de este proyecto político.

El autor reserva el capítulo segundo a dar las claves de la sociedad durante el periodo acadio. Seguramente sea el régimen ecológico de la zona norte de Mesopotamia la que de coherencia al territorio original acadio frente a la llanura aluvial del sur, Sumer. Es en esta zona donde se desarrolla (pero no exclusivamente) un sustrato etno-lingüístico acadio. Si en términos jurídicos debemos hablar de dos grupos de población: libres y esclavos, vemos que en términos socioeconómicos estos se diversifican en relación a las propiedades y los medios con los que cuentan. Las relaciones entre los miembros de las distintas clases sociales se rigen por redes clientelares y de patronazgo. De esta forma, la administración se organiza como una red de patrones y clientes que tienen en su cúspide al propio rey, seguido por sus familiares más allegados, administradores centrales, provinciales, cultuales, militares y todo el personal administrativo dependiente de ellos.

En el capítulo tres, el autor hace una descripción de los asentamientos acadios y de aquellos centros constatados arqueológicamente desde donde el poder acadio ejercía su autoridad tanto en Mesopotamia como en la periferia. De los diferentes asentamientos se destaca la especial importancia dada por parte de la administración imperial a la explotación económica de sus territorios circundantes así como a su papel estratégico como centros de recepción de materias primas desde la periferia, como Tell Brak, Assur o Susa. Finalmente, el autor reflexiona sobre si se puede calificar al estado acadio como Imperio, afirmando que sí si atendemos al programa de conquistas y control del territorio y a la ideología real que se desarrolla de “dominio universal”. En relación al anterior, en el capítulo cuatro se explican el conjunto de bases económicas y las actividades y trabajos desarrollados en torno a ellas. Las principales actividad económica es la agricultura y la ganadería, donde era fundamental la explotación de la región del sur mesopotámico (Sumer). En cuanto al trabajo, éste estaba basado en trabajadores dependientes a tiempo completo y trabajadores reclutados en épocas muy específicas, todos retribuidos mediante sistemas de raciones. En relación a la ganadería, destacaba la oveja por su lana, la principal materia de transformación y exportación. En lo referente al comercio y transporte, el autor destaca los cursos fluviales como vía principal de comunicación, además de ser fuente de recursos pesqueros. La última parte del capítulo está dedicada al conjunto de actividades de transformación de materias primas en alimento, destacando la molienda y la producción de cerveza.

El siguiente capítulo versa sobre el conjunto de actividades de tipo artesanal/industrial que se desarrollaron en el periodo acadio. Muchas son herederas de épocas anteriores, pero durante ésta podemos apreciar una alta estandarización producto de una mayor concentración de artesanos en talleres reales y una mayor cantidad de bienes gracias a, por un lado, una mayor importación de materias primas y, por otro, una mayor demanda por parte de las élites. Así pues, el autor comienza analizando la producción cerámica; pero destaca sobre todo los trabajos en metal, piedra y madera. alcanzándose una gran maestría técnica en ellas. También hay que destacar los textiles en lana o en piel; así como las artesanías más selectas como la ebanistería o los aceites perfumados.

En lo que respecta al capítulo seis, dedicado a la religión, el autor destaca una serie de innovaciones pese a la gran continuidad en la evolución de la religiosidad mesopotámica. Las divinidades acadias que se incorporan al panteón mesopotámico destacan por ser divinidades celestiales: Shamash, Sin, Ishtar, etc. y por participar en una mitología guerrera. De entre las mayores innovaciones está la deificación de ciertos reyes en vida, como Naram-Sin, junto a la elevación de Ishtar a lo alto del panteón nacional y la política de integración de cultos y divinidades acadias con sumerias. Si bien podemos identificar ciertos templos particulares del periodo acadio, en la mayor parte de los santuarios reina la continuidad. En estos se aprecia la vinculación entre religión y política puesto que son los reyes los que llevan a cabo ritos y realizan ofrendas suntuosas. Entre las formas de piedad colectiva siguen estando las festividades, las cuales carecen de un calendario estandarizado para todo el imperio.

En cuanto al aspecto militar, tratado en el capítulo siete, vemos como los reyes acadios recogen una serie de tradiciones anteriores, como el denominarse elegidos por Enlil para reinar sobre Mesopotamia. Pero, por otra parte, fomentaron el aspecto guerrero del rey y sus capacidades personales como aptitudes necesarias para ejercer la realeza. En lo tocante a la composición y armamento del ejército, vemos que esto no cambia demasiado respecto a periodos anteriores, exceptuando la organización del mismo que es puesto bajo la autoridad de militares profesionales.

El corto capítulo ocho está dedicado al comercio y las diferentes formas de intercambio. Como ya se ha dicho, la llanura mesopotámica carece de una serie de materias primas fundamentales que debían importarse; en época acadia lo que se aprecia es un incremento en dichas importaciones. En torno a la naturaleza de este comercio, la existencia de mercaderes privados que podían estar también al servicio de las grandes instituciones, la existencia de medios de pago estandarizados como la plata y la cebada, así como también de tasas, impuestos y precios estipulados indican que la economía real del periodo era plenamente tributaria y no exclusivamente redistributiva.

El capítulo nueve viene a tratar todo lo referente a las artes y a la producción literaria. Aquí podemos apreciar una línea transversal en el arte acadio, la inclinación por representar la ideología real basada en el militarismo, la fuerza, la heroicidad y la especial relación del rey con los dioses. La escultura, el relieve e incluso la glíptica, desarrollan estos temas y en ellas se alcanza una alta perfección técnica considerándose el periodo clásico de la escultura en Mesopotamia. En literatura sobresale la princesa y sacerdotisa Enheduanna. Esta poetisa (primera de la literatura mundial) también sirvió con su obra a la ideología real a través de sus himnos a los dioses y a los reyes. En prosa destacan las inscripciones conmemorativas, y la epistolografía, que adquieren un importante valor literario. En esta producción literaria hay que destacar el uso paralelo del acadio y el sumerio como lenguas eruditas, junto al desarrollo de la música que acompañaba la representación de las composiciones literarias. Por último, la matemática y la cartografía cuentan con una importante presencia asociada a la administración.

Una vez señalada la identidad del arte y la producción intelectual, el autor centra el capítulo diez en definir los valores humanos acadios, en otras palabras, la identidad acadia. En primer lugar a través de ciertos aspectos de la vida cotidiana como el nacimiento, la niñez y la educación, la vida familiar y la casa y la muerte y el funeral. Pero el autor también analiza los sentimientos y las emociones; de las cuales solo tenemos testimonio de las experimentadas por las élites. Aquí el autor comenta como se entendía en el periodo acadio la felicidad y la tristeza, el amor y la sexualidad y el espíritu competitivo entre los miembros de la élite que pugnaban por ascender dentro de la administración imperial.

En el capítulo once, el autor reflexiona sobre la memoria de los reyes de Akkad en periodos posteriores de la historia de Mesopotamia. Si bien algunos de ellos siguieron siendo reverenciados e incluso se mantuvo su culto funerario, otros recibieron el castigo y la deshonra. Sin embargo, en su gran mayoría las estelas de los reyes acadios permanecieron en los santuarios en donde fueron erigidas, siendo copiadas por escribas y eruditos. De hecho, el autor traza una relación entre menciones a los reyes acadios en la literatura profética posterior y los hechos contados en las estelas, por lo que dichos presagios se inspiraban en estas narraciones. Las crónicas posteriores no se olvidaron tampoco de los reyes acadios generándose incluso en torno a ellos una rica literatura épica. Por su parte, el legado acadio se aprecia en los nombres y titulatura de muchos reyes posteriores, queriendo emular la fuerza y poder de sus antecesores.

El último capítulo de la obra consiste en una reflexión sobre los estudios en torno al periodo acadio. Así pues, su presencia en la historiografía sobre el próximo oriente antiguo comienza con el descubrimiento, entre mediados y finales del siglo XIX, de textos e inscripciones que hacían referencia a los reyes acadios. A partir de aquí se sucedieron durante la primera mitad del siglo XX los hallazgos y las interpretaciones sobre quiénes eran y de donde procedían. Y fue a partir de entonces cuando se empezaron a publicar las primeras síntesis. No obstante, no fue hasta el descubrimiento de los archivos de Ebla en 1975 cuando se empezó a contar con un volumen importante de información.

De este modo, Benjamin R. Foster nos ofrece una completa y detallada síntesis del periodo acadio. Podemos ver cómo el denominado Imperio de Akkad hereda una serie de procesos históricos, sociales y económicos que se iniciaron en etapas previas, así como también un conjunto de estructuras políticas e ideológicas que recogen los reyes acadios. Sin embargo, este conjunto de características heredadas se potencian en esta etapa a todos los niveles: una más alta concepción de la realeza, una burocracia estatal más sólida, una explotación de los recursos más intensiva, un deseo de compenetración de las identidades socioculturales que componían Mesopotamia. Una aceleración de procesos que alcanza el apogeo en durante el reinado de Naram-Sin. Se generó así un conjunto de características exclusivas sin las cuales no podríamos explicar la historia posterior. De esto se dieron cuenta incluso los propios antiguos, reteniendo en su memoria a los poderosos reyes acadios.

No obstante, el profesor Foster es demasiado optimista al calificar de “Imperio” al proyecto político de los reyes acadios. Esto va más allá de un simple calificativo, puesto que el concepto histórico de “imperio” encierra unas connotaciones ideológicas y unos desarrollos políticos, sociales, económicos y culturales mucho mayores que aquellas a las que llegaron los reyes de Akkad. Sin lugar a dudas este periodo marcó la historia posterior de Mesopotamia en particular y del Próximo Oriente en general, dejando una fuerte impronta en el imaginario colectivo de la región. No obstante, aquellos que defienden la naturaleza imperial del estado acadio, se dejan llevar por las fuentes posteriores que tanto veneraron la tradición de aquellos reyes. Si estudiamos la naturaleza del periodo en su contexto, vemos un alcance limitado del “Imperio” tanto en su plano ideológico como fáctico.

En este sentido, hay que decir que el debate no cosiste en preguntarse si Akkad fue o no un imperio, un error metodológico por el cual se pretende adscribir el hecho a un concepto historiográfico convirtiendo así el concepto y no el hecho en el objeto último de nuestra investigación, perdiendo por tanto el concepto su capacidad de ser herramienta explicativa del hecho histórico. Por este motivo, en primer lugar, debemos preguntarnos, ¿qué es un imperio? Si lo estudiamos desde una perspectiva más amplia, podemos ver que, a lo largo de la historia, el denominador común de todo imperio es su ideología, por lo tanto, no podemos disociar imperio de imperialismo. En este sentido, el profesor Mario Liverani hace una interesante reflexión sobre el concepto “misión imperial” en su recentísima obra, Assiria. La preistoria dell’imperialismo, Bari: Laterza, 2017. Según este concepto, la clave para poder calificar una estructura política de imperio es la necesidad de conquistar, unificar, ordenar y gobernar el mundo, generándose unas estructuras políticas e ideológicas que se derivan de este conjunto de intenciones.

Siguiendo esta norma, no podríamos calificar de imperio al estado que crean los reyes acadios. Para empezar, los afanes de dominio universal de los que hacen gala los reyes acadios no corresponden a una ideología imperialista, sino más bien a una propaganda real propia del periodo por la que desean legitimar su gobierno a través de sus propias cualidades guerreras, heroicas y, en ciertos casos, divinas. Esto se aprecia además en que los reyes de Akkad, una vez unificada Mesopotamia, no dirigen empresas de conquista más allá, sino más bien desarrollan una serie de campañas destinadas a mantener bajo control puntos estratégicos necesarios para el abastecimiento de materias primas. Esto igualmente lo vemos en la producción artística y literaria, encaminada a servir de canal de propaganda de la realeza y no a ser la muestra de la gloria y el poder el supuesto imperio.

En su vertiente más económica, la posición de vanguardia que toma la región de Akkad frente a Sumer no se debió tanto a la política económica activa de los reyes acadios, sino que responde a una dinámica ecológica por la cual los territorios aguas arriba de los dos grandes cauces fluviales tienen ventaja sobre las tierras que hay en la llanura aluvial, cuyas aguas tienden a la salinidad y el estancamiento. Si bien no podemos negar que el dominio acadio sobre toda Mesopotamia y ejercido desde esa región del norte (económicamente más favorable) pudiera acelerar el proceso, tampoco podemos afirmar de ninguna manera que fuera una política consciente de los reyes acadios. En primer lugar, porque es un proceso ecológico que se encuadra en un marco cronológico mucho más amplio, que se inició antes de las conquistas de Sargón de Akkad y que continuará tras la caída del dominio acadio, con la excepción del periodo de gobierno de la III dinastía de Ur y sólo gracias a los ingentes esfuerzos de sus gobernantes por revertir dicho proceso.

Igualmente, en su faceta socio-cultural, no podemos adscribir a los reyes acadios el que el elemento semítico de la sociedad se anteponga al elemento sumerio. Esto tiene un proceso paralelo al ecológico del que hemos hablado anteriormente. Se trata de un proceso etnolingüístico por el cual aquellas lenguas que encuentran facilidades de traducción y reproducción en otras del entorno tienden a perpetuarse. En este sentido, el sumerio, pese a haber sido la lengua en la que se escribieron los primeros textos y constituir la base cultural de los primeros estados de Mesopotamia, no deja de ser un grupo etnolingüístico aislado, sin paralelos en otras lenguas. Por el contrario, el acadio, como lengua perteneciente al tronco semítico, encuentra fácil traducción y perpetuación en otras lenguas del entorno, como el eblaíta; por lo tanto, la fluidez de información es mucho mejor entre distintos territorios. Así pues, de forma semejante a lo que se ha comentado sobre el proceso ecológico que se desarrolla en Mesopotamia, el proceso etnolingüístico que favorecía al elemento acadio sobre el sumerio pudo ser acelerado por los reyes acadios, pero no podemos adscribirles a ellos el mérito de tal hecho puesto que continuará en periodos posteriores cuando los reyes acadios ya eran tan sólo un recuerdo y el sumerio quede relegado por completo al papel de lengua erudita.

Así pues, calificar de “Imperio” al estado unificado de Mesopotamia bajo el gobierno de la dinastía de Akkad sería algo erróneo. Pese a esto, no podemos obviar el hecho de que no se trató de un estado territorial más, puesto que se implementan muchas de las estructuras políticas y económicas previas, así como se aceleran muchos de los procesos históricos sin los cuales no podríamos entender la Historia posterior del Próximo Oriente. Por este motivo, Mario Liverani, en la obra conjunta que él mismo edita, Akkad, the first world empire: structure, ideology, traditions, Padova: Sargon, 1993; recurre al término de “red imperial”. Según este concepto, el estado acadio no habría cambiado las estructuras políticas y económicas previas, sino que se habría asentado sobre ellas controlando exclusivamente las relaciones entre las mismas, convirtiéndose así el estado central en punto de intersección de dichas estructuras.

Juan Álvarez García – Universidad Autónoma de Madrid.

Acessar publicação original

[IF]

 

Brasil – China / Boletim do Tempo Presente / 2019

Apresentação

As relações entre Brasil e China vem se desenvolvendo a passos largos na última década. Com o intuito de divulgar a língua e a cultura chinesa, o governo chinês desenvolver parcerias com universidades ao redor do mundo para a criação de Institutos Confúcio.

Em Recife, a Universidade de Pernambuco desenvolveu uma próspera parceria ao longo de mais de 6 anos com o Instituto Confúcio e com a CUFE (Universidade Central de Finanças e Economia), tendo um Seminário Internacional que conta com a participação de diversos pesquisadores dos dois países.

Nesta edição especial, são publicados parte dos artigos apresentados no evento, dando destaque aos da área de economia e de tecnologia.

Ademir Macedo Nascimento

Acessar dossiê

China / Boletim do Tempo Presente / 2019

Apresentação

A aproximação entre a Universidade de Pernambuco e a CUFE (Universidade Central de Finaças e Economia da China) vem trazendo grandes resultados para o meio acadêmico, em especial na área de Administração.

Tal aproximação só foi possível devido ao trabalho do Instituto Confúcio da UPE, que atua em Pernambuco há mais de 6 anos e já permitiu que diversos alunos dos cursos de línguas e cultura pudessem conhecer a China.

Essa rica oportunidade culminou na realização de dois Seminários Internacionais com pesquisadores brasileiros e chineses apresentando suas pesquisas e realizando um intercâmbio de conhecimento. Para ambos os lados, essa é uma parceria proveitosa, pois permite que se conheça mais sobre o mercado de cada região e como parcerias econômicas vem sendo desenvolvidas pelos dois países.

Nesta edição apresentamos artigos sobre a China focados nos diversos aspectos que as pesquisas vem focando recentemente.

Ademir Macedo Nascimento

Acessar dossiê

Os papéis da Inquisição. Conservação e dispersão na Europa, América e Ásia / Revista de Fontes / 2018

O legado documental das Inquisições: reflexões sobre a sobrevivência dos arquivos do Santo Ofício.

Falar do património documental legado pelos diferentes processos de abolição dos tribunais inquisitoriais ibéricos e romano significa algo de muito diverso dependendo das historiografias que dele se ocupam. Os cartórios dos Conselhos de Portugal e de Espanha tiveram maior fortuna que o arquivo da Congregação do Santo Ofício de Roma, o qual perdeu muito do seu acervo durante as suas deslocações. Não obstante, os cenários são contrastantes: os três tribunais peninsulares portugueses conservaram a sua documentação, enquanto que o de Goa foi destruído. Quanto aos tribunais que dependiam do Consejo de Madrid, quase todos viram os seus fundos desaparecer, com excepções notáveis como os de Cuenca, Toledo, Canárias e o tribunal do México, com jurisdição sobre parte da América espanhola e Filipinas.

O dissemelhante destino dos cartórios inquisitoriais não gerou o mesmo tipo de respostas nos vários países. Os estudos sobre as inquisições reflectiram, em larga medida, as prioridades das sociedades liberais nascentes, bem como, por seu turno, imperativos etiológicos das novas nações americanas. No entanto, as historiografias oitocentistas, apesar dos caminhos autónomos que trilharam, das fontes que os particularismos nacionais e intelectuais convocaram para apreciar o fenómeno histórico do Santo Ofício, não deixaram de convergir em topoi comuns. Temas como a censura, o atraso cultural ou a dissidência geraram inquietações reflexivas, cujas respostas procuraram os estudiosos encontrar em documentos que mais directamente ilustraram a manifestação persecutória / repressiva dos tribunais, como as listas de autos-da-fé ou, sobretudo, os processos inquisitoriais. Com efeito, esta tipologia de fonte adquiriu uma projecção transversal às diferentes historiografias, que fomentaram práticas de edições integrais de processos e contribuíram para uma tendencial centralidade dos mesmos no apreciar da fenomenologia inquisitorial. Uma das consequências da preponderância desta documentação foi, provavelmente, o relativo atraso que gerou quanto à dissociação da função persecutória / penal do tribunal e ao seu reconhecimento enquanto instituição, cujo funcionamento implicava uma variedade de tramitações burocráticas para além do auto judicial em si mesmo, as quais se manifestavam em outras tipologias documentais.

Ao invés, a necessidade de olhar para a documentação procedente dos cartórios inquisitoriais de forma ampla, promovendo um esforço de sistematização e de inventariação dos fundos remanescentes, teve um forte impulso em contextos historiográficos como o espanhol, onde as lacunas documentais afectavam vários dos tribunais peninsulares e americanos. Com efeito, a historiografia espanhola registou um aturado esforço de reflexão relativo a este legado patrimonial, mas também à constituição e organização dos cartórios inquisitoriais [1]. Não é, seguramente, uma coincidência que a consagração dos “estudos inquisitoriais [2] ” enquanto área disciplinar teorizada tenha ocorrido em Espanha, país em que um quadro documental profundamente lacunar obrigou os seus historiadores, num momento histórico particular [3], a diversificar o seu olhar para a Inquisição e as suas fontes de conhecimento. Foi a recusa de uma leitura particularista (atomizada), dividida em tribunais, dos editores da Historia de la Inquisición en España y América, e a opção de uma narrativa que revelasse a Inquisição no seu “sistema orgánico de sincronías” e “como proceso global” que permitiu que o Santo Ofício fosse encarado enquanto instituição, enquanto – diríamos hoje – realidade sistémica. É por demais significativo que a expressão institucional da consagração dessa área disciplinar – o Centro de Estudios Inquisitoriales, criado em 1980 e o Instituto de Historia de la Inquisición, fundado em 1985 [4] – não tenha nunca tido o seu paralelo em países como o México ou Portugal, onde os cartórios peninsulares se conservaram num estado de invejável integridade, mas não se verifica qualquer tradição historiográfica que reclame essa filiação intelectual.

Sintomaticamente, a evolução dos arquivos inquisitoriais, na sua organização interna, nos seus silêncios ou lacunas, são inquietações que permaneceram, em grande medida, à margem dos percursos historiográficos devedores de contextos de hiper-abundância documental [5]. Em Portugal, como no México, os vazios documentais não foram tidos como suficientemente significativos para gerar inquéritos sistemáticos à questão da ausência enquanto expressão de uma problemática, quer de evolução orgânica e de prioridades institucionais, quer custodial [6]. O quadro visível de abastança informativa contribuiu, desta forma, para emprestar à lacuna o valor de um natural desaparecimento ocasionado pela passagem do tempo, atrasando a possibilidade do seu estudo enquanto fruto de uma escolha, de uma perda ou de uma espoliação pela acção de agentes concretos e, portanto, da identificação desses mesmos momentos [7].

Este dossier pretende ser um contributo para o conhecimento das atitudes institucionais, sociais e culturais sobre o património documental inquisitorial que possibilite uma releitura dos “fundos inquisitoriais” à luz da sua constituição – isto é, da conservação dos antigos cartórios dos tribunais –, mas também dos canais de dispersão que promoveram a divisão do que seriam, no início, unidades sistemicamente integradas.

O estudo das lacunas documentais enquanto via para a reconstituição da organização dos cartórios inquisitoriais [8] faz com que o historiador deva conferir especial atenção, não só ao período que compreende o processo de encerramento dos tribunais entre os finais do século XVIII e primeira trintena de anos do século XIX, mas também às décadas que se seguiram à sua extinção, quando as inquisições passaram a ser objecto de curiosidade histórica. Devido aos sentimentos de animadversão que suscitou, mas também à fidelidade de quantos haviam participado do múnus inquisitorial, latu sensu, o ocaso do Santo Ofício fez-se acompanhar de uma dispersão dos papéis inquisitoriais, mais célere que o cumprimento das normativas régias em vista à sua conversão, primeiro, e acomodação, depois [9]. Entre o afã de quem invadia as instalações do Santo Ofício para destruir, pilhar ou observar e o zelo de quem procurava manter o segredo e por isso subtraía (preservava) ou destruía, a extinção dos tribunais converteu os seus antigos documentos, devido à ineficácia da sua própria conservação, em curiosidades históricas que alimentaram um comércio de papéis destinados a enriquecer bibliotecas públicas ou particulares. Paralelamente, mesmo onde a supressão dos tribunais decorreu sem tumultos ou sobressaltos, a lenta execução das normativas oficiais não impediu a divisão do património documental do Santo Ofício, que permaneceria repartido em diferentes depósitos, formando-se núcleos progressivamente olvidados à medida que os fundos primaciais dos tribunais se assumiam enquanto tais perante novas gerações de estudiosos [10]; ou, mesmo, quando uma visão patrimonialista da documentação por parte dos seus responsáveis motivou a abertura de canais “eruditos” de dispersão transnacionais [11].

A reconstituição destes canais de dispersão é, hoje, fundamental, para se atingir um conhecimento mais consolidado da estrutura dos cartórios inquisitoriais no momento da supressão dos tribunais e, por conseguinte, da sua progressão enquanto instituição. Sendo certo que os tribunais do Santo Ofício conheceram períodos de maior ou menor organização dos seus cartórios, o conhecimento das opções institucionais tomadas durante o seu período de vigência, das suas necessidades e prioridades é um desígnio que exige uma compreensão das vias de sofisticação do aparelho inquisitorial, nomeadamente, a partir das necessidades de criação de séries documentais específicas para cada função ou tarefa. A vida da instituição, plasmada através dos registos escritos dos procedimentos inquisitoriais, foi confrontada com exigências impostas pela mudança dos tempos e das mentalidades, o que obriga a que a evolução do arquivo, na sua inovação, mas sobretudo nas suas lacunas – para além das perdas ocasionadas por conflitos ou desastres naturais – seja forçosamente entendida como o resultado de uma vontade, seja esta institucional, ideológica ou de outra ordem [12]. É este mapa de maturação institucional que o estudo dos processos de conservação, em articulação com os canais de dispersão, permitirá ilustrar. Por este motivo, os organizadores deste dossier desafiaram estudiosos de diferentes tribunais a olhar para além dos núcleos documentais reunidos nos arquivos nacionais, onde tendencialmente foram acomodados os antigos cartórios dos tribunais, e analisar os processos de constituição de fundos inquisitoriais paralelos ou a circulação de documentação dispersa e a sua ulterior incorporação em bibliotecas ou arquivos. Este desafio, foi primeiramente concretizado no Workshop internacional “Os papéis da Inquisição: conservação e dispersão na Europa, América e Ásia”, realizado na Universidade Católica Portuguesa a 25 de Junho de 2018 em co-organização pelo Centro de Estudos de História Religiosa, pela Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste e por El Colégio de México. É agora acolhido pela Revista de Fontes na sua versão escrita.

O dossier consta de sete contributos, referentes aos fundos documentais das várias inquisições modernas na Europa e na América. O primeiro texto, da autoria de Bruno Lopes e Fernanda Olival, centra-se na documentação produzida pelo fisco da Inquisição e conservada na Biblioteca Pública e no Arquivo Distrital de Évora. Os autores procuram traçar a história custodial destes documentos e a sua relação com outros fundos documentais semelhantes, procurando aferir a importância desta documentação para o estudo do funcionamento do tribunal inquisitorial.

Bruno Feitler encetou, no seu artigo, uma difícil investigação sobre as peculiaridades e ritmos de um cartório desaparecido, pertencente ao único tribunal português que funcionou em território não europeu. Identificando os momentos fundamentais que afectaram a integridade do arquivo da Inquisição de Goa até à sua extinção definitiva, o autor proporciona uma panorâmica do que terá sido a estrutura do cartório nos momentos mais próximos à sua destruição, bem como, contexto dessa orgânica, o material remanescente, hoje custodiado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

À semelhança do primeiro artigo, elaborado por Bruno Lopes e Fernanda Olival, o terceiro contributo centra-se também, essencialmente, na documentação de natureza fiscal produzida pela Inquisição. Trata-se do caso do tribunal de Valencia. Enrique e José María Cruselles Gómez, Irene Manclús Cuñat e María José Carbonell Boria analisam as dinâmicas de dispersão dos fundos inquisitoriais valencianos, apresentando os documentos que se encontram dispersos por vários arquivos da cidade.

Andrea Cicerchia centra-se na Congregação romana através da análise de um documento produzido num contexto muito particular. Elaborando uma minuciosa análise e transcrição de uma minuta de inventário elaborada no âmbito da república romana de 1849, o autor apresenta uma descrição do que seria o arquivo da Congregação naquela data, bem como as formas de organização dos papéis do Santo Ofício romano, num momento em que as inquisições ibéricas tinham já sido abolidas.

No seu artigo, Gabriel Torres Puga apresenta-nos uma questão presente nas realidades americanas e europeias da Inquisição espanhola: a escolha entre manter o segredo ou preservar o arquivo em momentos críticos. O estudo apresenta-nos um quadro geral e comparativo das atitudes dos ministros do Santo Ofício quanto à gestão dos papéis inquisitoriais, quer no que diz respeito à sua recuperação, quer quanto à preservação do segredo de que se esperava serem alvo. Numa incursão por vários arquivos inquisitoriais, o autor apresenta uma reflexão sobre um aspecto menos estudado da preservação dos cartórios inquisitoriais: a intervenção dos seus próprios responsáveis e a possibilidade de que eles mesmos tivessem tido alguma responsabilidade na destruição do seus respectivos arquivos.

Jaqueline Vassallo alerta para um outro nível de dispersão, decorrido a nível local, de acervos que não foram alvo da mesma atitude por parte dos poderes centrais no momento de extinção dos tribunais: os arquivos das comisarías das periferias dos distritos inquisitoriais, nomeadamente, o caso das regiões do Río de La Plata e do Tucumán. Numa aproximação ao interesse e atenção das elites letradas para com o passado inquisitorial da sua sociedade, a autora revela-nos rastos de papéis inquisitoriais em bibliotecas e arquivos da cidade de Córdoba.

Com Gerardo Lara Cisneros alarga-se a reflexão a uma outra instituição de controlo da fé e dos costumes presente no território da Nova Espanha, o chamado “Provisorato de Indios y Chinos”, integrado na estrutura de funcionamento do arcebispado do México e direccionado para a vigilância das práticas supersticiosas e idolátricas dos indígenas. O autor apresenta os traços gerais de funcionamento da instituição, procurando também dar-nos algumas pistas para a reconstituição do seu arquivo, apesar das perdas significativas que este sofreu.

Notas

1. Veja-se, a este respeito, os trabalhos de Jean Pierre Dedieu. “Les causes de la foi de l’Inquisition de Tolède (1483-1820): Essai statistique”. Mélanges de la Casa de Velázquez, 14 (1978), pp. 143-171; Jaime Contreras e Gustav Henningsen. “Forty-four thousand cases of the Spanish Inquisition (1540-1700): analysis of a historical data bank”. In: J. A. Tedeschi, G. Henningsen e C. Amiel (ed.). The Inquisition in early modern Europe: studies on sources and methods. Dekalb: Northern Illinois University Press, 1986, pp. 100-129; Virgilio Pinto Crespo, Dimas Pérez Ramírez e Manuel Ballesteros Gaibrois no capítulo “Fuentes y tecnicas del conocimiento historico del Santo Oficio”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición en España y América, vol. I. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos y Centro de Estudios Inquisitoriales, 1984, pp. 58 e 135.

2. Termo assumido, por exemplo, por José Antonio Escudero. “Instituto de Historia de la Inquisición”. In: J. A.. Escudero. Estudios sobre la Inquisición. Madrid: Marcial Pons / Colegio Universitario de Segovia, 2005 [1986], p. 61; também Joaquín Pérez Villanueva. “La historiografía de la Inquisición española”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición, op. cit., vol. I, p. 6.

3. Em J. Pérez Villanueva, a leitura sobre o fenómeno inquisitorial acompanha uma reflexão mais alargada acerca das atitudes transversais ao ser humano de relação com a dissidência e a diferença. Com esta perspectiva, o autor alude à “experiencia historica de gran intensidad” vivida pela sua geração, a qual deveria situar os historiadores “en terrreno de mayor penetración y tolerancia, de mejor entendimiento para juzgar, y de más moderado criterio para interpretar y comprender”. Pérez Villanueva, que escreveria adiante que as leituras históricas do Santo Ofício constituíam um óptimo barómetro do clima intelectual, ideológico e político de cada tempo, manifesta um claro compromisso ético com esta obra, amadurecida durante os primeiros anos da Espanha da transição democrática. Joaquín Pérez Villanueva. “La historiografía de la Inquisición española”, op. cit., pp. 3 e 23.

4. Joaquín Pérez Villanueva. “El Centro de Estudios Inquisitoriales”. Arbor, 484 (Abril 1986), pp. 173-182; José Antonio Escudero. “Instituto de Historia de la Inquisición”, op. cit., pp. 61-63.

5. Para o atraso sobre a história dos arquivos inquisitoriais em Portugal alertara já, na esteira de Fernanda Ribeiro, Nelson Vaquinhas. Os autores de História da Inquisição Portuguesa, por seu turno, apontaram a enganadora aparência de completude dos acervos documentais procedentes dos tribunais peninsulares, um contexto de abundância que consideravam ter sido prejudicial ao estudo do Santo Ofício no seu conjunto. Nelson Vaquinhas. Da comunicação ao sistema de informação. O Santo Ofício e o Algarve (1700-1750). Lisboa: Colibri / CIDEHUS-UÉ, 2010, p. 10; Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva. História da Inquisição Portuguesa (1536-1821). Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013, p. 12.

6. Apenas o caso da Inquisição de Goa gerou várias aproximações ao problema da sua documentação, motivando a preparação de inventários de fundos de arquivo, bem como a de colectâneas documentais, mas também esforços destinados a suprir a ausência dos fundos inquisitoriais “clássicos” e estudos sobre a documentação proveniente do arquivo. Contudo, estamos a falar de respostas que reagem a um quadro de precariedade documental derivada da perda do cartório do tribunal de Goa após a sua extinção em 1812, à semelhança do que encontramos também na Colômbia, onde se procurou superar o vazio deixado pelo desaparecimento do seu cartório através da reunião de documentos localizados no Archivo Histórico Nacional de Madrid. Veja-se António Baião. A Inquisição de Goa. Correspondência dos Inquisidores da Índia (1569-1630), vol. II. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930; Miguel Rodrigues Lourenço. Macau e a Inquisição nos Séculos XVI e XVII. Documentos. Lisboa / Macau: Centro Científico e Cultural de Macau / IP / Fundação Macau, 2012 (2 vols); Carmen Tereza Coelho Moreno (coord.). “Inquisição de Goa. Inventário Analítico”. Anais da Biblioteca Nacional, 120 (2000), pp. 7-272; José Alberto Rodrigues da Silva Tavim. “A Inquisição no Oriente (século XVI e primeira metade do século XVII): algumas perspectivas”. Mare Liberum, 15 (Junho de 1998), pp. 17-31; Bruno Feitler. “João Delgado Figueira e o Reportorio da Inquisição de Goa: Uma base de dados. Problemas metodológicos”. Anais de História de Além-Mar, 13 (2012), pp. 531-537, assim como o estudo integrado neste dossier. De referir, ainda, a base de dados sobre uma das principais fontes para o estudo do Santo Ofício de Goa, o Reportorio de João Delgado Figueira de 1623, executada sob a sua coordenação. Disponível em http: / / www.i-m.mx / reportorio / reportorio / home.html (acesso a 19 de Setembro de 2018). Anna María Splendiani, José Enrique Sánchez Bohórquez y Emma Cecilia Luque de Salazar. Cincuenta Años de Inquisición en Cartagena de Indias, Santa Fé de Bogotá: Centro Editorial Javeriano / Instituto Colombiano de Cultura Hispánica, 1997 (4 vols.).

7. Entre os estudos que, em Portugal, procuraram abordar o legado documental do Santo Ofício vejam-se Pedro A. d’Azevedo e António Baião. “Cartorios do Santo Officio”. In: O Archivo da Torre do Tombo. Sua Historia, Corpos que o compõem e organisação. Lisboa: Annaes da Academia de Estudos Livres, 1905, pp. 62-71; Maria Teresa Geraldes-Barbosa. “Les Archives de l’Inquisition Portugaise”. In: Mélanges offerts par ses confrères étrangers à Charles Braibant. Bruxelas: Comité des Mélanges Braibant, 1959, 163-173; Charles Amiel. “Les archives de l’Inquisition portugaise. Regards et réflexions”. Arquivos do Centro Cultural Português de Paris, 14 (1979), pp. 421-443; Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha. Os Arquivos da Inquisição. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1990; Francisco Bethencourt. “Les sources de l’Inquisition portugaise: évaluation critique et méthodes de recherche”. In: L’Inquisizione Romana in Italia nell’Età Moderna. Archivi, problemi di metodo e nuove ricerche. Atti del seminario internazionale. Trieste, 18-20 maggio 1988. Roma: Ministero per i Beni Culturali e Ambientali / Ufficio Centrale per i Beni Archivistici, 1991, pp. 357-367; Fernanda Olival. “Archivi e Serie Documentarie: Portogallo”. In: A. Prosperi (dir.). Dizionario Storico dell’Inquisizione, vol. I, Pisa: Edizioni della Normale, 2010, pp. 86-87.

8. Apesar de normativas de sentido uniformizador para a organização dos arquivos, estudos como o de Bruno Feitler a respeito do cartório da Inquisição de Goa mostram que a personalidade ou a praxis individual de cada oficial dos tribunais conduziram a resultados diferenciados. Cf. Bruno Feitler. “João Delgado Figueira e o Reportorio da Inquisição de Goa”, op. cit., p. 534. Sobre os esforços promovidos pelos inquisidores-gerais de Espanha para a uniformização dos arquivos dos diferentes tribunais veja-se Virgilio Pinto Crespo. “Archivos Nacionales Españoles”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición en España y América, op. cit., pp. 66-70.

9. Vejam-se, a este respeito, René Millar Carvacho. “El archivo del Santo Oficio de Lima y la documentación inquisitorial existente en Chile”. Revista de la Inquisición, 6 (1997), pp. 101-116; Gabriel Torres Puga. “Conservación y pérdida de los archivos de la Inquisición en la América española: México, Cartagena y Lima”. In: J. Vassallo, M. Rodrigues Lourenço e S. Bastos Mateus (coord.). Inquisiciones. Dimensiones comparadas (siglos XVI-XIX). Córdoba: Editorial Brujas, 2017, pp. 45-62.

10. Pedro Pinto. “Fora do Secreto”. Um contributo para o conhecimento da documentação do Tribunal do Santo Ofício em arquivos e bibliotecas de Portugal (no prelo pelo Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa).

11. No caso do México, alguns processos e volumes inquisitoriais dispersaram-se após o seu arresto pelo governo, em 1861.O general Vicente Riva Palacio, a quem se deve, em boa medida, a sobrevivência do arquivo durante a guerra da Reforma (1862-1867) conservou em seu poder meia centena de volumes que, afortunadamente, se foram reintegrados. No entanto, é muito provável que o próprio Riva Palacio tenha emprestado ou até mesmo oferecido alguns volumes ou processos a outros eruditos, incluindo o célebre historiador da Inquisição espanhola, Henry Charles Lea. José Ortiz Monasterio, “Avatares del archivo de la Inquisición de México”. Boletín del Archivo General de la Nación, 5 (2003), pp. 93-110.

12. Para uma problematização sobre os silêncios nos arquivos como condicionantes da memória histórica, veja-se Rodney G. S. Carter. “Of Things Said and Unsaid: Power, Archival Silences, and Power in Silence”. Archivaria. The Journal of the Association of Canadian Archivists, 61 (Spring 2006), pp. 215-233. https: / / archivaria.ca / archivar / index.php / archivaria / article / view / 12541 / 13687 (acesso a 30 de Setembro de 2018).

Miguel Rodrigues Lourenço – Universidade Nova de Lisboa, Faculade de Ciências Sociais e Humanas, CHAM – Centro de Humanidades, Lisboa, Portugal. Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), Lisboa, Portugal. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0002-0432-3240

Susana Bastos Mateus – Universidade de Évora, Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS), Évora, Portugal. Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), Lisboa, Portugal. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0001-5350-100X

Gabriel Torres Puga – El Colegio de México, Centro de Estudios Históricos (CEH), México, DF, México. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0002-5616-777X


LOURENÇO, Miguel Rodrigues; MATEUS, Susana Bastos; PUGA, Gabriel Torres. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.5, n.9, 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Al-Ma’mūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority – NAWAS (S-RH)

NAWAS, John Abdallah. Al-Ma’mūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority. Atlanta: Lockwood Press, 2015. Coleção “Resources in Arabic and Islamic studies”, n. 4. 212 p. ISBN-13: 9781937040550 (impresso) | 9781937040567 (e-book). Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Religião e historicidade: a batalha pela ortodoxia islâmica no Califado Abássida SÆCULUM– Revista de História, João Pessoa, [38] jan./ jun. 2018.

Pode não ser muito evidente no ambiente acadêmico brasileiro, às vezes ensimesmado em questões muito particulares, mas o campo dos estudos sobre o Islã tem crescido de forma vertiginosa nas universidades europeias e norte-americanas desde o fim da Guerra Fria, vinculado a fatores geopolíticos claros, que determinam de modo mais ou menos indireto as tendências intelectuais e a distribuição dos recursos destinados à pesquisa. De fato, desde o fim da década de 1980, tem-se experimentado uma expansão da investigação ocidental sobre o Islã comparável em magnitude unicamente à que teve lugar cem anos antes disso, em paralelo com a expansão imperialista sobre os continentes africano e asiático, ou seja, também sobre as terras tradicionais da presença e hegemonia muçulmana. As analogias possíveis entre os dois momentos não são apenas formais, mas também discerníveis em certos elementos de conteúdo significativos. Apesar dos excelentes estudos sobre a história do Islã e do ecúmeno muçulmano atualmente disponíveis, ainda é parte do senso comum acadêmico a noção não só de que o movimento dos seguidores de Muḥammad é essencialmente igual a si mesmo desde o século VII até a contemporaneidade, mas de que ele surgiu na história consistente e beligerante, tal como Palas Atena saltando adulta e inteiramente armada da cabeça de Zeus.2 No suporte a esta ideia, vaga, mas poderosa, estão, de um lado, os orientalistas e neoorientalistas, que se arrogam o direito de falar aos ocidentais sobre o ser do Islã, projetando na história das coletividades uma ontologia tão estática quanto politicamente enviesada. Do outro, elemento novo, encontram-se os intelectuais muçulmanos ou filo-muçulmanos instalados nas universidades ocidentais, pesquisadores que em realidade pouco fazem além de transcrever em discurso acadêmico, de maneira muito pouco crítica, a narrativa dos próprios devotos a respeito do surgimento e desenvolvimento do Islã. Sob o emaranhado de enunciados que constitui a disputa pela fala legítima a respeito das questões pertinentes à história e religiosidade islâmicas, portanto, há certa concordância tácita sobre o que caracterizaria esse movimento político-religioso em sua essência; questões que são produto de processos sociais e conjunturas históricas bastante particulares são, dessa forma, cristalizados como se não mais do que realizações no tempo e no espaço de uma natureza do Islã. O principal problema desse tipo de abordagem, contudo, é que ele distorce em diferentes níveis a compreensão que se pode ter a respeito do passado islâmico, submetendo-o a juízos fundados precisamente na desconsideração da historicidade de todos os atos e ideias dos seres humanos.

Mencione-se um exemplo significativo, ou seja, o da mina, a dita inquisição islâmica. O vocábulo árabe ة􀑧􀑧 محن pode ser literalmente traduzido como julgamento ou como prova, no sentido de teste; foi tradicionalmente usado tanto pelos historiadores muçulmanos, medievais e modernos, como pelos especialistas ocidentais para designar o período de perseguição religiosa iniciado durante o governo do califa abássida al-Ma’mūn (813-833) e continuado sob seus dois sucessores, al-Mu’taṣim (833-842) e al-Wāthiq (842-847). Durante a mina, uma série de oficiais do governo, teólogos, juristas, cronistas, compiladores de aḥādīt, sábios e santos muçulmanos foram submetidos à prisão, aos castigos físicos e, eventualmente, à execução, por se recusarem a subscrever a doutrina, então sustentada pelos abássidas, de que o Corão havia sido criado por Alá e que, portanto, sendo acessível à inteligência em sua plenitude, poderia ser submetido a escrutínio racional. A confissão alternativa a essa, por outra parte, sustentava que o Corão era anterior a toda a criação, subsistindo desde sempre em Alá como arquétipo do Texto que foi, em determinado momento histórico, efetivamente revelado a Muḥammad. Essa divergência explodiu em conflito aberto quando, alguns meses antes de seu falecimento, al-Maʾmūn determinou que os especialistas religiosos de sua corte denunciassem como falsos todos os aḥādīt em que se guardavam tradições a respeito do caráter supostamente incriado do Corão; a recusa de alguns em fazê-lo desencadeou reações violentas da parte do soberano, assim como um exaltado sentimento popular a favor dos perseguidos. No califado de al- Mu’taṣim, a mina foi institucionalizada tanto em verificações regulares que eram feitas aos cortesãos e demais oficiais do governo quanto à sua opinião a respeito do caráter criado ou incriado do Corão, quanto em tribunais inquisitoriais estabelecidos em al-Fustât, Kūfa, Bagdá, Basra, Damasco, Meca e Medina, cortes cuja autoridade foi estendida a todos os funcionários, militares, magistrados, eruditos e líderes comunitários dessas cidades nevrálgicas do ecúmeno islâmico. Sob al-Wāthiq, a perseguição perdeu força e acabou por se extinguir. O complexo período que se seguiu, marcado por uma crescente ascendência dos ghilmān (escravos-soldados) turcos sobre todos os negócios do califado, fez com que essa discussão teológica fosse esvaziada e desmontado o aparato institucional que os abássidas construíram durante a década de 830 para lidar com ela. O califa al-Mutawakkil, por fim, reconheceu abertamente o fracasso da mina determinada por seus antecessores e estabeleceu que seus súditos seriam livres para decidir por si mesmos se acreditariam no caráter criado ou incriado do Corão.

Não raro a mina foi pensada pelos analistas ocidentais como mais uma das expressões da essência intolerante do Islã. Definido o caráter intolerante de uma religião, entretanto, efetivamente é possível encontrar provas desse por toda parte.

Poucas vezes se considerou a sério, de outra parte, que a perseguição e a resistência a ela foram assuntos que se deram entre homens que se consideravam todos muçulmanos fiéis. Todo o episódio mostrou com clareza os limites do poder dos califas em matéria do estabelecimento da ortodoxia islâmica; daí em diante ficou claro que os soberanos do império islâmico, que já então havia iniciado seu processo de desagregação político-territorial, haveriam de negociar cuidadosamente, a cada pronunciado estritamente religioso que se arvorassem a fazer, com a intelligentsia constituída pelos diferentes tipos de sábios e santos muçulmanos. O lugar da fala doutrinária legítima não era mais, de modo necessário, a corte califal, mas as madraças, as academias de jurisprudência, de belas letras e de teologia que eram os loci em que se elaboravam a autoconsciência daquilo que emergia então como a vertente sunita do Islã. Ao contrário do que muitos analistas menos informados continuam a sustentar, de fato, o sunismo não é idêntico ponto a ponto à ideologia não-álida ou anti-álida que se desenvolveu sob os omíadas e os abássidas; não é uma confissão por rejeição, mas uma identidade islâmica que se desenvolveu na história, tanto ao redor de uma oposição quietista aos próprios califas majoritariamente reconhecidos como legítimos, quando de uma crescente veneração aos ditos e feitos atribuídos a Muḥammad e seus Companheiros, tomados como interpretações e performances autorizadas da Revelação divina consignada no Corão. A junção entre religião e política que muitos sustentam necessária e mesmo natural na história islâmica foi agudamente colocada em questão durante todo o episódio da mina – inclusive, talvez principalmente, em seu encerramento. Aos califas abássidas foi então negado o direito de uma intervenção cesaropapista na teologia islâmica; e ainda que não se tenha esvaziado o seu papel estritamente religioso de chefe dos crentes e lugartenente de Deus à frente da Ummah, a comunidade dos muçulmanos, esboçou-se um conflito entre poder espiritual e poder secular que nos remete mais a certos episódios da história das sociedades cristãs de matriz euro-americana do que às ideias cristalizadas que temos a respeito do que foram e são as sociedades aderentes ao Islã, nas quais a vida política parece a não poucos ser indissociável da vida religiosa, ou vice-versa.3 Isto tudo considerado, a mina apresenta-se como um episódio muito bom para pensar o Islã na história, ou seja, para se refletir sobre os processos sociais, bem localizados no tempo e no espaço, pelos quais os muçulmanos – que a princípio não dispõem de uma estrutura análoga à da hierarquia eclesiástica do cristianismo – produziram a ortodoxia e a dissidência religiosa a partir das quais se definem enquanto muçulmanos. De fato, ela não é facilmente interpretável caso se considere o Islã como um movimento sempre igual a si mesmo; trata-se, portanto, de uma brecha, uma rasgadura que permite que consideremos com mais vagar a dialética entre o desejo de permanência e o advento de mudanças que está presente em toda e qualquer instituição ou complexo de ideias. Da mesma forma, não ajuda muito a analogia, comum nos autores ocidentais do século XIX e da primeira metade do século XX, entre a mina e as inquisições católica ou protestante dos séculos XV a XVIII. Em todos esses sentidos, para compreender este episódio em sua importância capital, ajuda-nos o livro aqui referido, de autoria de John Abdallah Nawas (n.1960), versão revista e expandida de sua tese de doutorado, Al-Maʾmūn: mina and Caliphate, defendida em 1993 na Universidade Católica de Nimegue (mais tarde renomeada como Universidade Radboud de Nimegue). Nawas é agora professor de Estudos Árabes e Islâmicos do Departamento de Estudos do Oriente Próximo da Universidade de Louvaina, na Bélgica, e diretor da Escola Europeia de Estudos Abássidas, com sede na mesma instituição. Nos quase vinte e cinco anos que se seguiram ao seu doutoramento, a tese de Nawas tornou-se uma referência para os estudos que de alguma forma se referem à mina, tanto pela clareza de sua argumentação, quanto por seu extraordinário domínio das fontes de época e da bibliografia pertinente à sua análise. Em 2014, o autor publicou um número da série Oxford Bibliographies Online com um extenso levantamento comentado dos trabalhos até então disponíveis sobre a mina, a maior parte estudos orientalistas em inglês e textos de autores árabes. Com base nessa pesquisa, Nawas atualizou as referências de sua tese, ainda que não tenha incorrido em mudança significativa em seu argumento. O volume assim revisado e expandido foi publicado no ano seguinte em versão impressa e online pela Lockwood Press, de Atlanta, EUA, tornando assim mais acessível um estudo fundamental aos interessados em questões de história sociopolítica, intelectual e religiosa do Islã medieval.

No primeiro capítulo de Al-Maʾmūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority (pp. 1-20), Nawas situa seu estudo ao apresentar os marcos cronológico e geográfico deste, juntamente com uma investigação preliminar do que já foi escrito a respeito das motivações dos abássidas para estabelecerem e suspenderam a mina. Aí também são elencados os documentos de época que o autor consultou a respeito, procurando situá-los como peças de combate dentro daquelas que se constituíam como as oposições fundamentais que tensionavam e davam forma ao debate político-religioso islâmico ao tempo de al-Maʾmūn, seus imediatos antecessores e sucessores – ou seja, as disputas entre o califa e seus cortesãos e os ulemás e seus alunos, entre os álidas, os xiitas e os conformistas que estavam em vias de se constituírem religiosamente como sunitas (mas colocando em questão, nesse processo, seu próprio conformismo político), e entre os que defendiam o caráter criado e os que sustentavam a preexistência e eternidade do Corão. No segundo capítulo (pp. 21-30), reconstitui-se a trajetória de al-Maʾmūn, tratando-se principalmente de sua controversa nomeação e do conflito que se seguiu a essa, uma disputa familiar e cortesã que eclodiu na chamada quarta fitna, guerra entre diferentes facções abássidas que se estendeu de 811 a 819, com prolongamentos regionais até 830, e que foi, entre outras coisas, uma tentativa dos partidos árabes e persas de definirem quem haveria de impor seus interesses e autoridade sobre o califado.

No terceiro capítulo (pp. 31-50), Nawas considera os diferentes discursos a respeito do papel do califa (abássida) que circulavam durante a quarta fitna e pouco depois, sistemas de ideias com os quais al-Ma’mūn foi forçado a dialogar em diferentes níveis para estabelecer sua própria autoridade como chefe (ao menos nominal) do mundo muçulmano. Esses discursos eram principalmente três: o da escola mu’tazilita, protocontratualista, que sustentava que a autoridade dos califas devia-se antes do mais a uma livre delegação do poder feita por seus súditos; o dos álidas, que sustentavam que o califa deveria ser um descendente em linha direta de Muḥammad; e o dos xiitas, que argumentavam que o verdadeiro governante da Ummah não era qualquer califa, mas o imān, o líder espiritual da comunidade, descendente direto do Profeta do Islã e capaz de dar aos fiéis a interpretação autorizada tanto do Corão quanto das aḥādīt, que infalivelmente estaria capacitado a separar entre verdadeiras e falsas.

Como mais ou menos evidente nesta recapitulação sumária, as ideias dos álidas e dos xiitas eram largamente coincidentes e, a princípio, idênticas; no correr dos séculos VIII e IX, entretanto, elas foram se partindo em corpos conceituais distintos, ainda que comunicantes e geneticamente vinculados. Surgiram então facções álidas que apoiavam as pretensões ao califado dos descentes de outros parentes de Muḥammad que não os da linhagem de ‘Ali e Fátima – como era o caso dos próprios abássidas, que inicialmente fundaram sua autoridade no fato de serem descendentes de Al- ‘Abbas ibn ‘Abd al-Muttalib, um dos mais jovens tios paternos do Profeta do Islã; ao passo que não poucos dos que seguiam defendendo a legitimidade unicamente do governo de ‘Ali e seus descendentes diretos, com a implacável perseguição destes, tanto pelos omíadas quanto pelos abássidas, acabou se refugiando em uma espécie de quietismo que postergava para um tempo escatológico, o do retorno de Muḥammad ibn Hasan al-Mahdī, o Imān Oculto, o restabelecimento do governo legítimo sobre a Ummah. Para constituir sua própria teoria do poder, al-Maʾmūn e seus ideólogos inicialmente dialogaram de modo dinâmico e complexo com essas três tendências, incluindo os xiitas – por exemplo, ao reivindicar uma autoridade espiritual próxima do imamato para este governante. Por fim, em 827, a teoria mu’tazilita do poder foi adotada na corte de al-Maʾmūn como oficial e ortodoxa. Isso, contudo, longe de atenuar os conflitos entre os califas e seus ideólogos e os mu’tazilitas, acabou por intensificá-los, pois não eram poucos os juristas e teólogos dessa escola que consideravam al-Maʾmūn em particular – pela forma como tomou o poder através da deposição e assassinato de seu irmão, Muḥammad al-Amīn ibn Harūn al-Rashīd –, ou os abássidas no geral – pelo modo como tomaram o poder aos omíadas pela violência –, como usurpadores que não detinham uma procuração legítima da parte dos fiéis para exercer sobre eles o poder absoluto. Além disso, os mu’tazilitas sustentavam que a autoridade religiosa encontrava-se inteiramente concentrada no Corão, que devia ser analisado de acordo com a razão, concebida segundo as categorias da filosofia greco-romana clássica, principalmente a lógica aristotélica; negavam, portanto, uma autoridade de princípio ao califa, qualquer que fosse, em matéria teológica.

No quarto capítulo (pp. 51-76), Nawas apresenta sua hipótese central, ou seja, de que a mina deve ser pensada não como uma intervenção caprichosa de al-Ma’mūn e seus imediatos sucessores em uma questiúncula teológica, mas como instrumento de uma teoria da prática, ou seja, como um dos meios, talvez o principal, pelo qual esses governantes pretenderam criar um discurso de legitimação do poder califal que sintetizasse as hipóteses a este respeito então mais populares no mundo islâmico, ao mesmo tempo em que se autorizavam, por motivo de zelo religioso, a agir direta e duramente contra seus opositores mais estridentes – tanto álidas e xiitas que sustentavam o caráter incriado do Corão e vinculavam isso às suas definições a respeito do poder dos califas, que supostamente lhes seria concedido não pela vontade dos homens, mas por um direito de nascimento determinado por uma procuração eterna da parte de Alá; quanto mu’tazilitas que veementemente negavam aos califas quaisquer funções no estabelecimento da ortodoxia islâmica. Para sustentar essa linha de argumentação, Nawas faz um levantamento dos autores modernos que a esboçaram, procurando ler os documentos que utilizaram para essa formulação – principalmente as cartas de al-Maʾmūn e al-Mu’taṣim aos cádis e emires a respeito da mina – dentro de seu contexto histórico particular, reconstituído através das narrativas dos cronistas árabes e não-árabes do período. O autor ainda considera o extraordinário timing da mina no esforço de estabelecer uma legitimação dos abássidas e os procedimentos pelos quais diferentes indivíduos tiveram suas crenças, e sua lealdade ao califa, devidamente testados. Ressalta-se ainda o valor estratégico da doutrina referente ao caráter criado ou incriado do Corão no espectro políticoteológico da época; para dimensioná-lo, pode-se ressaltar um exemplo citado por Nawas. Ora, alguns eventos históricos, como a Batalha de Badr (624) são citados no Corão; reconhecer que este Livro é incriado significa aderir à opinião de que a eclosão e desdobramento desse combate estavam predeterminados desde sempre, enquanto reconhecer que o Livro foi criado, em uma interação entre o conteúdo eterno da Revelação dada a Muḥammad e o contexto particular no qual esse se encontrava, significa corroborar que o resultado em Badr, antes do mais, deveu-se aos méritos e esforços das pessoas que aí se encontravam. Em suma, o debate de fundo era também entre predestinação e livre-arbítrio, e seu corolário político eram então evidentes; de fato, em 836, al-Ma’mūn fez com que se execrassem publicamente os nomes de todos os monarcas omíadas e seus apoiadores, a começar por Muʿāwiyah ibn Abī Sufyān (661-680), o primeiro dos califas dessa dinastia; como poderia, entretanto, não ter incorrido al-Maʾmūn em blasfêmia ao fazê-lo caso, mesmo tomando a ascensão dos omíadas como uma usurpação e uma injustiça do ponto de vista estritamente político, se viesse a considerá-la como pré-determinada por Alá desde infinitamente antes da criação do mundo? Depois de uma breve conclusão (pp. 77-82), na qual Nawas retoma e reitera os principais elementos que o levaram a pensar na mina como vetor de constituição da autoridade de al-Maʾmūn, são apresentados uma série de úteis apêndices, como uma listagem em ordem cronológica da documentação de época consultada (pp. 83-94), uma súmula das questões impostas aos interrogados pelos homens desse califa (pp.95-106), e uma linha do tempo com a indicação dos principais eventos que interferiram de alguma forma no governo de al-Maʾmūn (pp. 107-108). Segue a apresentação da bibliografia utilizada (pp. 109-124) e um índice onomástico, conceitual e topográfico do volume (pp. 125-130). Por fim (pp. 131-209), é reproduzido o texto Amed ibn anbal and the miḥna: a biography of the imān including and account of the Mohammedan Inquisition called the Miḥna, publicado em 1897 pelo orientalista Walter Meville Patton (1863-1928), professor do Colégio Teológico Wesleyano de Montreal, Canadá. Ibn Ḥanbal (780-855), venerado por muitos muçulmanos sunitas como Imān Amad, foi um dos teólogos, juristas e compiladores de aḥādīt que padeceu nas mãos dos agentes da mina por se recusar a obedecer aos mandatos de al-Ma’mūn, al-Mu’taṣim e al-Wāthiq em matéria doutrinária. Reconhecido como um dos confessores do tradicionalismo islâmico diante das intervenções dos califas abássidas, a Ibn Ḥanbal também se atrelou a fama de ser um dos amigos de Deus, ou seja, um dos muitos santos da tradição islâmica.

Esse texto de Patton tem um duplo mérito ao estudioso contemporâneo da mina: reunir e apresentar uma primeira tradução comentada ao inglês de praticamente todos os relatos dos cronistas árabes a respeito, e oferecer uma entrada para o entendimento tradicional dos comentadores ocidentais desse episódio da história islâmica.

O livro do Prof. Nawas é bem escrito, rico em informações e bons insights e fundado em uma pesquisa erudita irrepreensível. Ao mesmo tempo em que faz uma leitura cuidadosa das fontes islâmicas, não hesita em recuperar as opiniões dos especialistas ocidentais a respeito delas, estabelecendo um diálogo não só crítico, mas criativo com toda uma rica tradição intelectual que infelizmente passou a ser vedada em muitos meios, condenada como desprezível sem sequer ter sido analisada em seus muitos méritos, depois da publicação, em 1978, do Orientalismo de Edward W. Said (1935-2003). Os especialistas na história e nas discussões religiosas do Islã decerto farão um proveito mais imediato da leitura de Al-Maʾmūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority, mas qualquer interessado minimamente atento será capaz de ter um bom entendimento do livro. O maior mérito do volume reside no fato de ser uma contribuição fundamental no sentido de compreender o Islã como um movimento histórico, não só no acessório, mas em seu próprio conteúdo estritamente religioso, apesar das recusas obstinadas e cúmplices dos orientalistas e dos fiéis em reconhecer isso. Lendo este trabalho de Nawas, tem-se bem evidenciado que o Islã não foi sempre igual a si mesmo, não sendo em sua eminente historicidade fundamentalmente diverso de qualquer outro movimento religioso, político ou político-religioso conhecido da história da humanidade. Trata-se de uma abordagem importante de ser considerada em um cenário como o nosso, em que os estudos acadêmicos a respeito do Islã ainda são em boa medida empreendidos por seus devotos e por seus críticos. De modo efetivo, todo o debate sobre o caráter divinamente estabelecido ou não da autoridade califal, vinculado de modo intestino à querela sobre a natureza criada ou incriada do Corão, tem na história islâmica, mantidas, é claro, todas as proporções devidas, uma importância que é análoga à que os debates trinitários e cristológicos dos séculos IV e V tiveram na história cristã; ou seja, mostram que não há nada de tão sagrado e constante que esteja completamente intocado pelas variações, interesses, paixões e atritos que compõem a história dos indivíduos e das coletividades.

Nota

2 Para facilitar a leitura, todas as datas constantes no presente textos são apresentadas de acordo com seu equivalente no calendário gregoriano.

3 Estou bem consciente de que o conceito de cesaropapismo é normalmente aplicado pelos historiadores ocidentais, tanto confessionais quanto seculares, para descrever o tipo de ingerência que os imperadores romanos do oriente (bizantinos) tinham ou pretendiam ter sobre a Igreja em seus domínios, e é justamente por isso que o utilizo aqui; afinal, reitero, o tipo de poder obtido ou pretendido por governantes como Justiniano (482-565), Heráclio (575-641) e Leão III Isáurico (675- 741) sobre a vida religiosa de seus súditos foi justamente o que foi negado aos califas abássidas na década de 830. Não se trata essa de uma aproximação arbitrária, na medida em que os abássidas mantiveram com os romanos do oriente relações que não foram nunca só de conflito, mas também de intercâmbio e de imitação, inclusive no plano das ideias políticas e religiosas. Sobre a intrincada evolução histórica do conceito de cesaropapismo, ver por primeiro: TAVEIRA, Celso. O modelo político da autocracia bizantina: fundamentos ideológicos e significado histórico. Tese de Doutorado em História apresentado ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2002, pp. 291-317.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz –  Doutorando em História Política pelo PPGH/UERJ (2015- ). Bolsista CAPES (2015- ) e Nota 10/FAPERJ (2017- ). Membro do Núcleo de Estudos de Cristianismos no Oriente do GT de História das Religiões e das Religiosidades da ANPUH-Rio. Membro do Núcleo de Pesquisa Histórica do Instituto Pretos Novos. E-mail: <[email protected]>.

Acessar publicação original

[MLPDB]

 

Escravidão e sociedade em espaços lusófonos / Ponta de Lança/2018

O mundo lusófono, considerado como um todo, cruza mares e continentes. Constituído por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Portugal e Timor Leste, este mundo transnacional e cosmopolita inclui atualmente cerca de 250 milhões de falantes do português. O estudo do espaço cultural criado pela adoção da língua portuguesa ainda carece de pesquisas acadêmicas multi e interdisciplinares amplas e a partir de várias perspectivas. Atualmente, essa lacuna tem sido suplantada pela realização de estudos que procuram mostrar a lusofonia a partir de uma perspectiva globalizante que une diferentes regiões desse imenso espaço. Leia Mais

Ocean of trade: South Asian merchants, Africa and the Indian Ocean, c. 1750-1850 – MACHADO (RH-USP)

MACHADO, Pedro. Ocean of trade: South Asian merchants, Africa and the Indian Ocean, c. 1750-1850. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. 315 pp. Resenha de: FOLADOR, Thiago de Araujo. Os africanos escolhem o que vão levar: os tecidos indianos no comércio de marfim e escravos. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Quem visita Moçambique não deixa de ser seduzido pelas capulanas, tecidos estampados e coloridos que se tornaram quase sinônimo do país. Estes tecidos são encontrados à venda em muitas ruas da capital, Maputo, são usados no dia a dia dos moçambicanos, principalmente pelas mulheres, e também são bastante cobiçados pelos turistas em busca de lembranças e souvenires. Comercializadas por árabes, indianos e moçambicanos, as capulanas caracterizam uma cultura secular do consumo de tecidos na região; seu papel foi central nas relações comerciais do oceano Índico, em especial de escravos e marfim durante os séculos XVIII e XIX.2

Em uma abordagem sobre essas dinâmicas comerciais, Pedro Machado em Ocean trade: South Asian merchants, Africa and the Indian Ocean, c. 1750-1850, propõe uma leitura a partir das aproximações entre africanos e indianos no canal de Moçambique. O livro discute a expansão e a atividade dos mercadores vaniyas (ou banias) da região de Gujarate, em especial Diu e Damão, cujo negócio de tecidos tornou-se peça fundamental para o desenvolvimento da empresa comercial escravista entre 1750 e 1850. O retrato que apresenta sobre os comerciantes indianos vaniyas de Gujarate fundamenta-se numa leitura que se aproxima das perspectivas sobre uma história dos oceanos, ao apresentar a circulação entre as diferentes costas, as interconexões comerciais, a produção e, principalmente, as relações de demanda de consumo.

Pedro Machado, nascido na África do Sul, é atualmente professor assistente do Departamento de História na Universidade de Indiana. Ocean trade é seu primeiro livro publicado, baseado na sua tese de doutorado defendida na School of Oriental and African Studies, University of London (2005). Nos últimos anos tem se dedicado às pesquisas sobre a história do cultivo do eucalipto, a atuação colonial do império atlântico português nas relações comerciais, industriais e impactos ambientais com o oceano Índico. Importante registrar sua relação com as pesquisas do Indian Ocean World Center (IOWC), estabelecido na Universidade de McGill no Canadá. Esse centro de estudos, sob direção de Gwyn Campbell, possui entre seus quadros importantes pesquisadores que têm se dedicado ao estudo da África Oriental, Oriente Médio, Sul da Ásia e Oceania em suas interconexões. Neste sentido, é possível compreender o caminho percorrido pelo professor Machado, cujos estudos contribuem para expansão das pesquisas sobre o oceano Índico, na senda dos pressupostos defendidos anteriormente por Fernand Braudel.3

Na década de 1970, em um momento de expansão dos próprios estudos africanos, o tema da escravidão na costa oriental africana mobilizou diversos pesquisadores que chamaram a atenção para as relações entre Ásia e África e para o tráfico com destino às ilhas do Índico.4 A argumentação da historiografia passa por uma discussão na qual a África é percebida em um espaço de interconexões não apenas sob influência europeia, mas nas relações com outros espaços à borda do Índico. Assim os estudos sobre a África Oriental alcançaram uma importante expansão nos últimos trinta anos, na qual Machado está inserido.

Em Ocean trade, Pedro Machado faz um aguçado trabalho apoiado em uma significativa produção histórica e na bibliografia atual sobre o oceano Índico. Além de autores voltados aos estudos sobre o Atlântico, especialmente das escolas inglesas e norte-americanas, o pesquisador trabalha também com a produção de historiadores indianos e, em alguma medida, os de língua portuguesa. O domínio da historiografia e das fontes, à semelhança de um tecelão ao fazer seus tecidos, demonstra a capacidade do autor em fiar as tramas dos acontecimentos, entrelaçando-os com conceitos e questões historiográficas pertinentes à produção sobre África e o Índico. Machado tece, assim, uma sólida e instigante narrativa.

No tocante à historiografia, o leitor entrará em contato com uma vertente da história dos oceanos especificamente a relacionada com o Índico que tem sido empregada nas últimas décadas por autores como S. Bose (2002), M. Pearson (2003), G. Campbell (2005, 2006), M. Vink (2007) e E. Alpers (2009). Nesse sentido, alguns pontos importantes podem ser observados como a questão da circulação de mercadorias e de pessoas a partir da ideia de uma “arena inter-regional” de trocas, conceito empregado pelo historiador indiano S. Bose para dar conta das interações econômicas, políticas e culturais. Desse modo, é possível abordar o oceano Índico como um espaço próprio de um processo histórico e privilegiar as conexões entre suas diferentes margens sem se limitar às áreas de estudos canônicas.

Ao abordar o Índico, Machado compreende como os processos de circulação dependiam do conhecimento específico da navegação e do domínio dos fluxos das águas e ventos das monções. Assim, observa como as próprias condições materiais da circulação proporcionaram a proeminência dos mercadores de Gujarate no comércio índico do período estudado, seja na produção de embarcações ou nas condições de financiamento das viagens. O oceano, bem como o processo de travessia, está integrado em sua argumentação, tomando sentidos outros que não apenas o de vazio entre as fronteiras.

As perspectivas dessa circulação permitem ao autor discutir o funcionamento de uma rede de relações economicamente interconectadas na dinâmica entre a região de Gujarate e o sudeste africano, especialmente o canal de Moçambique. A aquisição de marfim e escravos dependia de trocas comerciais com africanos e, nesta troca, os tecidos desempenhavam papel fundamental. Na medida em que os indianos eram capazes de compreender as demandas por tecidos por parte dos africanos, garantiam destaque nas relações comerciais e isso repercutiu no crescimento de uma produção manufatureira dos tecidos e tinturarias na Índia para atender especificamente a esse comércio.

Assim, ao discutir a expansão e o crescimento da atividade comercial dos mercadores indianos nas relações do oceano Índico na sua porção a oeste, o estudo descentraliza a figura do europeu no funcionamento das dinâmicas econômicas e sociais naquela parte do continente africano. Machado mostra como os comerciantes vaniyas estavam inseridos, via comércio de escravos, no funcionamento do sistema econômico mundial, nas relações que envolviam o fornecimento de tecidos, a prata originária da América do Sul e as plantações brasileiras, consumidoras de cativos.

O livro inicia com um relato de um comerciante vaniya, Laxmichand Motichand, que “estava entranhado em um mundo em movimento” (p. 1, tradução minha). A experiência de Motichand descrita na introdução reflete a própria trajetória da pesquisa em seus caminhos narrativos e metodológicos. Com amplo trabalho junto às fontes nos arquivos da Índia, Moçambique, Portugal e Inglaterra, o autor reconstrói laços de circulação entre a costa do sudeste africano e a região de Gujarate. Nesse sentido, Machado procura discutir ao longo de cinco capítulos como os comerciantes indianos se estabeleceram e expandiram suas relações no Índico.

O primeiro capítulo apresenta o cenário da expansão da atividade dos mercadores vaniyas na costa africana do oceano Índico, identificando o funcionamento das redes comerciais entre Gujarate e Moçambique e a sua vinculação com o comércio de escravos. Identifica como as relações de parentesco estabelecidas nas duas pontas do oceano favoreciam os negócios, bem como a atuação dos intermediários (patamares e vashambazi) com as regiões do interior. Isso se somava às formas de transferências de capitais (hundis, sarrafs) que tornaram os mercadores vaniyas indispensáveis para a esfera comercial portuguesa.

No segundo capítulo discute a circulação dos vaniyas provenientes das regiões de Diu e Damão. Retoma um ponto importante da história dos oceanos, qual seja, a própria navegação. A região possuía uma tripulação experiente na navegação pelo Índico, uma significativa independência no transporte marítimo e nas estruturas de serviços de seguro marítimo e capital especulativo. Logo, o controle do tempo de circulação e as relações estabelecidas nas duas pontas do oceano permitiam a manutenção do ritmo da atividade comercial. Dominar os mares também era fundamental para dominar o comércio.

Com os espaços e as condições de circulação traçados, o autor parte para discutir um de seus argumentos mais instigantes no terceiro capítulo em que trata sobre o consumo de tecidos na costa sudoeste da África. Demonstra que os comerciantes vaniyas tornaram-se fundamentais para as negociações na região, uma vez que compreendiam que os africanos, com quem negociavam marfim e escravos, possuíam preferências e gostos particulares no que diz respeito aos tecidos. Com os seus intermediários na costa africana, os comerciantes indianos conseguiam atender às demandas de tecidos na região de Moçambique. Assim possuíam uma vantagem comercial em relação aos europeus que ignoravam as preferências do consumo africano.

Discutida a importância do mercado de tecidos e sua relação com o mercado africano, o autor concentra-se, em seus últimos capítulos, na participação dos vaniyas no comércio de marfim (cap. IV) e no de escravos (cap. V). Os produtos têxteis teriam, na análise de Machado, sustentado consideravelmente ambos os negócios. O consumo de marfim entre os indianos contribuiu para a presença dos comerciantes na costa africana, onde adquiriram grandes quantidades do produto, comércio substancialmente alimentado pelas caravanas de longa distância, principalmente as das populações yao (ou wayao). Já no comércio de escravos, o papel dos vaniyas se dava por meios indiretos, isto é, na venda de tecidos para traficantes portugueses, franceses e brasileiros, financiada com prata sul-americana que se tornou um importante capital para os comerciantes indianos e para o Índico no geral.

Ocean tradetorna-se, portanto, uma leitura instigante para o historiador brasileiro à medida que dialoga com uma preocupação presente em nossa historiografia ao observar a atuação de “atores aparentemente marginais à operação global na economia oceânica da escravidão” (p. 267, tradução minha). Machado deslinda as maneiras pelas quais os mercadores indianos e seus parceiros estabelecidos na costa africana constituíam um fluxo de informações sobre as preferências por estilos de tecidos, que seguiam o próprio tempo das monções. Assim, os indianos garantiam o abastecimento do mercado de Moçambique. Acompanhando as formas pelas quais osvaniyasse inseriram nas relações comerciais do Índico, o autor demonstra como eles operavam no interior do sistema escravista no âmbito regional, ao atender as demandas africanas, mas também no âmbito global, garantindo com a produção têxtil o funcionamento do mercado escravista tanto do Índico como do Atlântico. A circulação de tecidos “ligava o sul da Ásia à costa africana, as ilhas e o interior, aproximando os consumidores africanos de produtores sul-asiáticos em uma íntima e complexa conexão oceânica das histórias materiais” (p. 120, tradução minha). Assim, a obra em questão permite ampliar nossa escala de entendimento dos processos históricos existentes entre Atlântico e Índico e fornece uma importante contribuição para o pesquisador preocupado no estudo da diáspora africana da África Oriental, mais especificamente da região de Moçambique, incluindo o tráfico para o Brasil.

Além disso, ao prestar atenção a outros focos econômicos e sociais, o autor consegue ampliar a leitura sobre a história africana questionando uma perspectiva meramente eurocêntrica ao buscar a participação dos agentes indianos e entendê-los dentro da dinâmica comercial escravista africana e, nela, a expansão dos comerciantes vaniyas ao longo do século XVIII e início do XIX, bem como suas habilidades em considerar as demandas e as preferências regionais dos africanos por determinados tipos de tecidos. Para além da dicotomia africanos e europeus, Ocean trade permite entender a profundidade e a amplitude dos processos históricos, em especial para estudiosos sobre África.

Referências

ALPERS, Edward A. East Africa and the Indian Ocean. Princeton: Markus Winer Publishers, 2009. [ Links ]

BOSE, Sugata. Space and time on the Indian Ocean rim: theory and history. In: FAWAZ, Leila Tarnzi & BAYLY, C. A. (ed.). Modernity and culture from Mediterranean to the Indian Ocean. Nova York: Columbia University Press, 2002, p. 365-386. [ Links ]

CAMPBELL, Gwyn (ed.). Abolition and its aftermath in Indian Ocean Africa and Asia. Londres: Frank Class, 2005. [ Links ]

__________. (ed.). The structure of slavery in Indian Ocean Africa and Asia. Londres: Frank Class, 2004. [ Links ]

CHAUDHURI, Kirti Narayan. Trade and civilization in the Indian Ocean: an economic history from the rise of Islam to 1750. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. [ Links ]

PEARSON, Michael. Indian ocean. Londres: Routledge, 2003. [ Links ]

TOUSSAINT, Auguste. Histoire de l’ocean Indien. Paris: Presses Universitaries de France, 1961. [ Links ]

UNESCO. The general history of Africa. Studies and documents 3: Meeting of experts on historical contacts between East Africa and Madagascar on the one hand, and South East Asia on the other, across the Indian ocean. Port Louis: Unesco, 1974. [ Links ]

VINK, Markus P. Indian Ocean studies and the “new thallassology”. Journal of Global History, n. 2, 2007. [ Links ]

ZIMBA, Benigna. O papel da mulher no consumo de tecido importado no norte e no sul de Moçambique, entre os finais do século XVIII e os meados do século XX. In: NASCIMENTO, Augusto; ROCHA, Aurélio; RODRIGUES, Eugénia (org.).Moçambique: relações históricas regionais e com países da CPLP. Maputo: Ed. Alcance, 2011, p. 15-38. [ Links ]

2Sobre o consumo de tecidos e seu papel nas relações sociais e de gênero em Moçambique cf. ZIMBA, Benigna. O papel da mulher no consumo de tecido importado no norte e no sul de Moçambique, entre os finais do século XVIII e os meados do século XX. In: NASCIMENTO, Augusto; ROCHA, Aurélio; RODRIGUES, Eugénia (org.).Moçambique: relações históricas regionais e com países da CPLP.Maputo: Ed. Alcance, 2011, p. 15-38.

3Os primeiros trabalhos a abordarem essa perspectiva foram os estudos clássicos de TOUSSAINT, AugusteHistoire de l’ocean Indien. Paris: Presses Universitaries de France, 1961; e CHAUDHURI, Kirti NarayanTrade and civilization in the Indian ocean: an economic history from the rise of Islam to 1750. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.

4Nesse sentido destacam-se os encontros organizados pela Unesco na década de 1970 sobre a escravidão na qual a temática no oceano Índico é objeto de discussão na conferência de Port-Louis, em Maurício (Unesco, 1974).

Thiago de Araujo Folador – Bacharel em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestrando em História Social pela mesma instituição. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected].

When christians first met muslims: a sourcebook of the earliest syriac writings on Islam | Philip Michael Penn

Ao contrário do que sugeriram alguns analistas em momento anterior, a religião não desapareceu do horizonte nestas primeiras décadas do século XXI. Ao contrário, o revival da militância religiosa, que não cessa de se fazer presente de diversas formas nos projetos e preocupações contemporâneas, constitui-se em um importante desafio às análises sobre as crises contemporâneas que nos afligem. Esses fenômenos de efervescência religiosa de amplas consequências sociopolíticas e culturais, contudo, não são desconhecidos dos historiadores. Talvez um dos mais importantes deles tenha sido o que se alastrou pelo Oriente Médio do primeira metade do século VII, onde se verificou o embate entre o cristianismo bizantino e o zoroastrianismo sassânida, o recrudescimento das disputas cristológicas que já dividiam as comunidades cristãs há duzentos anos, e o surgimento do Islã, que se apresentou ao mundo a um só tempo como religião e como projeto imperial. O espetacular ressurgimento do islamismo político em nossos noticiários faz com que olhemos para esses eventos de modo assustadiço e anacrônico, como se sementes ou prefigurações. As realidades que nos são apresentadas pela documentação de época, porém, são bastante mais complexas.

Infelizmente, nosso olhar para esta realidade ainda é míope. De acordo com o Anonymi auctoris Chronicon ad annum Christi 1234 pertinens, importante texto siríaco medieval, em 636, depois de vencer os persas e assistir às primeiras vitórias árabes a expensas de seus domínios, o imperador bizantino Heráclio abandonou Antioquia aos apetites de seus soldados e à iminente conquista muçulmana. A partir deste ponto, o Império Romano do Oriente perderia suas possessões no Oriente Médio e na África, passando geralmente a um combate defensivo contra o jovem Califado. Trata-se, no entanto, de uma virada não só na história da região e da humanidade, mas igualmente da historiografia. A maior parte dos historiadores interessados na história do cristianismo, ao se deparar com a década de 630, faz o mesmo que Heráclio e diz “Sozou, Síria!” O mais comum é que, em suas reconstituições e análises, o cristianismo médio-oriental, que durante séculos constituiu o coração pulsante do ecúmeno cristão, desapareça subitamente a partir daí; seus objetos de reflexão passam a ser, preferencialmente, os documentos e questões dos cristianismos latino e (em proporção muito menor) bizantino. Por outro lado, em uma pragmática divisão do trabalho intelectual, historiadores interessados na ascensão do Islã e na formação do ecúmeno muçulmano fazem o caminho inverso e se dedicam ao estudo intensivo dos textos em árabe e em persa referentes a tais fenômenos. Ambas as abordagens sobre esse período de crise, contudo, são problemáticas e, como se afirmou antes, míopes. Se não mais, porque ignoram as condições e perspectivas da maior parte da população então submetida ao domínio islâmico: cristãos não bizantinos e não latinos, que permaneceram por séculos sob o domínio do Califado sem passarem de modo necessário pelo processo de islamização.

Os membros das antigas Igrejas apostólicas do Oriente, que compunham talvez três quartos do número total de cristãos da segunda metade do primeiro milênio da Era Comum, assim marginalizados pela historiografia, o são por razões diversas. Duas são particularmente notáveis: o fato de serem sistematicamente ignorados – quando não deliberadamente silenciados – pelos historiadores da Igreja de matriz latina (católicos ou protestantes) e bizantina (gregos, russos, entre outros) como heterodoxos, cismáticos e, por consequência, supostamente menores; e, a dificuldade de acesso aos documentos por eles produzidos, em função de barreiras linguísticas e editoriais. Tal cenário é bastante trágico ao se considerar de uma só vista o crescente interesse pela história do Islã inicial e a precariedade ainda vigente dos estudos referentes aos textos escritos no âmbito das Igrejas de matriz siríaca. Ora, os escritos produzidos por cristãos sírios nos séculos VII a IX são simplesmente fundamentais para se reconstituir o processo de estabelecimento do Islã no centro daquelas partes que hoje conhecemos como sendo o mundo muçulmano. É certo que os especialistas em história islâmica dispõem de centenas de milhares de páginas de documentos de época, escritos em árabe e em persa, referentes à vida de Muhammad, ao governo dos primeiros califas e da dinastia omíada, mas a maior parte delas remonta efetivamente ao período posterior à ascensão dos abássidas, em 750, quando houve um grande investimento da parte dos novos donos do poder para sistematizar o que se conhecia sobre o passado do Califado como uma forma de corroborar suas reivindicações do exercício de uma autoridade, não apenas de fato, mas legítima. Não é fácil separar, no âmbito deste amplo acervo documental, o material realmente antigo das interpolações posteriores. Uma exceção evidente a este quadro é, sem dúvida, o Corão, mas se deve recordar que ainda há uma enorme resistência da parte de muitos pesquisadores (e não apenas entre os que são muçulmanos devotos) em submetê-lo a uma exegese histórico-crítica conveniente. Lidar com os textos siríacos da segunda metade do século VII à primeira metade do século VIII que mencionam o Islã não é, portanto, apenas se deparar com mais uma das visões cristãs sobre o movimento dos seguidores de Muhammad, mas com uma perspectiva particularmente esclarecedora para a própria história islâmica. E isso: 1) Porque se tratam de textos, em sua maior parte, contemporâneos das realidades às quais se referem; 2) Porque, ainda que seja verdade que os cristãos siríacos também compreenderam e descreveram o Islã de acordo com suas próprias formações e interesses, contudo, de um modo geral, seus escritos não foram tão profundamente marcados por um viés agressivo quanto os de autores bizantinos e latinos que produziram imediatamente diante da linha de fratura entre os Estados que os abrigavam e o Califado. Vivendo no interior da Dar alIslam, os cristãos siríacos tinham contato cotidiano e um conhecimento direto do que escreviam a respeito do Islã; se a confiabilidade histórica e o índice de distorção ideológica da realidade constante em seus testemunhos é diversa, entretanto, não se deve esquecer que eles se vinculam diretamente a um cenário onde esses cristãos comiam e negociavam com muçulmanos, casavam e trabalhavam com muçulmanos, educavam seus filhos junto com os filhos dos muçulmanos, e serviam como burocratas, soldados e diversos tipos de colaboradores no Estado Islâmico.

É no sentido de ter um primeiro contato com essa literatura que nos ajuda o When christians met muslims, de Michael Philip Penn, professor de Estudos da Religião, especialista em história do cristianismo primitivo, da Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, EUA. Depois de estudar as interações entre rito e identidade nos textos cristãos da Antiguidade Tardia (em Kissing christians: ritual and community in Late Ancient Church, de 2005), Penn dedicou-se a investigar a presença dos cristãos siríacos no jovem mundo islâmico, projeto que rendeu a publicação simultânea, em 2015, de dois livros premiados: Envisioning Islam: syriac christians in the Early Muslim World e When christians met muslims, que é uma coletânea comentada de fontes utilizadas neste estudo. No livro sobre o qual aqui nos detemos, depois de uma breve introdução, Penn apresenta ao leitor vinte e oito escritos produzidos por cristãos siríacos nos quais está de alguma maneira tematizada a sua relação com os muçulmanos. Os textos, provenientes de diferentes nichos confessionais – miafisitas (inapropriadamente conhecidos como jacobitas), dioprosoponitas (inapropriadamente conhecidos como nestorianos), monotelitas e calcedônicos –, são dispostos em ordem cronológica e precedidos por parágrafos introdutórios nos quais se sintetiza o contexto de produção de cada escrito e o histórico de sua transmissão, desde o momento da possível composição até sua redescoberta pelos historiadores contemporâneos. Tratam-se de textos de diferentes estilos e funcionalidades (crônicas, epístolas, apocalipses, hagiografias, cânones sinodais, tratados teológicos e diálogos), dos quais, com a exceção de dois (a Controvérsia de Bēt Ḥalē e a Vida de Teódoto de Amida), omitidos por motivos não esclarecidos, Penn oferece novas versões em inglês. O conjunto é seguido por bons levantamentos bibliográficos, que encaminham eventuais interessados a estudos mais aprofundados a respeito de cada um dos documentos.

É indiscutível que é desejável que um historiador leia os documentos com os quais se propõe a lidar no idioma em que foram originalmente redigidos, assim como é preferível que, tratando-se de escritos que possuem variantes ou uma transmissão problemática, consulte diferentes manuscritos. Isso, entretanto, é virtualmente impossível aos estudantes mais jovens, não apenas os brasileiros, e por diferentes motivos. O mais importante talvez seja o fato de que ninguém se dispõe a investir horas de estudo aprendendo, digamos, o siríaco, se já não possuir um vivo interesse pelo que irá encontrar neste idioma. Nesse sentido, When christians met muslims é um manual importante, que pode despertar o interesse dos pesquisadores em exercício ou em formação para horizontes ainda muito pouco explorados, contribuindo para que, de fato, comecemos a dar passos no sentido de um estudo menos eurocêntrico de nosso passado comum. O livro é igualmente útil aos especialistas por fornecer bons levantamentos bibliográficos, material para exercícios de comparação e subsídio para uso em aulas e outras atividades de divulgação científica. Além disso, pode interessar cientistas da religião e teólogos, que ao pensar o cristianismo tardo-antigo e medieval lidam com contingências e desafios similares aos dos historiadores, assim como interessados em geral no contato entre cristãos e muçulmanos no Oriente Médio, no passado, mas também hoje. De fato, estou certo de que, ao recuperar as diferentes visões dos cristãos siríacos a respeito do Islã recém-surgido, os textos reunidos por Penn não só fornecem elementos para que entendamos melhor o desenvolvimento sociopolítico e cultural posterior da região, mas também nos ajudam no exercício, proposto em um livro de Carlo Guinzburg publicado há poucos anos em português, de “aprender a olhar o presente à distância, como se o víssemos através de uma luneta invertida”.

No caleidoscópio dos textos siríacos rememorados em When christians met muslims é inevitável que nos surja de novo a atualidade, “porém num contexto diferente, inesperado”; assim como não é possível encontrar hoje nem uma existência sempre harmoniosa entre cristãos e muçulmanos, nem um conflito permanente, necessário e inapelável entre essas partes, da mesma forma não se pode surpreender uma coisa ou outra da segunda metade do século VII à primeira metade do século VIII. A convivência entre cristãos e muçulmanos, que a tantos aflige, continua, portanto, como uma questão histórica e política reiteradamente em aberto.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz – Doutorando em História Política pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); Bacharel e licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).  E-mail: [email protected]

PENN, Michael Philip. When christians first met muslims: a sourcebook of the earliest syriac writings on Islam. Oakland: University of California Press, 2015. Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Testemunhos de um mundo partilhado. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 18, p. 277-280, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

 

Reel bad arabs: how Hollywood vilifies a people | Jack G. Shaheen

Questões políticas geralmente influenciam o cinema, logo, desde o início do século XX, embates desta natureza são refletidos por esta indústria. Atualmente, acompanhamos a luta de alguns grupos por representatividade neste meio, assim, homossexuais, mulheres e negros, por exemplo, tem lutado por mais espaço e por uma representação digna em Hollywood. Dentre tais grupos podemos citar os árabes, e é justamente sobre a representação desta etnia que trata o livro intitulado Reel Bad Arabs: how Hollywood vilifies a people, de Jack G. Shaheen. Leia Mais

The Political Economy of East Asia: striving for wealth and power | Ming Wan

Já faz algum tempo que os pesquisadores que tratam das relações internacionais na Ásia sentem a necessidade de associar os temas tradicionais do campo das relações internacionais com os conhecimentos oriundos da economia política. Tal ocorrência deve-se ao fato de que os estudos de Economia Política Internacional (EPI) ainda são bastante influenciados pela corrente ocidental, notadamente de vertente norte-americana e inglesa. A escola francesa veio a décadas atrás lançar luz sobre tais estudos escapando da armadilha dos pressupostos homogêneos e deixando de lado a leitura contextual originada no mainstream. Contudo, tal corrente é pouco difundida no ambiente acadêmico. É nesse sentido que se deve sublinhar a contribuição de Ming Wan ao propor um estudo da economia política do leste asiático.

O objetivo de Wan (2008) é organizar um livro que aglutine questões relativas ao comércio, produção, finanças e moedas, porém entendidas dentro de um cenário de características distintas daquelas vigentes nos países ocidentais. Logo, torna-se necessário partir de premissas diferenciadas para que se entenda a economia política da região do leste asiático. Dentre essas destaca-se a questão do regionalismo, devidamente tratada no capítulo 11 da obra. O capítulo supracitado chama atenção pois tal assunto merece uma formulação conceitual transcende a proximidade geográfica, trazendo à tona outros elementos analíticos complementares tais como a complementaridade, o esforço de cooperação e a coesão regional. Leia Mais

Narratives of Kingship in Eurasian Empires, 1300-1800 | Ricard van Leeuwen

Narratives of Kingship in Eurasian Empires, 1300-1800 é o décimo primeiro volume de uma série de livros em contínua produção, Rulers & Elites, organizada por Jeroen Duindam. A série se propõe a analisar o poder dos governantes e das elites de períodos e espaços diferentes a partir de aspectos culturais, literários, econômicos, entre outros. No caso da obra selecionada, a concepção e a legitimação de uma realeza diretamente relacionada ao poder, sejam de um rei, sultão ou califa, podem ser encontradas em narrativas literárias como espelho-depríncipes e histórias de aventura.

O autor de Narratives…, Richard Van Leeuwen, é professor na Universidade de Amsterdã e atua na área de Estudos Islâmicos. Suas pesquisas são majoritariamente sobre história do Oriente Médio, a literatura árabe e o islã no mundo moderno. Algumas de suas publicações são Waqfs and Urban Structures: The Case of Ottoman Damascus (1999) e The Thousand and One Nights: Space, Travel and Transformation (2007).

Em sua Introdução, Leeuwen reconhece as dificuldades impostas pelo tema. As fontes selecionadas são histórias que sobrevivem ao tempo sofrendo algumas mudanças conforme o contexto perpassado. Um exemplo recorrente é a compilação de histórias de As Mil e Uma Noites, cujo título aparece por volta do século XII, mas alguns dos contos são de séculos anteriores e a obra completa permanece até a atualidade como uma grande referência literária. A sobrevivência destas narrativas e de seus temas permanece, também, devido às traduções e adaptações. Várias histórias criadas na Ásia, por exemplo, foram traduzidas para o árabe e turco pelos mamelucos e otomanos, permitindo que elas se difundissem por um grande espaço geográfico.[2]

As adaptações refletem os gostos e mentalidades de diversos períodos. O espaço e o período compreendidos pelas fontes, portanto, são demasiado vastos. Não foi possível aprofundar cada contexto de origem e de mudança das narrativas selecionadas separadamente. Mas o objetivo de Narratives… é outro: encontrar possíveis paralelos discursivos sobre poder e reinado em textos narrativos de impérios euroasiáticos entre 1300 e 1800. De acordo com Leeuwen, a literatura era um meio importante para a compreensão e divulgação dos símbolos de poder. Além disso, traços de tradições orais são encontradas mescladas com tradições escritas, significando um encontro entre o imaginário popular e o aristocrático.

A obra é dividida em seis capítulos, cada um tratando de um tema específico utilizando entre duas e seis histórias, sendo eles: os papéis do rei, dos vizires e das concubinas na trama; deuses e demônios em contato com o rei e sua influência na legitimação do governante; percepção divina e harmonia cósmica; a relação e diferenciação entre o cavaleiro e o rei; o amor e o poder soberano; e, por último, conselhos e críticas (desejados ou não) feitas ao governo. Para situar o leitor, o autor apresenta uma sinopse do conto seguida de uma análise aprofundada do mesmo. Devido aos limites instituídos pela quantidade de fontes e pelo tamanho da produção historiográfica, muitos detalhes do roteiro são explicados brevemente em meio à análise das obras.

A organização do texto é bem estruturada e clara, como descrevemos acima, cumprindo objetivamente o que é proposto no título e na introdução. Apesar de as sinopses serem extremamente breves – ponto que o próprio autor reconhece – alguns detalhes da narrativa são abordados conforme o tema, como a descrição de uma personagem ou uma cena específica que são determinantes para o argumento construído por Richard van Leeuwen. Estas amostras das histórias, porém, incitam o leitor a procurá-las e lê-las na íntegra. Os temas de cada capítulo se relacionam com as fontes e temas anteriores, criando uma rede de ligações entre os aspectos comuns às várias narrativas.

O primeiro capítulo, Kings, Viziers, Concubines, traz quatro narrativas cujos pontos comuns incluem o governante como a personificação dos valores do reino, o vizir como o sábio conselheiro a ser seguido, e a concubina real que traz o desequilíbrio do reino. Os contos abordados são Seven Viziers [3] e algumas de suas variações como Jali’ad of Hind and His Vizier Shimas, ambas de origem persa em sua versão de As Mil e Uma Noites, King Wu’s Expedition Against Zhou e Proclaiming Harmony, ambas de origem chinesa. As versões das duas primeiras histórias utilizadas pertencem ao século XVIII, enquanto as chinesas datam do século XIV.

As narrativas persas possuem um formato comum, em que os desejos carnais e a influência das mulheres no governante trazem a ruína do império, restando ao sábio vizir redirecionar a impulsividade do líder imperial. Portanto, o posicionamento das personagens é bem claro: o rei aparece como representante do reino, às vezes cedendo às paixões; o papel do vizir é manter a tradição e a sabedoria por meio do aconselhamento; e a mulher causa a desordem, a enganação, as emoções irracionais. Estas características se mantêm, mesmo atravessando limites culturais e temporais. O perigo atribuído às paixões e o papel sábio dos ministros também aparece nos contos chineses, porém de forma mais similar a um espelho-de-príncipe. A ficção não é tão presente quanto nas outras fontes: a história das dinastias é o principal elemento do roteiro, apresentando personagens e acontecimentos históricos.

Analisando o discurso de poder nestas fontes, Richard van Leeuwen destaca alguns pontos comuns. Em todas as narrativas, há uma ameaça de descontinuação da dinastia, seja pela falta de um príncipe ou pelo comportamento inadequado de um rei, obrigando a formação de novos princípios para o governo que visam o restabelecimento do império. Para isto, o rei deve ser iniciado na sabedoria e conhecimento acumulados na tradição humana, pois ele não apenas deve seguir seus princípios como deve personificá-los (LEEUWEN, 2017: 24).

No segundo capítulo, é abordada a relação entre a autoridade do governante e do vizir e a aparição de forças sobrenaturais na forma de deuses, demônios e espíritos, aparecendo como parte da iniciação da personagem. Para esta análise, foram utilizados contos sobre os reinantes Vikramaditya, Harun Al-Rashid e Wu, protagonistas semi-históricos. Os três ascendem ao poder de forma quase inevitável, como se forçados a assumir este papel. O autor afirma que de certa forma “eles são antiheróis, que atingiram sua posição apesar de si mesmos, como se obrigados por forças irresistíveis a assumir suas responsabilidades” (LEEUWEN, 2017: 76) [4].

Eles estão diretamente relacionados às forças sobrenaturais (encantamentos, objetos mágicos, demônios) e sua autoridade é concebida pelo divino. No entanto, é uma autoridade a ser conquistada de acordo com a disposição de ajudar a população. É interessante notar como os elementos sobrenaturais se alteram conforme o período e região, como a cosmologia e mitologia hindu na versão bengalesa e referências a práticas islâmicas em versões persas posteriores. O conhecimento esotérico e o esclarecimento divino também aparecem como determinantes para a formação do protagonista. Esta transformação possibilita perceber a influência do contexto do autor ou tradutor na obra sobre a qual ele trabalha.

Histórias como The Queen of Serpents (introduzida em As Mil e Uma Noites no século XVIII), The Sorcerer’s Revolt (um romance compilado pelo chinês Feng Menglong no século XVII) e Manuscrit Trouvé à Saragosse (escrito por Jean Potocki no século XIX) apresentam a iniciação do príncipe ou vizir ao conhecimento esotérico, visando a atingir o meio termo entre crença e superstição, entre morais extremas e entre os interesses humanos e divinos. A autoridade e legitimidade do governante, portanto, são situadas de acordo com suas relações com a religião e as forças sobrenaturais de forma bem ampla. Sua autoridade se naturaliza e harmoniza com forças cósmicas, denotando a importância do equilíbrio nas relações e atribuindo o nome do terceiro capítulo, Divine Insights, Cosmic Harmony.

Além de reis e ministros, outra figura é destacada por Leeuwen: o cavaleiro. O autor comenta: “Há dois temas que parecem estar presentes em literaturas pelo mundo inteiro: amor e guerra” (LEEUWEN, 2017: 109). No quarto capítulo, foram selecionados seis romances cavalheirescos variando geográfica e temporalmente, de tradições europeia, persa/urdu, chinesa, árabe, malaia e turca. Neles, a ascensão ao poder se dá não por um sucessor sanguíneo, mas por um guerreiro que passa por uma iniciação para se tornar o soberano. Os cavaleiros abordados são Tirante o Branco, Amir Hamza, Yue Fei, Hang Tuah, Al-Zahir Baybars e Sayyd Battal. Um conto apresenta uma inclinação para o aspecto biográfico, o Romance of Baybars, cujo protagonista é estrangeiro, forasteiro naquela sociedade e governo.

Richard van Leeuwen aborda Ron Sela, que pesquisou biografias com aspecto fictício de Tamerlão que apareceram no século XVIII em turco e persa. Sela compara estas biografias com a de Baybars, e Leeuwen concorda com a ideia de que ambas as narrativas encaixam na categoria literária semipopular, combinando elementos populares com discursos aristocráticos de poder. Os valores morais defendidos pela comunidade são determinantes para a legitimação destas duas figuras, tornando-as modelos de um líder ideal antes de colocá-las no poder. Estes valores apresentam uma conexão entre a cultura popular e a elitizada.

A figura da mulher muda nestas últimas narrativas: seu papel ainda é determinante, mas desta vez de forma positiva. Porém, ela nunca ocupa um lugar de poder, sua posição é de subordinação à das outras personagens nas narrativas abordadas. Leeuwen descreve os contos como misóginos, mesmo para o contexto em que se encontravam. Em Tirant lo Blanc e The Book of Amir Hamza o caso é mais complexo: a figura feminina está envolvida com a estrutura de poder e autoridade, atuando como referencial de virtude e lealdade. Há, portanto, um paradoxo, em que por um lado sua posição é marginal, mas por outro possui um poder simbólico forte. Ela atua como ruptura e ao mesmo tempo como continuidade.

As relações entre os gêneros são foco dos romances de amor, aprofundados no quinto capítulo do livro. Este é dividido em duas partes, uma analisando um agrupamento de uma rede de histórias de amor árabe-persa e hindu, e outra um agrupamento de romances de cavalaria que se tornaram contos de amor na Europa. Nos contos, percebe-se a conexão direta entre a realeza e o amor na busca pela pessoa amada na forma de uma aventura. Um padrão é identificado nas primeiras cinco fontes, pertencentes às tradições árabe, persa, hindu, indiana, e nas fontes europeias.

O amor fornece não só um enredo dramático, mas também o paradoxo feminino tratado anteriormente: a interrupção da dinastia devido à paixão e a continuidade da mesma pela sexualidade. Entre a ruptura e a continuidade, há o período de busca e aventura por parte do príncipe. A ameaça de ruptura surge com o fato de o amor e de a sexualidade possivelmente quebrarem regras sociais e instituições. Desta forma, este sentimento se manifesta como destino, afetando não só as duas personagens envolvidas, mas também a comunidade inteira por meio de suas ações.

No sexto e último capítulo, Richard van Leeuwen apresenta narrativas ficcionais e semificcionais que criticam o usufruto do poder pelo governante. Seus autores eram indivíduos que voluntariamente tomaram a posição de vizir e tentaram corrigir o rei, mesmo que seu aconselhamento não fosse requisitado e muitas vezes oprimido. Eles são produzidos em períodos prósperos governados por poderes absolutos, podendo ser considerados “absolutismos esclarecidos” (LEEUWEN, 2017: 200), que incluem as dinastias Ming e Qing, os impérios Mogol e Otomano e as casas reais da Espanha, França, Inglaterra e Áustria.

Diferente das narrativas anteriores que visam a facilitar o discurso de poder, estas questionam sua efetividade e problematizam a relação entre comunidade e governante. A contestação se dá diretamente ao líder por meio da crítica ou pela recomendação de alternativas que diminuam seu poder absoluto. Obras do Oriente Médio e da Ásia contribuíram para as produções no Ocidente nos séculos XVIII e XIX, visto que o contato entre estes se intensificou, criando novas e mais complexas formas de visão de mundo.

Concluindo a obra, Leeuwen destaca como as narrativas funcionam sempre dentro da estrutura de poder e autoridade, dialogando entre a visão da corte e a visão popular. O hibridismo que permite esta conexão insere na imaginação coletiva valores que consolidam as estruturas de poder. A história serve como repositório de identidades, de valores culturais e morais, geralmente projetadas sobre uma figura específica, e como fonte de legitimação (LEEUWEN, 2017: 255). A religião também aparece com papel semelhante, fornecendo valores e um sentimento de experiência comum, junto da história. O que permite a permanência de uma narrativa através do tempo e do espaço, porém, é seu impacto e sua capacidade de se reinventar como fenômeno cultural e literário.

Narratives of Kingship in Eurasian Empires é uma ótima leitura tanto para interessados em história quanto em literatura, estabelecendo um rico diálogo entre as duas áreas. Como tratado nesta resenha, a quantidade de fontes narrativas é grande, fornecendo um panorama geográfico e temporal vasto para entender as manifestações literárias sobre discursos de poder entre 1300 e 1800.

Notas

2. Um exemplo seria o trabalho de Mamede Mustafa Jarouche, na tradução direta do árabe para o português da obra Livro das Mil e Uma Noites, publicada no Brasil em 4 volumes. JAROUCHE, Mamede Mustafa. O Livro das Mil e Uma Noites: volume I – ramo sírio. v. 1. São Paulo: Editora Globo, 2005.

3. Este título se refere a uma gama de traduções e adaptações, alguns exemplos sendo O Livro de Sinbad, na versão árabe, e The Seven Sages of Rome, como é chamado em vários outros idiomas.

4. Tradução de minha autoria.

Annie Venson Bogoni – Graduada no curso de História (Licenciatura e Bacharelado) da Universidade Federal do Paraná. Mestranda em História pela mesma instituição.


LEEUWEN, Richard van. Narratives of Kingship in Eurasian Empires, 1300-1800. Leiden: Brill, 2017. Resenha de: BOGONI, Annie Venson. Cadernos de Clio. Curitiba, v.8, n.2, p.141-150, 2017. Acessar publicação original [DR]

El Oriente desplazado: Los intelectuales y los orígenes del tercermundismo en la Argentina | Martín Bergel

El presente trabajo es fruto de la tesis de doctorado del historiador argentino Martín Bergel, defendida en el año 2010 y publicada bajo el formato de libro en el año 2015 por la editorial de la Universidad de Quilmes. En este libro el autor reconstruye el surgimiento y la difusión de una imagen positiva de Oriente, consolidada en la década de 1920, que invierte la visión clásica, dominante durante el siglo XIX y principios del siglo XX, según la cual el Oriente representa una serie de valores negativos como la barbarie, el atraso y la violencia. Bergel sitúa a este fenómeno intelectual y cultural, al que denomina “orientalismo invertido”, como un antecedente de lo que durante la década de 1950 se difundirá en Argentina como tercermundismo.

La particularidad del libro reside en que el autor propone una categoría histórica que supone una valoración diferente de aquel conjunto de imágenes y generalizaciones referidas al Oriente que el intelectual palestino Edward Said englobó bajo el término “orientalismo”. Este concepto supone, para Said, una proyección occidental sobre Oriente que se plasma en una serie de significados, asociaciones y connotaciones orientadas a ejercer una dominación sobre el mismo. A través del “orientalismo invertido”, Bergel logra articular un minucioso e interesante trabajo de investigación que alterna enfoques más descriptivos con otros más argumentativos y que confiere un papel fundamental a la dimensión material -libros, crónicas de viajes, revistas, correspondencias, intercambios epistolares, traducciones, fotografías, entre otras- que asiste a la circulación de ideas e imágenes sobre el Oriente generada por intelectuales de diversos lugares del campo cultural y político. Leia Mais

Scholarship and Inquiry in the Ancient Near East – RICHARDSON; GARFINKLE (PR-RDCDH)

RICHARDSON, S.; GARFINKLE, S. (Eds.). Scholarship and Inquiry in the Ancient Near East (=Journal of Ancient Near Eastern History special issue, vol. 2/2, 2015) Berlin: de Gruyter, 2016. 179p. Resenha de: ÁLVAREZ GARCÍA, J. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, Murcia, p.137-139, 2017.

La obra fue editada a petición de Seth Richardson y Steven Garfinkle (quien es además coeditor de la revista junto con Marc van de Mieroop). El tema central de este número especial versa sobre la producción, organización y edición del conocimiento cuneiforme. Para aproximarse a este tema se eligieron cuatro ámbitos en torno a los cuales se han realizado cuatro contribuciones por parte de distintos estudiosos sobre la historia del conocimiento en el Próximo Oriente Antiguo.

Como el propio Richardson afirma en la introducción al volumen (Introduction: Scholarship and Inquiry in the Ancient Near East, pp. 91-107) el primer problema al que se deben enfrentar los distintos investigadores es a la tendencia general de estudio sobre los corpora cuneiformes. Ésta consiste en la edición y comentario de los textos y las prácticas que los generaron sin tener en cuenta las operaciones intelectuales ni los medios sociales en los que estas actividades se desarrollaron, extrayendo el texto de su entorno socio-cultural.

Por lo tanto, los artículos que recoge el volumen pretenden ahondar en una serie de cuestiones como la organización y acceso al conocimiento y su transmisión, la figura y autoridad del escriba/erudito y su propia percepción como copista y autor de su trabajo. Así mismo se analizan los medios político, social y económico en el que estos trabajos intelectuales tomaron forma y con los que se relacionan. Del mismo modo, también se tratan en las distintas contribuciones las prácticas y los procesos interpretativos por parte de los escribas hacia los textos que recibían, con los trabajaban y con los que interactuaban. Finalmente, también se analizan cuestiones epistemológicas en torno a lo que el propio escriba y erudito pensaba sobre sí mismo y sobre su actividad.

Este trabajo sigue una tendencia muy actual en la investigación sobre el Próximo Oriente antiguo que gira en torno a la erudición y la producción intelectual. Sin embargo, esta nueva forma de aproximarse al mundo de los estudiosos en la antigüedad próximo-oriental no se habría conseguido sin establecer su “autonomía conceptual”, huyendo de los esquemas de las civilizaciones clásicas sobre pensamiento, filosofía y erudición en torno a las que tradicionalmente han girado esta clase de investigaciones; es decir, era fundamental concebir el conocimiento producido en los scriptoria próximo-orientales como esencialmente distinto y culturalmente independiente de lo que se desarrolló posteriormente en el mundo clásico. De esta forma, contamos desde la década de los noventa y muy especialmente en los últimos años con trabajos y proyectos en torno a la historia intelectual próximo-oriental.

Las cuatro contribuciones a este volumen se pueden organizar en dos grupos. El primero consistiría en los dos primeros artículos que versan sobre el desarrollo de la actividad intelectual en el área mesopotámica en dos periodos consecutivos, siendo el primero el dedicado al arco cronológico que va desde la invención de la escritura hasta el final del periodo paleobabilónico y el segundo desde ese momento hasta el final de la cultura cuneiforme durante la dominación helenística. El siguiente grupo trataría áreas donde la cultura cuneiforme mesopotámica fue cultivada, pero de donde no era originaria; consiste en dos artículos dedicados al desarrollo del cuneiforme en el mundo Hitita y en Ugarit respectivamente.

La primera contribución corre a cargo de Paul Delnero bajo el título Scholarship and inquiry in Early Mesopotamia (pp. 109-143) donde analizará distintos aspectos de la producción intelectual cuneiforme desde la invención de la escritura hasta finales de periodo Paleobabilonico (3400 a.C. – 1600 a.C.). El primer aspecto que estudia sobre la cultura cuneiforme es la cuestión de la autoría, en torno a la cual el autor define su carácter compartido entre aquellos que copian y transmiten las obras escritas y aquellos otros que las representan. Otro aspecto que trabaja es el de la organización del conocimiento y las funciones de la educación cuneiforme: aportar mecanismos prácticos para su desarrollo posterior y crear una cierta conciencia de clase en el conjunto de los escribas, una suerte de élite intelectual al servicio del poder y separada de la masa iletrada con escaso acceso al conocimiento. Si bien la posesión del conocimiento generaba una identidad de clase al servicio del poder siendo el conocimiento un potente instrumento de control social; esta función sólo podría adquirir su significado en la representación de la ideología ante una audiencia. Es decir, si entendemos el conocimiento como marca de la élite política, este instrumento solo adquiere autoridad cuando se pone en práctica a través de una red de agentes e instituciones que representan los distintos rituales y contenidos de los textos cuneiformes.

Alan Lenzi continúa con la descripción de la erudición cuneiforme en Mesopotamia desde la época kasita hasta el periodo tardío. En el artículo que titula Mesopotamian Scholarship: Kassite to Late Babylonian Periods (pp. 145-201) Lenzi, atendiendo a estos textos específicamente, observa una notable continuidad en los métodos de trabajo pese a proceso de canonización de los corpora eruditos, puesto que vemos innovaciones a través de comentarios y ampliaciones. Además, parece haber una reivindicación de la figura del escriba al indicar su nombre en los colofones de las obras, una manera de señalar el orgullo por su profesión. En el I milenio, los comentarios se hacen mucho más detallados y extensos que en el periodo anterior, lo cual indica una reflexión profunda en torno a las obras clásicas de la cultura mesopotámica, siendo la base de tal reflexión la escritura que era concebida como el mecanismo para aprehender el mundo. En este periodo y muy especialmente a lo largo del I milenio, estos intelectuales están íntimamente ligados con los aparatos de poder, ofreciendo sus servicios a las altas esferas sociales y políticas en sus consultas. Sin embargo, un importante proceso dentro de este largo periodo fue el de la expansión del saber mesopotámico a otras áreas durante el Bronce Final; de ser un conocimiento prácticamente circunscrito al área mesopotámica, pasa a convertirse en un conocimiento capaz de adaptarse a otras realidades culturales.

Es dentro de este proceso de expansión del saber cuneiforme a otras áreas donde se desarrollan las dos contribuciones siguientes. La primera, In Royal Circles: The Nature of Hittite Scholarship (pp. 203–227), ha sido escrita por Theo van der Hout y gira en torno a la actividad intelectual en Hattusa, uno de los puntos donde el saber mesopotámico tuvo más arraigo. Lo que pretende el autor es establecer la identidad del erudito hitita separado de la del simple burócrata, para poder establecer la auténtica naturaleza de la intelectualidad hitita. Vemos como una vez más el autor considera los colofones como una preciada fuente para conocer la identidad de los escribas y sus relaciones, además de ser un indicativo de cierta conciencia de clase entre los eruditos. A esto se suma el alto estatus social con el que contaban los escribas eruditos en el mundo hitita, muy cercanos al poder político y a distintas altas autoridades. Al igual que en el área mesopotámica la educación se podría dividir en dos estadios, un primer estadio enfocado a adquirir las competencias más básicas para la administración y un segundo con un estudio profundo de los textos de cara a una especialización en la erudición cuneiforme. Serían aquellos escribas que alcanzarían el segundo estadio de conocimientos los que constituirían la cúspide intelectual de la sociedad, los que firmarían sus obras en los colofones y los que pretenderían diferenciarse de los simples escribas administradores. Sin embargo, la escasez de textos sumero-acadios en Hattusa con colofón firmado indica que sólo un pequeño círculo de escribas se dedicaba a cultivar el saber mesopotámico.

El último artículo de este número especial consiste en un trabajo conjunto de los profesores Robert Hawley, Denis Pardee y Carole-Roche Hawley titulado The Scribal Culture of Ugarit (pp. 229–267) sobre las prácticas eruditas en Ugarit, ciudad costera del Norte de la actual Siria, que además de convertirse en un potente emporio comercial durante el Bronce Final, también fue un importante polo de atracción del saber mesopotámico del cual encontramos numerosos ejemplos en casas privadas donde se constituyeron centros de enseñanza. Como los propios autores señalan Ugarit es un lugar idóneo para estudios de historia intelectual al existir una cultura escrita dual (silábica y alfabética) que nos permite establecer comparaciones, diferencias y relaciones entre el conocimiento importado y el local. Este estudio de la producción intelectual ugarita se puede explicar a través de la tensión que se desarrolla entre la tradición y la innovación. Así pues, los autores se valen del modelo procedente del idealismo alemán sobre el desarrollo histórico comprendido en tres estadios (tesis – antítesis – síntesis) para dar una perspectiva intelectual e histórica al desarrollo de la erudición en Ugarit. Al igual que en otras zonas, aquí también los colofones nos aportan una gran cantidad de información sobre la identidad de los escribas. El primero (tesis) lo compondrían los eruditos dedicados al cultivo del cuneiforme mesopotámico, considerado un saber de prestigio y autoridad. Sin embargo, en torno al s. XIII a.C. se desarrolla desde las altas esferas políticas un sistema de escritura paralelo de carácter alfabético, de esta manera algunos escribas marcan su identidad y exploran nuevas vías de innovación (antítesis). Durante el último periodo de existencia del reino de Ugarit ambos sistemas convivieron y se retroalimentaron (síntesis).

A lo largo de estas cinco contribuciones sobre el tema de la erudición en el Próximo Oriente antiguo se pueden definir cuatro claves para entender la producción intelectual cuneiforme y que marcan las nuevas vías de investigación: la relación entre los escribas, la relación entre el escriba y el texto cuneiforme, la relación entre el escriba y el poder político y la relación entre el escriba y la identidad cultural. Los escribas en el Próximo Oriente Antiguo establecían su identidad social a través de su conocimiento erudito que los distinguía del resto de la población o incluso de otros escribas menos cualificados. Su trabajo no consistía en la mera copia de los textos cuneiformes, sino en la reflexión en torno a ellos, estudiándolos, comentándolos, ampliándolos, una relación muy especial entre erudición y escritura. Esta actividad venía amparada por los poderes políticos que veían en el conocimiento cuneiforme un potente instrumento de control social y mantenimiento de las estructuras de poder, el cual se servía de estos eruditos para poner en práctica dicho conocimiento ante una audiencia. Finalmente, está la cuestión de la relación con la identidad cultural, un aspecto mucho mejor apreciable en aquellas zonas donde el cuneiforme silábico no era originario. Por una parte, un enriquecimiento cultural a través del saber mesopotámico que les aportaba un prestigio social elevado, y por otra un cultivo del saber local, incluso en un sistema de escritura nuevo, que les vinculaba con la identidad colectiva. Seguramente, una última contribución a este volumen que versara sobre la recepción y producción de conocimiento en Asiria habría completado de manera excelente este estudio sobre la actividad erudita en el Próximo Oriente antiguo.

Así pues, vemos como la historia intelectual no es una rama apartada de los estudios históricos en el Próximo Oriente antiguo, sino intrínseca a las sociedades en donde estos conocimientos se desarrollaron.

Juan Álvarez García – Universidad Autónoma de Madrid.

Acessar publicação original

[IF]

Hinduism & Its Sense of History – SCHARMA (RMA)

SHARMA, Arvind. Hinduism & Its Sense of History. New Delhi: Oxford University Press, 2003. 134p. Resenha de: CARVALHO, Matheus Landau de. Teoria e metodologia do tempo na Índia: o pensamento hindu sobre a História. Revista Mundo Antigo, v.5, n.11, dez., 2016.

Publicado pela Oxford University Press em 2003, Hinduism & Its Sense of History é uma obra do historiador indiano Arvind Sharma dividida em quatro partes dedicadas à teoria e metodologia da história da Índia. Calcado em uma ampla gama de fontes primárias e secundárias de caráter historiográfico, religioso, linguístico e filosófico, Sharma avalia a afirmação recorrente há séculos de que os hindus como um povo e o Hinduísmo como uma tradição religiosa plural não possuem um senso de história suficiente. Leia Mais

Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória – HUYSSEN (AN)

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Trad. Vera Ribeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014. Resenha de: MACHADO, Diego Finder. Imaginar o futuro em um mundo globalizante: paisagens transnacionais dos discursos do modernismo e das políticas da memória. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 371-379, dez. 2016.

Como imaginar futuros em um mundo cada vez menos confiante em relação às promessas de progresso de uma época anterior? As sociedades contemporâneas do Ocidente, em contraste com outras sociedades, têm manifestado um renovado interesse pelo passado e pelos seus vestígios. Frente ao que podemos considerar uma “crise de futuro”, o presente vem ocupando uma posição dominante em nossas experiências de tempo. Contudo, trata-se de um presente que procura, insistentemente, enraizar-se em um passado apropriado às suas ansiedades, em uma tentativa de barrar a efemeridade dos nossos dias. Neste contexto, ainda é possível imaginar futuros alternativos que não sejam apenas o futuro da memória?

O crítico literário alemão Andreas Huyssen, em seu último livro traduzido para o português, a coletânea de ensaios intitulada Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória, aproxima duas temáticas centrais em suas pesquisas: as consequências do modernismo na obra de alguns artistas contemporâneos e as políticas da memória, do esquecimento e dos direitos humanos. Estabelecendo trânsitos pelas fronteiras que demarcam essas temáticas, a afinidade entre os diferentes capítulos do livro é construída em torno da problematização da memória em contextos transnacionais. Para o autor: A afirmação mais geral deste livro é que tanto o discurso do modernismo quanto a política da memória se globalizaram, mas sem criar um modernismo global único ou uma cultura global da memória e dos direitos humanos (HUYSSEN, 2014, p. 12-13).

Para além das experiências históricas da Alemanha e dos Estados Unidos, que lhes são mais familiares, buscou interpretar conexões transnacionais que ultrapassam as geografias do Atlântico Norte, aproximando-se de geografias alternativas das paisagens de memórias traumáticas e de experimentações estéticas modernistas na América Latina, Ásia e África.

Diante da evidência contemporânea de um declínio do debate sobre o “pós-modernismo”, o autor chama atenção para o retorno dos discursos sobre a modernidade e o modernismo na arquitetura e nos estudos urbanos, assim como na literatura, nas artes plásticas, na música, nos estudos midiáticos, na antropologia e nos estudos pós-coloniais. Para ele, aquele debate foi “uma tentativa norte-americana de reivindicar a liderança cultural”, a partir dos anos de 1920, por isso marcado por um “provincianismo geográfico” (HUYSSEN, 2014, p. 11).

A primeira parte da obra é dedicada a interpretar geografias alternativas do modernismo em um mundo globalizante, colocando em discussão as maneiras como a cultura metropolitana de um modernismo clássico foi traduzida e apropriada criativamente em países colonizados e pós-coloniais na Ásia, África e América Latina, antes e após a Segunda Guerra Mundial. Um diálogo crítico com alguns artistas e seus experimentos estéticos é tramado: o argentino Guillermo Kuitca e seus experimentos cartográficos como um pintor do espaço; o sul-africano William Ketridge e a indiana Nalini Malani e os seus teatros de sombras como arte memorial; o vietnamita Pipo Nguyem-duy e sua série de fotografias de ruínas ecológicas da modernidade; e a colombiana Doris Salcedo com sua instalação artística que convida à reflexão sobre as continuidades entre colonialismo, racismo e imigração. Não deixa de lado outros artistas de diferentes nacionalidades, fazendo-nos compreender que a geografia do debate deve focar como o modernismo, nas artes visuais, é reiterado e reinterpretado.

Inspirado no antropólogo indiano Arjun Appadurai (2004), Huyssen procura analisar como a modernidade e o modernismo foram disseminados por fluxos culturais complexos que aproximaram as ideias de local e global em constante negociação. Para ele, é preciso escapar da crença inocente em uma cultura local autêntica que deveria ser preservada dos encantos homogeneizantes da globalização.

Como afirma, “[…] o binário global-local é tão homogeneizante quanto a suposta homogeneização cultural do global à qual se opõe” (HUYSSEN, 2014, p. 23). Esse olhar dualista, atado ao local, impede a compreensão transnacional das práticas culturais e o reconhecimento dos fluxos desiguais de traduções, transmissões e apropriações locais de um “modernismo sem entraves”.

Outra questão apontada é a necessidade de retomar, sob novos ângulos, o modelo superior e inferior pelo qual o espaço cultural do início do século XX foi hierarquicamente clivado entre cultura de elite e cultura de massa. Segundo o autor, este modelo, prematuramente descartado nos estudos norte-americanos sobre o pós- modernismo, ainda pode servir como paradigma para analisar modernismos alternativos e culturas globalizantes que assumiram formas distintas em diferentes momentos históricos. A reinscrição desta problemática nas discussões da modernidade cultural em contextos transnacionais pode estimular novos tipos de comparação que vão além das dicotomias clichês – tais como global versus local, colonial versus pós-colonial, moderno versus pós-moderno ou centro versus periferia –, recolocando em debate hierarquias e estratificações sociais que atravessam as culturas de acordo com as circunstâncias e as histórias locais. Além disto, repensar a relação superior-inferior hoje nos remete aos debates sobre os novos vínculos entre estética e política, bem como entre experiência e história.

A segunda parte do livro é dedicada à problematização das políticas de memória, de esquecimento e de direitos humanos na contemporaneidade, retomando, sob novos matizes, questões já apresentadas ao público brasileiro em Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia (HUYSSEN, 2000). Antes, como um entremeio que estabelece conexões entre modernismos e culturas de memória, Huyssen lança um debate instigante que se desloca entre a nostalgia contemporâneas das ruínas e as memórias traumáticas dos escombros da modernidade. Esta diferenciação entre ruína e escombro, que faz eco aos escritos do filósofo alemão Walter Benjamin (2012), nos convida a pensar sobre às diferentes maneiras como, em um presente globalizado, olhamos para a decadência dos vestígios do passado. Por um lado, há um olhar nostálgico que se aproxima do encantamento pitoresco dos românticos pelas ruínas, uma utopia às avessas que demonstra a saudade de um outro lugar localizado no passado. Segundo o autor, “[…] essa obsessão contemporânea pelas ruínas esconde a saudade de uma era anterior, que ainda não havia perdido o poder de imaginar outros futuros” (HUYSSEN, 2014, p. 91). Por outro, a nossa contemporaneidade se depara cotidianamente com os escombros de uma modernidade cruel, marcada por atrocidades que soterraram os futuros sonhados pelos vencidos da história. Como lembra, os bombardeios nunca pretenderam produzir ruínas, mas escombros. Porém, em uma época seduzida pelo passado, tais escombros, muitas vezes, acabam estetizados enquanto ruínas, alimentando um mercado da memória como entretenimento que banaliza e envolve em sentimentos nostálgicos as marcas presentes de um passado traumático. Este imaginário das ruínas é, como destaca o autor: Central para qualquer teoria da modernidade que queira ser mais que o triunfalismo do progresso e da democratização, ou a saudade de um poder passado de grandiosidade (HUYSSEN, 2014, p. 99).

Para além de um otimismo cego, podemos nos defrontar com o lado obscuro e destrutivo da modernidade visível nas ruínas, os desastres do passado que continuam a assombrar a nossa imaginação.

Estabelecendo um diálogo crítico com os estudos consagrados sobre a memória, especialmente com a obra dos franceses Maurice Halbwachs (2006) e Pierre Nora (1993), Huyssen destaca que tais estudos inseriram a memória primordialmente em contextos nacionais, bem como procuraram demarcar uma fronteira que colocava em lados opostos a história e a memória. Atualmente, o divisor história/ memória tem sido superado, reconhecendo a interdependência entre as maneiras de narrar o passado. Além do mais, tais estudos se mostram insuficientes em um momento no qual os discursos sobre a memória e a análise das histórias traumáticas tornaram-se transnacionais.

É preciso, segundo o autor, abandonar o conceito de memória coletiva, tal como uma memória mais ou menos estável de um grupo ou uma nação como ideal, em busca de memórias conflituosas. Para ele, “[…] a memória é sempre o passado presente, o passado comemorado e produzido no presente, que inclui, de forma invariável, pontos cegos e de evasão” (HUYSSEN, 2014, p. 181). A memória “nunca é neutra” e “[…] está sempre sujeita a interesses e usos funcionais específicos” (HUYSSEN, 2014, p. 181). Neste sentido, para além do conflito entre memórias coletivas e memórias individuais, ou entre memória e historiografia, seria importante analisar “[…] os conflitos entre campos de memórias rivais que tentam eliminar ou, pelo menos bloquear um ao outro” (HUYSSEN, 2014, p. 182).

Esta virada teórica e metodológica faria com que atentássemos às batalhas entre passados, travadas não apenas em contextos nacionais, como também em contextos transnacionais. Portanto, pensar em políticas da memória em um mundo globalizante está para além da circunscrição do que seria uma “memória cosmopolita”. É preciso compreender as assimetrias e competições travadas nas trajetórias transnacionais da memória.

Em um mundo obcecado pela memória, o esquecimento, o duplo inevitável da memória, é malvisto, considerado uma falha ou uma deficiência que deveríamos combater. Mesmo em excesso, a memória é positivada, visto ser considerada fundamental para a coesão social e como alicerce para identidades. Neste contexto, pouco se refletiu a respeito da importância de uma política do esquecimento que, para além do “dever da memória”, pusesse em pauta uma ética do esquecimento.

Em diálogo com o pensamento do filósofo francês Paul Ricoeur (2007), Huyssen busca interpretar situações em que uma política de esquecimento foi importante na construção de um discurso politicamente desejável e de uma esfera pública democrática: o esquecimento das mortes causadas pela guerrilha urbana na Argentina em prol de um consenso nacional em torno da figura vitimada do desaparecido e o esquecimento dos bombardeios de cidades alemãs durante a Segunda Guerra Mundial para o pleno reconhecimento do horror do Holocausto. Em ambos os exemplos, uma forma de esquecimento foi necessária para atender reivindicações culturais, jurídicas e simbólicas em consonância com as políticas nacionais de memória.

Ao propor a discussão sobre uma ética do esquecimento público, o autor se aventura em um tema difícil que, sem dúvida, consiste no ponto mais audacioso e inovador da obra. No entanto, apesar de insistir no caráter residual de como o tema aparece nos escritos de autores que, como Paul Ricoeur, privilegiaram o estudo da memória, não deixa muito clara uma proposta original para refletir sobre o que considera um “esquecimento voluntário”, um tipo de esquecimento que exigiria esforço e trabalho. Mesmo ao complexificar a questão, situando as estratégias de esquecimento num campo de termos e fenômenos tais como “[…] silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgaste, repressão” (HUYSSEN, 2014, p. 158), acaba não esclarecendo as diferenças entre estas estratégias.

Afinal, é possível dizer que algo silenciado ou reprimido foi de fato esquecido? Talvez, uma atenção maior às sutilezas de cada um destes termos poderia nos mostrar níveis intermediários entre a memória e o esquecimento, tal como já há alguns anos propôs Michael Pollak (1989) ao problematizar o silêncio não como uma forma de esquecimento, mas como uma “memória subterrânea” que, em disputas de memórias, resiste aos excessos das memórias oficiais.

A emergência à esfera pública de memórias traumáticas em busca pela reparação de injustiças cometidas no passado, coloca em questão as aproximações entre as políticas de memória e as políticas de direitos humanos. Na contemporaneidade, há uma sobredeterminação entre estes discursos. Contudo, como destaca o autor, não é raro que os debates sobre os direitos humanos permaneçam separados dos debates sobre a memória, sendo o discurso da memória dominante nas humanidades e o discurso dos direitos humanos nas ciências sociais. Se faz necessária a ligação dos estudos da memória aos direitos e à justiça, não somente em termos teóricos e discursivos, mas também em termos práticos. Por um lado, as políticas de memória precisam de uma dimensão normativa jurídica, que lhe dê sustentação na reivindicação de direitos de indivíduos e grupos. Por outro, os discursos sobre os direitos humanos, alimentados pelas memórias de violações de direitos, deixariam de pautar-se apenas em princípios abstratos, levando em consideração os contextos históricos, políticos e culturais. Entretanto, como afirma o autor, tal aproximação não é isenta de riscos, pois “[…] tanto o discurso dos direitos quanto o da memória são alvos fáceis de abuso, como véu político para encobrir interesses particulares” (HUYSSEN, 2014, p. 201).

Um campo onde as aproximações entre direitos humanos e memórias têm emergido de maneira mais intensa é o campo das reivindicações pelos direitos culturais de populações indígenas ou descendentes de escravizados na América Latina, no Canadá e na Austrália, bem como os direitos civis e sociais nas novas formas de imigração e diáspora. Essa dimensão dos direitos humanos: Reivindica os direitos de grupos culturais dentro de nações soberanas, mas entra em conflito com a ideia tradicional dos direitos humanos como direitos dos indivíduos, e também com um entendimento homogêneo da nacionalidade (HUYSSEN, 2014, p. 206).

O movimento pelos direitos culturais, movimento que desestabiliza as ideias de identidade nacional, tem dado ênfase na diversidade cultural em um mundo cada vez mais interligado, aderindo, fundamentalmente, à política de identidade grupal. Neste debate, as ideias de global e local entram em conflito, em reações contra a globalização e a temível possibilidade de uma homogeneização cultural. Novamente o autor traz à tona uma crítica a concepções que imaginam uma suposta autenticidade intocada das culturas locais, o que gera conflitos quando grupos culturais diferentes entram em contato. Para além de uma compensação identitária, “[…] os direitos culturais devem preservar a prerrogativa de que o indivíduo nascido numa dada cultura possa deixá-la e escolher outra” (HUYSSEN, 2014, p. 209).

Embora não circunscrita no interior dos limites do campo da História, a obra de Andreas Huyssen tem sido fundamental para pensar a prática historiadora, especialmente em relação à História do Tempo Presente. As análises elaboradas pelo autor nos convidam a pensar, a partir da problematização das políticas da memória e dos modernismos em um mundo globalizante, as imbricações entre temporalidades e espacialidades no presente vivido. Como um crítico da cultura, este autor propõe uma reflexão sobre as maneiras como no presente se articulam passado e futuro, global e local, alertando para a importância da imaginação de futuros alternativos. Não se trata da nostalgia de uma crença inocente nas promessas de progresso atualmente desacreditadas, mas uma incitação a pensarmos sobre as maneiras como futuros possíveis, desamarrados de um peso asfixiante do passado, foram e continuam sendo imaginados.

A experiência histórica brasileira, embora brevemente mencionada em alguns dos seus ensaios, praticamente está ausente da cartografia de geografias alternativas analisada e interpretada pelo autor. O Brasil, ao contrário da Argentina, não é, nesta obra, um território privilegiado na compreensão das políticas de memória e dos modernismos na América Latina. Apesar disso, a historiografia brasileira da última década tem se valido de conceitos e teorias mobilizadas pelo autor em seus trabalhos, especialmente a noção de “cultura da memória”. Em diálogo com autores do campo da História, como Reinhart Koselleck (2006) e François Hartog (2013), a obra de Andreas Huyssen tem sido apropriada pelos historiadores interessados em pensar o tempo não apenas como um instrumento taxionômico, pelo qual os acontecimentos de um passado são medidos e circunscritos, mas o tempo como algo vivido e experimentado em sociedade. Na atualidade de nosso país, experiências diversas de tempo são friccionadas, colocando lado a lado, por exemplo, os traumas do período da nossa ditatura civil-militar e as lutas pelo reconhecimento de direitos culturais negados a minorias.

Neste sentido, a leitura de Culturas do passado-presente pode ser um interessante convite a novos olhares para a nossa própria história, a um olhar crítico para um tempo presente demasiadamente encantado pelo passado e temeroso por um porvir que se mostra pouco promissor.

Referências

APPADURAI, Arjun. Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias. Lisboa: Teorema, 2004.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas v. 1).

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014. (Coleção ArteFíssil).

Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007.

Diego Finder Machado – Doutorando em História na História da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Hajari, as fúrias da meia-noite de Nisid: o legado mortal da partição da Índia | Oliver Stuenkel

A partição, a divisão do subcontinente indiano em dois países em 1947, sempre será lembrada como uma das maiores tragédias do século XX, envolvendo uma das maiores migrações humanas forçadas da história, deslocando mais de 10 milhões de pessoas. Isso levou a mais de um milhão de mortes no contexto da saída da Grã-Bretanha do subcontinente e da independência da Índia e do Paquistão. Finalmente, foi o capítulo de abertura de uma das rivalidades mais complexas e não resolvidas do mundo, produzindo um hot spot nuclear que muitos consideram o mais perigoso do mundo. Nisid Hajari escreveu um livro muito legível sobre a política da Partição, detalhando as negociações e dinâmica de energia na véspera de 15 de agosto de 1947.

Com habilidade jornalística, o autor fornece retratos íntimos dos personagens principais do livro, Jawaharlal Nehru e Mohammed Ali Jinnah. Gandhi, Vallabhbhai Patel (Sardar) e Lord Louis Mountbatten também aparecem com frequência, mas Hajari descreve essencialmente o drama da Partition como um show de dois homens.

Enquanto Hajari se destaca em transformar um evento complexo e pesado em um virador de páginas, sua conta é centrada na Índia e, no final das contas, muito tendenciosa às visões de Nehru para fornecer uma conta equilibrada. O primeiro primeiro-ministro da Índia, o leitor é informado nas primeiras páginas do livro, era “arrojado”, “famoso por algumas das mãos”, tinha “maçãs do rosto aristocráticas e olhos altos que eram piscinas profundas – irresistíveis para suas muitas admiradoras”. “Apesar de desdenhoso das superficialidades, ele cuidou muito da aparência”, maravilha-se o autor. Ao longo do livro, Hajari descreve as qualidades supostamente sobre-humanas de Nehru, por exemplo, quando ele oferece o risco de sua vida para proteger os muçulmanos em Old Delhi. Jinnah, por outro lado, é amplamente descrito como um bandido sedento de poder que carecia de princípios “irascível” e ”

Nehru, o autor admite, também tinha falhas. Como escreve Hajari, Nehru se recusou a aceitar a Liga Muçulmana como parceiro da coalizão em 1937, exceto em termos humilhantes que incluíam a fusão incondicional dos partidos parlamentares da Liga Muçulmana no Congresso. O comportamento arrogante e distante de Nehru era precisamente o que Jinnah precisava para fortalecer as ansiedades que os muçulmanos tinham em relação à Índia dominada pela maioria hindu. E, no entanto, o livro deixa poucas dúvidas sobre quem é o vilão da história.

O que talvez seja mais problemático com esse relato é que a idéia de criar o Paquistão é descrita como pouco mais do que uma manobra usada por Jinnah para retomar sua carreira política após o retorno de Gandhi da África do Sul e a ascensão do povo hindu. O congresso o empurrou para a margem. Depois que sua jovem esposa se suicida, Jinnah se muda para uma casa sombria com sua irmã do mal, Fátima. Enquanto Nehru é movido por altos ideais, sugere o livro, Jinnah é movido pela amargura e pelo desejo de vingança.

No entanto, a idéia do Paquistão era muito mais do que um mero argumento de barganha proposto por Jinnah. Hajari permanece calado sobre figuras-chave como Muhammad Iqbal, uma das figuras mais importantes da literatura urdu e o filósofo que inspirou o Movimento Paquistanês. O autor parece sugerir que seria necessário apenas um representante mais moderado da Liga Muçulmana para evitar a Partição.

Contudo, esse argumento ignora que as eleições supervisionadas pelos britânicos em 1937 e 1946, que o Congresso dominado pelos hindus venceu com facilidade, apenas endureceram a identidade muçulmana e tornaram inevitável a divisão. A política britânica de definir comunidades com base na identidade religiosa, que alterou fundamentalmente a autopercepção indiana, requer muito mais atenção para explicar a dinâmica que levou à Partição. Churchill, em particular, viu consolidar uma identidade muçulmana na Índia e alimentar tensões sectárias como essenciais para prolongar o domínio britânico no subcontinente (ele apoiou ativamente a causa de Jinnah nos anos anteriores a 1947).

Hajari reconhece que a decisão de Mountbatten de antecipar a retirada da Grã-Bretanha e deixar um cartógrafo despreparado traçar as fronteiras dentro de 40 dias (sem visitar as regiões afetadas, como o autor nota corretamente) tornou todo o projeto muito mais mortal do que poderia ter sido em outras circunstâncias . Jinnah dificilmente poderia ter antecipado tal comportamento irresponsável pelos britânicos.

Como escreve Pankaj ( Mishra, 2007 ), ninguém havia se preparado para uma transferência massiva de população. Mesmo quando milícias armadas vagavam pelo campo, procurando pessoas para sequestrar, estuprar e matar, casas para saquear e trens para descarrilar e queimar, a única força capaz de restaurar a ordem, o Exército Indiano Britânico, estava sendo dividida em linhas religiosas – soldados muçulmanos no Paquistão, hindus na Índia. Em breve, muitos dos soldados comunalizados se uniriam a seus co-religiosos na matança de facções, dando à violência a partição de seu elenco genocida … Os soldados britânicos confinados em seus quartéis, ordenados por Montana para salvar apenas vidas britânicas, podem provar ser a imagem mais duradoura do retiro imperial.

As Fúrias da meia-noite não descobrem muitas fontes novas e os especialistas não encontrarão nada que mude de opinião, mas o livro é bem pesquisado. Uma exceção um tanto estranha é a Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), uma organização hindu de direita, que Hajari abrevia erroneamente como RSSS ao longo do livro.

Apesar de seu viés, o livro aponta para a importância de um ponto de virada histórico crucial que continua a moldar os atuais debates geopolíticos. Como a disciplina de Relações Internacionais, em particular, continua se concentrando demais no que aconteceu na Europa após a Segunda Guerra Mundial, são necessários muitos outros livros sobre as consequências da guerra na Ásia e em outras partes do mundo.

Referências

Mishra, Pankaj. Feridas de saída: o legado da partição indiana. 13 de agosto de 2007. Disponível em: http://www.newyorker.com/magazine/2007/08/13/exit-wounds ; Acesso em: 12 jan. 2016. [  Links  ]

Oliver Stuenkel – Professor Assistente de Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Sociais, Fundação Getulio Vargas (FGV). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected].


STUENKEL, Oliver. Hajari, as fúrias da meia-noite de Nisid: o legado mortal da partição da Índia. Massachusetts: Houghton Mifflin Harcourt, 2015. 328p. Resenha de: STUENKEL, Oliver. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, n.71 São Paulo, jan./abr. 2016.

El Cercano Oriente Antiguo: nuevas miradas sobre viejos problemas / Cristina de Bernardi e Jorge S. Castillo

Lejos del estereotipo que los asocia a un saber inmóvil, los estudios históricos sobre las sociedades del Cercano Oriente antiguo constituyen un ámbito que asiste a una permanente renovación, tanto desde el punto de vista de las temáticas como de las fuentes y los principios teórico-metodológicos puestos en juego para una comprensión más profunda de la historia y la cultura de aquellas sociedades. El libro El Cercano Oriente Antiguo: nuevas miradas sobre viejos problemas, una compilación organizada por Cristina De Bernardi y Jorge Silva Castillo –dos distinguidos historiadores de la antigüedad oriental de Argentina y México respectivamente–, constituye un fiel retrato de esta renovación de los intereses de los historiadores dedicados a esta subdisciplina, preocupados por desligarse del paradigma marcadamente eurocéntrico, colonialista y racista que animó el surgimiento de la disciplina y sigue aún vigente a pesar de haber sido fuertemente discutido en el contexto de las ciencias sociales, así como también por aportar nuevos planteos sobre aspectos territoriales, sociales económicos, culturales y simbólicos y dar cuenta de manera global y holística quiénes eran y cómo vivieron los antiguos habitantes de esas regiones. Se trata de una obra destinada a reunir las ponencias discutidas en una mesa dedicada a la historia antigua del Próximo Oriente en el marco del XI Congreso Internacional de la Asociación Latinoamericana de Estudios de Asia y África (ALADAA), llevado a cabo en la Universidad Nacional Autónoma de México a finales del año 2003, así como sumar los aportes de otros investigadores iberoamericanos también especializados en la temática que, a pesar de su activa trayectoria de participación en los distintos encuentros internacionales organizados por la Asociación, no pudieron presentar sus avances en aquel congreso por diversos motivos coyunturales. Como resultado final de la convocatoria, disponemos de una nueva compilación de trabajos que cubren una variedad de problemáticas acerca de las características y modos de funcionamiento de las diversas sociedades del Cercano Oriente antiguo, resultado a su vez de un conjunto muy heterogéneo de proyectos de investigación. Por tanto, el futuro lector no deberá esperar hallar en esta novedosa propuesta editorial un libro en el que las contribuciones de los autores respondan a una sola pregunta de investigación, ni mucho menos que cubran el mismo horizonte temático, espacial, temporal y cultural.

Sin embargo, una rápida mirada de conjunto obliga a plantear que los diversos trabajos que aquí se publican comparten dos características que, desde nuestra perspectiva, otorgan consistencia interna –si no homogeneidad– a la presente compilación. Por un lado, la presencia de modos historiográficos de aproximación al pasado que, además de obedecer a enfoques y metodologías particulares, cargan con el “sesgo local de los problemas epistemológicos”1, en la medida que las condiciones locales de producción y transmisión de las investigaciones sobre el antiguo Cercano Oriente dentro del ámbito latinoamericano no sólo influyen decisivamente en las posibilidades y límites para abordar ciertos problemas de la trayectoria histórica de esos antiguos pueblos, sino también en la mirada que indefectiblemente se imprime sobre tales empresas del conocimiento histórico. En efecto, cada uno de los artículos comprueba el camino de investigadores que, armados con todo el protocolo del rigor científico del campo, pero trascendiendo el peso arrogante de las tradiciones académicas centrales, han insistido en la necesidad epistemológica de construir progresivamente una labor investigativa autónoma, reflexiva y crítica desde los márgenes, capaz de sustanciarse en estudios tanto empíricos como teóricos, rebosantes de aportes y conclusiones claramente señeras y en dialogo con la producción académica internacional. En esa dirección, la obra refleja el estado en que se encuentran las diversas líneas de estudio e investigación sobre las sociedades antiguas del Próximo Oriente que existen en España y América Latina, pero particularmente en Argentina, país del cual proceden la mayoría de los autores que escriben aquí y que –huelga decirlo– son dignos representantes de un grupo de académicos universitarios bien afianzado en el ámbito argentino y con amplio reconocimiento y proyección en varios centros de investigación de prestigio mundial.

Y por otro lado, una insatisfacción respecto de las posiciones predominantes dentro de la historiografía antiguo-oriental sobre ciertos temas ya clásicos, como el surgimiento de centros urbanos y estatales, los vínculos entre Estados y comunidades aldeanas y grupos nómadas, los fenómenos de expansión territorial y contacto intercultural, las experiencias religiosas y modos de representación del mundo, el funcionamiento de los primeros mecanismos de control social, etc. Esos viejos problemas necesitan replantearse, por cuanto urge apartarse del pesado legado historiográfico que, al traducir esas realidades pretéritas en un pasado exótico, glorioso y monumental, reproduce el estereotipo de que tal área de investigación conforma una “historia de anticuarios”, sin conexiones con el presente o las realidades locales. De esa forma, los trabajos exploran viejos terrenos de debate y polémica –relacionados con las instituciones políticas y jurídicas, las economía políticas y campesinas, las relaciones interculturales, las formas de dominación y control social, las creencias religiosas y las representaciones simbólicas– desde enfoques novedosos –asociados con la historia social y política, los estudios étnicos, la antropología política y económica, los estudios subalternos, la perspectiva de género, la arqueología histórica y las investigaciones sobre la memoria social–, proveyendo resultados y sugerencias importantes para poner en jaque muchos de los supuestos en que se basaba la caracterización socio-antropológica e histórica de los modos de vida y pensamiento existentes en las sociedades del Cercano Oriente antiguo.

Conforme a estos ejes y criterios, un primer núcleo de trabajos se centra, indudablemente, en los diversos procesos sociohistóricos de cambio que condujeron al urbanismo y a la concomitantemente aparición y afianzamiento del Estado en las sociedades del Próximo Oriente Antiguo, aportando elementos significativos –tanto a nivel empírico como conceptual– para discutir el modo con que tradicionalmente han sido retratados tales fenómenos y ofrecer una reconstrucción alternativa. En su artículo, el historiador Marcelo Campagno (UBA-CONICET, Argentina) plantea que lejos de lo que propone la imagen tradicional acerca de la instauración de dinámicas estatales en el antiguo Egipto, ésta experiencia parece haber sido menos monolítica y menos distante del patrón policéntrico y fragmentario que caracterizó la formación estatal en la Baja Mesopotamia. Amparándose en los recientes avances arqueológicos y discutiendo críticamente la categoría proto-Estado, esa suerte de “significante vacío” por su indefinición teórica y paradójica referencia histórica dentro de la egiptología, el autor demuestra la existencia de tres entidades sociopolíticas en el valle del Nilo del último tercio del IV milenio a. C. y repropone el lugar que les cupo en la formación de un único centro de poder en el Alto Egipto que, en su progresiva consolidación y expansión, terminaría definiendo el Estado faraónico. En una línea compatible con el capítulo anterior, la contribución de la arqueóloga Walburga Ma. Wiesheu (ENAH, México) busca desconstruir la vieja y arraigada tesis en las investigaciones sobre el contexto urbano de la Mesopotamia del Dinástico Temprano que indican la presencia de Estados teocráticos altamente centralizados, cuyas instituciones más representativas –el palacio y el templo- no sólo controlaban virtualmente cada una de las dimensiones de la vida de las ciudades-Estados, sino que además tenían una amplia capacidad y fuerza para concentrar prácticamente todos los recursos económicos de las comunidades locales para luego, idealmente, redistribuirlos. A partir de una relectura del material arqueológico y epigráfico disponible y confrontación de distintas posiciones historiográficas, la autora restituye un retrato histórico de la Mesopotamia protodinástica con un paisaje social sumamente heterogéneo y complejo, en el que además de comprobar la supervivencia de varios e importantes grupos de parentesco en las zonas urbanas y rurales, emergen indicios de la estructuración de intrincadas redes de dependencia que, a partir del afianzamiento del dispositivo estatal, incidieron negativamente en la trama de solidaridades de los grupos familiares locales y provocaron su lastimoso desmembramiento, lo que a su vez se tradujo en la configuración de nuevos vínculos de patronazgo en torno a aquellas instituciones urbanas que caracterizaron a las diversas sociedades mesopotámicas del Dinástico Temprano.

Un segundo núcleo de trabajos se ocupa del análisis de las diferentes modalidades que adquirieron las relaciones entre las sociedades del Cercano Oriente antiguo, tanto en sus dimensiones sociales como simbólicas. En esta senda, Cristina De Bernardi (UNR, Argentina) y Jorge Silva Castillo (El Colegio de México, México) contribuyen con un artículo cuyo objetivo principal es recuperar la indagación de las relaciones interétnicas entre sumerios, acadios y amorreos en la Mesopotamia del III milenio a. C., problemática que había permanecido largamente desatendida en la agenda investigativa de los estudios antiguo- orientales, al punto de que numerosos abordajes tradicionales sobre estas antiguas poblaciones o bien reproducían los estereotipos culturales acuñados por los propios actores, o bien los presentaban como mundos sociales totalmente al margen unos de otros, sin intercomunicación y en permanente conflicto. Los autores matizan las perspectivas vigentes y revelan la existencia de múltiples dinámicas de contacto e interrelación entre grupos con identidades étnicas distintas, pero siempre conviviendo en el marco de centros urbanos multiculturales y pluriétnicos desde el protodinástico al período neosumerio, puntualizando que las fricciones interétnicas habrían sido inducidas por los fenómenos de centralización del poder estatal que significaron la preeminencia sociopolítica de una etnia por sobre las demás, los consecuentes procesos de victimización y la profundización de las tensiones intersocietales. En su sucinto capítulo, el arqueólogo Ianir Milevski (Israel Antiquities Authority, Israel) se ocupa de los vínculos sociopolíticos que se configuraron en el Levante durante el Bronce Medio desde un registro de análisis centrado en la iconografía. Partiendo de la tesis de que en general la glíptica expresa los discursos de las clases dominantes a partir de una serie de artefactos ideológico-manipulativos elaborados por especialistas, este autor presenta un detallado análisis, descripción y comparación de las evidencias que proporciona un grupo de cilindros sello palestinenses, apuntando que a diferencia de los escarabajos que indican una expresión política influenciada por Egipto, aquellos parecen más bien reflejar una iconografía de autoridades locales de no tal alto rango en la constelación de gobernantes cananeos que no sólo dejarían impresos ciertos rasgos de su particular identidad étnica sino también, en una probable actitud de rebeldía, su decisión de identificarse o permanecer bajo influencia de los grandes centros del norte mesopotámico.

El estudio de las ideologías religiosas, las prácticas rituales y su articulación con distintas expresiones políticas constituye otro núcleo seleccionado por los trabajos del volumen. El aporte de Ana Fund Patrón de Smith (UBA, Argentina), entraña la intención de exponer que las narrativas bíblicas fueron construidas de forma tal que, operación política mediante, la historia se adaptara al mito. Sin desechar las tesis que han comprobado la presencia de varios tropos vinculados a las tradiciones y mitologías mesopotámicas dentro del discurso bíblico, esta historiadora –verdadera pionera en las investigaciones antiguo-orientales de Argentina– argumenta que también es posible identificar algunas referencias de la cosmología egipcia que evocan y resinifican los compositores de los primeros textos del Antiguo Testamento. Asimismo, Fund Patrón apela a las variables de “legitimación” y “descalificación” para demostrar que los escribas, en su doble pertenencia e identificación – hacia las elites que los empleaban y hacia el conjunto social al cual pertenecían–, enfatizaron la autoctonía, pureza y singularidad tanto de pueblo como de un linaje con rasgos étnicos difícilmente distintivos y específicos en una región geográfica e históricamente multiétnica, como la de Cannán, para de este modo justificar posiciones políticas de aquel entonces, las cuales –recuerda la autora– continúan siendo evocadas en el presente para sustentar ciertas políticas y violencias contemporáneas. También en la línea de las pesquisas sobre las tradiciones histórico-míticas conservadas en el relato testamentario, el historiador Bernardo Gandulla (UBA/UNLu, Argentina) nos provee un importante análisis filológico y material de las peculiares figulinas denominadas terafim y sus diversos usos en diferentes acontecimientos narrados a lo largo del Génesis. Este autor pone de manifiesto que tales artefactos no pueden ser asociados en todos los casos a pequeños objetos de culto familiar a los antepasados, ya que su repetida mención en contextos diferentes no autorizan a plantear la unicidad del significado, y que en aquellos casos en que la presencia de los mismos ocurre en el trasfondo de disputas legales, es posible detectar semejanzas y paralelismos con prácticas jurídicas extrabíblicas procedentes de Emar y Nuzi. Con ello, Gandulla no sólo postula la existencia de un fondo cultural común hurro-amorreo sino también sugiere la posible estrategia político-ideológica empleada por los redactores tardíos del Antiguo Testamento de emplear tales costumbres para hacer inteligibles acontecimientos remotos transmitidos por la memoria colectiva. De la pluma de Susana B. Murphy (UBA/UNLu, Argentina) contamos con un trabajo sobre la ideología del poder real en Asiria y las diferentes prácticas y representaciones que rodeaban la figura del monarca. Recurriendo al concepto “tradición” provenientes la sociología weberiana y a la noción de “costumbre” del historiador inglés E. P. Thompson, devela que los gobernantes del imperio neoasirio supieron elaborar un complejo sistema simbólico en el que retomaron buena parte de los fundamentos introducidos por los gobernantes amorreos de la Mesopotamia del II milenio a. C., transformando a las genealogías, la evocación de la memoria de los ancestros y los rituales en los principales mecanismos a través de los cuales la autoridad suprema seguía en manos del dinasta reinante y garantizar la fidelidad de las distintas facciones que existían dentro del ámbito palatino.

Cierra la compilación un artículo del historiador José Carlos Castañeda Reyes (UAM, México), en el cual indaga el papel que jugaron las mujeres a lo largo de la historia social del Egipto antiguo desde una posición teórico-metodológica que parte de la influencia de la escuela historiográfica francesa contemporánea de los Annales, centrándose particularmente en los momentos que no han sido ampliamente estudiados en el campo de la egiptología, como los episodios de tensión, crisis y rebelión. Sin embargo, de todos los trabajos que integran el volumen, éste en especial se involucra en un problemática que, consideramos, el autor no logra resolver satisfactoriamente. Si bien este investigador plantea su oposición a las visiones estereotipadas y superficiales sobre la experiencia de las mujeres en la sociedad egipcia mediante un recorrido con cierto detenimiento por sus diferentes espacios de actuación, arriba a una conclusión tan o más controversial que la sostenida por las aproximaciones tradicionales, ya que señala de una manera poco convincente que las mujeres egipcias –a pesar de los numerosos condicionantes y limitaciones– se destacaron por una posición de mayor participación y trascendencia comparada con otros casos históricos de la antigüedad.

Después del recorrido de lectura que propusimos de esta compilación, queda en claro que se trata de una obra que congrega trabajos animados por opciones temáticas y teórico- metodológicas diferentes, pero que comparten los objetivos de identificar los límites de las concepciones vigentes en la historiografía del Cercano Oriente antiguo, desarmarlas a la luz de los nuevos planteos y poner al alcance del lector perspectivas actualizadas y rigurosas. Lejos de agotar los interrogantes sobre esa amplia diversidad de procesos históricos y formaciones sociales y culturales, los trabajos que se incluyen en esta colección deben considerarse como intentos que apuntan a una serie de objetos de análisis y enfoques que sería necesario continuar y profundizar. Importantes preguntas han sido respondidas, pero otras cuestiones seguramente permanecen sin resolver, ya que se trata de las experiencias históricas de múltiples sociedades que, desde el temprano poblamiento del espacio, enfrentaron los desafíos de un entorno a veces hostil, elaboraron respuestas originales, diversificaron sus modos de vida, reorganizaron muchas veces sus organizaciones políticas y económicas y produjeron complejos sistemas simbólicos. Menos explícito, pero no menos firme, es el otro objetivo que persiguen este libro y sus compiladores: despertar la curiosidad, interés y esfuerzo intelectual de otros investigadores latinoamericanos preocupados por generar nuevos debates, aportar sus propias perspectivas y alcanzar una mejor comprensión de esas antiguas sociedades, sus historias y sus culturas desde estas latitudes académicas.

Horacio Miguel Hernán Zapata – Docente-Investigador. Universidad Nacional del Nordeste (UNNE) / Universidad Nacional del Chaco Austral (UNCAus) / Instituto de Formación Docente “Profesor Agustín Gómez” (IFDPAG), Argentina. E-mail: [email protected].


DE BERNARDI, Cristina; SILVA CASTILLO, Jorge (Comp.) El Cercano Oriente Antiguo: nuevas miradas sobre viejos problemas. Rosario: Facultad de Humanidades y Artes – Universidad Nacional de Rosario / Centro de EStudios de Asia y África – El Colegio de México, 2005. 152p. Resenha de: ZAPATA, Horacio Miguel Hernán. Viejos problemas, nuevas miradas. Los estúdios sobre las sociedades del Cercano Oriente Antiguo desde una perspectiva historiográfica latino-americana. Em Tempo de Histórias, n.28, p.187-193, jan./jul, 2016.Brasília, Acessar publicação original. [IF].

 

La carte perdue de John Selden: sur la route des épices en mer de Chine – BROOK (DH)

BROOK, Timothy. La carte perdue de John Selden: sur la route des épices en mer de Chine (1). Paris: Payot & Rivages, 2015, 295p. Resenha de: NICOD, Michel. Didactica Historica – Revue Suisse pour l’Enseignement de l’Histoire, Neuchâtel, v.2, p.177-178, 2016.

Comment rédiger un ouvrage d’histoire à partir d’une carte du Sud-Est asiatique et de la Chine ? Pour l’enseignant qui le lirait, comment, se basant sur cet ouvrage, élaborer une séquence pour ses élèves ; à savoir faire étudier le trafic commercial au xviie siècle dans la région du monde qui connaît l’essor le plus florissant du commerce maritime.

Timothy Brook est sinologue. Plusieurs de ses travaux ont été consacrés à la Chine des Ming au xviie siècle, et à ses relations avec l’Europe. Son ouvrage précédent, Le Chapeau de Vermeer2, se place dans le courant de l’histoire connectée.

Dès lors, dans La Carte perdue de John Selden, nous nous intéressons aux tentatives des Européens, et ici des Anglais, de nouer des relations commer­ciales avec la Chine au xviie siècle. Quelles sont les difficultés rencontrées par les Européens dans cette entreprise ?

Le dernier ouvrage de Timothy Brook répond à ces questions. Il se place parmi de nombreuses publi­cations d’historiens qui, depuis 20 ans, étudient les relations entre l’Europe, l’Asie et la Chine. Alors que bien des études mettent en relief l’isolement de la Chine, Brook nuance cette vision. Ainsi, du xve au xviiie siècle, la Chine est considérée comme l’un des pays les plus avancés du monde. Son artisanat, son administration, son imprimerie, son économie font d’elle l’un des pays les plus riches. Ses exportations, même faibles, participent au commerce international et satisfont les consom­mateurs européens3.

Or, le gouvernement impérial n’encourage pas le commerce maritime, car il s’estime menacé et concentre ses forces pour garder sa frontière nord. Par ailleurs, le gouvernement de l’empereur ne porte pas d’intérêt à l’ouverture de la Chine vers le monde extérieur. Mais les aléas climatiques et les menaces sur la Grande muraille fragilisent4 le pouvoir impérial qui, finalement, cède place à une nouvelle dynastie.

Ainsi, le pays ne se maintient pas constamment dans cet isolement immuable que nous lui prêtons. Dès lors, des commerçants chinois se mettent à voyager et s’établissent en Asie du Sud-Est, notam­ment à Java. Ils vendent et achètent des articles en porcelaine et des épices.

Dans cette région, à Bantam, vers 1608, une carte a sans doute été fabriquée, puis acquise par un capi­taine anglais faisant du commerce avec le Japon. Brook nous précise qu’il s’agit d’une carte, unique, remarquablement précise sur laquelle sont tracées les principales voies de navigation empruntées par les marchands chinois. Les inscriptions de la carte, en chinois, désignent les villes et pays avec lesquels les Chinois commerçaient. Il est dit que ces inscriptions sont la transcription phonétique des mots d’origine espagnole, japonaise et chinoise d’où la maîtrise nécessaire pour accéder à leur compréhension.

En 2008, cette carte a été découverte dans la bibliothèque Bodléienne en Angleterre où John Selden, juriste et humaniste, l’avait déposée en 1654. Les historiens spécialistes de cette époque ont organisé un colloque, suivi par la publication d’un article de Robert Batchelor5, puis de l’ouvrage de Timothy Brook.

Dans son ouvrage, Timothy Brook étudie cette carte et le monde dans lequel elle a été produite. L’ouvrage contient trois parties:

Une présentation de l’Angleterre des derniers rois Stuarts où les premiers érudits tentent d’apprendre le chinois et certains annotent la carte. Les débats des humanistes au sujet du droit d’accès à la navi­gation figurent dans cette partie.

Les premiers efforts infructueux de l’EIC (Compagnie anglaise des Indes orientales) pour nouer des contacts commerciaux avec la Chine depuis le comptoir qu’elle avait établi au Japon. La concur­rence hollandaise, les difficultés de la navigation, la malchance la poussent à renoncer à ses efforts après 10 ans.

Une étude minutieuse de la carte permet de com­prendre la vision géographique du monde de son auteur: à savoir, la description de l’Asie du Sud-Est en sus de celle de la Chine. En effet, contrairement aux cartes chinoises de cette époque, cette carte se distingue par le fait que la Chine n’y occupe pas une place centrale.

Pour rédiger ce livre, sa maîtrise hors pair du chinois permet à Timothy Brook d’employer deux ouvrages chinois de la même époque pour déchiffrer les inscriptions de la carte. Les moyens techniques dont disposaient les navigateurs chinois et européens, les représentations que Chinois et Européens se faisaient du territoire chinois sont parmi les points mis en valeur dans ce livre.

Brook nous rappelle qu’au xviie siècle, l’écono­mie chinoise est la plus importante du monde. Ses navires sont aussi performants que les navires européens, et elle occupe une place centrale dans le monde marchand. Rappelons que les routes maritimes en Asie suivies par les commerçants européens ont été ouvertes par les Asiatiques.

Ainsi, l’ouvrage de Timothy Brook est une prouesse d’érudition, où le lecteur se perdra par­fois dans la très riche onomastique. Cet ouvrage précieux et riche pour le public déjà initié à ce domaine reste une découverte pour le lecteur peu familiarisé avec cette période: à mi-chemin entre les grandes découvertes et la colonisation euro­péenne du xixe siècle.

[Notas]

1 Brook Timothy. La carte perdue de John Selden: sur la route des épices en mer de Chine. Paris: Payot & Rivages, 2015, 295p.

2 Brook Timothy, Le Chapeau de Vermeer, le xviie siècle à l’aube de la mondialisation, Paris: Payot, 2010.

3 Voir Trentmann Frank, How We Became a World of Consumers, from the Fifteenth Century to the Twenty-First, Allen Lane Hb, 2016.

4 Voir Brook Timothy, Sous l’oeil des dragons, Paris: Payot, 2012, p. 73-74.

5 Batchelord Robert (2013): « The Selden Map Rediscovered: A Chinese Map of East Asian Shipping Routes, c.1619 », in Imago Mundi: The International Journal for the History of Cartography, 65 (2013);1, p. 37-63.

Michel Nicod – EPS Roche-Combe Nyon.

Acessar publicação original

[IF]

China: relações e história entre América Latina e China / Caminhos da História / 2016

É com satisfação que a Revista Caminhos da História, vinculada ao Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), apresenta o dossiê dedicado à República Popular da China. A ideia deste dossiê surgiu em Shanghai, em 2015, durante o Quarto Fórum de Alto Nível China-América Latina, do qual participaram pesquisadores chineses e de diversos países da América Latina, de cuja delegação fez parte o Prof. Dr. Marcos Fábio Martins Oliveira, docente da Unimontes.

O presente dossiê conta com a contribuição de professores da China, Espanha, Argentina, Chile e Brasil, que versam sobre diversos aspectos da História recente deste importante parceiro estratégico do Brasil e de tantos outros países da América Latina.

O primeiro artigo “El conocimiento sobre América Latina del mundo académico de China”, escrito por Han Qi, prestigioso especialista chinês em estudos latinoamericanos, trata de fazer uma análise retrospectiva sobre os avanços dos estudos de sobre nossa região na China. Han Qi destaca que a Revista de Estudos Latinoamericanos é a única publicação especializada em estudos sobre América Latina na China. Isto refletiu o amadurecimento do nível de conhecimento sobre a América Latina do mundo acadêmico chinês. Desde a publicação de sua primeira edição, em 1979, foram publicados mais de três mil, demonstrando que os acadêmicos chineses estudam e prestam atenção a uma ampla gama de questões sobre a Região, que em geral tem uma estreita relação com o desenvolvimento da China e também com o desenvolvimento das relações sino-latino-americanas. Considerando a amplitude dos temas relacionados a esta relação, os académicos chineses intentam avaliar de forma objetiva e imparcial as questões sobre a América Latina e buscam de conhecer uma verdadeira América Latina.

Em seguida, Gustavo E. Santillán, docente da Universidade Nacional de Córdoba e pesquisador do CONYCET, com seu texto “Caminos para entender la modernización socialista: un examen de las fuentes ideológicas de la política china contemporánea”, visa discutir os aspectos teóricos e políticos da estratégia chinesa de modernização, abrangendo o período de Reforma e Abertura, desde 1978 até os dias atuais, quando o Presidente Xi Jinping propôs em 2013 a meta de um “Sonho Chinês” e do “Rejuvenescimento Nacional”.

O texto de Gladys Nieto, professora da Universidade Autônoma de Madrid, “Permanencias en la visión tradicional china del mundo” busca analisar como, ao longo da História do Estado chinês, sob uma maioria étnica Han, foi tratada a questão da diversidade étnica do país, perpassando pelos períodos imperial, republicano, maoísta e, mais recentemente, durante o período de “Reforma e Abertura”. Nesse sentido, busca identificar a permanência de uma visão tradicional chinesa como um modelo civilizatório frente a outros povos.

Analisando um aspecto específico da história chinesa, justamente quando ocorreu a última participação da China em uma guerra com seus vizinhos, o texto “CHINA’S ENGAGEMENT IN THE VIETNAM WAR: ITS STRATEGIC REASONS”, Jorge E. Malena, docente argentino da Universidadde Del Salvador, considera que a principal razão para o envolvimento da China na Guerra do Vietnã foi a dissuasão. A liderança em Pequim procurou persuadir os EUA a não escalar no conflito, porque os custos para Washington seriam muito altos. Tendo isso em vista, o artigo do Professor Malena procura, em primeiro lugar, delinear quatro fontes principais que influenciaram a estratégia chinesa; em segundo lugar, apresentar os eventos em 1965 que levaram a liderança chinesa exercida na Guerra do Vietnã; e, por último, contrastar essas principais fontes com a decisão da China de entrar na guerra.

A pesquisadora chilena Maria Montt Strabucchi, docente da Universidade Católica do Chile e doutoranda da Universidade de Manchester (UK), apresenta o texto “Writing about China’ Latin American travelogues during the Cold War: Bernardo Kordon’s ‘600 Millones y Uno’ (1958), and Luis Oyarzún’s ‘Diario De Oriente, Unión Soviética, China e India’ (1960)”. Nele, a autora investiga o modo como as crônicas de viagem, publicadas pelos viajantes à República Popular da China durante a Guerra Fria, buscavam prover conhecimento que influenciariam os discursos políticos, econômicos e culturais da América Latina daquela época. Por meio da análise dessas duas crônicas de viagem, o artigo demostra que estes dois textos revelam que seus autores foram descobridores e intérpretes de um modelo que depois apresentaram nos seus países de origem. Debruçando-se sobre as complexas identidades que emergem nos textos, pretende-se argumentar que, embora as crônicas apresentem uma atitude essencialista com relação à China e à cultura do país, buscavam apresentar, simultaneamente, um conhecimento mais amplo do mesmo sujeito, além das atitudes Orientalistas e as noções fixas da alteridade. Pretende-se argumentar, finalmente, que estes textos podem ser considerados como resultados bem-sucedidos da diplomacia cultural chinesa na América Latina.

Com o artigo “Una desmitificación del Estado de derecho hacia el ejemplo de la RPC”, Maria Francesca Staiano, professora da Universidade Nacional de La Plata, pesquisa os diferentes significados do Estado de Direito em alguns países ocidentais, como Alemanha e França, em que prevalece a tradição jurídica do Common Law, constatando que ainda existe uma experiência nem inequívoca nem dogmática a este respeito, para posteriormente compará-los com o modelo chinês Fazhi, valendo-se de uma abordagem histórica , linguística e cultural acerca dos processos legais.

Em complementação à temática tratada no artigo anterior, a professora Marina Gusmão de Mendonça, da Universidade Federal de São Paulo, oferece uma visão abrangente das “Características gerais do Sistema Jurídico Brasileiro e suas implicações em acordos e contratos comerciais com empresas estrangeiras”, buscando demarcar as diferenças entre os sistemas jurídicos brasileiro e chinês que, muitas vezes, levam a conflitos aparentemente incompreensíveis para estes, mas que estão conformes as regras do ordenamento legal e do funcionamento do Poder Judiciário no Brasil. Para que não restem dúvidas a respeito dos principais traços dessas diferenças, buscou-se fazer uma breve explanação das características do Direito brasileiro, procurando apontar suas origens e sua consolidação na estrutura do sistema jurídico Romano-Germânico.

Este dossiê termina com a entrevista “Una mirada sobre el Noreste Asiático: producción, traducción y perspectivas” com o historiador argentino Jorge Santarrosa, presidente de la Asociación Argentina de Estudios Coreanos. Na entrevista concedida a Gustavo E. Santillan, o profesor Santarrosa trata da evolução das pesquisas sobre o Extremo Oriente na Argentina, para a qual os investigadores da Universidade Nacional de Córdoba deram uma significativa contribuição. Esperamos que os leitores disfrutem deste número da Revista Caminhos da História em que a China ocupa o lugar central.

Boa Leitura!

Gustavo E. Santillán

Organizador do dossiê.


SANTILLÁN, Gustavo Enrique. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v. 21, n. 1, 2016. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Encontros com Moçambique / Regiane A. Mattos, Matheus S. Pereira e Carolina G. Morais

“Encontros com Moçambique” é um livro fruto de apresentações e debates realizados durante a II Semana da África: Encontros com Moçambique, na PUC do Rio de Janeiro, entre os dias 21 e 23 de março de 2016. Se há uma década os colóquios e seminários reuniam pouco mais de uma dezena de pesquisadores interessados na grande área de História da África, abrangendo assim um amplo recorte temático e temporal de estudos, este livro é o retrato de como, hoje, encontramo-nos em um novo momento. Regiane Augusto de Mattos, Carolina Maíra Gomes Morais e Matheus Serva Pereira apostaram que seria possível organizar uma obra que reunisse pesquisas cujo tema principal fosse Moçambique. A investida não apenas se concretizou como é prova, como afirma Valdemir Zamparoni em seu prefácio à obra, de “um amadurecimento ímpar da área de estudos africanos”2 no Brasil.

Com a maioria dos trabalhos delimitados pelo período colonial ou que perpassam o período em sua análise, o livro conta com 10 artigos divididos em 3 unidades: Deslocamentos, conexões históricas e conflitos; Narrativas; e Agendas de um Moçambique contemporâneo. Na primeira parte, um ponto de união entre os textos são os fatores condicionantes e as consequências de deslocamentos, forçados ou não, em diferentes períodos históricos, além do uso de fontes oficiais, trabalho etnográfico ou registros de imprensa para as análises, com acurado rigor metodológico no uso da documentação.

O artigo de Regiane Mattos, “Aspectos translocais das relações políticas em Angoche no século XIX”, contempla as relações entre sociedades litorâneas e interioranas do norte de Moçambique, destacando os contatos não hierárquicos entre o sultanato de Angoche e as elites muçulmanas de outras localidades, em especial no Zanzibar. Mattos parte de um evento principal para orientar sua pesquisa e desafiar a interpretação tradicional da historiografia: a viagem do comandante militar de Angoche, Mussa Quanto, e seu parente sharif, em 1849. A autora, a partir desse deslocamento, avalia a formação de uma rede comercial e cultural no oceano Índico em consonância com o aumento da presença da religião muçulmana nesses territórios. Mais do que realizar a análise histórica de uma questão localmente específica, interessa a Mattos averiguar as conexões a partir da perspectiva da translocalidade, conceito desenvolvido pela historiadora Ulrike Freitag e central na abordagem proposta no artigo. Muito bem explicado no texto, o conceito ampara a pesquisa em seu objetivo de destacar as interconexões entre lugares e atores, abrindo espaços para ressignificações de aspectos globais em âmbito local.3

No artigo seguinte, “Algazarras ensurdecedoras: conflitos em torno da construção de um espaço urbano colonial (Lourenço Marques – 1900-1920)”, Matheus Serva Pereira aborda, a partir de notícias na imprensa local, a difícil relação entre o projeto urbano colonial português para Lourenço Marques, cuja área central de Maxaquene foi delimitada para a ocupação de famílias brancas europeias, e a insistência – e resistência – dos “batuques” da população local. O argumento de Serva Pereira é que, a despeito do projeto colonial urbano, do uso da violência física e simbólica no deslocamento forçado das comunidades para a periferia, as notícias veiculadas na imprensa da época põem em xeque o sucesso de tal empreitada. Pereira atesta que os batuques, como práticas culturais, revelam uma atuação “longe de passiva em relação as instituições criadas para regular e fiscalizar o perímetro urbano de Lourenço Marques”4, estabelecendo assim um diálogo estreito com as premissas teóricas de Frederick Cooper sobre a noção de resistência em espaços coloniais5. Do mesmo modo, o autor esforça-se em defender uma organização social não totalmente polarizada na cidade, ao recompor o espectro social dos batuques nas cantinas de Lourenço Marques, onde não era incomum a convivência, num mesmo espaço de diversão, de figuras oficialmente opostas na lógica colonial e urbana.6

Ainda sob a premissa dos deslocamentos e seus conflitos, o capítulo que encerra o primeiro conjunto de textos, “Saúde além das fronteiras: doenças, assistências e trabalho migratório ao sul de Moçambique (1930-1975)”, de Carolina Maíra Gomes Morais, analisa de que maneira a imigração de trabalhadores para a África do Sul, no período colonial, além de atender a uma demanda econômica, trouxe consequências sensíveis no âmbito da saúde e das relações pessoais em Moçambique. Para acessar as condições desse movimento migratório, Morais faz uso, sobretudo, de fontes oficiais de relatórios de inspetores administrativos e se questiona de que maneira se davam as relações entre medicina “oficial” e “tradicional”. Pela disponibilidade das fontes, há uma comprovação mais substancial em relação à atuação dos Serviços de Saúde do que ao recurso à medicina tradicional. Interessante é notar a fluidez de fronteiras entre Moçambique e África do Sul sugerida pela autora para os saberes e medicinas tradicionais, proporcionada pelo trabalho migratório, além da ampla modificação nas relações pessoais em Moçambique, quando do retorno dos trabalhadores.

Na segunda unidade do livro, composta por trabalhos de pesquisadores provindos de diferentes áreas do conhecimento, os artigos têm em comum o estudo de uma obra ou do conjunto da obra de moçambicanos. Nesta unidade, que traz fontes interessantes e pouco convencionais nas pesquisas sobre Moçambique, como a fotografia e o cinema, cumpre enfatizar como nota comum o superdimensionamento do contexto histórico nas abordagens. Nos trabalhos, o contexto é instrumentalizado de modo a legitimar as narrativas ficcional ou visual presentes na documentação, utilizada muitas vezes como mero exemplo comprobatório da realidade colonial. Não resta dúvida quanto ao esforço teórico de todos os textos da unidade, mas, de um modo geral, a metodologia utilizada para a análise da relação entre ficção e História, literatura e História e visualidade e História nesses trabalhos limitou o uso mais abrangente das fontes, negligenciando, em certa medida, as narrativas criativas das próprias obras como propositivas e autoras de discursos formadores do social.

Em “O cinema em Moçambique – história, memória e ideologia: análise dos filmes Chaimite, a queda do Império Vátua (1953) e Catembe: sete dias em Lourenço Marques (1965)”, Alex Santana França realiza uma interpretação sócio-histórica e comparativa entre os filmes Chamite… e Catembe…, ancorando-se na perspectiva teórica de Francis Vanoye. Com a análise sobre Chaimite, o autor demarca as principais características do cinema de propaganda portuguesa, que se dispunha a responder, na época, à crítica internacional sobre o colonialismo luso. Catembe…, ao mesmo tempo em que demonstra o empenho português em conformar uma imagem oficial das colônias, comprovado pelos diversos cortes impostos ao filme, é considerado pelo autor como um exemplo de crítica à colonização.

Em “Não Vamos Esquecer! A propósito da fotografia ‘Marca de gado em jovem pastor’ de Ricardo Rangel”, Isa Márcia Bandeira de Brito busca analisar uma imagem feita pelo fotógrafo moçambicano em 1973, na qual um menino havia sido ferido a ferro na testa por seu patrão, por ter deixado fugir um animal. O prisma da autora na interpretação da imagem, no entanto, não favorece uma análise aprofundada e complexa do objeto, já que toma a imagem como exemplo das relações de violência colonial de maneira generalizada e dicotomiza as relações colonizador/colonizado, enfoque do qual vem se distanciando a historiografia mais recente, amparada nos estudos pós-coloniais, como são exemplos trabalhos consagrados, como os de Frederick Cooper, Homi Bhabha e Mary Louise Pratt7. A autora, vale frisar, mobiliza uma bibliografia interessante para a teorização do objeto no campo das visualidades e o trabalho dimensiona possíveis significados simbólicos da fotografia.

Em “A poesia contestatória de Noémia de Sousa e a situação colonial em Moçambique (1948-1951)”, Gabriele de Novaes Santos se propõe a compreender como a imprensa se ofereceu como veículo para a poesia de contestação colonial da escritora moçambicana Noémia de Sousa. O trabalho de Gabriele Santos é ainda inicial e, portanto, muito promissor, uma vez que a autora abre, no próprio texto, possibilidades de pesquisa interessantes sobre a obra da moçambicana. Por fim, o texto que encerra Narrativas é de autoria de Fatime Samb, com o título “A mulher moçambicana e as práticas culturais”. Ainda no primeiro parágrafo, a autora atesta sua proposta de fazer uma análise sobre o livro Niketche: uma história de poligamia e sobre o papel da mulher na obra de Paulina Chiziane. Samb faz uma importante recapitulação sobre as relações de gênero em Moçambique e a posição social da mulher na “sociedade tradicional” moçambicana, além dos impactos da independência nas relações de gênero e atuação política feminina a partir do comando da Frelimo, um tema ainda pouco conhecido e abordado em pesquisas sobre Moçambique.

A terceira e última unidade do livro, Agendas de um Moçambique contemporâneo, é formada por três artigos, sendo que dois estão em profundo diálogo a respeito da inserção internacional moçambicana, e provêm de duas áreas de formação distintas: Administração e Antropologia. Elga Lessa de Almeida e Elsa Sousa Krayachete, em “Moçambique e a cooperação internacional para o desenvolvimento”, fazem um retrospecto sobre as relações bilaterais estabelecidas por Moçambique com seus parceiros internacionais, demarcando a diferença entre cooperações verticais e horizontais, estas firmadas por países em desenvolvimento, como África do Sul, China e Brasil. O estudo de Elsa de Almeida e Elga Krayachete e o de Fernanda Gallo, “(Des)encontros do Brasil com Moçambique: o caso da Vale em Moatize” complementam-se diante do leitor atento às investidas e consequências da presença brasileira no país. Com um interessantíssimo trabalho antropológico, Gallo busca a vivência da população diante das transformações provocadas pela chegada das empresas multinacionais, em especial a mineradora Vale, e pergunta-se se há alguma relação entre esses megaprojetos para o país e a retomada crescente dos conflitos com a Renamo e ataques a trens. A antropóloga, munindo-se das comprovações de seu trabalho de campo, torna evidente ao leitor o desrespeito das empresas sobre as relações das pessoas com seus locais de origem, ao decidirem, unilateralmente, os locais para reassentamento, por exemplo, e deixa às claras o descompasso entre o discurso oficial da solidariedade e a prática de maximização dos lucros das empresas estrangeiras no país.

O livro se encerra com o capítulo desafiador de Vera Fátima Gasparetto, no qual a autora se dispõe a discutir as possibilidades de uma pesquisa interdisciplinar feminista a partir de uma análise sobre a questão da veiculação da imagem feminina na mídia, comparando a atuação feminina sobre essa questão no Brasil e em Moçambique. A autora traz um panorama sobre a composição e atuação das mulheres em seus espaços de organização nos dois países, como o Fórum Mulher e a Rede Mulher e Mídia. De um ponto de vista feminista e das novas epistemologias no Sul, em diálogo com Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, Gasparetto faz ainda uma crítica interna a algumas teorias feministas que essencializam africanas, fazendo do trabalho acadêmico também um trabalho militante na investida de produzir “[…] uma investigação interessada em conhecer a partir das mulheres, conceituadas como sujeitas conhecedoras e conhecíveis.”8

O livro sem dúvida é uma referência importante e necessária para quem deseja se aprofundar em alguns temas moçambicanos e os trabalhos são, em conjunto, uma contribuição valiosa que demonstra um país repleto de possibilidades de pesquisa e com múltiplas fontes possíveis para análise. Mostra-se especialmente interessante nessa obra organizada o diálogo bibliográfico entre os trabalhos e, sobretudo, os diferentes exercícios teóricos e metodológicos que ultrapassam as barreiras temáticas e configuram-se como inspiração aos pesquisadores leitores. Assuntos e referências atravessam alguns capítulos do livro, como o conceito de colonialidade de Aníbal Quijano9, mais profundamente abordado no artigo de Vera Gasparetto, a discussão de gênero, de trabalho e a noção de resistências, no plural, ao longo da história moçambicana. Esse é um livro que, sem dúvida, deve ser consultado para se conhecer mais e melhor sobre Moçambique.

Taciana Almeida Garrido de Resende – Doutoranda em História Social – USP. São Paulo, SP-Brasil. E-mail: [email protected].


MATTOS, Regiane A. de; PEREIRA, Matheus Serva; MORAIS, Carolina Gomes (Org.). Encontros com Moçambique. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016. 286p. Resenha de: RESENTE, Taciana Almeida Garrido. Desafios metodológicos, interdisciplinaridade, História: Encontros com Moçambique. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.238-243, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Interpreting Early India – THAPAR (RMA)

THAPAR, Romila. Interpreting Early India. New Delhi: Oxford University Press, 1992. 181p. Resenha de: CARVALHO, Matheus Landau de. Olhares historiográficos sobre a Índia antiga: As contribuições de Romila Thapar para uma reflexão sobre a interpretação da história e da sociedade antiga da Índia. Revista Mundo Antigo, v.4, n.8, dez., 2015.

Publicado pela Oxford University Press em 1992, Interpreting Early India é uma obra da historiadora indiana Romila Thapar que reúne seis ensaios sobre historiografia e interpretação da história e sociedade antigas da Índia. A partir de uma ênfase sobre abordagens em história social, a autora defende, em linhas gerais, a importância de se entender e localizar várias perspectivas bem estabelecidas sobre o passado indiano para se chegar a um entendimento esclarecido de situações contemporâneas, como as disputas entre hindus e outras comunidades indianas, sem deixar de lado a ampla variedade de opiniões e visões disponíveis sobre o passado indiano, particularmente acerca de religião e sociedade na Índia antiga. Leia Mais

O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta | Beatriz Bissio

Nos últimos anos, o Brasil tem se inserido no mundo na condição de potência emergente, buscando consolidar-se no espaço internacional. Na academia, este processo tem se refletido na ampliação dos temas de pesquisas, destacadamente nas Humanidades. Notamse esforços em incorporar África e América Latina na agenda de estudos, produzindo diálogos e comparações úteis ao acréscimo do conhecimento e incorporação da diversidade. Entretanto, outras regiões do globo, como o mundo árabe-islâmico, permanecem menos exploradas. Entre os trabalhos dedicados a este tema, destaca-se a contribuição da professora do Departamento de Ciência Política da UFRJ, Beatriz Bissio, aqui resenhada.

O livro O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta é marcado pela trajetória da autora. Uruguaia naturalizada brasileira, Bissio atuou muitos anos como jornalista. Cobriu guerras de libertação nacional em Angola e em Moçambique, registrou o apartheid sul-africano e noticiou conflitos no Oriente Médio. Ao percorrer os países islâmicos, diz-nos que ficou profundamente marcada pela errônea tese de que existe uma profunda alteridade entre o mundo árabe-islâmico e o Ocidente. Munida desta inquietação, graduou-se em Ciências Sociais (PUC-RJ) e doutorou-se em História (UFF). Fruto de pesquisa realizada no doutorado, o livro analisa a civilização árabe-islâmica no século XIV, destacando o espaço como categoria apta à integração do mundo muçulmano, num período de fragilização política e cultural do Magrebe.

Afastando-se da perspectiva orientalista que circunscreve o mundo árabe-muçulmano à condição de exótico [2], Beatriz Bissio busca compreendê-lo a partir de dois de seus próprios pensadores: Ibn Battuta e Ibn Khaldun. O primeiro foi um viajante marroquino nascido em Tânger, em 1304, autor de Através do Islã, um relato de suas extensas viagens, aproximadamente 120 mil quilômetros percorridos em quase três décadas. O outro, Ibn Khaldun, era historiador e também viajante, nascido em Túnis, em 1332, autor do Livro das Experiências, em cuja primeira parte, Muqaddimah (ou Os prolegômenos da história universal) está o foco da autora, que complementa suas análises com as outras partes da obra, a História dos Berberes e a Autobiografia.

Dividido em duas partes e sete capítulos, o livro traz a preocupação de quem escreve sabendo que grande parte de seu público tem pouco domínio do assunto sem, no entanto, frustrar aqueles já versados no tema. Nos três capítulos da primeira parte, Bissio apresenta o mundo árabe-islâmico, localiza o leitor no Mediterrâneo do século XIV (com vários mapas) e apresenta suas personagens e fontes. A segunda parte é formada por quatro capítulos, dedicada à verticalização da análise das representações do espaço no medievo islâmico. A autora analisa o conceito de civilização presente nas obras, sobretudo na Muqaddimah, o papel da viagem na compreensão e internalização do espaço no mundo árabe-muçulmano, suas formas de representação na cartografia e nos saberes científicos da época e a hierarquização do espaço: o urbano, em função da mesquita; o território em função de Meca.

No século IX, desenvolvia-se na Espanha e no Magrebe islâmicos um gênero literário dedicado a descrever o espaço: os relatos de viagem. Decorrentes da exigência religiosa de realizar a peregrinação a Meca, aplicável a todo fiel saudável e com condições financeiras, os relatos foram produzidos por vários agentes: viajantes, espiões, mercadores, embaixadores. A palavra rihla, termo árabe para viagem, périplo, logo se tornou o nome do gênero. No século XIV, a rihla de Ibn Battuta tornava-se excepcional: saindo do Marrocos, o autor percorreu Egito, Palestina, Síria, Iraque, Irã, península Arábica, China, Índia, Afeganistão, Turquia, Rússia, Iêmen, Omã… motivado pela busca por conhecimento ao longo espaço islâmico.

O espaço é definido através da oposição entre os territórios do islamismo (dar alIslam) e aqueles ocupados pelos infiéis (dar al-kfur) e dedicados à guerra (dar al-harb), cuja incorporação nas terras do islã, acreditava-se, aconteceria mais cedo ou mais tarde. Essas definições acerca da natureza do espaço são importantes para a compreensão das obras de Khaldun e Battuta. O primeiro, modelo de sábio erudito islâmico, dedica-se na Muqaddimah a compreender as leis universais da sociedade – ciência que afirma ser sua criação – através do estudo e da viagem pelos espaços islâmicos, tendo o Magrebe como seu grande laboratório. Já Battuta dedica-se a analisar e vivenciar a unidade formada neste espaço. Apesar de cultural e historicamente heterogêneo, a fé islâmica e a língua árabe fizeram dele um território.

Recorrendo a edições dos textos de Battuta e Khaldun em diferentes idiomas, embora não no árabe, Bissio destaca o papel do espaço e da viagem na caracterização da identidade muçulmana do século XIV e anteriores, apontando a valoração atribuída pela religião islâmica à busca do conhecimento. Através da expansão muçulmana, desde o século VII, formou-se um extenso tecido social que, embora forjado sobre diversos ecossistemas e integrando povos culturalmente muito distintos – desde a Índia até a Espanha – manteve elementos de uma identidade comum: o idioma árabe, considerado sagrado e perfeito por ter sido a escolha de Deus para anunciar sua mensagem ao mundo, através de Maomé; e a fé islâmica, responsável pela unidade dos fiéis no corpo da Umma, a comunidade muçulmana que supera fronteiras políticas e étnicas diante da supremacia religiosa.

Dada a amplitude desta ocupação, a análise de referenciais da geografia cultural é central à discussão de Bissio. Conceitos como espaço social e lugar, aplicados à concepção da identidade, permeiam sua discussão, marcando o pertencimento e a exclusão na sociedade islâmica. Centrada no processo de urbanização, a fé muçulmana encontrou local privilegiado para sua divulgação nas cidades, organizando o espaço e caracterizando as relações sociais ali estabelecidas. A cidade construiu-se em torno da mesquita, onde coabitavam profissão de fé, exercício do poder político e jurídico e práticas educacionais. No plano territorial, o desenvolvimento da cartografia manteve-se ativo durante a expansão muçulmana, vistas as exigências dos Cinco Pilares do islamismo [3], dentre as quais se destacam a necessidade de orar cinco vezes ao dia na direção de Meca e realizar, ao menos uma vez na vida, a peregrinação aos lugares sagrados do Islã. O domínio do espaço era condição para exercício da fé e foi a comunhão religiosa sobre o espaço que garantiu a continuidade da Umma.

O exercício da justiça árabe-muçulmana fazia-se a partir do Corão, o livro sagrado, e da Sunna, a compilação dos ditos e feitos do Profeta. Com o aumento da complexidade social árabe-islâmica, fazia-se necessário coletar o máximo de informações úteis à construção da jurisprudência, visto esta basear-se nos exemplos advindos da vida e obra de Maomé. O objetivo inicial da viagem, portanto, era a coleta dos hadiths: atitudes, decisões e silêncios de Maomé, que compõem a Sunna e caracterizam o exercício da justiça islâmica na xaria. Através da viagem, buscava-se reconstruir as experiências do Profeta, pela coleta de tradições junto aos familiares daqueles que conviveram com ele. A viagem levava ao conhecimento.

Além do acesso ao saber, a escrita geográfica trazia à luz a grandiosidade do mundo construído pelos muçulmanos. Este, entretanto, vivia momentos de crise. No século XIV, o Mediterrâneo árabe caia diante dos impactos da Peste Negra e da fragmentação política. Com este pano de fundo, Bissio aborda o contexto histórico vivenciado por Khaldun e Battuta, importantes na configuração de suas obras. A autora argumenta que se vivia um período no qual o passado glorioso era mais importante que o incerto futuro, inspirando os escritores muçulmanos a produzir textos que garantissem à posteridade o conhecimento daquele momento histórico.

Ibn Khaldun, sobre quem já se disse ter sido o criador da Sociologia, se propôs a produzir uma obra de História peculiar à época: os homens eram o sujeito histórico e o objeto de estudo era a sociedade muçulmana. Partindo da trajetória de vida deste autor, o impacto da Peste Negra em sua formação e sua atuação política no Magrebe, na Espanha (Al-Andaluz) e no Egito, Bissio destaca a contribuição de Khaldun às Ciências Humanas, pouco estudada na tradição ocidental. O deslocamento da História para o mundo dos homens, em detrimento de ser realização da vontade divina; a compreensão da unidade do gênero humano e a explicação do desenvolvimento das civilizações através da geografia, ecologia e biologia caracterizam grande ruptura com a epistemologia vigente no período, muito embora alimentada pelas concepções muçulmanas acerca do mundo.

Documentos produzidos para serem monumentos4 de uma sociedade em decadência, os textos de Battuta e Khaldun apontam o uso pragmático da escrita como recurso à integração dos espaços e entendimento da sociedade, aproximando homens e Estados que, embora não mais organizados numa estrutura política única, o califado, seguiam na comunhão de uma identidade linguístico-religiosa (apesar das dissidências, como sunitas e xiitas). Um dos conceitos desenvolvidos por Ibn Khaldun – assabiyya, o espírito do corpo político – decorre de suas experiências ao percorrer o Magrebe neste momento, dado à derrocada de Estados e ao sentimento, captado por ele, de deslocamento do eixo civilizacional, que se movia do sul para o norte, com a emergência da Cristandade europeia e a redução das cidades muçulmanas, outrora as mais populosas, urbanizadas e ativas do período.

Na teoria das civilizações de Khaldun, o conceito umran tem sentido em civilização, seja na universalidade da sociedade humana ou na concretude de uma população sobre um território. A vida em sociedade é condição da existência humana, conforme Khaldun, e sua essência está na complementaridade entre o polo rural e o urbano. No primeiro residem os valores como força, lealdade, temperança, que fortalecem o espírito político (assabiyya); no segundo está o luxo, os excessos e prazeres, que o enfraquecem. Contudo, o urbano é o espaço central da vida social e religiosa. O equilíbrio se constitui na trajetória cíclica da história, com ascensão e queda de impérios que conquistam as cidades, se apoderam delas e se enfraquecem nelas. A umran é transmitida de um império a outro, resultando num sistema de civilização bipolar, cíclico e relativamente estável.

Enquanto Khaldun busca compreender as leis que regem a sociedade, Battuta aponta a unidade da umma como ponto central de sua análise. Ao longo da rihla na qual descreve o périplo realizado, o viajante marroquino dedica-se a apresentar a universalidade da umma. Sua narrativa, exposta por Bissio, conjuga as necessidades do saber com a atenção dedicada ao mundo do islã, seus prazeres, aromas e sabores. A manifestação da fé muçulmana nos lugares pelos quais passou, a solidariedade amparada no pertencimento à comunidade religiosa e a peregrinação como lugar do encontro são destacados por Battuta. Meca é o centro da umma e, para os muçulmanos do século XIV, as terras do islã eram a única parte do mundo que importava, pois nelas estava a verdade da revelação a ser levada a outros lugares ao redor do globo. Não obstante a desagregação política do califado abássida, a unidade linguístico-religiosa foi capaz de manter-se, tendo a referência ao espaço como eixo central de sua organização, na vida diária – através da mesquita – e na umma, por meio de Meca.

O sentido das viagens realizadas por Khaldun e Battuta pode ser melhor compreendido se colocado em termos da teoria do conhecimento do islamismo. Diferentemente do cristianismo, que prega separação entre mundo temporal e espiritual, o islã define a unidade entre essas realidades. O Corão incita os fiéis a olharem o mundo com curiosidade, pois nele se expressa a palavra de Deus. A religião estimula a ciência e, no período do medievo, a produção científica muçulmana era enorme, legando às estantes da Cristandade a maior parte das traduções da filosofia grega, que chegaram à língua latina através do árabe. A incorporação dos conhecimentos e sua transformação, buscando atender às necessidades da comunidade muçulmana, geraram um período de grande riqueza intelectual, expressa no universalismo científico e religioso da umma.

Ao romper estereótipos e preconceitos acerca do islamismo, Beatriz Bissio convidanos a um novo olhar sobre o Oriente. Ao dialogar com Ibn Khaldun, repete-lhe as conclusões: “o mundo parece estar mudando de natureza” [5], bem como é preciso que mudemos a natureza de nosso olhar sobre ele. Sua leitura apresenta-nos a possibilidade de reflexão sobre mundo além do panóptico europeu. Relações que se tecem e se reproduzem sem, necessariamente, ter o Ocidente como causa ou objeto. Somos apresentados ao islã com olhar de proximidade, de encanto e encontro. Unidos na natureza humana, mas também herdeiros do legado árabemuçulmano que nossa cultura ocidentalizante insiste em invisibilizar, vislumbramos um mundo criativo, dinâmico, parte de nossa formação histórica. Um mundo que vai muito além da sombra do Ocidente.

Notas

1. Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: [email protected].

2. SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.

3. PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização, Uma Abordagem Antropológica. Aparecida: Santuário, 2010.

4. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp. 2003.

5. BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p.292.

Thiago Henrique Mota1 – Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: [email protected]


BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.  Resenha de: MOTA, Thiago Henrique. Além da sombra do Ocidente: o mundo árabe que nós desconhecemos. Aedos. Porto Alegre, v.7, n.16, p.502-507, jul.,2015. Acessar publicação original [DR]

Antigas Leituras: Visões da China Antiga – BUENO/ M NETO (RMA)

BUENO, André; NETO, José M. (org.) Antigas Leituras: Visões da China Antiga. União da Vitória: UNESPAR, 2014. Resenha de: BUENO, André. Revista Mundo Antigo, v.4, n.7, jun., 2015.

Ainda que a China seja um dos temas historiográficos mais importantes da atualidade, é precário e desolador o panorama dos estudos sinológicos no Brasil. Reinam as iniciativas isoladas, calcadas nas bibliotecas particulares (adquiridas a muito custo), cuja divulgação é quase sempre bastante restrita. É possível dizer, sem receio, que estudar o vasto e amplo campo do “Oriente” não é algo devidamente estimulado no ambiente acadêmico nacional. Dentre os múltiplos objetivos da Ciência Histórica, estudar os fundamentos das civilizações humanas, bem como compreender os mecanismos da alteridade, deveriam ser temas relevantes mesmo para um historiador iniciante; e a ausência marcante dos estudos de Antiguidade Oriental em muitos currículos evidencia, mais do que nunca, esse problema gravíssimo de formação. Um estudante, obviamente, não precisa ser sempre um especialista em Antiguidade e/ou “Oriente”; mas sabemos que, ao dominar os instrumentos básicos da pesquisa nesse campo, ele amplia e fortalece sua formação, construindo para si um conhecimento mais sólido e interdisciplinar. Marcel Granet (1884-1940), um dos mais importantes sinólogos que a França já conheceu, afirmava que “A civilização chinesa merece mais do que a simples curiosidade. Ela pode parecer singular, mas (é um fato) nela se encontra registrada uma grande soma de experiência humana. Nenhuma outra serviu de vínculo a tantos homens, durante um período tão grande. Quem pretende ter o título de Humanista, não deve ignorar uma tradição de cultura tão atraente e tão rica em valores duráveis”. Posto de outra maneira: é possível, ou mesmo viável, afirmar-se um “Humanista” ou um “Especialista em Ciências Humanas” quando seu conhecimento teórico e metodológico – que se pretende universal – ignora quase dois terços do mundo (isto é, Ásia e África)? Dito isso, não é preciso muito esforço para compreender a necessidade fundamental dos estudos sobre o “Oriente”. Claro, cuidados devem ser tomados: facilmente, buscar entender UM “Oriente” descambaria no “Orientalismo”, tão bem denunciado por Edward Said (1998), que se constitui na miragem cultural do exotismo e do estranhamento produzida pelos europeus do século 19, em relação “aos outros” – ou, os “orientais”. O “Oriente”, pois, deve ser abordado em blocos separados, e em épocas distintas, buscando-se compreender seus modelos civilizacionais, seus alcances e contribuições. Leia Mais

Between Empires, Arabs, Romans and Sasanians in Late Antiquity – FISHER (RMA)

FISHER, Greg. Between Empires, Arabs, Romans and Sasanians in Late Antiquity. Oxford: Oxford University Press, 2013. 254p. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo. Revista Mundo Antigo, v. 4, n.7, jun. 2015.

One of the main challenges to scholars is to explain the Muslims revolution, dating from the first decades of the 7th c. AD, from the Hegira in 622. This is so for several reasons, not least the fact that there is a lack of documents in Arabic script prior to that period, but also because it is apparently difficult to figure out the Arab upsurge from the relative obscurity of the previous centuries. Greg Fisher, associate professor at Carleton, Canada, has studied this intricate subject under the supervision of professor Averil Cameron, in Oxford, resulting in this volume published at Oxford University Press. From a theoretical standpoint, Fisher considers that religious, linguistic, ethnic, and cultural identities are a core research interest in studies of Late Antiquity. Then, the author stresses the importance of the study of the sources, as the Greek and Syriac ancient authors, as well as archaeological and epigraphic data form the foundation of the study. Third, and less intuitive, is an anthropological comparative approach, including colonial American history, such as borderland studies about Spanish colonizers, missionaries, Native Americans, British and French in North America. He emphasizes that the borderlands framework offers a flexible way to approach the engagement between empires, peripheries, and frontiers, encouraging us to view history of people such as the Jafnids from a macro historical perspective which is not confined to the context of the ancient world. A key concept is “in-between”, for people living in the outskirts of empires. Leia Mais

O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político / Ibrahim Abu-Rabi

Lançado em 2011 [2] este livro vem completar duas lacunas: A primeira – existente em todo mundo euro-americano – de obras sobre o Islã e mundo árabe escritas por seus próprios interlocutores. É bem conhecida a frase de Karl Marx usada como epígrafe no clássico livro de Edward Said “Eles não podem representar a si mesmos; devem ser representados”; a segunda – a da mesma linhagem de obras publicadas em português – embora o número de obras publicadas no Brasil sobre essa temática tenha crescido desde o fatídico 11 de setembro de 2001 e trabalhos acadêmicos especializados estejam numa crescente, estudos sobre Islã e mundo árabe feitos por árabes e muçulmanos ainda são raros. Basta lembrar que entre os autores mais publicados – no Brasil sobre esta temática temos Albert Hourani e Edward Said com ascendência árabe, mas com carreiras consolidadas no Reino Unido e EUA, respectivamente, e Karen Armstrong e Bernard Lewis, sem ascendência árabe e oriundos dos mesmos países.

Editado originalmente em 2010 no Reino Unido em língua inglesa, o livro conta com a perspicácia de Ibrahim Abu-Rabi na seleção dos textos e também na tradução de vários deles (do árabe para o inglês). Detentor da cadeira de Estudos Islâmicos da Universidade de Alberta, Abu- Rabi agregou um corpo de pensadores muito diverso nesta obra, desde militantes como Xeque Umar Abdel Rahman (1938), egípcio radicado nos EUA; Abdullah Azzam (1941-1989), palestino e um dos fundadores do Hamas; Xeque Ali Sadr al-Din al Bayanuni líder da Irmandade Muçulmana na Síria e exilado nas últimas duas décadas na Inglaterra; Fathi Yakan (1933-2009) , líder da Frente de Ação Islâmica no Líbano, à acadêmicos como Mustafá Abu Sway, professor da Universidade de al-Quds (Jerusalém); Ishaq al-Farhan da Universidade Al-Zarqaa (Jordânia); Muhammad Sa’id Ramadan al-Buti da Universidade de Damasco (Síria) e Jamil Hamami também da Universidade Al-Quds. O livro ainda conta com a contribuição do jurista Abdul Qadir Awdar, do jornalista Yassir Zaatira e de outros intelectuais da Europa ( Yahia Zoubir, Professor da Euromed em Marselha), EUA ( o já falecido Ismail Raji al-Faruqi (1921-1986) ex-professor da Universidade de Temple (Filadélfia) e outros mais do mundo islâmico.

As contribuições dos trinta e cinco autores dividem-se em seis partes: I – Rumo a uma avaliação teórica do islamismo no mundo árabe contemporâneo; II – Islamismo, jihad e martírio; III- Islamismo e a questão de Israel/Palestina; IV- Islamismo contemporâneo: tendências e autocrítica; V – O islamismo, o Ocidente, os Estados Unidos e o 11 de Setembro e VI – O islamismo no mundo árabe contemporâneo.

Lançando-se em temas caros à geopolítica e diplomacia atual, o livro tem o mérito de abrir os olhos do leitor para a multiplicidade e divergência de pensamento dentro do mundo islâmico. Tradicionalmente pintado como atrasado, despótico, monolítico e outras características depreciativas nas mídias ocidentais, surgem destas páginas esclarecimentos religiosos como o Capítulo 17 de Yusuf Al-Qaradawi: Extremismo: a acusação e a realidade no qual o autor defende que o Islã é a religião da moderação. Em suas palavras:

O Islã recomenda a moderação e o equilíbrio em todas as coisas: na crença, no culto, na conduta e na legislação […] Os textos islâmicos convocam os muçulmanos a exercerem a moderação e a rejeitarem e se oporem a todos os tipos de extremismo: ghuluw (excesso), tanattu’ (religiosidade detalhista) e tashdid (severidade, austeridade)[3].

Dentre a multiplicidade de vozes e ideias presente na obra, também merece destaque os relatos – Capítulo 5 – de Abdullah Anas sobre seu ingresso na jihad afegã contra os soviéticos no início da década de 1980 e a sistematização da doutrina jihadista feita por Abdullah Azzam no capítulo seguinte, apresentando quinze ensinamentos deixados pela sua participação na jihad afegã. Azzam esboça o roteiro prático de seu engajamento e do apelo proselitista à militância armada.

Outros temas polêmicos como o uso do véu são abordados. No Capítulo 4 Muhammad al-Ghazali argumenta que o profeta Maomé nunca ordenou que os rostos das mulheres fossem cobertos e esse hábito nada tem a ver com o culto, mas – em tom de mea culpa – adverte “nós muçulmanos apresentamos uma imagem feia e repulsiva do Islã”[4]. Nesse sentido, defende “É bastante aceitável, a partir de uma perspectiva islâmica, que as mulheres trabalhem fora de casa”[5] e ainda ironiza apontando que a ex primeira-ministra israelense Golda Meir “humilhou um grupo de homens árabes de barbas e bigodes na Guerra dos Seis Dias”[6].

Saindo do lugar comum da belicosidade, animosidade e confrontação, Ahmad Bin Yousuf escreve o capítulo 20 Os islamitas e o Ocidente: do confronto à cooperação, começa por diagnosticar que:

A psique ocidental foi traumatizada pela natureza tumultuosa da política na região islâmica: a questão turbulenta e multidimensional da Palestina; a retórica intransigente adotada pela Revolução Islâmica no Irã; a mística por trás da jihad afegã; e o enorme apelo dos movimentos islâmicos no interior de seus respectivos ambientes sociopolíticos – no Líbano, Egito, Sudão, Magrebe árabe, Cisjordânia e Faixa de Gaza, Malásia, Paquistão, Filipinas e assim por diante. Incapaz de decifrar esses fenômenos contemporâneos a partir de seus critérios de autorreferência, o Ocidente respondeu de modo errático e falacioso, frequentemente invocando imagens de clichês enunciados banais. O mundo islâmico foi visto com desprezo como uma região unidimensional incapaz de exportar ideais produtivos ou de ser receptivo a ideias estrangeiras[7].

Condenando o uso de expressões capciosas como “fundamentalismo” e seletividade jornalística, aponta Os estudos seletivos imprimem nos leitores o pesadelo alucinatório de reacionários irracionais, em vez de explicar o comportamento muçulmano como uma resposta a injustiças específicas”[8], assim “incidentes individuais realizados por uma minoria frustrada são relatados como o trabalho de uma força fundamentalista destrutiva. Qualquer um que quebra a lei, e ocorre de ser um muçulmano por identidade, é um fundamentalista”[9].

No esteio desse debate vale a menção ao primeiro capítulo. Muhammad al-Buti desfaz a ligação automática entre “salafiyyah” e “wahhabi”. Segundo ele, a primeira é uma “fase histórica abençoada” em que a umma (comunidade muçulmana) era guiada pelos califas rashidum (“bem guiados”). Nunca houve uma escola legal salafista, a confusão começa a partir do século XIX, quando no Egito passou-se a utilizar o termo salafiyyah descolado de seu cunho teológico e erudito limitado como, por exemplo, em nomes de revistas e editoras. Paralelamente, ganhava corpo na Arábia Saudita a doutrina fundada pelo Xeque Muhammed Ibn Abdul Wahab (1703-1792), ambos movimentos visavam combater superstições e inovações, sobretudo dos místicos e desse modo preferiram o termo salafiyyah que remete a primeira comunidade islâmica ao contrário de homenagear a persona de Wahab. Tal operação constitui-se um esforço de legitimação, buscando tornar paradigmática a interpretação wahhabi – concentrada na Arábia Saudita – acerca da doutrina e tradição islâmica.

O esforço organizativo empreendido por Abu-Abi é enunciado logo nas primeiras páginas “Dentro do universalismo islâmico há unidade, mas não uniformidade”[10]. De fato, a obra consegue abarcar a “unidade” e “multiplicidade” do mundo islâmico. Como também mencionado pelo organizador da coletânea, é preciso “conscientizar as audiências ocidentais de que o Islamismo como um discurso político abarca muito mais do que o fundamentalismo dogmático e a violência terrorista que são abundantes na mídia ocidental”[11].

Retomando uma ideia de Edward Said, “precisamos compreender as muitas ‘atualidades políticas’ que o ‘retorno ao Islã’ corporifica” (SAID, 1981 apud ABU-RABI, 2011, p. 12). Vale ainda esclarecermos que normalmente tem se usado as palavras “Islã” e “Islamismo” indistintamente no Brasil e em outros países ocidentais. Para Abu-Rabi, assim como para outros intelectuais importantes como Hamit Bozarslan, “Islã” remete a religião, mas também há o significado sobreposto de “civilização islâmica” – os franceses convencionaram “islã” com minúscula para religião e “Islã” com maiúscula para civilização, distinção que não existe na língua inglesa. Já o “Islamismo” de acordo com Abu-Rabi emerge como movimento político em resposta a alguns fatores: de um lado a falha do movimento pan-islâmico do século XIX e parte do XX em alcançar o “Tanzimat” (uma espécie de “renascimento”) ocorrido no Império Otomano;“O surgimento de uma nova ordem colonial nos antigos territórios do Império Otomano, que coincidiu com a divisão do mundo árabe moderno entre novos senhores imperialistas (principalmente franceses e ingleses)”[12]; O surgimento dos nacionalismos nos diferentes países árabes (incluindo os do Norte da África) no entreguerras e a ascensão dos EUA após a Segunda Guerra Mundial.

“O Islamismo moderno foi principalmente um produto do sistema capitalista moderno, criado por diversas potências ocidentais ao longo dos últimos séculos”[13]. Immanuel Wallerstein aponta no mesmo sentido: o Islamismo

é simplesmente uma variante daquilo tem acontecido em todos os lugares nas zonas periféricas do sistema mundial. A interpretação básica destes eventos tem de girar em torno da ascensão histórica dos movimentos antissistêmicos, seu aparente sucesso e fracasso político, a consequente desilusão, e a busca por estratégias alternativas. (WALLERSTEIN, 1994, apud ABU-RABI (org) p. 13)

O islamismo é também uma resposta a hegemonia europeia. De acordo com Abu-Rabi o sistema mundial capitalista não pode sobreviver sem inimigos externos e assim “o Ocidente” o considera seu principal inimigo. É uma consequência quase natural que as massas muçulmanas afetadas pelas intervenções colonialistas se agrupem sob a bandeira islamita contra um “inimigo comum”. “O Islamismo nasceu nos mundos árabes e muçulmano a partir do ventre do colonialismo” e representa uma ameaça à seus genitores por desejar a quebra do status quo e reivindicar que o Islã seja um “significador mestre”, fator que ampliaria a lacuna conceitual entre a concepção ocidental do mundo e a concepção islâmica.

Notas

2. A tradução do inglês para o português foi realizada por André Oídes. Versão original: ABU-RABI, Ibrahim (org.). The Contemporany Arab Reader on Political Islam. London: Pluto Press, 2010.

3. AL-QARADAWI, Yusuf. Extremismo: a acusação e a realidade. In: ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. São Paulo: Madras, 2011.p.205.

4. ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. Op. cit., p.69.

5. Ibidem, p.70.

6. Ibidem, p.71.

7. YOUSUF, Bin. Os islamitas e o Ocidente: do confronto à cooperação. In: ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. Op. cit., p.237.

8. Ibidem, p.247.

9. Ibidem, p. 240.

10. ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. Op. cit., p. 9.

11. Ibidem, p.9-10.

12. Ibidem, p.12.

13. Ibidem, p.13.

Felipe Yera Barchi – Doutorando em História pela Universidade Estadual de São Paulo (UNESP). E-mail: [email protected]. Currículo Lates: http://lattes.cnpq.br/9147137881055201.

Resenha de: Em Perspectiva. Fortaleza, .Acessar publicação original [IF].


ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. São Paulo: Madras, 2011. [1] Resenha de: BARCHI, Felipe Yera. Para entender o Islã Político. Em Perspectiva. Fortaleza, v.1, n.1, p.208-212, 2015. Acessar publicação original [IF].

A noção de propaganda e sua aplicação nos estudos clássicos. O caso dos imperadores romanos Septímio Severo e Caracal | Ana T. M. Gonçalves

Ana Teresa Marques Gonçalves é natural do Rio de Janeiro, cidade na qual nasceu em 1969. É graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em História Social e doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professora associada de História Antiga e Medieval na Universidade Federal de Goiás (UFG) e uma das mais importantes historiadoras e pesquisadoras acerca do período Severiano (II e III d.C.).

O livro, publicado em 2013 e composto por três capítulos, além da apresentação da obra, do prefácio, escrito pelo Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello e das considerações finais, tem por título “A noção de propaganda e sua aplicação nos estudos clássicos. O caso dos imperadores romanos Septímio Severo e Caracala”, e resulta da tese de doutoramento, pela USP, em História Econômica da referida autora. Ela busca mostrar, aos interessados na área de História Antiga e aos que desejam se deleitar com uma leitura objetiva e explicativa no que tange à História da Roma dos séculos II e III d.C., mais especificamente, como se deu o processo de afirmação dos dois primeiros imperadores Severianos (Septímio e seu filho, Caracala). Leia Mais

O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político | Ibrahim Abu-Rabi

Lançado em 2011 este livro vem completar duas lacunas: A primeira – existente em todo mundo euro-americano – de obras sobre o Islã e mundo árabe escritas por seus próprios interlocutores. É bem conhecida a frase de Karl Marx usada como epígrafe no clássico livro de Edward Said “Eles não podem representar a si mesmos; devem ser representados”; a segunda – a da mesma linhagem de obras publicadas em português – embora o número de obras publicadas no Brasil sobre essa temática tenha crescido desde o fatídico 11 de setembro de 2001 e trabalhos acadêmicos especializados estejam numa crescente, estudos sobre Islã e mundo árabe feitos por árabes e muçulmanos ainda são raros. Basta lembrar que entre os autores mais publicados – no Brasil sobre esta temática temos Albert Hourani e Edward Said com ascendência árabe, mas com carreiras consolidadas no Reino Unido e EUA, respectivamente, e Karen Armstrong e Bernard Lewis, sem ascendência árabe e oriundos dos mesmos países. Leia Mais

Traduções de Maquiavel: da Índia portuguesa ao Brasil / Tempo / 2014

Desde há muito, no vocabulário português, “tradução” significa o ato de converter um texto falado ou escrito de um idioma a outro, desejando-se, para o tradutor, um ótimo conhecimento da língua a lhe servir de fonte, bem como uma familiaridade maior com a língua almejada. Conforme o muito citado clérigo luso-francês setecentista Bluteau, as boas traduções não seriam feitas por palavras, mas por equivalências. Para ele, o vocábulo seria ainda uma figura retórica, ao repetir-se a mesma palavra com diferentes sentidos. Alude, então, ao famoso ditado”traduttore, traditore”, todavia, ponderando sobre a possível fidelidade dos bons trabalhos. 1A acepção de transferir e transformar, relativa ao termo, foi enfatizada em dicionários posteriores da língua portuguesa,2 sem prejuízo dos primeiros significados, mas conotandoo ato de traduzir como esclarecer o significado de algo. Ou seja, traduzir seria, principalmente, uma interpretação, uma compreensão e uma explicação do que pretende ser entendido.3

O dossiê ora apresentado lida com algumas “traduções” do autor Niccolò Machiavelli (1469-1527) e de suas obras, valendo-se não apenas do primeiro sentido apontado, mas também dos outros, em busca de equivalências e / ou interpretações. Em todos os casos, nele procura-se entender certas expressões assumidas por Maquiavel no mundo lusofônico através dos tempos. Essas expressões foram buscadas no império ultramarino português da época moderna, do século XVI ao XVIII, mas também no Brasil independente do século XX.

Nas histórias de Portugal, suas conquistas coloniais e do Brasil, os escritos desse florentino vivenciaram uma trajetória peculiar. Inicialmente, foram lidos com interesse por humanistas durante a expansão lusa na primeira metade do século XVI, com avanços na África, na Ásia e na América nos reinados de D. Manuel I e D. João III. Em um de seus proêmios, Maquiavel ousadamente comparou-se aos navegadores que, então, descobriam o Novo Mundo, fazendo um paralelo entre a sua teoria política e as viagens ultramarinas.4Embora ele não tenha incorporado em seus livros maiores reflexões sobre as novas conquistas então encetadas pelas monarquias ibéricas, após sua morte, suas ideias incidiram na elaboração de textos que dissertavam sobre a natureza e a legitimidade do governo de Portugal nas partes do mundo, principalmente no Oriente. Naquele momento, a censura eclesiástica em Roma e nos países ibéricos ainda não condenara plenamente as obras do secretário florentino. Comparavam-se, então, as epopeias lusitanas aos feitos dos antigos romanos, sendo os Discorsi – cuja tradução para o espanhol fora encomendada por Carlos I e dedicada ao futuro Felipe II de Espanha – uma fonte principal.5

Procura-se entender certas expressões assumidas por Maquiavel no mundo lusofônico através dos tempos, no império ultramarino português da época moderna, mas também no Brasil independente do século XX

Sucedeu-se na segunda metade do Quinhentos o tempo dos índices de livros proibidos (romanos, portugueses e espanhóis) e do reforço da ortodoxia católica. Entretanto, paradoxalmente, a pecha de autor proibido e o surgimento do antimaquiavelismo não diminuíram o interesse por essas ideias – ou pelo que elas representavam – no ambiente ibérico e marcadamente português. Nesse mundo de guerras e afirmações de poderes com pretensões mundiais, Il principe – como seria conhecido o opúsculo – e seu autor eram referências incontornáveis. No ambiente católico que formalmente o rechaçou, Maquiavel personificava os vícios da política, frequentemente contrapostos a uma atuação cristã. Mas ele também podia inspirar de forma velada ações tidas como irreprocháveis. Naquele tempo, a má fama do autor de Florença associava-se aos próprios preceitos de uma pérfida razão de Estado. Contudo, suas ideias eram também encontradas em autores formalmente definidos como antimaquiavélicos.6

Nos séculos XVII e XVIII, em Portugal e no Brasil, surgiram governantes cujas práticas políticas podem ser identificadas como outra vertente de exercício do poder, mais objetiva e temerária, distinta da comumente veiculada aos pactose mediações característicos de uma monarquia católica respaldada pela filosofia neoescolástica. Em Portugal,essa cultura politicafoireforçada na conjuntura da Guerra da Restauração (1640-1668).7Todavia, mesmo nesse meio, não raro administradores e rebeldes incorporaram em seus discursos estratégias de dissimulação, que sabemos não terem sidoexclusivas de Maquiavel, mas foram recorrentemente a ele associadas como maquiavelismos. Mais tarde, a participação de nobres portugueses na Guerra de Sucessão da Espanha (1701-1713) constituiu um outro grande momento de internacionalização e contato com ideias excêntricas ao tradicional ambiente reinol lusitano.8

Essa breve remissão diacrônica aponta para uma perspectiva teórica e metodológica diferente para o estudo dos governos, ideias e práticas na monarquia portuguesa e emsuas conquistas ultramarinas.9Diante desse mundo apenas superficialmente hostil às ideias de Maquiavel, é aconselhável ler as fontes a contrapelo e desconfiar das banais acusações de maquiavelismo, facilmente proferidas a fim de denegrir os inimigos. Esse era um tempo no qual a má reputação do autor florentino contaminava outras formas de dissimulação e de ardil político, existentes desde a cultura clássica.10 Abre-se, assim, o leque de possibilidades à heterodoxia e à singularidade, mais frequentesdo que as análises modelares dos Estados modernos europeus deixam entrever, para captar esse grande contexto político e cultural – na realidade, multifacetado. Por cópias manuscritas cuidadosamente guardadas e hoje desparecidas, ou por livros proibidos depositados nas bibliotecas monásticas, ou por edições nunca expostas pelos seus detentores, sobreviviam as ideias maquiavelianas, evitando-se, a todo custo, sua vinculação ao maquiavelismo – o que as fragilizaria ante os possíveis acusadores.

Mais adiante, no Brasil já republicano e na esteira da Revolução de 1930, desponta a primeira tradução em língua portuguesa de Il principe, antecedendo em dois anos a sua congênere europeia. Contudo, no país liberto há muito da censura inquisitorial, sobrevivia o tom depreciativo para tratar do que fosse alusivo a Maquiavel. O livro foi publicado por uma editora carioca de perfil socialista para denegrir a escalada ascensional e estrategista de um Getúlio Vargas “maquiavélico”, conforme o seu prefácio. Em Portugal, a tradução da mesma obra, conhecida como o “Maquiavel fascista”, com prefácio de Mussolini, fazia também a ponte entre a política então vivida, em pleno salazarismo, e as ideias seminais do florentino quinhentista.11

Voltemos, então, aos vários sentidos da palavra “tradução”. Do toscano ou italiano ao português, mas também do político brasileiro contemporâneo, posto como equivalente ao escrito outrora pelo afamado autorno século XVI em relação à prática do poder. Um Maquiavel que falou a outros tempos não poderia, ainda, ter suas ideias e conselhos comparados à atuação de uma personagem coeva, encontrada nos quadros do império ultramarino luso? A correspondência do grande Afonso de Albuquerque, governador da Índia portuguesa no tempo em que era escrito o pequeno livro sobre os principados, mostra o quanto suas preocupações com a conquista e a conservação dos territórios assemelhavam-se aos textos dos DiscorsiIl principe e Dell’arte della guerra, não obstante algumas diferenças em outros tópicos. Albuquerque não leu Maquiavel, mas equivalia-se a suas ideias. Ele seria, portanto, uma sua tradução.

Diante desse mundo apenas superficialmente hostil às ideias de Maquiavel, é aconselhável ler as fontes a contrapelo e desconfiar das banais acusações de maquiavelismo

É possível perceber também Maquiavel e / ou elementos do maquiavelismo mediante a realização de interpretações, como nos casos do governador-geral do Estado do Brasil no anos de 1660, 1ºconde de Óbidos, e do governante de capitania D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, então futuro 3ºconde de Assumar, no segundo decênio do Setecentos. Suas ações e escritos apresentam semelhanças com os conselhos proferidos pelo florentino, sobretudo em Il principe. Embora – dados os constrangimentos culturais e políticos já indicados – seja ousado demais atestar cabalmente a leitura feita por esses nobres portugueses dos livros de Maquiavel, seus governos podem ser entendidos como maquiavélicos, pela sobreposição criada na época moderna entre o próprio estereótipo e a sua fonte. Em outras palavras, os elementos de Maquiavel estariam também nesses maquiavelismos que, não obstante, seriam já a sua caricatura.12

Sem dúvida, trata-se de um horizonte complexo de investigação, para o qual são importantes os estudos realizados, de matiz filológico ou quantitativo, bem como a sensibilidade e o bom senso das suas análises. Também é fundamental operar com o termo “maquiaveliano” – surgido na Itália do século XX como uma tentativa de remissão às ideias do afamado autor mais despojada de seus estereótipos- e com os outros vários vocábulos derivados de Maquiavel (“maquiavelista”, “maquiavélico”, “maquiavelizar” etc.), cujo nome já se costuma proferir na forma aportuguesada. Tudo isso evidencia sua importante recepção em países de língua portuguesa.13

O pequeno dossiê integra-se ao conjunto de realizações pertinentes ao projeto Machiavellismo e machiavellismi nella tradizione politica occidentale (secoli XVI-XX), dirigido por Enzo Baldini, da Universidade de Turim, elaborado com o fito de promover a formação de grupos e colóquios no Ocidente em função da efeméride dos 500 anos da escrita de Il principe, redigido entre fins de 1513 e início de 1514. Desde 2007, cursos, oficinas, jornadas de estudos e um colóquio internacional foram organizados na Universidade Federal Fluminense – em parceria com outro evento realizado no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa -, para perceber o papel das ideias de Maquiavel nos universos português e brasileiro, do século XVI ao presente.14Ao longo desse tempo, lidamos com várias “traduções” e “traições”: de livros, ideias e representações. Portanto, os artigos de Ângela Barreto Xavier, Luciano Figueiredo, Rodrigo Bentes Monteiro, Vinícius Dantas e Sandra Bagno constituem uma breve mostra das enormes possibilidades de pesquisa que o campo da história das ideias políticas pode, no momento, descortinar.

Companhia das Índias, junho de 2014.

Notas

1. Rphael Bluteau, Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, achitectonico… vols. 8 e 9, Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728, p. 233-234; 261. Disponível em: http: / / www.brasiliana.usp.br / pt-br / dicionario / edicao / 1 . Acesso em: 09 de junho de 2014.

2. Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa: recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado… Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1789, p. 793. Disponível em: http: / / www.brasiliana.usp.br / pt-br / dicionario / edicao / 2 . Acesso em: 09 de junho de 2014.

3. Antônio Houaiss; Mauro de Salles Villar; Francisco Manoel de Mello Franco (orgs.), Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2004, p. 2.745.

4. Maquiavel, Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio: “Discorsi”, 4. ed., Tradução de Sérgio Bath, Brasília, Editora da UnB, 2000, p. 17.

5. Giuseppe Marcocci, L’invenzione di un impero: politica e cultura nel mondo portoghese (1450-1600), Roma, Carocci, p. 45-88; Giuseppe Marcocci, “Construindo um império à sombra de Maquiavel”, In:Rodrigo Bentes Monteiro; Sandra Bagno (orgs.), Maquiavel no Brasil: dos descobrimentos ao século XXI, Rio de Janeiro, Editora FGV; Faperj, no prelo; Helena Puigdomènech, Maquiavelo en España: presencia de sus obras en los siglos XVI y XVII, Madrid, Fundación Universitaria Española, 1988, p. 81-133.

6. A título de exemplo, o piemontês Giovanni Botero (1544-1617), com especial entrada no mundo ibérico. Luís Reis Torgal; Rafaella Longobardi Ralha (orgs.),João BoteroDa razão de Estado, Tradução de Rafaella Longobardi Ralha, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992; Enzo Baldini (org.), Botero e la ‘ragion di stato’. Atti del convegno in memoria di Luigi Firpo (Torino 8-10 marzo 1990), Firenze, Leo S. Olschki, 1992.

7. Luís Reis Torgal, Ideologia política e teoria do Estado na Restauração, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981-1982, 2 v.

8. David Martín Marcos, Península de recelosPortugal y España, 1668-1715, Madrid, Marcial Pons, 2014.

9. Distinta, por exemplo, da promovida por Martim de Albuquerque, Maquiavel e Portugal: estudos de história das ideias políticas, Lisboa, Aletheia, 2007, com base no anterior A sombra de Maquiavel e a ética tradicional portuguesa: ensaio de história das ideias políticas, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Instituto Histórico Infante Dom Henrique, 1974.

10. Pablo Badillo O’Farrell; Miguel A. Pastor (orgs.), Tácito y tacitismo en España, Madrid, Anthropos, 2013.

11. Sandra Bagno, “Il principenell’area luso-brasiliana e le sue prime traduzioni in portoghese”, In:Alessandro Campi (org.), Il principe di Niccolò Machiavelli e il suo tempo1513-2013, Roma, Treccani, 2013, p. 219-220.

12. Michel Senellart, Machiavélisme et raison d’Etat. XIIe-XVIIIe siècle, Paris, PUF, 1989.

13. Sandra Bagno, “‘Maquiavélico versus‘maquiaveliano'” na língua e nos dicionários monolíngües brasileiros”, Cadernos de Tradução, vol. 2, n. 22, Florianópolis, 2008, p. 129-150. Disponível em: https: / / periodicos.ufsc.br / index.php / traducao / issue / view / 1121 . Acesso em: 25 de setembro de 2013.

14. Hypermachiavellism. Disponível em: http: / / www.hypermachiavellism.net / . Acesso em: 19 de janeiro de 2014. Como resultados desses empreendimentos, o dossiê de Gustavo Kelly de Almeida; Bento Machado Mota (orgs.), “Maquiavel dissimulado: heterodoxia no mundo ibérico”, 7 Mares. Revista dos pós-graduandos em História Moderna da Universidade Federal Fluminense, vol. 1, n. 1, Niterói, 2012, p. 6-49. Disponível em: http: / / www.historia.uff.br / 7mares / ?cat=6 . Acesso em: 24 de fevereiro de 2014, e o livro de Rodrigo Bentes Monteiro; Sandra Bagno (orgs.), Maquiavel no Brasil: dos descobrimentos ao século XXI, Rio de Janeiro, Paz & Terra; Faperj, no prelo. Essas inciativas também vinculam-se ao projeto coordenado por Ronaldo Vainfas, Linguagens da intolerância: religião, raça e política no mundo ibérico do Antigo Regime (Pronex CNPq / Faperj) e ao dirigido por Ângela Barreto XavierO governo dos outros: imaginários políticos no império português (1496-1961) (Portugal, FCT). Disponível em: <http: / / governodosoutros.wordpress.com>. Acesso em: 10 de junho de 2014.

Rodrigo Bentes Monteiro – Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: [email protected]


MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Apresentação. Tempo. Niterói, v.20, out., 2014. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

The history of Syria: 1900-2012 – HALL (Topoi)

HALL, Clement M. The history of Syria: 1900-2012. Boston: Charles River Editors, 2013. Resenha de: OMRAN, Muna. As marcas da história na guerra civil síria. Topoi v.15 n.28 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

Escrito por M. Clement Hall, publicado em 2013, The history of Syria: 1900-2012 pretende ser uma leitura instigante por sugerir uma análise dos elementos constitutivos da história da Síria e por indicar que fornecerá subsídios para uma melhor compreensão da atual e conturbada guerra civil, iniciada em 2011. Em suas palavras: “People may know what’s going on in Syria today, but how did Syria get to where it is today, at the forefront of The Arabic Sprig?” (p. 2).

Apesar de Hall escrever para um público acadêmico e leigo, o que vemos nos 73 capítulos distribuídos em 34 partes é um inventário de fatos e datas. A narrativa é iniciada com a ascensão e queda do Império Otomano e se conclui relatando os atuais conflitos internos no país.

Segundo o autor, no último século, a história síria foi marcada pela violência, e uma das causas disso se encontra no sectarismo religioso que interfere nas relações sociais e políticas do país: “Within that narrative are a number of sensitive issues, including sectarian strife between the majority Sunni population and the Alawites, not to mention Christians” (p. 2). A contextualização sugerida, assim como o mapeamento e a descrição dos fatos que antecederam o conflito são fundamentais para que o leitor possa avaliar melhor os caminhos da guerra. Hall acredita que seu texto seja capaz de indicar e analisar as diversas variantes políticas do país, já que estas afetam toda a região: “(…) was a toxic and twisted mess that has precipitoulsy affected the entire region, from Israel and Lebanon to Iran and Iraq” (p. 2).

O primeiro capítulo, “The Ottoman Empire”, faz uma brevíssima apresentação acerca das origens do mesmo até sua derrocada. Todos os demais capítulos iniciais da primeira parte, “Before nationhood”, dedicam-se a descrever a administração do governo otomano na região e a fornecer datas que culminariam com a sua queda, no final da Grande Guerra.

Em “Dividing the spoils after the Ottoman collapse”, segunda parte do livro, é feita uma comparação crítica da divisão do referido Império com a que foi realizada pelas potências ocidentais após a queda de Saddam Hussein, no Iraque, em 2003. De acordo com o autor: “A major criticism of the invasion of Iraq and overthrow of Saddam Hussein was the apparent absence of planning for what would follow, specifically how Iraq was to be governed. 85 years earlier, the Great Powers were severely criticized for their plans to divide the Ottoman spoils of war” (p. 7). Ainda nesta parte, faz um mapeamento dos acordos que dividiram o Império Otomano a partir de 1861 e, finalmente, na terceira parte, começa um relato da história síria no século XX, que se mistura à narrativa de todos os povos do mundo árabe.

Hall destaca, como parte da história do país, o Protocolo de Damasco. Esse documento, datado de 1914, declarava o apoio de vários grupos árabes a Faisal Hussein Bin Hussein contra o Império Otomano e definia a criação de um Estado Árabe independente. Se na introdução do livro o autor afirmava que apresentaria mapas, “Along with maps showing how the modern state of Syria came to be formed (…)” (p. 2), já no capítulo “1914: Damascus Protocol”, deixou de fazê-lo, embora a apresentação desse mapa fosse importante para que se pudesse melhor compreender o espaço geográfico que o Estado Árabe preconizado pelo Protocolo ocuparia.

Em todos os demais acordos listados por Hall e que nomeiam os capítulos, vê-se, apenas, uma breve descrição dos fatos e dos personagens do Ocidente envolvidos; nesse aspecto, o livro atinge seu objetivo para um público leigo, mas não para o acadêmico, pois deixa de citar nomes como o do coronel T. E. Lawrence, o lendário Lawrence da Arábia, figura importante na articulação da Revolta Árabe de 1916-1918 contra os otomanos, ou ainda o de Muhamad Sharif Al Faruqi, um dos mais importantes membros das sociedades secretas árabes. Sharif teve papel importante no Protocolo de Damasco assim como, mais tarde, na formação do nacionalismo árabe.

No capítulo “And the French came”, explicitam-se a queda do rei Faysal, em 1920, a consequente derrota das tropas sírias e a divisão do país pelos mandatários em seis entidades territoriais de acordo com a confissão religiosa. O início do Mandato Francês na Grande Síria (atuais Síria, Líbano, Palestina e Jordânia) é narrado por Hall como a grande vitória europeia na região. Em suas palavras: “France was determined to assert what they saw as their rights in Lebanon and Syria, based on history (…)” (p. 13), mas o autor passa ao largo dos levantes contra os franceses durante o período, como também da utilização da ideia de Grande Síria pelos nacionalistas para justificar a criação de um grande Estado Árabe.

O autor recorreu aos 112 anos da história síria para reforçar uma visão eurocêntrica de um país do conturbado Oriente Médio, preocupando-se em listar os acontecimentos e construir um discurso em que a dominação europeia tinha “uma missão civilizatória e apaziguadora”. Tal posicionamento de Hall ilustra-se não apenas na já observada omissão de nomes de personagens árabes como também na descrição da reação dos sírios ao Mandato Francês: “However, nearly all the Syrian sects were hostil to the French Mandate and to the division it created” (p.17), ou, ainda, quando se refere ao período pós-independência do país, no capítulo “French bomb Damascus”, afirmando que foram tempos de muita instabilidade no local, mas não oferecendo nenhuma justificativa para sua afirmativa. Nesse período (1946), a Síria foi palco de diferentes sublevações, portanto, para um livro que se propõe a analisar os fatos históricos, a informação fica incompleta. O capítulo se encerra com a frase “The early years of independence were marked by political instability” (p. 26). O que poderia ser uma sentença de efeito para introduzir um próximo capítulo adquire um caráter conclusivo, mas insuficiente, pois somente o seguinte, “1947: United Nations partition plan for Palestine”, apresentará detalhes acerca da resolução da ONU sobre a criação do Estado de Israel e a reação negativa da Liga Árabe. Assim, na visão ocidental, a Síria é vista como motivadora dos ataques contra Israel – ­”Armed bands of irregulars from Syria’s ­fledgling armed forces began to raid Jewish ­settlements near the Syrian border” (p. 28).

Dessa forma, desde o ponto de partida do livro, “Before nationhood”, há indícios de que as diversas expressões do nacionalismo sírio, mais adiante, seriam discutidas com a profundidade por um estudioso do assunto, o que não acontece. Fatos sobre a formação desse nacionalismo são apresentados, mas distantes de questões levantadas pelo Partido Socialista Nacionalista Sírio ou pelo Partido Socialista Ba’ath (que está no poder há quarenta anos), e tampouco se apontam as interseções nem as diferenças entre eles.

No capítulo “Arabs losses”, o autor dedica-se em apresentar o número de árabes mortos na guerra contra Israel e o de palestinos expulsos de suas casas. Aqui apenas são listadas as perdas árabes no conflito contra Israel; já no capítulo “Military Cops of 1949 and colonel Adib Shishakli”, Hall detalha a ascensão e derrocada de vários presidentes num espaço de um ano. Embora assuma que o presidente Hosni Za’im tenha chegado ao poder mediante um golpe de Estado promovido pelos EUA, governando por apenas cinco meses, o autor não informa ao seu leitor que, em seu brevíssimo governo, Za’im aumentou os impostos, prendeu nacionalistas sírios, executou Antoun Sa’ade, presidente do Partido Socialista Nacionalista Sírio, com a ajuda do israelense Ben Gurion, e fez um acordo de paz com Israel, recebendo em torno de 300 mil refugiados palestinos na Síria; por conseguinte, setores militares insatisfeitos o depuseram. Essa foi a primeira consequência da Catástrofe da Palestina (a Nakba – a catástrofe que se abateu sobre o povo palestino e os demais países árabes em decorrência da criação do Estado de Israel em 1948) na região. O conhecimento desse fato ajudaria a compreender o porquê do discurso de apoio aos palestinos ser a bandeira dos nacionalistas e poderia explicar o alinhamento da Síria à URSS durante a Guerra Fria, por exemplo.

Em “Alawite State”, capítulo dedicado aos alauítas, grupo muçulmano ao qual pertence a família do atual presidente Assad, o autor dedica um espaço maior, explicando sua origem religiosa. No entanto, traz informações discutíveis e equivocadas sobre eles, por exemplo, ao afirmar que “Their practices are considered unusual, as they do not follow the rules on prayer, fasting and wine, and a doctrine called taqiya permits them to make false declarations about their beliefs should the circunstances demand it to avoid persecution” (p. 18). Certamente, Hall se baseou numa bibliografia muito usada por europeus do início do século passado, que partiam de registros apresentados por outros grupos muçulmanos, já que os alauítas, ainda hoje, pouco divulgam suas ações de caráter esotérico e são poucos os estudiosos que conseguem ter acesso a algumas dessas práticas.

Se, por um lado, o Mandato Francês foi violento na repressão, por outro, na visão eurocêntrica, foi salvador para os alauítas, pois lhes garantia a liberdade de culto. Nas palavras do autor: “One of the terms of the mandate was that all persons in the territory given under French control should be allowed to follow their own religious practice (…)” (p. 18). A possibilidade de poderem praticar seus ritos sem serem repreendidos seduziu os alauítas, que passaram a ver os franceses com mais simpatia. Embora o sentimento de construir a Grande Nação Síria estivesse sedimentado em sua cultura, a estabilidade religiosa sobrepunha-se ao nacionalismo. Apresenta-se, assim, a motivação que aproximou os alauítas dos franceses, mas não se explicita a que aproximou os franceses dos alauítas, nem o porquê da criação do Estado, em “1924” (envolvendo as montanhas da costa do Mediterrâneo, as cidades de Latakia e Tartus, curiosamente poupadas pela atual guerra civil, e o norte do Líbano – Trípoli e Akkar), só para eles. Uma barganha que envolvia ambas as partes foi feita; por um lado, os alauítas apoiariam os franceses para a expulsão dos otomanos da região e, por outro, ganhariam um Estado só para eles, o que os livraria das perseguições religiosas e lhes daria uma estabilidade econômica, já que viviam em extrema pobreza. Entretanto, a administração política e econômica, obviamente, seria feita pelos franceses. A liberdade de expressão prometida pelos franceses foi uma estratégia, não apenas para angariar apoio e força, mas, principalmente, sob esse pretexto, aplicou-se o método imperial utilizado em outras colônias: dividir para melhor dominar.

No tocante a esse tema, Hall comete alguns equívocos, pois, além de se basear em fontes ideologicamente comprometidas contra os alauítas, erra na data da criação do seu Estado, que foi 1920, e não 1924, como o autor afirma. Em 1920, houve a delimitação do espaço da comunidade, entre 1921 e 1924, as fronteiras foram retificadas pelos mandatários, incluindo, então, os cantões de Baer, Bassi e Akkrad, de população sunita. De 1924 a 1936 o Estado sobreviveu, nunca com a tranquilidade esperada, já que a anexação dos cantões de maioria sunita aumentava a instabilidade na região. Novamente algumas omissões de personagens, como as lideranças do nacionalista Zaki Al ‘Arsuzy, ou ainda de seguidores de Saleh Al Ali, chefe religioso dos alauítas e nacionalista sírio, que liderou os Levantes de 1919 e 1921, e, mesmo exilado, mantinha sua influência no grupo, pois era inimigo declarado dos mandatários, por perceber que a criação de um Estado Alauíta não mudaria as relações de dominação da França. Os franceses integraram todas as regiões sob um único governo, em 1936, em nome de seu domínio e pressionados pela elite sunita, visto que também temiam mais um Levante Druzo (grupo religioso que se inscreve no islã).

A visão imperialista de Clement Hall, que serviu à Força Aérea Britânica na região, não aponta o uso da força militar na Grande Síria, durante o Mandato Francês. Os fatos se referem às reações contra os mandatários como pequenos levantes e às soluções encontradas em gabinetes franceses ou por meio de conchavos com as lideranças locais.

Algumas perguntas sobre a chegada do partido Ba’ath ao poder, o nascimento do partido na Síria, os primeiros anos deste na presidência, o golpe dado pelos militares liderados por Hafez al-Assad e a relação que há entre a atual perseguição aos alauítas e ações do governo Bashar desde a sua posse não são respondidas, fornecendo-se ao leitor apenas as datas dos eventos.

Em 1982, acontece um dos maiores massacres contra a população civil na Síria. A Irmandade Muçulmana, grupo ativista político sunita que luta pela implantação das Leis Islâmicas (shari’a) nos países árabes e muçulmanos, organizava-se, no país, desde 1976. A ascensão do Partido Ba’ath ao poder, que implantava um Estado laico, a chegada de Hafez Al-Assad à presidência, um alauíta, grupo historicamente adverso aos sunitas, o exército sob comando de alauítas, em especial, e o desejo de unificar os países sob a bandeira do Islã, levaram esses sunitas a um processo de luta pela derrubada de Assad e do seu Partido. Um período de terror se instaura no país, com perseguições, prisões, torturas e mortes de membros da Irmandade Muçulmana, que teve sua culminância com o Massacre de Hamas, em 1982. Tropas do exército sírio eliminaram entre 10 mil e 40 mil pessoas, na cidade de Hamas, bem como muitas foram presos. Ao mesmo tempo que a opressão às manifestações contrárias ao regime é narrada, Hall explica, encerrando o capítulo, entre parênteses, como se fosse uma informação não essencial, que Assad libertou alguns nos anos 1990: “During the rest of Hafez al-Assad´s reign, there were only a few public manifestations of anti-regime activity. (Having suppressed all opposition, Hafez al-Assad released some imprisoned members of the Brotherhood in the mid-1990s)” (p. 48).

De todas as rebeliões que o governo de Assad, pai, sofreu, desde sua ascensão, Hall dedica dois longos capítulos, “Muslim brotherhood and Hama” e “Muslim brotherhood”, às promovidas pela Irmandade Muçulmana. Chama a atenção o silêncio absoluto do autor em relação às prisões e aos massacres de comunistas promovidas pelo governo de Hafez Al-Assad. Entretanto, não é de se estranhar, essa atitude pode ser justificada, pois Hall é um ex-membro do serviço secreto das forças aéreas britânicas.

Um dos pontos mais sensíveis da história recente da Síria é a Guerra Civil Libanesa (1975-1990). O regime político do Líbano é regido pelo confessionalismo, em que cada comunidade religiosa se transformou num órgão político, incompatibilizando, assim, os interesses do Estado Libanês. O capítulo que trata sobre a guerra libanesa, “Intervention in Lebanon”, é mais um relato de datas, lembrando um diário de bordo, sem justificar a participação da Síria na referida Guerra e sua posterior retirada, nem aprofundar as relações da Síria com o Líbano no “pré” e no pós-guerra.

Em 2000, com a morte do presidente Hafez al-Assad, ao contrário do que ocorre no presidencialismo democrático do Ocidente, não foi o vice-presidente Abdul Hamid Khadem quem assumiu, e sim o filho de Hafez. Após uma manobra política do partido Ba’ath para pôr fim a uma exigência constitucional que limitava a idade mínima de quarenta anos, Bashar é referendado como presidente da República aos 34 anos, pelo Parlamento, em julho de 2000.

Novamente, a ascensão de Bashar ao poder é contemplada por Hall apenas com a apresentação de algumas datas e ações que marcaram sua política inicial. Lembra que o presidente sírio, assim que assumiu, libertou seiscentos presos políticos, entre eles, islamitas da Irmandade Muçulmana, mas deixa o leitor sem resposta diante da questão sobre a motivação que o líder sírio teve para promover tais reformas, qual é o interesse do Ocidente por elas e que relação tem o não cumprimento das propostas de abertura política com o inicial apoio americano e europeu às rebeliões de 2011. Reconhece os fracassos das tímidas tentativas de mudanças apresentadas pelo atual presidente, mas não discute por que tal regime não foi capaz nem de democratizar e muito menos de reformar o Estado.

Passados três anos de guerra civil, a despeito de todas as expectativas ocidentais, Bashar Al-Assad continua no poder, ao contrário dos presidentes Saddam Hussein (Iraque), Hosni Mubarak (Egito) e Muammar Kadafi (Líbia). Na parte final do livro, “The situation in Syria”, embora o autor reconheça que o presidente continue a governar, deixa em suspenso para o leitor o que motivou o apoio de outros países da região ao conflito local e como Bashar ainda se mantém na presidência, com aval popular. Hall fornece apenas o número de mortos e refugiados e informa sobre a posição das grandes potências do Ocidente. Em nenhuma passagem do livro o autor estabelece relações entre os fatos formadores da história da Síria desde 1900 e a situação atual ou faz uma avaliação mais aprofundada da conjuntura, o que seria extremamente esclarecedor em um ano eleitoral.

Sabendo-se que Clement Hall serviu à Força Aérea Britânica, esperava-se que uma análise sob o ponto de vista das estratégias militares fosse adotada e assim, pelo menos, seria possível compreender a história do país a partir de uma perspectiva militar. Mas a arabofobia de Hall o impediu de refletir tanto sobre a história política e social quanto sobre o aspecto militar. A lacuna sobre a história da Síria contemporânea continua em aberto.

Muna Omran – Doutora em teoria e história literária pela Universidade Estadual de Campinas, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Leitura e Fruição da Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

O que o dinheiro não compra – SANDEL (C)

SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. Resenha de: BERTONCELLO, Leandro da Silva Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 1, p. 191-194, jan/abr, 2014.

Michael Sandel é uma das mais renomadas autoridades da filosofia no contexto atual. Ele é mais conhecido em função do curso Justice, ministrado na Universidade de Harvard, disponível na internet no site <http://www.justiceharvard.org/>. Para um auditório lotado, Sandel lança a polêmica sobre questões, como: A tortura é justificável? ou Você furtaria um remédio de que seu filho necessita para sobreviver? ou, ainda: Às vezes é errado dizer a verdade? No seu mais recente livro, O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado (traduzido para o português por Clóvis Marques e publicado em 2012 pela Civilização Brasileira), Sandel analisa e critica a crescente mercantilização da vida moral. Demonstra, por exemplo, que, em algumas unidades carcerárias nos EUA, os presos podem pagar para desfrutar de acomodações melhores; casais estadunidenses podem pagar por uma barriga de aluguel na Índia, onde tal prática é permitida; na União Europeia, uma empresa pode pagar 13 euros pelo direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera.

O autor reflete que, após o fim da Guerra Fria, quase tudo passou a poder ser comprado e vendido, e que os mercados passaram a governar nossa vida como nunca. Dois motivos são apontados para a preocupação com a invasão pelo mercado: a desigualdade, pois os pobres ficam cada vez mais afastados da influência política, de um bom atendimento médico, de uma casa em um bairro seguro e de escolas de qualidade (a distribuição de renda adquire importância maior); e a corrupção, pois os mercados corrompem ao estabelecer preços para coisas da vida, com o descarte de valores não vinculados à compra e venda. Leia Mais

Guerras santas: como quatro patriarcas, três rainhas e dois imperadores decidiram em que os cristãos acreditariam pelos próximos mil e quinhentos anos – JENKINS (S-RH)

JENKINS, Philip. Guerras santas: como quatro patriarcas, três rainhas e dois imperadores decidiram em que os cristãos acreditariam pelos próximos mil e quinhentos anos. Tradução de Carlos Szlak. Rio de Janeiro: LeYa, 2013, 352 p. Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Cinzas que queimam. sÆculum Revista de História, João Pessoa, v.30, jan./jun. 2014.

Philip Jenkins nasceu no País de Gales em 1952 e estudou no Clare College da Universidade de Cambridge, onde se formou como historiador especialista em estudos anglo-saxões, nórdicos e célticos. Ele realizou seu doutorado nesta mesma instituição, sob a orientação de John Plumb, pesquisador da história social das elites políticas inglesas do fim do século XVII e início do século XVIII. No período de 1977 a 1980, Jenkins trabalhou como auxiliar de pesquisa de Leon Radzionowicz, que foi o pioneiro dos estudos de Criminologia em Cambridge. Em 1980, foi admitido como Professor Assistente de Direito Penal na Universidade Estadual da Pensilvânia, nos EUA, e durante algum tempo dedicou-se aos estudos da história sociopolítica deste país. No avançar da década de 1980, contudo, seus interesses de investigação inclinaram-se cada vez mais para os estudos sobre a trajetória histórica do cristianismo. Jenkins tornou-se Professor (1993) e Catedrático (1997) de História e Estudos da Religião na mesma Universidade Estadual da Pensilvânia, e começou a produzir uma série de trabalhos nesta área.

Em 2002, Jenkins envolveu-se pessoalmente no campo da controvérsia religiosa quando anunciou sua conversão à Igreja Episcopal desde o catolicismo, e proferiu uma crítica aberta ao celibato normativo do clero católico romano.

Em 2007, ele tornou-se Livre Docente do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Estadual da Pensilvânia, e recebeu em 2011 a Emerência desta mesma instituição. Atualmente Jenkins é Professor do Departamento de História e Codiretor do Programa de Estudos Históricos da Religião do Instituto para Estudos da Religião da Universidade de Baylor – uma instituição confessional de ensino e pesquisa vinculada à Igreja Batista, que, estabelecida em 1845, foi a primeira universidade norte-americana fundada a oeste do Rio Mississipi e a mais antiga em funcionamento contínuo no Estado do Texas. Também é um dos editores do The American Conservative, escreve uma coluna mensal para o The Christian Century e artigos regulares para pelo menos outros três periódicos de grande público nos EUA.

Em 2013, a Editora LeYa publicou, sob o título de Guerras Santas, a tradução de Carlos Szlak para o Jesus Wars, dado a público por Jenkins três anos antes.

A transcrição de um comentário feito em Christianity Today sobre o Jesus Wars na orelha da capa frontal da edição brasileira pode ser bastante instrutiva para esclarecer a questão de porque uma empresa com tal perfil e público alvo investiu na publicação deste volume: “[…] Você gosta de contos incríveis de intrigas religiosas, cheios de conspirações, casos bizantinos, assassinatos e confusão? Ou prefere um relato acurado, sólido e informativo sobre o surgimento do cristianismo ortodoxo? Se a sua resposta foi ‘sim’ para ambas as perguntas, este livro é para você”. De um ponto de vista do mercado editorial, portanto, parece que o Guerras santas foi recebido como uma espécie de Código da Vinci baseado em fatos reais, ou como um guia politicamente incorreto da antiguidade cristã. O texto de Jenkins de fato, se presta parcialmente a isto: o modelo narrativo de sua prosa empolgante parece ter sido o irônico Declínio e queda do Império Romano de Edward Gibbon, citado já na introdução do volume, autor que, com Voltaire e Hume, é um dos pais de toda discussão politicamente incorreta travada no mundo contemporâneo a respeito dos primeiros séculos de existência do movimento cristão. Tal apropriação, contudo, tende a diminuir, ou mesmo ofuscar, a relevância deste volume para uma área tão carente de bons trabalhos entre nós como é a dos estudos sobre o cristianismo de tradição não ocidental.

De um modo geral, Jesus War é um desenvolvimento lógico do interesse de Jenkins pelas mudanças que marcaram o mundo cristão no século XX. Em trabalhos anteriores, este autor tratou da emergência de um cristianismo latinoamericano, asiático e africano que contrasta tanto com as formas majoritárias de cristianismo existentes há um século atrás que é como se estivéssemos lidando com uma religião completamente nova. Jenkins argumenta, entretanto, que o cristianismo que floresce nestas regiões que são periferias do sistema sociopolítico e econômico global não só não é uma adesão ingênua a uma ideologia imperialista, imposta de cima para baixo, mas está bastante próximo do horizonte mental do mundo bíblico e das antigas igrejas cristãs que outrora prosperaram (com exceção da América Latina) nestas mesmas regiões. O cristianismo não é um enxerto exótico na África e na Ásia, como parecem assumir tanto o senso comum ocidental quanto o islamismo militante, mas, no século XX, com a expansão missionária, começou a fazer um certo caminho de volta para casa.

Em termos culturais e demográficos, a compreensão de que a Europa é desde sempre e por excelência a terra dos cristãos é um equívoco politicamente orientado, já que mesmo no auge da civilização cristã medieval possivelmente havia mais fiéis cristãos no continente asiático do que no mundo europeu, e ainda subsistiam comunidades cristãs populosas no continente africano, grupos que foram simplesmente esquecidos pelos analistas ocidentais. Tal equívoco ocasiona tanto uma miopia na descrição da trajetória histórica do cristianismo quanto uma exasperação indevida nas análises de sua atual conjuntura. O avanço simultâneo do islamismo e do secularismo anticristão na Europa ocidental não significa um recuo geral do movimento cristão; não apenas porque ele continua em processo de expansão e reinvenção em outras regiões do globo, mas porque ele nunca foi exatamente coextensivo ao mundo europeu, mas sempre algo maior e diverso dele.

De fato, não parece adequada a ênfase na suposta natureza euroamericana do cristianismo quanto se procura ver este movimento no contexto mais amplo de sua de sua história bimilenar. A forma particular de cristianismo com que o ocidente se acostumou no último meio milênio, e que a maior parte dos interessados ocidentais e ocidentalizados, cristãos ou anticristãos, passou a considerar como o estado natural deste movimento religioso é um desenvolvimento relativamente acidental.

Durante a maior parte de sua história, o cristianismo foi uma religião tricontinental, com forte presença na Ásia, na África e na Europa – e isso foi válido para o tempo dos Carolíngios tanto quanto para as vésperas da expansão ibérica. “[…] Feitas as contas”, escreveu Jenkins, “na época da Magna Carta ou das Cruzadas, se quisermos imaginar um cristão típico, ainda deveremos pensar não num artesão francês, mas num camponês sírio ou num morador urbano da Mesopotâmia”2.

O cristianismo tornou-se predominantemente europeu nos quinhentos e poucos anos mais recentes de nossa história, não por causa de alguma afinidade óbvia entre este continente e a fé, mas pelo fato de que as igrejas europeias conseguiram escapar da pressão do Islã militante de uma forma que não foi possível às antigas igrejas apostólicas asiáticas e africanas, outrora culturalmente dinâmicas e muito numerosas. Foi pouco depois de o cristianismo africano e asiático passar a enfrentar novos e mortíferos desafios políticos, dos quais não viria a se recuperar, e de o movimento cristão entrar em colapso na China (décadas de 1360-1370) e na Núbia (década de 1450), que, “por volta de 1500, podemos ter o primeiro vislumbre doo padrão de expansão cristã que ficou conhecido nos estereótipos populares, ou seja, uma religião transportada por navios de guerra e mosquetes europeus para os nativos vulneráveis da África ou da América do Sul”3.

Fundamentando tanto a vulnerabilidade de tão vastas comunidades cristãs ao avanço de um poder político religiosamente diverso, quanto o afastamento e o esquecimento destas pelos ocidentais, encontra-se uma querela teológica que eclodiu com especial violência em meados do século V. Neste período, o mundo cristão se partiu em três blocos que definiam de diferentes formas a natureza de Jesus Cristo, selando com a divergência religiosa as poderosas forças centrífugas da disputa política e da diferença cultural. Os cristianismos asiático, africano e europeu enveredaram por trajetórias históricas gradativamente mais distintas e distantes umas das outras, enquanto aquilo que era o centro político do ecúmeno cristão – o Império Romano do Oriente, sediado em Constantinopla – oscilava entre uma e outra posição teológica. O que acabou por fim consagrado como a ortodoxia cristã, cunhada por oposição aos monofisitas africanos e aos nestorianos asiáticos – classificações que não são apenas nomes, mas rótulos prenhes de juízos de valor negativo, cunhados por seus inimigos no complicado combate publicitário que marcou o tabuleiro político-teológico do Mediterrâneo oriental do primeiro milênio de nossa era – foi o resultado de um processo gradativo, lento e, não raro, sangrento.

Na origem destas categorias e atuando como seu lastro, encontram-se lutas, golpes e guerras abertas ao longo dos séculos, confrontos cujo resultado, de forma alguma já estava dado a priori. Isto bem considerado se pode imaginar um desenvolvimento histórico alternativo, no qual os agora chamados ortodoxos tivessem sido desdenhados como heréticos; um universo contrafatual em que o cisma entre Roma e o Oriente ocorreu no século V, e não no século XI, nunca se recuperando o papado da sujeição a sucessivas ondas de ocupantes bárbaros, e em que um Império Romano Monofisita, fundado num âmbito oriental unido fielmente, que se estendia do Egito ao Cáucaso, da Síria aos Balcãs, teria lutado com unhas e dentes contra os recém-chegados muçulmanos e, de modo concebível, mantido as fronteiras do tempo de Justiniano. Nesta realidade paralela, os estudiosos posteriores do cristianismo se dedicariam a estudar preferencialmente o grego, o copta e o siríaco, e apenas os pesquisadores mais ousados, dispostos a investigar uma língua marginal de alfabeto enigmático, se lembrariam de figuras como Agostinho de Hipona, Patrício da Irlanda e Leão de Roma4.

Jenkins argumenta que o fato de que outros caminhos, de incomensuráveis consequências, poderiam ter sido facilmente tomados pelo cristianismo dá boas razões para que se eleja o meado do século V como o período mais formativo de toda a história do movimento cristão. Outros autores têm enfatizado o período imediatamente circunvizinho ao Concílio de Niceia como este ponto de cristalização, de mudança fundamental entre as definições e práticas do cristianismo primitivo e medieval, mas eles não têm considerado de forma adequada como a luta para definir as crenças básicas do movimento cristão se arrastou para além dos primeiros séculos de sua existência e assumiu formas institucionalizadas bastante coerentes.

Alguns ainda têm retratado a história da Igreja como um movimento firme rumo a uma clarificação crescente da fé em sentido ortodoxo, seja para elogiá-lo (o desenvolvimento do dogma faz a Igreja ser mais consciente e mais fiel ao que já acreditava desde o princípio) ou para criticá-lo (o movimento espiritualmente igualitário de Jesus atrofiou-se até dar origem à estrutura burocrática e repressiva do cristianismo bizantino e medieval). Dada a evidente origem teológica destas posições, elas devem ser postas entre parênteses pelo historiador, que tem o dever de chamar a atenção para o quanto, em diversos momentos, a própria definição do que é a fé cristã poderia ter sido radicalmente modificada. As lutas do século V a respeito do significado da ortodoxia cristã deram-se no quadro de uma guerra de domínio entre as Sés de Alexandria, Antioquia, Constantinopla e Roma, e essa disputa teve como claras vencedoras as duas últimos, enquanto as duas primeiras tiveram de se haver com os crescentes problemas políticos associados à perda global de prestígio no âmbito do cristianismo mediterrânico. O fato destas se encontrarem desde cedo em território muçulmano, e hoje manterem minorias cristãs fisicamente ameaçadas de extinção em meio a populações majoritariamente islâmicas em número e tradição, é significativo para apreendermos o quanto todas as cartas foram postas na mesa no conflito do século V, e quais foram as consequências deste para o cristianismo ter vindo a adquirir o seu desenho atual.

Tudo isto posto, o objetivo de Guerras Santas é reconstituir a disputa política e teológica entre as diversas facções cristãs do século V, extraindo-lhe as consequências históricas e os aportes que este enredo pode ter para se compreender a atual conjuntura do cristianismo como religião mundial. Na introdução do volume (Quem vocês dizem que Eu Sou?), Jenkins levanta a questão básica, de origem bíblica, que levou às disputas cristológicas do primeiro milênio, ressaltando que as Escrituras Sagradas dos cristãos não são nada claras a respeito de um assunto tão hermético quanto a discussão sobre a natureza de Jesus Cristo, e que pelos padrões rigorosos dos primeiros concílios eclesiásticos, a maioria dos não especialistas modernos – incluindo numerosos clérigos – não saberiam explicar a fé que professam, ou seriam condenados como professando algum tipo de heresia. A compreensão da maioria das igrejas atualmente subsistentes sobre a identidade de Cristo é que ele é simultaneamente Deus e homem, sem divisão e sem separação, compreensão fundada nas posições tornadas canônicas pelo Concílio de Calcedônia (451). A resposta dada por esta assembleia de eclesiásticos a tal questão, contudo, não era a única solução possível – nem a solução obvia, ou, talvez, a mais lógica. As disputas que acompanharam esta definição e a tentativa dos imperadores ortodoxos de impô-la às antigas e recalcitrantes igrejas africanas e asiáticas enfraqueceram e dividiram a Igreja e o Império, e, no longo prazo, levaram diretamente ao colapso do poder romano no Mediterrâneo oriental, à ascensão política do islamismo e ao eclipse do cristianismo no mundo não europeu. Para Jenkins, de fato, o conflito a respeito de qual seria a definição hegemônica a respeito da natureza de Jesus Cristo resolveu-se por uma questão objetiva: as igrejas que aceitaram a definição calcedônica livraram-se da pressão islâmica por um milênio pelo acaso geográfico e sucesso militar, e tornaram-se certas basicamente porque sobreviveram mais viçosas e tiveram a oportunidade de contar a história cristã a seu próprio modo.

No primeiro capítulo (O xis da questão), Jenkins parte do violento caso do assassinato do Patriarca Flaviano de Constantinopla para cartografar algumas das semelhanças e diferenças existentes entre o universo sociocultural do mundo dos primeiros concílios que definiram a fé cristã e o nosso. Se ainda na década de 1980 a imagem de um Jesus casado e com uma família presente no filme A última tentação de Cristo incitou clamores mundiais de blasfêmia, a questão sobre quem era Jesus Cristo suscitava ainda maiores paixões nos séculos IV a VI. De um modo geral, as diversas respostas a esta questão se dispunham no espectro de duas tendências conflitantes. De um lado, havia aquelas “forças muito poderosas que atraíam Cristo na direção de Deus e do céu”, imaginando-o como “um juiz celestial temível ou um soberano cósmico, o pantokrator (…) que lançava um olhar furioso da cúpula de uma basílica imensa, e cujo status humano era difícil de aceitar”. Do outro, aqueles que “lutaram para preservar a face humana de Jesus, estabelecendo-o firmemente em solo terreno e na sociedade”, “uma figura que compartilha nossa experiência e pode ouvir nossas preces”, “que sofreu agonia física, que conheceu a dúvida e a tentação, que foi o irmão e o modelo dos homens em sofrimento”5.

Durante a história bimilenar do movimento cristão, estas tendências estiveram em interação, na maior parte das vezes conflituosa, mas em nenhum momento o debate foi tão aceso e visceral do que durante o século V. Então, por algumas décadas, pareceu que o consenso dos fiéis abandonaria a crença na natureza humana de Cristo, passando em definitivo a descrevê-lo apenas como um ser divino – o que, afinal, oficialmente não ocorreu. Subjacentes a estes intrincados debates teológicos agitavam-se as rivalidades profundas entre os grandes núcleos eclesiásticos do cristianismo do primeiro milênio: Antioquia enfatizava a natureza humana de Cristo; Alexandria combatia de forma veemente toda fórmula teológica que separasse o elemento humano do divino em Jesus Cristo; e Constantinopla, sede do Império Romano Cristão, servia como campo de batalha para as facções destes elementos poderosos, do Primeiro Concílio de Éfeso ao Concílio de Calcedônia (ou seja, de 431-451), cristalizou-se o ensinamento de que nenhuma declaração a respeito de Jesus Cristo poderia omitir os aspectos divino ou humano de sua pessoa. Esta posição, que encontrou oposição ferrenha em três quartos dos antigos centros da fé cristã, estabelecendo-se firmemente nas igrejas reunidas em torno das sés de Constantinopla e de Roma, veio a ser a base da teologia cristã ocidental, hoje hegemônica.

Jenkins observa que a batalha a respeito das naturezas de Jesus Cristo colocou em choque visões de mundo muito diferentes, surgidas de ênfases interpretativas diversas aplicadas a um mesmo substrato bíblico. Estavam em jogo noções acerca do significado do nascimento e da morte de Cristo, do papel de sua mãe, da bondade ou maldade relativa da materialidade e da visualidade, do papel do ser humano na redenção do mundo, e da atuação política das comunidades cristãs. O autor ressalta que, neste debate, punham-se de forma dramática os recorrentes – na verdade, estruturais – dilemas do conflito e da cooperação interdenominacional, dilemas que remontam, literalmente, à fundação do movimento cristão, e que o seu desenrolar revela muito acerca de como o cristianismo se desenvolveu ao longo do tempo, de como “a Igreja engendra sua própria mente humana”6. Ele pondera que, se, para o público moderno, “acostumado a séculos de diversidade e tolerância religiosa”, o investimento de criar e manter a todo custo um consenso teológico parece desnecessário para quaisquer indivíduos mentalmente saudáveis – pois “parece óbvio que, quando lados opostos estão completamente apartados, devem concordar com uma separação amigável” – para os diversos partidos cristãos da Antiguidade Tardia, contudo, “essa opção não estava disponível, e não porque os cristãos de então eram, em algum sentido moralmente inferiores em relação aos seus descendentes”. O caso é que o pensamento cristão – fosse católico, monofisita ou nestoriano – não podia então prescindir do conceito da Igreja como corpo unificado de Cristo concretizado em uma unidade institucional. “Se o corpo não era unido, então era deformado, mutilado e imperfeito, e esses termos, sem dúvida, não podiam ser aplicados ao corpo de Cristo”7. A necessidade psicológica, pastoral e – a partir do século IV – política de estabelecer uma unidade institucional marcada pela conformidade teológica diante uma grande diversidade de formas de se compreender, celebrar e viver a fé cristã, somada ao fato de que nenhum indivíduo ou grupo tinha real autoridade para impor sua versão do cristianismo aos demais de maneira simples e direta, de que os debates teológicos tornaram-se rapidamente questões de Estado para as autoridades romanas, e de que havia a convicção de que os conflitos deveriam ser solucionados por declarações gerais de todo o corpo eclesial na forma de concílios, fez abrir uma verdadeira Caixa de Pandora.

“Ao estudar os concílios eclesiásticos daquela era”, registra Jenkins, “certos temas vêm à mente, incluindo a caridade cristã, a contenção, a decência humana comum, a disposição de perdoar ofensas antigas, de dar a outra face. Nenhum deles se apresentou em qualquer um dos debates principais. Em vez disso, os concílios foram marcados por xingamentos e traições (tanto figurativas quanto literais), por conspirações implacáveis e intrigas secretas, e por ameaças generalizadas de intimidação”. Para este autor, de fato, os concílios, palcos de ardentes embates intelectuais, atravessados por rivalidades e redes de influência que ligavam as diferentes sedes eclesiásticas não apenas à sala do trono dos herdeiros dos Césares, mas também aos aposentos das imperatrizes e princesas, aos quartéis das legiões e aos covis das torcidas do grande hipódromo constantinopolitano, raramente se assemelhavam a reuniões de santos empenhados em definir a fé. O debate teológico era atravessado por questões que hoje consideraríamos como absolutamente extrínsecas ao campo religioso, mas se deve ter em mente que a forma específica assumida pela disputa política era, então, de ordem teológica. Daí o fato de todas as grandes controvérsias cristológicas terem implicado em sérias consequências políticas; tratava-se tanto de batalhas a respeito do futuro do Império, como um todo e em cada uma de suas partes, quanto de tentativas de estabelecer definições inequívocas da verdade eterna8.

Deve-se considerar, mais ainda que, enquanto os bispos debatiam questões teológicas em meio a ícones dourados e nuvens de incenso, as decisões tomadas nestas assembleias tinham um real impacto real nas vidas das pessoas comuns, convencidas como estas estavam de que o núcleo essencial da crença cristã estava em risco. Jenkins faz uma análise bastante sensível de como as sutilezas teológicas angustiavam as pessoas dos campos, vilas e cidades, até o ponto de elas se disporem a espancar, torturar ou assassinar seus vizinhos por uma palavra ou expressão proferida de maneira reconhecida como incorreta. Em primeiro lugar, o autor destaca que não faz sentido distinguir as motivações religiosas das não religiosas em tais explosões de violência popular. Isso seria violentar a sua especificidade histórica com um anacronismo inoportuno, atribuindo-lhe um fanatismo ou cinismo que só são possíveis a partir de uma situação em que se pode distinguir, de forma mais ou menos clara, uma esfera temporal de uma esfera espiritual; e tal distinção é um fenômeno relativamente recente e, em larga medida, restrita ao ocidente moderno. Em segundo, a maioria das pessoas da Antiguidade Tardia, ignorantes e letradas, parece ter acreditado firmemente em visões de mundo providencialistas, dentro das quais as práticas religiosas e as formulações teológicas possuem implicações sociais e cosmológicas – a dissidência e a heresia enraiveceriam a Deus, maculando a realidade, propiciando males como distúrbios civis, perda das colheitas, terremotos, invasões de bárbaros, golpes de estado, peste, infertilidade na família imperial, sinais nos céus, entre muitos outros.

Era o senso comum que “[…] A menos que os malfeitores ou crentes equivocados fossem suprimidos, a sociedade poderia perecer por completo”9. Em terceiro, a violência pôde ocorrer porque o Estado não tinha nem a vontade, nem a capacidade de reprimir o uso da força por grupos privados muito motivados; menos porque as instituições públicas estavam em situação de fraqueza extrema ou à beira de um colapso, e mais porque as autoridades constituídas decidiram favorecer e se aliar a alguns destes grupos contra outros, que consideravam danosos. Em quarto, entrava em jogo o fundamental conceito de honra, o grande “elemento subestimado do conflito religioso, e não só no cristianismo”; honra que clérigos, monges e simples fiéis transferiram de seus círculos familiares e das relações de clientelismo tão características das sociedades mediterrânicas para suas circunscrições e facções eclesiásticas, e que, em certas circunstâncias, precisava ser defendida pela força; honra que deveria ser protegida a todo custo de desafios reais e imaginários, além de reforçada pela consequente humilhação dos rivais. Para Jenkins, tudo isto precisa ser levado em consideração, pois, de fato, “[…] Quase não conseguimos compreender a malignidade espantosa que marcou a longa batalha entre as grandes Igrejas de Antioquia e Alexandria, a menos se entendermos que estamos lidando nesse caso com uma disputa sanguinária literal, que se estendeu por um século ou mais”10.

Findo o primeiro capítulo do livro, que é dos seus mais interessantes, começa a primeira parte do volume (Deus e César), onde Jenkins monta o cenário e apresenta os atores do drama que se dispôs a contar. No segundo capítulo (A guerra das duas naturezas), explora os elementos propriamente teológicos do grande conflito que precede e segue o Concílio de Calcedônia, apresentando as grandes correntes da interpretação cristológica da antiguidade cristã e demonstrando de que forma as ênfases da teologia antioquena e da teologia alexandrina tornaram-se cada vez mais divergentes. Também reconstitui como as lacunas existentes entre a alta especulação teológica e as compreensões populares do cristianismo não impediram que o debate se alastrasse pelos espaços públicos e assumisse em certos momentos a intensidade explosiva de um confronto civil, incendiado pela oratória sacra de clérigos carismáticos, pelas lealdades regionais dos contentores e por um sistema de classificação e atribuição de culpa por associação que se assemelhava a um autômato publicitário.

No terceiro capítulo (Quatro cavaleiros: os patriarcas da Igreja), descreve as trincheiras, alianças, traições, compromissos e ressentimentos que regiam as relações mútuas das mais altas instâncias de prestígio eclesiástico da antiguidade cristã – os patriarcados de Alexandria e Antioquia, de Constantinopla e de Roma (e também os ambiciosos, mas menos poderosos, bispados de Éfeso e de Jerusalém) – e como a disputa por prestígio e elementos que hoje consideraríamos ainda mais mundanos influíram, ou, melhor, foram partes constitutivas das batalhas para definir que era a ortodoxia e que era a heresia nos primeiros séculos do movimento cristão. Esses patriarcados foram governados por verdadeiras linhagens de prelados, unidos não por laços de parentesco, mas por relações de mestre e discípulo muito firmes, e eles eram ciosos daquilo que os tornava diversos de seus concorrentes eclesiásticos, “não apenas devido à sucessão apostólica, mas também à busca de autoridade real”11. Uma posição que nos parece particularmente curiosa é a do Patriarcado de Roma, pois, embora saibamos, em retrospecto, que ele seria o grande sobrevivente das guerras teológicas do primeiro milênio, a ponto de sua história – e as histórias dele derivadas – serem constituídos no teleos de toda a história do movimento cristão pela maior parte dos historiadores eclesiásticos, então, tratava-se ele de uma a natureza de Jesus, vulnerável por razões que eram a um só tempo políticas, culturais e linguísticas.

No quarto capítulo (Rainhas, generais e imperadores), expõe-se até que ponto, nos grandes debates teológicos da Antiguidade Tardia, as autoridades do império cristão, investidos de um poder que não era de forma alguma puramente secular, atuaram “como uma força no interior da Igreja, mais intensa do que a de um honesto inspetor tentando impor o jogo limpo entre as partes contentoras”12. No processo de constituição da ortodoxia cristã, intervieram não apenas o cálculo político de membros das famílias imperiais, mas suas devoções, expectativas, simpatias e ressentimentos particulares, sua abertura ou rejeição de determinado lobby eclesiástico, suas próprias ideias teológicas. Deste jogo, que não estava de forma alguma restrito às igrejas e à sala do trono, participava também um dinâmico e complexo, bizantino, universo formado pela corte, pela burocracia, pelos administradores regionais, pelos mosteiros constantinopolitanos, pelos generais e pelos senhores da guerra quase independentes que, nominalmente empenhados na defesa das fronteiras do império, naturalmente, mantinham uma agenda de interesses próprios. Aos olhos de um espectador moderno, causa algum escândalo o fato de, de forma tão ampla, as igrejas pensarem e atuarem como império e o império pensar e atuar como uma igreja, mas Jenkins recorda-nos que essas eram as regras que então eram normativas dos processos político-teológicos do ecúmeno cristão. Em função disto, da mesma forma que as intrigas cortesãs ajudaram a dar sua forma específica ao debate teológico, esse foi alçado ao nível de problema de interesse e de segurança pública. Uma nova, radical intolerância religiosa voltouse contra as minorias religiosas na medida em que penosamente se definia uma ortodoxia de Estado. Tratou-se de uma crucial mudança nas disputas dogmáticas, “em escalada rumo ao centro da questão, no sentido de que a força total do governo e da lei se voltaria contra o lado perdedor. A discussão teológica tornou-se um jogo de soma zero, com implicações de longo alcance no mundo material”13.

Na segunda parte do volume (Concílios do Caos), Jenkins narra o drama que é o cerne de seu livro, abrangendo aquele período do século V e do início do século VI no qual o conflito entre Alexandria e Antioquia chegou a um clímax especialmente violento e no qual as ideias teológicas longamente cultivadas nestas regiões cristãs assumiram formas tais que foram consideradas heréticas pelo eixo formado por Constantinopla e por Roma, ensejando uma fissura cataclísmica no seio do império romano cristão. No quinto capítulo (Não é a mãe de Deus?), trata-se da figura de Nestório, que ficou associada a episódios impressionantes da história cristã e que, ainda hoje, é lembrado por alguns fiéis como um arqui-herege e por outros como um brilhante pensador e um líder santo que sofreu uma injustiça da parte dos imperadores bizantinos. Jenkins busca apresentar uma imagem equilibrada deste personagem, reinserindo-o no contexto onde se desdobrou o drama passional de que fez parte, reiterando que, neste, ele “marcou presença como um líder ora maior e ora menor do que a lenda proclama”14. Além de Nestório, traça-se um perfil de dois de seus principais opositores – a princesa Pulquéria e o patriarca Cirilo de Alexandria – e investiga-se a importância e o funcionamento das redes de influência alexandrina e antioquena na capital imperial, dos ressentimentos eclesiásticos, das facções monásticas e da devoção popular à Virgem Maria, incidental, mas crucialmente engolfada no debate sobre a natureza de seu filho.

Findo o drama de Nestório, o capítulo sexto (A morte de Deus) trata da tragédia de Flaviano de Constantinopla, ferido de morte no Segundo Concílio de Éfeso (449), que foi um dos cumes da influência do Patriarcado de Alexandria, rejeitado pela Igreja de Roma e, posteriormente, pela de Constantinopla, como um Sínodo dos Ladrões, um Concílio que Nunca Houve, ou, mais popularmente, como o Latrocínio de Éfeso. No sinuoso caminho para esta controversa assembleia, encontram-se a ruína do limes imperial diante do assédio germânico e persa; o desaparecimento formal do Império Romano do Ocidente; a ameaça dos hunos; as ideias teológicas e os dotes de orador do monge Eutiques de Constantinopla; a influência de seu apadrinhado, o eunuco Crisáfio, que veio a se tornar uma figura importante na corte bizantina; as formulações dos teólogos de Alexandria, Antioquia e Edessa; a violenta ofensiva dos partidários da Natureza Única de Jesus Cristo contra aqueles que defendiam que Ele subsistia em Duas Naturezas; e o intolerante e intolerável zelo de Dióscoro de Alexandria. A definição de ortodoxia cristã então respaldada pela autoridade imperial, encabeçada por Teodósio II, inclinou-se para uma fórmula mais favorável à teologia egípcia; enquanto Roma, sujeita às falhas estruturais que marcavam já de mais de um século os elos de comunicação subsistentes entre os cristãos de língua grega e os de língua latina, colocava-se ainda mais à margem da principal disputa teológica do momento ao condenar abertamente as ideias de Eutiques e assumir os altos riscos de afirmar que Jesus Cristo era a um só tempo Um e Dois, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Retrospectivamente, sabemos que esta viria a ser a definição cristológica majoritária no cristianismo europeu, latino e bizantino, mas, então, tal possibilidade sequer parecia se assomar no horizonte de expectativas.

O seguimento do Segundo Concílio de Éfeso foi marcado por uma ofensiva ainda maior dos partidários da Natureza Única contra seus rivais, na Síria, na Palestina e em Edessa; por uma série de intervenções imperiais nos bispados do Mediterrâneo oriental; pela fuga de teólogos de formação antioquena rumo aos domínios do Xá da Pérsia, para além do braço daquilo que consideravam um governo herético; pela emergência de um furor inquisitorial e de um espírito de caça às bruxas, no escopo do qual todos os defeitos morais imagináveis, incluindo o conluio consciente com o Diabo, passaram a ser atribuídos aos que se considerava hereges, aos seus alunos, discípulos ou mesmo simpatizantes. Para um analista que vivesse este momento histórico, não era absurdo imaginar Roma como o último refúgio de uma minoria herética em um mundo cristão em que os monofisitas se tornaram a maioria e a ortodoxia cristã. Nesta conjuntura, o centro de poder no interior da Igreja teria se deslocado em definitivo para Alexandria, e pouco poderia ser feito para deter o estabelecimento de uma hierarquia fiel à Natureza Única nas refratárias regiões da Itália ou da Síria enquanto o imperador comandasse o território e esta facção predominasse em sua corte15.

Então, contudo, interveio o acaso, o hálito do inferno ou a providência divina: em 28 de julho de 450, Teodósio II morreu em consequência de uma queda de cavalo e, com isso, o cenário político-teológico se modificou bruscamente. No sétimo capítulo (Calcedônia), Jenkins relata como esta mudança aturdiu o mundo cristão e possibilitou que a formulação do verdadeiro Deus e verdadeiro homem suplantasse a da Natureza Única e se tornasse de modo duradouro – e, no último meio milênio de nossa história, decisivamente hegemônico – a definição cristológica formal daquilo que se reconhece a ortodoxia cristã institucionalizada. A pressão dos hunos sobre as fronteiras imperiais faz parecer incrível que, ao invés de organizar algum tipo de iniciativa militar mais consistente, o imperador Marciano, sucessor de Teodósio II, estivesse disposto a dedicar tanto tempo a uma tal reorientação da política religiosa bizantina, “mas, de fato, essa era sua prioridade”. Prioridade em parte prática, já que cidades indóceis e tumultuosas em função de querelas teológicas generalizadas “eram muito mais difíceis de defender e impossíveis de se mobilizar em termos de homens e impostos”; mas que se devia mais à “sensação de que o império só sobreviveria com a ajuda divina, por ser o reino cristão ortodoxo, e que as recentes derrotas e desastres demonstraram, fora de qualquer dúvida, que a relação divina estava sob grave estresse” e que “[…] Somente a restauração da ortodoxia poderia salvar o mundo cristão”16. Foi por essa porta estreita que a corte imperial voltou-se para as concepções cristológicas da Sé Romana, condensadas no Tomo de Leão I, e do falecido patriarca Flaviano, cujos restos mortais, antes execrados como se os de um herege, foram levados para Constantinopla e sepultados com honras de mártir – isso ao mesmo tempo em que Crisáfio encontrou uma morte violenta e Eutiques seguiu Nestório no exílio. Embora não houvesse espaço para dúvidas quanto à nova coloração religiosa da ortodoxia, a lógica e o costume demandava uma declaração oficial de crença atestada por um novo concílio. Este, inicialmente convocado para Niceia, local prenhe de simbolismo por ter sediado o primeiro dos concílios ecumênicos, foi deslocado para Calcedônia, próxima aos subúrbios de Constantinopla, devido ao temor de um ataque bárbaro ou da irrupção de hordas de monges contrários à política religiosa de Marciano – eventos que possivelmente teriam um desenrolar igualmente violento.

O Concílio teve como seus objetivos revogar as decisões do Segundo Concílio de Éfeso, revertendo seus efeitos na política eclesiástica, e rejeitar de modo decisivo as versões menos transigentes da doutrina da Natureza Única (pregada por Eutiques) e das Duas Naturezas (atribuída a Nestório). Dióscoro de Alexandria foi considerado o grande culpado pelas violências intestinas que atingiram as igrejas do Mediterrâneo oriental na década anterior, e a grande Sé egípcia foi decisivamente desprestigiada. Alguns de seus seguidores conseguiram se adequar no devido tempo à nova ordem – como o bispo Juvenal de Jerusalém que, depois de vinte anos conspirando com os alexandrinos, decidiu que não mais mantinha a teologia que havia reconhecido antes como ortodoxa e conseguiu manter o estatuto patriarcal de sua Sé. O concílio também elevou o status e os privilégios de Constantinopla, que, por ser a capital subsistente do Império Romano, foi alçada à paridade com a velha – e então materialmente arruinada – Roma. A Sé constantinopolitana foi declarada como o segundo dos patriarcados em autoridade – de jurisdição superior às igrejas mais antigas de Alexandria e Antioquia –, tribunal de recurso dos sínodos provinciais do Oriente e superiora imediata das metrópoles eclesiásticas do Ponto, da Ásia, da Trácia e daquelas dioceses que estavam entre os bárbaros – expressão ambígua, mas que anunciava glórias vindouras naquele momento em que havia um notável incremento do esforço missionário na Europa oriental e na Ásia ocidental.

Evidentemente, o Patriarcado de Roma não se dispôs a aceitar de bom grado esta diminuição relativa de sua autoridade, e uma nova linha de trincheiras, vertical, não mais horizontal, começou a ser escavada no centro do Mediterrâneo cristão.

Depois de Calcedônia, Marciano foi saudado como sendo o segundo Constantino, mas, naquele momento, a assembleia não pareceu o fim, mas um estágio de um processo. A corte imperial ainda estava dividida em suas lealdades e regiões cruciais do império estavam firmemente comprometidas com opiniões consideradas heréticas pelos padres conciliares reunidos em Calcedônia.

Protestos furiosos e verdadeiras insurreições se alastraram por todo o crescente de territórios que vai do Alto Egito à Mesopotâmia, passando por Jerusalém e pelo sul da Anatólia. Os crentes da Natureza Única ficaram muito decepcionados, pois pouquíssimo tempo antes da reunião convocada por Marciano, “tiveram todos os motivos para acreditar que dominavam absolutamente a Igreja e o império”17.

Muitos consideravam o Concílio de Calcedônia tão repugnante quanto os romanos e bizantinos passaram a considerar o Segundo Concílio de Éfeso, e no Egito e em boa parte do Oriente Próximo os termos calcedônico e nestoriano começaram a ser utilizados como sinônimos. Jenkins observa que “[…] O grau de reação pode parecer estranho quando consideramos o quão expressivamente o concílio se inspirou no pensamento de Cirilo, mas aquele era um mundo mental em que mesmo a menor concessão ao erro em questões tão essenciais era uma traição contra a substância total da verdade cristã” 18. Nesta senda, Alexandria mergulhou na desordem política e religiosa, e a história de seu patriarcado foi durante uma centena de anos uma conturbada história de deposições e insurgências, exílios e restaurações. Os habitantes de mosteiros e eremitérios comprometidos com a posição teológica da Natureza Única constituíram-se em centros de formidável resistência à autoridade bizantina, seus carismáticos pregadores, aos quais se atribuíam costumeiramente dons taumatúrgicos, encabeçando verdadeiros levantes populares contra os representantes do governo constantinopolitano. O prolongado desgaste associado a este atrito haveria de cobrar seu preço em não muito tempo.

Na terceira parte do volume (Um mundo a perder), Jenkins faz um balanço do impacto global do Concílio de Calcedônia na história do movimento cristão.

No oitavo capítulo (Como a Igreja perdeu metade do mundo), ele narra como a condução da crise teológica catalisada por Calcedônia teve um encaminhamento dramático. Dois séculos depois do fim deste Concílio as facções beligerantes de de Constantinopla buscavam de forma cada vez mais desesperada algum tipo de entendimento que reconciliasse os partidários de Calcedônia com os diversos matizes de defensores da Natureza Única e das Duas Naturezas. Na década de 630, essa necessidade era tão premente que ensejou de forma serena a violência imperial contra o Patriarcado de Roma, que não se dispunha a aceitar de maneira dócil a definição, então apoiada por Constantinopla, de que importava em Jesus Cristo menos o fato de ele possuir uma natureza ou duas do que o de Ele atuar com uma vontade única19. De meados do século V ao final do século VII, houve períodos em que a ortodoxia calcedônia reinou na corte bizantina, períodos em que os regimes toleravam os partidários da Natureza Única, e períodos em que os imperadores simpatizavam com eles e buscavam uma conciliação de maneira ativa. Mesmo depois do credo calcedônico alcançar uma vitória política formal, as mesmas questões voltavam à pauta, irrompendo em novas formas. Os cismas entre jurisdições eclesiásticas importantes tornaram-se corriqueiros, mesmo entre Roma e Constantinopla, e partes rivais chegaram a estabelecer igrejas paralelas alternativas nas mesmas regiões. As deposições e os expurgos foram incorporados à vida eclesiástica corrente, enquanto tumultos dividiam cidades e províncias por divergências teológicas20.

Ainda que as autoridades imperiais nunca admitissem a divergência formal da ortodoxia que sustentavam, no começo do século VI, o mundo cristão estava, de fato, cindido em diversas igrejas transnacionais, cada uma com suas reivindicações de verdade absoluta e, progressivamente, mais e mais afastadas em suas formas de espiritualidade, disciplina eclesiástica, teologia e liturgia. O exemplo do estabelecimento de hierarquias pró-bizantinas (melquitas) no Delta do Nilo e no Oriente Próximo, estrutura que gradativamente constituiu uma espécie de enxerto de experiências eclesiais similares àquelas diretamente dependentes de Constantinopla nessas regiões mais antigas do cristianismo, promovendo uma releitura do patrimônio religioso da antiguidade cristã à luz da ortodoxia calcedônica, é o mais conhecido no ocidente, mas não o único. Uma importante facção da Igreja do Oriente manteve sua lealdade a Nestório e a partir primeiro de Edessa, uma região fronteiriça entre os domínios romanos e os persas, e depois de Nisibis, já em território governado pelo Xá, promoveu a expansão da teologia das Duas Naturezas desde as franjas orientais do território bizantino até o sul da Península Arábica, a Ásia Central, o Tibete, a China, a Índia e o Sri Lanka. Por sua vez os partidários da Natureza Única, associados de modo indelével à experiência do cristianismo egípcio, afirmaram-se como a ortodoxia cristã na Etiópia e na Núbia e estabeleceram uma presença permanente na Palestina, na Síria, em Edessa, na Mesopotâmia e na Índia, mantendo simultaneamente focos de atividades na Anatólia e na própria Constantinopla. No Egito, a rejeição de um patriarca de Alexandria nomeado pelo imperador bizantino em 516, e a crescente identificação deste governante, supostamente herético, com as forças infernais equivaleu a uma declaração aberta de independência da Igreja local.

De acordo com Jenkins, grosso modo, o credo calcedônico sobreviveu porque desenvolveu raízes profundas em centros fundamentais e organizados do cristianismo que ascenderam em prestígio e poder político ativo na segunda metade do primeiro milênio de nossa era: a Ásia Menor e os Balcãs, territórios cada vez mais centrais do Império Romano do Oriente, e em Constantinopla, sua capital. Roma permaneceu como um sólido bastião de apoio, mas manteve-se à margem das principais ondas de confronto teológico que abalavam e cindiam o mundo cristão, a não ser naqueles períodos, relativamente curtos, nos quais esteve diretamente sob o domínio político do imperador de Constantinopla. A manutenção da ortodoxia calcedônica, entretanto, fez-se ao custo de um prolongado e profundo desgaste do domínio sobre as áreas mais orientais do império. As divisões religiosas em grande escala, concentradas em áreas fronteiriças especialmente importantes do ponto de vista da geoestratégia e da sua produção de recursos materiais e humanos, abriram enormes fissuras no tecido imperial romano. Por primeiro, vieram os persas, que então baseavam suas reivindicações de expansão na fé zoroastrista, religião oficial do império dos Xás. Seu avanço significou o brusco direcionamento da Palestina e da Síria para o oriente, o virtual colapso de largas áreas da economia bizantina, o despovoamento de cidades e campos e o decisivo afastamento de muitas igrejas desta área da cristologia calcedônica – afinal, supunha-se que Deus não permitiria que tal derrota fosse infringida a um governo que estivesse praticando sua religião da forma correta. Em seguida, vieram os árabes muçulmanos. Enquanto o Egito e o oriente bizantino se afundavam em feudos religiosos, e o conflito com os persas chegava a um fim de jogo caracterizado pela exaustão mútua, novas forças religiosas se agitavam na Península Arábica. A história da ascensão do Islã é bem conhecida, mas, de fato, é difícil de compreender se não se leva em conta o estado das divisões cristãs posteriores ao Concílio de Calcedônia. Não por acaso, o colapso das posições bizantinas diante do avanço islâmico deu-se por primeiro naquelas regiões onde o sentimento popular se inclinava mais fortemente em direção das igrejas monofisita e nestoriana. Autores destas tradições chegaram a saudar os conquistadores árabes como libertadores da opressão causada por um regime herético e, ao menos nas primeiras décadas, de domínio islâmico, eles não viram maiores razões para mudarem de opinião; de fato, os muçulmanos pouco se importavam com as divisões dos cristãos, desde que todos eles respeitassem sua autoridade, pagassem seus impostos no prazo e, de um modo geral, estivessem dispostos a colaborar com os governantes adventícios.

No entanto, observa Jenkins, o livramento dos calcedônicos veio a um preço exorbitante. Por séculos, os cristãos monofisitas e nestorianos sobreviveram e até prosperaram nas sociedades dominadas por muçulmanos, mas, protegida pela autoridade constituída de uma civilização florescente, a parcela da população que professava a fé de Maomé cresceu mais e mais. Naquelas terras nas quais o cristianismo havia se estabelecido por primeiro, as comunidades cristãs gradativamente se tornaram minorias cada vez menores, sujeitas a leis mais duras, a medidas discriminatórias e, eventualmente, a campanhas de conversão forçada. “A Alexandria cristã virou progressivamente a Alexandria muçulmana, até que o Cairo, completamente muçulmano, se apropriou da maior parte de sua glória e riqueza”21. A partir do século XIII, uma série de desastres políticos e militares combinados com mudanças econômicas e climáticas decisivas criaram um ambiente intolerável para as minorias, algumas das quais foram totalmente eliminadas. De acordo com Jenkins, portanto, foi basicamente por falta de outra opção que o futuro do cristianismo esteve, primeiro, naquelas regiões minguantes ainda sujeitas ao Império Romano, que não tinham mais necessidade de conciliar as opiniões do Egito ou da Síria, e, depois, naquelas partes da Europa ocidental que nunca desafiaram o credo calcedônico22.

O nono e último capítulo do volume (O que foi salvo), é de morfologia e, pareceme, de intenção bastante diversa dos demais. Jenkins assinala sua crença de que “o processo de estabelecer a ortodoxia [cristã] envolveu muito mais do que podemos chamar de acidente político”; lembra que “[…] A experiência cristã inclui uma grande variedade de tendências diferentes, interpretações diferentes, e a maioria acha ao menos alguma justificativa nas Escrituras Sagradas ou na tradição”; e destaca que, afinal, “não é evidente por que uma corrente triunfou sobre a outra”23.

Daí a conveniência dos cristãos serem tolerantes “a respeito da diversidade das expressões não essenciais da fé”: “[…] Visto historicamente, sabemos que outras versões poderiam ter tido sucesso, e podem conseguir isso em tempos vindouros”24.

Após esta asserção, o autor passa a considerar alguns exemplos que mostram que, depois das batalhas de Éfeso e Calcedônia, seus temas continuaram a agitar cristãos de diferentes latitudes, que sabiam pouco ou nada a respeito desses acontecimentos originais. Para ele, é algo típico da história cristã que ideias e crenças continuem a ressurgir muito tempo depois que supostamente foram derrotadas ou exterminadas – seja porque sobreviveram enquanto tradições subterrâneas, clandestinas e contra hegemônicas; porque foram redescobertas mediante a pesquisa erudita e a leitura de textos antigos; ou porque constituem respostas mais ou menos necessárias a certas variáveis encadeadas pela combinação de determinadas ênfases ao se ler a Bíblia com uma constelação particular de estímulos e de sentimentos religiosos vinculados ao cristianismo.

Mais do que apenas constatar que “[…] A história da crença cristã é a história de ressurreições sem fim” de uma série vasta, mas não infinita, de temas e dramas teológicos, Jenkins conclui seu volume argumentando que as ideias alternativas que foram vencidas eram e são partes tão estruturais da fé tanto quanto a ortodoxia ainda subsistente, de modo que sempre precisam ser envolvidas, compreendidas e confrontadas pelos cristãos. “Num mundo ideal, livre das disputas de poder da Antiguidade”, destaca o autor, “esse diálogo pode em si ser uma coisa positiva, uma maneira pela qual o pensamento cristão desenvolve sua própria compreensão.

Uma religião que não está constantemente gerando alternativas e heresias parou de pensar e alcançou apenas a paz dos cemitérios”25.

Tal leitura humanista das guerras santas da Antiguidade Tardia, que é um corretivo necessário ao novo triunfalismo cristão que tem assumido, entre nós, a perigosa faceta de um movimento intolerante e potencialmente violento, é apenas um dos méritos do livro de Jenkins. Gostaria de apontar mais três deles.

O primeiro é sua escrita ao mesmo tempo fluida e segura, que torna acessível a qualquer leitor culto um tema tão complexo, normalmente reservado de um modo hermético apenas aos mais intrépidos teólogos e especialistas em história da religião. Por infeliz acaso, o encanto do texto é prejudicado na edição brasileira por uma tradução de qualidade muito desigual e por uma revisão especialmente mal realizada. São numerosos os anglicismos, os erros de pontuação e de concordância e até as confusões nominais, que tornam o entendimento do escrito muito mais difícil do que aquilo que o tema naturalmente já exige. Tais falhas se acumulam página a página – em certa parte, Tertuliano é confundido com Mani; em outra, Pôncio Pilatos é promovido de governador a imperador; e assim por diante –, causando sobressaltos e sinuosidades inexistentes na publicação original e bastante prejudiciais ao leitor. O simples concurso de um especialista no tema poderia ter melhorado muitíssimo a publicação e espera-se que, em uma possível segunda edição do volume, ao menos os erros mais gritantes sejam suprimidos. (Por exemplo, aquele, risível, que se verifica na p. 141, onde o esquema da árvore genealógica da dinastia de Teodósio é substituído pela observação “Entra figura da árvore”). Não obstante este sério problema, o estilo de Jenkins, que denuncia, sob seu professo cristianismo tolerante e conciliador, escandalizado com a violência das disputas religiosas do primeiro milênio, o impacto da verve irônica de Edward Gibbon, é por si só um atrativo do volume. Outro mérito é o fato de o pantanoso e espinhento terreno dos debates cristológicos ser destrinchado com a ajuda de imagens extraídas da atualidade, da cultura contemporânea, analogias que, sem cair em anacronismo simplista, ajudam o leitor a estabelecer parâmetros de comparação e a desnaturalizar as concepções mais difusas da história cristã. A paleta de referências mobilizadas nesta tarefa é notável: a Família Soprano, o Gangues de Nova Iorque de Scorcese, as batalhas de hooligans, o ativismo xiita, Osama bin Laden, as convenções anuais do Partido Republicano, o macarthismo e os esquetes de Monty Python são todos referidos para que o leitor seja introduzido no debate acerca de como os conflitos que precederam, marcaram e seguiram as assembleias eclesiásticas de Éfeso e Calcedônia reinventaram o cristianismo, de como “um mundo [foi] moldado pelo resultado daquelas lutas quase esquecidas do século V, que aconteceram num mundo de impérios e Estados que acabaram todos na ruína”26.

O terceiro e talvez maior dos méritos do livro de Jenkins, especialmente no mercado editorial brasileiro, é o fato de ele basear seu trabalho não apenas nos textos tradicionalmente utilizados pelos historiadores ocidentais do cristianismo, mas investir na consideração das fontes que consideram a própria versão do cristianismo que veio a se tornar a hegemônica no mundo ocidental como herética. O autor não se guiou apenas pelos manuais, nem mesmo pela bibliografia específica, mas foi ler e apresentar aquilo que foi registrado nas eventualmente confusas atas conciliares e nos historiadores eclesiásticos dissidentes bizantinos, siríacos e coptas; ao lado dos conhecidos volumes de Sozômeno, Evágrio. Sócrates e Procópio de Cesareia, Jenkins arrola a crônica do Pseudo-Dioniso de Tell-Mahre, a História dos Patriarcas de Alexandria, as hagiografias de Pedro Ibérico e de Severo de Antioquia, a crônica de João, bispo de Nikiu, as cartas de Filoxeno de Mabbôgh, entre outros escritos.

Ele faz especial referência ao Bazar de Heráclides, longa e interessante memória escrita pelo deposto e condenado Nestório durante seu exílio, que teve uma edição siríaca redescoberta por estudiosos europeus em um mosteiro no Curdistão no começo do século XX. Para o desconhecimento destas fontes, cujas consequências são a aceitação de certas valorações teológicas (como ortodoxo) como se simples descrições históricas e a acentuação da parcialidade que sua exclusão implica, contribuem – é bom que se tenha claro – não apenas dificuldades de ordem linguística ou o fragilíssimo estado da pesquisa em língua portuguesa neste campo de investigação, mas também preconceitos residuais de ordem especificamente religiosa. Utilizando um leque mais amplo de versões acerca dos acontecimentos eclesiásticos do século V e de seus desdobramentos, Jenkins consegue devolvê-los à sua historicidade particular e desnaturalizar as narrativas oficiais mais difundidas no ocidente sobre a história do cristianismo. Graças a este redirecionamento, todo um novo campo se abre à investigação histórica e teológica sobre a constituição da ortodoxia cristã conforme agora nós a conhecemos.

Notas

2 JENKINS, Philip. A próxima cristandade: a chegada do cristianismo global. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 44.

3 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 48.

4 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 43-44.

5 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 27-28.

6 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 45.

7 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 46.

10 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 55.

11 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 109.

12 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 128.

13 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 149.

14 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 159.

15 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 223.

16 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 226.

17 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 244.

18 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 244.

19 Rejeitada não apenas por Roma, mas também pelos egípcios e pelos sírios – as partes contentoras que pretendia contemplar – e abandonada posteriormente pela Igreja Bizantina, esta fórmula de fé continua a subsistir como a cristologia oficial da Igreja Apostólica Armênia. Cf. DALE, Irvin T. & SUNQUIST, Scott W. História do movimento cristão mundial – Vol . 1: do cristianismo primitivo a 1453. Tradução de José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2004, p. 262-263.

20 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 259 21 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 295.

22 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 295.

23 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 297-298.

24 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 298.

25 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 308.

26 JENKINS, A próxima cristandade…, p. 60.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz –  Mestre em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel e Licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-Mail: bccruz.alfredo@ gmail.com.

Acessar publicação original

[MLPDB]

A ideia de justiça – SEN (C)

SEN, Amartya. A ideia de justiça. Trad. de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Resenha de: DALSOTTO, Lucas Mateus. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 1, p. 212-215, jan/abr, 2013.

Qual deve ser o objetivo primeiro da justiça? Essa é, por assim dizer, a interrogativa que move grande parte dos escritos do economista e filósofo indiano Amartya Sen (1933), em especial em seu mais recente e proeminente livro denominado A ideia de justiça. Dentre as particularidades do autor, cabe sublinhar que Sen nasceu em Santinikenatan, onde atualmente é Bangladesh, e é professor da Universidade de Harvard. Foi laureado com o Prêmio de Ciências Econômicas em memória a Alfred Nobel no ano de 1998 por sua contribuição e pesquisa a respeito da teoria da escolha social e do walfare state, além de ser também um dos criadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) juntamente com Mahbub ul Haq.

Publicado inicialmente em 2009 na Grã-Betanha, A ideia de justiça é uma homenagem e ao mesmo tempo uma crítica ao pensamento de John Rawls (p. 23), importante filósofo americano que em 1971 publicou a importante obra Uma teoria da justiça, a qual marcou para sempre o pensamento seniano, inclusive servindo como ponto de partida para a presente obra. O livro é composto por 18 capítulos, subdivididos em quatro grandes partes, além de uma longa e esclarecedora introdução. Esses quatro núcleos em que o autor divide o texto dão uma compreensão geral da obra e organizam as teses defendidas por ele de forma profunda. Leia Mais

A Primavera Árabe: entre a democracia e a geopolítica do petróleo | Paulo Fagundes Visentini

A Primavera Árabe tornou-se, a partir de 2010, tema recorrente nos grandes debates das Relações Internacionais. O movimento tem início cronológico marcado pelo ato desesperado de um jovem de 26 anos que, enquanto vendia legumes na rua, foi humilhado e impedido de realizar sua atividade, ateou fogo ao próprio corpo no dia 17 de dezembro de 2010, falecendo em 4 de janeiro de 2011. Tal fato desencadeou uma onda de protestos e manifestações contrárias aos regimes autoritários existentes na região do Oriente Médio.

O que move Paulo Visentini é apresentar ao leitor desapercebido que a Primavera Árabe não consiste em uma reação a um ato isolado, mas sim, consequência de um processo histórico longo que envolve relações de poder, uma geopolítica norteada por estratégias de manutenção de áreas de influencia e o poder econômico gerado pela disponibilidade (ou não) de petróleo na cena internacional. Leia Mais

Crianças dos países de língua portuguesa – MULLER (EH)

O que há de comum na experiência de crianças e adolescentes que viveram em países lusófonos situados em quatro continentes do globo nas últimas décadas do século XX? De comum, segundo a educadora Verônica Regina Müller, o fato de utilizarem o português como primeira ou segunda língua na vida cotidiana, as condições de pobreza que uma parcela significativa dessa população enfrenta ou, eventualmente, o acesso à educação escolar, mesmo que de forma precária. A obra, intitulada Crianças dos países de língua portuguesa: histórias, culturas e direitos, demonstra ainda, ao longo de seis capítulos, que há outro denominador comum. Desde a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1989, Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique, Portugal e Timor Leste têm buscado, de diferentes maneiras e entre avanços e reveses, implementar a noção de direitos – sociais, civis e políticos – em favor de sua população infanto-juvenil. Essa tarefa exigiu (e continua a exigir) um esforço hercúleo do Estado, da sociedade civil, das famílias e dos indivíduos, uma vez que o processo de instituição da concepção de direitos humanos para os infantes de ambos os sexos implica grandes mudanças na esfera sociocultural, especialmente nas sociedades do continente africano.

As narrativas dessa faceta da história de crianças e adolescentes, com exceção do caso brasileiro, procuram dar conta, sobretudo, dos fenômenos ocorridos nos últimos trinta anos do século XX em cada sociedade em particular. Apesar de todos os textos se reportarem à história política dos Estados nacionais (processo de descolonização, independências e ditaduras/processos de democratização), os marcos temporais balizadores das análises são as legislações e/ou as políticas sociais instituídas, com ênfase nas relativas ao universo escolar. As narrativas são construídas a partir de dados obtidos através da análise do discurso de documentos de caráter oficial (em particular as legislações), etnografias, entrevistas e memórias. O ideário de infância e direitos humanos como discursos oriundos da sociedade ocidental e um olhar relativista em relação às noções de classe social, etnicidade e relações de gênero norteiam, do ponto de vista teórico, a escrita dos capítulos.

Além da História da Infância sob a ótica do nacional, os capítulos, em seu conjunto, descrevem um processo histórico transnacional, seja do ponto de vista dos usos do idioma português, seja do ponto de vista da transformação das crianças em sujeitos de direito.1 A junção dessas duas perspectivas no campo da história constitui, sem dúvida, o ponto forte do livro.

O capítulo sobre Angola, escrito por Eugênio Alves da Silva, é o único da obra que trata de crianças e adolescentes do meio rural. O autor justifica essa escolha porque, no período estudado, 42% da população do país habitavam no campo. Nessas localidades, meninos e meninas constituíam uma parcela importante da mão de obra familiar. A alfabetização através do idioma português na escola colocava em risco a “Educação Tradicional Africana” (ETA) (p. 47), especialmente a das meninas (p. 55). Para o autor, a resistência dos adultos das comunidades rurais à alfabetização no idioma português não está associada somente ao fato de ser a língua do antigo colonizador, mas a rupturas significativas, reproduzidas sobretudo no âmbito das relações de trabalho e das relações de gênero.

No capítulo sobre o Brasil, Verônica Regina Müller, Miryam Mage e Ailton José Morelli procuram fornecer aos leitores e leitoras um panorama da introdução dos direitos da criança e do adolescente no país durante todo o século XX. Nessa narrativa histórica, a ênfase recai sobre os avanços obtidos no período pós-Estatuto da Criança e do Adolescente. A partir de 1990, as políticas sociais, sobretudo as de cunho compensatório (bolsa família), possibilitaram que muitas crianças e adolescentes que habitavam nas cidades e no campo não se evadissem dos bancos escolares e tivessem um maior domínio do idioma português (p. 96). Para os autores, porém, ainda há muito a fazer no campo dos direitos. Entre as demandas, as mais difíceis de vencer são as de caráter adultocêntrico, presentes na sociedade brasileira (p. 93).

Os capítulos sobre Cabo Verde, produzido por Lorenzo I. Bordonaro e Redy Wilson Lima, e sobre Moçambique, por Elena Colona e Eugénio José Brás, discutem fenômenos da mesma natureza: os embates existentes entre os discursos relativos aos diferentes modos de ser criança e adolescente no mundo urbano daqueles países nos últimos trinta anos do século XX. Enquanto a noção de infância afirma que o “espaço esperado” para a criança e o adolescente é a escola e/ou o ambiente doméstico, as famílias pobres das cidades de Praia e Maputo mantiveram a prática de deixar seus filhos e filhas brincando/trabalhando pelas ruas das cidades. Lorenzo I. Bordonaro e Redy Wilson Lima entendem que há uma grande diferença entre “crianças de rua e crianças na rua”, na zona urbana de Cabo Verde (p. 127). Afirmam, de forma crítica, que conceitos aplicados por técnicos das agências internacionais, operadores do direito e jornalistas não dizem respeito às realidades africanas, mas se limitam às latino-americanas. Os autores não concordam com a transformação do modo de ser criança “tradicional” em um problema social, especialmente pela mídia. Já para Elena Colona e Eugénio José Brás, o deslocamento dos menores pelas ruas da cidade de Maputo está de longa data associado a estratégias de sobrevivência das famílias empobrecidas (p. 171).

Para Catarina Tomás, Natalia Fernandes e Manuel Jacinto Sarmento, a história dos direitos da criança em Portugal, desde o processo de redemocratização do país, em 1974, tem como marca os paradoxos. Se, por um lado, o país atingiu excelentes índices no campo da saúde infantil e expandiu a proteção aos menores de idade através da justiça, por outro, a violência doméstica ainda continuou presente entre as famílias; além disso, a taxa de natalidade decresceu bastante, e crescimento populacional, se houve, foi por conta da imigração. Os autores mencionam mais dois problemas relativos ao universo infantil que emergiram no período: a obesidade e o stress (p. 219).

O último capítulo procura historiar a introdução dos direitos da criança na “fraturada” sociedade do Timor Leste. Afonso Maia, Benvinda L. da R. Oliveira, Márcia Valdineide Cavalcante e Silvestre de Oliveira descrevem as diferenças em relação a esse processo em três períodos distintos da história daquela sociedade durante o século XX: o período da dominação colonial portuguesa (1515-1975), a época da “invasão” indonésia (1975-1999) e o pós-independência do país, em 2002. Os autores e autoras consideram fundamental, nos três períodos, o direito à vida, à educação e à saúde. Ressaltam, também, que o domínio dos idiomas português e, depois, indonésio, pelas crianças e adolescentes, tinha o poder de produzir a inclusão ou a exclusão social naquela sociedade (p. 246).

Esses processos históricos nos países lusófonos poderão, certamente, ser interpretados de muitas outras maneiras. Esta, todavia, cativa os leitores e leitoras pelo seu ineditismo no campo da História da Infância e da História Transnacional e por fornecer pistas para outras investigações. Estudos desta natureza devem ser feitos para que, além de produzir conhecimento, possamos constatar que outros “mundos” podem ser construídos.

1 Sobre a História Transnacional, ver Bayly, C. A.; Beckert, Sven; Connelly, Matthew; Hofmeyr, Isabel; Kozol, Wendy; Seed, Patricia. AHR conversation: on Tansnational History, The American Historical Review, 1 dec. 2006, vol. 111, no 5, p. 1441-1464.

Silvia Maria Favero Arend – doutora em História pela Universidade Fed eral do Rio Grande do Sul e professora do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina ([email protected]).


MULLER, Verônica Regina (org.). Crianças dos países de língua portuguesa: histórias, culturas e direitos. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2011. 275 p. Resenha de: AREND, Silvia Maria Favero. Uma história dos direitos da criança nos países lusófonos. Estudos Históricos, v.25 n.50 Rio de Janeiro July/Dec. 2012.

Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394) | Paul Veyne

Paul Veyne é um nome proeminente e controverso entre os classicistas. Membro da École Française de Rome, sua eleição para o Collège de France, onde é professor honorário, causou certa surpresa. Pondo-se à margem das correntes historiográficas vigentes, seu trabalho é marcado pela curiosidade intelectual, certa ironia e pela influência da obra de Michel Foucault. Já nos anos 1970 abraça a narrativa e advoga sobre a importância do diálogo da história com a filosofia e a sociologia.

Comecemos pela afirmação que permeará todo o livro e que representa uma quebra a um cânone histórico: a fé do imperador Constantino (272-372 d.C) era verdadeira, e sua opção pelo cristianismo não foi fundamentada em interesses políticos. Os cristãos, durante o século IV, período ao qual o livro se atém, formavam uma parcela muito pequena da população do Império Romano, cerca de 5 a 10% do total. Constantino teria sido pragmático, pois não forçou os pagãos à conversão, o que teria feito com que esses se insurgissem contra sua autoridade. A política cristã do imperador se deu, sobretudo, em suas atitudes para com sua própria pessoa, sua religião foi imposta apenas em sua esfera pessoal.[1[ Todavia, a pessoa do imperador influi também nas questões estatais, como o exército, o fisco e a nomeação dos ocupantes de cargos públicos. Assim, aos poucos o cristianismo adquire cada vez mais força na vida pública romana. O livro relata que, com o decorrer dos anos, o cristianismo se torna a religião da maioria da população, mas se concentra mais na figura de Constantino e nas motivações de que o levaram a promover a fé cristã que nas práticas e doutrinas do cristianismo na antiguidade tardia.

A história da conversão de Constantino é famosa: no século IV de nossa era, o Império romano estava sob o governo de quatro coimperadores, dois governando o Ocidente e dois o Oriente. A porção ocidental se encontrava repartida entre Licínio e Constantino, sendo o último responsável pela administração das províncias da Gália, Inglaterra e Espanha. Maxêncio tomou a Itália, território que cabia a Constantino, que por sua vez declarou-lhe guerra e, na véspera da batalha decisiva, teve um sonho, no qual lhe apareceu o símbolo do crisma. Ordenou que o símbolo fosse pintado nos escudos de seus soldados, e no dia 28 de outubro de 312 derrotou as tropas do rival Maxêncio, episódio conhecido como a vitória de Ponte Mílvio. Entretanto, há questionamentos sobre o relato, pois a principal fonte, Vida de Constantino, de Eusébio de Cesareia, apresenta versões diferentes sobre o que teria sido visto pelo imperador no sonho, uma cruz ou o crisma. Veyne acredita que o sonho foi uma manifestação do inconsciente, revelando o desejo de Constantino em se converter.

O autor esclarece que, a seu ver, Constantino enxergou no cristianismo uma “superioridade” em relação ao paganismo. Seu monismo politeísta e natureza metafísica o faziam superior ao paganismo.[2] O imperador teria promovido uma verdadeira revolução religiosa ao conceder aos cristãos as mesmas benesses que os pagãos desfrutavam, e atribuiu a si o papel de protetor da cristandade. O grande atrativo para as conversões ao cristianismo, visto como vanguarda que atraía a elite, explica Veyne, era sua originalidade: ser uma religião que prega o amor; o “gigantismo de seu deus”, criador de todas as coisas e a vitória de Cristo sobre a morte. A nova sensibilidade a que o cristianismo deu gênese lhe proporcionou sucesso, pois se trata de uma religião que proclama a igualdade de todos (em espírito) e fornece significação existencial. O cristianismo não floresceu e se propagou por ter respondido às necessidades de uma época, e sim porque trazia em si algo novo, o amor da divindade pelos homens. O autor não se coaduna às explicações de natureza psicológica sobre a religião, pondo-se ao lado de Georg Simmel e defendendo que o sentimento religioso é algo inseparável do ser humano.[3] Constantino, no desejo de ser um grande imperador, necessitava de um grande deus. E o deus cristão abraça toda a humanidade. A religião de vanguarda viria a corresponder os desejos do imperador: ao se converter, ele tomou parte em uma “epopeia espiritual”, assumindo as rédeas da cristianização.

Ao tratar da Igreja Católica, Paul Veyne contraria, mais uma vez, a corrente tradicional. Para os marxistas, Constantino valeu-se da Igreja para se estabilizar no poder. Para Veyne, o cristianismo era atrativo ao imperador por seu dinamismo e organização, traços presentes na própria personalidade de Constantino. Tratava-se de uma instituição cuja influência sobre seus membros era notável, pois infundia um modo de vida aos fiéis e possuía uma rígida hierarquia. Todavia, por si mesma a Igreja não tinha meios suficientes para se impor junto à grande maioria pagã. Constantino, ao crer que Deus o havia escolhido para difundir a Sua palavra, promove a construção de igrejas em diversos locais do Império, faz doações vultosas, concede cargos aos cristãos, entre outras benesses, o que amplia a divulgação religiosa. Destarte, não foi Constantino que se apoiou na Igreja: essa foi beneficiada pela ação prosélita do monarca. Segundo o autor: “Constantino instalou a Igreja no Império, deu ao governo central uma função nova, a de ajudar a verdadeira religião…”.[4] Paul Veyne utiliza diversas cartas do próprio Constantino como forma de rebater a historiografia tradicional e não crê que ele tenha utilizado o cristianismo como uma ideologia em seu governo: o monarca mantinha a fachada pagã do Império, não precisava da religião a fim de se legitimar, os cristãos eram uma minoria desprezada. E também porque não eram necessárias motivações de cunho ideológico para que as multidões venerassem o imperador. A obediência à autoridade e o patriotismo são frutos da vivência social. Para os antigos o respeito à lei e a ordem também era algo sagrado. O que ocorre a partir de Constantino é a adoção de uma nova fraseologia legitimante: reina-se pela graça e pela vontade de Deus, e a função do imperador é estar a serviço da religião.

Outra novidade do governo de Constantino é a entrada do sagrado na política. O laicismo não seria uma invenção moderna. O paganismo romano do século IV era como um hábito, respeitado como uma tradição patriótica, mas em crise entre os intelectuais. A questão da verdade religiosa é apontada por Veyne, que afirma que o paganismo não tinha respostas para ela, enquanto o cristianismo se posicionou como a verdadeira religião. Ao se converter, Constantino considera o avanço da Igreja uma questão política, pois cabia a ele, como cristão e como soberano, levar a verdadeira fé a seus súditos e zelar por sua salvação. Apesar disso, não há perseguição aos pagãos e sim aos hereges. A preocupação com a ortodoxia faz com que Constantino se insira nos assuntos da Igreja, agindo como seu “presidente” e essa, no século IV, não interfere no governo secular, ao contrário: se mostra submissa ao imperador. De fato, era pregada a divisão entre “as coisas do céu” e “as coisas da terra”, e a Igreja prezava pela fidelidade ao Império Romano. Constantino uniu ambas as coisas ao portar-se como líder não apenas político, mas também espiritual. A Igreja, antes da conversão do imperador, já era uma instituição independente, mas irá ter proveito com o proselitismo imperial.

Mesmo com o favorecimento do cristianismo o Império continuava pagão, pelo menos em sua fachada. O imperador ainda era o sumo-pontífice da religião politeísta, e não houve uma mudança significativa nos costumes. Havia o foro íntimo do imperador, que era cristão e coexistia com a religião pagã, formando um ‘”Império Bipolar”.[5] Durante o século IV o clima entre as duas religiões é de tolerância, apesar das benesses ao cristianismo. A manutenção da ordem pública era um ideal que devia ser mantido a despeito das convicções religiosas.

O judaísmo não teve a mesma sorte. Durante o período em que o paganismo primava, a religião judaica era rejeitada por suas restrições alimentares e pela exclusividade de seu Deus. Quando o cristianismo começa a se propagar, o judaísmo é rechaçado justamente por conta de sua proximidade com a nova religião. Ambos têm por característica a inventividade. Os judeus não eram nem cristãos, nem pagãos, e essa incerteza, que Paul Veyne relaciona aos estudos de Mary Douglas sobre o puro e o impuro, faz com que a população judia sofra perseguições. No apêndice do livro, onde são analisadas as transformações do judaísmo, de uma monolatria a um monismo e religião nacional, vê-se que o judaísmo, antes da expansão do cristianismo, atraía alguns pagãos e tinha um caráter prosélito.[6] Com as perseguições cristãs, que se iniciaram no período de Constantino, a comunidade judaica fecha-se sobre si mesma, tornando raras as conversões à sua fé. O autor vê na intolerância desses tempos a causa real do antissemitismo atual.

Veyne afirma que, sem o posicionamento de Constantino, o cristianismo estaria fadado ao papel de seita e tenderia a se esvanecer com o tempo. Para ele, a ação do monarca foi crucial para o desenvolvimento e expansão da religião. Com a morte de Constantino funda-se uma tradição de imperadores cristãos, quebrada momentaneamente por Juliano, o Apóstata (331-363 d.C), que tenta restabelecer o paganismo ao seu antigo esplendor. Com sua morte, o exército coloca no poder imperadores cristãos. Arbogast, líder germânico, toma o poder na parte ocidental do Império e põe no trono o imperador-fantoche Eugenio, o que agrada aos pagãos. De fato, durante a primeira metade da década de 390 há um reflorescimento dos cultos pagãos. Teodósio (347-395 d.C), o governante cristão do Oriente, não vê com bons olhos essa manobra, rejeitando Eugenio como coimperador. A proibição dos cultos pagãos em 392 transforma o conflito pelo trono em disputa religiosa, e o paganismo tem fim como religião autorizada em 394. O cristianismo se torna religião de Estado.

Enquanto nos quadros do governo imperial a nova religião avançou rapidamente, a cristianização da população foi um processo que levou séculos, especialmente no campo, onde ocorreu por impregnação progressiva, e não individualmente. A recepção do cristianismo pelas camadas populares provocou a paganização. O fervor cristão dos primeiros séculos de nossa era transforma-se e nos séculos VI e VII o cristianismo, tal como o politeísmo antigo, passa a ser uma religião habitual. Paul Veyne discorda da expressão de Max Weber: para ele não houve um “desencantamento do mundo”, e sim uma especialização 7.[7] Os sincretismos que ocorreram por conta da conversão em massa e que se tornaram a religião popular não são tratados no livro, algo que seria interessante abordar.

No último capítulo o autor nos pergunta sobre as raízes cristãs europeias. Para ele, como uma realidade heterogênea, não é possível que a Europa possua raízes. A formação da Europa atual foi uma epigênese, se fez de etapas imprevisíveis. A religião é apenas um dos muitos traços das sociedades. Um traço que se sobressai, é verdade, mas que sozinho não pode definir uma realidade social. Sendo uma elaboração coletiva e oral, os criadores do cristianismo foram os apóstolos, os primeiros fiéis. O Império Romano, em sua vastidão, significava uma oportunidade maior de expansão dessa nova fé, a qual os judeus não davam crédito. Os valores que hoje são caros às sociedades europeias, tais como a democracia, a liberdade religiosa e sexual, a redução das desigualdades, não são cristãos. O cristianismo não era um programa político: pregava o desligamento das coisas mundanas, uma vivência casta e obediente. Veyne crê que a espiritualidade moderna estaria muito mais ligada á filosofia de Kant e Spinoza que ao Evangelho. As transformações do 7 Ibid., pp.184-185. mundo fizeram com que o catolicismo assumisse algumas posições sociais, porém, os cristãos não estão distantes da moral social vigente. Assim, “não é o cristianismo que está na raiz da Europa, é a Europa atual que inspira o cristianismo ou algumas de suas vertentes”.[8] O cristianismo permanece como um ancestral, mas não se pode dizer que a Europa atual é uma sociedade cristã. O humanitarismo atual não é fruto do cristianismo, mas sim do Iluminismo. Todavia, ele (cristianismo) auxiliou na tarefa de “preparar terreno” para as ideias de igualdade. Mas já não está nas raízes da Europa há muito tempo.

O livro, publicado originalmente em 2007 na França, se tornou um bestseller, e oferece uma visão original sobre os primeiros séculos do cristianismo. Veyne busca as grandes figuras públicas e os eventos, afirmando a importância da ação individual na história.

Notas

1. VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.28.

2. Id. Ibid., p.40.

3. Id. Ibid., p.47.

4. Id. Ibid., p.138.

5. Id. Ibid., p.143.

6. Id. Ibid., p.273.

7. Ibid., pp.184-185.

8. Ibid., p. 232.

Mariana Figueiredo Virgolino.


VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão (312-394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Resenha de: VIRGOLINO, Mariana Figueiredo. Constantino, um Imperador de fé. Cantareira. Niterói, n.17, p. 138-141, jul./dez., 2012. Acessar publicação original [DR]

Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração | Pedro Prado Custódio

Seu nome assinala o fim de uma época e o começa de uma nova” Johann Gustav Droysen (Droysen, 2010: 37).

A máxima do historiador alemão Johann Gustav Droysen sobre Alexandre, o Grande, bem ilustra a magnitude em torno da figura do conquistador macedônico. Desde contemporâneos como Cúrcio e Arriano, passando por acadêmicos como o próprio Droysen no século XIX, e chegando aos dias atuais com a obra resenhada, muitos tentaram compreender como apenas uma pessoa conseguiu feitos tão soberbos que assumiram contornos lendários.

O gênio militar. O líder nato. O piedoso com os derrotados. Mas, também, o soberbo. Aquele que se entregou às opulências orientais, que ultrapassou os seres mitológicos.

As lendas em torno de Alexandre são infindáveis e recriadas em consonância com a época que as traz à tona [2]. A obra “Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração”, de Pedro Prado Custódio, toma a assertiva acima como base para analisar as interpretações em torno do filho de Felipe da Macedônia durante o Medievo, a partir do poema Roman d’Alexandre – na versão compilada de Alexandre de Paris – e datada de cerca de 1180-1189.

Pedro Prado Custódio possui formação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo com a tese “As Múltiplas Facetas de Alexandre Magno no Roman d’Alexandre” e é membro da Associação Brasileira de Estudos Medievais. Como é dedutível, sua especialização faz com que o livro adquira matizes mais medievais do que Antigas, ou seja, seu objetivo precípuo não é descrever Alexandre em sua contemporaneidade e sim suas interpretações no Mundo Medieval e a forma como seus mitos adquiriram uma tintura da época: “O passado evocado no Roman d’Alexandre é mais uma representação idealizada e moralizante do presente (século XII)” (Custódio, 2006: 25). Portanto, Custódio enumera quatro das principais facetas alexandrinas e que dão os títulos para os eixos temáticos de sua obra: “Alexandre como soberano/suserano”, “Alexandre como desbravador/cruzado”, “Alexandre como messias/herói mítico”, “Alexandre como um rei orgulhoso: presunção e castigo?” Todos estes tropos estão representados no Roman d’ Alexandre e têm a intenção primordial de apresentar Alexandre como modelo ideal para a incipiente ordem cavaleiresca.

O capítulo “Alexandre como soberano/suserano” se inicia com uma salutar descrição do surgimento de uma literatura vernácula, voltada aos ignorantes em latim, em concomitância com o nascer da ordem supramencionada. Estes dois elementos se unem no Roman d’Alexandre – escrito em francês – e explicam alguns dos porquês de a obra ter desfrutado de grande penetração entre a alta e baixa nobreza e a nascente burguesia. Nesta primeira representação, Alexandre é descrito como um cavaleiro ideal: corajoso, leal, justo, generoso com seus pares e clemente com os vencidos (Custódio, 2006: 27). Ademais, é o precisar lembrar que a figura alexandrina também: “representa os interesses da nobreza em processo de fusão com a cavalaria, buscando sustentação ideológica para sua existência e demonstra muita preocupação com as alterações políticas e sócio-econômicas em curso, temerosa de ter seu status quo ameaçado” (Custódio, 2006: 37).

A partir destas elucubrações, pode-se aferir que havia um norte definido para a reconstrução do conquistador macedônico: a idealização do cavaleiro medieval, dotado de virtudes irrefragáveis, e que tinha suas raízes fincadas no Mundo Antigo. Eis a longa duração, e que possuía, não obstante, devires da burguesia e nobreza medievais. Isto leva à outra das facetas presente no Roman d’Alexandre: a de senhor feudal, por conta da capacidade de Alexandre em equilibrar forças antagônicas e interesses dissonantes dentro de seus domínios (Custódio, 2006: 57). Sendo assim, Alexandre é, a um só tempo, cavaleiro e nobre [3].

No eixo “Alexandre como desbravador/cruzado”, Custódio apresenta a fisionomia do filho de Olímpia como “campeão de Deus” (Custódio, 2006: 31). Partindo do pressuposto que o Mundo Medieval era marcado pela belicosidade e a pujança das práticas religiosas – que se uniram em eventos como as Cruzadas e a Inquisição – Custódio argumenta que: “No Roman d’Alexandre, ele (Alexandre) representa um cristão lutando contra inimigos identificados com muçulmanos, demônios, povos diabólicos do Gog e Magog e com o Anticristo” (Custódio, 2006: 99). Contudo, as associações entre Alexandre e os cruzados possuíam um viés idiossincrático: elas o apresentam mais como um desbravador que ruma ao desconhecido do que como um “missionário” que carrega o estandarte de sua fé, mesmo porque o macedônico não era cristão: “as viagens de Alexandre, no âmbito do cristianismo medieval, podem ser entendidas como peregrinações religiosas em busca de algum tipo de manifestação divina. Seriam como um sacrifício, uma penitência em troca de salvação” (Custódio, 2006: 132).

Destarte, chega-se a mais um dos apanágios do Roman d’Alexandre: uma tentativa de “cristianizar” seu protagonista, notadamente pagão, com o objetivo de aproximá-lo da realidade medieval.

O próximo tópico da obra é “Alexandre como messias/herói mítico”. Segundo o autor, a figura do herói místico é um processo de longuíssima duração, presente em diversas culturas e épocas e que possuía características como a capacidade de rechaçar a ameaça dos povos estrangeiros, repelir a anarquia interna e afastar as catástrofes naturais (Custódio, 2006: 151). Mas, neste caso do Roman d’Alexandre, houve uma readaptação destes ditames à realidade cristã e medieval, de forma que Alexandre apresenta uma ambigüidade em torno de sua origem, fruto de pais humanos e divinos – do ponto de vista do mito, – e que, por fim, acabam por impedi-lo de chegar à sonhada imortalidade (Custódio, 2006: 159).

A lenda do bravio herói e redentor de um povo é recontada mais uma vez, contudo, com um final diferente: “No momento em que Roman d’Alexandre foi produzido buscava-se um denominador comum que unisse as diversas camadas sociais que compunham a cavalaria, e havia também a pretensão de conter o avanço da burguesia ascendente, ameaçadora dos privilégios feudais. Por esse motivo, um herói já mitificado como Alexandre foi adaptado ao contexto da época e transformado no soberano e cavaleiro ideal” (Custódio, 2006: 161).

O último dos capítulos principais, “Alexandre como um rei orgulhoso: presunção e castigo?”, é também o mais exíguo, por se tratar de um sutil traço do conquistador macedônico. Nele, Custódio retoma as formas através das quais as antigas interpretações de um Alexandre desregrado, soberbo por suas conquistas militares, de atos intempestivos regados a vinho, adquiriram um certo verniz moralizante no poema do século XII. Nele, a grandeza dos feitos de um homem nunca deve se dissociar da parcimônia de seus atos.

Alexandre não seguiu este conselho e foi vítima do mais hediondo dos crimes para a sociedade medieval: a traição. Não apenas isso: os traidores – Antipater e Divinuspater – só levaram o crime a cabo por estarem sob os entorpecentes efeitos do vinho, em mais uma das opulentas celebrações daquele que se proclamou descendente do próprio Dionísio. A mensagem é clara: a grandeza de um homem não está apenas em seus atos e conquistas. Está em sua altivez. À glória da imortalidade só estão destinados aqueles de caráter inflexível. Em suma, Alexandre era: “um herói que encarna virtudes cavaleirescas e até messiânicas, mas que perdeu tudo por causa de seu orgulho e ambição, sendo punido com uma morte trágica e precoce” (Custódio, 2006: 231.

“Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração” se encerra com a redescoberta do conquistador macedônico em épocas modernas, nas quais adquiriu contornos que vão do monarca absolutista (Custódio, 2006: 235) ao super-homem nietzschiano (Custódio, 2006: 236). Neste ponto se encontra um dos grandes méritos do livro de Custódio: a sugestão para pesquisas que tomem estas redescobertas com objeto de estudo. Sabe-se que toda história, quando (re)contada adquire vieses dos períodos contemporâneos. Não foi diferente com as lendas em torno do arauto do Helenismo durante o Medievo. Alexandre é uma criatura de quatro faces: suserano, cruzado, herói mítico e até mesmo rei orgulhoso. Entretanto, estas quatro faces se encontram e se harmonizam no ideal do cavaleiro medieval: ele é justo, leal com seus pares, piedoso com os inimigos, defensor de sua fé, desbravador dos mais longínquos rincões, redentor de um povo e paladino da paz, de modo que sua feição adquire traços de herói místico. Contudo, as virtudes supracitadas de nada adiantam quando não estão na presença da sobriedade e da parcimônia. Aquele que ignorar este alerta encontrará uma morte precoce. O Roman d’Alexandre é, pois, um manual de cavalaria. Afinal: “a literatura cavaleiresca é mais prescritiva do que descritiva” (Custódio, 2006: 43).

Concluí-se que Pedro Prado Custódio apresenta uma obra sobremodo pertinente, de boa leitura, grande erudição – os trechos citados do Roman d’Alexandre em francês são traduzidos pelo autor – e densidade, em particular no que diz respeito às muitas fábulas de Alexandre em outras partes do mundo, mencionadas diversas vezes. Além de servir como modelo e base para outras pesquisas que trabalhem com a mitificação de Alexandre em determinado recorte temporal, os escritos de Custódio nos recordam de algo que o historiador jamais pode se esquecer: o passado é construído de acordo com os interesses do presente. Descobrir quais são tais interesses é nosso papel e missão fundamentais.

Agradecimentos

Agradeço meu orientador, Prof. Pedro Paulo Abreu Funari, pelo apoio acadêmico e pelos comentários feitos a respeito deste texto. Menciono, também, o suporte financeiro do CNPq em minha pesquisa de Iniciação Cientifica. As idéias apresentadas são de minha responsabilidade.

Notas

2. Segundo o próprio Pedro Custódio, tais lendas são recontadas: “assumindo feições diversas de acordo com o momento de sua reaparição” (Custódio, 2006: 19).

3. A seguinte citação ilustra bem este viés: “Cavalaria e nobreza têm seus antagonismos escamoteados e harmonizam-se mediante a sublimação dos interesses divergentes” (Custódio, 2006: 41).

Referências

CUSTÓDIO, P. P. Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração. São Paulo Annablume, 2006.

DROYSEN, J. G. Alexandre o Grande. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.

Thiago do Amaral Biazotto1 – Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.


CUSTÓDIO, Pedro Prado. Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração. São Paulo: Annablume, 2006. Resenha de: BIAZOTTO, Thiago do Amaral. Cadernos de Clio. Curitiba, v.3, p.323-331, 2012. Acessar publicação original [DR]

Non-Western International Relations Theory: perspectives on and beyond Asia | Amitav Acharya e Barry Buzan

Non-Western International Relations Theory: perspectives on and beyond Asia, dos editores Amitav Acharya 2 e Barry Buzan 3 é uma leitura para conhecer diferentes perspectivas sobre o internacional. Ao abordar uma crítica à hegemonia do ocidente em Teoria de Relações Internacionais (TRI), o livro expõe:

  1. a) as dificuldades no desenvolvimento de teorias originais, fora da área de influência das teorias tradicionais, em locais que não sejam a Europa e os Estados Unidos;
  2. b) as possíveis fontes para novas abordagens teóricas;
  3. c) o modo como as Relações Internacionais, enquanto área do conhecimento, têm crescido na Ásia. O objetivo primeiro, no entanto, parece ser inquietar.

Leia Mais

Mulheres em Macau – PENALVA (VH)

PENALVA, Elsa. Mulheres em Macau: donas honradas, mulheres livres e escravas (séculos XVI e XVII). Lisboa: CHAM/CCCM: 2011, 237 p. Resenha de: WAGNER, Ana Paula. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.

Macau está longe de nós, se tivermos como ponto de referência o espaço geográfico brasileiro. Entretanto, o trabalho de Elsa Penalva chega para fazer uma aproximação, trazendo àqueles que desconhecem as particularidades da história macaense elementos que permitem um contato com a sociedade em questão. Numa parceria entre o Centro de História de Além-Mar e o Centro Científico e Cultural de Macau, o trabalho da autora foi publicado na Coleção Estudos e Documentos, que tem divulgado investigações relacionadas com a História dos Descobrimentos e da Expansão Lusa, assim como a presença portuguesa no mundo.

O primeiro ponto a ser evidenciado é que as mulheres são as protagonistas dessa obra, o que já se encontra anunciado no próprio título do trabalho. São mulheres de diferentes estatutos sociais, que viviam em Macau entre finais de Quinhentos e meados de Seiscentos. No topo da hierarquia local estavam as “donas honradas”. Conforme ressaltado por Elsa Penalva, essa condição, ser “honrada”, não se ligava necessariamente a uma conduta moral reta; mas era acrescida de uma valoração positiva facultada “pelo enlace com um homem com poder econômico, e com possibilidades de acesso às elites atinentes ao exercício do poder político”. Abaixo desta categoria, “donas honradas”, encontravam-se as mulheres livres e, depois, as escravas. Para estas últimas, equivalia situar-se na base da pirâmide social macaense, no lugar mais indesejado. Num campo intermediário estavam as mulheres livres. Entretanto, para esses dois segmentos sociais, independentemente da condição de livre ou escrava, “significava ter que se organizar, atendendo à sociedade patriarcal em que se inseriam”. Eram mulheres que, no geral, tinham dinâmicas de vida muito trabalhosas.

Porém, o universo feminino em Macau era muito mais complexo e diversificado do que a existência dessas três categorias, contando também com a presença de órfãs, religiosas, viúvas com posses ou não etc. Essa heterogeneidade é devidamente explorada pela autora no livro, além de ser redimensionada em razão do caráter multicultural da sociedade macaense, com indivíduos de diferentes procedências, como Portugal, China e Japão, por exemplo. Desse amplo quadro, a autora acaba por apresentar maiores detalhes do segmento das mulheres economicamente mais favorecidas. Tal circunstância deriva, possivelmente, de uma escolha feita por Elsa Penalva e, certamente, do tipo de documentação utilizada para a elaboração da pesquisa.

Em grande medida, ao problematizar a inscrição das mulheres na vida social de Macau, a autora procura não superestimar as ações delas, buscando equilibrar sua argumentação. A conclusão que chega é que “sem capacidade política, nem autoridade pública, e com reduzida intervenção social, a mulher em Macau, dificilmente escapava à dominação masculina a partir da riqueza de que dispunha”. Ou seja, a maior parte delas encontrava-se submetida a uma valoração fundamentada em índices de riqueza e, nesse ambiente, o casamento era considerado a principal garantia de segurança e de sobrevivência material. Mas, por outro lado, a condição de viúva, quando acompanhada de poder econômico, facultava à mulher a “manutenção do prestígio social e a aproximação ao universo masculino”.

Elsa Penalva não valoriza demasiadamente o papel da mulher em Macau, mas também não as vitimiza, procurando sempre um ponto de equilíbrio. No que diz respeito ao casamento, por exemplo, percebido como um importante mecanismo do processo de inserção social e de diferenciação entre o grupo feminino, ele foi um instrumento bem aproveitado pelas mulheres que viviam em Macau. Ainda que em algumas circunstâncias o matrimônio tenha sido imposto, as mulheres buscaram construir espaços de movimentação e, na medida do possível, procuraram atuar independente dos códigos sociais a que estavam sujeitas.

Como indicamos, a autora acabou privilegiando, em seu estudo, as mulheres economicamente melhor favorecidas, no caso, as viúvas com posses. Particularmente no que se refere a esse grupo social, as ideias de passividade feminina não se configuravam como majoritárias no período em análise, séculos XVI e XVII. Em relação ao aspecto econômico, algumas viúvas conseguiram ultrapassar determinadas barreiras e chegaram a ser as responsáveis pelo gerenciamento de seus patrimônios (garantindo a sua rentabilidade), constituindo-se em grande feito para a conjuntura daquela sociedade:

Algumas [mulheres], após terem enviuvado, tornaram-se elementos activos no meio mercantil em que viviam. Foi o caso de Isabel Reigota que entre 1652 e 1663 se opôs ao jesuíta Manuel de Figueiredo à data, Procurador da Vice-Província da China. Em causa estava o comércio do sândalo, e uma luta pelo poder travado no seio da Companhia de Jesus. O comportamento desta viúva deixa entrever uma aprendizagem de âmbito prático, fruto da observação atenta da actividade do marido, Francisco Rombo de Carvalho, e do contacto com os jesuítas com que privava. A sua casa, local de práticas dos vários saberes a que tinha acesso como mulher, permitira também a aquisição de conhecimento próprios do universo masculino, que, face à morte do marido, se tornaram recorrentes, funcionando como mecanismos de manutenção e sobrevivência.

A história da Isabel Reigota, indicada acima, sintetiza muito bem a argumentação da autora, e apresenta todos os elementos envolvidos na trama oferecida pelo livro. Ou seja, revela o cotidiano de mulheres que, por meio do casamento com um indivíduo com posses, tem acesso a um ambiente que lhes possibilita desenvolver conhecimentos e habilidades, que foram utilizados no momento em que seus cônjuges faltaram. Do mesmo modo, evidenciam as relações estabelecidas entre algumas ordens religiosas instaladas em Macau e determinados segmentos populacionais, fosse no contato para cuidar dos assuntos sagrados, ou sociais, ou econômicos.

Como se nota, paralelamente à história da condição social das mulheres de Macau, a autora descortina alguns aspectos do mundo religioso institucional da localidade, particularmente aquele que dizia respeito à Companhia de Jesus. Conforme Elsa Penalva, essa ordem era a que tinha maior poder em Macau, “pela sua antiguidade, modelo de aproximação à população, e ocupação logística do terreno. Isto pelo menos desde 1565 até inícios da centúria seguinte”. As Clarissas, ordem religiosa feminina que se instalou em Macau, em 1633, também ganhou atenção da autora. Segundo seu argumento, a partir de 1642, essas religiosas “funcionaram como um grupo de pressão nas lutas pelo poder que se desencadearam na cidade”, passando a se constituírem nas grandes oponentes à Companhia de Jesus naquele território. Entre as Clarissas estavam as filhas de mercadores abastados e influentes que se estabeleceram em Macau. Nota-se, assim, a configuração de um quadro bastante complexo que interliga o cotidiano das mulheres e as disputas religiosas e econômicas locais.

Sem dúvida, o livro em questão atende aos interesses daqueles leitores que buscam informações sobre as experiências das mulheres na Macau dos séculos XVI e XVII; contudo, também contempla a história de algumas ordens religiosas instaladas naquela localidade. Em grande medida, esse é um dos méritos do livro, fazer com que diminuam as distâncias que separam Macau de seus leitores. Embora a sociedade macaense tenha suas particularidades, devidamente exploradas e contextualizadas pela autora, tem-se a impressão de que é possível identificar algumas semelhanças com a história de outros territórios de colonização portuguesa, em especial nas questões relacionadas ao cotidiano das mulheres. É nesse sentido que dizemos que o livro de Elsa Penalva permite estabelecer algumas aproximações, desde o contato com esse espaço geográfico que constituía Macau até o conhecimento de experiências sociais nele desenroladas e comuns a outras sociedades.

Outra grande contribuição do livro Mulheres em Macau é a publicação, como anexos, de três documentos redigidos no século XVII, especificamente entre 1644 e 1690. Embora esses textos tenham sido escritos por homens e, portanto, nos digam muito do universo masculino, as mulheres que tiveram suas histórias vividas em Macau continuam sendo as protagonistas daquelas narrativas. Aliás, essa preocupação com as fontes e o recurso a um sólido trabalho documental é um dos pontos fortes da obra. Elsa Penalva pesquisou uma vasta documentação para compor seu trabalho, como os legados da Santa Casa da Misericórdia de Macau, documentos relativos a Câmara Municipal, processos inquisitoriais e registros de contendas relativos a Macau. Saliente-se, a propósito, a cuidadosa transcrição e referenciação dos documentos e da bibliografia consultada. Por fim, os capítulos apresentados no livro têm como base os estudos empreendidos pela autora em sua tese de doutorado (defendida em 2005) e comunicações apresentadas em congressos, porém ampliados à luz de novas indagações. Enfim, o que se tem em mãos é uma investigação de grande fôlego que requer e merece uma leitura atenta.

Ana Paula Wagner – Pesquisadora do Centro de Documentação e Pesquisa em História dos Domínios Portugueses (CEDOPE)/DEHIS-UFPR. Rua Senador Xavier da Silva, n. 272, ap. 41. Curitiba/Paraná. Cep: 80.530-060 [email protected].

A construção social dos regimes autoritários – Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa – ROLLEMBERG; VIZ QUADRAT (CTP)

ROLLEMBERG, Denise; VIZ QUADRAT, Samantha (Org). A construção social dos regimes autoritários – Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa. [Rio de Janeiro]: Civilização Brasileira, 606 p. Resenha de TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. A Construção Social dos Regimes Autoritários. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 06 – 06 de janeiro de 2012.

A Civilização Brasileira e as pesquisadoras Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat, ambas do Núcleo de Estudos Contemporâneos/NEC, da UFF, apresentam-nos uma volumosa e imprescindível coletânea de trabalhos sobre os chamados “regimes autoritários”. Trata-se de uma coleção II de amplíssima e necessária abrangência, composta de três volumes — “Brasil e América Latina”, “África e Ásia” e “Europa” —, todos acompanhados de um ensaio introdutório bastante informado e que já nos apresenta os pontos centrais do trabalho.

Para as organizadoras, cabe a superação de teses tradicionais de explicação das ditaduras, quase sempre centradas em conceitos fossilizados ou “combatentes” da Guerra Fria, tais como “populismo” e “totalitarismo”. Na crítica contra tais esquemas simplificadores, as autoras propõem-se a discutir uma nova abordagem composta por teses inovadoras: a ambivalência entre sociedade e Estado nas ditaduras; a busca do consenso por parte dos ditadores e de suas instituições; o papel dos intelectuais como ponte entre regimes autoritários e população.

No seu conjunto , em especial no volume sobre “Brasil e América Latina”, brotam análises de extrema riqueza e variedade, comprovando que, mesmo sob ditaduras, a maioria das pessoas busca projetos e estratégias de convívio, de realização pessoal e profissional, ao lado de mecanismos de sobrevivência que, no limite, implicam conviver, dialogar, colaborar ou fingir não ver “o rinoceronte no quarto ao lado”, como na expressão de Eugene Ionesco.

Neste sentido destacam-se os ensaios primorosos de Marcos Napolitano e das próprias Denise Rollemberg e Samantha Quadrat, além de Daniel Aarão Reis, que inovou nos estudos de regimes ditatoriais ao estudar o período de 1964-1985 no Brasil. Vários outros pontos são ainda de suma importância, incluindo aí — em tempos de debate sobre a nossa recém-criada Comissão da Verdade — a questão da pronta, e quase total, conversão de todos à democracia no imediato período pós-ditaduras. Trata-se, neste caso, da construção de memórias regeneradoras, capazes de promover “esquecimento”, “perdão” ou “passar currículos a limpo”. Neste sentido, o belo ensaio sobre o “pensar-duplo” na França pós-ocupação alemã,   no volume “Europa”, serviria de modelo para entender boa parte do processo de democratização no Brasil pós-1985 e da oposição em face da Comissão da Verdade.

Todo esse debate encontra-se exemplarmente discutido no ensaio introdutório, de ambas as autoras. Este é imprescindível para o projeto da coleção ao identificar e explicitar os principais eixos do debate historiográfico (e político, pela própria natureza do texto) que se apresentarão nos ensaios subsequentes. Lamento apenas que o mesmo ensaio seja repetido em cada volume. Mesmo imaginando que se possa comprar cada livro individualmente, caberia indubitavelmente assinalar as características e vicissitudes das ditaduras em cada um dos continentes, suas especificidades e os “espelhos” buscados.

A questão e a natureza dos regimes de “apartheid” — que atingiram a África do Sul, Zimbábue/Rodésia e Namíbia —, por exemplo, estão ausentes, não se discutindo suas possibilidades de construção enquanto ditaduras de forte conteúdo racialista e social, malgrado a imensa literatura sul-africana. Da mesma forma, a questão das classes sociais e de seus interesses — exagerada e de forma mecanicista — tratada na historiografia marxista dos anos de 1945-1980 ficam relegadas. Talvez fosse o caso de se retornar, agora sem a ganga de um marxismo oficial, ao debate sobre empresariado, burocracia de Estado e classes sociais nas ditaduras.

Temos ainda uma outra discordância quando, à pagina 13 do ensaio, as autoras descartam o estudo das ditaduras varguistas de 1930-1934 e de 1937-1945, em razão dos “estudos estarem bem desenvolvidos”. Não creio que seja este o caso. Há, isto sim, uma abundante literatura sobre o período. Contudo, na ótica inovadora proposta pelas organizadoras — expressa, por exemplo, nos textos de Angela Castro, do CPDOC/FGV, Jorge Ferreira, da UFF e Maria Helena Capelato, da USP — falta muito a ser feito numa história das instituições ditatoriais no Brasil.

A aplicação das riquíssimas hipóteses propostas no ensaio introdutório da coleção implicaria no (re)estudo de áreas fundamentais para a compreensão do varguismo ditatorial, como instituições políticas e constitucionais, os órgãos de governo, o processo de decisão política, a burocracia e sua construção profissional, clubes de futebol, associações carnavalescas, as igrejas e o Estado Novo, entre outros. Talvez seja esta uma nova tarefa.

No seu conjunto a coleção apresenta artigos de autores brasileiros e estrangeiros de pouco acesso ou mesmo desconhecidos do público brasileiro. Assim, a presença de grandes nomes Pierre Laborie, Robert Gellately e Francisco Sevillano Calero — só em relação com as ditaduras europeias — enriquece imensamente o trabalho e o torna imprescindível. Da mesma forma, estudiosos latino-americanos, africanos e árabes tornam a coleção um recurso de grande valor para os alunos dos mais diversos cursos das áreas de ciências humanas e sociais.

As temáticas apresentadas — e que devem servir de exemplo de abordagens para futuros trabalhos brasileiros — são inovadoras e comprovam a estreita relação entre sociedade e Estado em regimes ditatoriais. A visão heroicizada, pós-ditatorial, de uma sociedade civil vitimada pelo Estado, em que um grupo era constituído de “heróis da resistência”, enquanto outro era de “colaboradores”, não mais se sustenta. Eis aqui, ao meu alvitre, a principal contribuição da coleção. Da leitura inicial do ensaio emerge uma situação de ambivalência, de busca de condições de (bem)viver ou sobreviver sob as ditaduras. Daí emergem também a delação, a participação e o consentimento na aniquilação física, cívica ou mental do outro como um dado “normal” nos regimes ditatoriais. Em quase todos os casos a maioria poderia dizer, em sua defesa, que eram temas estranhos às suas vidas. Da mesma forma, a capacidade de sedução — e de sua resposta, o consentimento — é elemento central da análise proposta, de forma rigorosa e rica, pelas organizadoras. Em suma, as ditaduras, para nosso horror e reflexão, constroem-se, conforme Rollemberg e Quadrat, na naturalidade da sociedade humana. Creio que tais conclusões, por mais duras que sejam, são uma nova e fértil via de trabalho.

Aberto o caminho, podemos acreditar que novos trabalhos — como as inúmeras teses que ambas orientam — caminharão em direção a uma História mais nuançada, mais real e também mais humana.

Notas

2 A construção social dos regimes autoritários— Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa, coleção organizada por Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat. Editora Civilização Brasileira, 606 páginas (“Brasil e América Latina”, R$ 69,90); 392 páginas (“África e Ásia”, R$ 59,90); e 309 páginas (“Europa”, R$ 49,90).

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Nascido em 1954, Rio de Janeiro, bolsista de produtividade CNPq. Graduação e Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1976), Especialização em História (UFF, 1979), Mestrado em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense (1980), Magister in Geschichtewissenschaft (Freie Universität, Berlin, 1983), Doutorado em História Social pela Universidade de Berlin/UFF (1990) e Pós-doutorado pela Universidade Técnica de Berlin e USP (1999/2000) e pela Universidade Livre de Berlin, 2011/12; Professor Titular de História Moderna e Contemporânea, da Universidade do Brasil/UFRJ, de 1993 até 2012 ). Professor Emérito da ECEME, Professor de Estratégia e Relações Internacionais da EGN e |Professor Conferencista da ESG. Autor de vários trabalhos de História Social no Brasil, com foco no desenvolvimento agrário e nas origens da pobreza no país, e de relações internacionais, conflitos e negociações. Principais teses:Mestrado: A Formação Social da Miséria, 1980; Doutorado: A Morfologia da Escassez, 1990; Tese de Titular: O Concerto Europeu e o Pensamento Conservador, UFRJ, 1993. Alguns dos trabalhos publicados: História Geral do Brasil (Coord. de Maria Yedda Linhares); Domínios da História (Coord. de Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas); Mundo Rural e Política (com o CPDA/UFRRJ); História e Imagem (Tempo Presente, Rio, 1997); Mutações do Trabalho (SENAC, Rio, 2000-); História da Agricultura Brasileira (Brasiliense, São Paulo, 1985); Sociedade Feudal (Brasiliense, São Paulo, 1990); Terra Prometida (com Maria Yedda Linhares, Campus, Rio, 2001) e Memória Social dos Esportes (organizador, v. 1 e v. 2, Mauad, Rio, 2004 e 2006). Em História das Relações Internacionais destacam-se os seguintes trabalhos: Conflitos e das Guerras: O Século Sombrio (Elsevier, São Paulo, 2005), Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX (Mauad, Rio, 2005); História do Século XX (Record, sob coord. de Daniel Aarão Reis et alii); Corporativismo em Português (Coord. de Francisco Martinho, Lisboa/Rio, 2008); Ordens e Pacis (Coord. de Alexander Zhebit, Mauad, 2008); Os Impérios na História (obra coletiva sobre a crise dos grandes estados, São Paulo, Campus, 2009); Neoterrorismo (com Alexander Zhebit, Grama, Rio, 2009). Organizador de O Brasil na Segunda Guerra Mundial (Rio, Multifoco, 2011) e Terrorismo na América do Sul (Rio, Multifoco, 2011 ) e Relações Brasil-Estados Unidos (com Sidnei Munhoz, Maringá, EDUEM, 2011). É professor-conferencista da Escola Superior de Guerra na área de Segurança Internacional e da ECEME em Estratégia Internacional. Articulista do Jornal das Dez, Globo News e consultor de várias empresas na área de relações internacionais. Foi Assessor da Presidência da Finep (2008-2010) e Membro dos Comitês Pro-Sul e Pro-África do CNPq. É também Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército brasileiro, detentor da Medalha do Pacificador, a Ordem de Tamandaré e do Medalha Amigo da Marinha e Cavaleiro da Ordem do Mérito Naval. Professor Convidado de “Ambientes e Cenários do Século XXI” da FDC.

Consultar publicação original

Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire / David Mattingly

MATTINGLY David 1
David Mattingly / Foto: Archaeological Institute of America /

MATTINGLY D ImperalismProfessor de Arqueologia Romana na Escola de Arqueologia e História Antiga (School of Archaeology and Ancient History) da Universidade inglesa de Leicester, desde 1991, David Mattingly é, atualmente, diretor de pesquisa do College of Arts, Humanities and Law e membro da Academia Britânica. Arqueólogo consagrado na academia britânica, o referido autor possui inúmeras publicações a respeito da arqueologia do Império Romano, as quais abrangem o resultado de suas pesquisas realizadas na Grã-Bretanha, Itália, Tunísia, Líbia e Jordânia. No momento, a África Romana tem sido a grande preocupação de Mattingly. Uma de suas prioridades tem sido analisar as situações de colonização romana no norte da África e tentar perceber, por meio da cultura material, as condições locais das populações que viviam sob o Império. Dentro desta perspectiva, Mattingly também atua como coordenador geral do projeto “Trans-Sahara: Formação do Estado, Migração e Comércio no Sahara Central (1000 a.C. -1500 d.C.)”.

Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire é formado, em sua maior parte, por ensaios resultantes de conferências realizadas por Mattingly na Tufts University, Massachusetts (EUA), em abril de 2006. A temática geral trata de um assunto muito debatido ultimamente na academia, que diz respeito, sobretudo, à aplicabilidade (ou não) do conceito de Romanização para os estudos do Império Romano. Mattingly opta pelo viés do Imperialismo, do poder e da identidade para formular sua proposta atual de pesquisa para o Império Romano, focalizando nas experiências locais como uma nova forma de interpretação dos vestígios arqueológicos. Segundo Mattingly, o termo Romanização não mais serve aos nossos propósitos atuais. O “seu” Império Romano, como realça, é o resultado de trinta anos de estudo. Após inúmeros trabalhos de campo e pesquisas científicas, o autor chegou à conclusão que as condições do Império Romano eram situacionais, pois a percepção do que era o Império variava de região para região. Os estudos pós-coloniais foram, neste sentido, essenciais para o desdobramento de sua tese atual.

Os capítulos do livro são formados por ensaios direcionados a temáticas variadas, mas sempre partindo de um eixo central – a questão do poder. São quatro as partes que compõem a estrutura interna do livro, a saber: 1) Imperialismos e Colonialismos; 2) Poder; 3) Recursos e 4) Identidade. A primeira parte é constituída por dois capítulos. No primeiro deles, intitulado “Do Imperium ao Imperialismo: escrevendo sobre o Império Romano”, Mattingly discorre a respeito de vários termos utilizados pela historiografia que trata de Roma Antiga. Conceitos como Império, Imperialismo, Colonialismo, Globalização e Romanização são colocados em pauta e debatidos. Partindo de uma revisão historiográfica sobre o Império Romano, o autor descortina as influências que o Imperialismo do século XIX, sobretudo o britânico, exerceu na interpretação do que foi Roma na Antiguidade.

A historiografia tradicional considerava que o Império Romano teria expandido a civilização para os povos bárbaros, assim como os europeus ocidentais estavam procedendo quanto às suas colônias na África e na Ásia. De uma maneira geral, os classicistas foram os grandes responsáveis por nos imputar a ideia de que somos herdeiros e beneficiários das ações civilizatórias romanas. Tal atitude é severamente criticada por Mattingly, que interpreta as atitudes romanas em relação às províncias como atos imperialistas, em muitos aspectos semelhantes àqueles perpetrados pelo Imperialismo contemporâneo. Segundo ele, o conceito de “Imperialismo” pode ser aplicado a Roma Antiga, pois Roma era um Estado excepcional na Antiguidade. A natureza das relações desiguais entre Roma e os estados conquistados, o exercício do poder e as diferentes respostas a ele indicam ao autor que o termo Imperialismo cabe bem à sua proposta de estudo. O desejo de poder é o ponto central que une todas as épocas e lugares que vivem sob um Império. Justifica-se também o uso do conceito de Imperialismo pelo fato de os administradores do Império Britânico considerarem a Roma Antiga como exemplo e modelo a ser seguido.

A maior parte das fontes que dispomos sobre Roma Antiga diz respeito aos grupos que compunham a elite. Faltam estudos que mostrem as reações e atitudes dos povos conquistados pelos romanos. As abordagens pós-coloniais estão sendo consideradas apropriadas para quem se dedica a estudar os efeitos do colonialismo e da colonização exatamente pela possibilidade de darem voz aos oprimidos. Muitos arqueólogos têm, ultimamente, utilizado esta perspectiva de análise para verificar questões relativas à identidade local. Este é o caso de Mattingly, cuja preocupação é saber como as pessoas sujeitas ao Império viviam e como esta situação afetava o seu comportamento e a sua cultura material. A partir do conceito de experiência discrepante (discrepant experience), desenvolvido por Edward Said [1], Mattingly estabeleceu o seu próprio, diferindo em certos aspectos quanto à ideia original proposta por seu criador. Said havia pensado neste conceito como definidor de uma dicotomia entre governantes e governados, onde cada um tinha a sua própria história. No entanto, Mattingly prefere usar o termo “experiência discrepante” no sentido de incorporar todos os impactos e reações ao colonialismo rejeitando a ideia de bipolaridade, no seu caso específico entre romanos e nativos (p. 29).

Ao tratar da “Romanização” Mattingly é bem claro em recusar o uso do conceito. Atualmente, muitos arqueólogos e historiadores continuam a usar o termo “Romanização” pensando, sobretudo, nas negociações entre os membros da elite local romana e o agente nativo. Entretanto, embora tenha usado este conceito no passado, Mattingly agora se mostra enfático em suas objeções a ele: seria um paradigma falho, pois possui múltiplos significados; é um termo inútil, pois implica que a mudança cultural foi unilateral e unilinear; faz parte do discurso moderno colonial; dá grande ênfase aos vestígios da elite como grandes monumentos; leva os estudiosos a adotarem posturas pró-romanas; não destaca os elementos que sugerem uma continuidade das tradições culturais da sociedade indígena; reforça uma interpretação da cultura material que é simplista e estreita (como aculturação e emulação); enfim, focaliza a atenção no grau de semelhança entre as províncias e não na diferenciação e na divergência entre elas.

No segundo capítulo, intitulado “De um colonialismo a outro: o Imperialismo e o Magreb”, Mattingly discorre a respeito de um estudo de caso da África Romana, região também marcada pela estrutura colonialista contemporânea. As pesquisas arqueológicas no Magreb (Argélia, Tunísia, Marrocos e Líbia) foram influenciadas, segundo Mattingly, pela ação colonialista de franceses e italianos, que se consideravam herdeiros dos romanos na região. A população local, de origem berbere, foi classificada como selvagem, bárbara e não civilizada. Buscando paralelos entre os imperialismos, antigo e moderno, Mattingly estabelece a existência de uma ação direta entre o exército de ocupação francês e os assentamentos romanos na região. A arqueologia foi, inicialmente, dominada por ex-militares, que procuravam vestígios de fortificações romanas. Na verdade, o que aconteceu foi que muitos sítios arqueológicos que eram áreas agrícolas na Antiguidade foram interpretados como sendo assentamentos militares romanos. Houve uma manipulação dos dados em benefício dos colonizadores.

Com o desenvolvimento dos estudos pós-coloniais, baseados em atitudes de nacionalismo e de resistência, passou-se a considerar que a africanidade estava presente nos nomes púnicos das inscrições de época romana, na religião e em outros aspectos da sociedade dominada, fato que é demonstrativo da atuação dos agentes locais que viviam sob o Império Romano. Mattingly aponta as novas perspectivas necessárias, segundo ele, para que haja o desenvolvimento da arqueologia do norte da África: os estudiosos europeus devem abandonar o discurso colonial; a fase de ocupação romana precisa ser restabelecida no Magreb como uma parte importante de sua herança cultural; é importante a criação de uma nova agenda para a arqueologia clássica na região, uma que servirá às necessidades do turismo, mas que também se preocupará com a história do Magreb e, em última instância, uma mudança na atitude da Academia criará as circunstâncias certas para a utilização da teoria pós-colonial.

A segunda parte do livro de Mattingly é dedicada ao “Poder”. No terceiro capítulo, nomeado “Mudança de regime, resistência e reconstrução: Imperialismo antigo e moderno”, o autor discorre a respeito da atuação romana frente aos seus reinos clientes. Mais uma vez procura-se associar o Imperialismo antigo e o moderno. Apesar das diferenças entre eles, Mattingly defende a ideia de que todos os impérios têm uma base comum na dominação de terras, mares e povos, cujo elemento principal é o “poder”. No final da República e início do Principado foi comum a existência de governantes clientes. Tratava-se de reis locais, que mantinham o seu poder graças ao apoio romano. Estes reinos amigos eram uma forma econômica de se conseguir recursos e extrair tributos. Entre o final do século I a.C. e início do seguinte muitos reinos clientes foram anexados por Roma. O momento de anexação coincidia com a morte do rei e a não aceitação de seu sucessor. Um exemplo famoso é o de Cleópatra Selene, filha de Cleópatra VII e Marco Antônio, casada com o rei Juba II e colocada junto com ele no trono da Mauritânia, reino que originalmente não era de seus pais. Era comum que os governantes romanos apresentassem uma imagem negativa dos reis clientes que foram por eles depostos. No caso da Britânia, Mattingly ressalta que os historiadores colocaram a culpa pela invasão romana nos governantes dos reinos clientes, sendo que os romanos tiveram a intenção de dominar a região e, por isso, incentivavam atritos entre os habitantes locais.

No capítulo seguinte, “Poder, sexo e Império” a temática principal gira em torno da relação entre corpo e poder. Para tanto, Mattingly se apropria dos estudos pós-coloniais e compara aspectos do sexo no mundo romano com as atitudes observadas nas sociedades coloniais modernas. Um assunto específico chamou a atenção do autor – a questão do poder sexual e seus efeitos na formação das atitudes sexuais romanas. Mattingly está preocupado em verificar a influência negativa do poder na sociedade romana, que causou alterações na conduta dos romanos à medida que o Império se expandiu e conquistou vastos territórios. É comum os estudiosos considerarem que as relações culturais entre Roma e suas províncias eram, em certo sentido, igualitárias. No entanto, embora Roma não fosse racista e exclusivista como as metrópoles modernas, o impacto da conquista romana sobre os povos conquistados não pode ser negligenciado. O Imperialismo Romano estava baseado em poder assimétrico, coerção, exploração e violência. Enquanto as antigas abordagens a respeito do Imperialismo Romano tendiam a considerar que os povos dominados não possuíam nenhum papel ativo no seu destino, Mattingly enfatiza que todos os atos de colaboração, participação seletiva e resistência tomava lugar na estrutura dinâmica das relações de poder.

As teorias pós-coloniais servem para observarmos a relação entre ambas sociedades – a que domina e a subjugada – também no que diz respeito ao comportamento sexual. Segundo Mattingly, o comportamento considerado bizarro de certos imperadores é, geralmente, descrito pelos historiadores, mas não analisado. E este deveria ser compreendido em um contexto amplo de sexualidades alternativas proporcionadas pela existência de sociedades coloniais. Orgias romanas míticas podem, então, ser relocadas neste discurso. As fontes romanas e o vocabulário sexual latino revelam um padrão de dominação e práticas que atravessam os limites normativos da moral, do gênero, da classe e da etnicidade. Existem paralelos, neste sentido, entre os imperialismos romano, britânico e norte-americano. Os efeitos desta prática de domínio sexual podem ser observados na população dominada. Mas outra característica importante é a corrupção psicológica da humilhação e degradação sexual – que tem sido um poderoso instrumento de sustentação das diferenças sociais entre governantes e governados nas sociedades coloniais.

A sexualidade romana, no decorrer do tempo, sofreu alterações. De uma tradição comportamental austera adquiriu aspectos eróticos jamais vistos anteriormente. Mattingly se questiona sobre o que aconteceu. A resposta é algo interno à sociedade romana ou foi resultado de seu domínio colonial? Nos primórdios da civilização romana se falava de castidade, respeitabilidade e virtude e o comportamento adequado para as mulheres da aristocracia eram o de fidelidade sexual e de modéstia. Já os homens tinham suas licenças para ter sexo fora do casamento. Com a expansão da riqueza advinda das terras conquistadas e o aumento na quantidade de escravos, a sociedade romana teria sofrido transformações também em relação ao seu comportamento sexual. O exército estabelecido fora da Itália poderia experimentar novas formas de luxúria, colocada por Mattingly em termos de bens materiais, artísticos e acesso a uma culinária diferenciada.

Mattingly propõe deslocar o fenômeno da permissividade romana para o discurso colonial, onde temos a violência e a exploração em relação à sexualidade. O poder colonial inclui exercer o poder sobre os dominados inclusive no âmbito da sexualidade. Nas sociedades coloniais a distância do colonizador da sua terra de origem e sua permanência em um lugar desconhecido favorecia a transgressão às regras. A humilhação sexual dos colonizados, homens e mulheres, era comum. No vocabulário latino e nos relatos das práticas sexuais romanas fica evidente que o falo era um símbolo de poder, além de possuir seu significado propriamente religioso de proteção e de fertilidade. Termos linguísticos para o intercurso sexual estão sempre relacionados aos soldados. É o caso de verbos como penetrar, cortar, cavar e atacar, normalmente associados ao ato sexual masculino. Tanto a vagina (cunnus) quanto o reto (culus) estavam associados metaforicamente a animais, campos, grutas e objetos domésticos. As mulheres e aqueles que se sujeitavam ao papel passivo em uma relação sexual eram considerados de status social inferior. A palavra stuprum significa, em latim, vergonha. Era, por exemplo, chamado de stuprum o ato de um homem exercer a função passiva em uma relação sexual com outro homem, o que o equiparava a um escravo.

Ao tratar das relações de poder Mattingly nos remete às ideias de Michel Foucault (p. 102-103). A sexualidade não é considerada como uma condição natural e sim como produto das relações de poder e resultado do efeito de operações historicamente específicas de diferentes regimes de poder sobre o corpo. Embora Mattingly concorde com Foucault no sentido de considerar a existência de múltiplas formas de relações de poder, discorda deste pela não observação dos fatores que se opunham ao poder. Esta crítica a Foucault foi apresentada primeiramente por Said, preocupado com questões relativas à resistência ao poder dominante. Geralmente, quando se estuda sexo e desejo no mundo antigo não se faz pelo viés das relações de poder e sob a ótica do Colonialismo e do Imperialismo, tarefa a que Mattingly se propõe neste capítulo.

A terceira parte do livro aborda a temática “Recursos”. A questão relativa à economia e à exploração dos recursos das áreas conquistadas é central nos três capítulos que consideraremos a seguir. No capítulo V, denominado “Regiões governadas, recursos explorados”, Mattingly retoma um antigo debate a respeito da economia antiga. Durante muito tempo a historiografia foi dominada pelas ideias de Moses Finley, para quem a economia antiga não poderia ser considerada de mercado ou capitalista como queria alguns autores marxistas, entre eles Michael Rostovtzeff (p. 125). Finley seguia, neste sentido, as ideias desenvolvidas por Karl Polanyi, que postulou o conceito de uma economia “embededd”, imbuída em todas as esferas da sociedade. Estas opiniões divergentes polarizaram o discurso em dois matizes: os formalistas e os substantivistas. Os primeiros considerando a existência de uma economia de mercado, de cunho racionalista e, os últimos, sendo partidários de uma economia primitiva. Mattingly defende que a economia romana possuía ambos os aspectos, primitivo e progressivo, sendo uma economia híbrida. O objetivo de Mattingly é focalizar sua pesquisa no papel do Estado como motor da atividade econômica através de seu status de poder imperial. Sua análise parte das questões atuais a respeito do discurso colonial e não se define pela teoria econômica.

No capítulo VI, “Paisagens do Imperialismo. África: uma paisagem de oportunidade?”, Mattingly aborda uma temática recorrente nas pesquisas arqueológicas atuais, que diz respeito aos estudos da paisagem. A África seria, neste sentido, uma paisagem da oportunidade para os romanos. Pelo trabalho arqueológico foi possível, segundo o autor, identificar o crescimento econômico intensivo nas províncias da África Proconsular e a Numídia, entre os séculos II e IV d.C. Enquanto esta província cresceu, outras, como a da Acaia, diminuiu após a conquista romana. As paisagens provinciais foram o produto de processos complexos de coerção, negociação, acomodação e resistência, sendo exploradas tanto pelos colonizadores como também pela população nativa.

Em “Metais e Metalla: paisagem de uma mina de cobre romana em Wadi Faynan, Jordânia”, capítulo VII, o enfoque está colocado sobre a paisagem desta importante mina de cobre romana, cuja exploração intensiva tinha por objetivo manter o exército romano e o próprio império. Em comparação com as atividades industriais atuais, Mattingly salienta que a poluição causada ao meio-ambiente derivada desta ação humana passada permanece na localidade até os dias de hoje, sendo muito comum a contaminação do solo com chumbo, o que afeta a produção de alimentos e causa doenças em pessoas e animais. Estudos de caso como este de Mattingly são importantes, pois revelam a existência de vários tipos de relações de trabalho nas minas exploradas pelos romanos. Era comum que em uma mesma mina trabalhassem escravos e homens livres. Enquanto na mina de Wadi Faynan prevaleciam indivíduos condenados a trabalhos forçados, geralmente oriundos de populações que tinham se rebelado contra Roma, outras minas como as de granito e pórfiro do Egito (Monte Porfirius e Monte Claudianus) possuíam trabalhadores contratados, que recebiam salário.

“Identidade” é a temática da quarta parte, dividida em dois capítulos. No capítulo oitavo, intitulado “Identidade e Discrepância”, Mattingly apresenta uma nova abordagem para explicar a mudança cultural, que oferece uma alternativa àquela da Romanização. A história tradicional considerava as áreas conquistadas como tendo um papel passivo frente à civilização romana. Uma postura corrente nos estudos atuais, adotada, por exemplo, por autores como Martin Millet e Greg Woolf (p. 206), é considerar o papel ativo das elites locais que estavam sob o domínio imperial romano. Enquanto os membros pertencentes à elite adotavam a língua latina e os novos tipos de vestimenta, adornos e um comportamento romano, aqueles das camadas mais humildes teriam uma experiência mais diluída da Romanização. No entanto, para Mattingly, este modelo falha por considerar que a maioria da população nativa era passiva frente ao Império Romano. Mattingly conclui que, como a identidade está relacionada ao poder, a criação das identidades provinciais não pode ser tomada isoladamente da negociação de poder entre o Império Romano e os povos conquistados. E o que falta no modelo de Romanização é saber como as dinâmicas do poder operam tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima. Outra abordagem que busca se diferenciar dos estudos tradicionais foi proposta por Jane Webster com o uso do termo “crioulização” (p. 203-204), com a finalidade de visualizar na cultura material vestígios da cultura escrava crioulizada. Mattingly acredita que o uso deste termo é perigoso, pois acabamos por substituir um conceito elitizado, o de Romanização pelo seu oposto, que prioriza os indivíduos de baixo status social. Segundo ele, uma abordagem que combine ambos os lados se faz necessária.

Como observar esta diversidade em uma pesquisa arqueológica? Mattingly retoma as ideias de Sian Jones [2], que defende ser a etnicidade uma forma de identidade que a sociedade constrói (p. 209-210). A solução de Jones para este problema é focar a pesquisa nas culturas locais e comparar grupos de sítios como assentamentos rurais e fortes romanos, por exemplo. Ao trabalhar com estudo de caso de sítios rurais ela demonstra que havia considerável diversidade, que era obscurecida pelo modelo de Romanização com sua tendência em enfatizar a homogeneidade. Mattingly tem dúvidas em dar à etnicidade muita importância nos estudos sobre identidades passadas, mas sabe que tanto no mundo grego quanto no romano os discursos de etnicidade tinham um importante papel. Se a etnicidade era um dos pontos de significância para marcar a identidade, a evidência arqueológica sugere que ela não era uma constante no tempo e no espaço.

Para Mattingly, a identidade deve ser estudada em termos de poder e de cultura. E embora considere a importância do agente ativo nativo na mudança cultural sabe que há limites sobre a habilidade de escolher nossa identidade aos olhos dos outros. Enquanto o processo de conquista e assimilação ao Império Romano promoveu uma delineação profunda de identidades étnicas, vários fatores militaram contra a manutenção disto na longa duração. A identidade étnica dificultava e criava uma barreira para estas sociedades negociarem com Roma. As distinções étnicas, que tornaram-se grandes e significantes durante o processo de expansão imperial, foram, mais tarde, diminuídas como estratégias múltiplas para lidar com a identidade individual e comunal. A construção romana de identidade étnica servia ao propósito de facilitar a violência colonial, ao passo que a nativa servia como forma de resistência durante a fase de conquista.

A heterogeneidade de respostas a Roma não era uniforme e variava conforme o local. Alguns estudos recentes de identidade têm empregado o termo hibridização para definir o resultado do contato cultural entre romanos e nativos. Mattingly, ao priorizar a diferença ao invés da semelhança, defende a utilização do termo “discrepante”, que indica “discordância” e “desarmonia”. O ponto é que as sociedades provinciais romanas poderiam algumas vezes exibir discordância cultural assim como similaridades, que são geralmente celebradas por meio da teoria da Romanização. A principal preocupação do autor é mostrar que os indivíduos e os grupos no período romano foram multifacetados e dinâmicos. O que foi previamente descrito como Romanização representa as interações de múltiplas tentativas de definir e redefinir a identidade.

“Identidade discrepante” possui similaridades com os trabalhos que usam o conceito de agência e teoria da estruturação.[3]Estas teorias enfatizam as escolhas do sujeito na estrutura social (p. 216-217). Mas, no caso de sistemas imperiais, há uma limitação nesta escolha. Então, é preciso balancear o conceito de agência com um exame profundo das influências estruturais. Um ponto a considerar é que as estruturas imperiais afetam os atores locais de diferentes maneiras. Os impactos imperiais sobre as áreas dominadas podem ser observados, geralmente, por meio de atos intencionais perpetrados pelo Império Romano e o consequente comportamento dos sujeitos afetados. Alguns fatores importantes a se considerar pelo pesquisador são elencados por Mattingly (p. 217): 1) o status social (escravos, livres, libertos, bárbaros, cidadãos romanos, não cidadãos etc.); 2) riqueza – as formas de produção econômica (economia de subsistência, de mercado etc.); 3) localização (espaço urbano, rural, zonas civil, militar etc.); 4) trabalho (artesãos, membros de guildas, soldados do exército etc.); 5) religião – sobretudo as seitas exclusivistas como o Mitraísmo, os Cultos de Mistério, Judaísmo e Cristianismo); 6) origem (geográfica ou étnica, tribal etc.); 7) associação por serviço ou profissão ao governo imperial (ou não); 8) aqueles que viviam sob lei civil ou marcial; 9) linguagem e literatura; 10) gênero e 11) idade.

Mattingly exemplifica sua proposta de encaminhamento de pesquisa arqueológica com os dados provenientes da Britânia e do norte da África. Sua abordagem inicial para o estudo da Britânia foi isolar as evidências da comunidade militar, da população urbana e das sociedades rurais. Um dos vestígios mais prementes para observar a identidade discrepante diz respeito à religião, pois é uma esfera recorrente para a marcação de diferenciação social. A religião romano-britânica tem sido frequentemente apresentada como um amálgama de práticas romanas importadas e práticas nativas britânicas temperadas com influências galo-germânicas. Segundo Mattingly, a distribuição dos vestígios de certas práticas em santuários como a presença de altares e de inscrições com maldições são indicadores de que a religião estava associada à identidade social. O exército, por exemplo, tinha cultos muito diferentes daqueles dos civis. Enquanto nas áreas militares predominavam santuários romanos em outras comunidades os templos possuíam características celtas. Inscrições funerárias também servem para demonstrar as diferentes identidades do indivíduo no decorrer do tempo. Por exemplo, o relevo funerário de Regina, esposa de um mercador ou soldado de Palmira que vivia na Britânia, a retrata como uma respeitável matrona romana. Na representação iconográfica ela aparece usando vestimentas e adornos símbolos deste status social. No entanto, pela inscrição da lápide, em texto bilíngue, ficamos sabendo que antes do casamento Regina havia sido escrava de seu futuro marido (p. 218, fig. 8.3).

Em comparação com a Britânia a África era mais rica e próspera, possuindo maior quantidade de inscrições latinas. Léptis Magna, por exemplo, era uma grande cidade da Tripolitânia, habitada por líbios-fenícios, oriundos de casamentos mistos entre fenícios (púnicos, originários de Cartago) e líbios. A identidade púnica era muito parecida com a dos egípcios que viviam sob o domínio romano: servia à elite provincial que circulava pelas estruturas do poder romano, assim como era um marco da identidade local. A cultura material de cunho funerário como estelas, tipos de enterramento e inscrições bilíngues é demonstrativa deste tipo de comportamento.

O último capítulo, o nono, denominado “Valores familiares: Arte e Poder em Ghirza no pré-deserto líbio”, trata da relação entre arte e poder. Nos estudos historiográficos sobre a arte romana normalmente a arte das províncias é retratada como inferior, como sendo uma imitação inadequada daquela produzida no centro do Império. Não havia a preocupação em indagar qual iconografia ou estilo servia aos propósitos indígenas. Faltava também aos historiadores de arte considerar que na Antiguidade não existia separação entre arte e artesanato e também não havia um padrão estético que valesse para todo o Império Romano. A arte era usada por diferentes grupos na sociedade para expressar relações de poder. A arte oficial romana, que se expandia a todas as camadas da sociedade, servia para dar suporte à dominação imperial. No entanto, sabemos que a interpretação da iconografia dependia do contexto e da audiência. Para Mattingly, a adoção do estilo romanizado facilitou a continuação das tradições indígenas.

As tumbas de Ghirza, na Líbia, servem para exemplificar esta questão. Interpretadas à luz da arte romana eram vistas como degenerativas pelos escritores do século XIX e início do XX. Para Mattingly, estas tumbas devem ser consideradas não apenas como monumentos aos mortos, mas também como estruturas que tinham uma continuidade na significância religiosa dos vivos. O objetivo principal de Mattingly, nesta sua pesquisa, foi relacionar a imagética presente nas tumbas com as redes de poder construídas ao redor dos membros vivos e mortos das principais famílias de Ghirza. Sua hipótese é de que existiam duas famílias principais da elite em Ghirza, que procuravam demonstrar poder e status social por meio dos enterramentos e da iconografia funerária. Os chefes das famílias aparecem retratados nas tumbas com cetros e outros elementos simbólicos associados ao poder: vestimentas e adornos, cavalos, cães etc. As mulheres, por sua vez, aparecem representadas usando joias romanas. No entanto, Mattingly conclui que os retratos seguiam o padrão de representação púnico e serviam ao culto ancestral líbio.

Esta série de ensaios de David Mattingly é elucidativa do caminho que a arqueologia romana tem percorrido nos últimos tempos. O conceito de Romanização tem sido colocado em xeque e debatido em vários sentidos. Por isso mesmo, vem sendo utilizado com cautela no sentido de ser uma via de mão dupla, que permita vislumbrar não apenas a ação romana nas províncias, mas também as respostas dos sujeitos subordinados ao Império Romano. O desenvolvimento da teoria pós-colonial foi imprescindível para que vários arqueólogos e historiadores passassem a adotar uma postura mais crítica em relação à Romanização. Este livro de Mattingly é importante no sentido de trazer luz ao debate atual e por propor novas diretrizes para arqueologia romana. O caráter do Imperialismo e Colonialismo romanos, seu impacto econômico, a operacionalidade do poder nas sociedades coloniais e o modo como os indivíduos sob governo imperial construíram suas identidades são pontos-chave de sua proposta (p. 269).

A existência de um “Imperialismo Romano” é defendida enfaticamente no decorrer da obra, sendo que Mattingly não considera que haja problemas na utilização de termos como “Império”, “Imperialismo”, “Colonialismo” e “Colonização”, quando se trata de Roma Antiga. Os estudos sobre Roma foram pautados, no passado, pelo discurso colonialista europeu do final do século XIX e início do XX, do qual os norte-americanos foram herdeiros. Tal fato afetou toda a produção historiográfica que se dedicava aos estudos do Império Romano e possui repercussões até hoje. A teoria da “Romanização” é rejeitada e por meio das abordagens pós-coloniais outros aspectos da sociedade romana podem ser observados, segundo o autor: o dinamismo de seu Imperialismo e Colonialismo; a questão do poder, central para a compreensão da relação entre Roma e suas províncias; a existência de uma “economia imperial”, sendo o vetor econômico pautado pela exploração de recursos um dos pontos que caracteriza o Imperialismo Romano e, por fim, o conceito de “Identidade”, que pode ser usado para se estudar a diversidade e o hibridismo resultado do contato entre romanos e nativos.

Além das proposições teóricas propriamente ditas, Mattingly apresenta sua metodologia de pesquisa, que se detém em interrogar o registro arqueológico procurando exemplos de diferenças no uso da cultura material com o objetivo de saber se tais ocorrências podem ser atribuídas a práticas sociais distintas que foram sendo usadas para expressar noções de identidade na sociedade. O método, derivado da proposta de Sian Jones, está relacionado à abordagem da Arqueologia pós-processual, cuja preocupação com o contexto arqueológico e as questões de status social e poder definem bem este paradigma científico. Desta forma, as “experiências” que se busca traçar do Império Romano estão relacionadas aos vários tipos de ações de Roma e às múltiplas respostas ao Império, que são condicionadas pela região e o período que estivermos analisando. Os estudos arqueológicos permitem esta consideração do contexto para a verificação da atuação das identidades locais. Mattingly exemplifica com suas pesquisas realizadas no Norte da África e Britânia. Mas sua metodologia, resguardadas as diferenças regionais, pode ser aplicada para o Império Romano como um todo.

Alguns autores podem fazer críticas ao modelo de Mattingly pela sua ênfase na questão da diferença e da não uniformidade do Império Romano e, sobretudo, pela sua comparação da atitude imperial romana com a ação imperialista das nações contemporâneas. Ele seria anacrônico ao tomar a experiência de épocas recentes para tentar entender os romanos? Mattingly, em suas considerações finais, tem plena consciência deste fato e se defende dizendo ter uma postura crítica analítica e não se interessar em construir um Império Romano totalmente negativo, em contraposição aos estudos mais antigos, que vangloriavam a grandeza de Roma (p.274-275). Concordo com o autor neste aspecto. A abordagem pós-colonial trouxe novas perspectivas para entendermos situações de colonização e ações imperialistas. Sua utilização em conjunto com a análise do contexto local, por meio de comparações de sítios arqueológicos e da cultura material, é que traz o equilíbrio necessário ao desenvolvimento da pesquisa. É por meio desta combinação de teoria e dados que poderemos tomar ciência da grande diversidade que constituía o Império Romano.

Notas

1. SAID, Edward W. Culture and Imperialism. London: Vintage, 1993. Edição brasileira: SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

2. JONES, Sian. Archaeology of ethnicity: Constructing identities in the past and present. London: Routledge, 1997.

3. A referência principal do autor para a Teoria da Estruturação é derivada das ideias de Anthony Giddens, em sua obra: GIDDENS, Anthony. The constitution of society: Outline of a theory of structuration. Cambridge: Polity Press, 1984.

Marcia Severina Vasques – Professora Adjunta do Derpartamento de História – UFRN. Doutora em Arqueologia – USP.


MATTINGLY, David. Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire. Princeton: Princeton University Press, 2011. 342p. Resenha de: VASQUES, Marcia Severina. Revista Porto. Natal, v.1, n.2, p.136-149, 2012. Acessar publicação original [IF].

Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI / Giovanni Arrighi

Para o leitor bem informado o esforço de ler uma nova resenha de um livro editado em 2008 deve parecer inútil, ainda mais se outras resenhas sobre esse livro já tiverem sido feitas. Embora se deva esperar que muitas pessoas não tenham lido Adam Smith em Pequim nem suas resenhas, deixe-me oferecer uma recompensa para quem o leu. Ofereço-lhe uma resenha das outras resenhas, brasileiras e estadunidenses, desse livro. É um movimento surpreendente? Pouco atraente? Qual a minha intenção? Explico: quero instigar tanto a releitura quanto a leitura de Adam Smith em Pequim informando antigos e novos leitores das diferentes recepções desse livro nos dois países.

Deve-se esperar isto de uma resenha? Não, se buscarmos o Aurélio, pois nele encontramos uma definição muito restrita da palavra ‘Resenha’: “relato minucioso, enumeração, descrição pormenorizada”. Contudo, entendo que deveríamos nos deixar levar pelas definições mais amplas do termo latino ‘Resigno’, que é traduzido como: “rasgar o selo, abrir uma carta ou um testamento; violar o segredo; desvendar, descobrir; anular, cancelar, rescindir, romper, violar; entregar; renunciar, resignar”. Por esta definição do termo original, pode-se dizer que quem resenha, desvela e desvenda, mas também renuncia e resigna. Se resenharmos as resenhas antigas desvelaríamos seus segredos, violaríamos suas renúncias? Talvez.

Se começarmos nosso exercício pela ‘Apresentação’ escrita pelo economista Theotonio dos Santos para ‘Adam Smith em Pequim’, podemos observar que, em lugar de apenas expor a obra e o seu autor, Santos se preocupou mais em resenhar o livro para o leitor brasileiro. Nomeada ‘No rastro de Giovanni Arrighi’, a apresentação foi, portanto, a primeira resenha de Adam Smith em Pequim no Brasil, primus inter pares, uma vez que os brasileiros são levados a lê-la antes do texto de Arrighi. Estes são logo advertidos do “abismo que vem se cavando entre a intelectualidade brasileira e o pensamento de esquerda mundial” e que a obra “é dedicada a Andre Gunder Frank, conhecido no Brasil apenas por seu livro de 1966 (!) [sic] sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento”. Trabalhando o que chama de “alegoria teórica” de Arrighi, a saber, o paradoxo da China e a Inglaterra do XIX e XXI poderem servir como representações das doutrinas de Adam Smith e Marx, Theotonio dos Santos apontou que a crise do projeto imperialista estadunidense teria a ver com a resolução do paradoxo, pois em nosso século se engendraria um acomodamento entre o “novo hegemón”, a China, ou um “enfrentamento radical” desse país com os Estados Unidos que “nos faria voltar ao período da Guerra Fria ou, pior ainda, ao princípio do século XX […]”.[1]

Influenciado pelo raciocínio anterior, a resenha feita pelo embaixador Amaury Porto de Oliveira também apontou que a publicação de Adam Smith em Pequim no Brasil veio corrigir o “atraso com que tem a intelectualidade brasileira tomado conhecimento dos esforços de toda uma plêiade de cientistas sociais, nos EUA, na Europa e no Leste Asiático, com vistas ao melhor entendimento de aspectos fundamentais do mundo moderno”. Continuando na argumentação historicista de Theotonio dos Santos, Oliveira explicou que o objetivo principal de ‘Adam Smith em Pequim’ é responder se a China atual estaria em “rota de transição para o Capitalismo” e que Arrighi trabalha o problema por meio de seu paralelo com o período da dinastia Qing. Assim, os dois períodos históricos se distinguiriam exatamente pelo socialismo, “a integração na modernidade sociológica trazida pela Revolução de 1949, de cuja dinâmica não se desligou Deng Xiaoping”.[2]

No mesmo rastro historicista, o sociólogo Antônio José Escobar Brussi, desenvolveu a compreensão de que ‘Adam Smith em Pequim’ proporia que a liderança chinesa se ancorava numa legitimidade teórica e moderna avant la lettre, a partir do que entendeu ser a questão central do trabalho de Arrighi – apontar a “incontrastável decadência” estadunidense e a ascensão chinesa enquanto “mensageira de maior igualdade e respeito mútuo entre europeus e não europeus… (ponto que) que Smith antecipou e defendeu 230 anos atrás.”[3] Nesse caminho, Wagner de Melo Romão escreveu que “a crise de hegemonia norte-americana não se refere apenas à perda de credibilidade de sua posição como força invencível ou à sua débâcle econômico-financeira”, assim como “o próprio american way of life, que sustentou a pujança consumista da maior economia do mundo e a admiração de populações de todos os países, aparece como o grande responsável pela devastação ecológica de nosso tempo”. Nesse sentido, Romão entendeu que a China poderia se tornar um modelo para o mundo.[4] Finalmente, esse entendimento foi mais afinado por Marina Scotelaro de Castro e Rodrigo Correa Teixeira, na medida em que apontaram que Arrighi colocaria que a expansão chinesa já estaria sendo contida pelos Estados Unidos e que a liderança da China constituía “uma nova ordem internacional mais favorável aos povos do hemisfério sul”.[5]

Contudo, a compreensão brasileira de que ‘Adam Smith em Pequim’ anuncia a nova liderança mundial chinesa, mais benévola porque moderna e socialista, difere grandemente da compreensão da esquerda estadunidense, problema importante por conta dos intelectuais estadunidenses fazerem parte daquilo que os autores das resenhas brasileiras evocaram como “o novo pensamento da esquerda mundial”.

No final de 2008, dezesseis meses depois da publicação de ‘Adam Smith em Pequim’ [6] o Journal of World-Systems Research iniciou uma chamada de artigos para discutir o livro a partir de sua resenha, visando um debate que deveria ser subsidiado pelo próprio Giovanni Arrighi caso este não houvesse falecido em junho de 2009. A despeito disto, os artigos foram publicados já na edição do segundo semestre de 2009 do Journal of World-Systems Research.

No caso, verificamos existir uma convergência de todos os artigos em torno de um ponto, a ideia de que Giovanni Arrighi possuía uma compreensão continuada do problema da transição do atual ‘ciclo de acumulação sistêmica’, uma dimensão do pensamento arrighiano que seria mais desenvolvida pelo próprio Journal of World-Systems Research em dossiê do primeiro semestre de 2011.[7] Assim, ‘Adam Smith em Pequim’ deveria ser entendido como uma continuação das duas obras principais de Giovanni Arrighi, a saber, O longo século XX e Caos e Governabilidade e que nesta compreensão Arrighi se encontrava em diálogo com outros autores que trabalhavam a partir da perspectiva do Sistema Mundo, dentre os quais Andre Gunder Frank.

Partindo deste enfoque, podemos notar para nosso leitor que em O longo século XX, [8] escrito em 1994, Arrighi já entendia que o ciclo sistêmico de acumulação estadunidense e o poder hegemônico dos Estados Unidos estariam dando lugar a um novo ciclo, desta vez Asiático. Giovanni Arrighi citava o Japão como o país capaz de localizar o núcleo da transição sistêmica, mas, ao mesmo tempo, salientava que o Japão não preenchia todos os pré-requisitos para a transição completa do centro da Economia-Mundo. Já no livro Caos e Governabilidade, [9] publicado nos Estados Unidos em 1999, Giovanni Arrighi continuaria demonstrando a compreensão de que as hegemonias ocidentais deveriam ser entendidas numa perspectiva histórica mais ampla e que estas hegemonias se realizaram posteriormente a um ciclo sistêmico desenvolvido na Ásia, especificamente na China, e que a retorno do centro dinâmico da Economia-Mundo para esse continente dependeria do “surgimento de uma nova liderança global nos centros principais da expansão econômica do Leste da Ásia”, posição em que o Japão poderia se encaixar.

Assim, o livro Adam Smith em Pequim consolidaria uma visão já longamente esboçada desde 1994, que previa a transição do ciclo sistêmico de acumulação estadunidense para a Ásia, mas apenas neste livro o papel da China seria mais bem clarificado. Analisando as origens e dinâmicas da ascensão chinesa, Arrighi procura recuperar determinados conceitos que já haviam sido esboçados por Adam Smith em A Riqueza das Nações, no caso, para defender a ideia de que a China teria realizado o chamado ‘caminho natural’ para a riqueza nacional. Este poderia ser visualizado no gradualismo do desenvolvimento econômico e no papel central do Estado, gerenciando as reformas de mercado e promovendo objetivos particulares, especialmente o resguardo da estabilidade social. Nesse raciocínio, poder-se-ia reconhecer atitudes e dinâmicas já profundamente enraizadas na história chinesa e que demonstrariam o papel central da China no desenvolvimento da Ásia Oriental, interrompido pela subordinação da região a um regime de acumulação centrado na Europa.

Voltando aos artigos do Journal of World-Systems Research, podemos observar que Robert A. Denemark, único a centrar seu raciocínio no diálogo com Andre Gunder Frank, colocou que a ascensão asiática não estava relacionada ao socialismo, mesmo porque o socialismo não deveria ser compreendido enquanto um par comparativo com o capitalismo, uma vez que Arrighi, tal como Frank, teriam passado a considerar o capitalismo apenas como um sistema local ou regional e não mais como um sistema explicativo global.[10]

Em entendimento semelhante, Ganesh Trichur e Steven Sherman apontaram a impossibilidade de predizer se a China assumiria a liderança global, embora ressaltassem que a estrutura civilizacional e a sociedade de mercado daquele país seriam um fator chave na reestruturação das relações internacionais.[11] Essa incerteza foi também reforçada por Jennifer Bair, a partir de constatar a incapacidade de se definir os próprios passos da política chinesa.[12] Thomas E. Reifer, salientando a complexidade do trabalho de Arrighi, colocou que seu objetivo fora oferecer uma interpretação do deslocamento do epicentro da economia política global para a Ásia Oriental.[13] Por sua vez, John Gulick enfatizou que a China poderia formar uma comunidade de estados na Ásia Oriental, mas sem que se constituísse ali um centro dominante.[14] Dentre todos os intelectuais participantes do debate promovido pelo Journal of World-Systems Research, apenas Gary Coyne colocou a ideia de que poderia surgir, a partir dessas transformações, uma “comunidade de civilizações” [meu grifo] baseada em nações que respeitassem o direito de todos.[15]

Em reforço às compreensões dos estadunidenses, a recém-publicada entrevista de Giovanni Arrighi no mesmo Journal of World-Systems Research, mostra que ele considerava que a China não poderia ser um modelo para outras regiões e que, quanto ao controle do poder político nesse país, Arrighi acreditava que a hipótese mais plausível era a de que o Estado não estivesse sob o controle estrito de nenhum dos atores tradicionais, dentre os quais o Partido Comunista.16

Portanto, velhos e novos leitores de Adam Smith em Pequim, acredito que a diferença de foco e da compreensão entre as resenhas brasileiras e as estadunidenses nos instiga uma primeira leitura ou a releitura desse complexo e inteligente livro, seja porque nele se aventa uma das chaves para a compreensão das transformações do XXI, seja porque nos permite entender certos afastamentos entre os intelectuais brasileiros e os estadunidenses.

Notas

1. SANTOS, Theotonio. Apresentação – No rastro de Giovanni Arrighi. In: ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, p. 9-12.

2. OLIVEIRA, Amaury Porto de. Resenha de “Adam Smith em Pequim”, de Giovanni Arrighi, por Amaury Porto de Oliveira. Blog de Theotonio dos Santos. Disponível em: <http://theotoniodossantos.blogspot.com.br/2009/10/resenha-de-adam-smith-em-pequim-de.html>. Acesso em: 10 de outubro de 2012.

3. BRUSSI, Antônio José Escobar. A pacífica ascensão da China: perspectivas positivas para o futuro? Revista Brasileira de Política Internacional, v.51, n.1, Brasília, 2008, p. 187-191.

4. ROMÃO, Wagner de Melo. Resenha de Giovanni Arrighi, Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. Tempo Social USP, v. 21, n. 1, jun. 2009.

5. CASTRO, Marina Scotelaro de; Teixeira, Rodrigo Correa. Adam Smith em Pequim, por Giovanni Arrighi. Conjuntura Internacional – PUC Minas. Ano 8, n. 11, 17 a 30 set. 2011.

6 ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. Originalmente publicado em inglês no ano de 2007.

7. ‘The World-Historical Imagination: Giovanni Arrighi’s The Long Twentieth Century in Prospect and Retrospect’ Ed. Jason W. Moore In Journal of World-Systems Research’, v. XXVII, n. 1, 2011.

8. ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX. São Paulo: UNESP, 1996.

9. ARRIGHI, Giovani; SILVER, Beverly J. Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2001.

10. DENEMARK, Robert A. World System History: Arrighi, Frank, and the Way Forward. Journal of World-Systems Research, v. XV, n. 2, 2009, p. 233-242.

11. TRICHUR, Ganesh; SHERMAN, Steven. Giovanni Arrighi in Beijing. Journal of World-Systems Research, v. XV, n 2, 2009, p. 256-263.

12. BAIR, Jennifer. The New Hegemon? Contingency and Agency in the Asian Age. Journal of World-Systems Research, v. XV, n. 2, 2009, p. 220-227.

13. REIFER, Thomas E. Histories of the Present: Giovanni Arrighi & the Long Duree of Geohistorical Capitalism. Journal of World-Systems Research, v. XV, n. 2, 2009, p. 249-256.

14. GULICK, John. Giovanni Arrighi’s Tapestry of East & West. Journal of World-Systems Research, v. XV, n. 2, 2009, p. 243-248.

15. COYNE, Gary. Natural and Unnatural Path’. Journal of World-Systems Research, v. XV, n. 2, 2009, p. 228-232.

16. Interview with Giovanni Arrighi “At Some Point Something Has To Give” – Declining U.S. Power, the Rise of China, and an Adam Smith for the Contemporary Left, by Kevan Harris’ In Journal of World-Systems Research, v. 18, n. 2, Summer 2012, p. 157-166.

Renato Amado Peixoto – Professor Adjunto do Derpartamento de História –
UFRN. Doutor em História – UFRJ.

ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. Tradução de Beatriz Medina: Boitempo, 2008. 448p. Resenha de: PEIXOTO, Renato Amado. Adam Smith Reloaded. Revista Porto. Natal, v.1, n.2, p.130-135, 2012. Acessar publicação original [IF].

 

A Companhia de Jesus na Índia (1542-1622): actividades religiosas, poderes e contactos culturais – MANSO (HU)

MANSO, M. de D.B. A Companhia de Jesus na Índia (1542-1622): actividades religiosas, poderes e contactos culturais. Macau: Universidade de Macau e Universidade de Évora, 2009. 274 p. Resenha de: AMANTINO, Marcia. A Companhia de Jesus na Índia (1542-1622): atividades religiosas, poderes e contactos culturais. História Unisinos 15(3):466-467, Setembro/Dezembro 2011.

O livro A Companhia de Jesus na Índia (1542-1622): actividades religiosas, poderes e contactos culturais, da professora Maria de Deus Beites Manso, é uma importante contribuição aos estudos que buscam entender os diferentes papéis desempenhados pelos jesuítas em áreas variadas do vasto império colonial português. A proposta da autora é analisar o que representou a chegada dos padres da Companhia de Jesus no Oriente em 1542 a partir dos trabalhos apostólicos de Francisco Xavier e identificar como agiram para conviver com grupos sociais tão heterogêneos como os encontrados na região. Sua análise restringe-se até as primeiras décadas do século XVII, momento da criação da Propaganda Fide e do envio de missionários não mais por Lisboa, mas sim pelas Missões estrangeiras de Paris.

A obra apresenta ao longo de sete capítulos os avanços e recuos nas relações entre os religiosos da Companhia de Jesus, as autoridades coloniais, as outras ordens religiosas e as diferentes etnias que formavam a complexa sociedade que ocupava a região conhecida hoje como Índia. Resultado de antigas e sucessivas invasões e migrações, a sociedade local apresentava-se pluriétnica com inúmeras religiões e suas variantes, mas com claro predomínio do hinduísmo e do islamismo. Além destas características religiosas e, em função delas, assistia-se também a variadas organizações políticas e econômicas. Os jesuítas e mesmo o poder político português tiveram que se adaptar, negociar e, em muitos casos, guerrear para conseguir impor suas determinações. E mesmo assim, nem sempre conseguiram. De qualquer forma, a associação entre os interesses portugueses e missionários era clara e se confundia. Um dependia do outro para permanecer nas regiões abordadas. Poder religioso e poder temporal se mesclavam, criando situações onde o papel dos jesuítas, à frente das populações que visavam catequizar, às vezes não ficava muito claro.

Na realidade, segundo a autora, a presença portuguesa e, consequentemente, jesuítica na região ficou restrita basicamente a Goa e a Malabar. O jesuíta Francisco Xavier chegou a Goa em 1542. Três anos depois, fundava o Colégio Jesuítico de São Paulo e, a partir daí, assistiu-se a uma disseminação destes religiosos pelo território. O primeiro colégio em Malabar foi fundado em 1560. As duas regiões apresentavam condições bastante diversas para o trabalho dos jesuítas. Na primeira, ainda que com dificuldades variadas, conseguiram criar uma cidade cristã com diversos colégios e residências que tinham como objetivo também preparar novos religiosos que fossem capazes de continuar a missão catequética. Em Malabar, a situação era outra. Tratava-se de uma área de intensos contatos e convívios com populações variadas, dominada por membros ligados ao islamismo e ao hinduísmo que dificultaram ao máximo e chegaram mesmo, em alguns momentos, a impedir o trabalho catequético dos inacianos.

É importante destacar que a autora aponta para o fato de que os inacianos não foram a primeira ordem a chegar a esta região do Oriente. Antes deles, os franciscanos já estavam presentes, mas, devido ao tipo de preparação que possuíam, poucos avanços haviam conseguido com as populações locais. Os jesuítas chegaram com o apoio total do rei D. João III certos de que conseguiriam avançar a colonização e o cristianismo nestas paragens. Entretanto, também sofreram muitas derrotas e não conseguiram, com exceção de Goa, implantar efetivamente uma sociedade cristã modelar na região. De acordo com Maria de Deus Manso, muitos se convertiam apenas para garantir a sobrevivência ou ainda ter uma chance de sair do intricado e impeditivo sistema de castas.

Complicando ainda mais esta complexidade étnica e cultural, havia também os cristãos de São Tomé. Estes seguiam o cristianismo com alguns dogmas modificados. A tarefa dos religiosos de Santo Inácio era convencê-los a abandonar estas variantes consideradas heréticas e adotar a verdadeira religião. Pouco ou nenhum avanço conseguiram, e, através do Sínodo de Diampaer, ocorrido em 1599, os cristãos de São Tomé foram considerados heréticos.

De qualquer forma, a vida dos jesuítas na Província da Índia não foi nada fácil. A autora argumenta que estes religiosos tiveram que lidar com quatro realidades sociais e políticas claras que pautavam as missões no Oriente: havia aquelas voltadas apenas para atender às necessidades espirituais de populações ocidentais e cristãs; havia missões que buscavam catequizar populações locais nos territórios controlados pelos portugueses; as que pretendiam evangelizar povos sob o contato direto dos islâmicos; e, por último, as missões que se destinavam a evangelizar as populações precisando para isto se adaptar aos valores locais devido à força destes grupos.

Os jesuítas utilizaram inúmeras formas de atrair as populações locais para a cristandade. Negociaram, cederam, adaptaram seus dogmas e também guerrearam quando preciso. Usaram o poder econômico que possuíam para promover festas suntuosas que se aproximavam do que as populações conheciam como “festividades religiosas”. Com estas festas, procuravam demonstrar serem poderosos, generosos e capazes de auxiliar a população mais pobre. Como resultado, conseguiram converter uns poucos membros das elites e alguns mais das categorias sociais mais baixas. Além destes, as mulheres pobres também foram um grupo onde os padres conseguiram avançar um pouco mais em função de sua situação social inferior no sistema de castas.

A partir do início do século XVII, momento também caracterizado por uma grave crise econômica, começaram ou se intensificaram radicalmente as reclamações contra os jesuítas e o poder econômico da ordem. Se, por um lado, este crescimento econômico alcançado pelos religiosos contribuiu para aumentar o prestígio e, consequentemente, atrair seguidores, por outro, deixou-os vulneráveis às reclamações de seus contrários, inclusive, de outros religiosos. Desde que chegaram ao Oriente, houve “uma sistemática apropriação e transferência das rendas e terrenos dos ‘pagodes’ para os colégios e residências dos jesuítas com evidentes implicações nas estruturas das sociedades locais”. Com a chegada de novas ordens religiosas não ligadas à Coroa portuguesa, aumentaram as disputas religiosas locais, e os jesuítas foram, em alguns casos, acusados de serem os responsáveis pelo pouco avanço na conversão e também pela queda dos arrecadamentos enviados a Portugal.

A autora finaliza sua obra lembrando que o sistema de conversão usado pelos jesuítas ao longo do período estudado não pode ser visto de maneira uniforme. Foram vários métodos utilizados e variadas abordagens utilizadas por cada um dos religiosos à frente da conversão. Acima de tudo, condicionando ainda mais os rumos da catequese, havia o indivíduo ou o grupo social o qual estavam tentando converter. De qualquer maneira, o que se pode perceber é que, em nenhum momento, estas culturas, quer fossem hindus, islâmicas, cristãs de São Tomé ou de qualquer outra religião, foram identificadas pelos jesuítas como equiparáveis à sua e merecedoras de qualquer consideração. Caberia a eles eliminá-las, criando uma sociedade cristã modelar.

Marcia Amantino – Universidade Salgado de Oliveira Rua Marechal Deodoro, 211, Centro. 24030-060, Niterói, RJ, Brasil.

El sistema legal y los litigios de esclavos en Indias (Puerto Rico – Siglo XIX) – CARLO-ALTIERI (M-RDHAC)

CARLO-ALTIERI, Gerardo A. El sistema legal y los litigios de esclavos en Indias (Puerto Rico – Siglo XIX). Sevilla: Consejo Superior de Investigaciones Científicas; Ediciones Puerto, 2010. 191p. Resenha de: CUNILL, Caroline. Memorias – Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe, Barranquilla, n.14 Barranquilla jan./jun. 2011.

Al articular en un análisis riguroso aspectos legales, políticos, económicos y sociales, en el presente libro Gerardo Carlo-Altieri ahonda de forma significativa en el conocimiento de la litigación de los esclavos puertorriqueños del siglo XIX. El sistema legal y los litigios de esclavos en Indias (Puerto Rico -Siglo XIX) se inserta, por lo tanto, en una corriente historiográfica de corte muy reciente que se ha centrado en las relaciones entre las minorías étnicas y la justicia en América desde el periodo colonial hasta la actualidad.

Para comprender la relación que los esclavos mantuvieron con el sistema judicial, el autor se interroga sobre tres puntos: las herramientas legales de que disponían para comparecer ante la justicia, la forma en que las utilizaron para defender sus intereses y, finalmente, las consecuencias políticas que el uso cada más frecuente de los tribunales por los esclavos pudo tener en el proceso de emancipación de la isla.

El libro se divide en dos partes: en la primera, Carlo-Altieri analiza con gran precisión el complejo andamiaje legal relativo a la esclavitud, mientras que en la segunda se detiene en el examen de varios pleitos que involucraron a los esclavos puertorriqueños en el siglo XIX. Para ello utiliza un gran número de documentos legales -cedularios, instrucciones, bandos, etc.- y de expedientes judiciales, sacados de los archivos tanto nacionales (Archivos Municipales de Vega Baja y Manatí, Archivo General de Puerto Rico), como españoles (Archivo Histórico Nacional, Archivo General de Indias).

Sin entrar en detalles acerca de las numerosas aportaciones del libro, señalaremos únicamente las que, a nuestro juicio, resultan ser más novedosas. Carlo-Altieri muestra que, al ofrecer a los esclavos un grado mínimo de protección, el Reglamento de Esclavos de 1826, inspirado en la Instrucción sobre la esclavitud en Ultramar que la Corona pretendió implantar sin éxito en 1789, brindó a los esclavos las herramientas necesarias para acudir ante la justicia. En los siglos anteriores, la ausencia de disposiciones abarcadoras y la multiplicidad de las fuentes de derecho en asuntos esclavistas habían desembocado, en efecto, en la conformación de un cuerpo legal desarticulado, favoreciendo la multiplicación de los abusos perpetrados casi siempre directamente por los propios amos.

El autor también advierte que el hecho de que en Puerto Rico el poder judicial estuviera durante años en manos del poder ejecutivo también dificultó el acceso de los esclavos a la justicia. Por esta razón, la creación en 1831 de la última Real Audiencia de América, localizada y con jurisdicción exclusiva sobre Puerto Rico, favoreció a los esclavos querellantes, puesto que si un litigio no se resolvía de forma favorable a una de las partes ante los jueces ordinarios, tendría oportunidad de ventilarse en grado de apelación ante los oidores. Además, a partir de 1833 el Real Acuerdo empezó a dictar autos que vinieron a interpretar y sirvieron para implantar el Reglamento de esclavos de 1826. Finalmente, esclarece el papel desempeñado por intermediarios como el síndico de esclavos en el acceso de los mismos al sistema de justicia.

No obstante, como lo señala Carlo-Altieri, estas nuevas condiciones no evitaron que surgieran conflictos jurisdiccionales entre el poder judicial y el poder ejecutivo, dado que el miedo a los levantamientos justificó la frecuente intervención de los militares para sentenciar delitos cometidos por los esclavos puertorriqueños. En efecto, más allá de la esfera estrictamente legal e institucional, el autor ahonda en las dimensiones cultural, política y socioeconómica en juego en la configuración de las relaciones entre los esclavos y el sistema de justicia.

Muestra, por ejemplo, que la necesidad de mano de obra esclava, por un lado, y la aceptación del derecho de acumular bienes propios que tenían los siervos, por otro, también constituyeron factores que deben tomarse en cuenta para explicar el uso de los tribunales por parte de los esclavos y, sobre todo, el tipo de quejas que éstos presentaban. El libro también reivindica el peso que pudo tener la resistencia “legal” protagonizada por los esclavos, con las escasas y rudimentarias herramientas de que disponían en la historia de la emancipación de la isla, un tema que fue poco contemplado por la historiografía.

En definitiva, Carlo-Altieri no sólo nos proporciona esclarecedoras consideraciones sobre la construcción de un andamiaje legal dúctil en asuntos esclavistas, sino que también reflexiona acerca del papel que pudieron desempeñar instituciones como la Real Audiencia de Puerto Rico en la evolución de la litigación de los esclavos. Tampoco se olvida del protagonismo de los mismos esclavos en la configuración de los intereses políticos y económicos en juego a lo largo del siglo XIX. El libro ofrece la posibilidad de establecer provechosas comparaciones con el margen de negociación de que gozaron los indígenas en el periodo colonial y de reflexionar sobre el rol de las instituciones y de los intermediarios como los síndicos de esclavos y los protectores de indios en el acceso de las “minorías étnicas” al sistema de justicia.

Caroline Cunill – Université de Toulouse II-Le Mirail.

Acessar publicação original

[IF]

 

 

A história escrita. Teoria e história da historiografia | Jurandir Malerba

A teoria da história é mais do que apenas um pensamento sistemático sobre a História e sua escrita; a narrativa história se mostra, cada vez mais, complexa, por suas tensões entre fatos e ficções, verdade e imaginação, objetividade e subjetividade, fontes documentais e as retóricas do discurso; a historiografia não é apenas o discurso circunstanciado sobre as obras históricas, mas fixa-se, cada vez mais, em todo discurso sobre o passado. O que a coletânea de textos organizados por Jurandir Malerba nos mostra, em resumo, é um ‘fazer história’ mais denso e articulado, com as questões de nosso tempo.

Ao reunir as contribuições de Horst Walter Blanke, Massimo Mastrogregori, Frank Ankersmit, Jörn Rüsen, Angelika Epple, Masayuki Sato, Arno Wehling, Hayden White e Carlo Ginzburg, nos oferece uma mostra do resultado dos debates das últimas décadas a respeito da história da historiografia, da teoria da história, da epistemologia histórica, quanto ao princípio de realidade, ao gênero, a comparação e a narrativa. Para ele:

O critério principal para a seleção dos textos que constituem a presente obra foi a intenção de compor um painel, o mais amplo possível, dos campos problemáticos presentes na construção de uma teoria da historiografia, com vistas ao aprimoramento prático de uma revigorada história da historiografia. Nesse sentido, os textos […] reunidos oscilam da reflexão teórica acerca do conceito de historiografia para a reflexão crítica de uma epistemologia da história, passando necessariamente pelas potencialidades e limites metodológicos que cada caminho apresenta. Tratam-se, como é notório, de autores consagrados do pensamento histórico contemporâneo, provenientes das mais distintas tradições nacionais e simpatias teóricas.[1]

Para articular tais textos, o autor os posicionou em quatro blocos, a saber: a) os de que “o foco recai primordialmente sobre o conceito de historiografia e o estatuto teórico do texto historiográfico”, como se vê no texto de Blanke, Mastrogregori e de Arkersmit; b) “por ensaios com propostas mais teórico-metodológicas para o campo da história da historiografia propriamente dita”, como nos casos de Rüsen, Sato e de Epple; c) “discussão teórica da prática historiográfica para o campo da epistemologia”, em que se apresentam Wehling; d) e, no último “seria quase um exemplo das implicações políticas do exercício historiográfico, que tomamos propositadamente no exemplo-limite da história do Holocausto”, por meio do debate entre os textos de White e Ginzburg.

Além dos textos ora indicados, a coletânea ainda é enriquecida com o capitulo de Malerba, que indica os principais eixos das discussões sobre teoria e história da historiografia ocorridas no século passado. Para ele, haveria, sem dúvida, uma tensão entre, de um lado, o “anti-realismo epistemológico, que sustenta que o passado não pode ser objeto do conhecimento histórico ou, mais especificamente, que o passado não é e não pode ser o referente das afirmações e representações históricas”[2] , e, de outro, o “narrativismo, que confere aos imperativos da linguagem e aos tropos ou figuras do discurso, inerentes a seu estatuto linguístico, a prioridade na criação das narrativas históricas.”[3] Em ambos os casos, a pesquisa histórica esteve ancorada em matrizes, senão frágeis, ao menos em constante pressão, e com necessidade de justificação perante as outras áreas do saber. Mas, o “caráter auto-reflexivo do conhecimento histórico talvez seja o maior diferenciador da História no conjunto das ciências humanas.”[4]

Para Blanke, a “história da historiografia é uma atividade nova”, que esteve ao lado “do desenvolvimento da história como disciplina independente e com pretensões científicas”, com início “na época do iluminismo.”[5] Suas características estariam balanceadas entre tipos (história dos historiadores, história das obras, balanços gerais, história da disciplina, história das idéias históricas, história dos métodos, história dos problemas, história das funções do pensamento histórico, história social dos historiadores, história da historiografia teoricamente orientada) e funções (afirmativa e crítica). Não por acaso, Mastrogregori ressaltará que as “possibilidades de contato são certamente inúmeras”[6], visto a complexidade da tarefa de se efetuar adequadamente uma história da historiografia. Para Ankermist, tal tensão “nos confronta diretamente com o problema do relativismo resultante da historicização do sujeito histórico.”[7] Como nos indica Rüsen, a “historiografia é uma maneira específica de manifestar a consciência história”, porque “apresenta o passado na forma de uma ordem cronológica de eventos apresentados como ‘factuais’, ou seja, com uma qualidade especial de experiência.”[8] Por isso:

Não há cultura humana sem um elemento constitutivo de memória comum. Ao relembrar, interpretar e representar o passado, as pessoas compreendem sua vida cotidiana e desenvolvem uma perspectiva futura delas próprias e de seu mundo. História, nesse sentido fundamental e antropologicamente universal, é uma reminiscência interpretativa do passado de uma cultura, que serve como um meio de orientar o grupo no presente. Uma teoria que explica esse procedimento fundamental e elementar de dar sentido ao passado consoante à orientação cultural no presente é um ponto de partida para a comparação intercultural. Tal teoria tematiza a memória cultural ou a consciência histórica que define o objeto de comparação em geral. Ela serve como definição categórica do campo cultural no qual a historiografia toma forma. […] [e] a historiografia aparece, na sua estrutura geral da consciência histórica ou memória cultural, como uma forma específica de uma prática cultural básica e universal da vida humana.[9]

Ao levarem a cabo uma intensa discussão sobre o caso do Holocausto, White e Ginzburg promovem uma verdadeira investigação a respeito do lugar do enredo na narrativa histórica e de que maneira se configura o princípio de realidade, que dá forma e modela o discurso histórico.

Em todos esses aspectos, a coletânea em pauta, traz mostras de um panorama rico e denso dos intensos debates que circunstanciaram a produção da história da historiografia no século passado, cujas marcas e implicações ainda vemos nos resultados apresentados pela pesquisa histórica.

Notas

1. MALERBA, op. cit., 2006, p. 8.

2. MALERBA, op. cit., 2006, p. 13.

3. MALERBA, op. cit., 2006, p. 14.

4. MALERBA, op. cit., 2006, p. 15.

5. MALERBA, op. cit., 2006, p. 27.

6. MALERBA, op. cit., 2006, p. 87.

7. MALERBA, op. cit., 2006, p. 98.

8. MALERBA, op. cit., 2006, p. 125.

9. MALERBA, op. cit., 2006, p. 118

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).


MALERBA, Jurandir. (Org.) A história escrita. Teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Teoria da história e historiografia. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.6, p.367-371, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary – DAS (CP)

DAS, Veena. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007, 281p.  Resenha de: PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Violência, gênero e cotidiano: o trabalho de Veena Das. Cadernos Pagu, Campinas, n. 35, Dez. 2010.

A antropologia e a teoria feminista têm como espaço privilegiado de reflexão a intersecção gênero, violência e subjetividade. Algumas abordagens nessa intersecção acabam por pensar violência como algo apenas eventual, olvidando-se frequentemente de assinalar suas íntimas conexões com o cotidiano. É comum também, e consubstancial a essa visão de violência como extra-ordinário, pensar o campo que envolve a violência em oposições rígidas, tais como: vítima e agressor, agência e opressão – existindo mesmo uma habitual associação entre agência e transgressão, como se a voz das vítimas só pudesse se manifestar transgredindo e enfrentado a Lei. Dessa maneira, como algo esporádico e fortuito, que se irrompe aqui ou acolá, a violência não desce ao cotidiano, e o trabalho diário na lida contra a violência é obnubilado em favor de certo tipo de violência acidental e de certo tipo heróico de resistência. É à busca de pensar as relações entre gênero, violência e subjetividade para além da oposição ordinário e extra-ordinário, evitando as ciladas dessa oposição, que a antropóloga indiana Veena Das vem se dedicando na última década e, como fruto dessa inquietação, publicou o livro Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary.

Veena Das iniciou suas investigações em Gujarat, um Estado da Índia que faz fronteira com o Paquistão. Encontrou ali famílias que haviam imigrado à Índia refugiadas de diversas regiões do Punyab – famílias que por décadas compartilharam com a antropóloga suas memórias e seus testemunhos da violência da Partição (divisão territorial efetuada pela Índia e Paquistão em 1947, pouco tempo após suas independências político-administrativas do império britânico). Esse “evento crítico” caracterizou-se pela violência entre mulçumanos, hindus, sikh e diversos grupos étnicos e religiosos que acabou por desalojar 14 milhões de pessoas e vitimar pelo menos um milhão. Uma das histórias recorrentes na Partição foi o rapto e a violação das mulheres. Das efetuou uma paciente aproximação etnográfica, na qual os relatos de violação, as reestruturações familiares, os testemunhos de violência se encontravam também com uma memória que, simultaneamente, se silenciava sobre o acontecido e se manifestava nas relações sociais, transformando as relações de parentesco. Uma década após, em 1984, Das se deparou com a violência contra os Sikh em Delhi, quando do assassinato de Indira Gandhi, então Primeira-Ministra da Índia. Às memórias dos eventos violentos de 1947, presentes mesmo que sob forma de um “conhecimento venenoso”, somavam-se violências súbitas, dirigidas contra os Sikh, organizadas com a conivência do Estado, mas praticada por grupos ilegais, geralmente em forma de motins.

Das vem pesquisando esse contexto desde o início da década de setenta – como se pode acompanhar pelos seus trabalhos (1990, 2003, 2005), alguns já resenhados e relativamente conhecidos no Brasil (Das, 1995; Peirano, 1997). A busca geral da antropóloga é verificar como se estabelecem as relações sociais nesses eventos críticos (1995), de que forma o gênero é acionado como uma gramática que autoriza a violência (2007), qual o papel desempenhado pelo Estado (Das e Poole, 2004), qual o status das vítimas e sua capacidade de resistência, em que condições ocorrem os testemunhos e o que podem revelar (1995; 2007), entre outros. Life and Words persiste nessas indagações, propondo, no entanto, um novo e importante foco: averiguar como a violência desce ao cotidiano.

No prefácio ao livro, Stanley Cavell (2007:ix-xiv) sustenta que Das dialoga com Wittgenstein ao fazer sua análise girar em torno da dor. De fato, o diálogo existe e Life and Words é uma contribuição significativa aos estudos de violência, sofrimento e dor. Das utiliza o conceito de Wittgenstein de “formas de vida” para averiguar como a violência expõe os limites dos critérios de vida e se apresenta como fracasso da gramática cultural no estabelecimento e interpretação de formas de vida. Mas a importância desse livro – aquilo que a autora avança e acentua se comparado a seus trabalhos anteriores – reside, vale insistir, no lugar privilegiado atribuído ao cotidiano. Opção que enseja diversas indagações: de que forma esses eventos violentos, que se irrompem na vida social, descem ao dia-a-dia? que tipos de personagens atuam nessa descida? como agem? em quais gramáticas atuam e sob quais jogos? como operam os rumores? como as mulheres, que surgem como os principais atores desse processo, reconstroem o cotidiano como forma de resistir à violência?

*

O livro é dividido em duas partes. A primeira (capítulos 2 ao 5) aborda a Partição da Índia, em 1947, e os processos pelos quais a violência desse evento crítico é construída no dia-a-dia da Índia contemporânea. Nessa parte, tendo como interlocutores as vítimas da Partição, Das demonstra que os sujeitos enfrentam essa violência não com um acento excessivo numa memória paralisada, mas como forma de reabitar o cotidiano. Na segunda parte (capítulos 7 ao 11), Das reflete sobre a violência coletiva que se seguiu ao assassinato de Indira Gandhi, caracterizada pelos motins anti-Sikh. A abordagem se centra numa política de afetos que se transforma em atos de violência e conforma “comunidades de ressentimento”.

Nas análises sobre a Partição, uma das questões principais abordadas pela autora é o rapto e a violação das mulheres. Durante a Partição, os Estados da Índia e do Paquistão adotaram normas que vinculavam a castidade da mulher à dignidade da nação. O corpo da mulher se transformou, então, num signo de comunicação entre homens, uma violenta linguagem da masculinidade. As mulheres violadas pelos raptores eram ora assassinadas, ora se suicidavam como condição de reentrar “honradas” na imaginação da nação; as sobreviventes eram marginalizadas e enfrentavam contínuas e árduas dificuldades para refazerem suas vidas. Segundo a autora, as mulheres raptadas circulavam nos debates políticos e permitiam ao Estado estabelecer um estado de exceção que sinalizava uma alteração do fluxo na troca de mulheres. Esse acontecimento permitiu um “contrato social” entre homens, fundamentado num “contrato sexual”, que reivindicava os direitos dos homens sobre as mulheres. A violência infligida às mulheres não se referia apenas ao silenciamento de suas vozes, mas à transformação das mulheres em testemunhas da violência brutal, testemunhas silenciadas, mas que tinham em seus corpos os signos da violência – corpos apropriados numa disputa pela soberania que operava por uma gramática violenta de gênero.

Essas mulheres, cujos corpos são signos dessa gramática violenta de gênero, expressavam-se numa zona de silêncio. Das utiliza a metáfora de “conhecimento venenoso” para falar como as mulheres atuam sobre o sofrimento a elas infligindo. Quando conversava com as mulheres raptadas e violadas durante a Partição, indagando sobre suas experiências, Das percebeu uma zona de silêncio, principalmente sobre os fatos mais brutais. Surgia ali uma linguagem metafórica que se valia de figuras de linguagem para escapar de narrar diretamente a violação. As mulheres utilizavam a metáfora de uma mulher que bebia veneno e o mantinha dentro de si. Esse conhecimento manifestava-se no cotidiano e nas formas de perceber a vida, construindo um mapa das relações sociais, permitindo-lhes operar as experiências violentas no cotidiano, na reconstrução do dia-a-dia. Testemunhas silenciosas atuam – valendo-se do “trabalho do tempo” – sobre os relacionamentos familiares, num processo contínuo de reescrita. As mulheres parecem se valer de um tipo específico de compreensão: o tempo também possui agência, e trabalha. Saber lidar com o tempo significa atuar diretamente na reconstrução das relações e permite reabitar o mundo. O trabalho do tempo possibilita colocar essas mulheres na condição de sujeitos, no processo de reconstrução de suas relações familiares.

Para falar sobre o “trabalho do tempo”, Das descreve a história de Manjit, uma das mulheres raptadas durante a Partição e resgatada pelo exército indiano. A narrativa acompanha Manjit do arranjo apressado de seu casamento (devido aos tumultos da Partição e seus efeitos nas famílias), à violência rotineira desferida por seu marido contra ela e, posteriormente, contra o primogênito do casal; aproxima-se das complexas negociações do casamento do filho de Manjit e mostra o deslocamento da violência de seu marido para a jovem esposa; assinala como essa violência faz com que se contrariem todas as convenções culturais, forçando o primogênito e sua esposa a se mudarem de casa; e finaliza retratando o esposo de Manjit adoecido e necessitando de cuidados, o filho de Manjit retornando à sua casa, onde a protagonista da narrativa consegue finalmente tranqüilidade para viver ao lado de seus netos. A história, muito mais rica do que pude descrever, conta-nos como o tempo não é algo simplesmente representado, mas um agente que trabalha nas relações, permitindo que sejam reinterpretadas e rescritas no embate dos agentes na construção de suas histórias.

Semelhanças entre essa poderosa história e O vento, filme de Victor Sjöström (1928), poderiam ser traçadas. No filme, uma jovem sulista vai ao Texas para se casar, mas é violentada no trem por um desconhecido. A jovem, entretanto, mata o agressor e enlouquece, em meio à tempestade de areia provocada pelo vento incessante. Embora ambos abordem a violência de gênero, a trama da narrativa é diferente: Manjit não enlouquece como a jovem Letty do filme, e sabe utilizar o trabalho do tempo a seu favor. Contudo, nas duas narrativas temos a forte presença de outros protagonistas: na obra de Sjöström, o vento; no texto de Das, o tempo – ambos são agentes que aparecem como personagens principais da história.

trabalho do tempo também se manifesta nas relações entre a Partição e os eventos que se sucederam após 1984 (a invasão do Templo Dourado de Amritsar, o assassinato de Indira Gandhi por seus guardas Sikh, a violência contra os Sikh). A localização e a atualização da violência contra os Sikh devem ser compreendidas como uma mescla de memórias dos sobreviventes da Partição, de uma gramática de gênero violenta – caracterizada por uma masculinidade que auto-proclama sua superioridade sobre um outro-inferior-feminino ou feminilizado –, de um Estado conivente e, de certa forma, fomentador da violência. As relações do cotidiano processam sentimentos de raiva e ódio e permitem, ao mesmo tempo, um trabalho de reconstrução da sociabilidade, mas também possibilitam o incremento desses sentimentos de ódio que podem ser traduzidos em atos de violência, como o assassinato dos Sikh.

O passado tem um caráter indeterminado. O presente se converte no lugar onde elementos do passado que foram rejeitados podem assediar o mundo. O acontecimento sobrevive em versões diversas dentro da memória social dos diferentes grupos sociais. Das sustenta, então, que o rumor ocupa uma região da linguagem que pode fazer experimentar acontecimentos e, mais do que se apresentar como um ato externo, termina por produzir no mesmo ato em que enuncia. Os processos de tradução e rotação funcionam para atualizar certas regiões do passado e criam um sentido de continuidade entre os acontecimentos, conectando-os entre si. No caso dos acontecimentos pós-assassinato de Indira Gandhi, Das assinala como diversas correntes de rumores se combinaram para criar uma sensação de vulnerabilidade entre os hindus e fazer supor que os Sikh seriam desprovidos de subjetividade humana. O rumor acabou por fazer os hindus se pensarem como uma coletividade instável e em perigo – o que autorizou a violência contra o outro desprovido de subjetividade.

O rumor ressalta a dimensão do impessoal na vida social. Os rumores exercem um “campo de força” que atrai as pessoas para agirem de determinada maneira. Trata-se, portanto, de um tipo de violência que nubla as distinções claras entre agressores e vítimas. A impessoalidade e esse campo de forças propiciam atos morais que não seriam executados em condições diferentes, e pessoas comuns são arrastadas para cometer atrocidades (Das, 2010). O rumor, enfim, embaralha e complexifica as categorias convencionais que temos para pensar a violência e se constitui num modelo para complexificarmos as definições de agência. A força perlocucionária do rumor mostra a fragilidade do mundo, e como as imagens de desconfiança, que podem ser apenas virtuais, tomam uma forma volátil, e a ordem social se vê ameaçada por um acontecimento crítico.

A análise do rumor, além de focalizar o poder do impessoal (Das 2010:137), apresenta também a agência de determinados atores que não se encaixam naquilo que geralmente se imagina como “agência”. Por exemplo, noções como paciência e paixão são mais vinculadas à passividade do que à resistência. A descida ao cotidiano, entretanto, abala nossos modelos pré-estabelecidos de resistência ou, pelo menos, apresenta outras possibilidades de pensá-los. Das encontra uma forma de lidar com a violência que se distancia dos modelos de resistência heróica, tal como os percebidos no modelo clássico de Antígona. A antropóloga indiana conta, então, a história de Asha, uma mulher punjab, que vivia com a família de seu esposo na fronteira do Paquistão no período da Partição. Depois do conflito, teve que abandonar sua “família política” por diversos motivos relacionados à sua condição de mulher e de viúva. Ela se casa com um comerciante bem estabelecido. Depois de muito tempo e de uma insistente ação de Asha e de sua cunhada, termina por reatar os laços com sua família política. Das contrasta as ações de Asha às de Antígona. Para a antropóloga, se a figura de Antígona oferecia uma maneira de pensarmos voz e agência, a figura de Asha mostra um sujeito genereficado que possui um “conhecimento venenoso”, mas que constrói um trabalho cotidiano de reparação. Diferentemente de Antígona, a agência não está no heróico e no extra-ordinário, mas na descida ao cotidiano, no preparo diário da alimentação, na arrumação e organização dos afazeres, no cuidado e cultivo persistente das relações familiares. São essas ações cotidianas que possibilitam a criação de um discurso de reparação. Ao justapor o modo “menos dramático” de discurso utilizado por Asha ao discurso de Antígona, Das sugere que mulheres como Asha ocuparam uma zona diferente ao descer ao cotidiano em lugar de ascender a um “plano superior” (Das, 2007; 2010). Se nos dois casos percebemos mulheres como testemunhas – no sentido de se encontrarem no marco dos acontecimentos e de serem por eles afetadas –, Asha fala da zona do cotidiano, ocupando os signos das feridas que a afetaram e estabelecendo uma continuidade no espaço da devastação.

**

Estes breves comentários nem de longe dão conta da argúcia dos argumentos, da riqueza das histórias descritas e do impecável estilo de Veena Das. Tentei apenas desenhar em traços largos os movimentos principais da obra. E, para finalizar, com objetivo apenas de ressaltar alguns aspectos, faço algumas considerações mais gerais sobre Life and Words.

Bronislaw Malinowski (1935) revelou em suas “confissões de ignorância e falha”, no apêndice de Coral Gardens and Their Magic, que uma fonte geral da inadequação de seu material consiste no fato ter sido seduzido pelo dramático e excepcional e ter negligenciado o dia-a-dia (ver Martin, 2007). Porém, acompanhar o dia-a-dia de nossos interlocutores demanda tempo e uma pesquisa de campo prolongada (nem sempre possível, se pensarmos, por exemplo, na realidade brasileira). Sem uma interação cuidadosa, por anos a fio, muito do cotidiano se perde e o antropólogo acaba seduzido pelo “dramático e excepcional”. Se isso vale mesmo para antropólogos que tiveram a oportunidade de ficar por muito tempo em campo, como Malinowski, há que se conjecturar as dificuldades de, em períodos curtos, se conseguir uma aproximação razoável às práticas cotidianas. Life and Words é interessante para refletirmos sobre o assunto. Ao analisar o trabalho de restabelecimento da sociabilidade após experiências de ruptura proporcionadas pela violência, assinala Das a persistência de zonas de silêncio nas quais a emergência da voz feminina se dava nem sempre pelo dizer, mas pelo mostrar. O mostrar não é algo que surge apenas de narrativas ou de reivindicações, mas no fabrico diário de modos de viver. Donde a necessidade de uma laboriosa prática etnográfica que se volte para o dia-a-dia. Das parece sugerir que somente um trabalho de campo que saiba manejar o “trabalho do tempo” conseguirá ouvir o que se tem a dizer, perceber os dizeres do silêncio e compreender o que os interlocutores desejam mostrar. Afinal, é a intensidade e persistência na investigação que possibilitam um vínculo com os interlocutores.

Todavia, não é estranha à história da antropologia a figura do “nativo” convertido simplesmente num vetor de informações (o informante), destituído de nome e sem traços que o singularize. A despeito desse movimento, e justamente pela intensidade do empreendimento etnográfico que, em maior ou menor grau, propicia vínculos com os interlocutores, alguns nomes ficaram marcados: Ahuia de Malinowski, Tuhami de Crapanzano, Ogotemmeli de Griaule, Muchona de Victor Turner, Pa Fenuatara de Raymond Firth, Adamu Jenitongo de Stoller. Das nos apresenta outros personagens. No decorrer do livro, a antropóloga se envolve e é interpelada pelos seus interlocutores, enredando-se no drama de suas vidas, estabelecendo vínculos que, em alguns casos, perduram por décadas. Certamente as mulheres desses eventos críticos narrados por Das, como Manjit e Asha, ficarão na história da disciplina. Ademais, a antropóloga lhes confere um lugar privilegiado, reivindicando uma equiparação às heroínas das tragédias gregas: Asha é igualada à não menos que Antígona.

Em Life and Words, as protagonistas são os interlocutoras da antropóloga, que não apenas narram suas histórias, mas formulam sofisticadas teorias sobre tempo, dor, sofrimento, adoecer; teorias sobre formas de relação. A antropóloga procura alçar a teoria de seus interlocutores ou, para falar em termos mais filosóficos, alçar suas práticas de conhecimento. O que não significa um abandono das discussões teóricas e dos conceitos antropológicos; antes, trata-se de intensificar as conexões entre os saberes. Daí, por exemplo, o intenso diálogo estabelecido com Wittgenstein (cf. Das, 1998) – diálogo ancorado numa longa experiência etnográfica, e numa lida cuidadosa com as teorias, sejam elas de mulheres punjab ou de filósofos austríacos. Apesar desse cuidado, teço duas pequenas observações.

1) Das lembra que a relação da formação do sujeito e a experiência de subjugação foi compreendida por Foucault, em sua análise da disciplina do corpo, por intermédio da metáfora da prisão: “a alma é a prisão do corpo”. Entretanto, ressalta a antropóloga, ao tentar compreender as complexas conexões existentes entre violência e relações de parentesco, percebeu que os modelos de poder-resistência ou a metáfora da prisão são excessivamente grosseiros como ferramentas para entender o “delicado trabalho de criação do sujeito” (2007:78). Pelo contrário, continua a autora, ao explorar a profundidade temporal propiciada pelos momentos originários de violência, e o caráter fundamental da vida cotidiana, em vez de utilizarmos metáforas de prisão para significar as relações entre critérios externos e estados internos (corpo e alma), devemos pensar que eles se recobrem um ao outro, compreendidos sempre em união. A ressalva que faço – reconhecendo, evidentemente, a importância do achado etnográfico de Das – é que o autor de Vigiar e Punir é também autor de História da Sexualidade, e as exegeses da obra de Foucault vêm revelando em sua trajetória uma complexificação crescente do enfoque sobre a formação do sujeito e da subjetivação (ver Goldman, 1999). Qualquer análise que se concentre apenas na abordagem de Vigiar e Punir será necessariamente parcial, não alcançado a complexidade da abordagem de Foucault. Judith Butler (1997), por exemplo, em sua obra sobre a vida psíquica do poder (ou seja, sobre as relações entre “sujeição” e “tornar-se sujeito”), revela um Foucault atento às sutilezas daquilo que Das denominou de “delicado trabalho de criação do sujeito”. A busca de compreender as práticas de conhecimento de nossos interlocutores não nos autoriza a simplificar as teorias que manejamos, quaisquer que sejam, e mesmo sob a justificativa de priorizar o conhecimento nativo. Ainda que se argumente que a utilização de Foucault em Das foi pontual, há que se indagar sobre o porquê de tal uso, já que o autor poderia atuar positivamente no desenvolvimento da autora e não apenas como algo tosco (“crude”) a ser evitado.

2) Outra questão que me intriga na composição geral de Life and Words é que a autora, talvez pela inércia constitutiva da linguagem, parece demasiadamente colada aos significantes “homem” e “mulher” na sua concepção de gênero. Das está refletindo sobre um quadro em que a gramática de gênero parece girar quase exclusivamente em torno da heterossexualidade. Mas, ainda assim, sinto a falta de uma maior problematização sobre a concepção de gênero e da violência da própria gramática cultural heteronormativa. Quando Butler (1990) redefiniu gênero como performance, interrogou-se sobre a produção e reprodução do sistema sexo/gênero normativo e binário, concluindo que, da mesma maneira que sexo e sexualidade não são a expressão de si ou de uma identidade, mas o efeito do discurso sobre o sexo – um dispositivo disciplinar, portanto –, o gênero também não é uma expressão do sexo. Se a feminilidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural de um corpo feminino; se a masculinidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural do corpo masculino; se a masculinidade não é colada aos homens e se não é privilégio dos homens biologicamente definidos; é porque o sexo não limita o gênero, e o gênero pode exceder os limites do binarismo sexo feminino/sexo masculino. Todo gênero é uma performance de gênero, ou seja, uma paródia sem original. Sem querer me estender nessa questão, cabe aqui uma indagação sobre a pressuposição de gênero nos marcos estritamente heterossexuais ou numa gramática em torno de significantes hetero e também de uma possível homogeneização das mulheres que acabaria por criar um universalismo mascarado. Sobre esse último ponto, quem sabe não seja mais interessante perceber as mulheres não como um grupo explorado, mas uma coalizão política a construir, e que não se define unicamente pelo gênero ou pela opressão de gênero – posição esta, inclusive, que se aproxima ao próprio movimento teórico empreendido por Das. Essa questão precisa ser mais bem observada. De qualquer forma, um diálogo mais intenso com teóricas como Judith Butler, Teresa de Lauretis e Marilyn Strathern numa discussão conceitual da categoria gênero, poderá ser frutífero para futuros trabalhos de Veena Das.

Independentemente dessas observações, Life and Words consegue, de forma convincente, abordar a intersecção gênero, violência e subjetividade, demonstrando que a vida cotidiana é, para repetir Stanley Cavell, ao mesmo tempo, uma busca e uma pesquisa [a quest and an inquest]. Veena Das destaca, com persistência e delicadeza, os ensinamentos do poeta Rainer Maria Rilke ao aprendiz Franz Kappus, em famosa missiva que acabou por ser publicada em Cartas a um jovem poeta: “Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas”.

Referências

Butler, Judith. The psychic life of power: theories in subjection. California, Stanford University Press, 1997.         [ Links ]

__________. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York, Routledge, 1990.         [ Links ]

Cavell, Stanley. Foreword. In: Das, Veena. Life and Words. Violence and the descent into the ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007, pp.ix-xiv.         [ Links ]

Das, Veena. Listening to Voices. An interview with Veena Das. (interview by DiFruscia, Kim Turcot). Alterités, vol. 7, nº 1, 2010, pp.136-145.         [ Links ]

__________. Life and Words. Violence and the descent into the ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007.         [ Links ]

__________. Sexual violence, discursive formations and the state. In: Coronil, F. e Skurski, J. (eds.) States of Violence. Michigan, Univ. Mich. Press, 2005, pp.323-425.         [ Links ]

__________. Trauma and testimony. Implications for political community. Anthropological Theory, vol. 3, nº 3, 2003, pp.293-307.         [ Links ]

__________. Wittgenstein and anthropology. Annual Review of Anthropology, vol. 27, 1998, pp.171-195.         [ Links ]

__________. Critical events. An anthropological perspective on contemporary India. Delhi, Oxford University Press. 1995.         [ Links ]

__________. Our Work to Cry: Your Work to Listen. In: Das, Veena. (ed.) Mirrors of Violence: Communities, Riots and Survivors in South Asia. Delhi, Oxford University Press, 1990, pp.345-99.         [ Links ]

__________ e Poole, Deborah. (eds.) Anthropology in the margins of the State. New Delhi, Oxford University Press. 2004.         [ Links ]

Goldman, Márcio. Objetificação e subjetificação no último Foucault. In: Alguma Antropologia. Relume Dumará, Rio de Janeiro, pp.65-76.         [ Links ]

Malinowski, Bronislaw. Coral Gardens and Their Magic: a Study of the Methods of Tilling the Soiland of Agricultural Rites in the Trobriand Islands. New York, American Book, 1935.         [ Links ]

Martin, Emily. Violence, language and everyday life. American ethnologist, vol. 34, nº 4, pp.741-745.         [ Links ]

Peirano, Mariza. Onde está a antropologia. Mana, vol. 3, nº 2, 1997, pp.67-102.         [ Links ]

Pedro Paulo Gomes Pereira – Antropólogo, Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[MLPDB]

 

Ottoman Expansion towards the Indian Ocean in the 16th Century – ÔZBARAN (LH)

ÔZBARAN, Salih, Ottoman Expansion towards the Indian Ocean in the 16th Century. Istanbul: Bilgi University Press, 2009. Resenha de: CASALE, Giancarlo. Ler História, n.58, p. 235-238, 2010.

1 For more than forty years, the history of Ottoman expansion in the Indian Ocean has been a subfield virtually synonymous with the name Salih Özbaran. As the first Turkish historian to have ventured into the Portuguese archives in the 1960s, he has since then produced an uninterrupted stream of new research on the subject, and is today internationally recognized as its foremost authority. Until recently, however, the majority of his scholarly contributions have taken the form of focused studies on specific episodes of this history, rather than larger works that analyze the subject as a whole. It is therefore with particular excitement that historians have anticipated his latest contribution, Ottoman Expansion towards the Indian Ocean in the 16th Century, which stands as a definitive synthesis of Özbaran’s scholarship over the past half century.

2 The book is divided into four main sections. The first, «Expansion», takes the form of a chronological narrative of Ottoman military and naval activities in the Indian Ocean. While this narrative contains comparatively little in the way of new material or original insights, it is particularly useful for English speakers because it offers a comprehensive overview that has until now only been available in Özbaran’s publications in Turkish.

3 Part two, «Provincial/Fiscal Organizations», leaves narrative history aside and instead presents a structural analysis of the Ottomans’ administrative and fiscal apparatus in what Özbaran refers to as «the southern territories», with separate chapters devoted to each of the Ottomans’ five Indian Ocean provinces: Egypt, Yemen, Ethiopia, Basra, and Lahsa. The main focus of these chapters is the land-tenure and revenue collection system in this region, which, as Özbaran shows, was based from the very beginning on tax farms and the payment of cash salaries for state officials. As a result, he argues that the administrative character of the southern territories differed substantially from the core areas of the empire in the Balkans and Anatolia, where the timar system of land grants was not phased out in favor of tax farms until much later, during the period of extended empire-wide crisis in the seventeenth century.

4 These arguments are complemented by the material presented in part three, «Military Structures», which confronts the question of how the empire recruited soldiers and sailors in the southern territories, where it recruited them from, and under what terms of employment. Here the most interesting material is provided by Özbaran’s work with the Mevacib or payroll registers from the Ottoman archives, which he uses to show both the surprising ethnic diversity of the military personnel in the region, as well as the very high percentage of recent converts to Islam. As in the case of his analysis of the region’s fiscal infrastructure, these conclusions too stand in stark contrast to most existing scholarship on this subject, which has instead been based on the assumption that Ottoman military personnel in the southern territories was overwhelmingly composed of Anatolian Turks.

5 Finally, part four, «Trade», tackles the thorny problem of determining the actual volume of the spice trade through Ottoman controlled routes, and the extent to which the Ottomans were able to profit from this trade at the expense of their rivals, the Portuguese. Until now, virtually all relevant data used by scholars to answer this important question has been based on European sources, prompting Özbaran to piece together Ottoman figures from a variety of different bureaucratic records, including cadastral surveys, tax regulations, and provincial account books. However, because of the fragmentary nature of these sources and their lack of uniformity in terms of the information they provide, he refrains from drawing any firm conclusions about how these figures might alter the existing scholarly consensus about the flows of trade from a macroeconomic perspective.

6 Overall, Ottoman Expansion towards the Indian Ocean stands as an impressive monument to Özbaran’s scholarly achievement, particularly in light of the humble state of scholarship in the field outside of Özbaran’s own contributions. Given the overwhelming range of sources Özbaran has consulted, the thoroughness of his research, and his encyclopedic knowledge of the subject, it is certain to remain a defining work for many years to come.

7 But like any book, Ottoman Expansion is also not without shortcomings. Most basically, it must be said that the production staff of Bilgi University Press has not done editorial justice to the manuscript, which is filled with an egregious number of typos, grammatical errors, and awkward phrasings (including several on the very first page). Better attention from the editors might also have helped give the book a more coherent feel in terms of its prose, which is repetitive in many places and often gives the impression of being an uncomfortable compromise between a synthetic work and a simple anthology of articles.

8 More substantively, one is left to wonder about the overall thrust of Özbaran’s conclusions, which in addition to emphasizing the administrative idiosyncrasies of the Ottomans’ southern territories, also have the cumulative effect of minimizing both the scale and the importance of the Ottoman imperial presence in the Indian Ocean, in some cases almost to the point of irrelevance. In his opening political narrative, for example, Özbaran’s final word about the Ottomans’ many campaigns at sea is to dismiss them as «the sporadic actions of a land-bound empire». Later, in his chapters on fiscal administration, he speculates (on the basis of rather slender evidence) that the southern provinces ran a chronic budget deficit and were therefore never profitable for the Ottoman treasury. In his discussion of military infrastructure, he likewise stresses the extremely small number of land and sea forces actually employed by the state, which he rates as barely adequate for local defense. And in his concluding section, he questions whether the state, despite the obvious benefits, ever had a serious interest in promoting trade with the wider Indian Ocean region.

9 In making such arguments, of course, Özbaran finds himself comfortably placed within a much larger genealogy of scholarship about the political economy of the early modern world. But in his case, what is most surprising about this insistence on emphasizing the Ottomans’ «inadequacies» (the word is his) is that it seems to contrast so sharply with the conclusion of his own earlier scholarship. When reading Özbaran’s earliest work, particularly his articles from the ‘60s and ‘70s, one gets instead a vivid sense of the excitement he felt as he encountered Portuguese sources for the first time – sources that contained such a wealth of information about the Ottomans’ activities in the Indian Ocean that they seemed to contradict everything that scholars had previously believed about the empire’s lack of interest in region’s geography, its trade networks, and its political economy.

10 In more recent decades, Özbaran’s attention has shifted away from these Portuguese sources, and moved instead in the direction of exploring what the Ottomans’ own archival records have to say about their activities in the Indian Ocean. But while it is undoubtedly this shift in focus that has led to the decidedly more restrained conclusions of his latest book, one wonders how these conclusions might have differed had he embraced the discrepancy between the surviving Ottoman and Portuguese sources as a question in its own right. After all, Özbaran’s own arguments about the unique fiscal and administrative basis for Ottoman rule in the southern territories suggests one possible reason why the archival evidence about Ottoman activities there – in a way completely independent of the «facts on the ground» – is so sparse compared to other regions of the empire. So against this backdrop, one cannot help but wonder whether the inadequacies that Özbaran describes are really indicative of the Ottomans’ own shortcomings, or whether they may not instead be a reflection of the inadequacy of the surviving archival record.

11 This possibility, namely that Ottoman historical agency might be diminished rather than accentuated by historians’ privileging of the Ottomans’ own archival record, is one that is both troubling and rich with implications for fields far beyond the confines of Özbaran’s own chosen area of study. Considering Özbaran’s versatility as a researcher, and the feverish pace with which he continues to produce new scholarship (at last count, he had published five books in as many years), we can only hope that this intriguing question is one that he is saving for a fuller consideration in his next major work. Until then, scholars will find more than enough to hold their interest, and inspire their own research, within the pages of Ottoman Expansion towards the Indian Ocean.

Giancarlo Casale – Departamento de História – Universidade de Minnesota (EUA)

Consultar a publicação original

The Portuguese in India and Other Studies, 1500-1700 – DISNEY (LH)

DISNEY, Anthony. The Portuguese in India and Other Studies, 1500-1700. Ashgate (Variorum Collected Studies Series), Farnham (Surrey) & Burlington (Vermont), 2009, Resenha de: FLORES, Jorge. Ler História, n.59, p. 283-284, 2010.

1 Quem são os historiadores anglo-americanos que, do pós-guerra aos dias de hoje, moldaram verdadeiramente o nosso conhecimento da «Ásia portuguesa» no período moderno? Para além do incontornável Charles Boxer, há um punhado de nomes que importa considerar. Entre eles, seguramente o de Anthony Disney.

2 Treinado em Harvard por J. H. Parry (autor de The Age of Reconnaissance e The Spanish Seaborne Empire), Disney fez toda a sua (longa) carreira na La Trobe University, Melbourne (Austrália). Optou por se especializar na história do Estado da Índia entre o final do século XVI e os meados da centúria seguinte, sendo que o seu primeiro trabalho de fôlego – The Twilight of the Pepper Empire: Portuguese Trade in Southwest India in the Early Seventeenth Century (Harvard University Press, 1978; trad. portuguesa, Ed. 70, 1981) – trouxe muita novidade no que respeita à estrutura e dinâmica económicas do império asiático português. Mas Disney foi sempre historiador de (bons) artigos, mais do que de livros, pelo que 2009 resultou tão atípico quanto frutífero. A Cambridge University Press publicou nesse ano A History of Portugal and the Portuguese Empire, obra em dois volumes que começa agora a fazer o seu caminho entre a comunidade académica. Quase em simultâneo, foi dada à estampa uma colectânea de 19 estudos publicados pelo autor ao longo das últimas três décadas (1977-2007) e é essa obra que aqui analisamos.

3 The Portuguese in India and Other Studies é mais uma das colectâneas da Variorum Collected Studies Series, espécie de best of de um dado autor que a Asghate vem publicando há anos e que tem concedido amplo relevo ao trabalho de vários historiadores do império português, de Charles Boxer, M. N. Pearson e George Winius a Geneviève Bouchon, Francis Dutra e Roderich Ptak. O volume de Disney estrutura-se em quatro partes: I) The Portuguese in India; II) Viceroy Linhares and his Era; III) Travel and Communications by Land and by Sea; IV) Historiography and Problems of Interpretation. Mais do que uma referência individualizada a cada um dos estudos aqui publicados, o que se propõe é um exercício de reflexão acerca das constantes e do sentido global da produção do autor.

4 Apesar da distância física entre Lisboa e Melbourne, um relance de olhos pelos lugares de origem dos trabalhos aqui reunidos revela um forte vínculo com Portugal: a maioria dos artigos foram publicados em revistas portuguesas ou sobre Portugal (Studia, Anais de História de Além-MarPortuguese Studies) e, bem assim, em volumes colectivos como as actas dos seminários de história indo-portuguesa, encontros científicos de que Disney é hoje figura tutelar. Ao longo da sua carreira, o autor esteve sempre muito atento à historiografia portuguesa sobre Portugal moderno e o seu império, que soube articular com o que se escreve na Índia e no mundo anglo-saxónico sobre o assunto.

5 Disney alicerça o seu trabalho em massiva investigação documental cuja evidência utiliza com rigor e mestria para sugerir pertinentes conexões entre a economia, a política e a sociedade do Estado da Índia. O leitor dado aos estudos pós-coloniais ficará certamente desapontado com este livro, dado que é uma obra pouco devotada à teoria, um tanto empírica, muito próxima das fontes primárias. Daí a fragilidade de alguns artigos (XVI e, na sua parte final, também o XV), em que o autor cede à tentação artificial de participar nas discussões correntes sobre multiculturalismo e Orientalismo.

6 The Portuguese in India ensina-nos muito sobre o Estado da Índia, da fracassada Companhia portuguesa de comércio dos anos de 1620-1630 ao ritual político da «entrada» de um novo vice-rei em Goa. Ensina-nos muito também acerca das rotas e tecnologias de comunicação por mar e por terra entre Portugal e a Índia (excelente o artigo sobre a ilha de S. Helena como escala da Carreira). Mas a secção mais significativa do livro é, sem sombra de dúvida, o conjunto de seis artigos sobre D. Miguel de Noronha, conde de Linhares, que Disney confessa no prefácio constituir um dos seus «longstanding interests». Vice-rei da Índia entre 1629 e 1635, Linhares conheceu uma longa e riquíssima carreira ultramarina e ibérica, que o levou de Lisboa a Tânger, de Tânger a Goa e de Goa a Madrid em 1636, cidade que não quis trocar por Lisboa em 1640. Ao serviço de Filipe IV, esteve para ser nomeado primeiro vice-rei do Brasil (que declinou) e acabou por servir como capitão-geral das galés da Sicília antes de morrer em 1656. A atribulada trajectória de D. Miguel de Noronha, escorada em fontes abundantes e ricas como o seu próprio diário, permitem a Disney entregar-se a um sofisticado e ímpar exercício de história social do império português, que interessava alargar a outros governadores e vice-reis do Estado da Índia. Anthony Disney ainda não escreveu a prometida biografia de Linhares, mas percebe-se bem a sua predilecção pelo género. Não é decerto por acaso que o volume conclui com um artigo-homenagem a Charles Boxer enquanto biógrafo.

Jorge Flores – Brown University (EUA)

Consultar publicação original

Rome and Jerusalem: The Clash of ancient civilizations | Martin Goodman

GOODMAN, Martin. Rome and Jerusalem: The Clash of ancient civilizations. Londres: Penguin, 2008. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Dimensões. Vitória, n.23, p.233-235, 2009. Acesso apenas pelo link original [DR]

Ocidentalismo: o Ocidente aos olhos dos seus inimigos – BURUMA; MARGALIT (PL)

Nas últimas décadas, as obras que refletiram a herança colonial européia na América, África e Oriente, consolidaram uma área distinta no campo dos estudos culturais que se convencionou chamar estudos pós-coloniais. Essa resenha considera o exemplar Ocidentalismo, livro de Ian Buruma e Avishai Margalit, motivado pelo atentado de 11 de setembro de 2001, quando o Word Trade Center, de Nova York, ruiu com o choque de aviões seqüestrados por terroristas da Al Qaeda, de Osama Bin Laden. Mas é possível relacionar Ocidentalismo à principal obra de Edward Said, Orientalismo, publicado em 1978. Nesta o intelectual palestino desmistifica a construção discursiva e histórica dos ocidentais acerca do que viria a ser o oriente, acenando que a opção a alteridade européia/norte-americana não seria o ocidentalismo, seu oposto. Foi justamente para substantivar o léxico que Buruma e Margalit enriquecem os estudos pós-coloniais com sua obra. Leia Mais

As relações internacionais da Ásia e da África | Paulo Fagundes Vizentini

O mundo atual apresenta mais de 190 países espalhados pelo globo cada qual, com maior ou menor intensidade, mantendo relações com outros Estados e agentes. Acostumamos-nos, todavia, seja pela origem de nossa disciplina ou por pertencermos à América, a focarmos grande parte de nossos estudos das relações internacionais ao que ocorre basicamente no lado não oriental da antiga “cortina de ferro”, passando da Europa aos EUA, até chegarmos à América do Sul.

Entretanto, esse tipo de enfoque já não satisfaz ao profissional que se preocupa em compreender a recente dinâmica internacional. A Ásia, juntamente com os países do Oriente Médio e África, estão cada vez mais presentes nos espaços jornalísticos e é preciso entender o processo pelo qual essas regiões chegaram a este lugar de destaque, para que se produzam análises mais consistentes. E esse é o vácuo na literatura que o livro Relações Internacionais da Ásia e da África vem a preencher. Leia Mais

La insubordinación fundante: breve historia de la construcción del poder de las naciones / Marcelo Gullo

La insubordinación fundante, de Marcelo Gullo, é obra que se propõe original em pelo menos dois aspectos: a perspectiva analítica e a criação de conceitos. Para tanto, percorre a trajetória dos casos de sucesso no processo de desenvolvimento econômico e construção do poder nacional, desde o século XIV – Portugal, Espanha, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha, Japão e China –, em uma perspectiva periférica; e propõe novos conceitos para serem aplicados aos atuais países emergentes, principalmente o de umbral de poder. Nos últimos capítulos, o autor analisa a presença de novos atores no jogo político internacional e os desafios que se lhes apresentam na busca pelo desenvolvimento socioeconômico, e desenvolve análise prospectiva, incluindo a atual posição dos Estados Unidos no cenário internacional. Dessa forma, Gullo se lança em um estudo de caráter multidisciplinar, situado na interface da História Moderna e Contemporânea com a Economia Política e a Teoria do Desenvolvimento.

No prefácio do livro, Hélio Jaguaribe destaca que o conceito de periferia utilizado pelo autor apresenta duas dimensões, a de uma perspectiva e a de um conteúdo, ou seja, de um autor sul-americano que analisa as condições de possibilidade de um país periférico deixar de sê-lo. Ao longo do texto, a tese central – que todos os processos de crescimento comercial e/ou industrial exitosos resultaram da conjugação de uma atitude de insubordinação ideológica em relação ao pensamento dominante com um impulso estatal eficaz – é construída em perspectiva comparada. Aproxima-se, assim, de forma explícita, da interpretação cara ao neoestruturalismo econômico latino-americano referente às estruturas hegemônicas de poder e à necessidade de superá-las.

Na realização do duplo intento do autor, os dois primeiros capítulos, de natureza essencialmente teórica, discutem a teoria da subordinação e o conceito de umbral de poder. A teoria da subordinação considera que a igualdade jurídica entre os Estados é uma ficção e que as regras criadas no jogo do sistema internacional expressam os interesses das grandes potências, disfarçados na forma de princípios éticos e jurídicos universais. Para enfrentar as estruturas hegemônicas e as regras do jogo internacional, os países periféricos precisariam acumular recursos de poder e alcançar o umbral que se redefine a cada conjuntura histórica distinta. Por exemplo, Portugal e Espanha alcançaram o papel de pioneiros na expansão europeia dos séculos XV e XVI por intermédio da capacitação tecnológica, da vantagem estratégica (a opção por buscar outra rota para as Índias que não o Mediterrâneo) e do impulso estatal, com base na organização administrativa do Estado moderno e da racionalidade que o sustentava. Em linhas gerais, foi o mesmo processo seguido pelo Japão com a Revolução Meiji e com a China das últimas décadas do século XX e início do XXI.

Quanto ao conceito de umbral de poder, Gullo o conceitua como o quantum mínimo de poder necessário para se alcançar o desenvolvimento socioeconômico e a construção da potência, abaixo do qual cessa a capacidade de autonomia de uma unidade política. Em outras palavras, é o poder mínimo que necessita um Estado para não cair na subordinação, em um momento determinado da história. Os Estados que, historicamente, se transformaram em potência obtiveram em determinado momento o quantum mínimo de poder para atuar de maneira autônoma no cenário internacional e projetar o seu poder. Na verdade, do estudo aprofundado da história da política internacional se revela que, na origem do poder nacional dos principais Estados que conformam o sistema internacional, se encontra sempre presente o impulso estatal. Por impulso estatal entende o autor todas as políticas realizadas por um Estado para criar ou incrementar quaisquer dos elementos que conformam o poder desse Estado. Com efeito, o conceito de impulso estatal envolve todas as ações levadas a cabo por uma unidade política para estimular o desenvolvimento ou o fortalecimento dos elementos de poder nacional. O exemplo utilizado como paradigmático pelo autor foi a Lei de Navegação inglesa, de 1651, segundo a qual era permitido importar somente mercadorias transportadas em navios ingleses que estivessem sob comando inglês e cuja tripulação fosse de maioria inglesa. Assim, ao tratar da noção de impulso estatal, Gullo se aproxima nitidamente da corrente realista das relações internacionais, em diálogo indireto com o historiador Edward Carr e seus ensinamentos na obra Vinte anos de crise, publicada originalmente na conjuntura do início da Segunda Guerra Mundial.

Nos capítulos 3 a 9, são percorridas as experiências dos países bem sucedidos em seu processo de desenvolvimento, com a preocupação voltada para o momento no qual tais Estados decidiram pela insubordinação diante da ideologia predominante em determinada época e, por meio de forte ação estatal, envidaram esforços no sentido da construção do poder nacional. O mais importante exemplo contemporâneo de processo de construção do poder nacional é o da China que, a partir de Deng Xiaoping, iniciou uma mudança metodológica e, na visão do autor, não uma ruptura com o passado, na busca da construção – ou reconstrução – do poder da nação chinesa.

No caso da China, a ênfase da análise recai sobre a figura política de Sun Yat-Sen que, nascido em 1866, se converteu progressivamente, após a revolta nacionalista dos Boxers (1900-1901), na figura chave dos revolucionários chineses que lutavam contra a monarquia Manchú e na defesa da democracia e do fim da dependência chinesa em relação às potências estrangeiras.

A revolução contra a monarquia eclodiu em outubro de 1911 e, no início do ano seguinte, uma assembleia constituinte elegeu Sun Yat-Sen como presidente da nascente República da China. No entanto, o general pró-monarquia Yuan She-Kai, com um golpe de mão, provocou a renúncia de Sun Yat- Sen e assumiu o cargo de presidente.

Foi após esses episódios que Sun Yat-Sen desenvolveu um conjunto de concepções que afirmavam que uma revolução, para ser vitoriosa na China, precisaria da aproximação com operários, camponeses e com a burguesia nacional. Tais ideias orientaram, sob sua liderança, a fundação do Kuomintang – partido nacional e popular – que aspirava organizar uma frente única para a libertação da China, mas que enfrentou uma conjuntura interna politicamente caótica. Sun Yat-Sen faleceu em 1925 e deixou o Kuomintang firmemente organizado como um partido policlassista, dotado de um exército eficaz e reforçado pelos comunistas. Sua doutrina política, porém, encontrou terreno fértil para se desenvolver, tendo por base a ideia dos três princípios, utilizada pela primeira vez por Sun Yat-Sen em 1905 e significando a integração, em um mesmo projeto político e revolucionário, de suas teses sobre o naci que tais princípios devem ser adaptados a cada conjuntura histórica.

É nesse sentido que Marcello Gullo sustenta que a influência de Sun Yat-Sen chega a Mao Zedong e seus sucessores, sob o princípio da adaptação da teoria à realidade e não a realidade à teoria. A trajetória do modelo chinês de desenvolvimento, desde sua abertura no final da década de 1970, confirma a presença dos três princípios e revela extraordinária capacidade de adaptação a cada conjuntura histórica, além de um modelo planejado e gradual de desenvolvimento. Se até os anos noventa o governo chinês orientou a maior quantidade de capitais estrangeiros para a produção em setores intensivos em mão de obra, a partir de então, tratou de orientá-lo para os setores intensivos em capital e tecnologia. A nova estratégia ficou conhecida como desenvolvimento em paralelo, que consiste em desenvolver simultaneamente a indústria “tradicional” e a intensiva em conhecimento.

São esses exemplos de desenvolvimento econômico que, analisados em perspectiva histórica, podem auxiliar países emergentes, como os latinoamericanos, a encontrar seus próprios caminhos. Para tanto, Gullo sugere que líderes políticos, jornalistas especializados e estudiosos das relações internacionais na América Latina devem procurar ultrapassar a agenda, o debate e o vocabulário produzidos nos grandes centros de excelência acadêmica dos Estados Unidos. Significa pensar as relações internacionais desde a periferia latino-americana, para gerar ideias, conceitos, hipóteses e, certamente, um vocabulário próprio, capaz de dar conta da nossa própria realidade e dos nossos problemas específicos no sistema internacional. Na visão do autor, o pensar desde a periferia não deve levar à repetição das lamentações do passado, mas à ação no sentido da superação da condição periférica. Nosso debate teórico principal deveria ser cómo alcanzar el nuevo umbral de poder.

É justamente em sua análise prospectiva que Gullo deixa de contemplar o que tem sido o debate regional mais recente, voltado para a discussão em torno da existência ou não de consensos nacionais em relação ao tema do desenvolvimento e, no caso de resposta afirmativa, a discussão sobre os limites políticos enfrentados pela maioria dos países latino-americanos em seus esforços de desenvolvimento econômico e social. Gullo não aborda a questão das alternativas de desenvolvimento apresentadas por países como Bolívia e Equador, tomando o desenvolvimento econômico como um valor em si, principalmente quando o toma apenas como caso de crescimento e não de desenvolvimento em seu sentido amplo.

Outro aspecto a ser destacado é o fato de o autor não fazer referências a uma obra muitíssimo próxima da sua, o livro Chutando a escada, de Ha-Joon Chang (CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Editora UNESP, 2004). Chang analisou a trajetória histórica de potências como a Grã-Bretanha e retirou dessas experiências algumas lições, principalmente a necessidade de se rever algumas das ideias fartamente divulgadas na década de 1990, como a de que os países em desenvolvimento têm que seguir as sugestões dos desenvolvidos, a de que devem fazê-lo porque é o desejo dos investidores internacionais e a de que há um “padrão mundial” de desenvolvimento institucional das nações.

O diálogo com Chang daria condições a Gullo de aprofundar a dimensão institucional do desenvolvimento, tanto nos aspectos que freiam o desenvolvimento dos países periféricos quanto na busca de alternativas.

Não obstante as observações acima, La insubordinación fundante – livro premiado em Buenos Aires como melhor livro de 2008 – é obra original que consegue cumprir os objetivos de sustentar uma visão sul-americana dos casos históricos de êxito no processo de desenvolvimento e de propor novos conceitos nos estudos sobre o desenvolvimento. Os conceitos de umbral de poder e de insubordinação fundante trazem, indubitavelmente, novo vigor ao tema do desenvolvimento latino-americano.

Carlos Eduardo Vidigal – Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade de Brasília.


GULLO, Marcelo. La insubordinación fundante: breve historia de la construcción del poder de las naciones. Buenos Aires: Biblos, 2008. Resenha de: VIDIGAL, Carlos Eduardo. Textos de História, Brasília, v.16, n.2, p.307-311, 2008. Acessar publicação original. [IF]

Dictionnaire de la colonisation française | Claude LIauzu

Entre as muitas obras recentes que tratam do passado colonial da França, o Dicionário da colonização francesa destaca-se pela abrangência das temáticas e análises, numa época de grandes debates no campo desta história. Falecido no ano da publicação deste dicionário, o grande historiador Claude Liauzu o organizou com a preocupação central de valorizar a seriedade na determinação dos fatos e respeitar a pluralidade das interpretações. Ele introduz o volume « A colonização em questões » (p. 9-25) expondo suas ambições e limites.

Os grandes embates que ocupam a fábrica da história colonial na França dos séculos XIX e XX, e sua eventual instrumentalização pelos poderes políticos, torna o assunto atual. Claude Liauzu e sua equipe de dezenas de colaboradores (entre os quais pesquisadores oriundos dos países antigamentes colonizados) decidiram encarar o desafio, afirmando a necessidade de oferecer aos leitores pontos de referência seguros a partir dos quais eles possam definir uma opinião informada no fogo cruzado das « guerras de memória ». Daí a forma de dicionário. São setecentos e setenta e cinco entradas que dizem respeito a pessoas, eventos, mas também categorias de análise histórica. « Tempos fortes », que antecedem sequência alfabética, estabelecem a periodização do assunto. Dezoito mapas e uma bibliografia (dividida tematicamente), no fim da obra, além de diversos índices (de pessoas, lugares e temas, disponíveis na internet) ajudam o leitor a se situar. Os nomes que, nos textos, remetem a artigos próprios são assinalados por asterisco e setas associam outros relacionados.

São tratados aspectos variados, destacando-se a definição do próprio título « colonização » com vários desdobramentos: etimológicos (« colônia », p. 200-201, e « colônia penal » p. 201) ; sociais e políticos como o dossiê « colonos – brancos pobres e ´franceses majorados » (p. 202-210) com várias seções, inclusive o « colono visto pelo colonizado » ; geográficos, mostrando as dimensões políticas, em cada região em que atuou, América, África, Ásia, Próximo Oriente ; culturais, revelando os diversos olhares sobre o fenômeno, « escola colonial » (p. 258), « a escola do colonizado » (p. 259-263), « professores primários » (p. 381), « estudantes colonizados » (p. 280), e mesmo as prestigiosas instituições acadêmicas como a « Escola francesa do Extremo Oriente » (p. 263), focada em aspectos tocando diretamente à historiografia. « As colônias na escola » (p. 265) complementada pelo dossiê « criança e propaganda colonial – Convencer os jovens da metrópole » (p. 269) e o artigo « Propaganda colonial oficial » (p. 538-539), expõe a maneira como a colonização foi ensinada pelos manuais e outros meios de divulgação, desde a criação da escola pública, laica, gratuita e obrigatória, pelos próprios governos da IIIa. República, que promoviam ambas.

« Escritores e colonização » trata da literatura acerca deste fenômeno, seguindo uma entrada rápida sobre o papel de editoras como as Éditions de Minuit, que publicaram grandes textos de combate contra a colonização, em particular A questão, de Henri Alleg, denunciando a tortura utilizada pelo exército francês durante a guerra – que não dizia seu nome – da Argélia. Enfim, « palavras e colonização », (p. 482), « migrações e colonização » (p. 470). « República e colonização – Relações ambíguas » (p. 552-557), faz objeto de um dos numerosos dossiês analíticos que pontuam a obra, com um subtítulo « colonização e civilização », onde são tratados os grandes traços do discurso dominante a respeito do assunto. Outro dossiê, « Capitalismo e colonização. Um debate » (p. 168-172), mostra como se articulam império e prosperidade na metrópole, ao longo dos séculos. « Cristianismo, missões e colonização » (p. 185-191) seguido de « Cristianismo e descolonização » (p. 191-193) focam no papel dos religiosos, numa empresa estatal cuja fase republicana foi marcada pelo anti-clericalismo.

Outros conjuntos de artigos poderiam assim ser singularizados, particularmente em torno dos artigos-dossiês que propõem uma síntese sobre dado assunto, tentando equilibrar o tratamento dos diversos espaços geográficos que, através de quatro continentes, sofreram a marca da empresa colonial francesa : por exemplo, a Nova Caledônia (p. 501-505), complementada por outros artigos como « religiões da Oceânia », (p. 551) « Oceânia » (p. 506-507) « Novas Hébridas Vanuatu » (p. 505) e assuntos, às vezes esquecidos, como o de Moruroa, atol onde os franceses efetuaram seus experimentos nucleares (p. 481).

Em « Raça » incluindo « a política das raças », « racismo » (p. 545-548), Liauzu, autor do maior número de entradas, evoca um campo que detalhou no seu notável estudo Raça e civilização. O outro na civilização ocidental (Paris: Syros, 1992). Ao lado dos artigos esperados sobre a « escravidão – quatro séculos de história da colonização » (p.272-277) e sua abrogação, com a figura emblemática de Victor Schoelcher (p. 579), os autores não se furtam a mencionar eventos recentes, como a Lei Taubira (2001), que confere ao tráfico negreiro o estatuto de crime contra a humanidade (« Comitê para a memória da escravidão » p. 210) e a mal afamada lei de 2005, posteriormente abrogada sob pressão dos meios acadêmicos e mais amplamente cidadãos, que pretendia obrigar ao ensino dos « aspectos positivos » da colonização francesa (p. 533).

Os autores utilizam conceitos atuais como os « lugares de memória » (p. 409-413), complementado em « imaginário e espaços » (p. 364-366), e lugares, simplesmente, inclusive presídios famosos (« Poulo Condor », no Vietnam, p. 536) ou manifestações físicas importantes como o « Mediterrâneo » (p. 460), ou ainda espaços situados no tempo como o artigo « O Magreb na véspera da colonização – Blocagens e tentativas de reforma ». (p. 437-440), ou « o grande deserto do Sahara » (p. 568).

Entre os assuntos tratados em si podem ser citados como exemplos as grandes temáticas do « povoamento » (p. 527), « campesinato » (p. 524), « industrialização » (p. 379), assim como conceitos: « negritude » (p. 495), « nacionalismos » (p. 488). As posições das grandes forças políticas são detalhadas (« Internacional Comunista » (p. 383); « OAS » (p. 506) « FLN » (p. 299) com seus desdobramentos: « chefes históricos », « Federação de França do FLN »; « Pan-africanismo » (p. 514). Personalidades de destaque como Ahmed Messali Hadj, nacionalista argelino do século XX, Ho Chi Minh (p. 359) ou Solitude (p. 586) heroina da resistência ao restabelecimento da escravidão nas Antilhas são tratados com particular cuidado assim como as « resistências à conquista » (p. 557) e grandes rebeliões, como a Kanak, em 1878 (p. 393) ou a insurreição em Madagascar de 1947 (p. 435) e as diversas organizações (partidos e movimentos armados, mas também confrarias e outras) de resistência dos povos colonizados pela França. Entre os personagens mencionados, pode-se destacar os resistentes à colonização, inclusive franceses como Camille Pelletan que denunciava no seu jornal, A justiça, a maneira como as autoridades republicanas francesas impunham sua civilização « por meio de canhões » (p. 526). Em obra póstuma de Claude Liauzu, História do anti-colonialismo na França do século XVI a nossos dias (Paris: Colin, 2007), este aspecto ganha vulto.

Obviamente, aspectos econômicos da empresa colonial estão presentes : as companhias que recebiam concessões da potência colonial (p. 213-216), « cultura de seringueira na Indochina » (p. 358) etc. Também é tratada a dimensão propriamente militar, os métodos de conquista e administração – « governo colonial » (p. 315-319) ; « ministério das colônias » (p. 472-473) – de vastos espaços e populações numerosas em âmbitos geográficos diversos e longínquos, embora nenhuma predominância seja dedicada a estes assuntos clássicos. No entanto, menciona-se aspectos peculiares como, sob o título « Marinha, Marinheiros – o seu papel na expansão colonial » (p. 444), evocando a situação difícil destes, muitas vezes oriundos de territórios colonizados. O maior destaque é dedicado aos conflitos de descolonização, sobretudo na Argélia, que se desdobra em dois dossiês: « guerra de Argélia – Uma guerra que não diz seu nome » (p. 321-335) e « guerra de Argélia e liberdades – Estado de sítio e poderes especiais » (p. 340); para garantir o equilíbrio no tratamento, há também : « Guerra de Indochina – A primeira guerra de descolonização» (p. 341-350).

Aspectos culturais têm, em compensação, muito destaque, desde « festas » (p. 297), « canção » (p. 179), como testemunho da cultura popular, refletindo preconceitos sob os apetrechos do exotismo, mas também nas dimensões de resistência como o anti-militarismo. Famosos artistas são retratados, como Josephine Baker (p. 130-131), cujo sucesso revelou visões metropolitanas da coisa tropical, por assim dizer, e influenciou numa mudança, surpreendentemente recente, nas mentalidades. « Fotografia – a colocação em imagens das colônias » (p. 529), « pintura orientalista » (p. 510) e « Cinema » (p. 194-200), tratam tanto de documentos fotografados encenados ou não, documentários e ficções, mostrando também os esforços de alguns autores para romper com os clichês coloniais, como o premiado « Indígenas », de Rachid Bouchareb (Cannes 2006). A literatura abrange as representações, inclusive populares, como a personagem bretã « Bécassine e suas aventuras coloniais » (p. 140) mas também as produções de criadores de horizontes diversos : literatura da África negra, magrebina, da Nova Caledônia, da Polinésia, « Indochina : edição e literatura » (p. 374) e enfim, « literatura e colonização » (p. 421), seguida de um artigo curioso : « literatura, romance policial e descolonização » (p. 422), mencionando sobretudo obras recentes que tratam de episódios de repressão na própria metrópole contra pessoas oriundas das (ex)colônias.

Muitos atores da descolonização, em várias áreas, literatura e política em particular, fazem parte do elenco biografado: como Leopoldo Sedar Senghor (p. 584), Albert Memmi (p. 461-462), Aimé Césaire (p. 176), desaparecido recentemente. Eles dividem páginas com autores franceses cuja obra e engajamento lhes estão ligados ou opostos: SaintJohn Perse (p. 572), Jean Paul Sartre (p. 578), Céline (p. 174), Camus (p. 163-164), André Malraux (p. 441). Outros autores, cuja obra fez evoluir consideravelmente os instrumentos do pensar da coisa colonial, são mencionados, por exemplo, Marcel Mauss (p. 458), Jean Dresch (251), Cheikh Anta Diop (p. 183), Frantz Fanon (286) e Maxime Rodinson (p. 565), além de revistas como « Presença africana », que marcou as gerações da descolonização fazendo « a ligação com os intelectuais franceses » (p. 538), bem como editores como François Maspéro (p. 455) que abasteceu os militantes anti-colonialistas com obras de Castro, Ho Chi Minh, Basil Davidson e tantos outros.

Entre as dimensões culturais, poderia se singularizar a questão das línguas criadas pela própria colonização « pidgin » (p. 532), « petit nègre » (p. 527) , « pataouète » (p. 523) e « sabir » (p. 568), assim como seu impacto sobre o francês : termos próprios à história colonial ou por ela gerados como « força negra » (p. 302) « spahis » (p. 587) « méharistes », os policiais do deserto (p. 461); ou ainda « bled » palavra oriunda do árabe falado na Argélia que passsou na língua francesa para designar o campo ; « bidonville » (clássica tradução de favela), cuja origem é marroquina ; « béké », termo das Antilhas, até hoje empregado para os descendentes de plantadores ; « cafre » termo utilizado na ilha da Réunion para designar as populações mestiças (p. 160).

O artigo « folie et psychiatrie » (p. 302) evoca a obra pioneira de Frantz Fanon e a recém formada sociedade franco-argelina de psiquiatria, cujo primeiro congresso (2003) consagrou o reconhecimento científico dos traumas resultantes da colonização e guerras de libertação. O dossiê « Saúde » (p. 575-577) trata da epidemiologia, mas sobretudo do imaginário e da justificação da exploração colonial apresentada como compensada pela assistência primária à saúde das populações colonizadas:« Institutos Pasteur » (p. 381) ; « Médicos » (p. 459) « quinine » (p. 544). Os autores do Dicionário não hesitam em abordar assuntos difíceis como o dossiê sobre « mestiçagens e uniões mistas – Da marginalidade à pluralidade incontornável » (p. 465-470); « homossexualidade » (p. 361); « corpos – realidades e imaginários » (p. 223-227) « prostitutas » (p. 539), ao qual corresponde o artigo «masculinidade colonial » (p. 454-455). Embora haja um dossiê importante « mulheres – elas também têm uma história » (p. 287- 295) associado ao artigo « moças – Um novo tipo social nascido da colonização » (p. 387-389), sua presença, esparsa em outras entradas, inclusive biográficas (poucas), é discreta.

Em suma, Dicionário da colonização francesa é uma obra que prima pela coragem dos autores, abrangência e atualidade dos assuntos e sobriedade benvinda no tratamento.

Christine Rufino Dabat – Professora do Departamento de História da UFPE.


LIAUZU, Claude (Dir.). Dictionnaire de la colonisation française. Conselho científico: Hélène d’Almeida Topor, Pierre Brocheux, Myriam Cottias, Jean-Marc Regnault. Paris: Larousse, 2007. Resenha de: DABAT, Christine Rufino. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.26, n.1, p. 266-271, jan./jun. 2008. Acessar publicação original [DR]

Timor-Leste Por Trás do Palco / Kelly C. Silva e Daniel S. Simão

Publicado recentemente, o livro “Timor-Leste Por Trás do Palco – Cooperação Internacional e a Dialética da Formação do Estado” é ruma coletânea de textos produzidos por autores com as mais diversas formações e experiências na área de cooperação internacional, e produto do seminário internacional Cooperação Internacional e a Construção do Estado em Timor- Leste. O livro apresenta uma crítica às práticas da cooperação como instrumento de poder e de suas relações com as conjunturas históricas, poderes e culturais locais pré-estabelecidas, bem como os problemas decorrentes da atuação de diversas organizações na região.

Os autores organizadores possuem formação na área de antropologia, e realizaram uma intensa pesquisa de campo em Timor Leste. Algumas questões principais são lançadas ao longo da obra, e na tentativa de respondêlas, os textos trazem à tona as inúmeras facetas e os problemas derivados do campo da cooperação internacional e de sua atuação na reconstrução de um Estado.

Um das questões abordadas que instigam a reflexão do leitor é a atuação dos organismos internacionais no Timor-Leste, vista por algum tempo como exemplo fantástico de como uma cooperação internacional deve se dar, e que se transforma – a partir de uma crise militar – em um modelo de Estado fracassado. Essa é a idéia que a obra tenta refutar. Nenhum dos extremos deve ser tido como verdadeiro. Não se trata de um exemplo de perfeição, mas também não se trata de um modelo totalmente equivocado e implodido com tal crise. Os problemas, segundo alguns dos textos, são provenientes de dificuldades que estão presentes em qualquer outro tipo de atuação internacional, e os fatos acorridos não depõe contra toda uma construção positiva decorrente dos projetos empreendidos pelas organizações atuantes.

Ao identificar os problemas, o livro aborda questões fundamentais para a compreensão dos erros e acertos e porque não dizer, para correção e elaboração de novos projetos nas áreas de relações internacionais, política interna e externa, atuações militares – sobretudo da Força de Paz, com intensa participação brasileira – e projetos culturais na reconstrução de um Estadonação.

O livro, composto de vários artigos, é dividido em três partes. Na primeira delas, intitulada “Timor-Leste: passado, presente e futuro.”, procedeuse à uma análise do período que vai do início da ocupação colonial portuguesa até o acirramento da crise no país, passando diferentes momentos do longo período e principalmente pelos problemas causados pela exploração, pelos problemas das tentativas de descolonização, culminando com a crise militar e com a sua solução através da intervenção internacional.

Os portugueses estiveram presentes desde as conquistas do século XVI, de modo que, na reconstrução do país, tema principal do livro, torna-se imprescindível o papel da presença do passado colonial português, pois são inúmeros e importantes os laços estabelecidos entre a cultura portuguesa – bem como as influências intercontinentais inerentes a ela – e as populações locais.

Em 1975, a Indonésia anexou o Timor-Leste ao seu território. Como resistência, houve a formação de guerrilhas armadas e redes clandestinas de combate ao invasor, além da resistência diplomática formada por exilados na Austrália, Moçambique e Portugal. Em 1999 a Organização das Nações Unidas (ONU) propõe uma espécie de consulta popular para definir a anexação. Com resultado contrário, dá-se uma retirada em meio a massacres e a destruição de grande parte da estrutura física do país.

Em busca de uma solução, a ONU interveio através da UNTAET/ United Nations Transitional Administration in East Timor (Administração Transitória das Nações Unidas no Timor Leste), que incluía uma administração civil juntamente com uma força de paz, na tentativa de reconstrução e instauração de um governo autônomo. Além da ONU, outras organizações internacionais passaram a auxiliar neste processo, por exemplo, Banco Mundial, Banco de Desenvolvimento Asiático, Missões religiosas, ONGs, etc…

O segundo capítulo, sob o título “Timor-Leste e a cooperação internacional. Economia, política e administração pública”, é composto de artigos que remetem aos problemas da interferência externa nas questões econômicas e políticas do país, explicitando aspectos positivos e negativos de tal cooperação. São levantadas nessa parte, questões como o papel das instituições monetárias e bancárias, da jurisdição e outros campos da administração pública, além do modo como é tratada a educação e a cultura na reconstrução do país.

A interferência internacional no campo econômico, político, e sobretudo quando procura estabelecer um processo eleitoral, torna seu papel delicado.

Uma das autoras (organizadora) do livro, em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, afirmou que Portugal apoiava determinado candidato, ligado à FRETILIN, às eleições, enquanto os interesses australianos estavam destinados a outros candidatos.

Tal afirmação gerou desconforto em Portugal, e provocou a seguinte carta em resposta às afirmações da pesquisadora: “Li, com interesse, a entrevista hoje (10 de abril) concedida à “Folha de S. Paulo” pela Professora Kelly Silva, da UnB, a propósito do processo eleitoral em Timor- Leste. Sem querer retirar legitimidade à livre interpretação desenvolvida nesse texto sobre o posicionamento e motivações das diferentes forças em confronto, não posso deixar de discordar sobre a alusão que nela é feita ao papel de Portugal nesse contexto, e que o título escolhido sublinhou. O meu país tem demonstrado, ao longo de décadas, um empenhamento inquestionável, e unanimemente reconhecido, em favor do reforço das instituições democráticas timorenses. Isso pressupõe o natural respeito por quaisquer resultados que decorram do respectivo funcionamento. Procurar ligar a posição oficial portuguesa a qualquer facção política em Timor-Leste configura um processo de intenções que, em absoluto, rejeitamos, por não ter apoio em quaisquer factos concretos. Embaixador Francisco Seixas da Costa”1 As acusações não incluíam apenas Portugal, pois na mesma entrevista ela afirmou que havia claros interesses da Austrália em manter a fragilidade política no Timor, para facilitar a exploração de petróleo, bem como manterse em uma posição estrategicamente favorável do ponto de vista militar.

Não vem ao caso tomar uma posição em defesa de um dos lados. Porém, o que se assinala é que o envolvimento da comunidade internacional nas questões referentes ao país nem sempre são desvinculados de interesses econômicos e políticos. Daí a importância de uma regulação e verificação de um órgão superior quando se trata do problema da cooperação internacional.

Na terceira e ultima parte, intitulada “Construção do Estado”, são levantadas questões ideológicas relativas ao papel dos órgãos internacionais na reestruturação dos poderes e autoridades, e a publicação finaliza com uma série de discussões sobre a eficácia da cooperação concedida e as dificuldades enfrentadas pela comunidade internacional.

Apesar de ser uma coletânea com diferentes abordagens, o livro parece defender uma tese: a experiência no Timor-Leste não pode ser vista como um exemplo de extrema eficiência e eficácia, como foi divulgado e se sustentou por algum tempo, mas também não se trata de um total fracasso na formação do Estado através da cooperação internacional, como passou a ser visto após a crise militar. Trata-se, segundo os autores, de uma iniciativa com erros e acertos, com sucessos e insucessos, que devem ser analisados num contexto problemático que apresenta mudanças durante o processo de reconstrução do país. Outro ponto levantado está no fato do país ter grande diversidade cultural e conjunturas históricas específicas, o que torna o papel da cooperação internacional complexo e desafiador.

O livro aponta, não apenas nesta parte, mas em sua totalidade, para pontos positivos e negativos da cooperação internacional. Uma das críticas está no conflito idiomático que instalou-se no sistema judiciário do país. O anglo-saxão usado pela cooperação internacional passou a ter que conviver com o português e com o indonésio, além das dezenas de dialetos locais.

A cooperação internacional é vista como um instrumento político que interfere no destino político do país. Deve, portanto, ser analisada criticamente, pois ao invés de resolver problemas, corre o risco de gerar outros, maiores que os existentes, aumentando as injustiças, privilegiando grupos específicos em detrimento de outros. Ao analisar criticamente o papel de tal cooperação, não só em Timor Leste, mas em outros países, a leitura do livro sugere pensar em que medida ela ocorre de modo desinteressado e realmente comprometido com a reconstrução do país, ou seja, que aspectos a tornam um problema em certos campos de atuação.

Notas 1Carta enviada ao Jornal Folha de São Paulo e publicada também no site: http://timor-online.blogspot.com/2007_04_13_archive.html Acesso: 22 nov. 2007

Fabiano Luis Bueno Lopes – Doutorando em História na Universidade Federal do Paraná.


SILVA, Kelly Cristiane; SIMÃO, Daniel Schroeter. Timor-Leste Por Trás do Palco: Cooperação Internacional e a Dialética da Formação do Estado. Belo Horizonte: UFMG, 2007. Resenha de: LOPES, Fabiano Luis Bueno. Textos de História, Brasília, v.15, n.11/2, p.291-294, 2007. Acessar publicação original. [IF]

La vida cotidiana en Babilonia Y Asiria – CONTENAU (PR)

CONTENAU, G. La vida cotidiana en Babilonia Y Asiria. Traducida por Pablo Herrero. Resenha de: TORRES, Ángel Luis González. Panta Rei – Revista de Ciencia Y Didáctica de la Historia, Murcia, p.157-179, 2007.

Estructura

La obra de Georges Contenau, traducida por Pablo Herrero, está dividida en cuatrocapítulos a los que se añade un apartado de Conclusión, precedidos de una introduccióny con dos apéndices finales con la bibliografía y las notas aclaratorias (Referencias).

Cada capítulo está a su vez dividido en múltiples epígrafes, de mayor o menorbrevedad, sin numeración1, siguiendo una secuencia más o menos ordenada por temáticasencadenadas.

La INTRODUCCIÓN de apenas dos páginas sirve a su autor para justificar laelección del periodo histórico, por ser a su entender el mejor conocido. Tras un brevísimobosquejo de la historia del Próximo Oriente en dicho periodo (apenas un párrafo)enumera las fuentes que ha utilizado y a la vez le han permitido decantarse poreste lapso de tiempo: las tablillas de Assur y Babilonia, en especial Anales, rituales,himnos, correspondencia (tanto real – funcionarial como privada), la biblioteca deAssurbanipal en Nínive y por último los monumentos y descubrimientos arqueológicos(en especial Korsabad, Nínive, Assur y Babilonia).

Dedica también especial atención a las fuentes exógenas, es decir, los historiadores– viajeros del mundo griego.

El primer capítulo, titulado NOCIONES GENERALES, se divide en noventa epígrafes:

  1. El país.
  2. Los habitantes.
  3. Historia de Mespotamia de 700 a 500 antes de Jesucristo.
  4. La cronología.
  5. Las clases sociales2.
  6. La familia. La habitación.
  7. El hombre libre y el matrimonio.
  8. El esclavo.
  9. Su venta.
  10. Los esclavos del templo.
  11. El rescate.
  12. La habitación.
  13. La casa.
  14. El empleo de la arcilla.
  15. El techo y el piso superior.
  16. La decoración18. El mobiliario.
  17. Alumbrado y calefacción.
  18. La ciudad. Su plan.
  19. Babilonia.
  20. Los grandes edificios. El Mermes.
  21. El Eufrates y su puente.
  22. Aducción de agua.
  23. Las murallas.
  24. Las puertas.
  25. El campo. Los canales.
  26. Fertilidad debida a la irrigación.
  27. La navegación.
  28. La espuerta y el <<kelek>>.
  29. La pesca.
  30. Los huertos.
  31. El huerto de Merodak-Baladan.
  32. Los corrales.
  33. La agricultura. Los cereales.
  34. La laya y el arado.
  35. La trilla.
  36. Ventas y préstamos en grano.
  37. El ganado. El asno.
  38. El asno salvaje y el caballo.
  39. El ganado bovino.
  40. Corderos. Cabras. La industria de la leche.
  41. El camello.
  42. Pastores y perros.
  43. Ventas de ganado.
  44. Animales salvajes. La caza.
  45. Los transportes por carretera.
  46. La caravana.
  47. La vida cotidiana3,50. El saludo matinal.
  48. El aseo. Cabello y barba.
  49. El jabón.
  50. El barbero.
  51. El traje masculino.
  52. Modas femeninas.
  53. El sello.
  54. Las comidas.
  55. El pan.
  56. La bebida. La cerveza y el vino de palmera.
  57. El vino.
  58. La palmera.
  59. La seudofecundación de la palmera en los bajorrelieves.
  60. Legumbres, pescado y carne.
  61. Los saltamontes.
  62. Queso, confitería y frutas.
  63. La vajilla.
  64. Las bebidas fuertes.
  65. Trabajo y comercio4.
  66. Relaciones entre en vendedor y el comprador.
  67. La responsabilidad.
  68. Organización del trabajo en Capadocia.
  69. Objetivos del comercio.
  70. La organización del trabajo en la caravana.
  71. El comercio en Nuzi.
  72. La firma Murashu en Nippur.
  73. Los salarios.
  74. El destajo.
  75. Los vigilantes.
  76. El coste de la vida.
  77. El patrón de cambio.
  78. Valor de las mercancías.
  79. Cobre y bronce.
  80. Hierro, oro y plata.
  81. La fundición de estatuas y sus dorados.
  82. Vasos y joyas.
  83. El alfarero.
  84. El cestero.
  85. El mercader de telas.
  86. El confitero.
  87. El vendedor de canciones.

Estos epígrafes pueden ser divididos en cuatro apartados, delimitados por el propioautor por el uso de la letra en cursiva.

El primer apartado sería propiamente el que contiene las nociones generales,como son el marco geográfico, la descripción étnica, lingüística, una breve historiadel periodo estudiado (700 al 500 a.C.) y el marco cronológico es decir, los seis primerosepígrafes.

El segundo apartado que el autor subtitula Las clases sociales así como los dosrestantes, La vida cotidiana y Trabajo y comercio, más que ser nociones generalesentran de lleno en el análisis de la vida cotidiana que lleva por título la obra. Epígrafestan específicos como El mobiliario, El saludo, El jabón, El coste de la vida o Elconfitero son prueba de ello.

El segundo capítulo, titulado EL REY Y EL ESTADO, lo conforman treinta ycinco epígrafes:

  1. El palacio real.
  2. El palacio de Korsabad.
  3. Las excavaciones.
  4. La planta del palacio.
  5. Los palacios secundarios.
  6. Jardines y <<jardines colgantes>> de Babilonia.
  7. La decoración. Los bajorrelieves.
  8. Los palacios provinciales.
  9. La idea de monarquía.
  10. Reglas de accesión al trono.
  11. La designación divina.
  12. El rey de Asiria no es un dios.
  13. Designación del sucesor.
  14. La consagración.
  15. La jornada civil del rey. El vestido.
  16. Joyas y armas.
  17. Los carros reales.
  18. El mobiliario real.
  19. El marfil.
  20. Diversiones. Banquetes. Música. Danza.
  21. La caza.
  22. El séquito real.
  23. El gobierno. La diplomacia.
  24. Recepción de tributarios.
  25. El tributo de cedros del Líbano.
  26. La guerra.
  27. Los dioses lo ordenan.
  28. El ejército.
  29. Zapadores y artilleros.
  30. El campamento.
  31. El botín.
  32. La octava campaña de Sargón.
  33. Saqueo de Musasir.
  34. La guerra de Elam y el saqueo de Susa.
  35. La marina de guerra.

En este capítulo prima el estudio de las estructuras de poder, centrándose casiexclusivamente en el Imperio Nesoasirio. Se detallan diversos aspectos de la vida cotidianadel monarca y de parte de su corte. La última parte se centra en varios puntosde lo que Georges Contenau denomina en múltiples ocasiones «la industria nacionalde Asiria», esto es, la guerra.

Analiza algunas de las motivaciones de los conflictos, así como uno de los principalesresultados de éstos, los tributos, terminando por analizar la maquinaria militardel Imperio, que demostró ser la más poderosa de su época.

Conviene destacar la narración que hace del descubrimiento y excavación del palaciode Korsabad (epígrafes 2 a 4), narrando de forma casi anecdótica los conflictosentre las misiones francesas e inglesas en el proceso. Más adelante trataremos estepunto con mayor detenimiento.

162Siguiendo un esquema característico del estilo del autor, tras detallar los aspectosgenerales, se centra en situaciones concretas que corroboran lo anteriormente detallado,en este caso campañas militares concretas de época sargónida.

Es éste uno de los capítulos más apropiados para conocer la cosmovisión del puebloasirio en su época de máximo esplendor. Su vinculación a la divinidad, en especialel dios Assur, que no sólo dicta sus acciones militares (epígrafe 27 Los dioses loordenan) sino que rige algo tan importante y vital como es la sucesión en el trono, locuál fue siempre fuente de conflictos, como el propio Contenau muestra con el casode Senaquerib y la sucesión de Asarhaddon.

El tercer capítulo, titulado EL PENSAMIENTO MESOPOTÁMICO, consta decincuenta y un epígrafes:

    1. ¿Qué opinaba el hombre de Babilonia?
    2. <<Doctrina del nombre>>.
    3. La voz. Los nombres de persona.
    4. El tono de los encantamientos.
    5. Poder de la escritura, del dibujo, de la estatuaria, de los cantos y de la danza.
    6. Necesidad de ocultar el verdadero nombre.
    7. Poder de los números.
    8. Juegos de palabras y de escritura.
    9. Los enigmas.
    10. El <<vestido de Marduk>>.
    11. BRG’YH rey de KTK.
    12. La simbólica asiria.
    13. La sabiduría5.
    14. La escritura. La educación del escriba.
    15. Evolución de la escritura.
    16. De la pictografía al silabismo.
    17. El desciframiento.
    18. La escritura criptográfica.
    19. La biblioteca de Assurbanipal.
    20. La literatura asiriobabilónica.
    21. La literatura religiosa. El poema de la creación.
    22. El diluvio.
    23. Los mitos de Zu y el dragón Labbu.
    24. El poema llamado de la caída.
    25. La leyenda de Ninurta.
    26. 5 En cursiva en el original.
    27. La exaltación de Ishtar.
    28. La realeza de los infiernos.
    1. La bajada de Isthar a los infiernos.
    2. La epopeya de Gilgamesh.
    3. Gilgamesh en el arte.
    4. Los mitos de Adapa y Etana.
    5. Narraciones morales. El <<Justo paciente>>. La sabiduría babilónica.
    6. Género lírico. Algunos himnos.
    7. Las fábulas.
    8. El género histórico.
    9. Estilo y valor histórico.
    10. Correspondencia particular. Correspondencia real.
    11. Las ciencias. Objeto de revelación.
    12. ¿Sociedades de misterios?40. Las matemáticas.
    13. Compilaciones de problemas.
    14. Geografía. Cartografía.
    15. El calendario. La astronomía.
    16. Tablas de estrellas fijas.
    17. Las Ciencias Naturales. Botánica. Zoología. Mineralogía.
    18. La Química.
    19. Convencionalismos artísticos.
    20. La estatuaria.
    21. El bajorrelieve.
    22. La perspectiva.
    23. Representación del galope.

Este tercer capítulo continúa la línea inaugurada por el anterior acerca de la cosmovisióndel hombre mesopotámico de los años 700 a 500. Partiendo de la que elautor denomina <<doctrina del nombre>>, con el ejemplo de BRG’YH rey de KTK(epígrafe 11), pasa a analizar el sistema de escritura, su aprendizaje y evolución,siempre teniéndola como un objeto de poder, casi de culto, regalo de los dioses.

Comenta posteriormente algunos de los textos más conocidos de bagaje mesopotámicoen sus versiones asiriobabilónicas (epígrafes 21 a 32) muy centrado siempreen el aspecto religioso, pasando de ahí a generalidades acerca de los distintos génerosliterarios y terminando con el arte representativo, en especial la escultura.

El cuarto y último capítulo se titula LA VIDA RELIGIOSA y está compuesto decuarenta y seis epígrafes:

  1. Documentación.
  2. Falta de unidad y contradicciones.
  3. Reforma de la primera dinastía babilónica.
  4. Religión naturalista primitiva y evolución.
  5. Lista de los dioses. Primera tríada: Anu, Enlil, Ea.
  6. Segunda tríada: Sin, Asmas, Ishtar.
  7. Inurta, Nusku, Nergal, Adad, Tammuz.
  8. Los demonios.
  9. Representación de la divinidad.
  10. Atributos y símbolos de los dioses.
  11. Números y astros de los dioses.
  12. Estatuas divinas.
  13. Intentos de sincretismo.
  14. El hombre <<hijo de su dios>>.
  15. Nacimiento de la mística.
  16. Valor moral de los dioses.
  17. Sus poderes. El Destino.
  18. El pecado. Su confesión.
  19. La duda.
  20. Los templos.
  21. El templo de Marduk en Babilonia.
  22. La torre escalonada.
  23. El clero. El rey sacerdote.
  24. Los adivinos. Los chantres.
  25. Los exorcistas.
  26. Clero inferior y personal de los templos.
  27. Robos y querellas en los santuarios.
  28. Los oficios.
  29. Las fiestas religiosas.
  30. La adivinación. Su justificación.
  31. Los dioses de la adivinación. Los sacerdotes.
  32. Diversos tipos de mántica. Los sueños.
  33. La hepatoscopia.
  34. La astrología.
  35. Presagios de nacimientos o de encuentros fortuitos.
  36. La magia. Las fuentes.
  37. Los dioses de la magia. Los sacerdotes y su técnica. El encantamiento.
  38. Posibilidades de la magia babilónica.
  39. La Medicina.
  40. Fase sacerdotal.
  41. Aparición del espíritu crítico.
  42. La fase prehipocrática.
  43. La muerte. El pueblo y los nobles. Los funerales. El Más allá.
  44. Los sarcófagos.
  45. El sustituto real.
  46. La condición de los muertos.

Este último capítulo podemos dividirlo en dos partes diferenciadas claramente.

La primera dedicada a la teología del pueblo mesopotámico, especialmente centradaen Babilonia, donde vemos la evolución desde la religión primitiva (naturalista) a lareligión más personalizada de época neobabilónica, pasando por las tríadas que hanconformado la base de su panteón, con múltiples contradicciones e intentos de sincretismoque den uniformidad al conjunto variopinto de divinidades que conformaban lareligión mesopotámica.

La segunda parte está dedicada a la práctica de la religión (epígrafe 20 y siguientes): exorcismo, encantamiento, magia, clero…

Especial atención merece el ámbitode la Medicina, con su evolución desde la magia a la física, con la aparición del espíritucrítico.

Termina el capítulo con un análisis somero de la muerte y su enfoque por parte delpueblo y de sus elites, así como del acto de los funerales y de la condición del Másallá, con un pequeño aporte, quizás algo desubicado, de la figura del sustituto realpara momentos nefastos.

La CONCLUSIÓN del libro, que ocupa apenas dos páginas, reincide en la tesisdel autor que impera en toda la obra acerca de las grandes similitudes existentes entrela forma de vida estudiada y la imperante en su actualidad (inicios de la segunda mitaddel siglo XX), así como en las diferencias notables dentro del ámbito del mundoespiritual, no sólo con nuestra época, sino también con sociedades contemporáneas al700-500 a.C. como la egipcia.

La BIBLIOGRAFÍA es característica del momento, con obras que van desde 1849hasta la más reciente de 1950. Las distintas obras van ordenadas por capítulos y dentrode éstos en bloques temáticos. En ellos tenemos autores tan relevantes como A. Layard,E. Cassin, L. Delaporte, R. Labat, A. Parrot, D. Luckenbill, J. Klima, y E. Ebeling.

La mayoría de las obras son de lengua francesa, siguiéndole en orden decrecientelas obras en lengua inglesa y alemana, destacando la total ausencia de obras en castellanoo incluso de autores de habla hispana.

Respecto a las REFERENCIAS, hay que destacar que la fórmula utilizada deagruparlas todas, debidamente ordenadas, en la parte final del libro, no favorece elritmo de lectura, siendo sustancialmente más incómodo este sistema que el de notas166al pie de página, que formalmente facilitan su accesibilidad y la propia comprensiónglobal del libro. No son estas referencias notas aclaratorias, sino citas bibliográficasen su totalidad.

Desarrollo de la obra

La obra de Georges Contenau posee un valor añadido, el de servir de bisagra entrelos modos decimonónicos y de principios del s. XX de hacer Historia y los usoscaracterísticos de la segunda mitad de ese siglo, más en línea con el pensamiento y elmétodo científico modernoSu obra La vida cotidiana en Babilonia y Asiria está plagada de claros ejemplosde ambos sistemas. Si bien para el lector actual las muestras del uso del método científicono llaman la atención por ser las imperantes en casi cualquier estudio histórico,los rasgos de esa forma de hacer la Historia tan característica de finales del s. XIX yprincipios del s. XX no dejan de resaltar en el conjunto de la obra.

El uso del lenguaje literario y sus recursos propios, en especial a la hora de introducirtemas, es quizás el primero de estos aspectos que llaman la atención. Epítetostales como «noble animal», «guerra desgraciada», «inauditas dificultades», «quejumbrosochirriar» o «saludable temor» son frecuentes a lo largo de toda la obra, asícomo el uso continuo de la primera persona del singular en sus afirmaciones interpretativas.

En todo momento se percibe cierta admiración por la historiografía del siglo XIX,aventurera, literaria y romántica. La narración de Contenau es muy descriptiva, conuna fuerte impronta de un destacado conocimiento del terreno de primera mano, condivertidas anécdotas que acercan su lectura al público general.

Una de las características que acompañan al historiador decimonónico es su carácteraventurero, viajero, que participa de la vida social de los pueblos que habitanel territorio estudiado y se sirve de este conocimiento para profundizar en su estudiohistórico. Este fenómeno devino en la etnología comparada actual y sin duda es unode los principales pilares en los que se basan las teorías de Contenau, tal y como manifiestade forma explícita en la breve Conclusión de la obra.

En referencia a esto, y a modo de una brevísima y no especificada historia de lainvestigación, Contenau nos narra, con su estilo literario y casi novelesco, con continuasreferencias casi anecdóticas, las excavaciones que tuvieron lugar en el palaciode Sargón II, en Korsabad. Resulta éste un relato de aventuras, casi heroico, donde senarran los conflictos existentes entre las misiones francesa y británica.

Huelga decir que Contenau deja entrever de manera clara su opinión sobre estosconflictos, con la tendencia propia de su nacionalidad. Los británicos, en especialRassam, habían «privado a Francia de un tesoro inestimable, pues, en vista de los re167sultados obtenidos en la zona inglesa, los arqueólogos franceses no hubieran dejadode excavar en su concesión»6. Ese tesoro inestimable es el botín de las excavacionesen Mosul. Para él el conflicto es una especie de competición entre el Louvre y el MuseoBritánico. No cabe plantearse siquiera los derechos de los iraquíes sobre los materialesencontrados. Prueba de esta actitud es la manifestación de su preocupaciónpor la falta de espacio en el Museo del Louvre: «Las copias fueron a parar al Museode las Colonias, con lo que se demostró una vez más que el Louvre ya no puede contenerla totalidad de sus colecciones»7.

La tendencia patriótica es más perceptible que nunca en este epígrafe (tercero delsegundo capítulo), como se puede apreciar a modo de ejemplo en la descripción dela nacionalidad de Botta: «nacido en Milán, cuando esta ciudad formaba parte delImperio»8.

La emisión de juicios de valor a lo largo de todo el desarrollo de la obra no essiempre tan velada. En ocasiones son directas y claras alusiones o declaraciones.

Probablemente el mejor ejemplo lo tenemos cuando habla de la esclavitud: «prácticadegradante, a la que se vuelve con gran facilidad cuando se subordinan los derechosdel individuo al Estado»9. También se puede percibir de forma clara cuando hablandodel concepto de responsabilidad en el ámbito del comercio establece el siguienteparalelismo con la actualidad: «Las compañías de navegación y ferrocarril actualespretenden en todo momento escamotear sus responsabilidades con el usuario»10.

Los paralelismos son una constante a lo largo de toda la obra. No sólo con elpresente, como se acaba de ver y se detalla más adelante, sino también con diversosperiodos históricos, como la Edad Media europea, e incluso con regiones tandistantes como Méjico para explicar procesos de riego, preparación de alimentos,cultivos, extracción de bebidas, etc. Pero sin duda el paralelismo más frecuente es eldel Egipto faraónico. Se aprecia en él cierta dosis de difusionismo, lo cual encaja conel chovinismo francés al que se hacía referencia anteriormente. Llega a comparar elcarácter de los egipcios (jovialidad natural) con el de los mesopotámicos (no sabenreír11). Las afirmaciones acerca del carácter de un pueblo concreto son frecuentes a lolargo de toda la obra.

Respecto a los paralelismos del presente, los hay generales, en base a un estudioetnográfico comparado, con los usos y costumbres del Próximo Oriente actual, comoes el caso de la habitación, la estructura de la casa tradicional o incluso de la alimentación. Los hay, por otro lado, mucho más concretos y dispares, como los que realizaentre ciertas tradiciones de la corte asiria y la del sultán de Marruecos en base al usodel parasol o incluso con la corte pontificia, con el mosquero o flabellum12.

Dado el frecuente uso de estas comparaciones con el presente, a veces el lectorpuede llegar a confundirse con la descripción de un motivo, al no quedar especificadosi pertenece al pasado, al presente o a ambos periodos.

No todos los paralelismos son externos. También los hay internos, en base a diferentesperiodos históricos. A veces se basa en costumbres documentadas en épocasanteriores, tan lejanas como Ur III o el reinado de Hamurabi, para sacar conclusionesacerca del periodo estudiado (750-500 a.C.). Las referencias al Código de Hamurabison constantes y recurrentes. Conviene destacar aquí una contradicción menor, perono por ello menos real. Si en la introducción afirmaba centrar su estudio entre losaños 700 y 500 antes de nuestra era, en el desarrollo del libro amplía este periodo conlos cincuenta años anteriores, es decir, a partir del 750 a.C.

Quizás el cenit del uso de los paralelismos sea la comparación que el autor hacede la filosofía intrínseca de los mesopotámicos, muy en especial de los babilónicos.

Es contrastada con la egipcia, la platónica e incluso con la occidental (como es elcaso de Schopenhauer). Un claro ejemplo de esto lo tenemos en el análisis que hacede la doctrina del nombre en los diferentes periodos anteriormente citados13.

La visión eurocentrista de base occidental también se ve manifestada en repetidasocasiones con las continuas referencias a las excavaciones francesas en Mesopotamia.

Considera en esa línea de pensamiento que la evolución de las ideas y de lasformas es más lenta en Oriente que en Occidente, lo cuál justifica con el «lento»progreso que se aprecia en Mesopotamia en los aspectos formales. Se aprecia entrelíneas cierta euforia triunfalista por los avances de la técnica occidental (transporte,irrigación, construcción) aunque sin menoscabo de los usos tradicionales.

Una de las principales preocupaciones del autor, es el de acceder a un uso históricode la rica tradición mitológica de los pueblos del Próximo Oriente, con especial atencióna los mitos mesopotámicos y egipcios. Se percibe en varias ocasiones su interéspor racionalizar, dando un sentido lógico y pragmático, los mitos y leyendas, como esel caso del unicornio, cuando hablando de la perspectiva escultórica en el galope delcaballo sostiene: «Cuando se trata de un cornúpeto visto de perfil, se imagina dichoperfil de modo tan riguroso que un cuerno oculta al otro, lo que puede haber dadoorigen al mito del unicornio»14.

Estos esfuerzos se suelen basar en análisis comparados de datos históricos conlos mitológicos, y si bien sus conclusiones no son siempre acertadas, como nos handemostrado las investigaciones posteriores, nunca llega a los extremos interpretativosde otros autores, como es el caso de R. Graves con la mitología griega15.

Una de las más destacada características del estilo histórico de Georges Contenauconsiste en valorar el carácter del conjunto de un pueblo de una forma un tanto generalistay quizás simplista. Junto a la comparación anteriormente detallada acerca delos caracteres de los mesopotámicos frente a los egipcios, insiste en este aspecto aldecir que «El mesopotámico es poco sensible a las bellezas de la naturaleza»16.

En otras ocasiones lleva esta cuestión más allá, diferenciando entre el refinamientobabilónico y los espartanos y rudos asirios. En realidad esto es un estudio de dosmotivos diferentes por oposición mutua. Justifica esta diferenciación en base a diversosfactores: el sustrato de población previo (sumerios), elementos exógenos (indoeuropeosy asiánidas) y la diferencia de clima, menos riguroso en el sur mesopotámico,aunque también caluroso y regular, aspecto al que da gran importancia.

Para Contenau, los sumerios son el elemento civilizador de la región. Los semitas(asirios y babilonios) se desplazaron desde el oeste de la alta Siria y adaptaron losingenios sumerios a su mentalidad, quedando manifiesta en todo momento su admiraciónpor sus predecesores. Cuando la Historia propiamente comienza en Mesopotamia,dice Contenau, los sumerios y semitas estaban ya muy mezclados.

El uso de las fuentesEl conocimiento directo de las fuentes es condición previa e ineludible para cualquierestudio histórico. Su número, así como la calidad de la información por ellasaportadas debe ser motivo de análisis. En La vida cotidiana en Babilonia y Asiria deGeorges Contenau no encontramos ningún capítulo o epígrafe completo dedicado acomentar las fuentes utilizadas por el autor. Ciertamente en la introducción encontramosuna sencilla enumeración de las éstas: las tablillas de Assur y Babilonia, enespecial Anales, rituales, himnos, correspondencia oficial y privada, la biblioteca deAssurbanipal en Nínive y los monumentos y descubrimientos arqueológicos (conespecial énfasis en Korsabad, Nínive, Assur y Babilonia). A esto suma la informaciónaportada por los historiadores griegos, con atención especial a Estrabón y sobre todoa Herodoto.

Junto a estas fuentes por él enumeradas, hay que añadir el uso que hace de la Biblia.

Se percibe cierto esfuerzo por acomodar los hallazgos arqueológicos modernos con el texto bíblico: «Cuenta la Biblia que Hazael, rey de Damasco (segunda mitaddel siglo IX), tuvo que abandonar en una de sus batallas contra el rey de Asiria, unalitera de gala adornada de marfil. Se trata, sin duda, de los ejemplares hallados enArslan-Tash, la antigua Hadatu, en la alta Siria, en un palacio asirio»17.

Encontramos también una referencia bíblica al Éxodo, situándolo cronológicamenteen el Imperio Nuevo Egipcio, tras la expulsión de los hicsos, bajo el reinadodel faraón Ramsés.

Para la reconstrucción de aspectos primordiales de la vida cotidiana, en especialen el Capítulo segundo EL REY Y EL ESTADO, con los usos y costumbres de la corteasiria, se basa principalmente en los relieves palaciegos. Un caso paradigmático eneste aspecto es el del mobiliario real. Para su descripción usa un relieve de época deAssurbanipal citándolo en la referencia correspondiente, pero dado el detallado análisisque hace de su descripción, se echa en falta la reproducción del relieve, de modoque el lector pueda seguir de forma asequible el texto, tal y como hace con otrasrepresentaciones que no son analizadas con tanto detalle, pero sí que son ilustradas amodo de ejemplo general.

Para los usos y costumbres propios de la vida cotidiana en Mesopotamia, Contenaurecurre sobre todo a las fuentes neobabilónicas, incluso al Código de Hamurabi.

Por el contrario, para el estudio de la vida en la corte y de la realeza, se centra demodo casi exclusivo en Asiria, muy en especial en Sargón II y en su bisnieto Assurbanipal.

La Arqueología es estimada en todo momento por el autor. Prueba de ello lo tenemosen la descripción que hace de los hallazgos de las excavaciones del ya mencionadoBotta en el palacio de Sargón II y de la posterior misión norteamericana de1929.

Siguiendo su técnica de explicar generalidades partiendo de la descripción decasos particulares, así como su estilo literario, con frecuentes anécdotas, nos narracomo en la excavación de este palacio se encontró un conjunto de edificaciones contres patios con sus respectivos edificios y dentro de cada uno de ellos una entrada,una sala y una alcoba.

Contenau nos cuenta que al principio se creyó que era el harén para las «tres reinasprincipales18» dado que esto podía ser verosímil en base a la ley musulmana19, sintener en cuenta lo disparatado de esta idea por ser tan diacrónica. Con posterioridad,en base a estudios más recientes, se llegó a la conclusión de que se trataba de capillasanexas al palacio real.

Pese a estos «desajustes», Contenau sostiene que la asiriología nació con Botta, em 1842, con las excavaciones llevadas a cabo en el palacio de Sargon II en Korsabad.

El principal corpus de fuentes utilizadas en esta obra es sin duda el de las fuentesescritas. Son estas las que permiten una datación cronológica más o menos exacta,como son las listas de epónimos (limu) y la Historia Sincrónica. Es gracias a descubrimientosde este tipo que podemos obtener una cronología absoluta que nos ofrezcaun adecuado marco para el estudio del periodo, como es el caso del reciente (para elautor) descubrimiento de la contemporaneidad de Hamurabi de Babilonia y Samsi-Adad de Asiria.

Estos descubrimientos deben ir siempre acompañados de un estudio crítico, quesirva para obtener datos verificados y consecuentemente verídicos.

Es probablemente en el tercer capítulo, titulado EL PENSAMIENTO MESOPOTÁMICO, donde el uso de las fuentes escritas deja patente con mayor claridad suutilidad. Del epígrafe 14 al 20 nos habla de la destacada importancia de la escrituraen las sociedades mesopotámicas, con especial atención a los escribas, garantes deesta arcana sabiduría.

Del epígrafe 21 al 37 Contenau nos ofrece un estudio de los principales textosreligiosos de la literatura de la época. El propio poema de la Creación Enuma elish20encontrado en la biblioteca de Assurbanipal, constituye la base de la religión neobabilónica.

Más allá de su interés literario, esto ofrece al estudioso una ventaja añadida parael estudio de la vida cotidiana, ya que, como sostiene el autor, el mesopotámico sefiguraba a los dioses a su imagen y semejanza, por lo que el estudio de las relacionesentre ellos puede ofrecernos ciertas claves para comprender las relaciones existentesentre los miembros de la sociedad humana, muy en especial para el estudio de lasrelaciones familiares.

Esto último se puede percibir con mayor claridad en la época más tardía del periodoestudiado, con la aparición del fenómeno que Contenau denomina Hijo de midios. La relación mostrada entre el fiel y la divinidad asume situaciones sociales yfamiliares existentes con gran frecuencia en el mundo familiar, como es la adopción,el repudio y la propia nomenclatura de atributos paternofiliales que se establece entreel hombre y el dios.

El trabajo con las fuentes escritas en las tablillas no está exento de problemas. Elpropio autor se queja del grado de desconocimiento existente aún sobre los idiomas queusaban la escritura cuneiforme, en especial del sumerio. Aunque contrastando con esto,él mismo usa traducciones propias del acadio para ciertos términos, pero no adjunta eloriginal ni su transcripción, lo cual fomentaría el aprendizaje del lector interesado.

En ocasiones encontramos terminología acadia cuyo uso ha sido sustituido porotras formulaciones más acordes con el estado actual de los conocimientos filológicosdel mundo mesopotámico, como es el caso de tartan para el actual turtanu (generalen jefe), o incluso discordancias con la nomenclatura actual, como cuando serefiere al rey asirio Tiglaht-Pileser como Teglat-Falasar.

Esta terminología no por ser antigua es menos correcta en ocasiones. El uso de laforma Teglat-Falasar es reivindicado actualmente por varios estudiosos de la lenguaacadia como el más correcto por su mayor similitud con el original, aunque en términosgenerales la otra nomenclatura está más extendida.

El último de los pilares sobre el que se asienta La vida cotidiana en Babilonia yAsiria con respecto a las fuentes utilizadas lo conforman los historiadores – viajerosgriegos. Estas fuentes exógenas se centran casi exclusivamente en Estrabón y Herodoto,con notable preponderancia de este último.

En ocasiones el propio Contenau aporta datos de autores griegos dándolos prácticamentepor ciertos, sin proceder a contrastarlos ni a acompañarlos de aparato crítico.

Podemos ver un ejemplo de esto cuando hablando de los caballos medos en época persa,hace referencia a un dato indicado por Herodoto: «El sátrapa de Babilonia, que gobernabala región más rica del Imperio, poseía un acaballadero con más de ochocientossementales y dieciséis mil yeguas; así lo afirma el mismo historiador (refiriéndosea Herodoto)»21. Evidentemente es éste un dato anecdótico difícilmente contrastablecon fuentes más verificables, pero el autor adolece aquí de una apostilla crítica.

Pero este fenómeno no es siempre el ofrecido por Contenau. En otras ocasionesvemos como dedica amplios esfuerzos a contrastar los datos de los historiadores– viajeros griegos con los aportados por las otras fuentes, en especial la Arqueología.

Claro de ejemplo de esto es la comparación que realiza entre los datos de los autoresgriegos, Herodoto y Ctesias en este caso, y los aportados por la arqueología sobrelas murallas de Babilonia. Concluye con una frase reveladora de este espíritu crítico:«Conviene, pues, acoger con circunspección todas las cifras que las excavaciones nohayan verificado»22.

El motivo de la família

Para poder comprender el conjunto de la obra La vida cotidiana en Babilonia yAsiria de Georges Contenau, siguiendo la pauta por él mismo establecida a lo largode todo el libro, conviene quizás analizar un motivo concreto para de ese modo verreflejado los aspectos generales antes mencionado en un tema delimitado claramente.

Para ello centraremos nuestro análisis en el motivo de La familia mesopotámica. Eséste un motivo de carácter primordial para entender el conjunto de la vida cotidianade una sociedad, ya que es el primer y principal ambiente donde se desarrolla en sudía a día, sujeto a unas leyes y normas sociales que sirven de guía a su evolución.

Su estudio y la comparación con el tratamiento que otros autores hacen del mismomotivo nos servirán para demostrar gráficamente los variados estilos de cada uno delos autores y de las obras que componen nuestro trabajo.

Pese a existir enormes diferencias entre los distintos estratos sociales, capas socialeslas denomina Contenau, el autor considera que se pueden analizar aspectos comunessuficientes entre los favorecidos y los no favorecidos para un estudio generalaplicable a ambos grupos. Para la vida del rey se dedica un capítulo aparte en la obra,el segundo en este caso.

La familia, sostiene Contenau, se funda principalmente en el matrimonio, teóricamentemonógamo, aunque en todo momento se admiten las esclavas concubinas. Lamujer depende del padre o de los hermanos varones (mayores o menores indistintamente)para la decisión matrimonial.

Los esponsales son el paso previo al matrimonio mismo. En ellos el prometidoderrama perfume sobre la cabeza de la prometida, entregando regalos y provisiones aella y a la familia de ella, de manera que la muchacha pasa ahora a depender exclusivamentede su nueva familia, la del novio, pues Contenau define el matrimonio comola entrega (definitiva) de la mujer a su marido.

Los regalos son asunto clave para comprender el fenómeno del matrimonio desde elpunto de vista jurídico y por ende social. La ceremonia del matrimonio iba acompañadade un contrato matrimonial. Frente a esto, el autor defiende que una cohabitación de almenos dos años podía equivaler al contrato, al menos en el caso de las viudas.

Al contraer matrimonio tanto el hombre como la mujer aportan bienes. En caso deque la mujer pase a habitar en la casa del marido, aporta el shirku, dote que se une alajuar. Esta dote queda para los hijos, con garantías que el autor define como exclusivas.

Contenau enumera una mayor variedad de regalos y donaciones por parte del marido,con diferentes características y fines cada uno.

El dumaki lo entrega el marido en caso de que la mujer, tras el matrimonio, decidapermanecer en la casa paterna, por lo que se hace esta donación para el cuidado dela casa. Si el marido muere sin hijos ni hermanos, la viuda puede disponer de él a suantojo, pero en caso de no ser así, los hijos o hermanos pueden reivindicarlo si no hasido consumido, lo cuál deben probar mediante testigos o, de ser necesario, con juramentosu ordalías23.

El marido podía entregar en otro caso el nudunnu, donación que hace a la posibleviuda solidaria de las deudas del marido en caso de ser necesario.

Existen dos clases más de entregas. El tirhatu es la donación que el marido hacedurante los esponsales y que será propiedad de la mujer en todo momento, incluso encaso de repudio. El zubullu consiste en un regalo en víveres y provisiones que segúnContenau se consume probablemente durante las festividades de la propia boda, o ensu defecto un regalo en plomo, plata u oro.

El autor resume así la tipología de las donaciones, a modo de conclusión: «Enresumidas cuentas: la diferencia entre estas donaciones es que una es irrevocable (latirhatu), mientras que las otras pueden ser revocables (dumaki y nudunnu) a menosque hayan sido consumidas (zubullu)»24.

El destino de estos regalos varía en términos generales en caso de fallecimiento dealguno de los cónyuges. Si el marido muere la mujer deberá casarse con un parientepróximo del esposo (hermanos o primos). En caso de no hacerlo vuelve a la tutelapaterna y debe entregar los regalos excepto los bienes consumidos.

En caso de que sea la mujer la que fallece, si el novio no desea casarse con algunahermana, recobra los regalos que no sean consumibles (en especial alimentos).

La ceremonia del matrimonio entre individuos libres consistía, según Contenau,en la colocación por parte del novio de un velo en la novia delante de testigos y ladeclaración: «Ella es mi mujer».

La cuestión del velo tiene gran importancia para Georges Contenau. El velo en laley asiria es distintivo de la mujer libre. Está prohibido a siervas y cortesanas. Comonuestra de este hecho, expone que el título de esposa sólo se otorga a la primera mujera la que se impone el velo.

La concubina (esirtu) sólo puede llevar velo cuando acompaña a la mujer legítimafuera de la casa. Este derecho concedido ya a los babilónicos por el Código deHamurabi persistió durante la totalidad de la primera mitad del primer milenio antesde nuestra era. La concubina, siendo por definición esclava, permanece siempre ensituación inferior a la de la esposa, conservando las obligaciones de su clase, destacaContenau.

En La vida cotidiana en Babilonia y Asiria Contenau sostiene la teoría ya demostradade que la situación de la mujer en Mesopotamia, distando mucho ser igual a ladel hombre, no era tan negativa como en otras sociedades de raíz semítica, aunquesin atribuir este factor diferenciador al elemento sumerio heredado como hacen otrosautores25.

Bajo Sargónidas y Neobabilónicos, la mujer libre no era oficialmente objeto decompra, pero Contenau defiende que hay documentos que indican claramente que sepodía hacer de forma más o menos solapada. Si bien varios autores coinciden en estateoría, Contenau aventura la tesis sin citar realmente las fuentes. Únicamente pone unejemplo concreto de una dama que compra una mujer y toma posesión de ella con elfin de de casarla con su hijo26.

Quizás este punto refleje mejor que el resto una parte importante del estilo deGeorges Contenau: enunciar tesis o afirmaciones sin citar en muchas ocasiones lasfuentes específicas que le llevan a su conclusión, a la vez que la acompaña de unejemplo concreto, que sin concretar si es significativo o no en base a un adecuadoaparato crítico, sirve para reflejar la teoría o idea expuesta.

La situación de la mujer puede percibirse con claridad en el hecho de que puedeservir a modo de fianza de las deudas del padre. Si durante esto queda sin parientesmasculinos, el acreedor, sostiene Contenau, puede llegar a disponer de ella. Estasituación, para el autor, no mejora con el tiempo, ya que la ley asiria silencia partede los derechos que una mujer tenía como madre en época de Hamurabi. De hecho,en caso de viudez y de no existir hijos, la ley, con tácita reprobación, se desinteresatotalmente de la viuda: «Irá adonde quiera».

Del mismo modo vemos como en Mesopotamia, se da la tradición de «seguir elvientre de la madre», esto es, los hijos de un matrimonio entre una mujer libre y unesclavo son libres. Contradictoriamente, a poca distancia de esta afirmación encontramosotra en sentido totalmente opuesto: «Se nacía esclavo o se caía en la esclavitud;lo primero, si el padre lo era»27. Este tipo de contradicciones internas son escasas enla obra, aunque sin duda llaman la atención del lector y plantean interrogantes aclaratorios.

Para que un esclavo se casara con una mujer libre, su amo tenía que darle el consentimiento.

Como Contenau explica anteriormente, tanto ella como sus hijos permaneceránlibres. En el caso de que ella aporte una dote, ésta se invertirá en un negocioy cuando el esclavo muera, la viuda recuperará la cuantía de la dote y la mitad de losbeneficios, siendo propiedad la otra mitad del dueño del esclavo. Leyendo esta explicaciónpuede surgir la duda de si también sucede de esta forma en el caso de que elesclavo sea liberado, pero Contenau no hace ninguna referencia a ello.

La situación inicial de los hijos no dista tanto de la de la mujer, en rasgos generales.

Los derechos del padre son tan amplios que puede dejarlos también como fianzaa sus acreedores, del mismo modo que podía disponer de las hijas.

Contenau afirma que algunos documentos notariales consideran al padre dueño ypropietario del hijo. En esta afirmación podemos apreciar también el estilo característicodel autor, al no citar las fuentes concretas a las que se refiere y en las que basasu tesis, pero acompañándola de una comparación con el presente: «Estos términosnos muestran hasta qué punto la concepción mesopotámica del carácter paternal eradistinta de la nuestra»28.

El poder del padre era tal, que no sólo se podía vender a sí mismo como esclavo,sino a sus hijos y a su mujer también en caso de deuda. En teoría, nos dice Contenau,cuando se saldaba la deuda debían ser liberados, lo que no siempre ocurría realmente,por lo que la ley asiria procuraba impedir que los esclavos liberables no fueran retenidosindebidamente.

Las obligaciones de los hijos son varias. Contenau pone el ejemplo del caso defallecimiento intestado del progenitor. Los hijos deben mantener y ocuparse de la madreque permanecerá en la casa conyugal. En caso de existir hijos de un matrimonioanterior, los hijos del segundo matrimonio podrán remitirla a los primeros para queellos sean los que se ocupen de la mujer.

En la sociedad mesopotámica la concubina que daba un hijo a su dueño no variabasu condición, pero tras el fallecimiento del amo, tanto ella como su hijo eran liberados.

De hecho, cuando una esposa compra una esclava como sirvienta o concubina desu marido, si ésta le da hijos, deja de ser propiedad de la esposa.

El fenómeno de la adopción es otro aspecto fundamental de la familia en el queConteneau se centra en menos de una página, pero con un incesante aporte de datos,aunque de nuevo se echa en falta referencias a fuentes específicasExistan hijos o no, ya sea de la esposa como de la concubina, de la que Contenausostiene que puede formar parte de la familia, el matrimonio puede adoptar otros.

Éstos ostentarán los mismos derechos de herencia que el resto de hijos, pero nunca ensu detrimento.

El acto de la adopción se hace ante testigo. En él, el adoptado ofrece un regalo dediverso valor al padre como agradecimiento. Contenau expone en este caso que esteregalo dio a lugar a ciertos procedimientos para eludir la ley, sobre todo en ventas debienes que no se podían vender, sino únicamente transmitir por herencia, caso de feudosreales. De nuevo el autor aquí no nos da referencias de las fuentes específicas quedemuestran esta afirmación, pero añade un caso concreto de un mercader del sigloXV a.C. de la región de Kirkuk.

Los poderes del padre sobre los hijos llegaban también a los que lo eran por adopción.

Cuenta Contenau que el padre «puede, si quiere, invalidarla (la adopción) ydespachar al hijo adoptivo»29.

En la ley babilónica, vemos el caso contrario. Si un hijo renegaba de su padre o desu madre, éstos pueden mandar venderlo como esclavo, rasurándole la cabeza (unode los símbolos externos de los esclavos).

Según Contenau, la necesidad de abundante mano de obra por parte de la sociedady del Estado se tradujo en el considerable desarrollo de las familias numerosas, a lavez que favorece la extensión del fenómeno de la adopción. Para Contenau esto estáíntimamente ligado a la idea que vincula el poder rector del padre de familia con elpoder rector del jefe de la comunidad.

Junto a estos datos genéricos acerca de la estructura de la familia en Asiria y Babilonia,la obra está plagada de anécdotas sobre el modo de vida cotidiano, como es eldetalle de que las familias mesopotámicas se daban los buenos días besándose.

Conclusiones

El estudio de La vida cotidiana en Babilonia y Asiria de Georges Contenau nosofrece una amplia muestra de los últimos ejercicios de la tradición historiográfica característicade finales del siglo XIX e inicios del XX a la vez que se puede apreciar enella los primeros rasgos de la metodología científica actual. Es sin duda un ejemploparadigmático de la evolución de los estudios históricos hacía un mayor empirismo,pero acompañado de una formulación literaria que embellece el conjunto de la obracon un estilo más ameno y destinado no sólo al lector especializado en la materia,sino a todo aquel interesado en los aspectos más antropológicos y culturales de laHistoria en general y de la Historia del Próximo Oriente en particular.

Si bien la obra cuenta en el apéndice anteriormente mencionado con una ampliabibliografía, así como numerosas citas a algunas fuentes, o, más frecuentemente, acolecciones de fuentes, hemos podido comprobar a lo largo de nuestro análisis deltexto como éste adolece en múltiples ocasiones de referencias a las fuentes concretasque permiten a su autor establecer las conclusiones e interpretaciones que constantementeaparecen en el desarrollo de la obra.

Es característico del autor suplir esta carencia con ejemplos concretos que ilustransu tesis, pero éstos tampoco van remitidos a una fuente concreta en varias ocasiones.

Los ejemplos ofrecidos, generalmente basados en los textos recuperados en las tablillas,nos muestran situaciones específicas que responden, según el criterio del autor,a las afirmaciones anteriormente expuestas en la obra, aunque en algunos momentosestos ejemplos son adornados con ciertas dosis de fantasía, ya que a menudo las fuentesque el propio Contenau utiliza únicamente son registros contables o administrativos,que no permiten un desarrollo total de la historia que muestran.

Un ejemplo de esta situación son los epígrafes dedicado a los comerciantes deKul-tepé, en Capadocia (epígrafes 71 al 73 del primer capítulo), con especial aten178ción al comerciante Pushukin, así como los epígrafes 74 y 75 del mismo capítulodedicados a la firma Murashu en Nippur. Con estos dos ejemplos como punto departida, Contenau analiza el comercio en el Próximo Oriente.

El comercio y el móvil económico es un aspecto destacado en la obra de Contenau,aunque no tan fundamental como sugieren y defienden otros autores. Este hechole sirve para introducir otro aspecto característico de su obra, como son las reflexionespersonales sobre el devenir histórico e incluso el presente: «A primera vista pareceque los móviles de la historia han cambiado desde la Antigüedad; en realidadno han cambiado en absoluto y nos convencemos de ello cuando algún indicio nospermite entrever las razones de las grandes expediciones del pasado»30.

La continua emisión de extrapolaciones con el presente y de juicios de valor oreflexiones personales son una constante en la obra que si bien no aportan datos tangibles,si nos acercan a la mentalidad del autor que obviamente impregna toda la obray redunda en el carácter humanista que la Historia posee, o debe poseer, además de sucarácter puramente empírico.

Una conclusión que la obra nos proporciona es el interés que su autor demuestrapor constatar que es aún mucho el trabajo que queda por hacer. Además de lasreferencias a las ya referidas carencias filológicas del momento, plantea en variasocasiones cuestiones sin resolver todavía que, sin ser relevantes para la comprensiónde la temática de la obra, sirven para mostrar el amplio abanico de posibilidades yrespuestas que los estudios orientales pueden ofrecer aún.

No es ésta una manera de dejar temas abiertos formalmente. El planteamientode la problemática suele acompañarse las distintas interpretaciones que diferentesautores han ido dando como posible respuesta, lo cual no sólo incentiva el interés dellector, sino que tiene el valor añadido de insinuarle, aunque sea levemente, el nutridomundo de posibilidades interpretativas existente, siempre a debate.

Buen ejemplo de esto son las diferentes interpretaciones del bajorrelieve existenteen el Louvre donde vemos dos personajes entregados a la caza y de diferente altura;este detalle, sumado a otros que el propio Contenau enumera, ha provocado la controversiade si se debe a la existencia de una perspectiva artística o si es el resultadode una gradación social31.

Las conclusiones del propio autor expresadas en su correspondiente apartado nosmuestran sus sentimientos encontrados con respecto a los pueblos que habitaban laantigua Mesopotamia. Termina la obra de la siguiente manera: «La civilización mesopotámicaha sido una de las más brillantes de la Antigüedad y, sin embargo, ¡cuánpocos de entre nosotros hubieran querido vivir en Babilonia!»32.

Esta reflexión final de Georges Contenau se debe a que si bien constantementeiguala los aspectos más formales de la vida cotidiana de la antigua Mesopotamia conlos usos y costumbres del actual Próximo Oriente, en especial Irak, marca la diferenciaen el ámbito espiritual, la cosmovisión propia vinculada al ámbito religioso. Losdioses mesopotámicos son definidos por el autor como rudos, violentos, vengativos ygroseros, siempre prestos al castigo y fuente de inspiración constante de miedos entresus fieles. Estas divinidades, sumadas a los demonios y constantes presagios sembraríande temor y subyugarían la vida cotidiana de los mesopotámicos.

Reincidiremos por último en un aspecto determinante de la obra que se debe teneren cuenta para su uso. El autor recurre especialmente a las fuentes babilónicas parasu estudio de usos y costumbres, pero para el análisis de la vida de la realeza y la altanobleza se limita casi con exclusividad al ámbito asirio. Del mismo modo atribuye ala impronta asiria gran parte de los atributos usados por la realeza persa, herencia dela corte sargónida que los monarcas aqueménidas copiaron en abundanciaSi bien es obvio que las similitudes entre ambos pueblos son extremadamentenumerosas, conviene que el historiador moderno tenga en cuenta que sí existierondiferencias en determinados aspectos. La elección de unas fuentes u otras por partede la obra de Georges Contenau sin duda viene dada por su mayor o menor cantidaden uno u otro aspecto. Pero dado el amplio periodo de tiempo transcurrido desde queel autor escribió su obra hasta nuestros días, esa diferencia ha ido superándose conel abundante material aportado por las recientes excavaciones y sus consecuentesinvestigaciones.

La vida cotidiana en Babilonia y Asiria de Georges Contenau, con las posiblesdeficiencias que contenga, es pese a todo una obra de referencia obligada para los estudiosde vida cotidiana y mentalidades del Próximo Oriente. Es uno de los primerosesfuerzos coherentes de plasmar en un único texto los principales aspectos que contienela vida cotidiana de los pueblos de la antigua Mesopotamia.

La historiografía francesa ha demostrado ser guía para este tipo de estudios, comodemuestra la tradición mantenida por otros destacados autores como Jean Bottéro yGeorges Roux.

Estudios como éste de usos y costumbres están cada vez más en boga, demostrandoser imprescindibles para nuestra comprensión de los fenómenos históricos, másallá de la Historia plagada de batallas o de los grandes personajes que la forjaron nocon su sólo esfuerzo, sino conjuntamente con el total de los pueblos que protagonizaronla Historia de la Humanidad.

Notas

1 Para este estudio numeraremos los epígrafes para facilitar su manejo.

2 En cursiva en el original.

3 En cursiva en el original.

4 En cursiva en el original.

5 En cursiva en el original.

6 CONTENAU, G. La vida cotidiana en Babilonia y Asiria. Barcelona. 1951. Pag. 115.

7 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 122.

8 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 113.

9 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 30.

10 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 89.

11 Ambas afirmaciones se pueden encontrar en la conclusión de la obra, pag. 296.

12 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 136.

13 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 169.

14 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 239.

15 GRAVES, R. Los mitos griegos. Madrid. 1985.

16 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 237.

17 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 139.

18 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 117.

19 La ley musulmana sostiene que en caso de existir poligamia, las mujeres deben ser tratadas con

absoluta igualdad.

20 Cuando en lo alto… Frase que inicia el poema de la Creación.

21 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 64.

22 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 45.

23 Para un acercamiento al tema de las ordalías mesopotámicas nos remitimos al artículo de LAFONT, «El juicio del dios-río en Mesopotamia», Introducción al Antiguo Oriente. De Sumer a la Biblia. Paris. 1992. (Edición española de 1996, Barcelona).

24 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 22

25 BOTTÉRO, J. «Las libertades de las mujeres en Babilonia». Introducción al Antiguo Oriente. De Sumer a la Biblia. Paris. 1992. (Edición española de 1996, Barcelona).

26 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 21.

27 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 24.

28 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 22.

29 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 23.

30 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 93.

31 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 143.

32 CONTENAU, G. Ibidem. Pag. 296.

Ángel Luis González Torres – IPOA. Murcia.

Acessar publicação original

[IF]

 

 

Señores de todo el mundo. Ideologías del Imperio en España,Inglaterra y Francia (en los siglos XVI, XVII y XVIII) – PAGDEN (PR)

PAGDEN, A. Señores de todo el mundo. Ideologías del Imperio en España, Inglaterra y Francia (en los siglos XVI, XVII y XVIII). Barcelona: Ed. Península, 1997. 313p. (1ª edición). Traducción de M. Dolors Gallart Iglesias. Resenha de: MOLINA-NIÑIROLA, Francisco Javier Asturiano. Panta Rei – Revista de Ciencia Y Didáctica de la Historia, Murcia, 2ª época, p. 2007.

Autor 

El autor del libro que reseñamos es Anthony Pagden, historiador inglés formadoen Santiago de Chile, Londres, Barcelona y Oxford. Fue profesor adjunto de Historiaintelectual moderna de la Universidad de Cambridge y miembro del consejo dedirección del King’s College, y titular de la cátedra «Harry C. Black» de Historia dela Universidad Johns Hopkins, Baltimore (Estados Unidos). Ha colaborado regularmenteen The Times Literary Supplement, The New Republic y The New York Times. En la actualidad es profesor en la Universidad de California.

Pagden es autor de varios libros de historia de la teoría política y social del imperialismoeuropeo. Entre sus obras destacan European Encounters with the New World:From Renaissance to Romanticism; La caída del hombre natural; El Imperialismoespañol y la imaginación política; y entre sus obras más recientes Civil SocietyHistory and Possibilities (2001), Peoples and Empires (2001), La Ilustración y susenemigos (2002); y, como editor, The Idea of Europe from Antiquity to the EuropeanUnion (2002).

Estructura de la obra

Se trata de un extenso libro de 313 páginas de denso pero riguroso contenido histórico. Tras una extensa Introducción en la que el autor enmarca y centra su obra y nos avanza algunos de los grandes temas que va a tratar, y que casi por sí sola podríaconstituir un capítulo aparte, Pagden articula el desarrollo del libro en 7 capítulos dediferente longitud. Se extiende sobre todo en los capítulos 2 («Monarchia universalis»), 3 (Conquista y colonización) y 4 (Expansión y conservación), mientras que losrestantes son bastante más reducidos.

El libro se enriquece con una extensa Bibliografía (19 páginas) y un enorme aparatocrítico (nada menos que 32 páginas de Notas al final del libro), además de undetallado Índice onomástico y un Sumario.

Comentario

En esta obra, que parece ser la primera en comparar teorías del imperio en elmundo moderno, Anthony Pagden realiza un minucioso trabajo sobre colonialismoe imperialismo, en la línea habitual de su campo de estudio, con un profundo y detalladoanálisis de las ideologías que inspiraron tres de los grandes imperios de Europa occidental.

Aunque el subtítulo del volumen nos indica que el período temporal estudiadoson los siglos XVI, XVII y XVIII, el autor nos hace un verdadero recorrido porel pensamiento político de la Antigüedad Clásica y además se adentra en el sigloXIX, llegando hasta la emancipación de Hispanoamérica. Así pues, el estudio dePagden se centra temporalmente entre los siglos XVI y XIX y se limita solamentea tres de los imperios europeos (España, Inglaterra y Francia), y únicamente en suproyección americana. Aunque aparecen citadas otras potencias imperiales europeas(en especial Holanda y Portugal), sólo se hace brevemente y en relación conlas otras tres.

Pagden señala que el mundo moderno se ha configurado a partir de los cambiosiniciados con la creación y caída de los modernos imperios coloniales. Para él, elcolonialismo que comienza con la expansión europea de finales del s. XV dio lugara migraciones masivas, ocasionó la destrucción de pueblos enteros, generó nuevasnaciones y en su fase final creó nuevos Estados y nuevas formas políticas, además decrear las modernas rutas comerciales y vías de comunicación.

El autor explica que los imperios europeos tienen dos historias distintas, pero interdependientes. El libro se centra en la primera de estas fases, que empezaría conel descubrimiento y colonización de América por los europeos, que comienza conel primer viaje de Colón (1492) y termina hacia 1830 con la derrota de los ejércitosrealistas en Sudamérica. La otra fase, de la que el libro apenas trata, es posterior yempieza con la ocupación de Asia, África y la zona del Pacífico hacia 1730, pero queno toma fuerza hasta finales del s. XVIII, cuando empieza el declive de la hegemoníaeuropea en América.

El mismo autor nos explica que ha realizado un estudio eurocéntrico, un intentode comprender qué pensaban los europeos de los imperios que habían creado y delas consecuencias a las que tuvieron que hacer frente. También intenta ilustrar laevolución que experimentó este pensamiento, y mostrar que en torno a las primerasdécadas del s. XIX se habían forjado unas pautas de expectación que determinaríanen gran medida las relaciones posteriores que mantendría Europa con casi todo elresto del mundo.

A lo largo del libro, el autor analiza los argumentos de diversos ideólogos, teóricosy pensadores de diferentes países (ya que no sólo aparecen autores españoles,ingleses y franceses, aunque lógicamente sean los más abundantes) en relación conlos tres grandes imperios objeto de estudio. El método que para ello utiliza es el de lacomparación, un método no usual, aunque el autor ya tiene en cuenta que los distintos aspectos tratados no tuvieron la misma importancia ni recibieron igual atenciónde modo simultáneo en los tres imperios.

Anthony Pagden describe el curioso proceso ideológico que tuvo lugar durantetoda la Edad Moderna en relación con los imperios que se fueron creando. Un procesoque comenzó con la apología de la evangelización y la conquista del siglo XVI,dio paso a la crítica y descrédito de la misma idea de imperio ante los problemas ydificultades que iban surgiendo, y finalizó con el nacimiento de un nuevo ideal decosmopolitismo en la época de la Ilustración, pasándose de esta forma a la idea desustituir a los imperios por federaciones de estados libres, independientes e iguales.

Al mismo tiempo, y paralelamente al estudio ideológico, estamos asistiendo aldesarrollo de la evolución política de los imperios coloniales americanos, desde sucreación en el siglo XVI hasta su crisis y desaparición por los procesos emancipadoresque comenzaron a finales del siglo XVIII.

El autor va señalando a lo largo de los capítulos la importancia de aspectos quefueron motivo de amplias discusiones ideológicas como la conquista y colonización; lamisma creación, evolución y significado de los imperios; el papel de los metales preciososy sus consecuencias; la emigración, la agricultura, el comercio, la esclavitud, eldebate entre expansión y conservación, la relación entre la metrópoli y las colonias…CríticaSe cumplen ahora 10 años de la publicación en castellano de esta obra. Podemosdecir que nos encontramos con un libro verdaderamente moderno y original, ya quese trata del primero que analiza comparativa y paralelamente las teorías e ideologíasdel imperio en tres países (España, Inglaterra y Francia) de modo simultáneo a lolargo de toda la Edad Moderna, teniendo en cuenta además los precedentes y las consecuenciasposteriores.

184Para ello el autor ha realizado una enorme labor de documentación, consultandonumerosas fuentes históricas de muy diversa temática y procedencia, desde la AntigüedadClásica hasta las fuentes historiográficas actuales. Por ello la labor de recopilacióny organización del material bibliográfico nos parece digna de mención, configurandoasí una obra erudita y muy completa, aunque no exenta de complejidad.

Se trata, pues, de un trabajo de historia intelectual en su más amplio sentido: profundo,original, intenso, sólidamente argumentado e intelectualmente estimulante, dealto nivel científico.

Sin embargo, al mismo tiempo se podría comentar que en algunos momentos dela lectura es difícil distinguir las opiniones personales y conclusiones a las que vallegando el historiador de las desarrolladas por los escritores o pensadores históricoscitados en el texto, ya que ambas van apareciendo entremezcladas en el discurso y enmuchas ocasiones no queda muy clara la separación entre ellas. Y debido al lenguajey tecnicismos utilizados en ciertos momentos, algunos pasajes pueden parecer dedifícil comprensión.

La enorme cantidad de Notas que aparecen en cada capítulo, y que Pagden hapreferido colocar todas juntas al final del libro en vez de colocarlas a pie de página, esquizás un aspecto que también podría destacarse. Si por una parte la proliferación denotas enriquece el libro aportando muchos más datos complementarios (algunas notasen sí mismas son bastante extensas), por otra parte puede hacer más compleja (ylenta) su lectura y restarle al libro agilidad. Si el lector opta por ir consultando a cadamomento las notas que van apareciendo a lo largo de la lectura, ésta puede hacerse untanto ardua.

Anthony Pagden ya nos señala en el Prefacio que su libro es una versión muyampliada y revisada a partir del núcleo inicial del curso semestral que impartió en lacátedra Carlyle de la Universidad de Oxford, en 1993. Esto ya puede ser indicativode que el historiador ha realizado un estudio de alto nivel intelectual y científico, ypara enfrentarse a él el lector debe estar previamente preparado y formado, porqueaparecen numerosos datos, conceptos y personajes históricos que deben conocersey enmarcarse en su contexto histórico y en su corriente de pensamiento, o de otramanera el lector corre el riesgo de extraviarse o no sacar el máximo provecho de sulectura.

Por ejemplo, como una muestra de la erudición de la que Pagden hace gala, en ellibro aparecen varias citas en la lengua original del escritor que se menciona (latín,inglés, francés), y también muchas obras, conceptos o palabras en su idioma original(en latín, griego, inglés, francés, alemán o italiano), lo que presupone una buenapreparación intelectual y lingüística por parte del lector. Algunas veces aparece sutraducción al castellano, pero otras no. Esta misma preparación cultural previa podríaser necesaria también ante el uso de una terminología jurídica en la discusión de cier185tos asuntos, con conceptos de derecho romano, derecho civil y derecho natural porejemplo; e incluso cuando el autor realiza un profundo estudio lingüístico sobre elorigen y significado de algunos términos importantes como imperio, monarquía, etc.

Se podría criticar la aparición de algunas aseveraciones discutibles, como la alusiónal «azar» en el caso del imperio español (un concepto abstracto y relativo quemerecería quizá un mayor debate histórico, tanto fuera como dentro del libro); o lacrítica a la democracia que aparece al final del libro. Y en general hay una escasa alusiónal papel de la religión y a las Iglesias cristianas europeas, ya que no sólo el papelde la Iglesia católica en América no aparece muy desarrollado (aunque por supuestosí hay alusiones al Papado y a las bulas de donación), sino que apenas se menciona elpapel del protestantismo y de las diversas iglesias protestantes.

Es interesante la utilización que hace Pagden en este libro del Método comparativo,señalando que desde Raynal los historiadores han permanecido indiferentes antelas posibilidades que ofrecía la comparación. Es quizás esto lo que hace de esta obraun verdadero libro moderno y original, que pudiera abrir el camino a otros estudiossimilares.

En definitiva, con este libro creemos que Anthony Pagden hace una interesanteaportación a los estudios coloniales e imperialistas, enfocado desde el punto de vistade cómo el pensamiento europeo afectó a las relaciones entre los pueblos y los Estadosde Europa; un pensamiento cuyo impacto no sólo influyó en el desarrollo de esosmismos imperios, sino que tiene aún profundos efectos en las relaciones internacionalesde la actualidad.

Francisco Javier Asturiano Molina-Niñirola

Acessar publicação original

[IF]

 

Jesuítas e inquisidores em Goa – TAVARES (RBH)

TAVARES, Célia. Jesuítas e inquisidores em Goa. Lisboa: Roma Editora, 2004, 298p. Resenha de: FRANCO, José Eduardo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.26, n.51  jan./jun. 2006.

Em torno da complexa problemática da Inquisição moderna no quadro da história cristã ocidental paira um amontoado de noções, visões, imagens, umas distorcidas, outras ambíguas, a maioria delas hipertrofiadas. Estas percepções resultam de ilações simplistas, de associações temáticas e institucionais imprecisas, e ainda de muitos juízos que desconsideram o contexto mental do tempo histórico em que emergiu e vigorou o Santo Ofício como máquina judicial poderosa ao serviço da Igreja e dos poderes políticos que exigiram e subvencionaram a sua erecção.

Entre essas visões cristalizadas e “pré-conceitos” acríticos podemos recordar alguns dos mais recorrentes que não são mais do que o produto de intensivos tempos de propaganda e polémicas que teceram uma “lenda negra” do Santo Ofício e de instituições que colaboram ou conviveram com este tribunal. Essa marcante cultura de propaganda e polémica deu origem a avaliações desfasadas na integração e valorização da Inquisição naquilo que podemos chamar a história universal da repressão.

Eis algumas dessas hiper-focalizações. A exagerada concentração dos juízos em torno dos tribunais da Inquisição ibéricos como sendo muito mais temíveis, violentos e repressivos do que os seus pares de outros países católicos europeus, visão apriorística que tornou os outros tribunais aparentemente mais benignos e mais inofensivos. A excessiva valorização dos tribunais do Santo Ofício como as instituições judiciais que mais usavam de métodos repressivos violentos e atrozes, esquecendo-se que no mesmo período histórico as instituições judiciais do Estado usavam paralelamente de práticas e métodos repressivos tanto ou mais injustos e esmagadores. E ainda a hiper-focalização da atenção crítica nas formas institucionais de Inquisição católica, sonegando-se ou obnubilando-se que nas sociedades protestantes e em sociedades e culturas estruturadas por outros sistemas religiosos também coexistiram e se desenvolveram, naquela mesma época, sistemas e formas de controlo com semelhante grau de vigilância repressiva.

Além destas percepções simplificadas e hiper-focalizadas nos Tribunais da Inquisição católicos, sedimentou-se uma visão mitificada que merece especial menção no quadro da apresentação deste livro. A associação íntima entre Inquisição e a Companhia de Jesus, ou se quisermos, a ideia da jesuitização da Inquisição. Ou seja, a tese de que sempre existiu uma cumplicidade plena entre os Jesuítas e a Inquisição, uma aliança terrível para a ruína do país, para opressão do povo e para o retrocesso do Estado. Esta ideia foi desenvolvida em Portugal pela literatura antijesuítica produzida sob os auspícios do marquês de Pombal e, em particular, ficou bem patente no novo regimento pombalino da Inquisição publicado em 1774, o qual se apresentava como o antídoto desse jesuitismo inquisitorial.1 Essa visão do jesuitismo inquisitorial foi muito reproduzida e propalada pela propaganda antijesuítica ao longo do século XIX e primeiras décadas do século XX. Os Padres da Companhia eram vistos como os mais impiedosos conspiradores contra as liberdades do povo, sendo a sua Companhia uma máquina de guerra lançada contra a nação portuguesa, tendo sido a Inquisição uma criação sua (um decalque judicial da estrutura da Ordem de Loyola). A Companhia de Jesus a teria imposto ao país, e no país se desenvolveu e perdurou sob o controlo férreo da Ordem de Loyola.2

Especialmente a Inquisição atrai com um magnetismo extraordinário, como nenhuma outra instituição, a projecção dos nossos juízos mais recriminadores. No seu repúdio não deixamos de projectar, como que se de uma deflagração do inconsciente se tratasse, os nossos medos e angústias. Nela projectamos o receio bem nosso do regresso dos tempos da tirania, da repressão social, da ausência de liberdade enquanto valor mais caro ao ser humano, o que mais o realiza e o que mais o torna autêntico.

A emergência da Inquisição Moderna, com todo o seu aparato repressivo e a sua ambição omni-controladora desde as práticas sócio-culturais e comportamentais externas até ao fundo mais secreto das consciências, pode ser entendida como uma reacção exacerbada e violenta à fractura crescente que se começou a operar na modernidade entre a esfera espiritual e a esfera secular temporal. As instâncias estruturantes e garantes do regime político-social e mental de Cristandade impuseram um organismo de controlo para fazer face às consequências da ameaça real da perda progressiva do poder unificador do religioso que tudo tecia — as atitudes, os pensamentos, os valores, as opiniões, os afectos — sob um mesmo horizonte de sentido.3

Pensamos ser fundamental reflectir a expansão dos tribunais da Inquisição como reacção poderosa a uma revolução de mundividências que a modernidade trouxe consigo como ponto de chegada de um longo período de gestação medieval da reflexão sobre o homem, o cosmos, a deriva da história e sobre a própria Igreja e o seu julgamento enquanto herdeira (fiel ou infiel) do legado de Cristo. A valorização antropologizante do indivíduo e das suas possibilidades e faculdades de iniciativa e de pensamento, a construção (proporcionada pelas viagens marítimas dos portugueses e espanhóis) da ideia de universalidade e da complexa diversidade cultural, étnica e religiosa do mundo, e paralelamente a agudização de uma consciência histórica teleológica de matriz apocalíptica acentuaram e hegemonizaram a posição dos sectores que alimentavam a tentação uniformizadora de um sistema de ortodoxia doutrinal que o catolicismo da Contra-Reforma enfatizou até ao extremo da intolerância mais anticristã que alguma vez se conheceu na História da Igreja.

Por outro lado, o projecto de constituição de uma instituição judicial com carácter centralizado foi muito desejado por alguns príncipes católicos. Em particular, destacaram-se neste processo os monarcas das coroas ibéricas da época em que curiosamente prosperava o Renascimento e o Humanismo. Esses movimentos culturais que abriram as portas do mundo moderno suscitaram da parte dos “profetas” do puritanismo e da ortodoxia mais vigilante a crítica ao paganismo que teria tomado conta de alguns dos mais destacados produtores culturais dentro da própria cristandade, muitas vezes a expensas dos próprios príncipes eclesiásticos, seus mecenas. Essa onda de “paganização” que invadia os próprios antros da Igreja significou para muitos o prelúdio da vinda do Anticristo e a aceleração do epílogo desastroso da própria história que seria coroada com um severo juízo final, como asseveravam as profecias antigas.

Só na complexidade sócio-mental do dealbar da modernidade é que se pode entender plenamente as razões de fundo que levaram à montagem de um tribunal dessa natureza e dessa dimensão. No fundo, a criação de um tribunal desse género no seio da cristandade moderna traduz a dificuldade dessa mesma cristandade em lidar com a emergência cada vez mais palpável, diversificada e concorrencial do Diferente, quer o Diferente interno (judeus, protestantes, esotéricos…), quer o diferente que se apresentava nos limites das suas fronteiras (gentios, infiéis…).4 Essa “perigosa” aparição e afirmação do Outro, enquanto radicalmente diferente do Nós, como colectividade grupal, étnica, cultural, religiosa ou doutrinal fez tremer a cristandade de tradição medieval que ficou possuída pelo medo de que o seu edifício sócio-religioso e mental fosse seriamente corroído. A Inquisição é a face mais agressiva e violenta desse medo.

No que a Portugal diz respeito, o empenho diplomático de D. João III e dos seus sucessores, à semelhança do que tinham feito os vizinhos reis católicos de Espanha, conseguiu que fosse instalado e subsidiado no país e no ultramar, com a legitimação suprema do poder papal através de bulas, breves e privilégios de vária ordem, a imensa rede de vigilância activa do Tribunal do Santo Ofício e dos seus tentáculos com uma eficácia repressiva sem par na história deste reino. O projecto bem-sucedido de imposição dessa instituição judicial sobre as instituições e forças vivas seculares e religiosas do país não deixou de transportar consigo, para além do desejo de “purificação” doutrinal e moral, o desiderato íntimo de o emergente Estado moderno português possuir uma instância de controlo da consciência colectiva para serviço de um ideário centralizador do poder monárquico que pretendia reforçar-se perante os outros pólos de poder.

De facto, o controlo social, mental, comportamental generalizado através da montagem de uma teia de medo por toda a monarquia, embora sustentada sobre pilares de ordem teológica, não deixou, por isso, de servir de algum modo o ideário centralista monárquico, que assim passou a usufruir de um poderoso instrumento de regulação das formas de pensar, de agir, de manifestar-se publicamente… Também aqui a questão económica não foi uma questão de somenos importância. A prática do confisco de bens permitiu a transferência de capital de bolsos dos investidores e produtores de riqueza para elites de poder tradicionais e para a própria instituição estatal que passavam por dificuldades de adaptação numa época de revolução das fontes clássicas de enriquecimento.5 Da Inquisição, o Estado centralizado moderno e a elite que o sustentava tiraram benefícios em termos de controlo do capital crítico e do capital a ele inerente de desestabilização social, favorecendo a sedimentação de um comportamento colectivo domesticado através de uma implacável pedagogia do medo que veio substituir a genuína pedagogia evangélica da misericórdia como denunciava na cara e na casa do Santo Ofício de Lisboa, Fernando Oliveira (c.1507-c.1582), uma das figuras mais notáveis e originais do humanismo português.6

A realidade histórica é sempre mais complexa do que aquilo que a fazem as simplificações muitas vezes maniqueístas dos nossos juízos. E quando da Inquisição e dos Jesuítas se trata, tanto mais vasta e impetuosa é a tentação simplificante das nossas conclusões.

Mas acima de tudo, o terreno historiográfico do estudo das questões inerentes ao Tribunal do Santo Ofício é aquele em que as análises mais podem correr o risco de serem enfermadas pela paixão do historiador de hoje e pelas marcas da sua mundividência, isto é, do seu horizonte mental e ideológico. Trata-se, com efeito, de um terreno altamente movediço.

A complexidade da análise da problemática que representa a história da Inquisição deve considerar como tarefa crítica preliminar a integração da configuração institucional desse tribunal e da compreensão da sua larga base de apoio sociológico no contexto e na mentalidade do tempo e da sua avaliação no quadro da história comparada das instituições. O esforço de interrogação e de complexificação que o conhecimento histórico exige para abrir horizontes mais largos de compreensão não nos deve impedir, todavia, como pessoas do século XXI, de repudiar e de lamentar a desumanidade que semelhantes instituições promoveram. Mas ficar por aí e não procurar o distanciamento que se exige para fazer uma história complexizante, é acrescentar pouco à construção do conhecimento histórico que deve ser “esse conhecimento das sociedades vivas, nunca o seu julgamento e enquadramento doutrinário”.7

A história é um campo de conhecimento sempre em construção. Para tal urge perfilar cada vez mais corajosamente uma história aberta capaz de integrar e usufruir sem preconceitos dos contributos de outras áreas de conhecimento que possam levá-la mais longe na percepção do homem e do seu percurso através do tempo. A história joga o seu futuro precisamente nesta atitude “ecuménica” de saber aceitar e lidar com os métodos e conteúdo das outras ciências humanas e sociais. Assim a história poderá realizar o sonho de Fernand Braudel que idealizava a disciplina historiográfica como o ponto nodal, o lugar de cruzamento, onde se poderá realizar melhor a síntese interdisciplinar no quadro alargado das ciências do homem.

O historiador é por excelência aquele que deve ter a consciência “antidogmática” de que as suas conclusões são passíveis de serem reformuladas e que os seus juízos são transitórios. A história que ele constrói deve estar sempre aberta a novas abordagens que fazem da historiografia uma realidade dinâmica e aberta. É, por isso, tão actual e tão extraordinária a definição daquela que deve ser a melhor atitude do historiador perante o seu métier e perante os resultados da tecelagem da história estabelecida por Vasco de Magalhães Vilhena há quase cinquenta anos:

Ser historiador, é repudiar a falsa segurança, a certeza tranquila; é nunca renunciar a um íntimo recomeço, jamais desertar da obrigação de um perpétuo reajusto fundamentado que responda a necessidades novas de inteligibilidade. O historiador tem hoje, como nunca tivera até agora, a consciência de não criar para a eternidade … Só há história do imperfeito, do inacabado, do que tende incansavelmente a superar-se. Na medida em que é possível restituí-lo, o “passado” que é ainda presente, sempre se reconstrói.8

A tese de doutoramento de Célia Cristina Tavares que aqui é publicada na íntegra em forma de livro é exemplar à luz daquilo que se espera de um historiador contemporâneo, sério e aberto ao trabalho interdisciplinar. Ousando abordar um objecto difícil e complexo como a Inquisição de Goa na sua relação de colaboração/conflito com os Jesuítas e com outros actores em presença na construção da sociedade cristã goesa, a historiadora oferece uma abordagem inovadora, mostrando as diferentes faces da problemática em questão e, especialmente procurando desconstruir as visões simplificantes que chegaram até nós. As questões estão bem colocadas e a autora procura dar, de diferentes ângulos de visão, um panorama das instituições em estudo de uma forma arguta e com notável espírito se síntese. Assim, Célia Tavares apresenta-nos vários quadros problemáticos que permitem abrir um novo horizonte de compreensão da cristandade indiana: as diferentes metodologias e modelos pastorais em confronto, as divergências existentes entre as ordens religiosas, as visões exógenas das práticas institucionais e sociais da Inquisição. Procura, de um modo sagaz, analisar a formação da lenda negra do Santo Ofício através de narrativas de viagens, os conflitos entre a Inquisição e a Companhia de Jesus e a colaboração dos Jesuítas com a Inquisição, os conflitos no próprio seio da Inquisição e no seio da própria Ordem de Santo Inácio…

Escrita de uma forma elegante e clara, mas sem descurar o rigor, este livro, apesar de ter sido elaborado para servir de prova de doutoramento, apresenta-se de leitura agradável capaz de encantar um público mais alargado que não só os especialistas na matéria, que muito poderá usufruir com esta síntese bem elaborada e documentada de aspectos importantes da presença portuguesa no Oriente.

A leitura desta obra aguça-nos a consciência de que a verdade histórica é uma verdade sempre em construção,9 uma verdade inacabada que cada geração faz e refaz à luz dos seus quadros epistemológicos e dos seus métodos e interesses científicos próprios.

Ao concluir a leitura deste livro que o leitor agora tem entre mãos fiquei com o sabor estimulante de que “a história permanece paixão, empenho e deslumbramento”.10 Por isso, a história enquanto ciência do passado continua com muito futuro.

Notas

1 Cf. FRANCO, José Eduardo; ASSUNÇÃO, Paulo de. Metamorfoses de um polvo: religião e política nos regimentos da Inquisição Portuguesa (séculos XVI-XIX). Lisboa, 2004.

2 Para uma desconstrução desta imagem perfeita da cumplicidade entre os Jesuítas e a Inquisição ver FRANCO, José Eduardo. “Jesuítas e Inquisição: cumplicidades e confrontações no Brasil e no Oriente (Sécs. XVI-XVII)”, in Relações Luso-Brasileiras. Revista Convergência Lusíada, v.19, 2002, p.220-34; e FRANCO, José Eduardo; VOGEL, Christine. Monita Secreta (Instruções secretas dos Jesuítas): história de um manual conspiracionista. Lisboa: Roma Editora, 2002.

3 Cf. MOURÃO, José Augusto. “Da funesta liga do trono e do altar — A afecção (anti)clerical”, in ABREU, Luís Machado de; MIRANDA, António José Ribeiro (Coord.) Actas do colóquio sobre Anticlericalismo Português: história e discurso. Aveiro, Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2001. p.27.

4 Ver BETHENCOURT, Francisco. “Rejeições e polémicas”, in AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.) História religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000. p.49ss.

5 Cf. TORGAL, Luís Reis. A Inquisição: aparelho repressivo e ideológico do Estado. Separata da Revista Biblos, Coimbra, n.51, 1975, p.637; e COELHO, António Borges. Cristãos-novos judeus e os novos argonautas, Lisboa: Caminho, 1998.

6 Cf. FRANCO, José Eduardo. O mito de Portugal: a primeira História de Portugal e a sua função política, Lisboa: Roma Editora, 2000. p.57.

7 MACEDO, Jorge Borges de. “Dialéctica da sociedade portuguesa no tempo de Pombal”, in Como interpretar Pombal? Lisboa/Porto: Edições Brotéria e Livraria A.I, 1983. p.16.

8 VILHENA, Vasco de Magalhães. Filosofia e história, Separata do capítulo publicado em Panorama do pensamento filosófico. Lisboa: Cosmos, 1956. p.181-2.

9 Cf. GOODMANN, Nelson. Modos de fazer mundos. Porto: Edições Asa, 1995.

10 ALMEIDA, A. A. Marques de. “A escrita da história: questões de teoria e de problematização”, in Clio, v.5, 2000, p.17.

José Eduardo Franco – Centro Faces de Eva – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa.

Acessar publicação original

[IF]

Excavating Jesus: Beneath the Stones, Behind the Texts – CROSSAN (RHAA)

CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Excavating Jesus: Beneath the Stones, Behind the Texts: Revised and Updated. Sn.: Harper Collins,  2009. 368p. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n.5, dez., 2005.

Paulo Paulo A Funari

Acesso somente pelo link original

Jesuítas e Inquisidores em Goa: a cristandade insular (1540-1682) | Célia Cristina da Silva Tavares

O livro de Tavares é resultado de sua tese de doutorado, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, sob a orientação de Ronaldo Vainfas. Para quem se interessa ou pesquisa a história de Portugal, seus domínios e as questões que emergem desse contexto, Jesuítas e Inquisidores em Goa é um texto atrativo, agradável, denso e, por tudo isso, interessante.

O tema do livro é a relação do Ocidente com o Oriente no período de domínio dos portugueses sobre a Índia. O título do livro já evidencia qual o objeto trabalhado: a cristandade na ilha de Goa num período determinado, utilizando-se para explicar o conceito de cristandade a atuação da Companhia de Jesus e do Tribunal da Santa Inquisição. A autora apresenta como justificativa para a delimitação histórica o espaço de tempo entre o recrudescimento da repressão portuguesa à religião hindu, com a destruição de templos (1540), até a criação de uma congregação religiosa masculina exclusiva de padres nativos – Congregação do Oratório da Santa Cruz dos Milagres (1682), período esse em que tanto a Companhia de Jesus como a Inquisição são bastante atuantes no Oriente como um todo e em Goa de forma particular. A fundação da nova ordem religiosa simbolizou “a atitude do clero nativo diante dos problemas de enquadramento na vida eclesiástica local, mais especificamente, no anseio de participação nas actividades missionárias, e desnuda as grandes contradições do processo de cristianização que se desenvolveu na capital do Estado da Índia” (p. 29). Leia Mais

The Cash Nexus: Money and Power in the Modern World, 1700-2000 – FERGUSON (CSS0

FERGUSON, Niall. The Cash Nexus: Money and Power in the Modern World, 1700-2000. New York: Basic Books, 2001. 552p. Resenha de: SENGER, Elizabeth. Canadian Social Studies, v.38, n.2, p., 2004.

The Cash Nexus is an indepth study of the complex relationship between economics and politics from 1700 to 2000. Niall Ferguson, a professor at Oxford and New York Universities, analyzes this connection in North and South America, Europe, the Middle East, and to a lesser extent, Asia and Africa. This makes it a valuable resource for scholars all around the world. Further, Ferguson’s detailed notes for each chapter, and the extensive bibliography at the end of the book provide more than sufficient means to verify the validity of his evidence, and an avenue for further research on the part of the reader.

The book presumes an extremely broad base of knowledge on the part of the reader, literally from classical Greece Rome to 20th century pop culture. The Cash Nexus would be most appropriately utilized at a university level, perhaps even more suitably in postgraduate work. It would be an excellent resource for economics professors, and to a lesser degree for history professors. It is clearly a highly academic work, best suited as an instructor resource.

There are numerous charts, diagrams, graphs, tables, and a few cartoons. Most of the visuals are easily understandable, but there are a couple of problems. First, some of the graphs are so crowded with information as to be almost unusable. For example, Ferguson offers a comparison between the real national product indices of European democracies and dictatorships between 1919 and 1939 (pp. 366-7). A conglomeration of countries is presented in each graph, and because each is represented by a slightly different shade of grey the graphs are difficult to follow. Use of color and/or making these graphs bigger would enhance their readability and usefulness. Second, there are a number of historical political cartoons presented throughout the book. The quality of reproduction on a number of these is, regrettably, quite poor, hence their impact is diminished. Better reproductions, as well as some explanation of what we are seeing would add greatly to their value.

Ferguson’s major themes include government spending, taxation, debt, interest policies and the role of social classes. He also discusses political corruption, financial globalization, the boom and bust cycles of economies, the relationship of democracy and development, and global fragmentation. All in all, the book makes for fascinating and informative reading. His sense of humor lightens an admittedly heavy topic, and his insightful analysis of a very complex topic offers some innovative views. The Cash Nexus encourages and challenges the reader to consider economics in a variety of ways, and to seek solutions to the problems presented by twenty-first century world development.

Elizabeth Senger – Henry Wise Wood High School. Calgary, Alberta.

Acessar publicação original

[IF]

El Salvador: The Land. Philippines: The Land. Vietnam: The Land – NICKLES (CSS)

NICKLES, Greg. El Salvador: The Land. Crabtree Publishing: New York, St. Catherines, ON, Oxford, 2002. 32p. NICKLES, Greg. Philippines: The Land. Crabtree Publishing: New York, St. Catherines, ON, Oxford, 2002. 32p. KALMAN, Bobbi. Vietnam: The Land (Revised Ed.). Crabtree Publishing: New York, St. Catherines, ON, Oxford, 2002. Pp. 32p. LIOR, Noa; STEELE, Tara. Spain: New York: The Land. Crabtree Publishing; St. Catherines, ON, Oxford, 2002. 32p. Resenha de: DARLING, Linda Farr. Canadian Social Studies, v.38, n.2, p., 2004.

What do elementary students and their teachers want to discover in a geography book? We could start with engaging and authoritative descriptions of places, stunning photography of landscapes and human activity, and a sensitive portrayal of what makes the cultures of a country unique and dynamic. In the four books I examined in this new geography series for young students-The Land, Peoples, and Cultures Series which includes twenty-two titles to date-vibrant pictures, straightforward text, and a well-organized layout introduce the natural features and resources, the industries and architectures, and the past events and pastimes that shape the diverse countries of El Salvador, Vietnam, Spain, and the Philippines. All four books have been produced with a keen eye for colour, design and sensible layout in an 8 by 11 inch format. The contents of each volume cover a lot of ground in about thirty pages, so understandably we see a few slices of life, and not a great amount of detail. I was pleased to see that modern urban areas are represented alongside more traditional rural communities, and that an appealing mix of photographs includes children at play as well as loaded ships at port (a staple it seems in geographical archives). Each book begins with a ‘facts at a glance’ box and ends with a brief index (very helpful) and glossary with brief definitions (not as helpful). Leia Mais

Far Eastern Tour: The Canadian Infantry in Korea 1950-1953 – WATSON (CSS)

WATSON, Brent Bryon. Far Eastern Tour: The Canadian Infantry in Korea 1950-1953. Montreal and Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2002. 256p. Resenha de: LeVOS, Ernest. Canadian Social Studies, v.38, n.3, p., 2004.

There are certain elements in this book that one finds hard to fault where the author is concerned. It is well researched and well documented with thirty-seven pages of notes; a few notes have additional explanations. Secondary and primary sources are well integrated and the author effectively analyses and explains the diverse experiences of the 25th Canadian Regiment (the Royal Canadian Regiment, the Princess Patricia’s Light Infantry and the Royal 22e Regiment) in the Korean War that was a sideshow for Canada (p. 96). A significant question that arises from this work is whether the Canadian government and military have learned any lessons from the Korean War. The contributions of the 25th Regiment have been overlooked and their participation in Korea was more than police action or a peacekeeping mission: it was a war.

What did members of this distinguished regiment face? The soldiers were inadequately trained for patrol operations, and were badly in need of Canadian kit and clothing(p. 38). The problems the soldiers faced with the 9mm Sten gun conjure up bad memories of Col. Sam Hughes and the Ross Rifle fiasco during World War I. The soldiers had an inadequate knowledge of all things Korean, from foods, smells, the lack of respect for life, and even language. Consequently, it was natural, like Jacques Cartier of old, to describe the newfound country as God-forsaken. Furthermore, as journalist Pierre Berton has pointed out, soldiers and military administrators were culturally insensitive.

The author also focuses on the nature of group dynamics (p. 68). The 25th Regiment worked alongside the Korean Service Corp (KSC), an esteemed battlefield ally, and the Korean Augmentation Troops, Commonwealth (KATCOM) who were viewed as interlopers at best, and dangerous battlefield liabilities at worst(p. 68). But there were other dangers, such as having to fight a highly capable Chinese enemy that fought and outgunned the Canadian patrols (p. 80). For the most part, Canadian soldiers were unable to conduct successful patrols. They faced a dismal battlefield performance, but despite casualties in the battle of Hill 355, battle exhaustion and self inflicted wounds, Canadian casualties in Korea were extremely light [when] compared with the carnage in the two world wars (p. 108). However, Watson does emphasize the fact that clearly, the fighting in Korea was far more lethal than the euphemism ‘police action’ suggests (p. 111). The injured, unfortunately, received appalling medical treatment. For many, the injuries sustained were very traumatic and deadly.

There were other dangerous challenges the soldiers faced. Diseases such as dysentery and malaria were a serious threat to the soldiers and the 25th Brigade found itself confronting a VD epidemic unparalleled in Canadian military history (p. 133). The author makes a humble admission at this point when he writes that it is difficult for the historian writing nearly five decades after the fact to express in print the fear induced in front line troops by the ever-present threat of contracting hemorrhagic fever (p. 131).
While the first eight chapters will spark rage and sympathy among readers, chapter 9, Forgotten People, was the chapter that caught my attention: the soldiers in the firing line lived like tramps without even the most basic comforts (p. 142). The rations were unappetizing and drinking water was unsafe. There were rats and snakes to contend with, and climatic conditions in the winter and the summer posed a formidable challenge to weapons maintenance (p. 150). Writing paper was a scarce commodity and there was inadequate and unsatisfactory entertainment.

While the Canadian soldiers faced numerous hardships, deprivations and an unhappy experience in Korea, it was the little things such as a turkey dinner for Christmas that made all the difference to lowly combat soldiers (p. 156). What eventually sustained the morale of the soldiers, and in many instances, turned out to be disastrous and fatal, was the love of rum and coke as the last chapter is entitled. Alcohol, a feature of military life, took its toll.

It is unfortunate that a regiment that made significant contributions under adverse conditions would not be greeted with a parade upon their return home, nor receive the concern of their government. It was a government that was more Eurocentric in its policies, with an army that was seriously overextended during the Korean War era (p. 179). Were any lessons learned from the Korean War experience? Perhaps not, if the larger picture is considered and if an individual reads chapter three (From the Great War to the Afghan War: Canada as Soldier) of Andrew Cohen’s book While Canada Slept: How We Lost Our Place in the World.

Far Eastern Tour is more than a catalogue of pathetic situations encountered by the 25th Canadian Regiment in Korea. It solicits a greater respect and recognition for the Canadian soldiers who fought in the Korean War. While it is possible to criticize the government’s policy makers and military administrators for their insensitivities, I came away from this well-written book with a greater respect for the contributions made by the Canadian Armed Forces.

This book will cater to a small audience such as high school students and university students interested in military history and in those distinguished soldiers who fought for Canada and are still living. There was a typo error on p. 39 (the word should have been mud). That aside, it would be beneficial to readers to view some photographs even wartime illustrations and posters and a map or two could have been included identifying such locations as Hill 355, Kap’yong, and the Jamestown line. For two good maps and sixteen pages of photographs, a reader should consult Ted Barris’ book Deadlock In Korea: Canadians At War, 1950-1953.

References

Barris, T. (1999). Deadlock in Korea: Canadians at war, 1950-1953. Toronto: Macmillan Canada.

Cohen, A. (2003). While Canada slept: How we lost our place in the world. Toronto: McClelland Stewart.

Ernest LeVos – Grant MacEwan College. Edmonton, Alberta.

Acessar publicação original

[IF]

 

Under the Black Umbrella: Voices from Colonial Korea, 1910-1945 – KANG (CSS)

KANG, Hildi. Under the Black Umbrella: Voices from Colonial Korea, 1910-1945. Ithaca and London: Cornell University Press, 2001.166p. Resenha de: LeVOS, Ernest. Canadian Social Studies, v.38, n.3, p., 2004.

This is a book of many voices and it will appeal to a wide audience for many reasons. It is appropriately titled, well organized and published by a reputable press. The personal stories of suffering and the will to survive describe the existentialist existence of a nation under colonial oppression. These stories defined a people and eventually two countries: North Korea and South Korea. From another perspective, it is a set of stories that defined Japanese colonialism for thirty-five years. In this book the author skilfully weaves together a common experience of subjugation as told by fifty-one Koreans.

Six of the fourteen chapters are oral accounts by six individuals: a teacher cum businessperson, a bank manager, two homemakers and two students. Eight chapters contain oral accounts of varying lengths from groups such as farmers, fishers, peddlers and professional people. The story each person relates paints a picture of assimilation, accommodation, oppression, subjugation, and cultural and religious compromise under Japanese rule. Chaos, confusion and cruelty also figure prominently. While stories of victimization predominate, the book does include some accounts of compassion and mercy. There were a few Japanese colonial and military administrators who were kind to the Koreans but these Japanese were a handful that saw a bigger picture and shunned a narrow island mentality of which they were accused (p. 132).

While Kang does not admit using a specific definition of history, it is evident that she views history as the process of change over a period of time. Part I covers Change by Choice and Part II is Change by Coercion. In the coverage of both parts of the book, significant topics such as the Korean Independence Movement, the infatuation with Communism and the role of village schools called Sodangs, are acknowledged.

The Korean Independence Movement is addressed in Under the Black Umbrella. Koreans fought hard to preserve their individual and national identity since they were fighting a war against the dangers of becoming Japanese. Various weapons such as religion and the study of the Bible were used in this war against assimilation. For Christians, it was impossible to preach Christianity openly. In fact, a wide range of weapons were used in the program of passive resistance including hiding crops, feigning ignorance, conveniently disappearing singing songs with hidden meanings, taking part in labour strikes, spreading anti Japanese rumours, and, especially Christians, refusing to bow to Shinto shrines (p. 99). Koreans experienced the consequences of such passive resistance – for example, finding it disastrous to use a piece of the Independence newspaper to wrap a package! Resistance continued during the Second World War. At a time when the Japanese wanted all the help they could get, Koreans kept up their passive resistance by hiding, ignoring the summons, or finding essential home-front jobs (p. 130). One person sought advice from a fortune-teller who was told to escape the draft since his lot, as a soldier would be a bad one. For those interested in the study of passive resistance, some of the latter accounts will remind them of similar movements in the history of Asia among the peasants who battled colonial rule.

There is no doubt that the author, perhaps inadvertently, prepares her readers to focus on mansei, independence. Mansei was the rallying cry, the song and statement of faith for freedom some day in the Korean future. The Japanese were devoted to controlling Korea, and the Koreans were determined to resist Japanese colonialism. In the pursuit of their own variety of manifest destiny, the Japanese military administrators introduced laws that required Koreans to recite the imperial pledge of allegiance, to speak only Japanese, to worship at Shinto shrines and to adopt Japanese names (p. 111). In short, Koreans were forced to assimilate. August 15, 1945 was a defining moment for Koreans for on this date the Japanese surrendered and Korea was no longer an imperial colony of Japan. They stopped becoming Japanese and it was a time for Korean communists and anti-Japanese nationalists to let out all their frustrations (pp. 143-144). Korea would never be the same again.

Oral histories are challenging exercises and the author does not ignore the element of accuracy where memory is concerned. Even though some of these individual stories are repetitious experiences, they will appeal to a wide range of readers – the general public, university and high school students. The latter will find the few experiences of Korean junior and senior high school students, some who worked in the fish cannery during the war, interesting. Part of their school day was given to forced labour. The author raises some pertinent issues that students could use for papers and discussions such as the influence of assimilation on Koreans and whether colonialism was a blessing or a bane for Korea.

There are other significant features of the book. The only map in Under the Black Umbrella is useful in locating some of the towns and regions in Korea. In addition, there are some appropriate photographs and a reprint of a post-card to celebrate liberation from Japanese rule. Also of interest to the reader is Appendix B, where the author briefly brought some of the individual stories up to date. Eventually, several of those she interviewed would make their home in the United States.

It is a truism that history is written by the victors. But it is understandable that many Japanese will not revisit the past, nor want to read or write about the ugly periods of their history. One is reminded of the article that Brigadier General S. L. A. Marshall wrote for the Atlantic Monthly a few months after the Korean War was over: Our Mistakes in Korea. Nations may write on the ugly past, warts and all, but unfortunately, we may get very little of the Japanese perspective.

References

Marshall, S.L.A. (1953). Our mistakes in Korea. Atlantic Monthly, 192(3), pp. 46-49. Retrieved from http://www.theatlantic.com/issues/53sep/marshall.htm.

Ernest LeVos – Grant MacEwan College. Edmonton, Alberta.

Acessar publicação original

[IF]

 

Holocaustos Coloniais. Calma, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo / Mike Davis

Norberto O. Ferreras – Universidade Federal Fluminense.


DAVIS, Mike. Holocaustos Coloniais. Calma, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro/São Paulo: Record Editora, 2002 (1ª ed. em inglês: 2001), 486 p. Resenha de: FERRERAS, Norberto O. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.4, p.237-241, 2003. Disponível apenas no link original. [IF].

The Fame of Gawa. A symbolic study of value transformation in a Massim (Papua New Guinea) society – MUNN (IA)

MUNN, Nancy D. The Fame of Gawa. A symbolic study of value transformation in a Massim (Papua New Guinea) society. Durham/London: Duke University Press, 1992. 331p. Reimpresión del original de 1986. Resenha de: MASSON,Laura E. Intersecciones en Antropología, Olavarría, n.4, ene./dic., 2003.

INTRODUCCIÓN

Mencionar el circuito Kula siempre fue para los antropólogos una referencia natural y obligatoria a Bronislaw Malinowski (1973 (1922)). Después de la publicación de The Fame of Gawa. A symbolic study of value transformation in a Massim (Papua New Guinea) society esta referencia debe hacerse extensiva al valioso y original aporte de Nancy Munn. La trascendencia de este libro, publicado originalmente hace casi dos décadas y aún no traducido al español, radica en que concentra varias preocupaciones contemporáneas de la antropología, sin duda poco discutidas en Argentina. Desde una lectura fenomenológica de la teoría de la práctica, The Fame of Gawa presenta una mirada diferente de los modelos de intercambio del clásico circuito Kula. Munn aborda aspectos tales como la construcción sociocultural del espacio y el tiempo, los problemas políticos y morales de la jerarquía y la igualdad, y la descripción de procesos de creación de valor en un espacio inter-islas. El análisis incorpora una perspectiva de género que reconoce la influencia de Annette Weiner (1976), quien renovó los estudios antropológicos de la región Massim e introdujo esta perspectiva a las discusiones sobre el kula. Mientras que Malinowski realiza su análisis a partir de la/s institución/es, Munn prefirió hacerlo partiendo del valor simbólico de las prácticas sociales. El relato se destaca por su coherencia interna. Así, su preocupación por la totalidad se refleja tanto en el análisis de la producción de valor en Gawa, como en la estrategia de construcción y presentación del argumento.

El libro se divide en cuatro partes. La primera está dedicada a la exposición del marco conceptual donde son definidos los conceptos claves para el desarrollo de un modelo antropológico sobre la creación y la transformación del valor en Gawa -pequeña isla del nordeste, de la región Massim de Papua Nueva Guinea-. El objetivo último de Munn es construir un modelo antropológico de la práctica como proceso simbólico partiendo del análisis de un caso etnográfico. Analiza la construcción del “mundo inter-islas Gawan” como parte de un proceso más amplio de creación de valor a través del cual los miembros de esa sociedad están comprometidos en la construcción y control de sí mismos y de su mundo social. En términos metodológicos la autora manifiesta moverse desde formas abiertas de acto (“mera facticidad”) a “relaciones internas” que dan formas significantes a los actos y especifican la naturaleza del valor producido. Dicho movimiento se da a través del análisis y explicación de significados culturales implícitos en las prácticas. Práctica (y/o acción) social son conceptos claves en la obra de Munn, lo cual resulta interesante en un análisis de porte estructuralista. Según Munn su trabajo “joins phenomenological and certain kinds of structuralist emphases frequently regarded as mutually exclusive”.

En la Parte II, Food transmission and spatiotemporal transformation, Munn se dedica a analizar la formación dialéctica del sistema simbólico de significados constituida a partir de determinadas prácticas sociales que tienen la capacidad de producir resultados, lo cual determina su valor o su proporción diferencial de potencia para crear un resultado. En el caso Gawa, este resultado sería la capacidad relativa de las prácticas para expandir el control espaciotemporal de los actores y de la comunidad como un todo. El acto creador de valor por excelencia es la transmisión de comida. Su opuesto, el consumo directo por parte del productor, no sólo reduce el tiempo de duración de la comida, sino quedestruye su potencial de creación de valor. A partir de esta dialéctica básica la autora analiza la relación de hospitalidad kula (skwayobwa) -considerada la base del intercambio kula-, el intercambio kula y el tipo de conversiones subjetivas posibles a partir de un acto de transmisión de comida, teniendo en cuenta que la persuasión es inherente al acto de dar comida. En las relaciones de hospitalidad, la comida es la persuasión no verbal y está en el centro de la relación. Mientras que en el intercambio kula el medio más importante de persuasión es el habla, actividad productiva necesaria para obtener “shells”. En este caso “habla” se opone a “comida”. La capacidad de persuadir y de tener un control más allá de si mismo, se refleja en el énfasis de la noción de recordar -los Gawans conectan el recuerdo con el acto de transmitir-.

Los intercambios kula crean, con sus viajes, un espacio-tiempo emergente que trasciende las transacciones inmediatas. Así, prácticas tales como hablar, recordar, olvidar, etc., son de vital importancia en la producción de un mundo común donde el resultado deseado depende de la habilidad de persuasión del dador. En el capítulo 5, Fame, Munn define a la fama como una conversión subjetiva positiva a través de una transacción particular, que deriva de un conocimiento externo de un otro distante a la transacción. Es un potencial de influencia sobre los actos de una tercera parte. Como código icónico y reflexivo la fama es una forma virtual de influencia, a través de la cual el actor se conoce a sí mismo, siendo conocido por otros. Este tipo de interpretaciones pone de manifiesto el carácter relacional del análisis de Munn, ejemplifica la coordinación de experiencias para la construcción de un mundo común inter-islas y apoya su supuesto de que la trama de significados constituye la existencia humana y que la realidad social es fundamentalmente simbólica.

Los valores positivos y negativos producidos en la tensión dialéctica del sistema simbólico en relación al consumo y transmisión de comida emerge en otros contextos bajo la forma de signos corporales denominados “qualisigns”. Existe una relación entre actos de comida y cualidades del cuerpo. Por ejemplo, comer mucho produce sueño. La pereza del cuerpo se convierte en un ícono de la negatividad de este espacio-tiempo intersubjetivo creado por el consumo como opuesto a la transmisión de comida. Esta relación entre los actos de comida y determinadas características son un reflejo de lo que la autora denomina un nexo subyacente de significados que es clave para entender la transformación del valor en Gawa y que actúa en diferentes contextos. La autora propone pensar el nexo (entire nexus) como una fórmula icónico-causal subyacente formada en la potencialidad del modelo de acción, el cual emplea tensiones dinámicas entre valores positivos y negativos en el proceso de formación del self y del self-other. Munn denomina a ese nexo relacional un patrón (template) o esquema generativo, intentando transmitir el sentido de una guía, una fórmula generativa que subyace y organiza significados en diferentes procesos o formaciones simbólicas abiertas, y que está disponible como una forma constructiva implícita para el manejo de la experiencia.

Partiendo del argumento de que este patrón gobierna tres ciclos de intercambios centrales, la Parte III del libro -“Exchange and the value template”- está dedicada al análisis de los intercambios matrimoniales, intercambios mortuorios y entretenimientos comunitarios, cada uno formando un modo particular de espacio-tiempo intersubjetivo. Para el último caso Munn analiza los dos entretenimientos comunitarios básicos: danza Drum y Comb, concentrándose primariamente en las formaciones simbólicas básicas de las transformaciones de valor positivas en ambas danzas puntualizando la manera en que los Gawans aseguran que éstas pueden ser socavadas por actos negativos. Por lo tanto estas prácticas están directamente ligadas a la demostración y mediación de jerarquía. Los intercambios mortuorios, por ejemplo, se caracterizan por los qualisignos de valor de los ritos, ítems del cuerpo decorado, directamente ligados al cuerpo de los participantes y en ciertas ocasiones intercambiados entre ellos. En ambos ciclos de intercambio, totalidad y jerarquía-igualdad son aspectos que aparecen implícitos en las prácticas, pero son puestos en evidencia con gran claridad en el Capítulo 6, dedicado al análisis de los intercambios matrimoniales. Los parientes del lado femenino dan comida, los parientes del lado masculino dan una canoa. La pareja nodal actúa como una unidad, es el tercer elemento que ofrece un lado diferente de los otros dos y hace de ellos una unidad (similaridad con el prerrequisito ternario del intercambio kula). A su vez el intercambio de la canoa debe ser considerado, según Munn, como parte del sistema kula inter-islas.

Las ideas de totalidad e igualdad están íntimamente relacionadas entre sí. La sociedad Gawa es fundamentalmente una sociedad igualitaria, donde cada individuo tiene autonomía, pero a su vez esta autonomía debe ser limitada a fin de que no ponga en peligro la igualdad. En este punto es donde juega un rol preponderante lasubversión del valor positivo simbolizada en las prácticas de brujería. Las brujas son identificadas con lo femenino, siendo una de las posibilidades de regular la jerarquía entre los géneros dentro del sistema Gawa. El patrón subyacente no sólo posee una tensión dialéctica entre valores positivos y negativos, sino que también tiene la posibilidad de subvertir un valor positivo en caso de que éste amenace el principio de igualdad.

El modelo totalizante presupone pares de opuestos que no se limitan a la elaboración de una lógica de oposiciones binarias como en el estructuralismo levistraussiano, sino que son concebidos desde una perspectiva Dumontiana de englobamiento del contrario y actúan dentro de una estructura generativa de valor. En este último aspecto es donde el aporte de Munn resulta más significativo. Las definiciones de género de las conchas kula, modelo de las relaciones políticas entre hombres y mujeres, son un buen ejemplo. El hombre debe influenciar a la mujer para ganar su consentimiento para los fines masculinos. El elemento femenino es visto como un lugar independiente de control que tiene que ser influenciado. En este contexto la “superordenación” del elemento femenino es evidente. Pero la polarización de género masculino y femenino es englobada por un orden más comprensivo. Desde que en el kula un collar debe ser convertido en brazalete y viceversa, cada objeto produce al otro, conteniendo su opuesto una potencialidad de él mismo. A través de la potencialización mutua en la circulación actual, las conchas crean una totalidad autoperpetuante.

Lo que trata de mostrar Munn en este proceso es la igualdad de los principios femenino y masculino cuyas asimetrías son resueltas en términos de la mutua necesidad y potencialización actual de cada uno en un proceso circular reversible. Munn logra dar una visión integral de la vida social de ese grupo, tratando la realidad como fundamentalmente simbólica y basada en la supuesta existencia de un esquema subyacente generativo que actúa en varios contextos del mundo Gawa. Al considerar a la existencia humana como una trama de significados, todas las prácticas y entidades incluidas en ella tienen la misma importancia analítica -sean materiales como comida o canoa, o inmateriales como fama- en tanto todas son prácticas significantes.

El modelo elaborado por Munn parece ponerse verdaderamente a prueba en el último capítulo del libro: “Didactic speech, consensus, and the control of witchcraft”, donde la autora admite, aunque no explícitamente, que la sociedad Gawa no es una mónada cerrada como parecía mostrar su análisis hasta este momento. En este capítulo Munn analiza un conflicto que se desata en la comunidad como consecuencia de la construcción de una escuela. En capítulos anteriores menciona la actuación dentro de la comunidad de padres pertenecientes a la Iglesia, pero sin especificar nada acerca de cómo se produjo la inserción de estas “nuevas autoridades” dentro de las prácticas religiosas de Gawa y qué significado adquirió la Iglesia en la creación de ese mundo simbólico (para una crítica acerca de los estudios antropológicos sobre cristiandad y religiones nativas ver Barker 1993). A pesar de que el conflicto presenta elementos que hasta ese momento no aparecían en el análisis y que son “externos” a ese todo integrado planteado por Munn, la explicación del mismo reproduce la lógica de análisis utilizada en otro tipo de prácticas en Gawa. El cambio sólo es concebido como una transformación de un estado posible a otro (de un estado negativo para uno positivo). El conflicto es explicado como un problema de coordinación espacio-temporal que repercute sobre los valores del esquema de producción de valor dominante en Gawa. Por lo tanto, el elemento dinámico –esquema generativo– y el énfasis en lo vivido se reducen a posibilidades de transformación, pero nunca de cambio. Plus ça change, plus c’ est la meme chose? 

Referências

Barker, J. 1993. Christianity in Western Melanesian Ethnography. En: Conversion to Christianity: Historical and Antropological Perspectives on a Great Transformation, editado por Robert Hefner. University of California Press, Berkeley.   [ Links ]

Malinowski, B. 1973 (1922) Los argonautas del Pacífico Occidental. Península, Barcelona.   [ Links ]

Weiner A. 1976 Women of Value, Men on Renown. University of Texas Press, Austin.   [ Links ]

Laura E. Masson – Departamento de Antropología Social, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, Olavarría, Buenos Aires, Argentina. Av. Del Valle 3757, Olavarría (7400). E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

Identités, Mémoires, Conscience historique – TUTIAUX-GUILLON; NOURISSON (CC)

TUTIAUX-GUILLON, Nicole; NOURISSON, Didier (Org). Identités, Mémoires, Conscience historique.  Publications de l’Université de Saint-Etienne, 2003. 220p. Resenha de: AUDIGIER, François. Le cartable de Clio – Revue romande et tessinoise sur les didactiques de l’histoire, Lausanne, n.3, p.319-321, 2003.

Ce volume rassemble les contributions présentées lors du Congrès mondial de la Société internationale de didactique de l’histoire qui s’est tenu à Lyon en 2001. Les organisateurs avaient retenu trois mots – identités, mémoires, conscience historique – pour définir le thème principal de ce Congrès, trois mots qui dessinent un ensemble de questions qui traversent aujourd’hui nos sociétés, l’histoire savante, l’histoire scolaire. Les questions posées ont rencontré un large écho dans la plupart des États et systèmes scolaires européens mais aussi en Amérique du Nord et du Sud, dans certains États d’Afrique et d’Asie. La diversité des contributions témoigne de cette large ouverture et de cette convergence des préoccupations. C’est un des intérêts forts de cet ouvrage que de nous ouvrir ainsi à d’autres horizons, de pouvoir établir des rapprochements, nuancer des différences, tenter de partager la recherche de solutions pour répondre aux défis que l’enseignement de l’histoire doit affronter.

L’ouvrage est divisé en trois parties. Chacune rassemble, autour d’un axe directeur, des contributions dans lesquelles les trois termes choisis pour ce Congrès entrent en écho l’un avec l’autre. La perspective commune est aussi celle d’une nécessaire interrogation de l’histoire scolaire du point de vue de sa définition, de ses contenus et de ses modes de transmission.

La première interroge « l’enseignement de l’histoire entre principes et pratiques ». Dans sa conférence d’ouverture Christian Laville livre une analyse critique du concept de conscience historique et du courant qui le porte. Empruntant ses références aux situations européenne et québécoise, il ouvre très largement son propos aux travaux anglophones. Il introduit ainsi une préoccupation qui habite de nombreuses contributions de cet ouvrage avec la critique du récit largement développée chez certains historiens et à l’école, et l’importance de plus en plus grande accordée à l’enseignement des modes de pensée historique. Nicole Tutiaux-Guillon s’appuie en particulier sur sa participation à l’enquête Jeunes et histoire pour mettre l’intention de construction d’une conscience historique critique au regard des coutumes didactiques. Elle souligne le poids des secondes comme obstacle à la première et souligne l’importance accordée aux connaissances comme vecteur privilégié voire unique pour cette construction. En s’appuyant sur l’exemple français Annie Bruter questionne la relation entre l’identité, la mémoire collective et l’enseignement de l’histoire. Si certains facteurs internes à l’école expliquent le délitement de cette relation, il convient aussi de considérer le rôle déterminant joué par les transformations de l’idée de nation. Elle conclut sur les ambiguïtés et les écarts qui caractérisent l’histoire scolaire et les discours officiels. Avec la Commune de Paris, Didier Nourrisson introduit les « oubliés » de l’histoire scolaire, les contenus de celle-ci variant de manière souvent plus spontanée que vraiment réfléchie. Ses réflexions se prolongent dans ce numéro du Cartable. Arja Virta clôt cette première partie par la présentation d’une enquête menée auprès de futurs enseignants du primaire en Finlande, sur les conceptions que ces derniers ont de l’histoire et de son rôle dans la société et pour les individus. Elle met notamment en évidence les composantes intellectuelles et critiques, mais aussi affectives et émotionnelles des relations que les personnes entretiennent avec l’histoire.

La deuxième partie traite de la question des « enjeux » et des « contextes ». Trois communications sont présentées par des universitaires engagés dans la formation des maîtres et travaillant dans des contextes différents. Robert Martineau analyse le problème identitaire canadien dans quatre de ses dimensions: historique, politique, civique et éducative, pour appeler à une nécessaire refondation de la citoyenneté canadienne dans une société plurielle. Il met en écho les travaux de nombreux historiens de son pays avant de plaider pour un enseignement qui, loin des grands récits épiques, privilégie un apprentissage des modes de pensée historique. Elisabeth Erdmann interroge la mémoire dans l’Allemagne d’aujourd’hui alors que s’y développe une sorte de « boulimie commémorative » selon la formule de Pierre Nora. Elle compare Les lieux de mémoire avec un ouvrage paru en Allemagne et inspiré par la même problématique, pour souligner certaines des différences entre les deux œuvres, différences liées au contexte de chaque pays. Observant l’accent mis en Allemagne sur les deux derniers siècles, elle propose de reprendre la distinction entre mémoire «communiquée» très liée à la mémoire orale, mémoire culturelle qui renvoie aux signes multiples dans une société donnée et mémoire historique liée aux méthodes critiques, à l’usage raisonné des sources, etc. Elle plaide pour un enseignement permettant aux élèves de différencier ces mémoires et pour le développement d’enquêtes comparatives entre nos États. L’enquête est le matériau sur lequel s’appuie Lana Mara de Castro Siman pour étudier les représentations du passé qu’ont de jeunes brésiliens, en prenant pour objet principal la fondation de la nation au Brésil et en utilisant la lecture d’images. Elle conclut notamment sur l’importance de l’histoire scolaire dans la formation de ces représentations et se prononce pour un enseignement qui favorise la rupture avec les schémas binaires simplificateurs.

Les contributions de la troisième partie sont rassemblées sous le titre de « Penser le passé, apprendre l’histoire ». Charles Heimberg développe l’importance d’un enseignement centré sur l’apprentissage des modes de pensée de l’histoire comme contribution d’une nouvelle manière d’interroger son identité et de regarder le monde. Il insiste notamment sur la distinction entre histoire et mémoire avant de proposer quelques exemples de travail en classe et de poser quelques questions sur la difficile question de l’évaluation. Jacques Vieuxloup présente une recherche en cours sur l’enseignement des concepts d’État et de pouvoir dans des classes de quatrième et de troisième dans un collège français. Tout en faisant place aux interrogations que l’idée même de concept soulève en histoire, il se situe dans la perspective d’un enseignement qui privilégie la construction de concepts et fait état des premiers résultats obtenus auprès des élèves. En s’appuyant sur les expériences menées à l’Université catholique de Louvain, Kathleen Rogiers fait quelques suggestions sur l’usage des ordinateurs dans l’enseignement et l’apprentissage de compétences historiques avec des élèves de l’enseignement secondaire. Le support est un cd-rom comportant quatre dossiers de sources historiques permettant de travailler sur le concept de pouvoir dans la société médiévale. L’accent est mis sur l’autonomie, la participation active, le travail d’interprétation, autant de résultats importants pour un enseignement renouvelé de l’histoire. Susanne Popp étudie la spécificité de la mémoire concernant Rosa Luxembourg et Karl Liebknecht et ses transformations en Allemagne. Elle part du fait que cette mémoire est une mémoire centrée sur un « couple » et non sur un « héros » pour analyser les possibilités que cette particularité éveille mais aussi les obstacles. L’existence de deux Allemagnes pendant une quarantaine d’années permet de développer une comparaison entre deux traditions mémorielles qui se rejoignent dans l’oubli des textes politiques de ces deux personnages. Angelina Ogier Cesari analyse les discours sur Napo léon 1er dans un corpus de manuels scolaires de l’école élémentaire entre 1880 et 1995 en France. Elle construit une périodisation de ces discours qui s’achève, à partir des années 1980, par une très nette diminution de la place accordée à Napoléon. Le lien avec les finalités de l’enseignement de l’histoire est ici fortement établi, la construction d’une identité nationale essentielle hier, un déclin de cette référence et une ouverture au monde aujourd’hui. En relation avec la mondialisation, Tayeb Chenntouf étudie la place donnée à l’histoire des civilisations et au concept de civilisation dans les enseignements d’histoire et de géographie des pays du Maghreb et de France. Il constate l’ouverture internationale de l’histoire surtout pour l’étude des civilisations anciennes et, en revanche, la place relativement modeste accordée aux civilisations du temps présent. Le projet Braudel reprend toute sa pertinence dans un monde où la prise en compte des identités plurielles, l’ouverture aux autres et la tolérance sont plus que jamais nécessaires.

Il revient à Henri Moniot qui a incarné l’intérêt des historiens universitaires pour la didactique de l’histoire de conclure en convoquant quelques « saints » auxquels se vouer. Choisissant Braudel, Létourneau, Lepetit et plusieurs autres, il reprend à nouveau frais la double référence, incontournable comme on dit aujourd’hui, qui commande l’enseignement de l’histoire: la connaissance et la connivence. Tout cela appelle, exige suis-je tenté d’écrire, la poursuite de divers chantiers déjà engagés, l’ouverture de quelques nouveaux, et pour tous, le développement de solides recherches appuyées sur des données empiriques, seul moyen de mettre à distance, au moins un peu, les dimensions idéologiques, affectives, les passions dont l’histoire et son enseignement sont l’objet.

François Audigier – Université de Genève.

Acessar publicação original

[IF]

Discurso da Dissidência / Noam Chomsky

Talvez Chomsky seja mais lembrado por sua rica produção acadêmica na área da lingüística. Lecionando esta disciplina no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA), desde 1955, tornou-se seguramente uma das maiores expressões no campo da lingüística. Hoje, através de seus inúmeros discursos políticos se credencia como uma das mais importantes vozes contra o establishment. Trata-se portanto de um especialista no estudo da linguagem com reconhecimento internacional que ora contribui com seus escritos e palestras para diminuir as injustiças sociais através de contundentes análises sobre a conjuntura mundial, particularmente sobre as conseqüências das políticas externas estadunidense e européia. Levando-se em conta o alcance que têm seus estudos face à problemática política atual pode-se dizer que é um autor relativamente pouco conhecido do grande público e, no caso brasileiro, também do público intelectual. Tendo em vista o seu indiscutível comprometimento em todas as situações que envolvem disputas internacionais e também a competência em tratar temas contemporâneos, mereceria maior atenção destes diferentes públicos.

O livro que escolhemos para comentar aqui é uma coletânea de diferentes artigos e entrevistas que apresentam um Chomsky ativista de direitos humanos e desmistificador da propaganda que objetiva controlar as pessoas nas mais diversas situações de exploração política e social.

Um exemplo do seu vanguardismo no tratamento de questões internacionais e do pragmatismo do seu trabalho pode ser ilustrado através da forma como abordou fatos da história recente do Timor Leste. Há quase três décadas não se via qualquer perspectiva de solução para os conflitos naquela região, tampouco qualquer voz entre os intelectuais que os denunciasse. Foi exatamente Noam Chomsky quem mais uma vez entrou em cena, denunciando a falta de comprometimento internacional para resolver problemas desta natureza. O silêncio jornalístico e literário mantido face aos desmandos indonésios no Timor foi quebrado através das palavras do nomeado autor. Para ele este terrível crime do século, pois: “…o assalto indonésio a Timor está nos lugares cimeiros, não só pela sua dimensão de holocausto – talvez o mais elevado número de mortes da população civil – mas porque poderia ter sido facilmente previnido ou pelo menos interrompido a tempo”, é um exemplo de como um pacto estabelecido entre governos e imprensa termina por beneficiar os agressores, colocando as vítimas na escuridão do esquecimento deliberado.

Nesta coletânea de textos pode-se portanto apreender muito da sua forma de pensar questões sóciopolíticas em perspectivas novas, que trazem às vezes consigo certo valor de previsão. Dizemos isso porque Chomsky escreve para intelectuais sem esquecer daqueles que estão fora de tal grupo, uma vez se tratar aqui também de pessoas interessadas em compreender o que de fato está acontecendo nas circunstâncias e regiões abordadas.

O autor afirmava já nos idos de 1996 que, ao contrário de outros conflitos como na Bósnia, Angola, Ruanda e Iraque-Kuwait, no caso do Timor, não havia ambigüidade nem complicações sobre a solução apropriada e nem necessidade da ameaça do uso de força para alcançá-la, nem mesmo a necessidade de sanções.

Fazia-se necessário, portanto, apenas o reconhecimento da mea culpa e a desistência dos cúmplices daquele crime. Certamente hoje se vê após toda a humilhação e sofrimento pelo qual passou o povo timorense, que aquelas nações outrora coniventes com a situação se viram acuadas pela opinião pública, cedendo espaço para a força de resistência da pequena população local. Mas o livro de Chomsky não se reduz ao problema do Timor. Há pois uma explanação de seus posicionamentos seguros face à política externa das nações ricas, em especial da norteamericana, encontrando novos paradígmas para analisar ações criminosas contra populações, muitas vezes esquecidas pela mídia. Os posicionamentos diferenciados “rebeldes e independentes” nos seus escritos e na sua fala mostram a distância que cultiva da maioria dos seus pares norte-americanos, o que não poderia deixar de lhe render grandes dificuldades no mercado editorial de peso daquele país e venha a justificar inclusive a dificuldade de difundir suas obras em língua portuguesa.

Além da reportagem onde mostrou à imprensa inglêsa a farsa dos países ricos envolvidos no genocídio de Timor Leste, alertando para a iminente extinção de um povo, caso países como os Estados Unidos, Inglaterra, Austrália continuassem cúmplices das investidas indonésias, Chomsky nos traz nesta obra outros critérios para compreender diversas problemáticas emergentes das relações internacionais como por exemplo, a investida das forças da OTAN no Kosovo ou do NAFTA na América Latina. Um tratamento detalhado é dado à reestruturação do livre mercado imposta pelas potências industriais cusadora de uma contínua deteriorização sócio-econômica dos países latino-americanos. Aborda os falaciosos benefícios da grande vitória do capitalismo mostrando suas verdadeiras conseqüências: (…) a porção dos bens do mundo controlada pelos países pobres e de rendimento médio desceu de 23 para 18 por cento entre 1980 e 1988. O informe do Banco Mundial de 1990 acrescentava que, em 1989, os recursos transferidos dos ‘países em vias de desenvolvimento’ para o mundo industrializado alcançaram um novo recorde. Calcula-se que o pagamento do serviço da dívida ultrapassou os novos caudais de fundos em 49,2 mil milhões de dólares, um aumento de cinco mil milhões de dólares desde 1988, e os novos fundos fornecidos pelos credores caíram ao nível mais baixo da década.

As imensas oportunidades do “novo mundo” pós Guerra Fria para a expansão e consolidação da democracia de mercado e vitória dos mercados abertos foi parte da retórica do governo Clinton no início da década de noventa e encontram uma análise no capítulo do livro intitulado de “Democracia e Mercados na nova Ordem Mundial.” A idéia da Guerra Fria como bloqueadora da política externa americana de dominação é contraposta ao fato de que no mesmo período nada impediu a continuidade e manutenção desta política.

No texto sobre “O acordo de Paz Para o Kosovo” busca esclarecer os denominados efeitos colaterais dos bombardeamentos americanos e da OTAN que se disseram vitoriosos após 10 semanas de luta com a rendição de Milosevic. Foi com esta ação bélica que os auto-proclamados “Estados esclarecidos” (Estados Unidos, GrãBretanha e alguns outros associados) afirmaram ter dado início a uma nova era na história da humanidade, guiados por ‘um novo internacionalismo, em que a repressão brutal de grupos étnicos não voltará a ser tolerada.'” Outros temas menos específicos, porém de igual intensidade, importância e atualidade no que tange às relações desiguais entre os denominados países ricos com aqueles do hemisfério sul e Europa Oriental encontram espaço no livro. O estrangulamento destas nações pelo rápido crescimento da dívida externa; os interesses de elementos de dominação interna naquilo que a Organização Mundial do Comércio defende; a política antidrogas norte-americana e sua relação com o terceiro mundo encontram análises à luz de novas vertentes. O livro é concluído com uma entrevista sobre “O Poder das Elites e a Responsabilidade dos Intelectuais” que concedeu a David Barsamian em fevereiro de 1988. Barsamian compilou posteriormente (no ano de 1993) três entrevistas por ele feitas com o autor em um trabalho intitulado “A minoria próspera e a Multidão Inquieta” traduzido por Mary Grace Figheira Perpétuo, editado no Brasil pela Universidade de Brasília (2a. edição, 1999). Trata-se de idéias complementares àquelas presentes no livro ora comentado e em especial às de seu último capítulo versando sobre temas diversos como o das minorias, do sionismo, da religião, dos limites da responsabilidade intelectual, do controle da informação pelas elites, dentre outros de semelhante envergadura.

As entrevistas, os artigos acadêmicos e as reportagens que formam o conjunto de textos interagem e se complementam. Anarquista confesso, Chomsky pode ser lido inclusive por não-anarquistas, pois sua linguagem é universal e não por menos é hoje considerado um dos mais conhecidos e influentes pensadores norteamericanos, apesar do ceticismo com que o trata a grande imprensa de seu país. Não por menos encontra o autor uma audiência cada vez maior e mais fiel para suas palestras sobre temas políticos, sejam elas proferidas nos Estados Unidos ou noutros países. Encontra-se ainda em anexo ao livro uma lista com os principais trabalhos de cunho político do autor, embora muitos deles acessíveis apenas em seu idioma de origem.

Antonio Caubi Ribeiro Tupinambá – Universidade Federal do Ceará.


CHOMSKY, Noam. Discurso da Dissidência. Tradução de Ana Barradas e Isabel Palha. Lisboa: Edições Dinossauro, 2000. Resenha de: Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.2, 2002. Acessar publicação original. [IF].

Lajja – Shame / Taslima Nasrin

Os problemas que ora se agudizam na denominada região da Caxemira remontam ao período imediatamente posterior à separação das regiões noroeste e nordeste da Índia, respectivamente no dia 15 de agosto de 1947, quando os ingleses deixaram a Índia e foi criado o Estado do Paquistão, e em 26 de março de 1971, quando o Paquistão oriental ganhou sua independência, tornando-se o país Bangladesh. Houve um tempo em que povos de crenças distintas conviviam com relativa harmonia naquelas terras hoje divididas e rebatizadas. Com a formação dos Estados do Paquistão e de Bangladesh em conseqüência dessa partilha do território indiano, iniciou-se o reordenamento de fundamentalistas religiosos em busca de novas causas. O desastre do domínio imperial britânico na região resultou no que hoje conhecemos de Bangladesh ou da região de Bengala (atual Bangladesh, Calcutá e arredores). O que era antes um dos lugares mais ricos do mundo tornou-se um abrigo da miséria humana: Não resta dúvida de que o domínio imperial tenha sido um desastre. Veja a Índia por exemplo. Quando os britânicos chegaram pela primeira vez, Bengala era um dos lugares mais ricos do mundo. Os primeiros mercadores britânicos descreveram-na como um paraíso. Essa é, atualmente, a área de Bangladesh e Calcutá, um símbolo de desespero e pobreza (Chomsky, 1999 p. 84).[1] O Mahatma Gandhi, líder indiano da revolução pela não-violência, buscou liberdade para seu povo. Mas nem tudo gerou benefícios. Um dos conflitos oriundos dessa história nasceu com a reestruturação das fronteiras internacionais e a criação de novos países a partir da Índia. Falamos, portanto, de um conflito que se estende por mais de meio século. Não fazia parte dos desejos do Mahatma a divisão da Índia depois de sua libertação do jugo britânico. Para o líder indiano, problemas de convivência entre as diferentes religiões no subcontinente asiático não deveriam ser motivo para separar seus irmãos, fossem eles hindus ou muçulmanos. Mas essa visão romântica durou pouco. Após menos de um ano da independência, em 30 de janeiro de 1948, Gandhi foi assassinado por um extremista hindu. Os problemas na região estavam apenas por começar.

Primeiro veio a independência da Índia seguida pela criação do Paquistão cujo território compreendia parte do noroeste e do nordeste do subcontinente asiático. O Paquistão oriental deu origem ao que hoje conhecemos por Bangladesh, como resultado de uma guerra sangrenta na qual hindus e muçulmanos lutaram juntos em nome de uma nova pátria para os bengaleses. Os conflitos se somaram ao longo dos anos. A paz cultivada e almejada pelo Mahatma não foi duradoura. Mesmo os hindus e muçulmanos de Bangladesh, combatentes comuns contra a tirania do Estado do Paquistão ocidental, que corresponde ao atual Paquistão, voltaram a se dividir.

Posteriormente à criação da nova pátria bengali, surgiram diversos conflitos de cunho religioso. Um dos maiores ocorreu a 6 de dezembro de 1992, quando a mesquita de Babri Masjid em Ayodhya, cidade do norte da Índia, foi destruída por fundamentalistas hindus, levando os dois grupos religiosos em Bangladesh a entrar em uma nova fase de discórdia e sublevações. Ainda hoje, a minoria hindu vê-se acuada pela hegemonia muçulmana daquele país.

Por ocasião da tragédia de Ayodhya, causando conflitos intermináveis em Bangladesh, antigos camaradas da guerra libertária se tornaram, por força do fanatismo religioso local, inimigos sanguinários. Nesse cenário a autora do livro que ora comentamos viveu as agruras de uma apátrida em sua própria casa. Taslima Nasrin descreve as jornadas de então em um diário “psicológico”, que se apropria de sentimentos e nuanças das relações interpessoais metamorfoseadas em função das mudanças sociopolíticas em Mymensingh, o seu habitat. O amálgama afetivo oriundo do sentimento de pertinência nacional entre os dois grupos religiosos foi sendo progressivamente substituído pelo ódio elaborado e recriado a partir dos novos conceitos de povos e nações construídos sobre uma base de preconceito e intolerância.

O livro em forma de diário descreve apenas 13 dias em um crescente bélico, iniciando em 7 de dezembro de 1992, dia fatídico, depois que a mesquita de 450 anos foi posta ao chão por fanáticos hindus. Os problemas da família Dutta-Sudhamay que povoa o romance autobiográfico da sra. Nasrin apenas começavam. O dr. Sukumar Dutta, patriarca e médico respeitado, vivia com a família em um Bangladesh de maioria muçulmana, mas que até então ainda tinha na memória a libertação de seu país pela força da união de todos os seus filhos. A autora descreve o dilema do povo hindu em Bangladesh por meio da saga da nomeada família Dutta, que se recusa a deixar seu país em conseqüência da intolerância religiosa de outrora amigos muçulmanos, acreditando na vitória da razão e no retorno aos tempos em que Bangladesh emergiu como uma república secular, democrática e socialista. A longa trajetória iniciada nos idos da década de 60 do século passado, quando juntos conseguiram se libertar da tirania do Estado paquistanês, parecia não terminar. Continuava para além daqueles tempos, só que dessa vez a guerra se fazia entre irmãos: os hindus por serem minoria eram preteridos em seus direitos de concidadãos. Com sua históriaromance a autora informa-nos ao mesmo tempo que nos sensibiliza para um trecho da história da humanidade geralmente negligenciado e esquecido. A linguagem é simples, mas rica em detalhes psicológicos captados a partir das experiências pessoais relatadas pela autora-narradora. Daí poder-se compartilhar sentimentos os mais diversos de quem se vê abduzido de seu meio e tem roubados seus projetos de vida por motivos irracionais. Motivos esses que culminaram com a verdadeira ameaça dos extremistas em Bangladesh, decretando o Fatwa (punição de cunho religioso) sobre a autora, tendo esta que se ausentar de fato do seu país para não sofrer retaliações. No seu livro, como na sua vida, a religião termina sendo, à sua revelia, o ponto de partida para o bem ou mal (con)viver: Suranjan got up. The sense of pain and suffering which had already found root in his heart was now growing… He left Palashi behind and headed in the direction of Tikatuli. He decided against taking a rickshaw, because he had only five takas with him. He bought a cigarette at Palashi crossing. When he asked for a Bangla Five, the shopkeeper gave him a strange look.

Suranjan’s heart sank. Did the shopkeeper guess he was a Hindu? And did he know that ever since the breaking of the Babri Masjid, every Hindu could be beaten up with impunity? He quickly paid for the cigarette and moved on. He was surprised by the way he felt, especially as he had never really felt this way before. To think he had left the shop without lighting his cigarette, just because he thought they would make out that he was a Hindu! (p. 82).

Taslima Nasrin tem origem em uma família de classe média de Bangladesh, médica e escritora de outros trabalhos de repercussão local, conseguiu por meio do seu livro Lajja – Shame informar o mundo sobre as mulheres e os seus destinos, sobre a impossibilidade do seu devir em uma sociedade na qual o fanatismo sobrepõe-se à razão. Impossibilitada de viver em seu próprio país, encontra abrigo, como outras vítimas de violências político-religiosas naquela região, na Índia. É um erro absurdo o mundo virar as costas e não tratar diferencialmente uma das maiores democracias do mundo e a única da região. A Índia pode refletir num grande círculo geográfico uma tendência oposta ao totalitarismo religioso e político característico das nações que a cercam.

Apesar do caráter ficcional de seu trabalho, a autora é fiel a aspectos históricos, tendo sido fonte de informação as publicações regionais sobre os eventos que subsidiam sua trama. Por motivos óbvios a questão da delicada relação entre os Estados do Paquistão e da Índia que se complica nos dias de hoje não é abordadada diretamente em seu trabalho, mas Taslima Nasrin aborda os seus antecedentes e pressupostos ideológicos. Pode-se, portanto, acompanhar em segundo plano a problemática atual, muito relacionada com aqueles fatos que deram origem ao seu trabalho literário. É por isso que vimos, com ajuda de sua compreensão da cultura local, que o modelo sociopolítico indiano poderia promover uma convivência melhor e mais humanizada para os diferentes povos da região em se comparando com outros modelos políticos vizinhos. Pois desde que conquistou sua independência, a Índia tem provado ser o único país da região com uma certa vocação democrática. A despeito dos problemas que enfrenta com as desigualdades sociais em quase todo o seu território, vem sendo reconhecida internacionalmente como um celeiro de talentos nos mais diversos campos da ciência e pelo respeito à sua integridade nacional. Ao contrário de muitos países do Terceiro Mundo, a Índia não se deixou encantar pelas falsas promessas da globalização. Pode-se falar, portanto, da maior democracia no globo, com seus 35 estados, mais de cinco mil cidades, 18 idiomas reconhecidos oficialmente e uma população de cerca de 1 bilhão de pessoas que se confessam majoritariamente como hindus. Margareth Tatcher, a dama de ferro do Reino Unido, conhecida por sua fria política em relação ao Terceiro Mundo, não pôde deixar de reconhecer na Índia uma veia democrática que a fazia preferi-la à poderosa Alemanha em pleitos de novos membros para o Conselho de Segurança da ONU.

A Caxemira é na atualidade diferenciada por ser a única região da Índia com maioria muçulmana. Essa característica termina por aproximá-la da região de mesmo nome em território paquistanês, tornando-se solo fértil para a propagação da Jihad (guerra santa). As autoridades indianas acusam os grupos terroristas de atrapalharem o restabelecimento da paz na Caxemira e de disseminarem a miséria entre a população da região. Trata-se, portanto, na lógica da ação indiana, de uma luta contra um terrorismo subsidiado pela ditadura militar paquistanesa. Por meio desses métodos, Islamabad pode vir a pagar um alto preço por suas incursões além-fronteiras em vez de reprimir as ações terroristas dos grupos extremistas islâmicos que agem sob diferentes denominações. Levando-se em conta os modelos políticos dos dois países, é mais presumível que haja liberdade no mosaico multicultural e religioso da democracia indiana do que em países liderados por extremistas religiosos.

Conflitos religiosos como o que moveu a autora para escrever seu livro ainda fazem parte da ordem do dia naquela região. Tais conflitos têm se intensificado após o ataque contra o Parlamento indiano em Nova Délhi, no dia 13 de dezembro de 2001, que causou a morte de 14 pessoas. Segundo os indianos, esse ataque foi perpetrado por grupos separatistas apoiados pelos paquistaneses, em uma espécie de terrorismo de estado. As dificuldades para o premier indiano Atal Bihari Vajpayee e o líder paquistanês Pervez Musharraf negociarem uma solução para o problema na sua versão atual terminaram por dominar a pauta da reunião dos países que formam a Cúpula da Ásia do Sul, realizada em Katmandu (Nepal), em 6 de janeiro de 2002, sob os auspícios da Associação da Ásia do Sul para a Cooperação Regional (Saarc). A Saarc foi criada em 1985 e é formada pela Índia, Paquistão, Sri Lanka, Nepal, Bhutan e as Maldivas. O problema da pobreza que atinge 40% de 1,5 bilhão de habitantes do sul da Ásia deveria dominar as preocupações do encontro, mas foi tirado de cena pelos conflitos indo-paquistaneses.

No quadro atual de caça às bruxas não há como Musharraf querer se deixar associar ao patrocínio de terrorismo internacional, mesmo que as ações terroristas se limitem aos seus vizinhos. Para o governo da Índia, grupos muçulmanos extremistas com base na Caxemira se fortalecem com o apoio financeiro e estratégico oriundo de solo paquistanês. Nos altos e baixos das negociações entre Paquistão e Índia, foram algumas vezes proferidas palavras bonitas expressando boas intenções dos líderes locais sem, contudo, lograr êxito na diminuição do fosso entre os inimigos declarados. As guerras que vêm ocorrendo desde a independência dos dois países, que só na última década deixou cerca de 30 mil mortos, se repetidas, podem virar tragédia, pois neste caso estamos falando de inimigos com armas atômicas. Espera-se que o aperto de mão dos dois líderes no final da reunião de Cúpula da Saarc signifique a intenção de fazer valer as palavras de Musharaf, proferidas em maio de 2001, em reação à proposta do premier indiano de negociar o fim da violência na região. Naquela altura parecia haver mais esperança de se encontrar uma saída para a crise por vias diplomáticas, como pode ser percebido na afirmação do líder paquistanês: “No início do novo século, nossos dois países devem fazer seu melhor para superar esse legado de falta de confiança e hostilidade, para que possamos construir um futuro melhor para nossos povos”.

Como relata a autora, desde que a Índia foi dividida em dois “Paquistãos” e uma “Índia”, muitos hindus tiveram que abandonar suas casas em busca de um porto seguro no qual o extremismo religioso não fosse a tônica da convivência humana. Talvez Taslima Nasrin sonhe muito ao querer secularizar nações governadas por tiranos religiosos, mas, sem dúvida, todo o seu livro está impregnado de certo otimismo em meio ao caos anunciado nos piores dias de seu personagem Suranjan: Suranjan explodiu em risos, como Goon. Ele tinha senso de humor e a capacidade de se sentir em casa onde quer que estivesse. Ele jogaria confortavelmente em um cassino em Las Vegas como, da mesma forma, ficaria nas favelas de Palashi sendo picado por mosquitos. Parecia que não ligava pra nada, nunca se irritava. Demonstrava ser feliz no seu pequeno quarto, passando seus dias com pequenos prazeres insignificantes. Suranjan se admirava como ele podia viver tão feliz? Era sua felicidade de fato uma fachada para todas as mágoas que ele tinha escondidas em seu coração? Esteve ele se obrigando a ser feliz por que não havia qualquer chance de fugir da cruel realidade da vida? [2]

Notas

1 CHOMSKY, Noam. A minoria próspera e a mutidão inquieta. Brasília: Editora da UnB, 1999, p.82.

2 Traduzido pelo autor a partir da versão inglesa de Tutul Gupta: “Suranjan burst out laughing, as did Goon. He had a good sense of humor and the ability to be at home anywhere. He would be equally comfortable gambling in a casino in Las Vegas as he would be in the slums of Palashi getting bitten by mosquitoes. He never seemed to mind anything, never showed his irritation. He was quite happy in his tiny room, spending his days enjoying small insignificant pleasures. Suranjan wondered how he could live so happily? Was his happiness in fact a facade for all the sorrows that he was hiding in his heart? Was he compelling himself to be happy because there was no getting away from the grim realities of life?” (p. 82).

Antônio Caubi Ribeiro Tupinambá – Universidade Federal do Ceará.


NASRIN, Taslima. Lajja – Shame. (Tradução do bengali para o inglês: Tutul Gupta.) Nova Délhi, Índia: Penguin Books, 1994. Resenha de: TUPINAMBÁ, Antônio Caubi Ribeiro. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.3, 2002. Acessar publicação original. [IF].

Das Ráísel der Vergangenheit / Paul Ricoeur

As questões da apreensão da multiplicidade cultural do mundo contemporâneo e da compreensão de sua complexidade histórica e social são objeto da série “Conferências de Essen sobre Ciências da Cultura”, promovida e editada pelo Instituto de Ciências da Cultura.

Este Instituto, fundado em 1988 e sediado na cidade de Essen (Alemanha) é integrante do Centro de Ciências da Renânia do Norte/Vestfália. O Instituto (conhecido por sua sigla KWI, homólogo do Institute for Advanced Studies de Princeton ou do Wissenschaftskolleg de Berlim) é uma instituição pública, voltada para a pesquisa científica realizada mediante projetos de investigação dedicados aos problemas da sociedade e da cultura marcadas pelo desenvolvimento científico, pela sofisticação tecnológica e pela industrialização. Os projetos são desenvolvidos por grupos de estudo interdisciplinares, com temas vinculados à pesquisa fundamental no campo das ciências da cultura. O arco temático dos projetos apoiados pelo Instituto vincula-se aos problemas atuais de orientação das sociedades modernas no contexto internacional e intercultural.

Pesquisas dessa natureza não atraem facilmente a atenção do público. Seus resultados, contudo, são habitualmente incorporados pelas próprias ciências setoriais e continuam a surtir efeitos nelas e por intermédio delas. A interdisciplinaridade e o trabalho em grupo dos especialistas são uma condição importante para o êxito desse tipo de projeto. No entanto, o KWI considera ser também incumbência sua fundamentar a necessidade e a relevância de suas atividades e fazê-las perceber pelo grande público. Isso ocorre de forma multifacetada: conferências, mesas redondas, debates públicos, cursos de extensão.

A série de livros das “Conferências” publica textos escolhidos do programa de conferências do Instituto. Esses textos se originam em palestras abertas ao grande público, e ao especializado, elaboradas e completadas para os fins de publicação. O amplo leque temático documenta a amplitude e o alcance das questões ligadas às ciências da cultura, assim como o fascínio das constelações interdisciplinares de pontos de vista, perspectivas e estratégias de argumentação. Cada conferência representa, por si, uma faceta desse leque.

Cada uma é um componente do vasto complexo de abordagens do conhecimento, no qual as experiências do homem consigo mesmo e com seu mundo são interpretadas, as interpretações são refletidas e transformadas em orientações práticas, para afinal serem incorporadas nas mais diversas formas de determinações de sentido, em função das quais o homem age e interage com os outros.

A pesquisa em ciências da cultura requer distanciamento da atualidade do cotidiano imediato, independência com relação às lutas pelo poder e atitude crítica com respeito às polêmicas e dos conflitos de pessoas. A aparente ausência de aplicação prática imediata não raro traz à pesquisa básica e às ciências humanas a fama de serem um luxo, um desperdício. No entanto, o pragmatismo imediatista da pressão tecnológica — que decorre muito mais da lógica econômica da lucratividade — exige justamente que se desenvolvam reflexões que se libertem a prisão “dourada” em que os resultados “imediatos” parecem ser o máximo dos máximos. O longo prazo, a profundidade do alcance, a multiplicidade das perspectivas — esses e outros fatores fazem das ciências da cultura as que apreendem, descrevem, analisam, interpretam e explicam os complexos códigos de sentido — as estruturas de significado — que produzem, consolidam e reproduzem a(s) cultura(s). A ciência da cultura torna-se assim, ela mesma, um fator ativo da cultura como patrimônio coletivo e imaterial da sociedade. Ela desempenha o papel relevante de pensamento crítico e de diretriz interpretativa para a orientação — aí sim — prática do agir humano em todos os campos. A série de “Conferências” busca, assim, na apresentação de seu editor principal, Jórn Rüsen (Presidente do KWI), dar forma concreta a essa tarefa constante da crítica científica e social.

Da série estão disponíveis, até o final de 2003, doze pequenos volumes:

  1. Friedrich Kambartel. Pbilosophie und politische Òkonomie. Gõttingen: Wallstein Verlag, 1998 (3-89244-332-7) 85 p.
  2. Paul Ricoeur. Das Ráísel der Vergangenheit. Erinnern — Vergessen — Vençiben. 1998 (3-89244-333-5) 156 p.
  3. Klaus E. Müller. Die fünfte Dimension. So^iale Raum^eit und Gescbichtsverstàdnis inprimordialen Ku/turen. 1999(3-89244-348-3) 158 p.
  4. Jürgen Straub. Veriehen, Kritik, Anerkennung. Das Eigene und das Fremde in der Erkenntnisbildung interpretativer Wissenscbaften. 1999(3-89244-366-1) 95p.
  5. Burkhard Liebsch. Moralische Spielràume. Menschbeit und Anderheit, Zugehorigkeit und Identitãt. 1999 (3-89244-383-1) 128 p.
  6. Helwig Schmidt-Glinzer. Wir und China — China und wir. Kulturelle Identitãt im Zeitalter der Globalisierung. 2000 (3-89244-426-9) 101 p.
  7. Hans Schleier. Historisches Denken in der Krise der Kultur. Fachhistorie, Kulturgescbichte undAnfànge der Kulturwissenschaften in Deutschland. 2000 (3- 89244-427-7) 127 p.
  8. Gertrud Koch. Medien der Kultur. Film: Beivegungin derLatenç. (3.89244- 428-5). no prelo 9. Rolf Wiggerhaus. Wittgenstein und Adorno. Zwei Spielarten modernen Phi/osophierens. 2000 (3-89244-429-3) 143 p.
  9. Bernhard Waldenfels. VerfremdungderModerne. Phãnomenologische Ansãtze. 2001 (3-89244-459-5) 162 p.
  10. Hans-Ulrich Wehler. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts. 1945-2000. 2001 (3-89244-430-7) 108 p.
  11. Ludwig Amman. Die Geburt des Islam. Historische Innovation und Offenbarung. 2001 (3-89244-460-9) 111 p.

Seus títulos representam efetivamente a variedade de perspecdvas que compõem o espectro ilimitado das questões culturais: Kambartel preconiza a crítica filosófica da economia política, sustentando a necessidade de ampliação da economia social de mercado (vol. 1); o respeitado filósofo Paul Ricoeur relembra um enigma amiúde negligenciado pela tecnologia da pesquisa: o passado só subsiste na memória e em seus vestígios, lidar com ela é questão de lembrar, esquecer, perdoar (vol. 2); como ecoando Ricoeur, o antropólogo Klaus Müller reforça a tese da memória na concepção de história, de origem, de pertencimento e de constituição do espaço social nas sociedades originárias (vol. 3).

Jürgen Straub, professor de comunicação intercultural, aborda a compreensão, a crítica e o reconhecimento: imagens de si e do outro nas ciências que recorrem à interpretação — um problema espinhoso, sobretudo para a interface entre história e psicologia social (vol. 4); Liebsch, professor de filosofia em Bochum, reflete sobre os campos — virtuais — do agir moral como espaço de relacionamento entre afirmação de si e reconhecimento da alteridade — com os problemas decorrentes da “etnicização” dos grupos e subgrupos nas sociedades (vol. 5). Como transparece ao longo de todos os volumes desta série, a referência de origem é a perspectiva cultural européia e o “déficit” de conhecimento e de compreensão da outras culturas [inclusive levando- se em conta a história colonial e seus efeitos perversos] — assim, a alteridade “radical” da cultura chinesa e a contraposição a ela histórica cultural européia, forçada pela globalização, e a impossibilidade de se entronizar novamente uma cultura hegemônica ocupam a reflexão de Schmidt-Glintzer, um dos maiores sinólogos alemães e diretor da famosa Biblioteca do Duque Augusto, em Wolfenbüttel (vol. 6).

A diversificação do tecido cultural da sociedade abriu, também para os historiadores, a crise da identidade em sua especialidade e a instrumentalização da historiografia para projetos políticos passou a ser problematizada. Hans Schleier os primórdios das ciências da cultura na Alemanha e o papel da ciência da história no contexto da crise da cultura contemporânea, a partir da experiência da desconstrução e da reconstrução alemãs entre 1880 e 1930 (vol. 7). O fenômeno da mídia — em particular da crítica social no cinema — e seu impacto na concepção do pertencimento social é o tema estudado por Gertrud Koch, professora de cinema em Berlim, ainda a ser publicado (vol.8). Wittgenstein e Adorno como representantes de dois formatos de crítica filosófica no século 20: a analítica, formal, que não se manifesta sobre o inverificável, e a dialética, engajada, que não admite que não se manifeste sobre o inefável e o subentendido são os objetos de Rolf Wiggerhaus, filósofo e jornalista (vol. 9). Bernhard Waldenfels, professor de filosofia prática e fenomenologia em Bochum, desenvolve uma forte e consistente crítica à alienação do projeto (incompleto) da modernidade por causa de seu individualismo pretensioso que concebe o global como projeção de si — e por isso mesmo compromete a racionalidade como faculdade do indivíduo e como liame do coletivo (vol. 10). O historiador Hans-Ulrich Wehler, um dos chefes de fila da escola de história social de Bielefeld, faz um balanço comparativo dos resultados obtidos pela reflexão historiográfica na segunda metade do século 20 — por exemplo, acerca do caráter “ocidental” das grandes conquistas políticas, como o estado de direito e o sistema parlamentar e eleitoral universal —, e os parcos efeitos que esses conhecimentos tiveram, até o presente, sobre a crítica social, política, econômica e cultural do mundo contemporâneo (vol. 11). O contraste inquietador que as culturas não-européias provocam nas sociedades de feitura européia é uma espécie de enigma adicional que intriga e mesmo atemoriza a “matriz” européia. A longa experiência das sociedades européias (ocidentais) e da norte-americana de ver as demais sociedades ser-lhes submissas ou ao menos delas discípulas, leva Ludwig Ammann, especialista em islamismo e jornalista, a sistematizar as circunstâncias do nascimento do islã (o aparecimento de Maomé e de sua pregação do monoteísmo, à maneira de um messias) e o choque que provoca nas tribos politeístas árabes e nas respectivas relações sociais, ao enunciar a necessidade da conversão como o sentido de uma missão transcendental instituída por revelação divina — e de como foi possível o fenômeno da islamização das culturas árabes a partir do século 7o (vol. 12).

Duas reflexões se impõem, diante da variedade e da complexidade dos temas abordados pelos textos da série. A primeira é relativa ao caráter pioneiro de abrir espaço de discussão e de contraponto, no âmbito de culturas tradicionalmente avançadas e extremamente seguras e cheias de si, como a alemã. Essa iniciativa do KWI se entende bem pela forma característica de Jõrn Rüsen de conceber o papel da reflexão histórica como um dos fatores relevantes na interculturalidade da comunicação social. Trata-se de uma contribuição de importância tanto para incrementar o arejamento do debate público e científico alemão e europeu como para resistir à crescente intolerância para com o outro e o diferente, que distorce as relações intra- e intersociais, em um mundo cada vez mais marcado pela produção e pela circulação ilimitada de informações. Essa abertura científica e cultural protagonizada pelo KWI reveste-se de duas qualidades adicionais: coragem pública e exemplaridade.

A segunda reflexão refere-se à utilidade de publicações desta natureza para sociedades multiculturais, como a brasileira. A dupla constatação de que há fissuras (bem-vindas) na torre de marfim do eurocentrismo e de que se toma consciência da necessidade de apreender o outro não para reduzi-lo a si é uma perspectiva alvissareira de fecundação da ciência pratica no Brasil. A história é um eixo de constituição da identidade que incorpora, à luz de estudos críticos como os desta série “Conferências sobre Ciências da Cultura”, a dimensão do processamento intelectual e cultural da diversidade como integrantes dialéticos do retorno a si mediante a afirmação do outro, e não por sua eliminação. A leitura historiográfica da cultura e da sociedade pode enriquecer-se com os pontos de vista da interculturalidade, superando assim a constante tentação do nombrilismo nacionalista.

Estevão C. de Rezende Martins – Universidade de Brasília.


RICOEUR, Paul. Das Ráísel der Vergangenheit. Erinnern — Vergessen — Vençiben. 1998. 156p. Resenha de: MARTINS, Estevão C. de Rezende. Cultura, multiculturalismo e os desafios da compreensão histórica. Textos de História, Brasília, v.10, n. 1/2, p.225-230, 2002. Acessar publicação original. [IF].

Memória, cidade, cultura | Cléia Schiavo Weyrauch

WEYRAUCH, Cléia Schiavo; ZETTEL, Jaime. Organização e introdução. Memória, cidade, cultura. Resenha de: WEYRAUCH, Cléia Schiavo. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.16, n.1, p.159-165, jan./dez. 1996.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Las ánforas fenício-púnicas del Mediterráneo Central y Occidental – TORRES (RHAA)

TORRES, Joan Ramon. Las ánforas fenício-púnicas del Mediterráneo Central y Occidental. Barcelona: Publicacions de la Universitat de Barcelona, col. Instrumenta, n.2, 1995. 661p. Resenha de: KORMIKIARI, Maria Cristina Nicolau. Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n.2, p.373-377, 1995/1996.

Maria Cristina Nicolau Komikiari – Universidade de São Paulo, Brasil.

Acesso somente pelo link original

[IF]