Jörn Rüsen: teoria/historiografia/didática | M. M. D. Oliveira, F. C. F. Santiago Júnior e C. R. C. Lima
O livro Jörn Rüsen: teoria, historiografia, didática, lançado em 2022, é uma coletânea que põe em diálogo diversos prismas da vasta obra do historiador alemão, especialista em Teoria e Didática da História1. A publicação resulta do evento I Seminário Jörn Rüsen, realizado entre os dias 21 e 25 de dezembro de 2015, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ao debater com a obra de Rüsen, os diversos autores evidenciam as relações entre Teoria da História, Didática da História e Ensino de História.
Para Arthur Alfaix Assis – autor do artigo História, teoria e liberdade: saudação a Jörn Rüsen2 – uma das principais linhas de pensamento de Rüsen refere-se à questão: “como, a partir de tradições e traumas herdados do passado, seria possível agir no presente, visando projetar um futuro no qual sejamos livres para criar algo novo?”. Leia Mais
Die Achse. Berlin-Rom-Tokio 1919-1946 | Daniel Hedinger
L’Asse Berlino-Roma-Tokyo – secondo la denominazione adottata, soprattutto nel mondo anglosassone, per definire l’insieme di accordi che unirono Italia, Germania e Giappone dal Patto anticomintern al Tripartito – appare ancora oggi uno dei costrutti politico-internazionali più controversi dell’età contemporanea. Onnipresente fino al termine della Seconda guerra mondiale tanto nella propaganda dei tre regimi quanto nelle rappresentazioni e nelle considerazioni strategiche dei loro avversari, nonché assunta come capo d’imputazione per “cospirazione contro la pace” nei processi di Norimberga e Tokyo, l’alleanza tripartita scomparve rapidamente dalla memoria pubblica del dopoguerra, oscurata da una percezione nazionale delle singole esperienze autoritarie e da una visione regionalizzata del conflitto mondiale, con la netta distinzione del teatro bellico europeo da quello asiatico-orientale e una gerarchia d’importanza che subordinava il secondo al primo. A partire dagli anni Cinquanta, la storiografia sul Tripartito si è concentrata prevalentemente sugli aspetti diplomatici e sui contatti bilaterali, ponendo al centro la Germania e i suoi rapporti con Italia e Giappone, mentre le relazioni italo-giapponesi erano liquidate come un prodotto secondario dell’avvicinamento italo-tedesco. In questa prospettiva l’Asse parve un’«alleanza senza alleati» 1, debole e «inefficace» 2 perché minata da insanabili contraddizioni interne – dipendessero queste dall’accesa rivalità ideologica tra Roma e Berlino oppure dall’innaturale collaborazione tra il razzismo nazista e un paese asiatico che aveva presentato una proposta di uguaglianza razziale alla Conferenza di pace di Parigi. Leia Mais
Clínica/laboratório e eugenia: uma história transnacional das relações Brasil-Alemanha | Pedro Muñoz
Pedro Muñoz is a young historian and psychologist who is influenced by the philosophy of Michel Foucault. Clínica, laboratório e eugenia: uma história transnacional das relações Brasil-Alemanha ( Clinic, laboratory and eugenics: a transnational history of Brazil-Germany relations ) is a partially modified version of his PhD dissertation, part of which he conducted at Freie Universität Berlin with a scholarship from the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) and Deutscher Akademischer Austauchdienst (Daad). His youth belies a classical approach to historiography. He is not a Rankean historian looking for absolute truths, but a creative researcher with a genuine appreciation for old and yellowed paper. For his dissertation and book, Muñoz visited 11 German archives and perused different issues of 23 journals. Leia Mais
The Politics of Humiliation: A Modern History | Ute Frevert
Ute Frevert | Imagem: Prospect Magazine
In this informative book, Ute Frevert examines shame and shaming during the early modern and modern periods, mostly in Germany and Britain, but in other European countries as well. It is based upon her German book, Die Politik der Demütigung: Schauplätze von Macht und Ohnmacht, published in 2017.
One of this new book’s merits is the broad concept of shaming Frevert adopts, which includes not only blatant acts of humiliation such as dunce caps and pillories, but also interactions in which people are forced into demeaning or deferential behaviour. Frevert clearly believes that shaming (defined in this way) has been expressed and experienced universally, not as a result of cultural diffusion, but primarily as a result of basic processes of human interaction. Thus, it has persisted, despite social and normative changes in our world, and will continue in the future. Leia Mais
A World after Liberalism – Philosophers of the Radical Right | Matthew Rose
Matthew Rose | Imagem: Tikvah Fund
Matthew Rose é especialista em História das ideias teológicas e políticas e doutor pela Universidade de Chicago. Seu novo trabalho – A World after Liberalism – Philosophers of the Radical Right (2021) – foi pensado no contexto da campanha de Donald Trump e da crise dos refugiados de 2016, quando ele notou que jornalistas dos EUA e da Europa começavam a citar autores da extrema direita cuja tradição era “mais profunda e filosófica sobre a vida contemporânea e mais cética sobre o lugar do cristianismo na cultura ocidental” (Mclemee, 2022). Do desconhecimento inicial, o autor avançou para uma análise das ideias radicais do pensador “nacionalista” e de direita Samuel Francis, publicado na revista First Things (2018). O artigo se estendeu e se transformou na obra atual, acrescida de notas (ou retratos) biobibliográficos de mais quatro intelectuais: “o profeta” alemão Oswald Spengler, “o fantasista” italiano Julus Evola, “o antissemita” estadunidense Francis Parker Yockey e “o pagão” francês Alain de Benoist.
Rose é católico, democrata e, academicamente, orientado pelo trabalho de Heinrich A. Rommen (1897-1967) que, na condição de ex-aluno de Carl Schmitt (1888-1985), examinou a obra do mestre sob o ponto de vista da crítica que a “direita radical” disparava contra as ideias de “igualdade e justiça”, compreendidas como corruptoras “das mais altas inspirações humanas” (Mclemee, 2022). A meta explícita e modesta de Rose é tornar inteligíveis as ideias de pensadores que orientam o “novo conservadorismo” em seus ataques aos princípios de “igualdade humana”, respeito às “minorias”, “tolerância religiosa” e “pluralismo cultural” (Rose, 2021, p.5). A meta implícita e engajada é fazer a defesa do cristianismo em termos teológicos e apresentar valores cristãos de longa duração como possíveis respostas ao vazio ideológico de muitos jovens do seu tempo e país. Leia Mais
Max Weber und die Erste Weltkrieg | Hinnerk Bruhns
Hinnerk Bruhns | Imagem: Hypotheses
Atribuem-se a Heráclito duas fórmulas memoráveis. A primeira, panta rhei, “tudo passa”, faz parte do repertório básico de qualquer aluno de primeiro semestre nas Humanidades. Já a segunda é bem menos citada: “a guerra é o pai de todas as coisas”. De fato, a ideia de que há algo não apenas de estranhamente sedutor, mas também de matricial na guerra, é confirmada à exaustão pela experiência histórica e mesmo por nossa sensibilidade estética. De Homero e do Mahabharata a Euclides da Cunha, da pintura de Otto Dix ao grande romance de Guimarães Rosa, a guerra aparece ora como epicentro narrativo, ora como pano de fundo. Tinha razão Ernst Jünger quando constatou que “a mania da destruição está profundamente enraizada na natureza humana” (Jünger, 2005, p. 48).
Como quer que seja, uma das conquistas fundamentais da modernidade, pelo menos desde a Guerra dos trinta anos, foi a de tendencialmente mitigar o fascínio que, desde sempre, cerca esse fato social total. Daí que, em suas memórias como soldado na Primeira Guerra, o historiador britânico R. H. Tawney não tenha escondido sua repulsa ante a “sensação de desempenhar um papel inútil” no que qualificou de “jogo disputado por macacos e organizado por lunáticos” (apud Stern, 2004, p. 254). Leia Mais
La reledía se volvió de la derecha | Pablo Stefanoni
Pablo Stefanoni | Foto: Bernardino Ávila
La reledía se volvió de la derecha, de Pablo Stefanoni traz um subtítulo enciclopédico, entregando a matéria ao leitor sem que se tenha a necessidade de abrir o livro: o combate ao progressismo político e ao politicamente correto é rebelde e atrai multidões de jovens. É necessário, então, ler esses arautos das novas direitas (“extrema direita”, da “direita alternativa” ou “populismo de direita”) caso queiramos compreender as razões do seu sucesso ou, em outra chave, as razões do fracasso das esquerdas. A tarefa anunciada é cumprida com um texto breve, distribuído em cinco capítulos (além de epílogo e glossário) que focam o pensamento das novas direitas em escala global (América do Sul, América do Norte, Europa e Ásia).
Antes de La rebeldia, Stefanoni escreveu livros sobre a ação da esquerda na Bolívia e na Rússia e atuou em parcerias com Clarín e o Le Monde Diplomatique. Professor da Universidade Nacional de San Martín e Doutor em História, o autor situa seu novo livro no domínio da História Intelectual. Stefanoni se ocupa de autores comuns – terroristas, ativistas moderados, intelectuais que militam na internet, escritores – atuantes nas duas últimas décadas, mediante redes de divulgação artigos, posts em redes sociais, vídeos, trechos de livros e memes. Ao abordar indivíduos de “subculturas on line”, Stefanoni investiga o significado dessa nova rebeldia, questionando sobre a ideia de “futuro próximo” compartilhada entre seguidos e respectivos seguidores. Leia Mais
Las nuevas caras de la derecha | Enzo Traverso
Enzo Traverso | Foto: ULF Andersen/Gamma-Rapho/Getty/O Globo
O que me levou a ler o livro de Enzo Traverso não foi apenas o título referente a esse dossiê de resenhas sobre “novas direitas”. O fato de ele ser um dos poucos historiadores de ofício a estudarem o fenômeno e de fazê-lo com ferramentas típicas de historiador – a categoria “regimes de historicidade” – foi o que pesou na escolha. Las nuevas caras de la derecha (2021) é a tradução argentina de Les nouveaux visages du fascisme (2017). O título em francês retrata com maior fidelidade o conteúdo desse livro do historiador italiano, atuante na Holanda, França e nos Estados Unidos da América (EUA): a narrativa do processo de transição do fascismo ao pós-fascismo, vivenciada por europeus e estadunidenses nos últimos vinte ou trinta anos, e comunicada imediatamente após atentados terroristas na França, como o massacre do Charlie Hebdo.
O livro é um agregado de entrevistas concedidas ao antropólogo Régis Meyran, em Paris (2016), sobre temas correlatos, atravessados pelo conceito de “pós-fascismo”. O prólogo à edição castelhana, contudo, é inteiramente dedicado a outro conceito: “populismo”. As constantes referências à expressão durante as entrevistas e forte apelo dos estudiosos de Filosofia e História Política ao conceito (em sua visão, já enfraquecido academicamente) levaram-no, provavelmente, a dispender duas páginas para diferenciar populismo e “tendências regressivas solidamente arraigadas” na Europa e nos EUA no século XXI.
Na tipologia, curiosamente, Traverso o reintegra como categoria, quando afirma que o populismo argentino e peronista (nacionalista, messiânico, carismático, autoritário e idealizador do povo) difere dos “populismos reacionários” estadunidense (D. Trump) e francês (M. Le Pen e E. Macron). O primeiro distribui riqueza entre os pobres e os insere no sistema democrático. Os segundos são orientados pela entrega da nação “las fuerzas impersonales del mercado”. (p.21). O primeiro, acrescentamos, foi gestado no imediato pós-guerra em mundo bipolar. O segundo, reitera o autor, foi gestado na “era da globalização neoliberal”. O primeiro, por fim (como vários movimentos políticos do século XIX), pode continuar a ser designado “populismo”. O segundo, entretanto, deve ser tipificado como “pós-fascismo”.
O primeiro capítulo do livro – “¿Del fascismo al posfascismo” – é dedicado à definição dessa nova categoria. O que vemos nas duas primeiras décadas do século XX, segundo Traverso, não é um resíduo nem um prolongamento do fascismo, ou seja, não é o caso de se falar em “neofascismo”. Os fascismos clássicos (italiano ou alemão) eram antidemocráticos e os pós-fascismos (ao menos o de Le Pen) querem “transformar el sistema desde dentro” (p.27). Os fascismos clássicos eram estatistas, imperialistas e queriam criar uma “terceira via entre liberalismo e comunismo” e os pós-fascismos (ao menos o de Trump) são neoliberais. Os fascismos clássicos possuíam uma visão de mundo e um “modelo alternativo de sociedade”, enquanto os pós-fascismos (o de Trump é, novamente o exemplo) não tem programa ou se reduz a um “Make America Great Again”. Os fascismos clássicos estavam fundamentados em uma “ideologia forte” e o pós-fascismo, exemplificado por Macron, significa o “grau zero de ideologia”.
Com as sucessivas comparações, somos levados a definir o pós-fascismo a partir de traços ideológicos na esfera política, econômica e social: combate à democracia, defesa do livre mercado, ausência de projeto societário e de ideologia forte. Traverso, contudo, acrescenta uma marca diacrítica fundamental: “Lo que caracteriza al posfascismo es un régimen de historicidade específico – el comiezo del siglo XXI – que explica su contenido ideológico fluctuante, inestable, a menudo contradictorio, en el cual se mezclan filosofias políticas antinómicas.” (p.26).
A oralidade que marca o texto e a interrupção do entrevistador, provavelmente, o impede de detalhar esse novo “regime de historicidade”. Tomando como base o seu livro anterior (citado pelo apresentador, Régis Meyran), somos induzidos a compreendê-lo como um tempo sem futuro (horizonte de expectativas), algo que explicaria, inclusive, o caráter instável e contraditório das ideologias e as recorrentes antinomias em termos de “filosofia política” no interior dos movimentos e partidos. Esse auxílio, contudo, é insuficiente para relevar as contradições do próprio Traverso nas definições de pós-fascismos por meio de exemplos.
Afinal, se as antinomias são o caráter dos movimentos pós-fascistas, poderíamos rotulá-los como antidemocráticos? Se os fascismos italiano e alemão reuniam “corrientes diferentes, desde las vanguardias futuristas hasta los neoconservadores, de los militaristas más belicosos a los pacifistas muniquenses etc.” as antinomias deveriam continuar traço diferenciador dos movimentos e partidos do século XXI? Se as categorias “horizonte de expectativa” e “espaço de experiência” estão fundadas na ideia de continuidade passado/presente/futuro, porque afirmar peremptoriamente que as novas direitas do século XXI, exemplificadas na figura de Trump, não representariam uma continuidade histórica e nem uma herança com o fascismo histórico (mesmo que o sujeito citado não as reivindicasse conscientemente)?
O segundo capítulo – “Políticas identitarias” – expressa concepções de Traverso sobre o emprego da categoria “identidade”, acompanhada de suas críticas aos discursos identitários difundidos, principalmente, pela Frente Nacional (FN) e o “Partido de Indígenas de la República” (PIR). Sua ideia de identidade é remetida (entre outros referenciais) a P. Ricoeur – que lhe inspira na caracterização das identidades veiculadas pelos partidos de esquerda (ipseidade – identidade histórica) e de direita (mesmidade – identidade essencial). Em termos abstratos, Traverso elogia as políticas identitárias de esquerda que reivindicam o “reconhecimento”, ao passo que as de direita reivindicam a “exclusão”.
A esquerda radical (Traverso lamenta) nunca soube conciliar diferentes pautas identitárias, pondo o fator econômico (a classe) acima das identidades de raça, gênero e religião. Nesse sentido (ainda que de modo irônico, para Traverso), a nova direita representada pela FN, por exemplo, é mais eficiente, pois associa a defesa dos “blancos humildes”, manifestando, assim, a sua simpatia pela categoria interseccionalidade. Quanto às críticas às políticas de direita, estas não são nada genéricas. O laicismo, as identidades nacionais e étnicas difundidos pela FN são reacionárias (defensivas), ilógicas, antieconômicas e antissociais.
A melhor parte da discussão entabulada por Traverso, nesse capítulo segundo, está nas razões que ele aponta para esse reacionarismo. As políticas identitárias das novas direitas (que geram a exclusão de migrantes), o laicismo autoritário de Estado (que negam a cidadania plena aos ex-colonizados e que prometem o retorno à Europa anterior ao Euro) são produtos da própria República e do Colonialismo. Assim, não se pode acusar a FN de antirrepublicana, posto que as exclusões do tipo fazem parte da história da República francesa recente. Nesse trecho, quase que ouvimos Traverso declarar que não há (não houve) um germe ultradireitista. Foi a própria serpente (a República francesa) que pariu os identitarismos excludentes dos novos reacionarismos.
Aqui, vemos como o autor põe grupos de esquerda e de direita sob o mesmo solo – que gera as mesmas distorções. Ele avança ainda mais na indicação de semelhanças quando afirma que as “direitas radicais”, os “expoentes liberais e conservadores” não mais buscam “legitimar uma política” por meio da “ideologia”, que “se improvisa a posteriori”. Chega a empregar a expressão “pós-moderna” para tipificar esse traço do nosso tempo. Mesmo que esteja entre aspas, essa expressão não cabe na passagem.
Se ele admite a legitimidade política não ideológica como consequência de uma relação pós-moderna dos humanos com o tempo, as continuidades de ideias e práticas das novas direitas com as ideias e práticas de direitas do século XIX e XX não mais se sustentam. Se, ao contrário, ele reitera a interpretação das novas direitas dentro dos quadros de um novo regime de historicidade, a condição “pós-moderna” não faz nenhum sentido no seu texto.
Além desse deslise teórico, Traverso revela um misto de idealismo em relação à ideia de partido político, em prejuízo, inclusive da sua abordagem historicista (realista) sobre as novas direitas. A vida partidária, mesmo em tempo anterior ao século XXI, é marcada por estratégias de sobrevivência que resultam em diferentes comportamentos, desde a manutenção de um programa, passando pela captura dos eleitores, até a manutenção do poder, quando à frente do Executivo.
No terceiro capítulo do livro – “Antissemitismo e islamofobia” –, as questões identitárias ganham ainda maior espaço. O entrevistador parece determinado a extrair de Traverso uma crítica às definições dos termos em pauta e uma comparação entre os dois fenômenos, tomando-os em seus elementos aparentemente similares: o antissemitismo na primeira metade do século XX e a islamofobia no início do século XXI. O autor resiste várias vezes a compreendê-los como fenômenos simétricos e, implicitamente, a considerá-los “ideologias”. É certo, julga ele , que as afinidades existem: para os antissemitas dos anos 30 do século passado, judeus e bolchevistas eram um “outro” ameaçador, enquanto para os islamofóbicos, os mulçumanos e os terroristas islâmicos são um novo outro inimigo; o antissemitismo estruturava os ideais nacionalistas do início do século XX, enquanto a islamofobia estrutura os nacionalismos europeus do início do século XXI.
Essas similitudes, contudo, são menos expressivas quando observadas caso a caso, com destaque para a experiência francesa. Para Traverso, a “judeofobia” é combatida pelo Estado francês que, por sua vez, legitima a islamofobia. Os judeus estão integrados econômica, social e culturalmente, enquanto africanos e asiáticos e seus descendentes, mesmo nascidos na França, experimentam uma cidadania de segunda categoria. Nos anos 60 do século passado, ao lado dos negros, judeus marcharam em luta contra o racismo e pelos direitos civis. Hoje, organizações civis que congregam judeus confundem o Estado de Israel e comunidade judaica, oprimindo palestinos em suas próprias terras: “La memoria del Holocausto se há convertido en una religión civil republicana, en tanto que la memoria de los crímenes coloniales sigue negada o acallada, como en el caso de las controvertidas leyes de 2005 sobre el ‘papel positivo’ de la colonización.” (p.88). A emergência da islamofobia contemporânea, conclui o autor, não pode ser reduzida ao racismo clássico dos séculos XIX e XX ou ao fator imigração. O colonialismo entranhado na República é o que explica (na certeira expressão de Meyran) o “racismo de pobre” em vigor na França.
Observem que não apresentei nenhum senão ao capítulo terceiro e o mesmo ocorre com o quarto capítulo – “¿Islamismo radical o islomofascismo? El Estado Islãmico a la luz de la historia del fascismo”. Nele, novamente, Meyran tenta extrair de Traverso uma posição sobre a potência heurística da categoria (“islamofascismo”) e, consequentemente, sobre a validade de tipificar o Estado Islâmico (EI) com expressão do fascismo. Ele rechaça a proposição, embora reconheça semelhanças entre os fascismos italiano, alemão e francês e as ações do EI.
Elas estariam principalmente, nos contextos de emergência do primeiro e do segundo fenômeno (desestabilização da Europa pós Primeira Guerra Mundial e desestabilização de países árabes pós invasões soviéticas, estadunidenses e europeias no Iraque e Afeganistão, por exemplo) e no caráter conservador das suas revoluções (o emprego da tecnologia para propagandear uma sociedade “obscurantista”, baseada em um “passado imaginário”. As diferenças, contudo, superam as similaridades mais gerais, quando, segundo Traverso, o analista aborda os fenômenos diacronicamente e em suas particularidades.
hemos visto surgir fascismos en América Latina, es decir, fuera de Europa: ahora bien, estos se instalaron en el poder gracias al apoyo de los imperialismos, las grandes potencias. En Chile, uno de los peores regímenes fascistas latinoamericanos se instaló mediante un golpe de Estado organizado por la CIA. […] La fuerza del EI, al contrario, radica en el hecho de mostrarse ante los ojos de muchos musulmanes como un movimiento de lucha contra el Occidente opresor. Eso vuelve problemático definir este movimiento como fascista.

Henry Kissinger e Augusto Pinochet (1976) | Imagem: Ministerio de Relaciones Exteriores de Chile/Wikipédia
Fascismo é conceito histórico, não devendo ser usado como categoria analítica. Totalitarismo (de H. Arendt) é categoria analítica adequada ao exame do EI, mas limitada à sua natureza abstrata (de categoria), a exemplo da categoria nacionalismo. O nacionalismo fascista é cimentado pelo “culto ao sangue” (Itália) e “culto ao solo” (Alemanha) e o nacionalismo do EI é “universalista”; o fascismo (categoria ou conceito histórico?) do Chile foi apoiado pelo imperialismo estadunidense que combate agora as ações do EI; o fascismo da Itália e da Alemanha emergem como alternativa à democracia liberal, enquanto o EI emerge em território que nunca praticou a democracia; o fascismo da Itália e da Alemanha eram anticomunistas enquanto o EI nunca encontrou a resistência de “uma esquerda radical”.
Ao listar meia dezena de razões para não tipificar o EI como fascista, Traverso demonstra os perigos das conclusões sobre causas e consequências de fenômenos históricos com base apenas no emprego de categorias (sobre todo os tipos ideais). Ideologias são apenas uma variável. Não é a religião que explica o EI: “hay que estudiar l la relacion que existe entre Marx, el marxismo, la Revolución Rusa y el estalinismo […] resulta evidente que el EI no es la revelación del islan ni la única expresión posible del islam, pero si uma de sus expresiones […] la Inquisición no es la única expresión posible del cristianismo, !también existe la teologia de la Liberación”. (p.92) Traverso, por fim, deixa implícito que quando cientistas sociais e historiadores tomam a ideologia como causa eles enviesam os resultados. Quando estrategistas e políticos agem dessa forma, o prejuízo é em escala. Eles criam “espantalhos”, omitem o assentimento popular ao EI, o financiamento ocidental ao EI, a contribuição ocidental midiática à banalização da violência (adotada pelo EI), a instrumentalização das ideias de direitos humanos, liberalismo e democracia para exterminar os movimentos emancipatórios de povos africanos e asiáticos.
Nas conclusões do livro – “Imaginario político y surgimento del posfascismo” –, mais uma vez, o leitor perceberá a tensão entre o reiterar de uma tese (a falência das utopias do século XX, a exemplo do comunismo e do fascismo, dá vasão às investidas pós-fascistas, encarnadas pelas novas direitas e o terrorismo islâmico), a instabilidade da aplicação dos conceitos (o “modelo antropológico do neoliberalismo”, também referido como “idolatria do mercado”, é ou não uma ideologia dos últimos 20 anos?) e a atribuição de valor na causação das novas direitas (a extinção das ideologias do século XX, a precariedade socioeconômica de grandes segmentos populacionais, na Europa, Ásia e África ou os dois condicionantes simultaneamente?).
Da mesma forma, ainda na conclusão, Traverso consolidará, sinteticamente, as principais ideias que se propôs a defender durante a entrevista: 1. Novas direitas (ou direitas radicais) e islamismos não são fascistas; 2. Novas direitas e islamismos são “sucedâneos” reacionários (passadistas e xenófobos) das utopias do século XX; 3. Movimentos sociais e partidos políticos de esquerda (com suas iniciativas, ironicamente, dispersas em um mundo globalizado) não são capazes, no curto prazo, de preencher esse vazio utópico; 4. “Religiões cívicas” como o republicanismo francês pós massacre Charlie Ebdo e memorialismo anti-holocausto, respectivamente, acrítico e vitimista, são incompetentes como freios às novas direitas. Sua percepção de futuro, contudo, é otimista: “no hay inexorabilidade alguna. Pueden myy biente aparecer en cualquer momento mentes creadoras, dotadas de una poderosa imaginación, y proponer una alternativa, outro modelo de sociedad.” (p.116).
No início desta resenha, anunciei a razão da minha escolha: queria observar o que caracterizaria o trabalho de um historiador de formação e ofício que estuda o fenômeno das “novas direitas”. A resposta serve como avaliação geral do livro. Em Las nuevas caras de la derecha o noviço de história é beneficiado, talvez, pelo gênero textual (marcado pelos diálogos entre Meyran e Traverso) que elimina a organização lógica de um texto e (se o noviço aceita participar como observador) em benefício da liberdade de suspender a leitura e refletir sobre o lido sem perder o fio da meada (já que as questões ou temas se encerram ao final de uma ou duas intervenções do entrevistador).
Esse expediente possibilita a percepção das várias tensões que atravessam o livro e que ensinam de modo mais realista como trabalha um historiador que se ocupa do referido tema, obviamente, aos que estão predispostos a aprender: a tensão sobre as escolhas de variáveis para a comparação (sobre o que serve e o que não serve para fazer analogias, se mais as semelhanças, se mais as diferenças) e as justificativas políticas empregadas para fazê-lo; a tensão sobre a adequabilidade e a eficácia do emprego do conceito histórico e da categoria analítica; a tensão da escolha entre se comportar como historiador tipicamente historicista (examinando múltiplas variáveis e construindo contextos prováveis a partir de múltiplos pontos de vista) e um cientista social (empregando modelos/tipos e fazendo generalizações sobre sujeitos concretos a partir de categorias/abstrações); a tensão de perceber a oportunidade para problematizar uma situação concreta, mediante antinomias ou explicações unilaterais, e de encontrar o melhor momento para reiterar a sua tese sobre os estados de coisas nos quais estamos envolvidos no início do século XXI (Estado Islâmico, Trump, Le Pen): fenômenos pós-fascistas resultam do fracasso das revoluções do século XX e da crise do capitalismo como fornecedores de horizontes de expectativas para populações alijadas da globalização e vitimadas pelo colonialismo.
Sumário de Las nuevas caras de la drecha
- Prefacio a la edición castellana
- 1. Prólogo
- 2. ¿Del fascismo al posfascismo
- 3. Políticas identitarias
- 4. Antisemitismo e islamofobia
- 5. ¿Islamismo radical o “islamofascismo”? El Estado Islámico a la luz
- de la historia del fascismo
- Conclusión. Imaginario político y surgimiento del posfascismo
- Sobre el autor
Para citar esta resenha
TRAVERSO, Enzo. Las nuevas caras de la drecha. Buenos Aires: Titivillus, 2021. 234p. Resenha de: FREITAS, Itamar. As recentes direitas de um historiador. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/3237/>.
Eric Hobsbawm: uma vida na história | Richard J. Evans
Richard Evans Foto Philipp Ebellin
Alguns sobrenomes possuem uma grafia difícil de ser executada corretamente, sendo esse o caso de “Hobsbaum”, geralmente escrito com “u”, que designa o historiador Eric John Ernest Hobsbawm, inglês nascido na cidade de Alexandria em 1917, filho de pai britânico e mãe austríaca, ambos judeus. Contudo, a versão de Eric Hobsbawm – que, durante seu registro, teve, erroneamente, o “w” colocado ao invés do “u” – dificilmente será esquecida graças às obras que ele assina e à biografia em que ele mesmo se apresenta como título. Referimo-nos à obra Eric Hobsbawm: uma vida na história, escrita por Richard Evans e lançada, no Brasil, em 2021.
Evans é especialista em história europeia dos séculos XIX e XX, com foco nos estudos sobre a Alemanha nazista. Foi professor da Universidade de Cambridge e autor de diversos livros, com destaque para a trilogia O Terceiro Reich. Em sua obra mais recente, Evans traz a trajetória de uma figura cosmopolita desde suas origens, alguém que conheceu e foi conhecido em todos os continentes. Não se trata de uma biografia produzida para responder um problema, tampouco de um texto que procura engrandecer ou detratar a imagem do biografado. O objetivo do livro é situar a vida de Hobsbawm e sua atuação como historiador no contexto do século XX; trata-se de apresentá-lo ao mundo do século XXI através de suas “próprias palavras” (p.10). Leia Mais
Escritos perdidos/vida e obra de um imigrante insurgente – Johann Georg Klein (1822-1915) | João Biehl, Miquéias Mügge
Um manuscrito torna-se o ponto de partida de uma pesquisa minuciosa feita pelos historiadores João Biehl e Miquéias Mügge, em livro intitulado “Escritos perdidos”, que narra a vida e a obra de um imigrante germânico chamado Johann Georg Klein (1822-1915). O livro é dividido em quatro capítulos, com um prólogo e um epílogo. No prólogo, os autores narram como chegaram até o manuscrito de Johann Georg Klein – intitulado Vom Katechismus, perdido por mais de um século e que estava de posse dos descendentes do historiador Leopoldo Petry. Nas páginas finais do livro, um conjunto de cartas escritas pelo personagem e por ele redigidas em nome da líder Mucker Jacobina Mentz Maurer e de sua irmã Carolina Mentz. A obra ainda é repleta de mapas, fotografias, litografias, reprodução de cartas, trazendo qualidade e informação ao texto muito bem construído. Leia Mais
Em busca do Submarino U-513. Uma incrível aventura nos mares do sul | Vilfredo Schürmann
Vilfredo Schurmann | Foto: Maria Muina/Veja
A localização do Submarino alemão U-513 está entre os maiores feitos da Arqueologia Subaquática no Brasil, considerando a complexidade para encontrar um casco soçobrado a 130 metros de profundidade, a 83 km da costa, no través da Ilha do Arvoredo, litoral de Santa Catarina. Também é uma importante contribuição à História Naval, pois encontrar barcos da Segunda Guerra Mundial que causaram tantas perdas humanas e materiais pode ter muitos significados e abrir novas linhas de investigação. A localização foi em tempo recorde, cerca de dois anos desde o início efetivo do projeto, considerando a imprecisão da coordenada registrada pelo avião da Marinha norte-americana que afundou o submarino alemão, em julho de 1943. Ou seja, não era conhecido o local exato do afundamento, daí a importância teórica e metodológica do projeto e seus caminhos para descobrir uma posição oceânica! Para dar a compreender a complexidade desta expedição científica, o livro destaca as palavras do oceanógrafo Thomáz Tessler, um dos membros da equipe: “para entendermos o quanto a área de busca é importante no planejamento”, ele fez a seguinte analogia: “é como encontrar metade de uma ervilha em um campo de futebol… você só pode enxergá-la um centímetro à sua frente, isso porque a distância entre o sensor do magnetômetro e o objeto que estamos procurando não pode ser grande”. Leia Mais
Arendt: entre o amor e o mal: uma biografia | Ann Heberlein
Em 2021, a editora Companhia das Letras traduziu o livro [Arendt: Om kärlek och ondska] publicado em 2020 de autoria da sueca Dra. Ann Helen Heberlein, que, pouco conhecida no campo da História brasileira, produziu uma biografia sobre Hannah Arendt. Ainda que não dotada de singularidades abruptas, a biografia expõe duas categorias como chave de leitura para a narrativa de vida de Arendt: contexto e situação-limite. Nesta resenha, portanto, o caro leitor encontrará três setores de informações: a) uma leitura comparativa entre a biografia escrita por Heberlein e outras já consagradas; b) uma síntese geral da narrativa, focando em alguns capítulos-chave; e c) reflexão e apreciação das duas categorias mencionadas.
Heberlein nasceu em 22 de junho de 1970 na Suécia. Estudou Teologia na Lund University, para onde voltou a fim de ser professora-pesquisadora a partir de 2007. Sua dissertação, defendida em 2005 e intitulada Kränkningar och förlatelse (Abusos e perdão), ganhou destaque nacional. A partir de então, começou a discutir sobre culpa, vergonha, responsabilidade, moral, abusos e perdão. Passou a integrar o corpo docente da Universidade de Estocolmo a partir de 2009, além de ter trabalhado como colunista nos jornais Sydsvenskan e Dagens Nyheter. O destaque internacional veio após a publicação, em 2008, de seu relato autobiográfico sobre como é a vida com transtorno bipolar, intitulado Jag vill inte dö, jag vill bara inte leva. Contudo, o primeiro livro traduzido para o português ocorreu em 2012 com Det var inte mitt fel! Om konsten att ta ansvar – traduzido para Não foi culpa minha. A arte de assumir a responsabilidade. Leia Mais
Mexiko: presencia y representación en las publicaciones en lengua alemana entre 1914 y 1945 | Emma Julieta Barreiro, Bernd Hausberger
El Colegio de México publicó en 2021 el libro Mexiko: presencia y representación en las publicaciones en lengua alemana entre 1914 y 1945 que fue coordinado por la literata y traductora Emma Julieta Barreiro y el historiador Bernd Hausberger. Se trata de una obra en la que once autores exploran la forma en que periodistas, científicos, escritores y fotógrafos germanoparlantes retrataron a México, los mexicanos y lo mexicano de la Primera a la Segunda Guerra Mundial. Con ello, los autores muestran la variedad de publicaciones donde se presentó a México y nos incentivan a seguir estudiando las formas en que autores extranjeros han construido el imaginario sobre este país y su población. Leia Mais
Colombia. Un viaje fotográfico: las colecciones de Stübel y Reiss (siglo XIX) | Sven Schuster, Jessica Alejandra Neva Oviedo
Este libro es el resultado de un convenio entre la Universidad del Rosario (Bogotá), el Museo Reiss-Engelhorn de Mannheim (REM) y el Leibniz-Institut für Länderkunde (IfL) para la adquisición y digitalización de varias fotografías compradas por los vulcanólogos alemanes Alphons Stübel y Wilhelm Reiss durante su inesperada expedición por Sudamérica entre 1868-1877. Más en concreto, es un trabajo que se enfoca en el análisis de unas 160 imágenes recolectadas por ambos científicos en su paso por los Estados Unidos de Colombia; 1 la primera de varias paradas en el subcontinente que los llevaron a consolidar una robusta colección de 2300 piezas en nueve años: a todas luces, las más completa de mediados del siglo XIX de acuerdo con los autores de la obra (p. 41). Leia Mais
Navigating Socialist Encounters: Moorings and (Dis)Entanglements between Africa and East Germany during the Cold War | Eric Burton, Anne Dietrich, Immanuel R. Harisch, Marcia C. Schenck
A consolidação da História Global como um campo historiográfico, que ganhou força a partir dos anos 2000, esteve relacionada a intensos debates sobre ausências e silêncios que o campo parecia perpetuar. Atualmente, é consensual nos estudos africanos que uma escrita da história tendo como base a perspectiva da “virada global” não deu a devida atenção para o lugar que a África ocupou – e ocupa – nas dinâmicas de interconexões e interrelações mundiais que buscavam ser evidenciadas. A esse propósito, como recorda o historiador Andreas Eckert, desde a década de 1950 o senegalês Cheikh Anta Diop, um dos intelectuais africanos mais conhecido e pioneiro na promoção de uma história da África fora de balizas europeias coloniais, tinha como uma de suas principais prerrogativas “reconfigurar o lugar da África no Mundo”.1 Leia Mais
Il buon tedesco | Carlo Greppi
La storia non è tutta in bianco o in nero, ma è fatta di sfumature. E sono proprio queste sfumature ad interessare il lavoro degli storici. Il capitano della marina tedesca Rudolf Jacobs è stato una di queste sfumature; un uomo che ha deciso di prendere una posizione marcata e disertare il suo esercito per unirsi alla resistenza. Perché lo ha fatto? In questo libro Carlo Greppi svolge su di lui un’approfondita ricerca sfruttando al massimo i documenti, a volte solo brani, pezzi, brandelli, per narrare una parte della Storia poco conosciuta, magari non fatta pervenire a noi volutamente: quella di militari tedeschi e austriaci che hanno disertato il loro esercito per unirsi al partigianato. È un lavoro di pregio che racconta una storia, ma che svela anche, in modo sciolto e disinvolto, la metodologia di ricerca storica che ne è alla base. È un libro che invita alla riflessione sugli eventi, sulle scelte e, in definitiva, sulla natura stessa dell’uomo, posto a compiere scelte ardue in alcuni momenti cruciali della storia.
La Repubblica di Weimar: democrazia e modernità | Chritoph Cornelissen
Stretta fra la fine della Prima guerra mondiale (1918) e l’avvento del nazismo (1933), la Repubblica di Weimar viene spesso associata nell’immaginario comune a un fallimento: violenza politica, crisi economica e inflazione galoppante, instabilità nella guida dei governi e debolezza del parlamento sono alcuni degli elementi che l’avrebbero condannata all’insuccesso. Un insuccesso talmente bruciante che avrebbe portato la nuova Repubblica federale tedesca, nata dopo la fine della seconda guerra mondiale, a smarcarsi il più possibile dall’esperienza di Weimar, sostenendo che il nuovo assetto istituzionale sarebbe stato di tutt’altra pasta. Soprattutto quando, come in questo caso, le convinzioni sono così consolidate, una rinnovata attenzione storiografica può essere opportuna. Il volume curato da Christoph Cornelissen e da Gabriele D’Ottavio nasce da un convegno tenutosi nel 2019 a Trento e si propone, nel centenario della fondazione della Repubblica di Weimar, di riprendere alcuni argomenti grazie a degli articoli firmati da studiosi e studiose di entrambe le aree culturali (i saggi scritti in origine in tedesco sono stati tradotti da Enzo Morandi). Più esattamente, vengono proposte delle coppie di temi (Costituzione e rivoluzione, società postbellica e cultura politica, crisi economica e crisi sociale, aspirazioni individuali e diritti collettivi, dimensione globale e prospettiva europea, eredità e attualità) che danno forma alla struttura del libro e separano per coppie i dodici saggi presenti.
Christoph Cornelissen insegna Storia contemporanea presso l’Università di Francoforte sul Meno e dal 2017 è il direttore dell’Istituto storico Italo-Germanico della Fondazione Bruno Kessler di Trento, l’istituto che ha organizzato insieme ad altri e ha ospitato il convegno sul centenario di Weimar. Gabriele D’Ottavio lavora come ricercatore di storia contemporanea presso l’università di Trento, oltre a essere affiliated fellow presso lo stesso Istituto italo-germanico. Leia Mais
Der Briefwechsel: 1953–1983 | Reinhart Koselleck e Carl Schmitt || Der Begriff der Politik: Die Moderne als Krisenzeit im Werk von Reinhart Kosellec | Genaro Imbriano
Reinhart Koselleck e Carl Schmitt | Fotos: Neue Bürcher Zeitung e Prodavinci
The correspondence between the conceptual historian Reinhart Koselleck (1923–2006) and the radical-conservative legal and political theorist Carl Schmitt (1888–1985) is certain to attract scholarly attention—and to produce expectations. So far, we have only caught unsystematic glimpses of these theorists’ private exchanges, which began in the early 1950s. Scholarship on Koselleck, particularly Niklas Olsen’s History in the Plural: An Introduction to the Work of Reinhart Koselleck and Gennaro Imbriano’s Der Begriff der Politik: Die Moderne als Krisenzeit im Werk von Reinhart Koselleck, which is under review here, has utilized the correspondence and related archival sources, albeit noncomprehensively and without assessing their overall import for the Schmitt/Koselleck question.1 With the letters now made available in 2019’s Der Briefwechsel: 1953–1983, edited by Jan Eike Dunkhase, the wider (German-speaking) audience can form its own opinions about the thinkers’ relationship and assess their similarities and differences. Leia Mais
Deutsche Kolonialgeschichte(n). Der Genozid in Namibia und die Geschichtsschreibung der DDR und BRD | Christiane Bürger
Christiane Bürger | Foto: LISA Science Portal
O livro de Christiane Bürger é baseado em sua tese defendida em 2016. Formada em filosofia, história e história da arte pelas Universidades de Heidelberg e Viena, Bürger é responsável desde 2016 pela Fundação Haus der Geschichte em Berlim. A recepção da presente obra na esfera pública alemã foi expressiva a ponto de a autora ser convidada a trabalhar na exposição Deutscher Kolonialismus no Deutsches Historisches Museum de outubro de 2016 a maio de 2017. As narrativas sobre o Genocídio Colonial e a associação do conceito de genocídio à Namíbia Colonial são historicizadas na obra. Leia Mais
Hegel e a liberdade dos modernos | Domenico Losurdo
Domenico Losurdo| Foto: Kyan Shokoui Dios
Introdução
A despeito das piadas jocosas que encontramos em páginas de social medias relacionadas à filosofia, é inegável que Hegel continua sendo um autor que desperta respeito, ou, no mínimo, curiosidade para uma leitura. Disso, é difícil encontrar hoje alguém disposto a comentar sua obra. O italiano Domenico Losurdo (1941-2018) tomou consciência de tal empreendimento. Porém, não se absteve de contribuir com algumas ideias. O trabalho de anos de pesquisa e publicações diversas (LOSURDO, 2019, pp. 19-20), resultou no livro intitulado Hegel e a liberdade dos modernos. O foco de sua obra direciona-se ao Hegel sujeito-político, inserido no contexto de sua época. No entanto, Losurdo deu um passo adiante ao confrontar o estudo dos escritos de Hegel com a fortuna crítica coeva e hodierna de sua obra; é dessa relação entre escritos filosóficos e fortuna crítica que se pretende dar atenção nessa resenha crítica.
A importância da historiação dos escritos filosóficos
À primeira vista, Losurdo dá atenção à biografia intelectual como uma maneira de escapar de trabalhos historicista-jornalísticos e das obras que versam a comentários a partir de Hegel. Essa premissa pode parecer estranha àqueles que, acostumados com leituras de autores e autoras já consagrados, acabam por não questionar os cortes produzidos em torno do sujeito, separando, por vezes, a vida pessoal dos escritos publicados, como se não houvesse relação nenhuma entre eles (LUKÁCS, 2018, p. 44). Leia Mais
Resistir a Abadon | Severino E. Ngoenha
Severino Elias Ngoenha é doutor em filosofia pela Universidade Gregoriana em Roma e professor nas universidades Pedagógica de Moçambique e de Lausanne, Suíça. As suas reflexões têm girado em torno de questões ligadas à política e à sociedade Moçambicana e à Filosofia Africana, mas em “Resistir a Abadon” Ngoenha sai dessa esfera de estudo que caracteriza as obras “Das Independências às Liberdades” e “O Retorno do Bom Selvagem” e a projecta no âmbito alargado da filosofia e das relações internacionais tendo como premissas o pensamento do sociólogo alemão Ulrich Beck.
Abadon é descrito no livro como o anjo apocalíptico que está sentado no trono celestial e que capitania a armada de cavalos terrificantes e aparelhados para a guerra. É personificado, adquirindo as características de um sujeito e pode-se falar dele tal como se fala do mercado em economia. O autor descreve Abadon como uma atmosfera disposicional para fazer a guerra e esta é considerada a marca das sociedades actuais, tendo reconhecido o seu papel na criação das sociedades e até mesmo na invenção do Estado moderno. Leia Mais
O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler | Ben Urwand
É bem conhecida a produção de filmes antinazistas pelos estúdios de Hollywood no período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Marc Ferro identifica que enquanto no cinema da França ainda não havia um inimigo definido, se era o nazismo ou o comunismo, nos Estados Unidos a escolha já havia sido feita pelo combate ao nazismo antes mesmo de 1939, sendo este fenômeno mais claro no cinema do que no mundo da palavra escrita, no jornalismo ou na pesquisa.1 Assim, construiu-se uma memória da “resistência” do cinema norte-americano contra o totalitarismo, amplamente aceita e difundida ao longo do tempo.
Indo em uma direção contrária, o livro O pacto entre Hollywood e o nazismo: como o cinema americano colaborou com a Alemanha de Hitler, de Ben Urwand, originalmente de 2013, procura desmistificar a memória da “resistência” de Hollywood na chamada “Era de Ouro” do cinema, contra o nazismo. Urwand é doutor em História dos Estados Unidos pela Universidade da Califórnia, mestre em Cinema e Estudos de Comunicação pela Universidade de Chicago e junior fellow2 da Society of Fellows, da Universidade de Harvard. A ideia para o livro foi a partir de um comentário do roteirista e romancista Budd Schulberg sobre Louis B. Mayer, o chefe da MGM, de que este, na década de 1930, projetava filmes para o cônsul alemão em Los Angeles e cortava tudo aquilo que o cônsul objetasse. (p. 14). Leia Mais
Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais | Silvia Federici
Silvia Federici | Foto: DeliriumNerd
Ao falar de caça às bruxas imagina-se fogueiras queimando acerca de centenas de anos atrás em um povoado bem distante, com pessoas ao redor do fogo assistindo a incineração de uma ou mais mulheres acusadas de bruxaria por serem aliadas ao diabo. São cenas que parecem estar bem longínquas do século 21, e ainda relacionadas somente ao combate contra o mundo sobrenatural. No entanto, através do livro “Mulheres e Caça às Bruxas: da Idade Média aos Dias Atuais” a autora Silvia Federici apresenta a interligação da caça às bruxas à eliminação das mulheres do sistema capitalista e as consequências disso para as suas vidas. O livro de título original “Witches, witch-hunting, and women” é a obra mais recente da autora, lançado no Brasil em 2019 pela editora Boitempo, estando dividido em duas partes no mesmo volume: Revisitando a acumulação primitiva do capital e a caça às bruxas na Europa; Novas formas de acumulação de capital e a caça às bruxas em nossa época. Silvia Federici é escritora, professora e intelectual militante de tradição feminista marxista autônoma, nascida na Itália em 1942, mudou-se para os Estados Unidos no fim da década de 1960, onde foi cofundadora do Coletivo Internacional Feminista e contribuiu para a Campanha por um salário para o trabalho doméstico. Em 1965 concluiu a graduação em filosofia. Atualmente é professora emérita na universidade de Hofstra, em Nova York. Suas outras obras são: Calibã e a Bruxa (Elefante, 2017) e O Ponto Zero da Revolução (Elefante, 2019), além de artigos sobre feminismo, colonialismo e globalização. Leia Mais
The Red International of Labour Unions (RILU) 1920 – 1937 | Reiner Tosstorf
A obra Red International of Labor Unions (RILU) 1920-1937, de Reiner Tosstorff, é o maior esforço analítico conhecido, até agora, sobre a Internacional Sindical Vermelha (ISV), a chamada Profintern. Bastante ignorada, mesmo pelo público especializado no Brasil, a Profintern foi uma das maiores organizações subsidiárias da Internacional Comunista (Comintern). Fundada em 1921, colocada em serviço efetivo em 1922 e dissolvida em 1937, a ISV retratada por Tosstorff é parte também de um gigantesco esforço transnacional.
O livro está dividido em nove capítulos e é resultado de trabalho realizado para obtenção da livre-docência. Publicado inicialmente em alemão em 2004, o trabalho monumental terminou traduzido e publicado nos Estados Unidos em 2016 em um calhamaço de quase mil páginas. A quantidade de páginas, neste caso, é virtude. Não teria sido possível dispor ao leitor tantas minúcias de labor de pesquisa em menos páginas. Leia Mais
Burning the Books / Richard Ovenden, The lost library / Dan Rabinowitz
Richard Ovenden – Foto: Library of Congress /
The burning of books is a highly emotive subject. The Nazis’ bonfires of Jewish books and other ‘degenerate’ literature in 1933 horrify, and not only because they presaged the incinerators of the Holocaust. From the paradigmatic (and, we learn, probably apocryphal) conflagration of the ancient library of Alexandria, which consumed most of the corpus of Classical literature, to the torching of the Baghdad National Library following the invasion of Iraq in 2003, the destruction of books (and archives) seems to shock more than the loss of any other form of material culture. Why should this be? Although Richard Ovenden does not directly address the question in his excellent Burning the Books, the answer may lie both in the unparalleled capacity of books and archives to preserve the past—they constitute our collective memory—and in their limitless potential to generate new knowledge, Milton’s ‘potencie of life’. Perhaps, as Sappho’s enigmatic ‘you burn me’ fragment intimates, something of ourselves perishes in the destruction of books.
Burning the Books, which has justly garnered considerable critical and popular attention, eloquently and powerfully describes numerous attacks upon knowledge across four millennia, from the destruction of Ashurbanipal’s cuneiform library in 621 BCE to the ‘Windrush’ scandal of 2010 when Home Office officials were revealed to have destroyed records that would have proved migrants’ entitlement to British citizenship. While Burning the Books may not break new ground in the scholarship on libraries and book history—it largely draws upon existing literature—it is meticulously researched and referenced, compellingly argued, and likely to prove a landmark in the history of libraries and the preservation of knowledge.
Friedrich Engels and the Dialectics of Nature | Kaan Kangal
En su libro Anti-Dühring, Engels argumentó que, con Hegel, la filosofía había llegado a su fin, y que, para la filosofía, que había sido expulsada de la naturaleza y de la historia por las ciencias naturales y sociales, “sólo queda el reino del pensamiento puro, en lo que aún queda en pie de él: la teoría de las leyes del mismo proceso de pensar, la lógica y la dialéctica”. Engels enumeró tres “leyes de la dialéctica” en Dialéctica de la naturaleza: (1) “La ley de la transformación de la cantidad en calidad y viceversa”, (2) “La ley de la interpenetración de los opuestos” y (3) “La ley de la negación de la negación” (Friedrich Engels, Dialéctica de la naturaleza, ed. Grijalbo, 1961, p. 41, citado en Kangal, p. 168). Esto puede parecer un poco intimidante, pero en realidad las ideas básicas de la dialéctica no son difíciles de comprender. Leia Mais
Red Banners/Books and Beer Mugs: The Mental World of German Social Democrats/ 1863-1914 | Andrew G. Bonnell
Esta colección de ensayos de un historiador marxista que se especializa en la historia del Partido Socialdemócrata de Alemania (SPD) está compuesta por ocho artículos. El primero trata del culto a Lassalle en la Asociación General de Trabajadores Alemanes (ADAV), que se transmitió en parte al SPD. Este ensayo recordará a muchos militantes trotskistas de sus propias experiencias con ciertos “cultos a la personalidad” en sus propias organizaciones; lamentablemente, las organizaciones trotskistas posteriores a Trotsky han tenido una tendencia a heredar todas las malas cualidades de la socialdemocracia y ninguno de sus aspectos positivos, comenzando por su capacidad de convertirse en una organización política de masas de la clase trabajadora. En 1912, el SPD recibía el 34 % de los votos. A pesar del sistema de representación antidemocrático, esto equivalía a 110 escaños del parlamento, de un total de 397, lo que convertía a los socialdemócratas en el grupo más grande en el Reichstag, el parlamento alemán. En 1914, el partido contaba con más de un millón de miembros, de los cuales 175.000 eran mujeres, en un país en el que a las mujeres solo se les había permitido organizarse políticamente en Prusia, entonces la mayor parte de Alemania, desde 1908 (p. 199). También controlaba los movimientos cooperativos y sindicales: la membresía de los sindicatos cristianos católicos llegaba a 350.000 en 1912, en comparación con los 2.500.000 miembros de los sindicatos libres alineados con los socialdemócratas (p. 197). El segundo ensayo proporciona un resumen útil de la actitud de las entonces dos organizaciones socialistas en Alemania hacia las tres guerras de unificación alemana, y particularmente hacia la Guerra Franco-Prusiana de 1870-71, que resultó en sentencias de prisión para August Bebel y Wilhelm Liebknecht por su intransigente postura internacionalista. Es importante resaltar esta ideología militante internacionalista del SPD para evitar interpretaciones anacrónicas basadas en su capitulación al nacionalismo en agosto de 1914, cuando votó por los créditos de guerra en el Reichstag. En un diálogo registrado por la policía en febrero de 1905, en el contexto de la revolución en Rusia, un trabajador polaco aparentemente residente durante mucho tiempo en Hamburgo lamentó que la nobleza polaca mostrara muy poca solidaridad con el pueblo polaco oprimido. Un camarada alemán lo reprendió airadamente por alimentar la ilusión nacionalista de que la nobleza podía ser cualquier cosa menos una explotadora del pueblo, ya fuera en Alemania o Polonia. El socialdemócrata alemán concluyó enfáticamente: “Me cago en todas las nacionalidades y estoy con la socialdemocracia, que es internacional” (p. 52). El tercer ensayo, que trata de las actitudes hacia el trabajo dentro del SPD, ofrece un buen ejemplo de la forma en que el Partido conectaba la teoría marxista con la experiencia cotidiana de sus miembros de clase trabajadora y de los lectores de sus publicaciones periódicas. En El Capital, Marx habló de los resúmenes estadísticos de accidentes laborales, y de las muertes y lesiones resultantes, como “despachos del frente de batalla, que cuentan los heridos y los muertos del ejército industrial”. Los periódicos socialdemócratas publicaban regularmente secciones con títulos como “Del campo de batalla del trabajo”, para enfatizar el desperdicio sin sentido de vidas humanas que resultaba de la regulación inadecuada de la seguridad laboral. Bonnell cita como ejemplo el artículo “Vom Schlachtfelde der Arbeit”, del diario socialdemócrata de Frankfurt Volksstimme del 30 de noviembre de 1906, que ofrecía una descripción de la escena tras una explosión en una fábrica de productos químicos en Dortmund (p. 70). El cuarto ensayo describe cómo el SPD lograba mostrar a los trabajadores en su agitación la conexión entre temas que los afectaban directamente, como el precio del pan y los alimentos, y temas políticos más “abstractos”, como las políticas arancelarias y agrarias del Kaiserreich, donde el estado monárquico tenía una conexión especial con la clase terrateniente Junker de Prusia. El capítulo cinco trata sobre el destino de los socialdemócratas en el ejército imperial, donde abundaba el abuso de los reclutas, así como las precauciones especiales que el SPD tuvo que tomar en su agitación antimilitarista, tanto para evitar la persecución como para evitar el abuso de los jóvenes reclutas. El sexto ensayo, titulado “leyendo a Marx”, muestra cómo las enseñanzas del marxismo se filtraban entre las filas del partido a través de una variedad de conductos, desde órganos teóricos como la revista Die neue Zeit editada por Karl Kautsky hasta grupos de estudio, bibliotecas del partido y de los sindicatos, series de libros como la Internationale Bibliothek, y en particular la edición masiva de folletos que sintetizaban los principales puntos en discusión. A modo de ejemplo, las actas del congreso del SPD celebrado en Erfurt en 1891, en el que el partido adoptó su programa marxista (el año anterior, recién salido de la ilegalidad de las Leyes Antisocialistas, el SPD había adoptado estatutos democráticos en el Congreso de Halle), se distribuyó en 30.000 ejemplares. El programa en sí se imprimió en medio millón de copias y se distribuyeron 120.000 copias del folleto explicativo del programa (p. 132). El libro más vendido de Bebel, La mujer y el socialismo (reeditado por Akal en 2018), que incorporó en sus sucesivas ediciones material de El origen de la familia, la propiedad privada y el Estado de Engels, alcanzó su edición número 50 en 1909, fecha en la que se habían impreso 197.000 ejemplares (p. 130). El capítulo siete, sobre “Trabajadores y actividades culturales”, resume algunas de las principales formas en que el partido combinaba actividades culturales, políticas y sociales en posadas, conferencias, festivales y por otros medios, bajo la atenta mirada del censor y de la policía. El ensayo final sobre “Socialismo y republicanismo en la Alemania imperial” explica por qué el SPD tuvo que bajar el tono de la agitación en torno a la república, debido a la censura y la persecución política, aunque se sabía ampliamente que los socialdemócratas eran republicanos y que la república se escondía tras consignas confusas como el “estado del pueblo libre” (freier Volksataat), una formulación comprensiblemente condenada por Marx como vacía en su Crítica del Programa de Gotha. A pesar de que los marxistas no atribuían mayor importancia a la diferencia entre la república y una monarquía constitucional, Rosa Luxemburg consideró oportuno, después de 1910, realizar una agitación sobre la huelga de masas en torno a la consigna de la república, no como un fin en sí mismo, sino como un medio para la movilización de las masas, convirtiendo así una demanda puramente democrática en una demanda de transición, al igual que la organización de mujeres del SPD centró su agitación en torno a la cuestión del sufragio universal femenino como medio para la movilización y organización de un movimiento de mujeres proletarias dirigido por un partido socialista. Dado que la calidad de los ensayos es uniformemente buena, en vez de analizar uno en particular señalaremos algunos de los hechos que menciona el autor, para enfatizar por qué es importante para los marxistas de hoy estudiar de cerca la experiencia del SPD. Por ejemplo, Bonnell señala que, a pesar de la famosa crítica de Robert Michels a las tendencias supuestamente oligárquicas del SPD, la estructura democrática del partido se revelaba en el hecho de que las organizaciones partidarias locales celebraban asambleas para enviar delegados a los congresos anuales del partido y debatían las resoluciones que serían discutidas en esos congresos, y que la prensa partidaria informaba sobre estas asambleas y sobre los debates que en ellas se desarrollaran. Es difícil imaginar hoy, dado el estado miserable de la izquierda marxista en todo el mundo, el alcance de la prensa obrera en Alemania antes de la Primera Guerra Mundial. En 1914, había más de 90 diarios socialdemócratas en Alemania, con una circulación total cercana al medio millón, incluyendo periódicos de ciudad importantes como el Hamburger Echo (con una circulación de 76.000 en 1913) y el Leipziger Volkszeitung (53.000 en 1913). Desde 1911, el órgano central del partido, Vorwärts, que también funcionaba como el periódico del partido en Berlín, fluctuó entre 150 y 160.000 suscriptores. No muy lejos del Vorwärts estaba el periódico de las mujeres socialistas, Die Gleichheit, que tenía 125.000 suscriptores en 1914. Vorwärts fue superado por el semanario ilustrado humorístico-satírico Der Wahre Jakob, que disfrutaba de una circulación masiva de unos 371.000 ejemplares (p. 140-141, 152). Ser editor de un periódico socialdemócrata era un trabajo peligroso. Bonnell señala que, a lo largo de la década de 1890, Vorwärts llevó un registro mensual de las condenas, sentencias de prisión y multas que sufrían los miembros del partido, el cual mostraba que los editores de periódicos socialdemócratas estaban en una situación de riesgo especial, y que en la década de 1890 apenas había un editor de los periódicos de los sindicatos o del partido que no hubiera pasado varios meses en la cárcel por difamación y calumnia (Beleidigung) contra el Kaiser, el soberano de algún estado alemán en particular, funcionarios estatales o empleadores. Teniendo en cuenta estos hechos, no es de extrañar que en la década de 1890 se sugiriera a veces que el puesto de editor legalmente responsable de un periódico socialdemócrata se rotara entre camaradas más jóvenes, solteros, sin familias que mantener, que pudieran permitirse pasar unos meses en la cárcel (p. 179-180). Leia Mais
Por dentro do III Reich. Os anos de glória | Albert Speer
Creio ser a quarta vez que leio esse catatau em letras miúdas, intitulado Por dentro do III Reich, de Albert Speer, o arquiteto e depois ministro do armamento de Hitler. Não se pode confiar nesse livro que, mesmo sem exagero, procura dar uma visão positiva do autor. Esconde, por exemplo, que Speer expulsou 75000 judeus e que sabia do Holocausto. O que me interessa, porém, não é a imagem que Speer constrói de si mesmo, imagem de um tecnocrata apolítico, ou do “bom nazista”, já que assim foi chamado, mas o modo como ele narra suas relações na ascensão de Hitler, e as intrigas internas da corte em volta do Fuhrer.
“Talvez ainda apareça alguém que pense de um modo simples. Atualmente, o pensamento está muito complicado. Um homem inculto, sem base, solucionaria esta situação de uma maneira muito mais fácil, justamente por não estar ainda corrompido. Esse homem disporia também da energia suficiente para concretizar suas concepções simples.” Essa observação, pragmática em seu fundo, parecia-nos poder ser aplicável, precisamente, a Hitler”. Leia Mais
Ciencia/tecnología y producción agropecuaria. Historia de la cooperación bilateral entre Alemania y Uruguay (1856-2018) | Gerardo Caetano
Resenhista
Eduardo Gallardo – Centro de Estudios de Historia Agraria de América Latina (CEHAL).
Referências desta Resenha
CAETANO, Gerardo (Org.). Ciencia, tecnología y producción agropecuaria. Historia de la cooperación bilateral entre Alemania y Uruguay (1856-2018). Montevideo: Editorial Planeta, 2019. Resenha de: GALLARDO, E. Historia Agraria De América Latina, v.1, n.2, p. 138-141, nov. 2020. Acesso apenas pelo link original [DR]
Karl Marx: uma biografia dialética | Angelo Segrillo
O livro de Angelo Segrillo (professor Livre Docente de história contemporânea, coordena o Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História da USP; Graduou-se pela Southwest Missouri State University (EUA), cursou mestrado no Instituto Pushkin de Moscou (Rússia) e doutorado na UFF; É especialista em história da Rússia e ex-URSS eurasiana) se soma a outros dois trabalhos, com escopo biográfico, publicados por pensadores brasileiros. O primeiro deles, “Marx – vida e obra” de Leandro Konder publicado no Rio de Janeiro pela editora Paz e Terra, nos anos 1970 (em 2015 foi publicado em nova edição pela Editora Expressão Popular) e o outro, “Marx Vida e Obra” do professor José Arthur Giannotti publicado em 2000 na coleção L&PM Pocket Filosofia. Porém, enquanto estas duas obras abordam com maior ênfase aspectos teóricos do pensador alemão, Segrillo produz um trabalho com foco na vida de Karl Marx.
‘Karl Marx: uma biografia dialética’ é dividido em 10 capítulos, além da introdução, da conclusão, de um anexo (que é a cronologia da vida de Marx) e da bibliografia. As seções do livro não são proporcionais, uma vez que cada uma delas analisa como Marx viveu, em cada cidade pela qual passou. Dessa forma, lugares em que o Mouro (apelido pelo qual Marx era conhecido em razão da cor de sua pele, mais escura que os seus amigos e familiares) permaneceu por menos tempo tiveram um espaço menor no livro, sendo o décimo capítulo, “Londres, agosto 1849-14 de março 1883”, o maior de todos. Leia Mais
Viandante nel Novecento. Thomas Mann e la storia | Domenico Conte
Já definido como “monumental”, “rico”, “policromático” e “diverso”, o recente e imponente livro de Domenico Conte, intitulado Viandante nel Novecento. Thomas Mann e la storia, reúne, dividido em quatro partes (“História e mito”, “Política e primitivismo”, “Natureza e espírito”, “Benedetto Croce e Thomas Mann”), vinte e dois ensaios publicados pelo autor no período entre 2009 e 2018.
E precisamente o tempo, protagonista destas páginas juntamente com Mann, faz com que o tom do historiador da cultura napolitano em direção ao escritor de Lübeck, seja, sim, cheio de admiração, mas nunca subserviente ou temeroso, tornando-se cada vez mais familiar, tanto que se dirige a ele não apenas com o nome de batismo, Thomas, mas com o diminutivo Tommy. O que, como é evidente, representa uma marca de proximidade, uma intimidade cujas raízes devem ser procuradas no passado ou, aqui talvez seja mais adequado dizer: mais para lá, mais abaixo. De fato, o vínculo que une Conte a Mann é, como ele próprio confessa, “uma espécie de fidelidade”. Leia Mais
Sulla vocazione per la politica. Max Weber e le “Politische Stimmungen” di Karl Jaspers | Edoardo Massimilla
Publicado em 2019, o ensaio de Edoardo Massimilla, Sulla vocazione per la politica. Max Weber e le “Politische Stimmungen” di Karl Jaspers, inaugura, retomando uma ideia originária de Pietro Piovani, a nova série dos “Quaderni di storia della cultura” da antiga e prestigiosa “Accademia di Scienze morali e politiche” de Nápoles.
Nele, partindo da “ampla” introdução à “excelente” antologia dedicada a Weber como pensador político de Francesco Tuccari, Massimilla propõe uma comparação crítica, articulada e minuciosa, entre as reflexões de Max Weber sobre a ação política e as de Karl Jaspers, que nunca deixou de observar as reflexões de Weber. E, para tanto, depois de ter percorrido facilmente os “três níveis de articulação da reflexão política weberiana” apontados por Tuccari – o relativo à sociologia do poder; o outro dedicado à política alemã da época, e o terceiro, relativo à elaboração de uma teoria geral da política moderna” (5-6) – o autor identifica no último destes aquele em que, mais do que nos outros, são presentes elementos que permitem uma comparação fecunda, na esfera política, entre os dois pensadores (16). Leia Mais
Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000 – BURKE (S-RH)
BURKE, Peter. Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000. São Paulo: Editora Unesp, 2017. Resenha de: SANTOS, Jair. O conhecimento sem pátria. SÆCULUM – Revista de História, João Pessoa, v. 25, n. 42, p. 222-226, jan./jun. 2020.
Todos os que acompanham a atualidade política sabem que um tema em particular está quase sempre presente no debate público, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos: a imigração. A polêmica discussão é animada não somente pelos jornalistas e atores políticos, com posicionamentos nem sempre apaziguadores, mas também pelos intelectuais. São inúmeros os acadêmicos – filósofos, historiadores, sociólogos, cientistas políticos, juristas – que tentam, através de uma análise mais serena e por meio dos instrumentos fornecidos pela ciência que professam, analisar a imigração como um fenômeno social complexo, com diferentes causas e diversas consequências para a sociedade. O último livro de Peter Burke, fruto de conferências proferidas na Historical Society of Israel em 2015, é um belo exemplo de como um historiador, de quem se costuma esperar apenas um olhar crítico sobre o passado, também pode enriquecer a reflexão acerca de problemas atuais. A obra Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, publicada em 2017, estuda um tipo específico de imigração: a dos intelectuais que deixaram seu país natal, de modo espontâneo ou forçado, e prosseguiram a sua produção intelectual em outras terras. A partir desse grupo seleto de imigrantes, o autor examina os efeitos do encontro – ou eventualmente do choque – entre duas culturas na produção e difusão do conhecimento. Este é o pressuposto central do livro: a imigração é um fato social de efeitos recíprocos, isto é, tanto os indivíduos que imigram quanto a sociedade estrangeira que os acolhe são de algum modo afetados e transformados pelo intercâmbio que se opera. Está claro, portanto, que o livro refuta o argumento, às vezes invocado em âmbito político, segundo o qual a influência estrangeira é necessariamente nociva para a cultura nacional. Leia Mais
Si je reviens un jour… Les lettres retrouvées de Louise Pikovsky – TROUILLARD; LAMBERT (APHG)
TROUILLARD, Stéphanie, LAMBERT, Thibaut. Si je reviens un jour… Les lettres retrouvées de Louise Pikovsky. Paris: Des Ronds dans l’O, 2020. Resenha de: CHANOIR, Yohann. Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie (APHG). 30 avr. 2020. Disponível em: <https://www.aphg.fr/Si-je-reviens-un-jour-Les-lettres-retrouvees-de-Louise-Pikovsky-4019> Consultado em 11 jan. 2021.
Un livre, une histoire, l’Histoire
Tout livre, même dessiné, a une histoire. Celui-ci encore plus que les autres. En 2010, dans un lycée parisien, sont retrouvées des lettres et des photographies appartenant à une ancienne élève, Louise Pikovsky. Arrêtée le 22 janvier 1944, transférée à Drancy avec ses parents, elle est déportée à Auschwitz, d’où elle ne reviendra pas. Le destin de Louise et de sa correspondance épistolaire avec sa professeure de latin-grec est en soi déjà émouvant. Mais il l’est davantage encore par la suite. Retrouvées, les lettres sont lues, mises en valeur dans le lycée de Louise, où une plaque commémorative sur les élèves déportés a pu être posée. Elles ont servi ensuite à nourrir un webdocumentaire réalisé par Stéphanie Trouillard en 2017, auteure que nos lecteurs connaissent bien avec son très beau livre Mon oncle de l’ombre, sur son grand-oncle exécuté en 1944 par les Allemands. Elles sont devenues aujourd’hui une bande dessinée. On retrouvera d’ailleurs quelques-unes de ces lettres et photos à la fin de l’album.
La vie d’une jeune lycéenne parisienne
Née en 1932, Louise est une élève dont la maturité surprendra plus d’un lecteur. Non seulement par la beauté de son raisonnement, par son souci des autres, mais aussi par sa prescience en 1944 que son destin est scellé et qu’elle accepte avec une incroyable résolution. Louise est cependant une jeune fille, comme bien d’autres, avec ses amitiés, ses inimitiés. Elle est aussi une de ces élèves, toujours trop rares, qui saisissent la beauté d’un texte, qui s’accaparent l’enseignement donné, le questionnent, le transforment et lui donnent une plus-value. De fait cet album est aussi celui d’une rencontre, entre une élève et son enseignante. La classe n’épuise pas évidemment la vie de Louise. On plonge dans son quotidien, les repas avec la famille, les chamailleries avec les sœurs et son frère. Le dessinateur a su rendre le caractère spartiate du logement par les couleurs plutôt ternes (seuls les rideaux rouges sous l’évier cassent la palette chromatique). Il a su également l’enrichir par une foule de petits détails, ces « effets de réel » dont parlait Roland Barthes : le torchon qui enveloppe le pain (p. 23), le seau pour les détritus (p. 19) etc. Le sérieux du propos n’exclut pas l’humour. Nos lecteurs attentifs retrouveront le clin d’œil à Hergé et aux aventures de Tintin, une allusion référentielle typique de l’école belge.
La guerre en arrière-plan
Drame singulier en même temps qu’expérience collective subie par des millions de personnes, le destin de Louise n’est pas décontextualisé. Par petites touches, à la manière d’un impressionniste, le dessinateur place des éléments de contexte dans les planches. On y découvre un Paris bien sûr occupé, avec la présence de soldats allemands, un Paris déjà martyrisé par les bombardements (p. 49) mais aussi une capitale où la mort sociale de la population juive est mise en œuvre, avec le dessin bien connu d’une pancarte dressée devant un parc à jeux réservé aux enfants mais interdit aux Juifs (p. 34). L’album offre ainsi un résumé saisissant de la politique de collaboration des autorités avec les nazis : policiers français qui saluent, au détour d’une rue, une patrouille allemande, policiers français qui viennent arrêter Louise et sa famille pour les emmener à Drancy, antichambre de la mort, policiers enfin qui livrent les familles aux nazis. En quelques images, sans le renfort de cartouches, tout est montré, tout est dit. Ces images sont d’autant plus poignantes que les grands-parents de Louise avaient quitté la Russie pour échapper aux pogroms et qu’ils pensaient être libres, heureux, en sécurité. Le destin de Louise est aussi la mort d’une certaine idée de la République.
Un album à lire et à faire lire
Si l’intérêt de cette bande dessinée est naturellement d’ordre mémoriel, il nous semble que l’album joue un rôle tout aussi déterminant dans la pédagogie de la Shoah. Expliquer à des élèves aujourd’hui ce qu’est cet assassinant industriel de masse, n’est pas simple. Cela ne peut se réduire à une collection de mesures et de chiffres. Il est nécessaire d’incarner la « Solution finale », par des exemples précis. Comme le cinéma ou les séries télévisées, la bande dessinée dispose du pouvoir de l’image. À ce titre, en raison de sa richesse, cet album doit s’inviter dans nos pratiques.
Il y a d’abord l’empathie pour une jeune fille de leur âge. Il y a ensuite l’explication sobre et efficace de la mécanique implacable de la Shoah, de l’exclusion à l’arrestation puis à la déportation. La bande dessinée souligne également l’héroïsme au quotidien d’une enseignante, qui fait retirer à Louise pour la photo de classe, sa veste avec l’étoile jaune, car elle est « une élève comme les autres » (p. 45). On imagine la tranquille résolution de notre collègue qui, elle, n’a pas démérité de la haute idée que l’immense majorité du corps enseignant, hier comme aujourd’hui, se fait de la République.
Les larmes de notre collègue s’expliquent ainsi sans doute, pour ne pas avoir pu sauver une jeune vie si prometteuse et par là tout un monde. Qu’elle soit toutefois assurée et rassurée, grâce à elle, et grâce au travail des auteurs de cet album, au soutien de la Fondation pour la Mémoire de la Shoah, Louise ne sera plus oubliée.
Yohann Chanoir – Agrégé d’histoire, professeur en classe européenne allemand au Lycée Jean Jaurès de Reims, rédacteur en chef adjoint d’Historiens & Géographes.
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O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista – LUKÁCS (FH)
LUKÁCS, György. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Tradução de Nélio Schneider. 1 ed. São Paulo Boitempo, 2018. 733p. Resenha de: SILVA, Edson Roberto de Oliveira. O jovem Hegel de Lukács: por uma redenção da dialética. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.51-507, jan./jun., 2020.
György Lukács é considerado o maior filósofo marxista do século XX. Nasceu em Budapeste no dia 13 de abril de 1885, em uma Hungria que, no período, fazia parte do território integrado ao Império Habsburgo. Graduou-se na Universidade da mesma cidade, doutorou-se em Direito e Filosofia em 1906 e 1909, respectivamente. A produção e desenvolvimento filosófico do jovem Lukács — de 1910 a 1923 influenciou nomes conhecidos como Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, Ernest Bloch e pensadores da famosa Escola de Frankfurt, como Theodor W. Adorno.
O livro O Jovem Hegel e os Problemas da sociedade capitalista (2018), de Lukács faz parte da coleção A Biblioteca Lukács, coordenada por José Paulo Netto, e se tornou o sétimo título do filósofo húngaro publicado pela editora Boitempo. A obra foi traduzida diretamente do alemão por Nélio Schneider e teve revisão técnica de Netto e Ronaldo Vielmi Fortes.
A coleção Biblioteca Lukács tem como missão fazer a divulgação do pensamento do filósofo húngaro. Entretanto, não é de hoje que o pensamento lukacsiano é divulgado no Brasil, tanto por traduções como por elaborações críticas. Sua filosofia foi intensamente divulgada na década de 1960 por três intelectuais de grosso calibre — Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e J. Chasin — efetuando traduções e em elaborações críticas. Entre as obras de Lukács traduzidas e divulgadas por Konder e Coutinho estão: Ensaios Sobre Literatura (1964); Introdução a uma Estética marxista (1978), títulos esses publicados pela Editora Civilização Brasileira.
O desenvolvimento filosófico de Lukács tem como proposta, desde seus primeiros escritos marxistas, fazer um debate renovado com a filosofia clássica, principalmente a alemã, na qual ele buscava fazer “ao nível da crítica” a “análise histórica e sistemática das modalidades de conhecimento e interpretação do mundo constituídas pela cultura burguesa” e “determinar o estatuto histórico-filosófico do marxismo” instaurando uma “crítica macroscópica da totalidade da cultura burguesa” (NETTO, 1978, p.14). Netto (1978) dará destaque para duas obras do filósofo húngaro onde se encontram as críticas sistemáticas à cultura filosófica burguesa: O jovem Hegel, a qual nos propomos apresentar a partir dessa resenha, e Destruição da Razão: de Schelling a Hitler (NETTO 1978, p.15). O intérprete nos alerta que a crítica à filosofia burguesa do pensador húngaro não somente se propõe a apontar suas limitações, mas, também, resgatar Hegel da instrumentalização mistificadora elaborada pelos ideólogos fascistas — se empenhando em “resgatar os conteúdos humanistas e democráticos do pensamento burguês anterior 1848” (NETTO, 2011, p.8). Desta forma Lukács, desde História e Consciência de Classe, é considerado um renovador do pensamento marxista.
O livro, O jovem Hegel, é dividido em quatro partes que são compostas por momentos do desenvolvimento filosófico de Hegel partindo das diferentes localidades em que o filósofo alemão viveu: Berna (1793-1796), denominado como o período republicano de Hegel; Frankfurt (1797-1800), no qual o filósofo deu início ao desenvolvimento do método dialético; e Iena, que se divide em mais dois períodos: o primeiro (1801-1803), no qual há a vinculação e a defesa ao idealismo objetivo; e o segundo (1803-1807), momento que mostra os últimos percalços que Hegel trilhou para culminar em sua primeira produção amadurecida, original e de peso, A Fenomenologia do Espírito.
O plano de fundo d’O jovem Hegel é a Revolução Francesa e os ecos no pensamento germânico. O interesse do filósofo alemão, como nos alerta Lukács, estava voltado para entender a sociedade civil burguesa [bürgerlicheGesellschaft]. O húngaro mostrará que a influência da revolução burguesa na sua totalidade — isto é, Revolução Industrial e a revolução política para a instauração de um Estado-nação —, interessava à Hegel e foi determinante para a formação de seu posicionamento filosófico e político.
No curto espaço de tempo que Hegel esteve em Berna, Lukács analisa o início do seu desenvolvimento filosófico, desmistificando as interpretações feitas de sua filosofia nesse período, que tendem a culminar, muitas vezes, na redução e vinculação de suas elaborações a um “reacionarismo” tratando-o como absolutista e vinculando-as unilateralmente com a “teologia”. O húngaro nos mostra que, em primeiro lugar, as vinculações políticas de Hegel nesse período sempre estiveram voltadas para a ala da esquerda democrática do Iluminismo e que teciam críticas ao Iluminismo alemão, pois os “absolutistas feudais e seus ideólogos tentaram muitas vezes se aproveitar de determinados aspectos deste movimento para seus próprios fins” (LUKÁCS, 2018, p. 68). Hegel via a “antiga república citadina (polis) não como um fenômeno social do passado”, mas como a constituição de “um modelo eterno, ideal não alcançado para uma mudança atual da sociedade e do Estado” (LUKÁCS, 2018, p. 69, grifos nossos). Em segundo, aponta que a filosofia de Hegel não teve vinculação teológica, pelo contrário, Lukács argumenta que o alemão é um crítico do sectarismo do cristianismo primitivo (LUKÁCS, 2018, p. 71), e se interessava por seitas posteriores. Hegel, segundo seu estudioso, trata o cristianismo como uma religião “positiva” a qual “constitui um esteio do despotismo e da opressão” (LUKÁCS, 2018, p. 85).
A ligação de Hegel à filosofia kantiana, principalmente de Crítica da razão Prática, é, segundo Lukács, de extrema importância para a vinculação de sua filosofia à realidade. O filósofo alemão vê que tanto os problemas sociais como os morais vinculam-se aos problemas da práxis, mostrando que a base de sua filosofia é a “reconfiguração da realidade social pelo ser humano”. Lukács escreve que Hegel vai além de Kant, posto que este último investiga os problemas morais do ponto de vista do indivíduo. Para Kant o fundamental é a consciência como um fato moral, em contraponto a isso “o subjetivismo do jovem Hegel, direcionado para a prática, é coletivo e social desde o início. Para Hegel, é sempre a atividade, a práxis da sociedade que constitui o ponto de partida e também o objeto central da investigação” (LUKÁCS, 2018, p. 73).
Já nos três anos de Frankfurt, Hegel, segundo Lukács, irá reestabelecer criticamente algumas das suas concepções filosóficas, entre elas a sua elaboração de positividade. Nesse momento, a “positividade” será vista como “um sinal de que o desenvolvimento histórico já ultrapassou uma religião, e que ela merece ser destruída e inclusive tem de ser destruída pela história” (LUKÁCS, 2018, p. 329). Essas novas formulações também servirão de base para os “primeiros embriões do método de Fenomenologia do espírito” (LUKÁCS, 2018, p. 177). Lukács nos expõe que todo esse desenvolvimento do período de Frankfurt é atrelado com as constantes variações na história da Revolução Francesa, porém suas concepções republicanas revolucionárias permanecem as mesmas do período de Berna. O húngaro realça que é nesse momento que se revela a diferença da produção filosófica hegeliana, pois, enquanto em Berna Hegel elaborava suas concepções histórico-filosóficas partindo de um único fato relevante para a história universal, a Revolução Francesa, após Frankfurt, o alemão passa a dar igual importância para o desenvolvimento econômico da Inglaterra. Assim, ambos os eventos passam a ser elementos fundantes para a sua concepção de história e noção de sociedade. “O problema”, diz Lukács, “referente ao modo como a estrutura absolutista feudal da Alemanha deve ser modificada pela Revolução Francesa aflora para Hegel dali em diante não como questão geral da filosofia da história, mas como problema político concreto”. (LUKÁCS, 2018, p. 171).
Lukács diz que a filosofia de Hegel incorpora as “problemáticas sociais e políticas” e que estas “se convertem em filosóficas de modo sempre imediato” (LUKÁCS, 2018, p. 172). Como consequência disso, passou a tomar “consciência, portanto, do antagonismo entre dialética e pensamento metafísico primeiro como antagonismo entre pensamento, representação, conceito etc. de um lado, e vida, de outro” (LUKÁCS, 2018, p. 173). Esse processo teria feito parte de um projeto de reconciliação filosófica de Hegel entre os “ideais humanistas do desenvolvimento da personalidade e os fatos objetivos e imutáveis da sociedade burguesa” que, segundo o filósofo húngaro, irão conduzir Hegel “a uma compreensão mais e mais profunda primeiro dos problemas da propriedade privada e depois do trabalho como inter-relação fundamental entre indivíduo e sociedade” (LUKÁCS, 2018, p. 175). Esse desenvolvimento das concepções de Hegel culminará em uma tentativa de sistematização no fim do período de Frankfurt, o que também prepara Hegel para uma crítica profunda ao idealismo subjetivo e para a separação da filosofia de Schelling frente a de Fichte.
Em Iena, onde Hegel passa um pouco mais de seis anos, de 1801 a 1807, é que surgirão as suas elaborações de juventude mais profundas. É o período em que o jovem filósofo acertará as contas com a filosofia clássica de seu tempo, Kant, Schiller, Fichte e, somente em Fenomenologia do espírito, com Schelling — obra que sela definitivamente o rompimento com as colaborações filosóficas entre ambos, e faz com que este último se coloque como um combatente frente a dialética hegeliana. Em Iena temos dois períodos, o primeiro, de 1801 a 1803, é marcado fortemente pela defesa de Hegel ao idealismo objetivo. Para tanto, o filósofo inicia sua parceria com Schelling demonstrando a diferença da filosofia deste com a de Fichte onde, o último, é colocado como um agnóstico (LUKÁCS, 2018, p. 342), motivo que colocou Hegel como defensor da filosofia schellinguiana e revelou a ambos que ali nascia uma nova formulação filosófica por parte de Schelling. Nesse processo, Lukács aponta que Hegel combateu o individualismo abstrato da ética elaborando uma crítica mais concreta, dessa forma o filósofo alemão “não se limita mais a examinar problemas isolados da ética kantiana que tem uma problemática coincidente com a sua, mas submete toda a ‘filosofia prática’ do idealismo subjetivo a uma análise crítica abrangente” (LUKÁCS, 2018, p. 391).
A filosofia hegeliana, segundo o húngaro, é histórica desde as primeiras elaborações de Berna, porém essa concepção só entra em cena após as “renúncias às ilusões jacobinas de renovação da Antiguidade”. É nesse momento que Hegel se depara com os “problemas da dialética da sociedade burguesa moderna”, isso faz com que se constitua, no seu pensamento filosófico, um problema central e latente de “conexão dialética entre o desenvolvimento histórico e a sistemática filosófica”. Dessa maneira Hegel tem a possibilidade de levantar contra Fichte uma crítica a suas concepções de “liberdade independentemente das leis objetivas da natureza e da história” (LUKÁCS, 2018, p. 410. Lukács mostra que o historicismo de Hegel segue uma concepção que não significa uma glorificação do passado, pois esse seria a visão do historiador romântico que apareceu na Alemanha “sob a influência publicística da contrarrevolução”, disseminando a “concepção de que a ‘organicidade’ das formações históricas e do desenvolvimento histórico exclui a vontade consciente dos homens de mudar seu destino social” e, além disso, também defendem que “a ‘continuidade’ do desenvolvimento histórico é francamente contrária à interrupção da linha de desenvolvimento já iniciada” (LUKÁCS, 2018, p. 411. As concepções de Hegel nesse momento já se apresentam como um prelúdio para a sua primeira síntese filosófica de peso sistematizada em Fenomenologia do espírito A Fenomenologia do espírito de Hegel é colocada por Lukács como uma obra seminal do pensamento filosófico alemão e marca uma virada nas coordenadas do desenvolvimento não só da filosofia hegeliana, mas de todo pensamento moderno. É no segundo momento de Iena, 1803 a 1807, que Hegel iria amadurecer suas diferenças filosóficas com Schelling, as quais foram reduzidas pelo primeiro apenas à questão do método, mas que o húngaro enfatiza que a diferença se apresenta “também em todas as questões da filosofia da sociedade e da história” (LUKÁCS, 2018, p. 559). A concepção filosófica-histórica de Hegel, a partir de Lukács, vai na contramão da visão moderna, pois na filosofia hegeliana não existe “estado de espírito”, assim há uma diferença em relação a “posição histórica do tempo presente” (LUKÁCS, 2018, p. 594). Em Iena, o filósofo húngaro diz que “a Revolução Francesa e sua superação (no triplo sentido hegeliano) por Napoleão constitui o ponto de inflexão decisivo da história mais recente” e que entra em contraposição com a visão posterior do velho Hegel que a “Reforma assume a posição central na história da era moderna que em Iena Hegel havia atribuído à Revolução Francesa e a Napoleão” (LUKÁCS, 2018, p. 595).
O filósofo húngaro atribui à Fenomenologia a sistematização entre as categorias de mediação, reflexão etc. mas considera as categorias de alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfrendung) como pontos centrais do desenvolvimento dessa obra, ambos os termos derivados da tradução do termo inglês “alienation” para o alemão – termo esse que foi utilizado na economia-política inglesa, quando se tratava da venda de mercadoria e, também, pela “teoria do contrato social para denominar a perda da liberdade original, a transmissão, a exteriorização da liberdade original à sociedade originada pelo contrato”(LUKÁCS, 2018, p. 689). A categoria de alienação não foi usada exclusivamente por Hegel na filosofia clássica alemã. Lukács exibe que Fichte já a tinha utilizado para mostrar que um “objeto posto” constitui uma alienação do sujeito e o próprio objeto é concebido como uma “razão alienada”. O estudioso do filósofo alemão aponta que, na Fenomenologia, há três níveis de apresentações da categoria de alienaçãoo primeiro faz menção à relação entre sujeito-objeto, e vincula toda produção humana, o trabalho, à “atividade social e econômica do homem”; o segundo nível a alienação é o que se apresenta na sua forma capitalista, e que, mais tarde, será desenvolvido por Marx como categoria fetichismo (LUKÁCS, 2018, p. 691); no terceiro nível é um momento que passa pela alienação, ou seja, como “coisidade (Dingheit) ou objetividade (Gegenständlichkeit)” que é a “forma em que, na história da gênese da objetividade, esta é apresentada filosoficamente como momento dialético na trajetória do sujeito-objeto idêntico de volta a si mesmo, passando pela ‘alienação’” (LUKÁCS, 2018, p. 692).
Lukács se esforça em sistematizar historicamente o envolvimento de Hegel com o seu tempo histórico e demonstrar o reflexo desse tempo em sua filosofia. Dessa forma o húngaro não faz uma biografia de Hegel, mas um tratamento histórico-sistemático olhando a “filosofia como parte importante do movimento total da história” (LUKÁCS, 2018, p. 21). Graças ao trabalho de tradução de Nélio Schneider, a divulgação do pensamento de Lukács — que se iniciou na década de 1960 com Konder, Coutinho e Chasin — ganha ainda mais volume e temos a oportunidade de ter em mãos um trabalho histórico-filosófico que contribui para o desenvolvimento do marxismo no Brasil de forma fecunda e dialética pois essa obra tem a capacidade de desmistificar a filosofia de Hegel e, com uma leitura atenta, absorver o método dialético que ali se explicita.
Referências
LUKÁCS, György. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Tradução de Nélio Schneider.1º ed. São Paulo Boitempo, 2018.
NETTO, José Paulo. Lukács e a Crítica da Filosofia Burguesa. Lisboa: Seara Nova, 1978.
NETTO, J. Paulo. Introdução: Sobre Lukács e a Política. In. LUKÁCS, György Socialismo e democratização – Escritos políticos 1956-1971. 2º ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.
Edson Roberto Silva – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, estado de São Paulo (SP), mestrando na Pós-Graduação em História da UNESP de Assis, estado de São Paulo (SP), Brasil. Atualmente é bolsista CAPES. e-mail: edoliviera89@gmail.com.
[IF]Forty Autumns: A Family’s Story of Courage and Survival on Both Sides of the Berlin Wall – WILNER (TH-JM)
WILNER, Nina. Forty Autumns: A Family’s Story of Courage and Survival on Both Sides of the Berlin Wall. New York: HarperCollins, 2016. 391p. Resenha de: SHIELDS, Trevor. Teaching History – A Journal of Methods, v.45, n.2, p.55-57, 2020.
On June 26, 1963, President John F. Kennedy, on a visit to West Berlin, eloquently lamented, “The [Berlin] Wall is…an offense not only against history but an offense against humanity, separating families, dividing husbands and wives and brothers and sisters, and dividing a people who wish to join together.” All too often, the humanity of those impacted by the events of the Cold War gets lost in the background of the larger narrative of communism versus democracy—the Soviet Union versus the United States. Nina Willner’s work, Forty Autumns: A Family’s Story of Courage and Survival on Both Sides of the Berlin Wall (2016), successfully and vividly injects much needed humanity into the Cold War.
Written as primarily a family memoir, Forty Autumns tells the story of just one of the families divided by the Berlin Wall. Willner’s book chronicles the life of her mother, Hanna, and grandparents, Erna and Karl (Willner regularly only refers to Erna and Karl as Oma and Opa, or Grandma and Grandpa.) The book, which is divided into roughly four sections, begins with several maps of Europe during the Cold War. From there, one of the greatest features of the book appears, a family and historical chronology as Willner pairs the events of the Cold War physically right alongside their impact on her family. Seeing the history of the Cold War linked to the impacts of particular historical events on real people makes the vivid narrative of Forty Autumns difficult to put down. In 1946 the Soviets occupied East Germany and imposed Soviet law. That same year, Opa, who fought for the Germans during WWII, was forced to begin teaching Soviet doctrine to his many students in East Germany.
The Cold War had more physically terrifying consequences on the people of East Germany than being forced to learn and love communism. Not wanting to take any chances of people inciting dissent, many East Germans were thrown into prison with little idea why they had been arrested. The Hoheneck Castle, which was known around the world for its Gothic and Renaissance architecture, was converted to house women. In eloquent yet terrifying prose, Willner paints the picture: “There, skin to skin, in total darkness, with no room to sit, they were made to stand in knee-deep freezing water for days on end in dank, poorly ventilated chambers until they simply passed out” (72). The inhumanity of what happened at Hoheneck Castle, although known to historians, is often missing from more traditional narratives. Since Forty Autumns was written in such an accessible way, more people today will understand the realities of life behind the Iron Curtain.
Willner’s book could be used in the classroom in a variety of ways. The most obvious, though, would be to use the story of her family to both introduce and to potentially teach the entirety of the Cold War. This would be particularly doable since Willner interjected the major events of the Cold War throughout the many pages of Forty Autumns. On the family level, for example, East German authorities harassed Opa at the same time the Warsaw Pact was being formed and dissent was being silenced. Forty Autumns definitely brings to life the impact of many Cold War developments on both individuals and Germany as a whole.
While not all of Millner’s family lived to see Germany reunified in 1990, all the individuals discussed helped make true a few of President Ronald Reagan’s words: “What is right will always triumph” (324). Although much of Forty Autumns detailed the horrors of life under communism in East Germany, it ended on a positive note, with Willner’s extended family reuniting in a united Germany in 2013. Anyone interested in learning more about the Cold War or about one family’s brave attempt at enduring the unthinkable should give Forty Autumns a read. Beyond that, in a more contemporary moment where construction of a wall is regularly discussed as a way to make life better for so many, the history within Forty Autumns should be seen as a foreboding tale.
Trevor Shields – Minooka High School.
[IF]O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) | Marcello Musto
Karl Marx seguramente figura entre os autores mais debatidos e analisados nos últimos cem anos. A vasta bibliografia que toma o pensamento de Marx por objeto poderia sugerir que falta pouco a ser dito de forma original. No entanto, a produção intelectual em torno de Marx parece escapar a este itinerário lógico e surge como uma fonte inesgotável de reflexões que, de diferentes maneiras, segue instigando e propiciando um renovado debate. É esta capacidade de constante atualização que alimenta as diversas tradições no âmbito das culturas marxistas e, mesmo, o renovado (e variado) interesse do pensamento crítico de forma geral.
Se é inegável, por um lado, que a vida e obra de Marx jamais deixaram de ser objeto de pesquisa ao redor do mundo, por outro, no período aberto após o fim da União Soviética e o ocaso do chamado “socialismo real”, o legado do pensador alemão parecia encontrar-se numa encruzilhada fatal. A crise econômica de 2008 mudou sensivelmente este cenário, renovando o interesse em Marx e o afirmando como um dos autores mais debatidos no século XXI. Não apenas suas análises e elaborações teóricas ganharam um novo impulso junto ao grande público, mas também sua trajetória de vida desperta curiosidade, como atesta o sucesso do filme O jovem Karl Marx, dirigido por Raoul Peck e lançado em 2017. Neste contexto, o livro O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883), escrito por Marcello Musto e publicado em 2018 pela editora Boitempo, surge como uma importante contribuição na busca por preencher lacunas e por aprimorar a nossa compreensão do legado de Marx. Leia Mais
Come si diventa nazisti. Storia di una piccola città – ALLEN (CN)
ALLEN, Williams S. Come si diventa nazisti. Storia di una piccola città. Torino: Einaudi, 2005. (Ristampa a cura di L. Gallino). Resenha de: ORI, Giada. Clio’92, 7 ago. 2019.
ll titolo del libro di Allen di primo acchito ci comunica gli elementi caratterizzanti del libro:
- salta subito all’occhio che Allen vuole spiegarci il processo attraverso il quale i tedeschi di una piccola città diventarono seguaci del nazismo;
- il periodo storico è ben delineato, si tratta del breve sessennio dal 1930 al 1935;
- il territorio di cui parla il libro è molto delimitato, si tratta infatti di una piccola città da lui chiamata Thalburg (in realtà Nordheim nell’Hannover)
Allen tenta col suo libro di metterci in condizione di capire come sia stato possibile che un partito quasi inesistente, in poco tempo sia divenuto il primo e successivamente l’unico di tutto il territorio. Prende in considerazione una piccola città come studio di caso per rendere più comprensibile il mutamento avvenuto in quegli anni in tutta la Germania, dall’arrivo dei nazisti sino alla loro salita al potere.
Il libro di Allen presenta sia una introduzione di Luciano Gallino, sia una prefazione dell’autore. Nella prefazione l’autore ci spiega che ha preso in considerazione una città piccola della Germania per il semplice motivo che mai nessuno si era occupato di una situazione locale per parlare del nazismo, precisando che le città piccole hanno come caratteristica la scarsa riservatezza e molti pettegolezzi.
Afferma che la città di Thalburg aveva una buona dose di documenti da poter consultare e ci mette a parte che molti cittadini si lasciarono intervistare con la promessa dell’anonimato anche della città stessa (ecco spiegato, quindi, il motivo del perché la città di Thalburg è inesistente sulle cartine).
Dunque, una molteplicità di fonti — tra cui quelle di memoria — è messa a frutto dallo storico statunitense.
L’introduzione invece ci riassume in poche pagine il ruolo della NSDAP (Partito Nazionalsocialista dei Lavoratori Tedeschi) e dell’SPD (Partito Socialisti di Germania) nella città di Thalburg: di come NSDAP si sia fatto strada tra i cittadini privando l’SPD di moltissimi voti lavorando sulla preoccupazione che i cittadini avevano del comunismo, di come il partito nazista abbia manifestato contro il trattato di Versailles colpendo nel vivo i cittadini che non si erano ancora ripresi da quella umiliazione, come l’SPD non abbia fatto nulla per cercare di fermare l’avanzata del partito hitleriano nella città.
L’autore, a questo proposito, alla fine del libro, analizza i vari dati raccolti nelle sue ricerche organizzandoli in tabelle statistiche e in grafici, rendendo possibile, attraverso la loro lettura, la comprensione immediata delle situazioni e dei processi, anche senza aver prima letto l’intero libro.
Grafici e tabelle esplicano perfettamente i dati riguardanti la disoccupazione, le elezioni e le frequenze delle riunioni dei vari partiti a Thalburg negli anni che il libro prende in considerazione.
Allen non propone una periodizzazione ragionata dei sei anni analizzati. Ma all’interno del suo libro, la si può trovare schematizzata nell’indice. Dapprima suddivide i sei anni da lui presi in considerazione in due parti: dal gennaio 1930 al gennaio 1933, poi dal gennaio 1933 a quello del 1935. All’interno delle due parti i capitoli creano un’ulteriore periodizzazione suddivisa in stagioni.
Allen articola il libro in due parti: la morte della democrazia, dal gennaio 1930 al gennaio 1933, e introduzione alla dittatura, dal gennaio 1933 al gennaio 1935.
La prima parte inizia col darci alcune informazioni sulla città: dov’era collocata, più o meno, sulla cartina, com’era “fisicamente”, quali erano le sue condizioni durante la depressione, quale il grado di disoccupazione, quali i lavori svolti dagli abitanti, quale il ruolo delle industrie. Il terzo capitolo “entrano i nazisti”, ci spiega come nel giro di pochissimi mesi, il partito NSDAP sia riuscito a diffondersi nella città in cui il partito SPD era già ben attecchito.
Da questo terzo capitolo, sino al nono, Allen ci mostra come lentamente il partito di Hitler si sia impadronito della città, sfruttando la disoccupazione dilagante, manifestando contro il trattato di Versailles, utilizzando i giornali per la loro propaganda, e facendo presente come l’SPD, iniziò a perdere voti, smettendo di lottare contro un partito antisemita, violento e rivoluzionario.
La seconda parte del libro inizia con le ultime elezioni in Germania nel 1933, anno in cui Hitler divenne cancelliere e l’NSDAP iniziò a lavorare per istaurare una dittatura.
La città da quel momento fu totalmente soggiogata al partito, con ormai pochissime persone, totalmente emarginate, che militavano ancora per l’SPD.
Il capitolo “il regime del terrore” è incentrato sul tentativo dei nazisti di evitare qualsiasi minima reazione da parte di coloro che non erano militanti di Hitler, facendo boicottare i loro negozi, proibendo le armi al privato, mettendo fuori legge il partito socialista e sciogliendo i sindacati. In questo capitolo si inizia a parlare del campo di concentramento di Dachau, in cui venivano mandati gli avversari politici, e di cui gli abitanti di Thalburg erano a conoscenza. Le accuse per cui si poteva venire arrestati erano assai labili, ma come veniva scritto anche sui giornali, quando i nazisti mettevano gli occhi su qualcuno, in un modo o in un altro, lo prendevano.
Lentamente la società di Thalburg, fino a quel momento ben organizzata, iniziò a disgregarsi. I circoli cittadini iniziarono ad essere controllati dai nazisti che non lasciarono più nulla di intentato per evitare che ideologie diverse dalle loro attecchissero all’interno della città.
Nel quindicesimo capitolo “gli aspetti positivi” Allen, per darci una visione complessiva del periodo, ci mostra l’altra faccia della medaglia, ovvero la positività del nazismo nella città. I nazisti, infatti, trovarono la soluzione alle difficoltà economiche che imperversavano a causa della depressione. I soldi nelle casse della città, e anche quelli stanziati da Hitler, permisero di far diminuire la disoccupazione già dal luglio 1933. Nel 1935 tutti i segni della depressione erano scomparsi.
Il capitolo “disgregazione della società”, tratta in primis della questione ebraica.
Allen ci spiega che a Thalburg gli ebrei erano una minoranza e che da una generazione all’altra il numero cresceva minimamente. Essi erano ben integrati nella società: difatti, gli ebrei non abitavano in un quartiere ebraico, svolgevano piccole attività commerciali e non risentivano molto dell’antisemitismo ereditato dal medioevo, poiché era poco sviluppato nella città.
Ma con la salita al potere dei nazisti la situazione cambiò: le quasi inesistenti frasi antisemite comparse nei discorsi precedenti al 1933 divennero realtà il 29 marzo di quell’anno. L’antisemitismo dei nazisti si manifestò non solo nei discorsi, ma anche con i fatti: nell’aprile di quell’anno infatti il boicottaggio degli ebrei diede il via al processo che solo dieci anni dopo terminò con le camere a gas. Questo primo attacco diede come risultato il disgregarsi del rapporto con i non ebrei dal punto di vista sociale.
Ma era, come si sa, solo il primo passo verso qualcosa di molto più ampio. Inizialmente si voleva solo evitare che i rapporti umani ostacolassero la dittatura e le idee che erano alla base di essa. Thalburg e gli ebrei non si accorsero in tempo del problema che avrebbe creato l’ideologia antisemita all’interno della città, anzi, gli ebrei li ritenevano, inizialmente, innocui.
Ma il boicottaggio fu una catastrofe per la piccola cittadina: tutti iniziarono a capire che gli ebrei erano dei reietti nel regime nazista, che erano da evitare per salvaguardare la propria incolumità, e lentamente furono messi tutti ai margini. Molti ebrei appartenevano a dei club, soprattutto i più facoltosi, come il banchiere Braun, fiducioso e tutto intenzionato a non andarsene dalla sua città, a nessun prezzo, allontanandosi dai club solo per evitare questioni spiacevoli, ma non perché credeva che quella situazione non sarebbe durata a lungo. Era un uomo fiducioso. Molto meno lo fu Gregor Rosenthal, che all’opposto del suo compaesano, si chiuse in se stesso e ruppe tutti i contatti sociali. Venne allontanato da tutte le congregazioni e il suo modo di fare inquietò così tanto i thalburghesi che crebbe in loro l’idea che fosse poco conveniente farsi vedere anche solo parlare con un ebreo. Non fu sicuramente l’unico con un tale comportamento, anzi, era molto più facile che gli ebrei si comportassero in modo schivo e quasi da invisibili che non da uomini di mondo come il banchiere. Non solo le relazioni sociali degli ebrei si rovinarono in questo periodo: in poco tempo, attraverso il controllo dei club, con la creazione di nuovi, con la fusione o lo scioglimento di altri, a causa delle tensioni e delle paure dovute alla sfiducia che tutti avevano verso il prossimo, sentimento che cresceva giorno dopo giorno, le relazioni divennero minime. Non ci si fidava più nemmeno dei proprio amici intimi, in poco tempo nessuno desiderava più riunirsi per scambiarsi opinioni o semplicemente chiacchierare, tutti temevano di dire qualcosa di sbagliato e di finire nei guai.
È molto interessante il modo con cui Allen costruisce la conoscenza di come ci si trasforma in sostenitori di un partito antidemocratico e razzista.
Egli presenta le situazioni e svolge i processi del loro mutamento perciò nel libro sono alternati blocchi testuali descrittici con quelli narrativi.
I primi due capitoli: l’ambiente e anatomia della città hanno lo scopo di farci conoscere lo stato di cose della cittadina di Thalburg nel 1930. In essi troviamo la descrizione fisica della città, del territorio regionale, della situazione demografica, del clima religioso, delle classi sociali e dei loro club.
Il capitolo sugli ebrei leggiamo prima la descrizione di come essi vivevano prima dell’avvento dei nazisti e negli anni successivi alla loro vittoria elettorale, poi i narrativi ci raccontano i giorni del boicottaggio, come certi facoltosi ebrei reagirono alle leggi antisemite di fronte agli amici e alla società e di come i cittadini si comportarono verso di loro: amichevolmente alcuni, andandoli a cercare nei loro negozi e per la strada proprio per parlarci, i socialisti in testa, oppure approfittandosi di loro, facendo spese folli nei loro negozi senza mai pagare un soldo.
Allen conclude il suo libro facendo una carrellata dei fatti successivi al 1935: di come i nazisti iniziarono a manifestare le loro vere intenzioni sulle questioni religiose, di come già nel 1937 il ritmo dell’espansione economica rallentò, di come nessuno si oppose ai nazisti nel 1938 nella “notte dei cristalli”.
Durante il 1944 i bombardieri americani colpirono in parte la città, ma in tutti i casi i cambiamenti furono rilevanti: molti profughi si trasferirono in quella cittadina per fuggire agli orrori della guerra, la popolazione aumentò esponenzialmente e all’arrivo degli alleati si sottomisero senza combattere. Nel 1950 la popolazione dell’inizio degli anni trenta era raddoppiata.
[IF]O Velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) | Marcello Musto
Nas últimas décadas, sobretudo após o desmembramento da URSS, muitos críticos do marxismo alçaram sucesso editorial. Não foram poucos os que, assim como Francis Fukuyama, declararam “o fim da História”. O que se seguiu foi uma recusa às abordagens e aos conceitos que adotavam uma interpretação a partir das estruturas socioeconômicas e da categoria de “classe”, para uma divisão das pautas sociais e temas que movimentos políticos, mais individualizados e fragmentados, apropriaram-se a partir de uma perspectiva liberal. Nessa conjuntura, certos clichês acadêmicos foram repetidos à exaustão, a ponto de perder sua base crítica. Reducionismos recorrentes acerca do marxismo defendiam que essa corrente de pensamento seria economicista, determinista, eurocêntrica e teleológica.
Novas pesquisas e trabalhos de divulgação buscam contribuir para o campo teórico do marxismo, que sempre se mostrou muito rico em argumentos socioeconômicos e em percepções histórico-conjunturais. É nesse sentido que o trabalho O Velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883), publicado no Brasil pela editora Boitempo, em 2018, do sociólogo e filósofo italiano Marcello Musto, é essencial para fortalecer os campos de pesquisa das humanidades, sobretudo a pesquisa histórica, com o propósito de superar os limites impostos pelos chavões já mencionados. Leia Mais
Sindrome 1933 – GINZBERG (BC)
GINZBERG, Siegmund. Sindrome 1933. Milano: Feltrinelli, 2019. 192p. Resenha de: PILOSU, Mario. Il Bollettino di Clio, n.11/12, p.197-200, giu./nov., 2019.
Siegmund Ginzberg è nato a Istanbul nel 1948. La famiglia è giunta a Milano negli anni Cinquanta e i nonni furono sudditi dell’impero ottomano. Dopo gli studi in filosofia ha intrapreso l’attività giornalistica ed è stato una delle storiche firme dell’Unità, quotidiano per cui ha lavorato a lungo come inviato in Europa, Stati Uniti, Cina, India, Giappone, Corea del Nord e del Sud. Ha più volte girato il mondo portando con sé, nel corso degli innumerevoli traslochi, una biblioteca più adatta alla stanzialità che all’erranza.
Inizia come una cronaca giornalistica della giornata convulsa del 30 gennaio 1933, giorno in cui il capo del NSDAP giurò come cancelliere nelle mani del Presidente della repubblica Paul von Hindenburg, che lo aveva sconfitto al 2° turno nelle elezioni presidenziali del 10 aprile 1932. Da qui inizia il racconto dei 12 mesi successivi, a partire dalle reazioni, a posteriori assolutamente inappropriate, delle opposizioni, degli intellettuali e delle altre nazioni europee, racconto in cui via via si ripercorre, con un continuo ricorso a fonti e documenti, il percorso della giovane democrazia tedesca dopo il Trattato di Versailles.
Ma già nel secondo capitolo l’autore si ferma e offre ai lettori un breve testo in cui utilizzando categorie storiche, giustifica la ragione per cui ha scritto questo libro, proprio mentre si accingeva a scrivere un libro sulla Cina, come ha affermato in occasione della presentazione del volume al Palazzo Ducale di Genova il 18 settembre 2019. Alla base della decisione c’è la sensazione di déjà vu, che l’autore afferma non essere il solo a provare da qualche tempo di fronte alle notizie, ascoltando i discorsi sull’autobus, facendo zapping nei talk-show. Ma se la storia non si ripete mai allo stesso modo, e se non è vera la famosa frase attribuita a Karl Marx «La storia si ripete sempre due volte: la prima volta come tragedia, la seconda come farsa», perché occuparsi di come, 80 anni fa, la Germania precipitò quasi senza accorgersene, ma per molti con entusiasmo, nel Terzo Reich? Una delle ragioni, afferma Ginzberg, è l’ignoranza diffusa su questo periodo della storia. In particolare, fa l’esempio delle risposte date nel corso del programma a quiz L’Eredità [dicembre 2013] sull’anno di nomina di Adolf Hitler a cancelliere del Reich. Solamente la quarta concorrente dice «1933», perché è rimasta una sola scelta, ed è impossibile sbagliare; risposte date da giovani, sicuramente almeno diplomati, se non con una laurea universitaria, che sicuramente hanno affrontato la prova di Storia all’Esame di stato, almeno al colloquio orale.
Analizzando quell’anno, e il prima e il dopo, l’autore afferma di essersi imbattuto in indizi, rassomiglianze, analogie insospettate; l’uso del termine di origine medica sindrome è giustificato proprio dal suo significato letterale di sintomi e segnali concausa di una malattia. Molti di questi sintomi e segnali, afferma Ginzberg, hanno somiglianze con quelli di oggigiorno. Interessante è il ruolo che Ginzberg assegna all’analogia: l’uso dell’analogia non come strumento di polemica e propaganda ma di comprensione; ovviamente le analogie sono per definizione imperfette e ‘superficiali’, ma la mente umana funziona per analogie, che ne fanno uno strumento di comprensione e distinzione, per non ‘fare di ogni erba un fascio’. Ginzberg afferma esplicitamente di aver fatto una scelta ‘faziosa’: fra fatti e argomenti privilegia quel che può richiamare alla mente del lettore vicende, cronache e polemiche della nostra attualità (p.24); è preoccupato da una sorta di coazione a ripetere involontaria, e dal riaffacciarsi di dinamiche e meccanismi che hanno portato al disastro la Germania di Weimar. «[…] temo il presente che imita il passato inconsapevolmente, senza volerlo, magari senza neanche accorgersene».
A differenza di altre crisi, questa sembra di più una catastrofe: tutto cambia in soli 30 giorni: Hitler cancelliere; il mese successivo elezioni politiche e poi (per il partito comunista KPD anche prima) eliminazione delle opposizioni con una raffica di decreti. Uno dei primi decreti riguarda la chiusura delle porte agli immigrati, in gran parte quegli Ost-Juden, gli ebrei orientali, che sono descritti, come ci dice Ginzberg, in maniera molto efficace nel saggio Ebrei erranti, (1927), di Joseph Roth. Fuggivano «guerre e povertà», e spesso consideravano la Germania soltanto come «stazione di transito» verso l’America o la Francia, ma ovviamente, essendo senza documenti (spesso già nel loro paese di origine), hanno la necessità assoluta di procurarseli, anche attraverso mezzi illegali. Da qui, anche prima del 1933, il sillogismo: «L’ebreo è uno straniero, è un immigrato. I migranti sono delinquenti. Quindi gli ebrei, tutti gli ebrei, sono criminali. Questo è il sillogismo che avrebbe portato allo sterminio» (p.38). Qui l’analogia scelta da Ginzberg è assolutamente evidente «Nella versione attuale basta sostituire ad “ebrei” l’espressione “migranti clandestini”, o anche solo “migranti”, per antonomasia indesiderati». E il ‘Decreto immigrazione’ è soltanto il primo degli atti che avranno lo scopo di sbarazzarsi di tutti gli ebrei, anche di quelli che avevano la cittadinanza (oltre l’80% degli ebrei residenti). Quindi chiusura delle porte. Poi l’inizio della repressione contro i comunisti, all’interno di un ‘decreto sicurezza’ che porterà all’allestimento dei primi campi di concentramento affidati alle SS; riservati prima ai comunisti e poi ai criminali, gli immigrati clandestini, poi in un crescendo, agli omosessuali, zingari, rom, sinti. Come scrive Ginzberg, «il catalogo degli indesiderabili è rimasto più o meno lo stesso» (p.43); qui si potrebbe vedere forse un riferimento alla poesia Poi vennero… del pastore Niemöller, talvolta erroneamente attribuita a Bertolt Brecht.
L’intero quinto capitolo è dedicato alle elezioni: «negli otto mesi precedenti la ‘presa del potere’, i tedeschi avevano votato 2 volte per la presidenza della Repubblica, 3 volte per il Reichstag (2 volte nel 1932, a distanza di 4 mesi), più varie elezioni locali. […] le libere elezioni sono il sale della democrazia. Ma troppe elezioni non le fanno per niente bene. Anzi, rischiano di ucciderla». Nella repubblica di Weimar degli anni ’30 votare e rivotare è un sintomo dell’incapacità di risolvere la crisi, perché nessun partito o nessuna possibile coalizione aveva la maggioranza. Dal 1928 al marzo 1933 si ebbero 5 elezioni politiche, in media 1 ogni anno. In questo periodo i voti per il NSDAP salirono da 800.000 a 17,3 milioni, di fronte a un incremento di votanti da 30,4 a 39 milioni. Il NSDAP cattura a poco a poco il voto degli astenuti, di quelli che erano disgustati dalla politica. Si calcola che circa la metà dei 16,5 milioni di voti che il partito guadagnò in quei 5 anni siano di “elettori nuovi”, cioè di giovani che non avevano mai votato o elettori che si erano astenuti nelle elezioni precedenti. Il caso della repubblica di Weimar, dice Ginzberg, è un esempio di come si può giungere alla catastrofe non per una disaffezione al voto, ma al contrario a causa di un più ampio coinvolgimento dell’elettorato. Una Repubblica che si era dovuta difendere, al suo nascere, da violenza rivoluzionaria e controrivoluzionaria, dai putsch (come quello di Monaco), dal timore di un intervento militare, fu invece distrutta da una serie di elezioni a suffragio universale, con una crescente partecipazione degli elettori.
Per analizzare le ragioni del crescente successo elettorale di Hitler, Ginzberg utilizza varie fonti, sia contemporanee (Gramsci), sia analisi successive dei movimenti dell’elettorato. Interessanti la tabella (molto simile a quelle che compaiono su Internet o in TV poco dopo la chiusura dei seggi), che sintetizza i cambiamenti (anche d’umore) del corpo elettorale tedesco dal 1919 al 1933, accompagnata da quella del susseguirsi delle coalizioni fino al 1932. L’autore fa notare, peraltro, che anche dopo le elezioni del 1932, la coalizione su cui poggiava il governo Hitler (nazisti e nazionalisti) non superava il 41,5% dei voti; molti degli oppositori erano convinti che la coalizione non sarebbe durata, come era accaduto in altre occasioni pochi anni prima. Ma non tenevano conto né della capacità di iniziativa politica dei nazisti (i decreti approvati pochi giorni dopo la nascita del governo), né del fatto che c’era un’ampia fascia di popolazione che non vedeva l’ora di trovare uno sbocco politico alle sue aspirazioni.
E’ proprio da qui che si sviluppa la seconda parte del libro, da questa sottovalutazione della situazione, evidenziata da una serie di riferimenti ad articoli di giornale, dichiarazioni di politici e intellettuali, anche ebrei, che non credono possibile l’avvento di un vero e proprio regime, che metta in atto quello che ha promesso durante la campagna elettorale. D’altro canto è molto interessante la parte del quinto capitolo dedicata all’elettorato di Hitler (Chi votava per Hitler?). L’autore cita il romanzo di Hans Fallada E adesso pover’uomo? (1932) in cui i dubbi su cosa votare (spurgati nell’edizione della Medusa del 1933, insieme a varie altre pagine osé, ma presenti nella traduzione italiana del 2009) da parte dei due protagonisti portano a presumere che ambedue abbiano poi votato per i nazisti. Vari studi hanno cercato di spiegare questa crescita esponenziale dei voti per i nazisti; e ultimamente sembra prevalere l’ipotesi che l’elettorato abbia seguito soprattutto i propri interessi economici; ma difficilmente i grandi spostamenti elettorali hanno una sola causa, dice Ginzberg. Qui c’è di nuovo un’analogia con l’attualità: propone un episodio vissuto in treno nel 1976, l’anno della maggiore avanzata elettorale del PCI. Nello scompartimento tutti dichiarano che avrebbero votato per il PCI, ma ognuno per una ragione diversa, talvolta diametralmente opposta; conclude amaramente che se sui treni non fossimo tutti perennemente attaccati allo smartphone capiremmo sicuramente molto di più sui flussi elettorali.
Un capitolo che mi è sembrato molto interessante, anche dal punto di vista della didattica, è quello sul linguaggio. Ginzberg utilizza a piene mani il libro del filologo ebreo Viktor Klemperer LTI (Lingua Tertii Imperii – la Giuntina, 1999), che attraverso l’analisi delle novità linguistiche del Terzo Reich cerca di capire cosa e come è successo. Dal linguaggio si passa all’uso dei mezzi di comunicazione (giornali, radio e poi cinema), che nell’arco di pochi mesi sono oggetto di una vera e propria appropriazione da parte di nazisti. Il ruolo di questi mezzi di comunicazione è importantissimo, sia per le grandi tirature dei giornali già prima dell’avvento di Hitler, sia per la capillare presenza di stretti rapporti tra lettori (e ascoltatori) e giornalisti. Le lettere dei lettori vengono pubblicate, ovviamente quando servono a denunciare le malefatte di un commerciante ebreo o di un impiegato ‘infedele’, e le lamentale degli ascoltatori sugli stessi temi riportate quasi in diretta. Questo argomento ci avvicina a un capitolo-chiave che permette di spiegare il crescente consenso di cui godrà il regime fino ai primi mesi del 1945; Ginzberg titola il nono capitolo Come fu comprato il popolo; e il secondo paragrafo, sempre usando il sistema dell’analogia, Il reddito di cittadinanza. Il riferimento in questo caso è al libro di Götz Aly Lo stato sociale di Hitler (Einaudi, 2007), una miniera di informazioni su come in pratica fu finanziato l’ottenimento e il mantenimento del consenso, anche attraverso una politica assistenziale, attuata con una vera e propria spoliazione, anche fiscale, della comunità ebraica e poi, in guerra, con un saccheggio vero e proprio di tutta l’Europa sottomessa.
Innumerevoli sono gli spunti che il testo, peraltro breve e scritto con un piglio ‘anglosassone’ e ironico (soprattutto nelle analogie ‘suggerite’ ma mai pienamente esplicitate), offre alle attività didattiche con gli studenti. Permette un efficace smontaggio di una serie di stereotipi del passato vicino e anche del presente, attraverso riferimenti e collegamenti che utilizzano sia fonti contemporanee (Gramsci, Klemperer, Fallada, Brecht ecc.), sia studi recenti che forniscono le basi del ragionamento e soprattutto del tentativo, a mio parere riuscito, di spiegazione e di attualizzazione della Sindrome 1933.
Il testo è seguito da un’efficace bibliografia tematica che si rifà, ma non completamente, alla divisione in capitoli e offre esempi sia di romanzi (oltre a quello di Fallada, anche le distopie Il complotto contro l’America di Philip Roth e Qui non è possibile di Sinclair Lewis) sia di fonti documentarie, sia di testi di saggistica.
Mario Pisolu
[IF]Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo | Anita Leocadia Prestes
Publicado em abril de 2017, quando completam 75 anos da morte de Olga Benário, o livro Olga Benário Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo não é o primeiro trabalho em que a historiadora Anita Leocadia Prestes se dedica ao reconhecimento da história de luta que é herdeira, possuindo sólida bibliografia publicada sobre o trabalho e a vida política de Luiz Carlos Prestes, com quem dividiu por décadas, para além dos laços de sangue, a trajetória de luta pela causa comunista.
Nesse novo trabalho a autora se dedica à história de sua mãe, Olga Benário, militante comunista assassinada pelo governo nazista, após sofrer anos de prisão e trabalho forçado em campos de concentração. Anita Prestes nos apresenta a história de luta e resistência da jovem Olga, acessível por meio da documentação organizada em oito dossiês da Gestapo, que somam cerca de duas mil páginas sobre a prisioneira Olga Benario (Processo Benario). O dossiê em questão abarca o período de cerca de seis anos em que Olga esteve sob custódia da Polícia Secreta Alemã. A obra de Anita Prestes é resultado da pesquisa a essa documentação, digitalizada e disponibilizada para consulta pública desde 2015 por meio do Projeto Russo-Alemão para digitalização de documentos alemães nos arquivos da Federação Russa. Leia Mais
High Hitler: como o uso de drogas pelo Führer e pelos nazistas ditou o ritmo do Terceiro Reich | Norman Ohler
O livro High Hitler: como o uso de drogas pelo Führer e pelos nazistas ditou o ritmo do Terceiro Reich foi lançado em 2015, pelo romancista, roteirista e jornalista alemão Norman Ohler, e tornou-se imediatamente um bestseller na Alemanha, EUA e Grã-Bretanha, sendo traduzido até o momento para mais de 25 países. Essa é a primeira obra não ficcional do autor, que assume no prólogo que não pretende conceber um ensaio historiográfico, mas sim “uma perspectiva inconvencional e distorcida” ( Ohler, 2017 , p.13).
Embora Ohler tenha se valido de fontes documentais inéditas e valiosas, ao não adotar um procedimento teórico-metodológico mínimo, acaba por fazer afirmativas sem respaldo empírico. A polêmica obra descreve em tons fortes e com linguagem jornalística a necessidade crescente da utilização de estimulantes sintéticos pela sociedade alemã em geral e pela cúpula do Terceiro Reich em particular no período de 1933 a 1945. Além disso, o autor apresenta um amplo panorama no qual aborda historiograficamente a grande importância do segmento industrial químico-farmacêutico alemão na síntese de anfetaminas e “narcóticos que marcaram os acontecimentos no Estado nazista e nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial” ( Ohler, 2017 , p.12). Leia Mais
La guerre de ecrivains (1940-1953) – SAPIRO (RBHE)
SAPIRO, G. La guerre de ecrivains (1940-1953). Paris: Fayard, 1999. Resenha de: CAMPOS, N. de. La guerre des écrivains. Revista Brasileira de História da Educação, 19, 2019.
Esse livro, escrito pela socióloga francesa Gisèle Sapiro, foi publicado em 1999. Ele é decorrente de sua tese de doutorado, defendida em 1994, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris), sob a orientação de Pierre Bourdieu. Essa obra tem 807 páginas, contando introdução, nove capítulos, conclusão, anexos, agradecimentos, bibliografia, índice de nomes e sumário. Ela se organiza em três partes: lógicas literárias do engajamento (primeira parte), constituída com três capítulos; instituições literárias e crise nacional (segunda parte), formada por quatro capítulos; a justiça literária (terceira parte), contendo dois capítulos. A delimitação temporal inicial tem relação com a Ocupação da França pela Alemanha e a assinatura do armistício; já o período final está associado à segunda Lei de Anistia, “[…] após o que, sem desaparecer, as questões literárias, nascidas na crise, cessam de dominar a vida literária” (Sapiro, 1999, p. 17).
A investigação dessa socióloga tem como principal preocupação “[…] por em evidência a especificidade da conduta dos escritores no contexto da Ocupação, à luz das representações e das práticas próprias dos meios literários” (Sapiro, 1999, p. 9). De acordo com ela (1999, p. 9), “[…] a questão importante é por que e como os escritores respondem a essa demanda?” Assim, sua abordagem é diferente de outros estudos que explicam o engajamento dos escritores a partir de uma perspectiva centrada na política. Nas palavras da autora (1999, p. 10), “[…] contra a tendência a dissociar essas duas dimensões, este livro entende que se esclarece uma pela outra, ao inscrevê-las em uma abordagem mais global dos ambientes literários e de seus modos de funcionamento naquela época”. Conforme Gisèle Sapiro (1999, p. 12), “[…] durante a Ocupação, o campo literário viu serem abolidas as condições que lhe asseguravam uma relativa independência, em particular a liberdade de expressão”. Os escritores, na avaliação de Sapiro (1999, p. 11), “[…] não escapam à lógica das lutas. Mas a guerra dos escritores não é o puro reflexo da guerra civil. Como todo universo profissional, o mundo literário tem seus códigos, suas preferências, suas regras do jogo e seus princípios de divisão próprios”. Diante disso, indaga essa pesquisadora (1999, p. 12): “[…] que ocorre com a autonomia literária em período de crise? Sob que forma sobrevive e que resistência se opõe às pressões externas?”.
A partir de muitos textos publicados nos jornais da França, de correspondências e entrevistas, assim como em interlocução com extensa literatura das ciências humanas, em particular da sociologia dos intelectuais e da história intelectual, a autora mostra como os escritores engajaram-se e tomaram posições políticas. Ela descreve que havia quatro tipos de lógicas sociais que coexistiam no campo literário e que induziam relações diferentes entre literatura e política. A primeira é denominada de lógica estatal, em que estavam as frações detentoras do poder econômico e do poder político. A segunda lógica coincide com o polo de grande produção, próxima do jornalismo, lugar da lógica mediática. Em seguida, aparece a lógica estética, em que estariam os escritores com forte poder simbólico. Esse grupo tende “[…] a se distanciar da política e da moral” (Sapiro, 1999, p. 13). Por fim, existiria o polo dos escritores de vanguarda, grupo formado a partir do interesse em produzir uma literatura subversiva, engajada. Essas quatro lógicas são tipos ideais. Logo, como bem destaca a socióloga (1999, p. 13), “[…] essas diferenças lógicas, inexistentes em estado puro, encarnam-se mais ou menos nas práticas e nas instituições”. Essas lógicas são associadas às quatro instituições analisadas nesse livro: Academia Francesa (lógica estatal); Academia Goncourt (lógica mediática); Nova Revista Francesa – NRF (lógica estética); Comitê Nacional dos Escritores (lógica subversiva/política).
A primeira parte tem como preocupação explicar as lógicas literárias eos engajamentos dos escritores. A parte seguinte mostra como as quatro lógicas encarnam-se nas quatro instituições estudadas (Academia Francesa, Academia Goncourt, NRF e Comitê Nacional dos Escritores). De acordo com Sapiro (1999, p. 16), “[…] dotadas de uma razão social e de uma identidade, essas quatro instâncias ilustram as lógicas estatal, mediática, estética e política”. Por fim, na terceira parte, o livro discorre sobre os efeitos da crise após o período de Ocupação, pois “[…] eles determinam largamente os modos de reestruturação do campo literário” (Sapiro, 1999, p. 17). Essa descrição é estrutural, como bem reconhece essa socióloga. Porém, essas tendências podem ser observadas nas especificidades dos diversos níveis e na encarnação das lutas onde se confrontam as diferentes concepções de literatura e as diversas compreensões do papel social do escritor.
Em termos mais precisos, a primeira parte trata do debate entre os escritores a respeito do papel social do intelectual. A partir da discussão em torno do ‘gênio francês’ e dos ‘maus mestres’, a autora reconstitui um profundo e complexo debate entre os escritores para defender diferentes posições do intelectual. Conforme assinala Sapiro (1999, p. 106, grifo do autor), “[…] é em nome do ‘gênio francês’ que são conduzidas as lutas que estruturam o campo literário na primeira metade do século XX”. Cada um desses elementos serve de pano de fundo para a socióloga mapear as posições dos mais diferentes escritores, em específico, o confronto entre a politização do campo cultural e a luta pela sua autonomia frente aos interesses da política e da moral. Ao final dessa parte, ela destaca duas trajetórias exemplares (François Mauriac e Henry Bordeaux) que “[…] ilustram a articulação entre a clivagem geracional, a oposição entre autonomia/heteronomia e as divergências ideológicas” (Sapiro, 1999, p. 207). Essas individualidades, pertencentes à Academia Francesa e com origens sociais e religiosas semelhantes, tomaram posições distintas. Mauriac tornou-se um defensor dos escritores denominados de ‘maus mestres’, situação considerada atípica ou improvável por Sapiro. De outra parte, Bordeaux promovia a campanha contra os escritores classificados de ‘maus mestres’.
A segunda parte do livro indica como esse debate inscreveu-se em cada uma das quatro instituições francesas. Ela elege um capítulo para cada instituição, trazendo riqueza de detalhes. Embora as análises estejam divididas em partes, não há abordagens isoladas de cada uma das instituições. A autora sintetiza uma tendência predominante em cada espaço, a saber, o senso do dever (Academia Francesa); o senso do escândalo (Academia Goncourt); o senso da distinção (NRF); o senso da subversão (Comitê Nacional dos Escritores). Antes de analisar cada uma dessas instituições, Sapiro sintetiza a ideia dessa parte do livro em duas páginas e meia. Ali, ela anota que busca mostrar como, no seio desses espaços literários, os escritores se confrontavam na luta pela definição da identidade da instituição e do papel que ela deveria exercer no período de crise nacional.
Desse modo, essa parte mostra como esses espaços institucionais definiram as posições individuais. Ao mesmo tempo evidencia as mudanças das instituições, particularmente a movimentação da NRF, fundada em 1909. Posteriormente, essa revista passou a aproximar-se do grupo da literatura engajada, cuja expressão contundente é a trajetória de André Gide. Apesar disso, o livro mostra a permanência da posição da Academia Francesa, muito embora trate do caso atípico de François Mauriac que aderiu à literatura subversiva. Já no início, Sapiro (1999, p. 249) afirma que, “[…] das quatro instituições que nós estudamos, a Academia Francesa é a que participa mais diretamente, por meio de seus membros, da vida política oficial”. Essa instituição, criada em 1635, agrupa as frações dominantes da classe dominante, donde se exerce o controle sobre o campo literário. Assim sendo, as lutas políticas dessa comunidade estavam associadas ao combate aos escritores que se posicionavam no polo altamente politizado, aqueles que pretendiam transformar a literatura em luta política (grupo do Comitê Nacional dos Escritores).
A Academia Goncourt, criada em 1903, expressa o modelo de senso do escândalo, pois, nascida com interesse em salvaguardar certa autonomia do campo literário e contrapondo-se ao modelo mais tradicional de literatura da Academia Francesa, logo se vê no permanente jogo entre as forças dos diferentes campos sociais. As trajetórias de seus integrantes e as premiações concedidas evidenciam forte presença de autores oriundos da imprensa francesa. Ao longo do texto, Sapiro mostra as alterações da própria instituição, especialmente nos momentos mais críticos, como a Ocupação, quando esse espaço do campo literário não deixou de pronunciar-se e tomar posição no campo intelectual. A autora identifica uma tendência dessa instituição, um tipo ideal, sem deixar de historicizar as disputas internas, os posicionamentos conflitantes entre os seus integrantes, assim como o imiscuir-se nas disputas do campo político. Ela procura demonstrar como a ideia de autonomia/heteronomia do campo literário é o mote da discussão na instituição, ganhando ares peculiares no momento crítico da história francesa dos anos de 1940.
Na sequência, Sapiro centra sua análise no movimento da NRF, criada em 1909. Embora, o recorte de sua análise seja o contexto da Ocupação alemã e o período da Liberação, sua escrita retrata a pretensão de André Gide no momento de criação dessa revista, bem como os anos seguintes à Primeira Guerra Mundial. Apesar de o senso de distinção constituir o horizonte de identidade dessa instituição, os casos exemplares de Gide (rumou à resistência literária) e Drieu La Rochelle (aderiu ao grupo colaboracionista) evidenciam como o problema da autonomia/heteronomia conformava as representações e as práticas da instituição e de seus integrantes.
Por fim, a partir da tipologia – senso de subversão -, a autora descreve e explica a ação do Comitê Nacional dos Escritores. Nesse grupo, constituído por integrantes de diversos subgrupos, encontrava-se o principal espaço de resistência literária. A partir de um conjunto de escritos, seus integrantes promoviam intervenções no âmbito da política, destacando-se seus posicionamentos de combate à literatura não engajada que era reivindicada pela Academia Francesa, pela Academia Goncourt e pela NRF. A partir dos anos de 1930, esse comitê tornou-se um espaço de congregação de grupos distintos, como, por exemplo, comunistas, católicos progressistas (François Mauriac, Jacques Maritain), confrontando-se aos valores nacionalistas que já estavam presentes no contexto do caso Dreyfus (final do século XIX), mas que ganharam ares mais dramáticos com a ascensão de Hitler e o avanço das bandeiras defendidas pela extrema-direita. Enfim, ao longo da obra, Sapiro descortina em detalhes como o comitê ofereceu “[…] aos escritores os meios de lutar com suas armas próprias, reativando a dimensão subversiva da literatura e assegurando à Resistência intelectual o seu prestígio” (Sapiro, 1999, p. 467).
Se nas primeiras partes há intensa exposição para explicar os posicionamentos das quatro instituições e mostrar ‘a guerra dos escritores’, a última retrata o período posterior a agosto de 1944, quando Paris foi libertada. A autora identifica que essa condição redundou na recomposição do campo intelectual, sobressaindo-se o problema do papel da literatura e do escritor. É sintomático daquele momento o fato de a revista Tempos Modernos ocupar o lugar da NRF, cujo mote seria a defesa da literatura engajada em oposição à literatura pura. Sapiro mostra que essa disputa inscrevia-se na concorrência entre gerações de escritores, na oposição entre moralistas e defensores da literatura pura e na clivagem ideológica esquerda e direita. Aqui está presente a disputa pelo controle do próprio campo dos escritores. O comitê é oficialmente institucionalizado, incorporando todo capital simbólico do período de Resistência na clandestinidade. Assim, esse espaço procura constituir-se como o lugar autorizado para dizer o que é a literatura e qual deve ser o papel do escritor. E, mais do que isso, dizer que ao escritor está atribuída a missão de reconstrução da própria França.
Depois da derrota da Alemanha, conforme atesta Sapiro (1999, p. 17, grifo do autor),
A noção de ‘responsabilidade do escritor’ está no coração das lutas. Saído da sombra do Comitê Nacional dos Escritores pretendia-se instaurar uma nova deontologia do ofício do escritor. Mas seu poder de excomunhão é rapidamente contestado. Abalados por divisões internas, as instâncias nascidas da Resistência se encontram confrontadas às instâncias tradicionais, entendendo que devem reencontrar seus lugares e tomar parte na reconstrução nacional.
Porém, como bem mostra esse livro, as primeiras fissuras internas desse comitê ocorreram entre comunistas e não comunistas. Além disso, as divisões internas foram demarcadas por outras divergências, como, por exemplo: entre membros oriundos da zona Norte (região ocupada pela Alemanha) e zona Sul (região ‘livre’, governada por Pétain); entre antigos e novos integrantes; a controversa ‘lista negra’ – publicação dos nomes dos escritores apoiadores da Ocupação e do regime Vichy. Ao final dessa parte, a narrativa mostra como as instituições literárias se reconfiguraram no novo momento da França, em particular, no contexto de reconstrução nacional. Ou seja, como se estabeleceram as disputas entre Academia Francesa, Academia Goncourt e Comitê dos Escritores para definir o papel social da literatura e do escritor, sem deixar de indicar as clivagens internas, em específico, do comitê. Embora o recorte final da obra seja 1953, Sapiro não deixa de indicar que os efeitos dos debates da Ocupação e da Liberação ganharam sentidos diferenciados no contexto da Guerra Fria, reinserindo o problema da posição do escritor e das instituições literárias no âmbito das questões políticas, isto é, reapareceria o problema da autonomia/heteronomia do campo cultural.
Por fim, é importante ressaltar que esta síntese apresenta a ideia geral da obra e os elementos centrais de cada parte. Esse livro que se inscreve no âmbito da sociologia dos Intelectuais é fecundo ao campo de pesquisa das ciências humanas. Ademais, merecem destaque as possibilidades de diálogo com áreas mais específicas, particularmente, com a história intelectual. O campo intelectual (sociologia dos Intelectuais) é um dos temas principais de Giséle Sapiro que já tem algumas produções traduzidas e publicadas no Brasil. O problema dos intelectuais ou do campo intelectual é objeto bastante revisitado, nos últimos anos, por diversos pesquisadores brasileiros. Assim, espera-se que esta resenha tenha sintetizado o conjunto das principais ideias dessa obra de fôlego e estimulado o leitor a acessá-la, pois ela poderá ser bastante útil para ampliar os horizontes de pesquisa nas ciências humanas, especificamente, na história intelectual e história dos Intelectuais.
Referências
Sapiro, G. (1999). La guerre des écrivains (1940-1953). Paris, FR: Fayard.
Névio de Campos – Pós-doutorando (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, Paris); Pós-doutor em História (UFPR); Doutor em Educação (UFPR); Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná, Brasil. Pesquisador Produtividade CNPq. E-mail: ndoutorado@yahoo.com.br
Der Diaspora-Komplex. Geschichtsbewusstsein und Identität bei Jugendlichen mit türkeibezogenem Migrationshintergrund der dritten Generation – YLDIRIM (ZG)
Lale Yldirim /
YLDIRIM, Lale. Der Diaspora-Komplex. Geschichtsbewusstsein und Identität bei Jugendlichen mit türkeibezogenem Migrationshintergrund der dritten Generation. Bielefeld : transcript , 2018. Resenha de: DEGNER, Bettina. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p.223-225, 2019.
Holocaust und Vernichtungskrieg. Die Darstellung der deutschen Gesellschaft und Wehrmacht in Geschichtsschulbüchern für die Sekundarstufe I und II – SCHINKEL (ZG)
SCHINKEL, Etienne. Holocaust und Vernichtungskrieg. Die Darstellung der deutschen Gesellschaft und Wehrmacht in Geschichtsschulbüchern für die Sekundarstufe I und II. Göttingen : V&R unipress , 2018. Resenha de: MITTNIK, Philipp. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, v.18, p. 221-222, 2019.
[IF]Deserteur-Denkmäler in der Geschichtskultur der Bundesrepublik Deutschland – DRÄGER (ZG)
DRÄGER, Marco. Deserteur-Denkmäler in der Geschichtskultur der Bundesrepublik Deutschland. Frankfurt am Main: Peter Lang Edition, 2018. Resenha de: LIEBRANDT, Hannes. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 203-204, 2019.
[IF]Holocaust Education 25 Years On. Challenges, Issues, Opportunities – PEARCE; CHAPMAN (ZG)
PEARCE, Andy; CHAPMAN, Arthur (eds.). Holocaust Education 25 Years On. Challenges, Issues, Opportunities. London : Routledge , 2019. Resenha de: SANDKÜHLER, Thomas. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 197-198, 2019.
[IF]1968 an der Universität Opole, der Universität Olomouc und an der Pädagogischen Hochschule Hiedelberg. Ein trinationaler Blick in “provinzieller” Perspektive – DEGNER; ŚWIDER (ZG)
DEGNER, Bettina; ŚWIDER, Małgorzata (eds.). 1968 an der Universität Opole, der Universität Olomouc und an der Pädagogischen Hochschule Hiedelberg. Ein trinationaler Blick in “provinzieller” Perspektive. Heidelberg : Mattes Verlag, 2018. Resenha de: LEINUNG, Silja. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 188-189, 2019.
[IF]Filosofia do cuidado – MORTARI (C)
MORTARI, Luigina. Filosofia do cuidado. Tradução de Dilson Daldoce Junior. São Paulo: Paulus, 2018. Resenha de: PROVINCIATTO, Gabriel Luís. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, p. 196-201, 2019.
Filosofia do cuidado é o segundo título da coleção Mundo da vida, inaugurada com a obra: Edmund Husserl: pensar Deus, crer em Deus (2016), da filósofa italiana Angela Ales Bello. A obra aqui apresentada caracteriza-se, sobretudo, pela abordagem de um tema específico, já exposto no título: o cuidado. Luigina Mortari, na verdade, já dedicou outras obras a essa temática, entre elas: A prática de cuidar (La pratica dell’aver cura) (2006), Cuidar de si mesmo (Aver cura di sé) (2009), Cuidar da vida da mente (Aver cura della vita della mente) (2013) e, mais recentemente, Filosofia do cuidado (Filosofia della cura) (2015). O principal ponto da obra (agora traduzida ao português) é o enfoque ético dado pela autora à dimensão filosófica do cuidado. A dimensão ética, porém, não é colocada de chofre como algo simplesmente dado ou como um pressuposto necessário a um mínimo entendimento da obra. Uma das intenções de Mortari é justificar por que o cuidado tem uma estreita ligação com a ética e, para tanto, propõe-se a construir um caminho ao longo da obra.
A estrutura da obra ajuda a compreender três aspectos cruciais: o ponto de partida teórico, a metodologia utilizada e os resultados alcançados. Há quatro capítulos: “Razões ontológicas do cuidado”, “A essência de um bom cuidado”, “O núcleo ético do cuidado” e “O concretizar-se da essência do cuidado”. O primeiro esclarece o ponto de partida teórico: aí a autora já sinaliza à relação entre ontologia e ética, bem como à importância da abordagem fenomenológica desse tema. Nesse sentido, uma ontologia do cuidado é devidamente justificada a partir de Ser e tempo (1927), de Martin Heidegger (1889-1976), à qual se somam outros dois pensadores fundamentais à continuidade do texto: Edith Stein (1891-1942) e Emmanuel Lévinas (1906-1995). O segundo capítulo, por sua vez, dá conta da questão metodológica, justificando o uso da fenomenologia como guia da pesquisa; novamente a autora se aproxima de Heidegger e traz também algumas contribuições de Husserl. Não se trata, porém, de uma mescla entre concepções distintas do que seja a fenomenologia, mas de mostrar sua relevância como método. A correlação eminente entre os dois primeiros capítulos vem à tona no terceiro: nele, de fato, a autora mostra como se desdobra essa relação entre ontologia e ética, como a fenomenologia está presente na adequada abordagem prática do cuidado e como a dimensão do cuidado é eticamente relevante ao estar em estreita sintonia com o paradigma filosófico da busca ideal do bem e de sua concretização. O quarto capítulo, muito próximo dos resultados apresentados no terceiro, mostra algumas diretrizes fundamentais à realização cotidiana do cuidado, tendo como perspectiva o paradigma ético do bem. Lá ainda são retomadas as perspectivas iniciais às quais se somam as concretizações possíveis de uma ética do cuidado. Leia Mais
Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro – MARX (C)
MARX, Karl. Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2018. Resenha de: RECH, Moisés João; TAUFER, Felipe. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.
Karl Marx, nascido em 5 de maio de 1818, em Trier, província alemã do Reno, estudou Direito na Universidade de Bonn e, em 1841, doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Jena. Sua tese de doutoramento corrobora essa sua afinidade com o estudo filosófico, embora revele um Marx muito diferente do militante comunista. Marx escreve sua tese sob uma Prússia arcaica, com o objetivo de assumir o cargo de professor na Universidade de Berlim, que foi frustrado em razão da situação política prussiana.
Sua tese de doutorado, Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, ganhou sua tradução para o português através da editora Boitempo. Com tradução direta do alemão, o texto conserva a afinidade com o original e proporciona acesso a mais um escrito para os leitores de língua portuguesa daquele que foi um dos principais intelectuais e revolucionários do século XIX.
A tese não é um corpo literário único em razão de ter sido encontrada incompleta, mas, a despeito da incompletude, ela revela um antigo projeto de Marx de resgatar as filosofias epicuristas, estoicas e céticas, de destacá-las como chave para compreender a filosofia grega em geral, haja vista que eram tidas como resquícios pós-aristotélicos “sem importância” para a história da filosofia.
A tese é dividida em duas partes: a primeira, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos gerais”, conta com cinco capítulos. Porém, o Capítulo IV apresenta a exposição de notas dispersas de Marx, e o Capítulo V, que se destinaria à síntese da primeira parte, foi totalmente extraviado. Esse ponto é uma certa interrupção no manuscrito. A segunda parte, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, apresenta cinco capítulos completos. O achado incompleto ainda conta com um apêndice sobre a polêmica entre Plutarco e Epicuro.
No primeiro capítulo da primeira parte, Marx estabelece seu objeto de estudo. “Parece suceder à filosofia grega o que não deve suceder a uma boa tragédia: ter um fim insosso”. (p. 29). Com essas palavras, Marx busca indicar que Aristóteles, para certos intérpretes da história da filosofia, marcou o fim da filosofia grega, assim, “epicuristas, estoicos e céticos são encarados como um suplemento quase inconveniente, totalmente desproporcional a suas formidáveis premissas”. (p. 29). Dessa forma, mediante questionamentos à tradição filosófica e à concepção hegeliana apresentada em sua Introdução à história da filosofia, Marx ressalta a importância desses sistemas filosóficos sob o argumento de que são esses mesmos sistemas “arquétipos do espírito romano, a forma em que a Grécia migrou para Roma”. (p. 30). Em outras palavras, se os sistemas pré-socráticos “são mais significativos e mais interessantes pelo conteúdo” (p.31), os pós-aristotélicos “o são pela forma subjetiva” (p. 31), que consiste no suporte espiritual dos sistemas filosóficos, quase esquecido por suas “determinações metafísicas”. (p. 31).
Trata-se, para Marx, de demonstrar como a diferença entre os sistemas de Demócrito e de Epicuro deve ocupar um lugar maior na discussão metafísica da história da filosofia. Por razões de economia textual, reserva-se para uma análise mais detalhada a exposição total desses dois sistemas e a relação com a filosofia grega em geral. Com efeito, a especificidade da proposta de Marx é somente a relação entre a o núcleo da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, e, por essa razão, o autor denuncia o preconceito arraigado à identificação da física democrítica com a epicurista.
No segundo capítulo da primeira parte, “Pareceres sobre a relação entre a física de Demócrito e a de Epicuro”, Marx cita comentários de Posidônio, Nicolau e Sólon a respeito da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro. Ainda apresenta como Cícero, Plutarco e Leibniz criticam a filosofia epicurista em benefício da democrítica. Assim, finaliza o capítulo mostrando que todos esses estudantes de filosofia de natureza antiga “concordam em que Epicuro tomou sua física emprestada de Demócrito”. (p. 36).
Na sequência, em “Dificuldades quanto à identidade da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro”, encontra-se um esboço de contraste entre as duas filosofias. Trata-se de um capítulo de maior importância dentro da economia discursiva da obra em razão de ser e embasamento para o argumento central de Marx. A primeira divergência salta à vista na questão da “verdade e convicção do saber humano”. (p. 37, grifo no original). Marx contrapõe o ceticismo de Demócrito desenvolvido na concepção de como “se determina a relação entre o átomo e o mundo que se manifesta aos sentidos” (p. 38, grifo no original) ao dogmatismo de Epicuro. Tudo se passa como se Demócrito assumisse que a aparência do mundo sensível é subjetiva, pois os verdadeiros princípios são o átomo, e o vácuo e tudo o mais é opinião. (p. 38). O fato é que a dogmática de Epicuro toma o mundo como manifestação objetiva. Afinal, nada pode contradizer as sensações. (p. 40).
A segunda divergência: “a relação entre a ideia e ser, o relacionamento de ambos”. (p. 46, grifo no original). Para Marx Demócrito entende que a “a necessidade se manifesta na natureza finita como necessidade relativa, como determinismo”. (p. 51, grifo no original). A contraposição, dessa vez, reside no fato de Epicuro afirmar que “acaso é uma realidade que só tem valor de possibilidade”. (p. 52). O acaso, como uma possibilidade abstrata, é o que torna os fenômenos físicos possíveis, e não, necessários. Admitido todo o possível, como possível tem-se que “o acaso do ser apenas é traduzido em acaso do pensar”. (p. 53, grifo no original). Eis outra dificuldade para quem visa a identificar as duas filosofias da natureza. Aqui mora a tal interrupção no manuscrito.
Na segunda parte, “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, Marx diferencia as características do átomo no vácuo em Epicuro e Demócrito. Para o primeiro, há uma tríplice característica: a) queda em linha reta; b) desvio em linha reta; e c) repulsão dos muitos átomos. Para o segundo não há a possibilidade de um “desvio em linha reta”. Essa característica atribuída por Epicuro ao átomo é determinante na diferenciação de sua física em relação à de Demócrito.
A “declinação do átomo” – que Marx designará como a “alma do átomo” – é a particularidade abstrata que possibilita a autonomia do movimento; a possibilidade de liberdade e contingência – ao contrário da necessidade de Demócrito. (p. 78-79). Enquanto Demócrito atribui ao átomo um “princípio espiritual” (p. 78), Epicuro desenvolve a noção de declinação – de desvio em linha reta como possibilidade da contingência e da liberdade na física. “A particularidade abstrata só pode operar seu conceito […] abstraindo da existência com que ela se depara”. (p. 79, grifo do autor).
De fato, o desvio é uma libertação de sua existência relativa da linha reta. Marx destaca que “a contradição entre existência e essência, entre matéria e forma, que reside no conceito de átomo, está posta no próprio átomo individual, quando este é dotado de qualidades […] o átomo é estranhado no seu conceito”. (p. 101). Outra maneira de dizer que a natureza contraditória do conceito de átomo deriva das qualidades – tamanho, forma e peso – adotadas pela posição de Epicuro, em contraposição à Demócrito que ignora tal contradição. Para Epicuro é “por meio das qualidades, [que] o átomo adquire existência que contradiz seu conceito, [e] é posto como existência exteriorizada, diferenciada de sua essência”. (p. 86, grifo do autor). Essa diferenciação faz a contradição no conceito de átomo alcançar “sua mais gritante realização”. (p. 101).
No capítulo sobre o tempo, há uma argumentação a respeito da natureza do tempo. Em Demócrito o tempo é irrelevante para o átomo. Não tem função em seu sistema. Mas, quando a consciência filosófica questiona se a substância (átomos) é temporal invertem-se os termos: o tempo torna-se algo substancial, i.e., suprime seu conceito. (p. 103-104).
Na contramão, para Epicuro o tempo está ausente do mundo da essência, assim “torna-se a forma absoluta da manifestação”. (p. 104, grifo do autor). Marx destaca que o tempo é determinado como accidens do accidens, “é a mudança enquanto mudança refletida em si mesma, variação como variação”. (p. 104). Significa dizer que o tempo não existe em si, mas enquanto uma decorrência (acidente) do movimento e do repouso, ele é a “mutabilidade do mundo sensível agora como mutabilidade, sua variação como variação, essa reflexão da manifestação em si mesma, formada pelo conceito de tempo, tem sua existência isolada na sensualidade consciente” (p. 105), a sensualidade do ser humano é “o tempo encarnado, a reflexão existente do mundo dos sentidos em si mesma”. (p. 105, grifo do autor). Marx deixa claro que para Epicuro o tempo, como accidens do accidens, é determinado pelos acidentes dos corpos percebidos pelos sentidos, em que “a percepção dos sentidos refletida em si é, aqui, portanto, a fonte do tempo e o próprio tempo” (p. 106); pois a reflexão dos acidentes na percepção dos sentidos humanos e sua reflexão em si mesmos são a mesma coisa. (p.107).
Em “Os meteoros”, há uma crítica às concepções astronômicas de Demócrito sobre os corpos celestes, pois “não há como extrair delas alguma coisa filosoficamente interessante”. (p. 111). A teoria dos meteoros de Epicuro demonstra ser mais profícua para debates filosóficos contemporâneos. Em oposição a todo o pensamento filosófico grego – especialmente de Aristóteles –, que estabelecia uma ligação entre os corpos celestes e os deuses e suas qualidades, Epicuro afirma que é uma tolice humana atribuir a Atlas a sustentação do céu, ou seja, é uma tolice humana divinizar os corpos celestes. (p. 115). Além disso, a teoria dos meteoros de Epicuro tem uma forte vinculação ética, o que não é raro para o pensamento grego que estabelecia uma ligação entre cosmo e polis. Assim, Marx afirma que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115).
Para Epicuro a teoria dos meteoros carrega a possibilidade, por outros meios, de fundamentar uma ética. Sendo assim, Marx defende que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115). Dessa forma, salta à vista uma tese de fundo: ao estabelecer as diferenças entre Demócrito e Epicuro, Marx encontra a autoconsciência da filosofia epicurista. (p.
31). Se para Epicuro a contradição entre forma e matéria, entre essência e aparência é constitutiva da possibilidade de declinação do átomo e, por consequência, da liberdade, logo se percebe que, nos corpos celestes, “foram resolvidas todas as antinomias entre forma e matéria, entre conceito e existência, que constituíra o desenvolvimento do átomo” (p. 121); de tal forma que os meteoros “declinam da linha reta, formam um sistema de repulsão e atração”. (p. 122).
Os corpos celestes são os átomos que se tornam reais, uma vez que a particularidade foi interiorizada, e a contradição, cessada. Contudo, no momento da reconciliação entre forma e matéria, a autoconsciência da “forma abstrata” se “proclama como o verdadeiro princípio, hostilizando a natureza que se tornou autônoma”. (p. 123). Os meteoros são a própria universalidade na qual a natureza se torna autônoma. Em contrapartida, sua constituição pela “forma abstrata” origina a particularidade abstrata que é a autoconsciência em sua ataraxia. (p. 124). “A absolutidade e a liberdade da autoconsciência constituem o princípio da filosofia epicurista”. (p. 124).
Ao final da obra, há um apêndice com o título “Crítica à polêmica de Plutarco contra a teologia de Epicuro” do qual restaram apenas fragmentos do texto original. Nesse apêndice, Marx faz remição direta a textos de Kant e Schelling, uma das poucas vezes que cita diretamente textos desses dois filósofos do idealismo alemão, ao tratar sobre a prova ontológica de Deus.
O texto revela um jovem em sua formação intelectual, com preocupações muito distantes das que o tomarão, na maturidade; mas revela igualmente nova dimensão de seu pensamento, que auxilia na reconstituição e reapropriação de seu legado intelectual: um materialismo que se abre à liberdade. A recente publicação em português da tese de doutoramento de Marx vem auxiliar os pesquisadores e estudiosos marxianos, além de contribuir, fundamentalmente, com o aprofundamento de suas ideias e de sua figura no cenário nacional.
Moisés João Rech – Docente do curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. Integrante do Observatório do Direito da mesma instituição. E-mail: mjrech7@gmail.com
Felipe Taufer – Mestre em Filosofia e Bacharel em Administração pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. E-mail: fe.taufer@hotmail.com Orcid ID: http://orcid.org/0000-0002-4137-9999
Um mundo sem judeus: da perseguição ao genocídio, a visão do imaginário nazista | Alon Confino
No presente livro, Alon Confino, professor em Universidades nos Estados Unidos e em Israel, apresenta uma interpretação do nazismo e do genocídio judeu baseada, essencialmente, na perspectiva da história cultural e intelectual. O livro se insere, assim, numa tendência historiográfica que busca dar sentido ao Holocausto a partir de uma visão antropológica, que visa entender os sentimentos, as perspectivas e a imaginação que conduziram à formatação de uma política de Estado genocida.
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Sublimação e unheimliche – PARENTE (Ph)
PARENTE, Alessandra. Sublimação e unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017. Resenha de: SILVEIRA, Léa. A mulher entre o ouro e a carne. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 2, p.-91-104, jul./dez., 2018.
Il crut que dans son corps elle avait um trésor.
La Fontaine
A questão das neuroses condensou-se para Freud, como sabemos, em torno de um problema específico de defesa psíquica que ele, a certa altura, nomeou Verdrängung (recalque) e que cedo o conduziu ao enfrentamento teórico do modo pelo qual tal defesa se relacionava à cultura: suas exigências, suas condições psíquicas, sua existência mesma. Por que motivos, afinal, um indivíduo vem a rejeitar aquilo que ele próprio deseja? Eis algo que Freud, por mais que tivesse se identificado com os valores burgueses da Viena finde-siècle, não tomou por dado. Nem sequer, a meu ver, por um dado de sua época. Pelo contrário, ele perseguiu tal problema a partir dos mais diversos ângulos e fez disso o pensamento de uma vida. É assim que, para mencionar apenas um exemplo, ao relatar o caso Dora, ele expressa seu pasmo muito exatamente diante de um não reconhecimento da sexualidade. E escreve, nesse sentido:
Toda pessoa que, numa ocasião para a excitação sexual, tem sobre-tudo ou exclusivamente sensações desprazerosas, eu não hesitaria em considerar histérica, seja ela capaz de produzir sintomas somáticos ou não. Explicar o mecanismo dessa inversão de afeto é uma das tarefas mais importantes – e, ao mesmo tempo, mais difíceis – da psicologia da neurose (FREUD, 1905[1901]/2016, p.201).
Decerto, com Dora e os “Kas”1 temos também o problema da cegueira (ou surdez) possível do analista, mobilizada já como problema clássico na história das ideias psicanalíticas relacionadas à transferência, uma vez que Freud teria falhado em perceber o endereçamento do desejo de Dora. Lacan (1952[1951]/1998) vê isso em uma peculiaridade do momento em que a moça parece rejeitar o Sr. K. Trata-se do momento em que Dora entende que o Sr. K. não tinha acesso ao gozo da Sra. K., ao gozo do corpo daquela mulher. Lacan explora, com isso, o vislumbre do final do relato do caso, que ocorre a Freud só-depois: quanto mais o tempo passava, mais Freud se convencia de que o erro técnico, a partir do qual Dora rompera bruscamente o tratamento, consistiu em não pontuar o investimento erótico homossexual da moça na Sra. K2. É certamente em função dessa cegueira que Freud atribui a Dora, na interpretação de seus sintomas, “correntes afetivas masculinas” (p. 245). Mas, em qualquer caso, isso não dissipa o fato de que a pergunta de Freud, aquela com a qual ele se espanta, é: não seria de se esperar que uma mulher, ao desejar, assumisse o seu desejo enquanto tal? Se isso não acontece, conclui, é preciso tomar o fato na condição de enigma, pois ele não pede menos do que isso. Se a cultura representa um campo importante no sentido de fornecer motivações para a rejeição do desejo, uma reflexão sobre ela é, então, inescapável para Freud. Tal reflexão terá desdobramentos sem os quais dificilmente poderíamos ter alguma expectativa de fazer uma leitura de nosso próprio tempo. Ela não será, no entanto, de modo algum suficiente para se pensar o que é o recalque. Não é raro vermos o leitor que se restringe a O mal-estar na cultura desencaminhar-se nesse sentido. Mas o que eu gostaria de destacar, tendo em vista meu propósito nessa resenha, é o fato de que essa reflexão – necessária e, para Freud, insuficiente – é marcada, de uma maneira fundante, por uma ambiguidade. Para mim, quando se trata de dizer isso, há uma passagem que se destaca como nenhuma outra. Está em A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno, primeiro texto que Freud dedica diretamente ao problema do antagonismo entre cultura e indivíduo. Poder-se-ia defender que um dos movimentos importantes que têm lugar entre esse texto e o do Mal-estar… é aquele que corresponde a uma estruturalização de tal antagonismo. Lá, o adoecimento cobrado pela cultura é destacado sobretudo como algo que caracterizaria a Europa da transição do XIX para o XX; aqui, tornar-se-á correlato de todas as suas formas. De todo modo, é no texto de 1908 que lemos:
A experiência ensina que há, para a maioria das pessoas, um limite, além do qual sua constituição não pode acompanhar as exigências da civilização. Todas as que querem ser mais nobres do que sua constituição lhes permite sucumbem à neurose; elas estariam melhores se lhes fosse possível ser piores (FREUD, 1908/2015, p.373-4).
Isso se desenha assim para Freud especialmente porque a construção da cultura envolve um investimento de energia psíquica subtraído das perversões constitutivas do ser humano, sendo este um argumento que resultará na célebre formulação de que a neurose é o negativo da perversão. Assim, apesar de por vezes Freud situar a arte como um caminho de reconciliação com os sacrifícios exigidos pela cultura3, qualquer estudo sobre o tema em sua teoria deve estar advertido de que sua reflexão sobre a estética não poderia deixar de reverberar essa ambiguidade. Se por um lado, o resultado do processo sublimatório consiste, diz Freud, em alcançar metas valorizadas socialmente, por outro lado o que ele mobiliza, como formação do inconsciente, é, de saída, potencialmente subversivo na medida em que aquilo que o caracteriza são as tendências de oposição à cultura. A sublimação corresponde a um destino pulsional que precisa trabalhar contra a pulsão; ou, dito de outro modo, corresponde a um trabalho da pulsão contra si mesma.
A ambiguidade que Freud enxerga, talvez a despeito de seu próprio desejo, na realização estética, na medida em que ela é também uma tensão constitutiva da cultura, é um problema que atravessa todo o livro Sublimação e Unheimliche, de Alessandra Parente. Assim, a autora escreve, na introdução, sobre o caráter paradoxal da sublimação: “[…] o conteúdo que emerge do inconsciente, servindo como matéria essencial para a criação, não pode mostrar sua natural face subversiva, a menos que seja amainada por ornamentos ou superfícies formais que reiteram o estado vigente das coisas” (PARENTE, 2017, p.38). O livro toma para si a tarefa de explorar aspectos sociais e históricos presentes no período de elaboração da teoria freudiana, de modo que a autora pretende expor não apenas a maneira como Freud concebia a cultura, mas a maneira como concebia a forma assumida pela cultura na época em que viveu e que viu nascer a nova disciplina. Ela se compromete, então, com a investigação das implicações psíquicas, sociais e políticas de tais concepções. À luz dessa chave, a primeira parte do livro mostra o modo pelo qual o modelo político-cultural do Império Austro-Húngaro aparece no conceito de sublimação. A. Parente defende que aparece nesse conceito freudiano um patriarcalismo que não teria percebido seu próprio fim, fim este que teria sido gestado pela Reforma Protestante e pela Revolução Francesa. O término não elaborado dessa ordem patriarcal, cujo representante paradigmático teria sido Francisco José I, teria promovido como resultado o surgimento de um espírito melancólico. No sentido psicanalítico, a melancolia, assim defende Freud, está relacionada a uma situação em que o Eu perde o objeto amado e não reconhece essa perda, introjetando o objeto e, consequentemente, deixando de fazer o trabalho de luto que se sucederia. Além disso, o não reconhecimento da perda seria disparado por uma culpa relacionada ao fato de o sujeito direcionar ao objeto um sentimento de ódio ou o desejo de matá-lo. Em virtude dessa ausência de reconhecimento, a hostilidade que se voltaria para o objeto inflete-se agora, na melancolia, para o próprio Eu que se regozija tanto com a manutenção do objeto quanto com sua própria punição. “A sombra do objeto caiu sobre o Eu” (FREUD, 1917/2011, p.61) foi a bela formulação que Freud encontrou, em Luto e melancolia, para esse estado de coisas. Do ponto de vista econômico (no sentido da metapsicologia), isso corresponde a uma inflação do Eu, já que lhe torna mais difícil realizar investimentos de libido em outros objetos. Essa hipertrofia do Eu, sustenta agora A. Parente, está relacionada com a sublimação. A referência à melancolia permite à autora proceder a um diagnóstico da cultura da época, em favor do que ela convoca as análises que W. Benjamin fornece dos dramas do Barroco alemão. No Trauerspiel, o traço marcante seria a fragilidade dos soberanos, a exposição do abalo que incidira sobre o poder monárquico. Qual é a reação dos cidadãos do Império Austro-Húngaro diante desse abalo? Eles preferem, diz a autora, alhear-se das discussões políticas e investir em uma “cultura dos sentimentos” que supervaloriza as artes e a beleza. Tudo se passa aqui como se, quanto mais complexas e investidas fossem as percepções dos objetos internos, mais os indivíduos se afastassem do âmbito público. Neste lugar, estaria então localizada a função da sublimação: ela estaria a serviço de dar vazão ao mundo interno sem tocar a questão dos problemas públicos. Isso corresponde, por óbvio, a uma crítica do conceito freudiano de sublimação, pois, na medida em que consiste em um processo conduzido pelo Eu com o intuito de, simultaneamente, obter reconhecimento social e realizar de modo parcial desejos sexuais e agressivos do artista, ela submete conteúdos que seriam resistentes à civilização a uma adaptação, contribuindo, assim, para a manutenção do “estado vigente das coisas”. Já com o Unheimliche4, o que se passa seria algo bem diferente porque sua expressão pelo artista trabalharia o conteúdo do trauma sem integrá-lo, afastando-se de valores que são reconhecidos pela sociedade de maneira não crítica e não problemática. O encaminhamento da reflexão estética na direção dessa noção teria, por esse motivo, desalojado Freud do lugar de um liberalismo conservador. Para A. Parente, a condição cultural que tem lugar com a Primeira Grande Guerra reflete-se no encaminhamento do pensamento de Freud, que então sofreria uma alteração significativa. Após a Guerra ele retoma sua teoria do trauma, elabora o conceito de pulsão de morte e escreve Das Unheimliche. Por esse motivo, a autora declara que seu segundo objetivo no livro é mostrar a importância desse acontecimento para a reconfiguração da teoria freudiana da cultura, o que significaria que essa reconfiguração alcançaria também o conceito de sublimação que Freud mobilizava até então. Nesse período, ele teria reconhecido limites em tal conceito, tendo sido por isso que: 1- não publicou o artigo metapsicológico que teria escrito sobre a sublimação e 2- escreveu o texto O inquietante. Isso faria parte de um cenário em que a condição psíquica prevalecente deixa de ser a melancolia e passa a ser o pânico.
Como órfãos de uma cultura perdida”, escreve a autora, “os homens que vagavam melancolicamente pela vida finalmente são obrigados a olhar para o vazio deixado após a guerra e para sua condição de desamparo. Juntando migalhas, tecem narrativas desconexas, potentes e vigorosas. Ao contrário do verniz que encerava o processo sublimatório, é possível ver uma inconsistência e uma precariedade mais fiéis à seiva inconsciente (p. 40).
A tese central do livro precisa então ser assinalada ao redor disso: há uma inflexão relevante entre a sublimação e o Unheimliche na teorização que Freud dedica à arte. Eles seriam dois processos de simbolização distintos e o entendimento da transição entre ambos precisa ser referido à repercussão que a Primeira Grande Guerra teria tido no pensamento freudiano. Tal chave dará ensejo a diversas incursões por obras artísticas e, especialmente, a autora recupera essa tensão entre o destaque conferido ao ouro na pintura de G. Klimt e a exposição crua da carne na de E. Schiele. Suas obras podem ser vistas como signos de uma amplitude de contexto cultural que, segundo A. Parente, ecoa na argumentação que Freud tece entre esses dois períodos cuja separação teria sido marcada com a Grande Guerra. A passagem entre o mestre e o discípulo – isto é: entre Klimt e Schiele – sinaliza uma ruptura da nudez para com a extravagância dourada e permite perceber a queda do véu da ornamentação, conduzindo decisivamente a obra de arte à exploração do Unheimliche, o que corresponderia a uma potência mais ampla de deslocamento e disrupção relativamente à ordem social estabelecida. Há muitos percursos possíveis para a leitura desse livro tão rico. Porém, em torno de sua tese central, A. Parente não entrega o ouro fácil. Ela exige bastante de sua leitora porque a costura da argumentação precisa ser feita constantemente. Nossos fios de coser são convidados a passear pelas duas partes constitutivas do livro, demarcadas entre si a partir dos dois momentos identificados na reflexão estética de Freud, e que acabam de ser assinalados aqui. Em torno do primeiro momento – ou seja, da primeira parte do livro –, temos sete capítulos que elaboram sucessivamente os seguintes recortes: o teatro na Viena finse-siècle, a relação entre modernidade e melancolia, o declínio da imagem do pai, o feminino na obra de Klimt, a abordagem romântica da sublimação, a relação entre Freud e Goethe, o estatuto da escrita freudiana. Já na segunda parte do livro, nos deparamos com cinco outros capítulos, sendo que o primeiro deles situa a obra de Freud diante de sua desilusão com a guerra, o segundo aborda a articulação entre o sentimento de pânico e a condição de desamparo, o terceiro investiga a figura do Unheimliche na obra de E. T. A. Hoffmann, o quarto fornece uma leitura da produção de E. Schiele e o último retorna ao Édipo mediante a referência a H. von Hofmannsthal. Diante das etapas assim desenhadas, podemos levantar algumas questões. Por exemplo: como podemos identificar em Klimt o modelo sublimatório nos termos propostos (p. 179) e ao mesmo tempo reconhecer em sua obra um profundo questionamento do poder patriarcal (p. 180)? Isso não seria prova de que a sublimação pode trazer resultados que ultrapassam a expectativa da aceitação social? Quando se diz que a Guerra imprime também uma mudança no próprio estilo de Freud, que análise concreta seria possível fazer desse estilo? Como o esforço de referir a teoria psicanalítica à história de seu tempo, especialmente mediante o estudo das obras de arte selecionadas, permitiria avançar a sua compreensão e o modo pelo qual ela dispõe seus conceitos? Chegamos, ao final do livro, no contexto de uma discussão sobre a peça A torre, de Hofmannstahl, a um comentário de Totem e tabu que está longe de ser trivial. Mas, dali, olhamos para um certo abismo, desamparados em busca de “considerações finais” que estivessem a serviço de dizer que um certo itinerário se encerrava ali de um certo modo, ainda que abrisse atalhos para tantas outras coisas. É especialmente importante ficar atenta ao fato de que a argumentação do livro vai se voltar para o tema do feminino. Uma das pistas mais relevantes nesse sentido, além do destaque dedicado a Klimt e Schiele – e, consequentemente, a essa questão – é a epígrafe do capítulo 3, que traz um pequeno trecho de 1907 das Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena. Nele, lemos muito a contragosto, para dizer o mínimo, que, “na opinião de Freud, a verdade é que a mulher nada ganha pelo estudo e que, no todo, a sorte delas não há de melhorar com isso. Acresce que as mulheres não podem alcançar a realização do homem na sublimação da sexualidade” (citado por PARENTE, 2017, p.141). Não se pode acusar Freud de ter sido incoerente com esse posicionamento nos textos que publicou durante sua vida. Pois conhecemos bem – nós, suas leitoras – o modo pelo qual ele se esforça por destituir as mulheres das condições ética e estética. Mas, por mais que seja difícil para nós hoje equacionar essas duas coisas, também devemos em larga medida a Freud a construção de um território em que o pensamento feminista se tornou possível. Dívida que começa, é claro, no que concerne à psicanálise, com a coragem das mulheres que ocuparam seu divã. A exemplo de Dora, com quem abri essa resenha, eram sobretudo mulheres que colocavam em cena, ainda que de modo deformado, seu desejo na clínica de Freud durante seu período inicial. Convém lembrar, a esse respeito, as seguintes palavras de J. Mitchell: só podemos entender o significado da obra de Freud
[…] se compreendermos primeiro que eram exatamente as formações psicológicas produzidas dentro das sociedades patriarcais que ele estava revelando e analisando. A oposição à história assimétrica sobre os sexos, proposta por Freud […], pode muito bem ser mais agradável no igualitarismo que ela assume e revela, mas não faz sentido algum para uma defesa mais profunda de que sob o patriarcado as mulheres são oprimidas – uma argumentação que só as análises de Freud podem nos ajudar a compreender (1974/1988, p.7).Isso significa, dentre tantas coisas, que é ainda urgente rever, comentar, repensar Totem e tabu nessa sua direção fundamental de estabelecer uma equivalência entre cultura e masculinidade e da qual, a meu ver, Lacan não soube se desvencilhar o suficiente. A. Parente acena para essa tarefa ao encerrar seu livro, de modo que a peça de Hofmannstahl dá ensejo a localizar essa pergunta pelo legado do mito freudiano e a marcar, talvez, mais um ponto de tensão entre o território do Unheimliche e o do patriarcado, embora ainda pareça pouco vincular, como faz a autora, a posteridade de Totem e tabu apenas ao tema da insurgência. A questão da mulher é um dos pontos mais pungentes em que a obra de Freud parece ser refém de seu contexto. Não é o caso de avançar aqui em sua exploração, mas ela força a esta pergunta de base, tão centralizada pelo livro de A. Parente: em que medida a obra reverbera seu contexto histórico, em que medida é independente dele? No que diz respeito ao segundo dualismo pulsional, não podemos deixar de lembrar a argumentação que L. R. Monzani constrói em Freud: O movimento de um pensamento. Para ele, o conceito de pulsão de morte não pode ter sua inteligibilidade referida à Grande Guerra5, pois tratar-se-ia, com tal conceito, de um elemento presente na obra de Freud desde o início em virtude da própria caracterização da pulsão como alguma coisa que possui a tendência a eliminar a si mesma. Lemos, assim, que “[…] a ideia de uma tendência à inexcitabilidade total e absoluta era um dos ordenadores fundamentais da rede teórica elaborada por Freud, que atravessa toda a sua obra de um extremo ao outro […]” (MONZANI, 1989, p.228). Pensar a pulsão de morte como resposta a um acontecimento histórico seria, assim, para Monzani, perder de vista a lógica interna que guia o movimento do pensamento. No livro de A. Parente as cartas são, a meu ver, claramente apresentadas em um sentido oposto. Aqui o historicismo é assumido em torno de um pressuposto metodológico articulado com a leitura de W. Benjamim, de cujas teses sobre a história ela destaca a ideia de que a “substância histórica” está presente na estruturação dos conceitos. Tal estratégia envolve, como qualquer estratégia, perdas e ganhos. Que se ganha, espero ter conseguido mostrar um pouco. É preciso acrescentar, todavia, que a autora sinaliza nesse sentido para a aposta de que o resgate da história dos conceitos possui a capacidade de indicar forças que teriam sido abafadas pelas circunstâncias em que foram construídos. Por outro lado, se se defende que conceitos são amplamente tributários do contexto vivido por aquele que os pensou e construiu, então corre-se o risco de não se poder empregá-los sob a pena da óbvia objeção de serem datados. Qual a medida de sua sobrevivência? Por que alguns teriam uma vida para além da situação em que nasceram enquanto outros não? Por que aceitamos, por exemplo, um conceito metapsicológico de inconsciente, enquanto rejeitamos as teses de Freud sobre a inferioridade da mulher? Não são todos – tal conceito e tais teses – situados no mesmo contexto histórico? Se levássemos o ponto até suas últimas consequências, não seria, aparentemente e afinal, nem despropositada nem ingênua a pergunta: que direito tem a psicanálise de ser psicanálise após Freud? Esse tipo de impasse não restou, é claro, desapercebido por A. Parente. A solução encontrada por ela parece ser formulada aproximadamente do seguinte modo: “Conceitos e noções representam ideias que atravessam os tempos, mas só ganham feições nas malhas concretas da história” (PARENTE, 2017, p.51). Mas, se é assim, a pergunta pelo estatuto do Unheimliche não permanece em aberto? Se a noção de inquietante tem na Primeira Grande Guerra sua condição de possibilidade, possuiria ela alguma força para “atravessar os tempos”? O problema poderia também ser organizado de uma maneira não menos necessária por ser aparentemente trivial: por que continuamos a reconhecer que têm lugar processos de sublimação, apesar de a melancolia ter sido atrelada ao período que antecedeu a Primeira Guerra? São questões que, a meu ver, podem, dentre tantas outras, ser construídas com o livro de A. Parente de modo a favorecer o debate e a continuidade da investigação.
Referências
FREUD, Sigmund. (1905[1901]) Análise fragmentária de uma histeria. In:____. Obras completas. Volume 6. (Trad. P. C. de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
FREUD, Sigmund. (1908) “A moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno”. In: ____. Obras completas. Volume 8. (Trad. P. C. de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. (Trad.: M. Carone). São Paulo: Cosacnaify, 2011.
FREUD, Sigmund. (1927) O futuro de uma ilusão. (Trad.: R. Zwick) Porto Alegre: L&PM, 2012.
LACAN, Jacques. (1952[1951]) Intervenção sobre a transferência. In: ____. Escritos (Trad.: V. Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
MITCHELL, Juliet. (1974) Sobre Freud e a distinção entre os sexos. In: ____. Psicanálise da sexualidade feminina. (Trad.: L. O. C. Lemos). Rio de Janeiro: Campus, 1988.
MONZANI, L. R. Freud: O movimento de um pensamento. Campinas: Editora da Unicamp, 1989.
PARENTE, Alessandra. Sublimação e Unheimliche. São Paulo: Pearson, 2017.
Notas
1 Dora estava envolvida em um enredo que implicava, além de seu próprio pai, duas pessoas casa-das entre si que Freud nomeia “Sra. K” e “Sr. K”.
2 “Quanto maior o tempo que me separa do fim desta análise, mais provável me parece que meu erro técnico consistiu na seguinte omissão: eu não percebi a tempo e não comuniquei à paciente que a mais forte das correntes inconscientes de sua vida psíquica era o impulso amoroso homosse-xual (ginecófilo) relativo à Sra. K” (FREUD op. cit., p.317).
3 Cf., por exemplo, Freud 1927/2012, p.51-2
4 O termo é por vezes traduzido por “inquietante”, outras por “estranho” e ainda por “sinistro” ou por “ominoso”.
5 Cf. nota 38, p.318
Léa Silveira – Professora de Filosofia da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, MG, Brasil. E-mail: leasilveiralea@gmail.com
France – Allemagne. L’enseignement de l’histoire pour l’Europe. Les rencontres franco-allemandes sur les manuels scolaires dans le contexte européen. Succès – Perspectives – Desiderata – BONGERTMANN; COLLARD (APHG)
BONGERTMANN, Ulrich; COLLARD, Franck. (Dir.). France – Allemagne. L’enseignement de l’histoire pour l’Europe. Les rencontres franco-allemandes sur les manuels scolaires dans le contexte européen. Succès – Perspectives – Desiderata. WOCHENSCHAU Verlag, Francfort-sur-le-Main; Verband der Geschichtslehrer Deutschlands e.V. – VGD; Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie – APHG, 2018. Resenha de: BENDICK, Rainer; CHARBONNIER, Marc. Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie (APHG). 28 fev. 2018. Disponível em: < https://www.aphg.fr/France-Allemagne-L-enseignement-de-l-histoire-pour-l-Europe>Consultado em 11 jan. 2021.
Le 22 avril 2017, des représentants des Bureaux nationaux de la Fédération des Professeurs d’Histoire d’Allemagne (Verband der Geschichtslehrer Deutschlands e.V. – VGD) et de l’Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie (APHG – France) réunis en Sorbonne afin de faire le bilan de deux colloques communs à Brunswick et à Paris (février et avril 2017), ont tenu à ouvrir des perspectives concrètes de travail dans le cadre du renforcement des relations franco-allemandes dans les domaines de l’éducation, de la recherche et de la culture [3]. Ces rencontres bilatérales débouchent aujourd’hui, près d’un an après, sur la publication conjointe d’un ouvrage ambitieux (chez l’éditeur « Wochenschau-Verlag ») que la revue Historiens & Géographes est fière de présenter ci-après.
Il comprend 21 contributions scientifiques, pédagogiques et didactiques inédites [4],partagées entre auteurs allemands et français, en croisant les regards et les approches spécifiques de l’enseignement de l’histoire des deux côtés du Rhin. Les articles allemands sont suivis d’un résumé en français et réciproquement pour les contributions françaises. Etienne François, professeur émérite à l’université Paris I et professeur d’histoire à l’université libre de Berlin, où il dirige le Frankreich-Zentrum a rédigé l’introduction de ce recueil, en français et en allemand. Philippe Joutard, ancien Recteur, professeur émérite d’histoire moderne à l’université de Provence Aix-Marseille I signe la postface, également disponible dans nos deux langues.
Ainsi, dans la lignée d’une remarquable publication récente – Europa, notre histoire : L’Héritage européen depuis Homère, sous la direction d’Etienne François et de Thomas Serrier (Les Arènes, 2017) – et du programme scientifique de la conférence annuelle d’EUROCLIO co-organisée par l’APHG à Marseille du 21 au 26 avril 2018 [5], ce livre commun aux associations professionnelles d’Allemagne et de France souhaite promouvoir, dans une démarche fondatrice, une Europe de la paix et du savoir partagé, particulièrement auprès des enseignants d’histoire, de géographie, d’allemand et en classes européennes. Historiens & Géographes relaiera prochainement sur le site www.aphg.fr toutes les informations pratiques sur cette publication, disponible au début de l’année 2018.
En voici ci-après une courte présentation en français et en allemand :
Les rencontres franco-allemandes sur les manuels scolaires dans le contexte européen. Succès – Perspectives – Desiderata.
Sous la direction de / Herausgegeben von :
Ulrich Bongertmann, Franck Collard, Rainer Bendick, Marc Charbonnier, Martin Stupperich, Hubert Tison.
Pourquoi un professeur français d’histoire devrait-il s’intéresser aux problèmes de son collègue allemand et inversement, un professeur allemand d’histoire à l’enseignement de l’histoire en France ? A vrai dire, pourquoi faut-il une publication franco-allemande sur l’enseignement de l’histoire ? Après tout, nos enseignements ne propagent plus depuis longtemps des images unilatérales ou calomnieuses de l’autre pays.
Mais au lieu des contenus nationalistes, une sorte de « nationalisme didactique » se dessine. La didactique de l’histoire, les critères d’un « bon » enseignement d’histoire, le rôle des professeurs et des élèves et la manière dont ils travaillent ensemble, sont définis très différemment de part et d’autre des rives du Rhin, si bien que les collègues qui ne connaissent que leurs propres traditions nationales ont l’impression que le voisin, de l’autre côté de la frontière, fait de « mauvais cours ». Cela ne peut pas nous laisser indifférents, car la France et l’Allemagne sont les pays les plus influents d’Europe !
Le recueil retrace d’abord le processus d’objectivation des manuels scolaires. Hubert Tison et Rainer Riemenschneider rappellent comment les derniers litiges ont été surmontés lors des rencontres bilatérales sur les manuels d’histoire au cours des années 1980. Steffen Sammler et Maguelone Nouvel-Kirschläger analysent les conséquences de ces initiatives. Ullrich Bongertmann et Claire Ravez présentent les critères d’un « bon » enseignement de l’histoire dans nos deux pays.
Ensuite, 14 contributions abordent des thématiques concrètes liées à notre enseignement : les aspects positifs mais aussi les limites du jugement historique, chers aux collègues allemands, apparaissent très clairement à la lumière de l’approche didactique française (Martin Stupperich, Peter Geiss, Guy Pervillé). Rainer Bendick, Yohann Chanoir et Thorsten Heese s’intéressent aux malentendus provoqués par nos deux traditions didactiques, valables seulement au sein de nos frontières nationales, et montrent les possibilités de les surmonter par des approches bi- et transnationales. Nathalie Schmitt-Wald, Nicolas Charles, Bruno Benoit, Marc Charbonnier et Gilles Vergnon élargissent cette perspective en abordant d’une manière renouvelée les thèmes habituels de l’enseignement. Franziska Flucke et Florian Niehaus expliquent en quoi l’enseignement bilingue et ses classes spécifiques sont une chance.
Enfin, l’introduction d’Etienne François et la postface de Philippe Joutard donnent aux contributions franco-allemandes une dimension européenne.
Die deutsch-französischen Schulbuchgespräche im europäischen Kontext . Erfolge – Perspektiven – Desiderate.
Herausgegeben von / Sous la direction de :
Ulrich Bongertmann, Franck Collard, Rainer Bendick, Marc Charbonnier, Martin Stupperich, Hubert Tison.
Warum sollte sich heute ein französischer Geschichtslehrer für die Probleme seines deutschen Kollegen interessieren und umgekehrt ein deutscher Geschichtslehrer für den Geschichtsunterricht in Frankreich ? Ja, warum überhaupt eine deutsch-französische Veröffentlichung zum Geschichtsunterricht ? Schließlich verbreiten unsere Unterrichte schon lange keine einseitigen, das andere Land verunglimpfenden Darstellungen mehr.
Aber anstelle nationalistischer Inhalte wird eine Art „didaktischer Nationalismus“ sichtbar. Der Umgang mit Geschichte, die Standards für guten Geschichtsunterricht, die Rolle von Lehrern und Schülern und die Art, wie sie zusammenarbeiten, werden diesseits und jenseits des Rheins sehr unterschiedlich definiert, so dass die Kollegen, die nur ihre Standards kennen, den Eindruck haben, der andere auf der anderen Seite der Grenze mache „schlechten Unterricht“. Das kann uns nicht egal sein, weil Deutschland und Frankreich die einflussreichsten Länder in Europa sind !
Der Band zeichnet zunächst den Prozess der Versachlichung unserer Schulbuchtexte nach. Hubert Tison und Rainer Riemenschneider berichten, wie sie in den Schulbuchgesprächen der 1980er Jahre letzte inhaltliche Probleme überwanden. Steffen Sammler und Maguelone Nouvel-Kirschläger analysieren die Wirkung dieser Initiativen. Ulrich Bongertmann und Claire Ravez stellen die Kriterien für „guten Unterricht“ in unseren Ländern vor.
14 Beiträge beschäftigen sich dann mit konkreten Problemen unseres Unterrichts : die Möglichkeiten aber auch die Grenzen des den deutschen Kollegen wichtigen historischen Urteils werden im Licht der französischen Standards besonders deutlich (Martin Stupperich, Peter Geiss, Guy Pervillé). Die Missverständnisse, die unsere nur national gültigen Unterrichtsstandards produzieren, und Möglichkeiten, sie mit bi- und transnationalen Ansätzen zu überwinden, zeigen Rainer Bendick, Yohann Chanoir und Thorsten Heese. Inhaltliche Erweiterungen unserer gewöhnlichen Themenspektren bieten Nathalie Schmitt-Wald, Nicolas Charles, Bruno Benoit, Marc Charbonnier und Gilles Vergnon. Die besonderen Chancen des bilingualen Geschichtsunterrichts thematisieren Franziska Flucke und Florian Niehaus.
Die Einleitung von Etienne François und das Nachwort von Philippe Joutard geben diesen deutsch-französischen Beiträgen eine europäische Orientierung.
Notes
[3] Communiqué commun APHG / VGD, 22/04/2017. En ligne : https://www.aphg.fr/Renforcer-les-r… [4] L’ouvrage, divisé en trois parties, comporte 10 contributions en allemand et 11 contributions en français. [5] Sur le site d’Euroclio (disponible en français) : https://euroclio.eu/event/25th-euro…Rainer Bendick – Docteur en histoire, professeur en histoire et français au Abendgymnasium Sophie Scholl (Osnabrück). Sa thèse porte sur la représentation de la Première Guerre mondiale dans les manuels français et allemands. Il a codirigé le volume du manuel d’histoire franco-allemand paru en 2011 et traitant de l’Europe et du monde de l’Antiquité à 1815.
Marc Charbonnier – Secrétaire général adjoint de l’APHG et secrétaire adjoint de la rédaction d’Historiens & Géographes. Professeur d’histoire-géographie en lycée, il vient de coordonner le dossier d’Historiens & Géographes n° 440 « L’Histoire et les mémoires de la guerre d’Algérie. Actes du colloque de Nanterre », et le dossier n° 441 (sous la direction de Jean-Marc Capdet, Préface : François Louveaux, Introduction : Philippe Duhamel) « Géographie et tourisme en Méditerranée », à paraître.
[IF]Before Boas: The Genesis of Ethnography and Ethnology in the German Enlightment | Han F. Vermeulen
Before Boas é daqueles livros cuja leitura produz diferentes efeitos e reverberações, não apenas quanto ao material, cenários e interpretações propostas pelo autor, mas também pelos desafios e implicações teóricas e analíticas daquilo que é apresentado e na maneira pela qual se o faz. Leia Mais
O fim do Terceiro Reich: a destruição da Alemanha de Hitler, 1944-1945 | Ian Kerschaw
Ian Kershaw destaca-se como um dos principais historiadores da atualidade cuja especialidade de estudo toma por objeto de pesquisa o período que compreendeu o Terceiro Reich (1933-1945). Iniciou sua trajetória acadêmica enquanto medievalista (analisando o campesinato alemão). Posteriormente voltou sua atenção para analisar as sociedades do século XX, em especial a alemã. Ainda em relação a sua atuação profissional podemos destacar a sua consultoria em algumas séries produzidas pela rede BBC sobre o nazismo e o fato de ter lecionado na Universidade de Sheffield (South Yorkshire, Inglaterra) aposentando-se em 2008. Nos últimos anos parte de sua obra foi traduzida e publicada no Brasil permitindo maior divulgação de seu trabalho e de suas discussões em relação a essa temática. Nesse sentido, suas críticas em relação à utilização do conceito de “totalitarismo” para definir a sociedade alemã das décadas de 1930 e 1940 e a equiparação o fenômeno do nazismo com o chamado stalinismo, presentes em alguns de seus livros, têm suscitado discussões produtivas em nosso meio acadêmico.
A problemática central de seu livro “O fim do Terceiro Reich”, tema da presente resenha, diz respeito à compreensão dos motivos que levaram os alemães a apoiarem o regime nacional socialista até sua capitulação, sobretudo no último ano do conflito. O livro contém ao todo nove capítulos, nos quatro capítulos iniciais o autor nos apresenta o contexto da guerra e das expectativas da população do Reich quanto aos rumos do conflito após os eventos de 1944 (“Dia D” e Operação “Bagration”). É interessante ressaltar que nessa primeira abordagem o historiador fez uma distinção entre o contexto vivido pelos alemães que residiam no Oeste daqueles instalados no Leste. Os motivos dessa divisão serão mais bem trabalhados posteriormente. Ainda em relação a esses capítulos iniciais, Kershaw mostra como ocorreu o processo de radicalização do regime de acordo com o rumo tomado pela guerra.
Do quinto capítulo até o nono podemos observar os acontecimentos ocorridos no período de maior carnificina do conflito, entre fins de 1944 e o primeiro semestre de 1945. As discussões apresentadas pelo autor versam sobre a deterioração das estruturas do Estado [1], do consenso em relação ao partido e da diminuição do carisma e da cofiança depositada em Hitler. Ao discorrer sobre esses diversos elementos, Kershaw busca compreender as razões pelas os alemães continuaram a manter o esforço de guerra e, consequentemente, o funcionamento do Estado nazista em uma situação próxima ao colapso total.
O material empírico utilizado por Kershaw neste trabalho foi bastante variado. Compreendeu os informes das mais diversas áreas do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães [NSDAP] [2]; da Wehrmacht [Conjunto das Forças Armadas do Terceiro Reich]; da Polícia; informes e memorandos de autoridades estatais em seus mais diversos níveis; material proveniente dos Aliados; relatos do período; memórias; jornais alemães da época como o Völkischer Beobachter, Der Angriff, entre outros. Dentro desse conjunto é interessante destacar três tipos em particular: os informes do departamento de propaganda, os relatos da época e as memórias.
Em relação ao primeiro grupo o autor destacou como os membros do governo e do partido tentaram lidar com as informações obtidas através das pesquisas referentes ao “ânimo” da população alemã em relação à guerra. Tal documentação permitiu acompanhar mais detidamente a partir de que ponto a crença dos alemães em relação à guerra começaram a se modificar, bem como as opiniões em relação ao governo e a figura de Hitler.
No que diz respeito às memórias e aos relatos o autor, ainda que não entre em uma discussão mais aprofundada a esse respeito, demonstra a natureza problemática da utilização das memórias produzidas após o conflito, pois muitos de seus autores optaram pela construção de uma narrativa cujo objetivo era conseguir o máximo de isenção possível em relação a crimes de guerra e de sua adesão aos princípios do nacional-socialismo. Nesse sentido, ao confrontar as narrativas memorialistas de determinados sujeitos históricos com seus relatos produzidos no decorrer da guerra percebemos que os mesmos agiram de forma bastante distinta das suas alegações posteriores. Além disso, os relatos possibilitam observar diferentes possibilidades de ação que os atores sociais tinham diante de si naquele momento.
O autor optou por não iniciar sua pesquisa tomando como marcos o desembarque aliado na Normandia (“Dia D”) ou a grande ofensiva soviética no Leste (operação “Bagration”). A justificativa para isso está relacionada ao fato de inúmeras produções historiográficas utilizarem esses dois acontecimentos na construção de uma narrativa com um único desfecho provável: a capitulação da Alemanha. Segundo Kershaw a realidade era bastante distinta. Apesar dos alemães terem consciência de sua “delicada” situação isso não significava necessariamente em uma derrota final, como demonstraram as várias fontes desse período consultadas pelo pesquisador. Alguns tinham consciência da impossibilidade da Alemanha vencer a guerra, mas a ideia de uma derrota total não constituía um horizonte imediato. Para muitos era possível que a aliança entre as democracias ocidentais e a União Soviética pudesse ser desfeita e com isso a Alemanha conseguisse estabelecer um acordo com ingleses e americanos para combater os comunistas, mantendo assim alguns de seus ganhos territoriais.
Assim sendo, Ian Kershaw tomou como ponto de partida para sua análise o atentado malsucedido contra Hitler ocorrido em 20 de julho de 1944. Nesse episódio, alguns oficiais da Wehrmacht, destacando-se dentre eles o coronel Stauffenberg, tentaram assinar o Führer com uma bomba que apenas lhe causou alguns ferimentos de menor monta. Para o historiador tal acontecimento torna-se mais interessante pelo trauma interno suscitado na sociedade alemã, além de ter sido o pretexto ideal para a radicalização do regime, tanto em termos de mobilização da sociedade quanto do nível de coerção imposto à mesma. Após esse evento, a sociedade alemã mobilizou-se para prestar homenagens, agradecer a “providência divina” pela sobrevivência de seu líder, exigir a punição de todos os envolvidos e reafirmar seu comprometimento para com o mesmo. Através dessa conjuntura bastante favorável, Hitler permitiu que os mais altos escalões do partido dessem início a um processo de endurecimento do regime, ou nas palavras dos mesmos “completar a revolução nacional-socialista da sociedade alemã”.
Para Kershaw, a reprovação e a impopularidade do atentado deixaram claro o fato de que, naquele contexto, não haveria a possibilidade de ocorrer um movimento popular para destituir o governo, a exemplo da Revolução Alemã de 1918, que pôs fim a guerra, a monarquia e instaurou a República. Por fim cabe ressaltar outra observação bastante perspicaz do autor em relação a esse episódio: ao analisar o contexto posterior ao conflito, Ian Kershaw pôde perceber que para muitos alemães o fato dos conspiradores não terem conseguido lograr êxito em sua ação evitou a criação de um novo mito da “punhalada pelas costas” (mito esse que perpassou toda a política alemã das décadas de 1920 e 1930) potencialmente problemático para as negociações de paz no pós-guerra.
Para o autor, o conjunto dos militares foi de longe o grupo que mais se destacou no sentido de mobilização e sustentação do regime até a capitulação final. As questões relativas a tal fenômeno variaram de acordo com a posição na hierarquia das forças armadas e também dos rumos tomados pelo conflito. A perspectiva de estudo utilizada por Kershaw não busca na imposição de uma capitulação total da Alemanha a motivação dos soldados e oficiais prosseguirem na luta, ainda que para uma parte deles tal exigência, somada a outros fatores, fosse uma justificativa válida. Segundo o historiador é necessário compreender o processo subsequente à tentativa de assassinato malsucedida contra Hitler. Com a radicalização do regime a partir de 1944, Hitler passou a nomear generais e oficiais mais graduados que tinham estreita afinidade com os ideais do nacional-socialismo. A presença desses “fanáticos” [3] reforçou as opiniões e ordens de Führer sobre as ações de organização e atuação do exército na estratégia de defesa das fronteiras do Reich (bem como da última tentativa de ataque realizada pelos alemães, a “ofensiva das Ardenas”). Também é importante levar em consideração o fato deles terem desencorajado e deslegitimado as opiniões de outra parte do oficialato, opiniões essas mais realistas [4]. Nesse sentido, os comandantes militares ficaram cada vez mais sujeitos aos comandos do ditador em relação à condução do conflito. Essa divisão na cúpula das forças armadas foi um dos fatores, segundo o autor, que evitou qualquer outra iniciativa semelhante àquela ocorrida em julho de 1944.
Outros elementos auxiliam a entender o quadro mais amplo do comprometimento da Wehrmacht na continuação do conflito. De acordo com a documentação, muitos militares se recusaram a desacatar as ordens do Führer por um senso de lealdade e honra decorrentes de seu ofício enquanto militar. Outros também abominavam a ideia de traição em relação a seu líder (tendo consciência de que qualquer ato contra a vida de Hitler seria impopular e não garantiria que as tropas depusessem as armas). Ao longo dos últimos meses do conflito a situação nos dois fronts da guerra se deteriorava a passos largos, nesse sentido, a quase totalidade do tempo dos oficiais era despendida em organizar da melhor maneira possível os recursos para obter a maior eficácia na defesa do território. Por fim, o prosseguimento no conflito, sobretudo a partir de 1945, tinha como meta obter o maior tempo possível para que tanto as tropas quanto a população civil localizadas nas regiões do Leste pudessem alcançar a parte Oeste do Reich, escapando assim dos soviéticos.
No que concerne aos soldados às motivações também foram bastante semelhantes. Muitos ainda mantinham um nível razoável de crença na figura do Führer; outros acreditavam que se conseguissem resistir pelo tempo suficiente poderia acontecer algo que mudasse os rumos do conflito (a já referida crença na dissolução da aliança entre os comunistas e os democratas, ou a confecção das prometidas armas “miraculosas”). Somente um número bastante reduzido de nazistas convictos acreditavam na vitória final da Alemanha. Com o agravamento das condições, a questão da defesa da pátria (enquanto entidade abstrata) e outras motivações (como a não degeneração da raça ariana) foram sendo deixadas de lado, subsistindo apenas as preocupações com a própria sobrevivência e com a solidariedade em relação aos entes queridos e camaradas que ainda estavam nas regiões do Leste.
Em relação os soldados do front oriental, desde o início a defesa da Pátria estava ligada não somente com a autopreservação. Esses combatentes tinham clareza do destino reservado aos seus entes queridos, e aquilo que eles entendiam como “modo de vida alemão”, caso os bolcheviques conseguissem invadir a Alemanha. Para além da propaganda do partido, esses sujeitos tinham conferido em primeira mão uma amostra do que seria a invasão soviética ao conseguirem retomar, temporariamente, a cidade de Nemmersdorf. Ao expulsarem o invasor, os soldados encontraram uma cidade praticamente arrasada, corpos das vítimas do exército vermelho espalhados em determinados pontos além de escutarem o relato de alguns sobreviventes.
Através dessa perspectiva, a quase totalidade dos soldados, independentemente de serem ou não nazistas “fanáticos”, empenhavam-se ao máximo de suas capacidades para conter o avanço soviético. Mais uma vez Kershaw demonstra que apesar do clima de insatisfação com o regime e com o próprio Hitler nos últimos meses, as preocupações quanto ao destino individual e dos parentes, além das constantes lutas impediam uma articulação no sentido de depor Hitler e buscar uma solução negociada para o fim do conflito.
Quando o autor desloca seu foco para analisar como a população manteve certo consenso e legitimação do regime, Ian Kershaw problematiza a ferramenta analítica do totalitarismo. De acordo com muitos trabalhos, a sociedade alemã só foi submetida e levada a executar determinadas ações por conta do alto nível de coerção, e violência, exercidas pelo Estado e pelo partido nazista. Entretanto a análise de Kershaw questiona tal interpretação a partir de algumas observações. Segundo o historiador, até o atentado de Stauffenberg os níveis de coerção do partido e do próprio Estado alemão não eram tão grandes como as interpretações baseadas no conceito de totalitarismo tendem demonstrar. De fato, havia a utilização da violência e da coerção em grande escala contra os inimigos do regime (comunistas, trabalhadores estrangeiros, judeus, ciganos, políticos adversários aos nazistas). Mas esse nível de coerção e violência não era utilizado contra a população alemã e esta última demonstrava um nível elevado de apoio e legitimação do regime.
Contudo, após o malogrado atentado de Stauffenberg teve início o processo de radicalização do regime para atender as demandas do esforço de guerra total. Ao longo de 1944, mas principalmente a partir de 1945, o regime passa a “importar” para a própria Alemanha os mecanismos de controle que eram empregados nas regiões ocupadas. O uso sistemático da coerção e da violência por parte dos membros do partido, da polícia; a interferência cada vez maior dessas organizações na vida dos cidadãos; tribunais de justiça de exceção proliferaram no território alemão no decorrer desse período. Devido a isso é possível entender a atitude de resignação de segmentos da sociedade. Para essas pessoas o fim da guerra era questão de tempo (especialmente para a população do Oeste, que sofria com os constantes bombardeios aliados), então o principal objetivo era apenas sobreviver até o fim do conflito o que significava não se indispor com as autoridades e nem assumir uma postura clara de contestação ao regime.
Se alguns adotaram uma postura de resignação, outra parte da sociedade continuou a resistir ao máximo possível, especialmente a população que buscava se refugiar no Oeste. Apesar das pressões por parte do regime, a coerção e a violência eram motivos menores quando comparados ao medo de ser capturado pelos soviéticos. Para esses indivíduos a sobrevivência e o desejo de escapar da captura da União Soviética marcam o apoio ao regime, pois somente ele seria capaz de lhes garantir a proteção ou o tempo necessário para se chegar à zona ocupada pelos ingleses e americanos (nesses casos a ideia de vitória ou de um fim vantajoso para a Alemanha já haviam sido completamente descartados).
Por fim, outra categoria social analisada por Kershaw foi o conjunto dos membros do NSDAP. Para os membros mais destacados do partido, os governadores das províncias (Gauleiter) entre outros hierarquicamente superiores, a razão para continuar exercendo suas funções era bastante clara: no caso de derrota eles cairiam junto com o Regime, não importando se a Alemanha capitulasse para os ingleses, americanos ou para os soviéticos. Nesse sentido era imperioso manter as estruturas do governo em funcionamento mesmo que ao custo do aumento da violência e coerção em relação à população. Assim sendo, o historiador pôde perceber que ao se aproximar o colapso total do Terceiro Reich esses membros mais destacados do partido não tinham o objetivo de capitular junto com seu líder, seguindo os princípios do nacional-socialismo (uma exceção notável foi à posição de Joseph Goebbels, que pôs fim a sua vida juntamente com a esposa e seus filhos). Na iminência do fim, essas figuras destacadas tentaram encontrar meios de escapar da Alemanha ou de conseguir algum acordo com os vencedores visando uma posição no governo pós Hitler ou para escapar das acusações de crimes de guerra.
Para os integrantes dos quadros inferiores do partido e de outras organizações, como a Juventude Hitlerista, as atitudes variaram de acordo com os acontecimentos. Até meados de 1945 eles buscavam exercer suas funções para garantir o tempo necessário para reorganização das defesas, confecção das novas armas e mantendo a esperança, veiculada nos meios de propaganda oficiais, de que a Alemanha precisava ganhar tempo até a aliança entre seus inimigos se desfazer o que poderia mudar os rumos do conflito. Como essas expectativas iam se desfazendo a cada novo avanço sobre o território do Reich, as preocupações passavam a ser a da garantia da própria sobrevivência (tanto contra ressentimentos da própria população alemã quanto dos aliados e soviéticos).
Como conclusão, o trabalho de Kershaw mostra-se interessante devido à proposição de novas perspectivas para a compreensão do Terceiro Reich. Para o autor a antiga justificativa de que a Alemanha teria resistido até o final devido à exigência de uma rendição incondicional, como já foi discutida anteriormente, não reverberou em grandes mobilizações ou promoveu transformações no governo e nas forças armadas. Apesar de seu uso pela propaganda do partido nazista, esse não foi um fator que justificasse todo o esforço empreendido. Além disso, nos relatos consultados pelo autor referentes ao período da guerra, houve escassas menções a tal imposição como fator de apoio ao regime e de sua política.
Outra interpretação que pode ser questionada diz respeito às interpretações baseadas no conceito de “totalitarismo”. No decorrer do livro percebemos que as mesmas não conseguem responder de maneira satisfatória os motivos da existência de um consenso social em relação à ditadura nazista. Mesmo com o aumento do nível de coerção interna, o consenso da população alemã em relação ao Terceiro Reich não estava baseado no terror, mas na crença de que o regime era a única solução disponível dentre as limitadas opções que eles dispunham. Em outros casos a coerção interna não foi o elemento norteador para o prosseguimento do esforço de guerra. Preocupações e anseios como, por exemplo, a sobrevivência pessoal e de entes queridos ou a preocupação em relação ao destino daqueles que eventualmente ficassem sob o julgo soviético constituíram meios mais eficazes que as ideologias do nacional-socialismo para mobilizar a sociedade alemã do período e nortear as ações daqueles sujeitos históricos.
Notas
1. Alguns exemplos nesse sentido foram: repartições administrativas funcionando de maneira precária, sem material e sede fixa; serviços de iluminação e de transportes deixaram de serem prestados devido à falta de estrutura e de pessoal; os serviços telegráficos e de correspondências também foram sendo suprimidos por motivos análogos.
2. Podemos destacar como os mais interessantes os seguintes: informes dos Gauleiter, os administradores das províncias do Reich; do departamento de propaganda; dos órgãos do partido criados com a finalidade de exercer diversas funções de competência do Estado entre outros.
3. A utilização do termo “fanático” foi inicialmente esporádica, restringindo-se aos integrantes do exército que explicitamente demonstravam suas vinculações com o partido e com os princípios do nacional-socialismo. Com o decorrer do conflito mesmo aqueles que eram contrários aos princípios dessa ideologia passaram a ser denominados dessa forma devido à imposição feita pelo departamento de propaganda no intuito de demonstrar unidade e comprometimento na causa. No último ano do conflito alguns integrantes das forças armadas buscavam apresentar-se dessa forma para reafirmar seu comprometimento para com Hitler a fim de evitar acusações de traição ou covardia, ambas punidas com a morte.
4. Para alguns oficiais a estratégia a ser adotada consistia em recuar para determinadas posições a fim de estabelecer e consolidar uma defesa mais eficaz dos territórios sobre controle alemão e do próprio Reich. Contudo, as ordens de Hitler, e o apoio do oficialato “nazista” impediram tais medidas por considerarem-nas atos explícitos de covardia ou falta de comprometimento com a causa da guerra. Nesse sentido, vidas e equipamentos necessários para o prolongamento do esforço de guerra alemão foram desperdiçados de forma displicente.
José Airton Ferreira da Costa Júnior – Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Professor temporário do Departamento de História da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAMUECE). E-mail: GOLTURBOGTI_01@hotmail.com
KERSHAW, Ian. O fim do Terceiro Reich: a destruição da Alemanha de Hitler, 1944-1945. Tradução Jairo Arco e Flexa. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Resenha de: COSTA JÚNIOR, José Airton Ferreira da. “Experiência e sociabilidades ou os limites do nacional-socialismo”. Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s). Fortaleza, v.6, n.11, p. 149-157, jan./abr., 2018. Acessar publicação original [DR]
Banalidade de Heidegger – NANCY (C)
NANCY, Jean-Luc- Banalidade de Heidegger. Trad. De Fernando Bernardo e Victor Maia. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 23, n. 1, Jan/Abr, 2018.
Luís Gabriel Provinciatto – Doutorando em Ciência da Religião – área de concentração: Filosofia da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com bolsa de financiamento Capes. Mestre em Ciências da Religião e licenciado em Filosofia pela PUC-Campinas. E-mail: lgproviatto@hotmail.com
Acesso somente pelo link original
Euro: e se a Alemanha sair primeiro? | António Goucha Soares
Em sua mais recente obra, António Goucha Soares1, ao longo de seis capítulos, discorre – com linguagem de fácil acesso mesmo aos não iniciados nas discussões de política econômica ou relações do direito internacional – a respeito de temas que tangenciam a História, a Economia e o Direito. Dessa forma torna a narrativa objetiva em seu conteúdo e rica pelas estratégias argumentativas que são empregadas. Com emprego da metodologia da História Social que visa rastrear os agentes e dar nome aos atores protagonistas dos eventos aqui desenrolados, e com o intuito de dar um sentindo humano às ações, não naturalizando os processos, Soares apresenta-se enquanto um fiel defensor da crítica às versões “oficiais” dos acontecimentos históricos. É nesse sentido que se projeta a sua argumentação, visando um deslocamento ou minimamente uma exposição acerca do protagonismo atribuído à Alemanha nos processos de condução à união econômica e monetária à qual os países da Europa Ocidental se submeteram a partir do tratado de Maastricht em 1992. Leia Mais
Westund Nordeuropa Juni 1942-1945 – HAPPE (RH-USP)
HAPPE, Katja. Westund Nordeuropa Juni 1942-1945. Berlin: De Gruyter Oldenbourg, 2014. Die Verfolgung und Ermordung der europäischen Juden durch das nationalsozialistische Deutschland 1933-1945, 12p. Resenha de: LEITE, Augusto Bruno de Carvalho Dias. Contribuição à historiografia sobre a Shoah. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.Nov 13, 2017.
A ilustrada Alemanha do início do século XX mobilizou os recursos mais avançados que a racionalidade moderna possuía para a guerra. Mais do que isso, durante o regime Nacional-Socialista alemão (1933-1945), racionalizou-se o processo de expulsão dos “indesejados” para fora dos limites do Reich. Particularmente, contra os judeus, assimilados ou não, a solução encontrada foi a imediata eliminação: “a solução final para a questão judaica” [die Endlösung der Judenfrage].
A Shoah [שואה], do hebraico “calamidade” ou “catástrofe”, termo que nomeia a perseguição e o assassinato dos judeus na Europa sob o domínio do III Reich alemão, apesar de já exaustivamente explorada, rememorada e elaborada, especialmente em ambiente europeu, norte-americano e israelense, persiste como evento singular, paradigma político e histórico. Entretanto, a produção propriamente historiográfica que se debruça sobre o tema é fragmentada, quando não restrita à memorialística, havendo, por isso, uma lacuna a ser sanada. Os anos 19901 tentam preencher esse hiato com vasta publicação interessada em estudar e compreender a “catástrofe” judaica, catalisada pelo aparecimento e pela análise de documentos até então inéditos que surgem no horizonte historiográfico da pesquisa pelo trabalho de investigadores e familiares de sobreviventes que dispõem para o público artefatos e documentos que atestam eventos, reafirmando registros ou mesmo iluminando novos fatos.
É sensível ao estudioso da Shoah, desde o aparecimento de Le Bréviaire de la haine : Le IIIe Reich et les juifs [O breviário do ódio: o III Reich e os judeus]2, de Léon Poliakov, em 1951, a exigência documental sobre esse ramo historiográfico. Há uma demanda, por vezes tácita, sobre o rigor documental próprio ao teor científico que um estudo histórico em geral exige. Tal demanda pretende que os estudos sobre a Shoah possam se deslocar da “moral política” para o campo dos estudos históricos. Com efeito, há necessidade de documentação para que a crítica documental refina o conhecimento sobre esse evento que, podese afirmar, seccionou o século XX europeu. As últimas décadas não apenas produzem o registro de entrevistas ou memórias individuais como também arregimentam em vários acervos uma documentação riquíssima, com vasto material salvo da destruição ou do esquecimento, disponibilizada, inclusive, on-line, como a reunida no United States Holocaust Memorial Museum.
Desse modo, a compilação de coleções de documentos que testemunham a “catástrofe” conforme o seu desenvolvimento parece sugerir que os estudos sobre a Shoah estabelecem, a cada dia, uma boa relação com o plano historiográfico. É o que se vê no décimo segundo volume do projeto Die Verfolgung und Ermordung der europäischen Juden durch das nationalsozialistische Deutschland 1933-1945 [A perseguição e assassinato dos judeus europeus pela Alemanha Nacional-Socialista 1933-1945] (2008-2018), que acaba de ser publicado com uma monumental documentação, novamente, enriquecendo a historiografia do público de língua alemã. Trata-se de um dos volumes desse projeto que colige documentos originais do período Nacional-Socialista alemão, com particular enfoque na atuação da burocracia do Reich em relação à população judaica do continente europeu além do Magrebe. É um trabalho que, apesar de sua vocação universalista, por tratar de tema sensível ao conjunto de pautas humanitárias históricas, foi feito por alemães e, sobretudo, para alemães, como sugerem os editores.3 Há a intenção pedagógica para a construção da memória e da história alemã do século XX. Com rigor técnico e, ao mesmo tempo, sensibilidade didática ao leitor não iniciado ao tema, o chamado projeto VEJ – abreviação do título – se desenvolve como material de pesquisa para o historiador, mas também para o leitor interessado, para o leigo que deseja compreender o passado recente da história alemã ou se aproximar da experiência vivida pelos contemporâneos do Estado nazista, por meio da leitura de documentos da época. Para tanto, toda documentação é cuidadosamente traduzida e apresentada de maneira imediata ao leitor, com o cuidado de explicar aquilo que ao leigo pode soar incompreensível, o que se pode averiguar pelas notas de pé de página, sempre esclarecendo de maneira objetiva e em linguagem simples algum fato ou personalidade do período.
A coleção possuirá dezesseis volumes ao final de sua publicação, prevista para o ano de 2018. Os volumes são organizados cronologicamente, do ano de 1933 a 1945, compreendendo, então, o período de ação e desenvolvimento do Reich Nacional-Socialista alemão, incluindo os territórios ocupados, assim como o período da Segunda Grande Guerra. Serão cerca de 5 mil documentos reunidos no total, sendo que, a cada volume, aproximadamente 320 documentos devem compor o dossiê a ser apresentado na edição em questão. Foi estipulado que, do total dos documentos contidos em cada volume, com alguma margem de tolerância, 40% devem ser originários do ambiente dos perpetradores – agentes do Reich -, 40% devem ser originários das vítimas – sobreviventes judeus, em sua maioria – e 20% da documentação devem ser de pessoas, órgãos ou instituições sem envolvimento direto com os eventos – como a imprensa internacional. Os documentos apresentados são oriundos de várias regiões da Europa e do norte da África, e apenas as traduções para o alemão estão presentes na obra, que não contém os originais de cada documento. Pode-se descobrir que, nas páginas de cada volume da coleção, há desde cartões postais, recortes de jornais e fragmentos historiográficos a papéis oficiais do Reich, sempre com a exigência de serem evidências produzidas na época em questão, nunca posteriormente. São documentos que não representam apenas um evento, mas um complexo de questões que, apesar da estrutura cronológica, periódica e seccionada por regiões ou países, podem ser cruzadas ou comparadas por volume, por ano ou pela origem geográfica.
O volume 12 possui lugar especial dentro da obra total. Trata-se do exemplar Westund Nordeuropa Juni 1942-1945 [Europa do oeste e do norte, junho de 1942-1945]. Os editores, Katja Happe, Barbara Lambauer e Clemens Maier-Wolthausen, publicaram, em dezembro de 2014, esta obra, que recolhe evidências sobre um dos momentos críticos e decisivos da deportação da população judaica da Europa do norte e da Europa central. Como em outros volumes, há uma “introdução” que inicia o leitor ao contexto sobre o qual a documentação foi produzida, por meio da qual é possível conhecer de maneira breve a história das populações judaicas de cada região visada pelo trabalho e, por outro lado, um breve histórico do antissemitismo característico da região estudada, em relação ao período perscrutado. Pela introdução proposta para o décimo segundo volume, a documentação parece se agrupar orientada pelo impacto das deportações em massa iniciadas no verão de 1942, da Europa central e do norte em direção ao leste (VEJ, 2014).
O décimo segundo volume apresenta 336 documentos originários da Dinamarca, Noruega, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e França. É impossível analisar a totalidade da compilação de maneira concisa e paulatina, pois o volume é enorme. No entanto, é possível sumarizar o teor da documentação pelo comentário de um documento exemplar: a carta de Jonas (Bob) Cahen (1918-2000) a sua família, na qual o então prisioneiro do campo holandês de Westerbork narra, em novembro de 1942, com qualidade literária e descritiva o que parecia ser uma fração corriqueira de seu dia a dia. Tal fração, entretanto, demonstra de modo exemplar o argumento do volume em questão, que afirma o verão de 1942 como ponto de inflexão da compreensão das ações do Reich para efetivação da Endlösung der Judenfrage. O documento “número 92” do dossiê evoca não apenas imagens gráficas do campo de Westerbork, do primeiro dia do mês de novembro de 1942, mas anuncia uma espécie de vaticínio individual, pessoal, sobre aquilo que ocorria sem o conhecimento das vítimas, a saber, o genocídio, a “perseguição e o assassinato” sistematicamente orquestrados. Jonas Cahen insinua aquilo que se soube somente posteriormente: a “solução final”. Ele sente de maneira intuitiva que é isso, precisamente, o que surge em seu horizonte próximo, na Holanda ocupada, e que irá reduzir em mais de 90% a população de origem judaica até o fim de 1945.4 Com a chegada de 17 mil judeus de toda parte da Holanda, em outubro daquele ano, Cahen descreve o campo de Westerbork, cujas barracas feitas para acomodar 400 pessoas abrigavam por vezes mil.
Die Menschen kamen hier an, gejagt wie Vieh, einige begraben unter ihrem Gepäck, andere ohne jeden Besitz, einige nicht einmal richtig gekleidet. Kranke Frauen, die man aus dem Bett geholt hatte, in dünnen Nachthemden, Kinder in Hemdhöschen und barfuß, alte Leute, Kranke, Gebrechliche – immer mehr neue Menschen kamen in das Lager. Die Baracken waren voll, übervoll. […] Strohsäcke und Matratzen gab es schon lange nicht mehr. […] Sie schliefen auf oder unter Schubkarren im Freien. Es gab nicht genug zu essen. Warmes Essen bekam man manchmal nur alle drei Tage und dann noch zu wenig. Die Säuglinge bekamen keine Milch. […] Die Pumpen für die Wasserversorgung arbeiteten unter Hochdruck und waren nicht mehr in der Lage, das Wasser ausreichend zu säubern, so dass die Menschen verschmutztes Wasser trinken mussten – mit den entsprechenden Folgen.
[As pessoas vieram, escorraçadas como gado, algumas soterradas por suas próprias bagagens, outras sem qualquer bem, algumas nem mesmo vestidas adequadamente. Mulheres doentes que, arrastadas para fora de suas camas, vestiam camisolas, crianças em roupas debaixo e descalças, pessoas idosas, doentes, enfermos – sempre chegavam mais pessoas novas no campo. As barracas estavam cheias, superlotadas. […] Colchões, mesmo que de palha, já não existiam mais. […] Dormiam sobre ou embaixo de carrinhos de mão, ao ar livre. Não havia comida o suficiente. Refeições quentes, apenas a cada três dias e, ainda, em pouca quantidade. Os bebês não obtêm nenhum leite. […] A bomba que trabalhou sob alta pressão para o abastecimento de água já não era capaz de purificá-la o suficiente, fazendo, assim, as pessoas beberem água suja – com as devidas consequências.]5Sobrevivente de Westerbork, mas também de Theresienstadt e Auschwitz, para onde será deportado já no fim da guerra6, Cahen imprime, portanto, uma imagem já conhecida porém ainda impactante da barbárie NacionalSocialista alemã. E, de forma sarcástica, profundamente envolvido com o que experimenta em Westerbork, denuncia o mesmo que Walter Benjamin em suas conhecidas Teses sobre o conceito de história: a natureza nefasta da civilização e da cultura, até então ignorada. Na sétima tese, Benjamin afirma que “não há um documento de cultura que também não seja um documento de barbárie [Es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Barbarei zu sein]”7. Cahen, endossando o adágio benjaminiano, diz:
Das Zeitalter der Zivilisation – „Deutschland gewinnt an allen Fronten“, „bringt Kultur und Zivilisation!“ Zivilisation, wenn man Menschen auf Schubkarren, auf Rucksäcken oder einfach auf dem Boden liegen lässt? Kultur, wenn man eine Mutter verzweifeln sieht, weil sie ihr Kind nicht nähren kann … keine Milch.
[A era da civilização – “A Alemanha venceu em todas as frentes”, “traz cultura e civilização!”. Civilização, quando se encontra pessoas em carrinhos de mão, em mochilas, ou simplesmente estendidas no chão? Cultura, quando se vê uma mãe desesperada porque não consegue alimentar seu filho… sem leite.]8Jonas Cahen, assim, resume o significado que a Shoah assume dentro da história europeia: simultâneo cumprimento e negação das promessas da civilização e da cultura. Conhecer esse momento de maneira imediata, pelo contato instantâneo com a documentação, gera impressões vivas desse paradoxo, próprio ao momento que se deseja apresentar pelo projeto VEJ.
O ganho natural de tal empreendimento é a reunião de material para pesquisa. O historiador ou pesquisador interessado e comprometido com o tema terá acesso facilitado pelo trabalho monumental que a equipe do projeto VEJ empreendeu. Além disso, não todos, mas muitos documentos são inéditos. Outro ganho que, particularmente, a coleção proporciona é a possibilidade de uma análise transnacional, transtemporal ou transbiográfica segundo os critérios que cada volume apresenta. A facilidade para tal empreitada encontra-se, precisamente, no já mencionado caráter cronológico e seccionado por país, região ou biografia que a coleção impõe à documentação, o que proporciona o acesso facilitado à determinada questão preestabelecida. Por fim, o trabalho do VEJ aponta para a elaboração da memória recente alemã e, ainda, a configuração historiográfica desta memória.
A força deste projeto, mais do que na quantidade intimidadora de documentos apresentados para análise, parece repousar sobre o argumento que persiste de maneira tácita dentro da obra, pois há um pressuposto não declarado que atravessa todo o projeto: descreve-se a Shoah não como catástrofe teológica, teleológica ou natural, conforme o termo Holocausto pode evocar, mas como catástrofe histórica em seu sentido existencial e político profundo, porque compreender a Shoah enquanto acontecimento político é apresentá-la historicamente. Incluir a Shoah no passado histórico através do esforço historiográfico e documental é torná-la lembrança, incluí-la na memória coletiva política que se sedimenta em forma de historiografia, pois “colocar algo no passado”, como se diz corriqueiramente, não é nada mais do que lembrar, de maneira precisa, deste passado.
Referências
BAJOHR, Frank. Expropriation and expulsion. In: STONE, Dan. The historiography of the Holocaust. London: Palgrave Macmillan, 2004. p. 52-53. [ Links ]
BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 691-704. [ Links ]
HAPPE, Katja et al. West-und Nordeuropa Juni 1942-1945. Berlin: De Gruyter Oldenbourg, 2014. (Coleção Die Verfolgung und Ermordung der europäischen Juden durch das nationalsozialistische Deutschland 1933-1945, vol. 12) [ Links ]
*Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais com estágios doutorais na Université Paris VII – Denis Diderot e na École des Hautes Études en Sciences Sociales EHESS França. E-mail: augustobrunoc@yahoo.com.br.
1BAJOHR, Frank. Expropriation and expulsion. In: STONE, Dan. (ed.). The historiography of the Holocaust. London: Palgrave Macmillan, 2004, p. 52-53.
2Todas as traduções são de responsabilidade do autor do artigo.
3Apesar desta vocação, em breve o projeto VEJ poderá ser acessado pelo público não germanófono. A preparação da edição inglesa da coleção, coordenada pelo professor Alex Kay, do Instituto de História Contemporânea (Munique-Berlim), acontece desde 2014. É prevista a tradução de todos os volumes, trabalho que é realizado em conjunto com o professor Dan Michman, do Yad Vashem (Jerusalém).
4In den Jahren der deutschen Besatzung wurden von den 140 000 Juden, die bei Kriegsbeginn in den Niederlanden lebten, 107 000 deportiert. Von ihnen Kehrten nur etwas mehr als 5 000 nach Kriegsende in die Niederlande zurück. [Durante os anos de ocupação alemã, havia cerca de 140 000 judeus holandeses. Desde o inicio da guerra, 107 000 foram deportados. Destes retornaram a Holanda pouco mais que 5000]. In: VEJ, 2014, p. 44.
5VEJ, 2014, p. 309
6Jonas Cahen, técnico eletricista, é deportado em agosto de 1942 para o campo de Westerbork. Em 18 de janeiro de 1944 é transportado para Theresienstadt, de onde é enviado a Auschwitz, em 16 de maio de 1944. Após sobreviver as “marchas da morte” [Todesmärsche], emigra para Israel em 1958.
7BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991, p. 696.
8VEJ, 2014, p. 310.
Augusto Bruno de Carvalho Dias Leite – Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de História.
Gênese e estrutura da antropologia de Kant – FOUCAULT (Ph)
FOUCAULT, Michel. Gênese e estrutura da antropologia de Kant. São Paulo: Edições Loyola, 2011.Resenha de: SOLER, Rodrigo Diaz de Vivar y. Foucault e antropologia Kantiana: morte do homem e analítica da finitude. Philósophos, Goiânia, v. 22, n. 1, p.265-273, jan./jun., 2017.
A construção de um ensaio intitulado Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant (FOUCAULT, 2011) seguido da tradução de Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático (KANT, 2006) constitui a tese complementar escrita por Foucault em paralelo com a sua consagrada leitura sobre a história da loucura. Texto menor, sem sombra de dúvida, porém de extrema relevância já que é nele que podemos encontrar todo um conjunto de problematizações que se farão presentes em outros momentos de sua trajetória intelectual.1 Em linhas gerais, pode-se afirmar que o projeto longitudinal dessa interpretação, por parte de Foucault (2011) consiste em demarcar como todo pensamento moderno, desde o século XVIII, encontra-se assombrado pelo espectro da antropologia, uma vez que, para Foucault (2011) a emergência da crítica como categoria fundamental do pensamento opera como uma espécie de emblema de passagem do sujeito do cogito em Descartes para a complexa maquinaria do duplo empírico-transcendental.
Entretanto, antes que se prossiga é necessário nos perguntarmos: quais seriam as condições de possibilidade responsáveis por fazer da antropologia o grande sistema epistemológico de nossa modernidade? Inicialmente é necessário afirmar que a antropologia corresponde a toda categoria de pensamento que procura responder a infame pergunta: o que é o homem? Questionamento este que recebera um tratamento crítico desde a publicação de As Palavras e as Coisas até A Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2006, 2007) no que se refere a uma problematização sobre o homem como categoria fundamental dos saberes modernos. Mas, é necessário ressaltar que, correlativo a esse projeto, encontra-se a tese de Foucault (2011) de que no horizonte prescrito pela antropologia kantiana vislumbra-se a analítica da finitude como ferramenta para se pensar o tempo presente.
Logo nas primeiras páginas de Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant Foucault (2011) constrói duas problematizações imprescindíveis a esse respeito. A primeira consiste na denúncia de que toda racionalidade ocidental encontra-se atrelada aos problemas desenvolvidos por Kant. A segunda refere-se a imagem concreta do homem como categoria inventada. Habituamo-nos a compreender que foram os homens que criaram o pensamento científico.
A leitura foucaultiana acaba por indicar que foi a ciência quem criou o homem baseada nas contribuições elaboradas por Kant, lançando em torno dessa figura uma série de discursividades que remontam à emergência da modernidade. Para Foucault (2011, p.36)
A Antropologia é pragmática no sentido de que não vê o homem enquanto pertencente à cidade moral dos espíritos (ela seria chamada de prática), nem à sociedade civil dos sujeitos de direito (ela seria então jurídica); considera-o “cidadão do mundo”, isto é, pertencente ao domínio universal concreto, no qual o sujeito de direito, determinado pelas regras jurídicas e submetidos a elas, é ao mesmo tempo uma pessoa humana que traz, em sua liberdade, a lei moral universal (Foucault 2011, p.36).
Ou seja, a importância da antropologia consiste no fato de que ela consiste em ser um livro prescritivo sobre as bases do problema do agir. Ela não está, portanto, interessada em fixar os limites da experiência ética ou descrever as condições de possibilidade de uma doutrina jurídica e política, mas sim demonstrar quais seriam, precisamente, os motivos pelos quais o homem, na modernidade, age em sua liberdade a partir da aplicabilidade de uma lei universal.
Nesse contexto, é a liberdade do ponto de vista pragmático isto é, as razões que nos levam a agir de acordo com aquilo que a sociedade espera de nós sem perder, contudo, a capacidade de exercer o argumento crítico em relação as nossas ações públicas e privadas. Na realidade, o objetivo de Kant seria o de propor um valor universal mediado pela experiência do pensamento e, o que as convenções sociais compreender como correto a partir da constatação, ou melhor, da formulação do problema de que o homem faz, pode e deve fazer constituir-se como ser livre da ação.
Justamente por conta desses aspectos que Kant (2006) desenvolverá ao longo de toda sua antropologia um conjunto de prescrições práticas sobre as ações humanas como as recomendações elencadas em torno da saúde. Uma saúde que se produz no bom uso da liberdade. Observa-se nesse caso como Kant (2006) enfatiza nesse ensaio não a categorização dos grandes sistemas metafísicos, mas as questões concretas que contribuem para tornar a vida humana possível a partir do exercício de uma ética voltada para as possibilidades manifestadas de maneira empírica. A verdadeira antropologia é aquela responsável por fundamentar um conhecimento prático sobre o homem característica fundamental de toda a modernidade. Na realidade, Foucault (2011) parece se interessar muito em apresentar a antropologia de Kant como uma espécie de correlação entre a ciência da época e sua própria experiência filosófica para fazer emergir uma espécie de estética cotidiana do agir. Não por acaso que Kant (2006) irá considerar o prolongamento da existência como uma arte. Contudo, mesmo a minúcia desse prolongamento não é capaz de garantir a vitória do homem contra a morte sendo necessário ao homem gerir as relações entre a ética do agir e as adversidades experimentadas ao longo da existência.
O que ilustra a antropologia como texto prescritivo e daí a riqueza do pensamento kantiano é que ela inaugura um novo estatuto ontológico baseando sua analítica em torno de uma questão que circula sobre as condições de uma época a qual parece emergir uma compreensão prática sobre o homem e sua finitude através da dimensão técnica do trabalho de compreensão em torno da objetivação do sujeito. Em suma, o problema a ser colocado consiste em pensar: o homem é sujeito de liberdade da ação, mas como se pode defini-lo? Esse problema coloca a antropologia diante de alguns desafios. O primeiro consiste em perceber o conhecimento como algo pragmático já que se faz uso dele de um modo generalizado na nossa sociedade. Embora, isso não significa que ele seja algo utilitário convertido em um universal.
Foucault (2011) designa que esse aspecto responsável pela correlação entre antropologia e conhecimento é a junção do que Kant compreende como Können poder e Sollen – dever a partir do desdobramento das práticas sociais cotidianas.
Mas, isso não significa que Kant (2006) pretenda constituir uma espécie de psicologia. A primeira vista Foucault (2011) trata de deixar claro que os projetos que consolidaram a psicologia como ciência referem-se a um projeto radicalmente diferente do formulado por Kant (2006) na sua antropologia, pois para o filósofo alemão os motivos pelos quais o homem apresenta determinados modelos de conduta aceitáveis seriam aqueles pensados sob o ângulo de certo contexto social. A questão seria a explorar o Gemüt natureza2isto é, a maneira pela qual o homem, por meio de suas experiências, constitui-se a partir de sua relação com o mundo e com as coisas. Percebe-se, portanto, como a antropologia acaba por fixar as bases de que é o labor das ideias que se manifestam no campo da experiência, princípio pelo qual deve-se perceber a analítica kantiana não somente como um pressuposto epistemológico mas sim como uma dialética desdialetizada uma vez que ela destina-se a compreender a experiência no próprio jogo dos fenômenos. Nesse sentido Foucault (2011) inclina-se a pensar Kant deslocando seu campo da filosofia da ciência para relacioná-lo dentro de um contexto mais amplo, no caso, os jogos provenientes dos enunciados e da ordem do discurso.
O fato emblemático é que Foucault (2011) considera a antropologia como superação do próprio empirismo científico uma vez que ela sinaliza o conhecimento como um princípio vivificante. Crítica empreendia por parte de Kant dos próprios limites do empirismo compreendido como uma mera fisiologia. De fato, um dos maiores problemas elencados por Kant (2006) foi o de tentar estabelecer todo um esforço para pensar os contornos de sua antropologia a partir de uma nova relação do conhecimento com o problema da experiência.
Uma vez que a antropologia não deve ser lida como uma mera continuidade das teses presentes na teoria do conhecimento, o que está em questão seria a necessidade de um deslocamento que se manifesta na categoria do homem como objeto de estudo a partir da constatação de que a antropologia do Gemüt dedica-se a pensar a condição de possibilidade da experiência no campo da finitude humana.
Não que o Gemüt não esteja presente no contexto da filosofia crítica, mas especificamente na antropologia essa ideia surge como um desafio a ser superado pelo empírico-transcendental.
Se a antropologia inaugura a questão moderna sobre o que é homem já não se trata mais de uma questão que deve ser sustentada somente pela perspectiva do ceticismo filosófico dirigido pelo tribunal orquestrado pela filosofia crítica, mas pelos contornos os quais toda forma de conhecer está inegavelmente sujeita desde a metafísica, até a moral, desde a própria política até a religião. Em torno dessa questão que todo o pensamento moderno encontra-se delimitado.
Foucault (2011) parece interessado em nos mostrar como toda episteme está imersa na antropologia kantiana não conseguindo desvencilhar-se dessa conjetura, por mais radical que posam parecer suas argumentações. Ao propor os limites e as possibilidades do que é o homem, a antropologia acaba constatando que essa figura pode apenas conhecer o fenômeno, ou seja, aquilo que se apresenta sem apreender a coisa em si. Esse modo de pensar se traduz na possibilidade de se perceber quão problemática se torna a analise sobre a questão da conduta humana. Ao tentar solucionar tal problema, a episteme moderna limita-se a descrever características limitadoras mediadas pelos fenômenos aparentes de suas ações e predicados. Por isso, jamais poder-se-á afirmar algo sobre a natureza humana descontextualizada das práticas culturais, históricas e sociais. Contudo, isso não quer dizer que não se possa caracterizar as ações do homem.
Existe nesse conjunto de constatações lançado pela antropologia a estreita relação entre verdade e liberdade. Tal problema é trabalhado por Kant, segundo Foucault (2011), no Opus Postumum: a tripartição entre Deus, o mundo e o homem. Foucault (2011) nos lembra que, para Kant, Deus configura-se como persönlichkeit a personalidade responsável por representar a liberdade em relação ao homem e ao mundo, a própria fonte absoluta. Já o mundo seria o todo, a potência da experiência que se apresenta como extensão do inoperável enquanto que, o homem apresenta-se como síntese dupla, ao mesmo tempo que se configura como aquilo que se unifica em Deus e no mundo, não sendo mais do que um de seus habitantes e um ser limitado em relação a Deus. Abre-se nessa perspectiva o fundamento da ação antropológica cujo efeito seria o de perceber a relação entre verdade e liberdade como um processo de finitude.
Nesse sentido, a interpretação foucaultiana de Kant está inscrita na tentativa de se desdobrar os limites dessa finitude a partir da problematização sobre a modernidade como idade do homem. Conforme aponta Foucault (2011), a maioria dos sistemas de pensamento que julgavam ter ultrapassado a sabedoria do grande chinês de Konninsberg não souberam, delimitar com acuidade o fato de que não se encontravam as voltas com novos problemas, mas simplesmente lidavam com as questões de filiação e de fidedignidade ao pensamento kantiano. Resta, compreender o olhar sobre a filosofia pelos critérios da intempestividade de Nietzsche. Uma empresa de coragem que ousa associar o filosofar a golpes de martelo em torno de problemas delicados sobre os quais nossa modernidade foi fundada. Se ao homem não lhe é facultado o direito de conhecer sobre sua natureza, a filosofia de Nietzsche nos mostrará, segundo argumenta Foucault (2011) que o homem não passa de uma invenção risível dentro do contexto dos grandes sistemas de enunciado, uma invenção que encontra- se em vias de desaparecimento como um rosto desenhado na orla do mar.
Referências
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
____. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
____. Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
____. Foucault. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V: ética sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, pp. 228-233.
KANT, Immanuel. Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.
Notas
1 Em muitas análises do pensamento foucaultiano são reconhecidas as influências de Kant em temas relacionados à morte do homem, a ontologia histórica de nós mesmos e a problemática sobre o apriori histórico. O próprio Foucault reconheceu, sob o pseudônimo de Maurice Florence a, é certamente na tradição crítica de Kant, e seria possível nomear sua obra História Crítica do Pensamento. Ver mais detalhes em: FOUCAULT (2014, p.228).
2 Embora tenhamos traduzido a palavra Gemüt como natureza cumpre ressaltar que podemos encontrar na língua alemã outros significados igualmente relevantes como alma, mente e até mesmo sensibilidade.
Rodrigo Diaz de Vivar y Soler – Doutorando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS, Brasil. Professor do Centro Universitário Estácio Santa Catarina e do UNIBAVE. E-mail: diazsoler@gmail.com
Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas (C. E. Jordão et. al)
JORDÃO, Carlos Eduardo; MACHADO JR., Rubens; VEDDA, Miguel (Orgs.). Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas. São Paulo: Editora Unesp, 2015. 472 p. Resenha de: REBELLO, Hélio; MIOTO, Júlio César. História v.36 Franca 2017. Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas (T)
No já extenso leque da difusão da obra de Walter Benjamin nas edições brasileiras, e de seus comentadores, especialmente os brasileiros, o livro que temos em mãos, de fato contribui para a assimilação cultural da obra. Por se tratar de uma coletânea, com 472 páginas contendo 34 artigos distribuídos em cinco seções, o livro oferece, além de diversidade temática, uma gama de perspectivas vindas de pesquisas realizadas em diversos países. A coletânea é sistematização de textos apresentados, em grande parte, em um evento que ocorreu na cidade de Buenos Aires, no ano de 2010, sobre a questão da memória, embora não esteja muito claro, na apresentação, quais foram os textos escritos nesse contexto. Traz textos mais domésticos de pós-graduandos, gente de iniciação científica, em treinamento, e textos de receptores consagrados.
Os artigos têm vários níveis de elaboração, mas esse fato não denota uma correspondência exata com a graduação acadêmica de cada um dos colaboradores. Alguns dos autores são consagrados como pesquisadores da obra de Benjamin no Brasil; outros, como por exemplo Edmurt Wizisla, diretor do Arquivo-Benjamin em Berlim, cujo texto mostra forte proximidade filológica com os manuscritos, dão a conhecer, entre nós brasileiros, um trabalho já consolidado. A mesma proximidade com os manuscritos tem o professor Bolle, que trabalha no Brasil há anos, dedicando-se ao projeto da obra das Passagens. Nesse sentido, há textos absolutamente originais, por conta do trabalho filológico experiente, e, por outro lado, textos com tratamento mais conhecido, mas não menos sério, dedicados a temas já bastante estudados.
Diante dessa diversidade, o leitor pode se beneficiar com uma leitura integral desta coletânea, graças ao caráter de peça acabada dos artigos. Naturalmente, este aproveitamento dependerá do grau de conhecimento do leitor com relação aos estudos benjaminianos. Com efeito, o leitor a ser beneficiado pela leitura da coletânea pode ser classificado em três amplos estratos, não necessariamente autoexcludentes: aquele que procura aprofundar-se no pensamento do Autor; o que procura conhecer novos temas da obra benjaminiana, que é extensíssima; e, por fim, aquele que visa reconhecer novos olhares sobre temas mais conhecidos.
Como a tônica da coletânea é sua bem-vinda heterogeneidade temática, autoral e de estilo, é interessante fornecer uma amostra concreta dos graus de aproveitamento da coletânea, o que propomos, com o intuito destacar as virtualidades do texto e sem respeitar a apresentação linear da coletânea.
O tema recorrente do fetiche da mercadoria é tratado em artigos centrais bem iluminadores, com ênfase na compreensão do modo capitalista de produção que lhe é correspondente, a fim de dar destaque aos registros históricos do século XIX feitos por Benjamin, os quais poderiam passar despercebidos para o leitor atual. Identificar esse e outros núcleos temáticos depende da percepção histórico-crítica, mesmo da inspiração, da compreensão das estruturas históricas baseadas no modo de produção e dos fatos históricos a partir dos quais a crônica é feita.
O método benjaminiano de citação é tratado, muitas vezes, conectado a essa percepção histórico-crítica. Por exemplo, em um dos últimos textos desta coletânea – textos que serão descritos individualmente adiante – fica claro o que seria “imagem dialética”, seu efeito desalienante e como ela está relacionada com a citação. Segundo tal autor, Oehler discorre sobre uma “quase identidade” entre a montagem de citações e a imagem dialética. Essa identificação tem um espírito bem exato, o leitor pode ser esclarecido por meio dela quanto ao “agora de cognoscibilidade” tematizado nas Passagens e em Sobre conceito de história. Da mesma forma, pode intuir sobre o que é o fragmento e a sua relação com a verdade para Benjamin, tema do autor desde a obra filosófica anterior. Sem nos estender sobre a tendência ao fragmentar na obra de Benjamin, o importante é a noção da humanidade redimida, que torna o passado inteiramente citável.
Essa amostra acerca de dois núcleos da coletânea, ou seja, as referências históricas de Benjamin e o método de citação benjaminiano, evidencia uma virtude do livro em apreço, embora tais núcleos sejam restritos e limitados a alguns artigos, eles têm um efeito irradiador sobre o conjunto.
De forma diversa desse reforço de questões irradiadoras da obra do Autor, foco da coletânea, alguns dos temas fogem à pesquisa benjaminiana mais estrita. Isso se deve ao que podemos chamar da assimilação cultural já concretizada, de modo que os conceitos de Benjamin, reconfigurados, servem a usos não habituais. Essa constatação se aplica mais aos últimos textos da coletânea, que são sobre cinema.
Há, ainda, o que podemos chamar de temas benjaminianos sobredeterminados, em razão de sua recorrência. Mas, mesmo nestes casos, a maior parte dos artigos apresenta algo novo ao leitor que se situa na fronteira entre o interessado e o especialista em Benjamin. Por exemplo, a imagem biográfica de um Walter Benjamin isolado se desfaz quando fica muito claro nos artigos centrais o reconhecimento que Benjamin teve dos seus pares, como ele compunha uma intelectualidade que recepcionava o que se produzia por pares numa Europa em que havia a oportunidade histórica do socialismo (veja a esse respeito os artigos sobre Benjamin e Adorno, Benjamin e Bloch, Benjamin e Lukács). Sobre Benjamin e Lukács, os artigos tratam do tema do conto de fadas, do problema da situação do romance, do tema da morte do narrador, que exigiam uma política. Estes artigos, por si só, mostram a inserção de Benjamin no debate internacional de comunistas na Europa. Igualmente, a crítica da noção de progresso na história de Ernst Bloch e de Benjamin é observada por um artigo – Bloch, com sua noção de “matéria da história”, determinou questões de filosofia da história, em uma peculiar física relativista da história. No artigo, o pensamento histórico de Ernst Bloch é relacionado aos conceitos de Benjamin, de modo que a rica interlocução dos dois autores é recuperada.
Essa amostragem procura dar ao leitor uma visão das virtualidades da coletânea, visto que uma apreciação dos 34 artigos seria excessiva para este espaço. No entanto, há um interesse informativo em se apresentar uma descrição sumária desses artigos distribuídos em cinco seções.
A primeira seção do livro se denomina “Das imagens da memória ao fetiche e suas fantasmagorias”, com seis artigos. O livro se abre com o texto de Gagnebin, que vê no Brasil um trauma da memória. Ela discute os conceitos de memória em Benjamin, a crítica ao historicismo, em relação aos traumas nacionais, evidenciando que, no Brasil, falta uma política da memória. O segundo artigo é, justamente, do diretor do Arquivo-Benjamin, Wizisla, que comenta o método de Benjamin associado às suas estratégias de publicação de um ensaio, “Um Instituto alemão de pesquisa livre” sobre o Instituto de Frankfurt. O terceiro é de um professor de Constança, Stiegler, cujo tema é o artigo “A pequena história da fotografia” e outros textos de Benjamin conexos. O quarto artigo é de Alambert, professor da USP, sobre a forma mercadoria da arte. O quinto artigo é de Grespan, também professor da USP, o qual vê em Benjamin um crítico do fetiche da mercadoria, faz uma análise instigante da visão de Benjamin acerca do modo capitalista no século XIX – sistema que é ainda o vigente, com isso destacando-se atualidade do texto de Benjamin (as considerações tecidas por Grespan atualizam a crítica de caráter marxista de Benjamin). O sexto artigo é de um pós-graduando da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Assis-SP, Dias Durães, sobre as Exposições Universais. As fantasmagorias (ou imagens) do século XIX são mostradas a partir da obra das Passagens, e se intui bem a opressão rente aos fetiches, o que também havia sido notado por Grespan, como pulsão de morte, pulsão para o inorgânico.
A segunda seção – “Passagens, Teoria da História e Revolução” – contém sete artigos. O primeiro artigo desta seção, ou seja, o sétimo da coletânea, é de autoria de Löwy, benjaminiano que dispensa apresentação e trata do tema do enfrentamento de classes em Paris no século XIX (barricadas, Haussmanização, Comuna de 1871). O oitavo artigo é de Bolle, já referido, e tem por brilhante tese que a categoria do hipertexto explica o plano da obra das Passagens. O artigo de Olgária Matos é sobre os interiores, as passagens e os pórticos, sobre a vontade de que a cidade fosse uma extensão confortável da vida privada, onirismo de uma sociedade que se sonha sem classes, que é a falsa representação que a sociedade burguesa capitalista faz de si mesma, expressão de sua falsa consciência. O décimo artigo, de Zimmer, professor em Girona, Espanha, compara as críticas ao progresso de Bloch e de Benjamin. O texto do organizador Jordão Machado compara muitos momentos da obra benjaminiana para associar montagem literária e tempo messiânico, levando o leitor a observar o contexto da inflação alemã pelos olhos de Benjamin. O décimo segundo artigo é de Chicote, de Buenos Aires, que compara os estilos de Benjamin e de Lukács, assim como observa a importância de História e Consciência de Classe para o marxismo ocidental. O décimo terceiro artigo é de uma professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), Pisani, que procura comparar o Marcuse tardio a Benjamin.
A terceira seção se intitula “Literatura, Música e Surrealismo” e traz seis artigos. O décimo quarto artigo, primeiro desta seção, tematiza algo muito interessante, a política de conto de fadas na Hungria, sob ordens de Lukács, e as diferenças entre Benjamin e Lukács quanto à função desse tipo de literatura para a infância em uma política socialista; o texto é de Gángó, um húngaro da Universidade de Budapeste. Tema semelhante ao do próximo artigo, de Vedda, de Buenos Aires, também organizador da coletânea, este mais focado em Benjamin, porém. Koval, também de Buenos Aires, trata da Teoria do Romance de Lukács e de sua recepção indireta por Benjamin. O décimo sétimo artigo, de dois professores de Buenos Aires, Orlante e Salinas, trata da clássica leitura de Benjamin da obra de Kafka. No sentido do significado brechtiano e benjaminiano da política da arte, o professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Bastos, defende a obra musical engajada de Eisler, colaborador de Brecht no teatro épico, em artigo brilhante, no qual ele discute a oposição entre a lógica imanente do material musical e o uso no teatro da música de vanguarda. O décimo nono artigo é de dois estudantes da Unesp de Assis, Azevedo e Franco, sobre o instantâneo do surrealismo na inteligência europeia segundo Benjamin.
O vigésimo artigo, que inicia a quarta seção da coletânea denominada “Melancolia, Brinquedo, Freud e Leituras”, com oito artigos, vem assinado por um docente da Universidade de Hildesheim, Alemanha, Tohlen, que trata da “negatividade” da arte considerada na teoria estética do ponto de vista da história natural em Adorno e em Benjamin, mostrando a influência de Benjamin em Adorno. Maria Rita Kehl é a próxima autora, e faz considerações sobre a depressão e melancolia nos diagnósticos contemporâneos, comparando o conceito de melancolia de Benjamin com a designação do diagnóstico de um tipo de mania por Freud. O artigo de número vinte e dois é do psicanalista Dionísio, professor na Unesp de Assis, que fala da pertinência do conceito de Benjamin de inconsciente ótico e da natureza do olhar e da escuta psicanalítica. O vigésimo terceiro artigo é de uma professora da Universidade de Buenos Aires, Castel, sobre a recepção de Freud por Benjamin, em um estudo detalhado das listas de leitura de Benjamin, assim como da apropriação de conceitos expressos da psicanálise, e também da crítica de Benjamin a Jung. O vigésimo quarto artigo, de outra professora de Buenos Aires, Belforte, trata da profunda questão da ética erótica no comentário e na crítica de Walter Benjamin ao romance As Afinidades Eletivas, de Goethe, em um artigo clássico da juventude de Benjamin, depois ela também escreve sobre a paixão de Benjamin por uma militante comunista e sobre como isso representou uma conversão existencial para Benjamin, manifesta no teor dos textos a partir de 1927. O vigésimo quinto artigo é sobre o modelo de reminiscência em Benjamin, da sua própria infância e sobre sua concepção do brinquedo e do brincar. O vigésimo sexto texto da coletânea é de um pós-doutorando da USP, Gonçalves, que tece consistente e ousada crítica à apropriação de Haroldo de Campos do conceito de tradução em Benjamin. O vigésimo sétimo é de autoria de três professoras de Faculdades de Educação do Estado de São Paulo, Barbosa (Unesp), Catani (USP) e Moraes (USP). Em um dos artigos mais longos, as autoras tecem um balanço, inclusive quantitativo – porém mais do ponto de vista do modo de apropriação -, da recepção e dos usos dos textos de Benjamin nas publicações sobre ensino e educação no Brasil.
O artigo de número vinte e oito, que inicia a quinta e última seção (composta por sete artigos) intitulada “Cinema, Alegorias e Imagens Urbanas”, escrito pelo consagrado crítico e professor de cinema da USP, Ismail Xavier, realiza leitura marcante acerca das alegorias do filme Metropolis, de Fritz Lang, um filme sempre clássico. É bem uma interpretação imanente do universo diegético de Metropolis, e, ao final do artigo, que é um dos mais longos da coletânea, a alegoria langiana é comparada à benjaminiana. Machado Jr., mais um organizador do livro, escreve o vigésimo nono artigo, sobre a experiência, mesmo marginal, de um tipo de cinema feito na década de 1970, no Brasil, que utilizava o Super-8 como instrumento audiovisual básico. É um tipo de cinema difícil de conhecer pela experiência marginal mesma que ele constituiu, mas no artigo há referências a filmes e a autores, assim como uma descrição da experiência, feita a partir de referenciais benjaminianos. O trigésimo artigo compara as visões de Benjamin e Kracauer sobre a situação do cinema na década de 1930 e sobre o que é próprio à sua natureza. O doutorando da Unesp, Sinaque Bez, autor do artigo, pretendeu realizar uma descrição breve, exemplar e histórica do cinema do terceiro mundo, observando as potencialidades descritas por estes autores na década de 1930. Uchôa, autor do trigésimo primeiro artigo, faz uma discussão entre Benjamin e Kracauer, do mesmo modo, mas com outro objetivo, trata-se da questão do ator no mundo de hoje. Zannato, no trigésimo segundo artigo, mostra as tensões políticas envolvidas nas tentativas de Paulo Emílio de exibir filmes soviéticos, na década de 1950, além de detalhar o trabalho deste cineasta, crítico, intelectual do desenvolvimento etc., ao longo de sua vida; o texto tem belo teor biográfico-histórico. O trigésimo terceiro artigo, de Almeida Leonel, já foi referido e trata da montagem, ou melhor, do conceito que tinha Chris Marker, cineasta francês, da montagem. O autor envolve o “agora de cognoscibilidade” à inteligibilidade histórica politizada que o seu cinema oferece, especialmente quanto aos eventos de 1968, na França. O último artigo é de uma docente da PUC-SP, Ana Amélia da Silva, sobre o filme-ensaio de Godard, Histoire (s) du cinema (1988-1998). Ela lança mão dos textos de Walter Benjamin para constituir um referencial filosófico e histórico que ajude a explicar o filme-ensaio, atendo-se às referências internas dele, mas com instrumental teórico dos frankfurtianos.
Realizado este cômputo, podemos dizer que, do ponto de vista do conjunto, o livro dividido em cinco seções possui delimitação mais ou menos artificial, visto que, para cada seção, pelo menos um artigo não apresenta clara vinculação com a unidade temática ou supomos poder se situar em outra seção. No entanto, essa incongruência chega a ser compreensível em uma coletânea tematicamente diversa, cujo conteúdo de cada artigo necessariamente extravasa os limites previstos em virtude da própria difusão conceitual da obra de Benjamin. Particularmente, a última seção, que é integrada por sete artigos sobre cinema, faz um uso mais livre dos textos de Benjamin.
Para uma história da recepção mundial da obra de Benjamin, o livro estaria inevitavelmente inserido no turbilhão de publicações da era do paper, mesmo que muitos dos seus autores, os quais fazem a pesquisa desde antes da era da internet e estão bem vivos, representem a recepção histórica nos diversos países e cederam texto à coletânea. Há, no conjunto, sobredeterminantes, quer dizer, reiteração temática, mas, pelo menos informativamente e formativamente, nenhum dos artigos deixa de valer a leitura. Não é o caso de que seriam os mais jovens recém-chegados simplesmente repetidores e de que os eruditos e exegetas mais experientes trariam a última palavra. Em suma, o livro-coletânea sintetiza o estado dinâmico e intenso dos estudos benjaminianos e ainda os promove e impulsiona. Além disso, como a maior parte dos autores é composta de brasileiros e brasileiras de diversas gerações, podemos reconhecer a edição como uma prova de que a recepção brasileira dos textos de Benjamin, iniciada mesmo antes de sua tradução para o português (PRESSLER, 2006), mantém uma tradição que permite aos acadêmicos benjaminianos brasileiros figurarem como interlocutores de seus congêneres estrangeiros, haja vista a comunidade multilíngue que o livro-coletânea em apreço reúne.
Referências
PRESSLER, G. K. Benjamin, Brasil: A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005: um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: Annablume, 2006. [ Links ]
Hélio Rebello CARDOSO JUNIOR. Professor Doutor – Prof. Adjunto de Filosofia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Av. Dom Antônio, 2100 – Parque Universitário, Assis – SP, 19806-900.
Júlio César Mioto – Professor Mestre – Mestrado em Filosofia. Universidade Estadual de Londrina, UEL, Brasil. Rodovia Celso Garcia Cid, Km 380, s/n – Campus Universitário, Londrina – PR, 86057-970.
What is history for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography | Arthur Alfaix Assis
What is history for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography, escrito pelo historiador Arthur Alfaix Assis, é fruto de seu trabalho de doutoramento na Universidade de Witten/Herdecke, na Alemanha. O autor por ele pesquisado, Johann Gustav Bernhard Droysen, um dos grandes nomes da historiografia alemã do século XIX, nasceu no dia 6 de julho de 1808, na pequena vila de Treptow, na Pomerânia, e faleceu em 1884, em Berlim. Criador da Escola Prussiana, estabeleceu referências metodológicas, teóricas e estruturais para a pesquisa em história. Em princípio, com algum respaldo na teoria hegeliana, posteriormente, diferenciando-se claramente desta, submetendo todo material das fontes a exames críticos e filológicos, no senso estrito dos termos. Dentre suas obras, destacam-se História de Alexandre, o Grande, publicada em 1833, que veio posteriormente a fazer parte do livro História do Helenismo, composto por dois volumes, tendo sido o primeiro deles publicado em 1836; História da Política Prussiana, composta por catorze volumes, publicados entre 1855 e 1886, e finalmente, Historik, livro em que apresenta os parâmetros e sistematização da pesquisa e do estudo históricos, e posteriormente, Grundriss der Historik, um resumo explicativo do trabalho anterior de imensa importância, no qual se expõem todos os níveis de procedimentos metodológicos da história enquanto disciplina e enquanto ciência, apresentando de maneira ordenada as diferentes formas de operação historiográfica, a saber: a heurística – Heuristik; a crítica das fontes – Kritik; a interpretação – Interpretation; e a exposição histórica – Topik ou Darstellung. Forma-se, assim, uma valiosa articulação entre metodologia e sistematização histórica, introduzindo no meio científico a ideia da função antropológica da história, excluindo definitivamente qualquer relação com aspectos teológicos. Leia Mais
Terra Negra: o Holocausto como história e advertência – SNYDER (RBH)
SNYDER, Timothy. Terra Negra: o Holocausto como história e advertência. Garschagen, Donaldson M.; Guerra, Renata. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 488p. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017.
O livro de Snyder (Black Earth no original) é mais um representante da vertente historiográfica que procura compreender o genocídio dos judeus por parte da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial por meio de uma visão cultural e de história das ideias, no limite de uma abordagem antropológica. A proposta é a de compreender o acontecido com base no mundo das ideias e mitologias dos próprios nazistas, daquilo que eles imaginavam estar fazendo, suas motivações e preconceitos.
Na sua avaliação, o mundo mental nazista estava intimamente ligado à ecologia e a uma visão radical do darwinismo social. As raças humanas estavam numa guerra total pela sobrevivência num mundo em que os recursos – especialmente, a terra, fonte dos alimentos – eram escassos. Quaisquer sentimentos ou solidariedade deviam ser esquecidos, pois a competição sem limites era uma lei da natureza e só os mais fortes e impiedosos sobreviveriam. Hitler, nesse sentido, teria rompido radicalmente com a tradição humanista que afirmava que os homens são diferentes dos animais e da natureza por serem capazes de imaginar e criar novas formas de associação além da concorrência e da disputa.
O darwinismo social, em suas várias formas, foi uma constante no pensamento político e social do século XIX, atingindo, por exemplo, os liberais e até mesmo alguns socialistas. O nazismo, contudo, o levou ao limite, pois a luta implacável contra os inimigos passou a ser vista como um fim em si mesmo, aquilo que dava sentido à vida. Sobreviver num mundo ecologicamente limitado seria para os fortes e apenas para eles.
Essa era a realidade histórica e natural, a qual teria sido escondida pelos judeus. Esses eram uma não-raça, incapaz de competir honesta e violentamente pela sobrevivência. Dessa forma, eles teriam trabalhado nas sombras para criar conceitos e perspectivas (o cristianismo, o humanismo, o socialismo etc.) que escondiam a realidade e enganavam os homens com a ilusão de que podiam se separar das duras leis naturais. Todos os princípios morais e éticos existentes serviriam apenas para impedir que os superiores dominassem os inferiores, como era devido. Eliminar os judeus significaria recolocar a humanidade dentro da ordem natural, o que seria o desígnio de Deus.
No contexto pós-1918, os fatos pareciam indicar a realidade da mitologia. Os alemães, a raça superior, só haviam sido derrotados por causa da força dos ideais humanistas e universalistas judeus. Num novo conflito, no qual os alemães novamente exerceriam seu direito de conquista dos outros, os judeus também deveriam ser exterminados, para garantir que a Alemanha vencesse e que as leis naturais voltassem a dominar a Terra. Sem os ideais do judaísmo, as Nações estariam livres para a guerra total de todos contra todos e, nessa luta, a vitória germânica seria inevitável.
A hipótese de Snyder é, com certeza, muito interessante, pois só entendendo o mundo mental nazista, seus preconceitos e imagens, é que podemos compreender o massacre sistemático de milhões de pessoas sem razões militares, econômicas ou de segurança que as explicassem.
O foco do autor no mundo mental e mitológico, contudo, o faz superestimar esses aspectos e congelá-los no tempo. A proposta de eliminar todos os judeus da face da Terra por motivos ecológicos ou metafísicos pode ter se consolidado e ter força explicativa, por exemplo, após 1939, quando a guerra e a conquista da Polônia e de parte da União Soviética amplificaram o “problema judeu” nas mentes nazistas. Para o período anterior, apesar do antissemitismo evidente, a perspectiva era de forçar a emigração dos judeus ou de excluí-los da vida alemã, e não de eliminá-los até o último homem.
Do mesmo modo, seu foco na mitologia e no discurso faz Snyder esquecer o mundo real por trás dele. O autor menciona, por exemplo, que o pensamento nazista era circular e tão fechado que não aceitava a hipótese de que a ciência poderia mudar o meio ambiente e fornecer alimentos a todos. Para ele, aceitar essa hipótese significaria admitir que haveria alternativas para a luta sem tréguas por terras aráveis e, portanto, ela seria descartada de imediato.
Isso não é automaticamente incorreto em linhas gerais. No entanto, não apenas o regime não era tão avesso aos avanços da ciência agronômica como Snyder sugere, como ele esquece que a questão ia muito além do abastecimento alimentar. O imperialismo alemão, desde o fim do século XIX, procurava não apenas fontes de alimentos, mas também as matérias-primas necessárias para manter seu capitalismo industrial. Uma revolução no campo poderia fornecer os alimentos para sustentar os alemães, mas não o ferro, o petróleo e outros produtos necessários para esse capitalismo. A Alemanha ocidental pós-1945 resolveu isso se incorporando ao sistema global montado pelos Estados Unidos.
Já no mundo de Hitler, apenas a invasão da União Soviética daria conta do problema, e a bandeira da sobrevivência alimentar (apesar da sua importância crucial, especialmente depois da trágica experiência do bloqueio naval britânico na Primeira Guerra Mundial) também foi, em boa medida, apenas isso, um discurso para sustentar interesses muito maiores. O mesmo se poderia dizer do mito bolchevique-judaico, que era visto como real, determinou políticas e engendrou massacres, mas que também era uma cobertura para os interesses imperialistas alemães no Leste europeu, os quais já existiam no século XIX e mesmo antes, quando o comunismo ainda não era uma questão. O foco no discursivo, no mental, nos impede de ter essa consciência de que o material e o ideológico se associam e se articulam.
Um ponto interessante no livro é o estudo da política de vários Estados do Leste europeu – como a Polônia – no período entre as duas guerras mundiais, o que é pouco conhecido no Brasil. Sua hipótese de que a Polônia poderia ter sido uma aliada de Hitler em nome do anticomunismo e do antissemitismo é pouco crível, dado que os poloneses eram alvo privilegiado do racismo nazista. Mesmo assim, sua exposição das facetas e dos meandros do relacionamento entre Varsóvia e Berlim é de muita utilidade para o leitor.
Outro aspecto relevante na obra é o destaque que dá à ausência do Estado como algo fundamental para sustentar ações genocidas ou de extrema violência por parte dos nazistas. Na Alemanha já haviam sido criados, na sua percepção, áreas sem Estado, onde o partido e as SS (Schutzstaffel) tinham carta branca para agir, como os campos de concentração. Do mesmo modo, privar os judeus alemães da sua cidadania, ou seja, da proteção do Estado, tinha sido um pré-requisito para acelerar a perseguição a eles.
No Leste europeu, isso teria ido além, com a destruição total de Estados e a criação de áreas onde as SS e o NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) podiam agir sem freios. Para tanto, teria sido fundamental a atuação prévia da União Soviética. Ao ocupar a Polônia e os países bálticos e destruir os seus Estados, isso teria facilitado a tarefa de Hitler e o próprio genocídio dos judeus.
A proposta – que o autor defende à exaustão, até cansar o leitor – de que a destruição de um Estado e a privação dos direitos de cidadania a seus habitantes facilitavam a adoção de políticas radicais é bastante lógica. Do mesmo modo, pode-se aceitar a ideia de que o terror estalinista facilitou a conquista e a submissão de boa parte do Leste europeu pela Alemanha. O que incomoda é a facilidade com que Snyder acaba vendo intenções explícitas onde, provavelmente, houve apenas contingências. Chega a afirmar (p.141) que, quando Hitler assinou o Pacto Germano-soviético, já tinha consciência plena de que os comunistas eram especialistas na destruição de Estados e que, anos depois, ele se aproveitaria daquele trabalho. De forma implícita ou explícita, Snyder acaba por atribuir à União Soviética um papel ativo e direto na formatação do Holocausto, o que é, no mínimo, questionável. Stalin cometeu inúmeros crimes e, de forma indireta, pode ter colaborado para o horror nazista, mas não da forma direta (e anacrônica) apresentada pelo autor.
Uma das novidades do presente livro frente a outros que seguem uma abordagem teórica semelhante é seu esforço em retirar, da experiência histórica, elementos que nos permitam refletir sobre o nosso momento. A visão de mundo de Hitler e do nazismo se tornou realidade num contexto específico, que não se repetirá, mas algo semelhante pode ocorrer e o livro é, em boa medida, uma advertência nesse sentido.
Para o autor, o mundo atual, globalizado, coloca a maioria das pessoas frente a contingências planetárias que elas não têm condições de compreender. Isso oferece o risco de elas aceitarem um diagnóstico simplista que explica o mundo com base em uma chave conspiratória, de desastre ecológico ou de outro tipo iminente. Num momento em que o populismo de direita está a se fortalecer com essas bandeiras, sua advertência se torna bastante atual.
Também muito relevante a sua advertência – dirigida essencialmente ao público norte-americano, mas que pode servir a todos – de que há uma falta de entendimento sobre a relação entre a autoridade do Estado e o assassinato em massa. Ao contrário da crença liberal, Snyder propõe – em sintonia com a proposta do livro – que é a ausência ou enfraquecimento do Estado que abre as portas para os massacres e a perda da liberdade, não o contrário. Um Estado sem freios é uma ditadura que tolhe liberdades, mas a ausência total do Estado é simplesmente barbárie.
Snyder indica, aliás, como a competição desenfreada do neoliberalismo se aproximaria do nazismo, sendo impressionantes as similaridades entre Hitler a Ayn Rand, uma das teóricas neoliberais: só a competição importa, e tudo o que a cerceia deve ser eliminado. Na minha visão, isso apenas indica a conexão entre nazismo e neoliberalismo dentro do campo da direita e sua valorização da competição e da hierarquia.
É possível pensar que esse caráter militante, de advertência moral, diminuiu o valor historiográfico do trabalho. Não é o caso, especialmente no mundo atual, no qual advertências como essas são mais do que bem-vindas. O livro tem problemas metodológicos e é tão focado nos aspectos mentais e mitológicos do nazismo que acaba por perder de vista o mundo material onde esses aspectos existiam. Mesmo assim, sua contribuição para a historiografia e a advertência moral que carrega fazem dele um livro que vale a pena ser lido.
João Fábio Bertonha – Universidade Estadual de Maringá (UEM). Maringá, PR, Brasil. E-mail: fabiobertonha@hotmail.com.
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Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória – HUYSSEN (AN)
HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Trad. Vera Ribeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014. Resenha de: MACHADO, Diego Finder. Imaginar o futuro em um mundo globalizante: paisagens transnacionais dos discursos do modernismo e das políticas da memória. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 371-379, dez. 2016.
Como imaginar futuros em um mundo cada vez menos confiante em relação às promessas de progresso de uma época anterior? As sociedades contemporâneas do Ocidente, em contraste com outras sociedades, têm manifestado um renovado interesse pelo passado e pelos seus vestígios. Frente ao que podemos considerar uma “crise de futuro”, o presente vem ocupando uma posição dominante em nossas experiências de tempo. Contudo, trata-se de um presente que procura, insistentemente, enraizar-se em um passado apropriado às suas ansiedades, em uma tentativa de barrar a efemeridade dos nossos dias. Neste contexto, ainda é possível imaginar futuros alternativos que não sejam apenas o futuro da memória?
O crítico literário alemão Andreas Huyssen, em seu último livro traduzido para o português, a coletânea de ensaios intitulada Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória, aproxima duas temáticas centrais em suas pesquisas: as consequências do modernismo na obra de alguns artistas contemporâneos e as políticas da memória, do esquecimento e dos direitos humanos. Estabelecendo trânsitos pelas fronteiras que demarcam essas temáticas, a afinidade entre os diferentes capítulos do livro é construída em torno da problematização da memória em contextos transnacionais. Para o autor: A afirmação mais geral deste livro é que tanto o discurso do modernismo quanto a política da memória se globalizaram, mas sem criar um modernismo global único ou uma cultura global da memória e dos direitos humanos (HUYSSEN, 2014, p. 12-13).
Para além das experiências históricas da Alemanha e dos Estados Unidos, que lhes são mais familiares, buscou interpretar conexões transnacionais que ultrapassam as geografias do Atlântico Norte, aproximando-se de geografias alternativas das paisagens de memórias traumáticas e de experimentações estéticas modernistas na América Latina, Ásia e África.
Diante da evidência contemporânea de um declínio do debate sobre o “pós-modernismo”, o autor chama atenção para o retorno dos discursos sobre a modernidade e o modernismo na arquitetura e nos estudos urbanos, assim como na literatura, nas artes plásticas, na música, nos estudos midiáticos, na antropologia e nos estudos pós-coloniais. Para ele, aquele debate foi “uma tentativa norte-americana de reivindicar a liderança cultural”, a partir dos anos de 1920, por isso marcado por um “provincianismo geográfico” (HUYSSEN, 2014, p. 11).
A primeira parte da obra é dedicada a interpretar geografias alternativas do modernismo em um mundo globalizante, colocando em discussão as maneiras como a cultura metropolitana de um modernismo clássico foi traduzida e apropriada criativamente em países colonizados e pós-coloniais na Ásia, África e América Latina, antes e após a Segunda Guerra Mundial. Um diálogo crítico com alguns artistas e seus experimentos estéticos é tramado: o argentino Guillermo Kuitca e seus experimentos cartográficos como um pintor do espaço; o sul-africano William Ketridge e a indiana Nalini Malani e os seus teatros de sombras como arte memorial; o vietnamita Pipo Nguyem-duy e sua série de fotografias de ruínas ecológicas da modernidade; e a colombiana Doris Salcedo com sua instalação artística que convida à reflexão sobre as continuidades entre colonialismo, racismo e imigração. Não deixa de lado outros artistas de diferentes nacionalidades, fazendo-nos compreender que a geografia do debate deve focar como o modernismo, nas artes visuais, é reiterado e reinterpretado.
Inspirado no antropólogo indiano Arjun Appadurai (2004), Huyssen procura analisar como a modernidade e o modernismo foram disseminados por fluxos culturais complexos que aproximaram as ideias de local e global em constante negociação. Para ele, é preciso escapar da crença inocente em uma cultura local autêntica que deveria ser preservada dos encantos homogeneizantes da globalização.
Como afirma, “[…] o binário global-local é tão homogeneizante quanto a suposta homogeneização cultural do global à qual se opõe” (HUYSSEN, 2014, p. 23). Esse olhar dualista, atado ao local, impede a compreensão transnacional das práticas culturais e o reconhecimento dos fluxos desiguais de traduções, transmissões e apropriações locais de um “modernismo sem entraves”.
Outra questão apontada é a necessidade de retomar, sob novos ângulos, o modelo superior e inferior pelo qual o espaço cultural do início do século XX foi hierarquicamente clivado entre cultura de elite e cultura de massa. Segundo o autor, este modelo, prematuramente descartado nos estudos norte-americanos sobre o pós- modernismo, ainda pode servir como paradigma para analisar modernismos alternativos e culturas globalizantes que assumiram formas distintas em diferentes momentos históricos. A reinscrição desta problemática nas discussões da modernidade cultural em contextos transnacionais pode estimular novos tipos de comparação que vão além das dicotomias clichês – tais como global versus local, colonial versus pós-colonial, moderno versus pós-moderno ou centro versus periferia –, recolocando em debate hierarquias e estratificações sociais que atravessam as culturas de acordo com as circunstâncias e as histórias locais. Além disto, repensar a relação superior-inferior hoje nos remete aos debates sobre os novos vínculos entre estética e política, bem como entre experiência e história.
A segunda parte do livro é dedicada à problematização das políticas de memória, de esquecimento e de direitos humanos na contemporaneidade, retomando, sob novos matizes, questões já apresentadas ao público brasileiro em Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia (HUYSSEN, 2000). Antes, como um entremeio que estabelece conexões entre modernismos e culturas de memória, Huyssen lança um debate instigante que se desloca entre a nostalgia contemporâneas das ruínas e as memórias traumáticas dos escombros da modernidade. Esta diferenciação entre ruína e escombro, que faz eco aos escritos do filósofo alemão Walter Benjamin (2012), nos convida a pensar sobre às diferentes maneiras como, em um presente globalizado, olhamos para a decadência dos vestígios do passado. Por um lado, há um olhar nostálgico que se aproxima do encantamento pitoresco dos românticos pelas ruínas, uma utopia às avessas que demonstra a saudade de um outro lugar localizado no passado. Segundo o autor, “[…] essa obsessão contemporânea pelas ruínas esconde a saudade de uma era anterior, que ainda não havia perdido o poder de imaginar outros futuros” (HUYSSEN, 2014, p. 91). Por outro, a nossa contemporaneidade se depara cotidianamente com os escombros de uma modernidade cruel, marcada por atrocidades que soterraram os futuros sonhados pelos vencidos da história. Como lembra, os bombardeios nunca pretenderam produzir ruínas, mas escombros. Porém, em uma época seduzida pelo passado, tais escombros, muitas vezes, acabam estetizados enquanto ruínas, alimentando um mercado da memória como entretenimento que banaliza e envolve em sentimentos nostálgicos as marcas presentes de um passado traumático. Este imaginário das ruínas é, como destaca o autor: Central para qualquer teoria da modernidade que queira ser mais que o triunfalismo do progresso e da democratização, ou a saudade de um poder passado de grandiosidade (HUYSSEN, 2014, p. 99).
Para além de um otimismo cego, podemos nos defrontar com o lado obscuro e destrutivo da modernidade visível nas ruínas, os desastres do passado que continuam a assombrar a nossa imaginação.
Estabelecendo um diálogo crítico com os estudos consagrados sobre a memória, especialmente com a obra dos franceses Maurice Halbwachs (2006) e Pierre Nora (1993), Huyssen destaca que tais estudos inseriram a memória primordialmente em contextos nacionais, bem como procuraram demarcar uma fronteira que colocava em lados opostos a história e a memória. Atualmente, o divisor história/ memória tem sido superado, reconhecendo a interdependência entre as maneiras de narrar o passado. Além do mais, tais estudos se mostram insuficientes em um momento no qual os discursos sobre a memória e a análise das histórias traumáticas tornaram-se transnacionais.
É preciso, segundo o autor, abandonar o conceito de memória coletiva, tal como uma memória mais ou menos estável de um grupo ou uma nação como ideal, em busca de memórias conflituosas. Para ele, “[…] a memória é sempre o passado presente, o passado comemorado e produzido no presente, que inclui, de forma invariável, pontos cegos e de evasão” (HUYSSEN, 2014, p. 181). A memória “nunca é neutra” e “[…] está sempre sujeita a interesses e usos funcionais específicos” (HUYSSEN, 2014, p. 181). Neste sentido, para além do conflito entre memórias coletivas e memórias individuais, ou entre memória e historiografia, seria importante analisar “[…] os conflitos entre campos de memórias rivais que tentam eliminar ou, pelo menos bloquear um ao outro” (HUYSSEN, 2014, p. 182).
Esta virada teórica e metodológica faria com que atentássemos às batalhas entre passados, travadas não apenas em contextos nacionais, como também em contextos transnacionais. Portanto, pensar em políticas da memória em um mundo globalizante está para além da circunscrição do que seria uma “memória cosmopolita”. É preciso compreender as assimetrias e competições travadas nas trajetórias transnacionais da memória.
Em um mundo obcecado pela memória, o esquecimento, o duplo inevitável da memória, é malvisto, considerado uma falha ou uma deficiência que deveríamos combater. Mesmo em excesso, a memória é positivada, visto ser considerada fundamental para a coesão social e como alicerce para identidades. Neste contexto, pouco se refletiu a respeito da importância de uma política do esquecimento que, para além do “dever da memória”, pusesse em pauta uma ética do esquecimento.
Em diálogo com o pensamento do filósofo francês Paul Ricoeur (2007), Huyssen busca interpretar situações em que uma política de esquecimento foi importante na construção de um discurso politicamente desejável e de uma esfera pública democrática: o esquecimento das mortes causadas pela guerrilha urbana na Argentina em prol de um consenso nacional em torno da figura vitimada do desaparecido e o esquecimento dos bombardeios de cidades alemãs durante a Segunda Guerra Mundial para o pleno reconhecimento do horror do Holocausto. Em ambos os exemplos, uma forma de esquecimento foi necessária para atender reivindicações culturais, jurídicas e simbólicas em consonância com as políticas nacionais de memória.
Ao propor a discussão sobre uma ética do esquecimento público, o autor se aventura em um tema difícil que, sem dúvida, consiste no ponto mais audacioso e inovador da obra. No entanto, apesar de insistir no caráter residual de como o tema aparece nos escritos de autores que, como Paul Ricoeur, privilegiaram o estudo da memória, não deixa muito clara uma proposta original para refletir sobre o que considera um “esquecimento voluntário”, um tipo de esquecimento que exigiria esforço e trabalho. Mesmo ao complexificar a questão, situando as estratégias de esquecimento num campo de termos e fenômenos tais como “[…] silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgaste, repressão” (HUYSSEN, 2014, p. 158), acaba não esclarecendo as diferenças entre estas estratégias.
Afinal, é possível dizer que algo silenciado ou reprimido foi de fato esquecido? Talvez, uma atenção maior às sutilezas de cada um destes termos poderia nos mostrar níveis intermediários entre a memória e o esquecimento, tal como já há alguns anos propôs Michael Pollak (1989) ao problematizar o silêncio não como uma forma de esquecimento, mas como uma “memória subterrânea” que, em disputas de memórias, resiste aos excessos das memórias oficiais.
A emergência à esfera pública de memórias traumáticas em busca pela reparação de injustiças cometidas no passado, coloca em questão as aproximações entre as políticas de memória e as políticas de direitos humanos. Na contemporaneidade, há uma sobredeterminação entre estes discursos. Contudo, como destaca o autor, não é raro que os debates sobre os direitos humanos permaneçam separados dos debates sobre a memória, sendo o discurso da memória dominante nas humanidades e o discurso dos direitos humanos nas ciências sociais. Se faz necessária a ligação dos estudos da memória aos direitos e à justiça, não somente em termos teóricos e discursivos, mas também em termos práticos. Por um lado, as políticas de memória precisam de uma dimensão normativa jurídica, que lhe dê sustentação na reivindicação de direitos de indivíduos e grupos. Por outro, os discursos sobre os direitos humanos, alimentados pelas memórias de violações de direitos, deixariam de pautar-se apenas em princípios abstratos, levando em consideração os contextos históricos, políticos e culturais. Entretanto, como afirma o autor, tal aproximação não é isenta de riscos, pois “[…] tanto o discurso dos direitos quanto o da memória são alvos fáceis de abuso, como véu político para encobrir interesses particulares” (HUYSSEN, 2014, p. 201).
Um campo onde as aproximações entre direitos humanos e memórias têm emergido de maneira mais intensa é o campo das reivindicações pelos direitos culturais de populações indígenas ou descendentes de escravizados na América Latina, no Canadá e na Austrália, bem como os direitos civis e sociais nas novas formas de imigração e diáspora. Essa dimensão dos direitos humanos: Reivindica os direitos de grupos culturais dentro de nações soberanas, mas entra em conflito com a ideia tradicional dos direitos humanos como direitos dos indivíduos, e também com um entendimento homogêneo da nacionalidade (HUYSSEN, 2014, p. 206).
O movimento pelos direitos culturais, movimento que desestabiliza as ideias de identidade nacional, tem dado ênfase na diversidade cultural em um mundo cada vez mais interligado, aderindo, fundamentalmente, à política de identidade grupal. Neste debate, as ideias de global e local entram em conflito, em reações contra a globalização e a temível possibilidade de uma homogeneização cultural. Novamente o autor traz à tona uma crítica a concepções que imaginam uma suposta autenticidade intocada das culturas locais, o que gera conflitos quando grupos culturais diferentes entram em contato. Para além de uma compensação identitária, “[…] os direitos culturais devem preservar a prerrogativa de que o indivíduo nascido numa dada cultura possa deixá-la e escolher outra” (HUYSSEN, 2014, p. 209).
Embora não circunscrita no interior dos limites do campo da História, a obra de Andreas Huyssen tem sido fundamental para pensar a prática historiadora, especialmente em relação à História do Tempo Presente. As análises elaboradas pelo autor nos convidam a pensar, a partir da problematização das políticas da memória e dos modernismos em um mundo globalizante, as imbricações entre temporalidades e espacialidades no presente vivido. Como um crítico da cultura, este autor propõe uma reflexão sobre as maneiras como no presente se articulam passado e futuro, global e local, alertando para a importância da imaginação de futuros alternativos. Não se trata da nostalgia de uma crença inocente nas promessas de progresso atualmente desacreditadas, mas uma incitação a pensarmos sobre as maneiras como futuros possíveis, desamarrados de um peso asfixiante do passado, foram e continuam sendo imaginados.
A experiência histórica brasileira, embora brevemente mencionada em alguns dos seus ensaios, praticamente está ausente da cartografia de geografias alternativas analisada e interpretada pelo autor. O Brasil, ao contrário da Argentina, não é, nesta obra, um território privilegiado na compreensão das políticas de memória e dos modernismos na América Latina. Apesar disso, a historiografia brasileira da última década tem se valido de conceitos e teorias mobilizadas pelo autor em seus trabalhos, especialmente a noção de “cultura da memória”. Em diálogo com autores do campo da História, como Reinhart Koselleck (2006) e François Hartog (2013), a obra de Andreas Huyssen tem sido apropriada pelos historiadores interessados em pensar o tempo não apenas como um instrumento taxionômico, pelo qual os acontecimentos de um passado são medidos e circunscritos, mas o tempo como algo vivido e experimentado em sociedade. Na atualidade de nosso país, experiências diversas de tempo são friccionadas, colocando lado a lado, por exemplo, os traumas do período da nossa ditatura civil-militar e as lutas pelo reconhecimento de direitos culturais negados a minorias.
Neste sentido, a leitura de Culturas do passado-presente pode ser um interessante convite a novos olhares para a nossa própria história, a um olhar crítico para um tempo presente demasiadamente encantado pelo passado e temeroso por um porvir que se mostra pouco promissor.
Referências
APPADURAI, Arjun. Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias. Lisboa: Teorema, 2004.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas v. 1).
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014. (Coleção ArteFíssil).
Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007.
Diego Finder Machado – Doutorando em História na História da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética – BARROS (Ph)
BARROS, Roberto. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética. Campinas: Editora Phi, 2016. Resenha de: MACHADO, Bruno Martins. Philósophos, Goiânia, v. 21, n. 2, p.351-359, jul./dez., 2016.
Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética, livro escrito pelo professor Roberto de Almeida Pereira de Barros da Universidade Federal do Pará (UFPA), publicado pela Editora Phi em 2016, é resultado de um rigoroso trabalho interpretativo.
Já na apresentação é possível vislumbrar essa situação, pois o professor Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) destaca o nível de aprofundamento da pesquisa que o leitor terá em mãos. Ele ressalta que o trabalho de Roberto Barros alçou um desenvolvimento continuado desde as investigações na graduação, passando pelo mestrado, pelo doutorado e chegando ao seu formato atual, balizado por pesquisas recentes conduzidas na UFPA e em importantes centros da Alemanha.
Composto por uma apresentação, uma introdução, quatro capítulos (I- “A perspectiva trágica”; II- “Filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte”; III- “A fala poética em Assim falava Zaratustra”; IV- “O além-do-homem enquanto ideal estético”) aos quais se seguem as considerações finais, o livro tem o curso de suas divisões sustentado por duas linhas fundamentais. Elas foram extraídas do modo singular como Nietzsche, valendo-se de uma “compreensão valorativa inerente ao pensar” (p.18), empenhou seu “esforço filosófico” (p.18) para destacar o papel da “arte enquanto manifestação vital e antídoto (Heilmittel) contra o desafio apavorante do existir” (p.19).
A primeira linha gira em torno da concepção e consequências colocadas pelo conceito de além-do-homem. A escolha do conceito justifica-se pela sua centralidade tanto no modo como foi apresentado em Assim falava Zaratustra1, quanto na maneira como tomou forma no desenvolvimento da teoria nietzscheana. Para Roberto Barros, o conceito de além-do-homem exerce a função de “princípio atenuante do peso que a percepção e aceitação dos outros ensinamentos [de Zaratustra] trazem consigo” (p.18). No pensamento nietzscheano, a sua função geraria condições para que a gravidade trágica fosse incorporada à existência como uma perspectiva possível, ou seja, o conceito de além-do-homem abriria a possibilidade para que o peso da condição de verdade do conhecimento fosse transformando em um saber sobre a vida, abrindo as portas para uma “alegre ciência” (p.18).
Tais contornos proviriam de um continuado processo de maturação de pensamentos já expostos em O nascimento.da tragédia2. Nesse sentido, emblemáticas são as noções de dionisíaco, arte, tragédia, inspiração, verdade, conhecimento, função da história, vida, ciência. Concebendo, assim, uma espécie de dinamismo conceitual, é possível visualizar os traços que fomentam a segunda linha. Os aspectos extraídos da concepção de arte trágica defendida por Nietzsche em O nascimento seriam ressignificados em Humano, demasiado humano3, chegariam ao ápice em Zaratustra. Livro, este último, em que a arte se liga tanto à composição conceitual, quanto ao formato da obra, resultando em características específicas que lançam a filosofia nietzscheana para além da concepção de neutralidade do conhecimento típica dos modernos. A consequência extraída desse movimento aponta para o fato de que alguns problemas atribuídos à filosofia de Nietzsche, a exemplo de uma suposta falta de coerência lógico e semântica, poderiam ser resolvidos caso se observasse como a arte adquiriu uma posição de destaque no pensamento nietzscheano de maturidade.
Após esse primeiro panorama, proposto a partir das duas linhas citadas acima, é possível enunciar a ligação dos conceitos e das obras de acordo como foi apresentada pelo próprio Roberto Barros, certamente como umas das hipóteses centrais de seu livro: “ que se pressuponha o fato de que o anúncio do ensinamento do além-do-homem no prólogo de Assim falava Zaratustra e antecedendo o pensamento do eterno retorno, possa ser compreendido segundo os princípios utilizados por Nietzsche em seu primeiro livro para descrever os aspectos formadores da tragédia. Desse modo, o além-do-homem poderia ser entendido como ensinamento preparatório ao anúncio da visão dionisíaca do mundo implícita no ensinamento do eterno retorno. Isso pressuposto, o ensinamento do além-do-homem pode ser retomado como a bela imagem apolínea, posta previamente como forma de consolo e meio de suportar o pensamento dionisíaco do eterno retorno do mesmo” (p.136).
Passando a uma apresentação mais direta dos capítulos do livro, no primeiro, “A perspectiva trágica”, o autor evidencia que, ao escrever O nascimento, Nietzsche manteve em seu horizonte a intenção de expor aos seus contemporâneos uma “nova compreensão do verdadeiro conteúdo do sofrimento e da arte trágica dos gregos” (p.36). Seu propósito de mostrar que a compreensão da existência, com todas as suas possíveis desventuras e sofrimentos, poderia ser transfigurada em um “caráter estético afirmativo” (p.36), consistiria no sentido mais proeminente da arte trágica grega. Mas tal leitura só poderia ser efetivada desde que se olhasse para a proveniência dessa construção artística. O resultado foi a concepção da relação entre Apolo e Dionísio.
A interpretação dada por Roberto Barros para a leitura nietzscheana dos impulsos apolíneos e dionisíacos estrutura- se sobre uma percepção singular que servirá de lastro para os outros capítulos. Barros insere Nietzsche em uma tradição interpretativa que busca entender a arte grega “a partir de uma ‘interpretação’ naturalista” (p. 27). Um movimento que tem como representantes Winckelmann, Lessing, Herder, Goethe, Schiller e Hölderlin. Em todos eles, seria possível observar a tendência de “identificar uma forma natural de manifestação artística” (p.28). Considerando este aspecto, é possível entender um outro elemento que aumentaria a distância entre Nietzsche e os filólogos de sua época. Enquanto os últimos buscavam interpretar a arte grega como “uma mera forma de expressão artística” (p.32), Nietzsche considerava a arte grega como “manifestação dos impulsos artísticos naturais, procedentes da vontade, que, atuam no sentido de criar modos estéticos de representação do mundo, enquanto forma de justificação do sofrimento inerente à existência” (p.32).
Barros assinala que O nascimento atacou um problema não só dos filólogos, mas também de toda cultura de uma época: o massivo distanciamento da arte em relação aos problemas da existência. Tal diagnóstico, gerado pela excessiva “racionalização e moralização do sentido original da arte” (p. 44) decorreria, de acordo com Nietzsche, do desprezo pelas forças dionisíacas.
O dionisíaco seria um “impulso natural relacionado à inconsciência, ao esquecimento de si, à embriaguez e ao orgiástico” (p.41). Uma força oposta à apolínea que, por sua vez, destaca-se pelo transbordamento de consciência, edificando- se sobre o princípio de individuação. Nesses termos é importante identificar a base sobre a qual Roberto Barros identifica a elaboração de O nascimento: o livro seria a análise da tragédia a partir da “manifestação natural dos instintos, responsáveis por estados fisiopsicológicos, que atuam na superação da percepção direta da verdade da existência” (p.45). Também o ocaso da tragédia é lido por Barros como produto desmedido de um agente natural: o socratismo estético. Este empurra o homem para busca por clareza e moderação (aspirações apolíneas) através do emprego da racionalidade. Apropriando-se de todas as formas de conhecimento, através de uma suposta ideia de verdade, o socratismo torna-se a força hegemônica, destitui o dionisíaco. No lugar do desmedido, do insconsciente é instaurada a tirania da ciência com seus pressupostos de verdade alcançados a partir dos saberes conscientes. Ainda no primeiro capítulo, verifica-se o propósito do autor em mostrar conteúdos que denotam como as análises de Nietzsche já se erguiam sobre especulações extraídas da “relação entre saber e vida” (p.64).
No segundo capítulo, Barros passa pelas obras intermediárias de Nietzsche, seu foco é mostrar que a noção de arte adotada por Nietzsche em O nascimento sofreu um grande ajuste. Roberto indica a mudança como prenúncio à ideia da transvaloração dos valores, como se a nova mirada filosófica fomentasse uma nova concepção de arte. Tal mudança se iniciaria a partir de Humano, quando Nietzsche toma Wagner e Schopenhauer como inimigos declarados, pois eles representariam os “efeitos da percepção dos perigos da hegemonia da metafísica e da religião cristã oposta ao dionisíaco” (p. 67). Nesse capítulo, o dionisíaco é apontado como: (i) modo de Nietzsche avançar contra as categorias de valor da tradição metafísica e cristã e (ii) forma de embelezamento artístico do viver. Desse modo, Roberto pretende mostrar que o dinonisíaco não sucumbe no chamado período intermediário da filosofia nietzscheana. Pelo contrário, ele persiste, passando por uma reconfiguração que se apoiaria na ressignificação da noção de arte, efetivada sobre uma também nova mirada da concepção de ciência.
Os capítulos terceiro e quarto articulam uma leitura em conjunto do pensamento de Nietzsche, não como um corpo sistemático, mas como um agrupamento de construções conceituais fluidas, que transmutam através da obra, e ressignificam em virtude da busca de uma forma possível de afirmar e elevar a vida.
Fundamental nesse percurso é a forma como Barros explora as noções de eterno retorno do mesmo, grande saúde, morte de deus, transvaloração dos valores, além-do-homem, dionisíaco e arte. O eterno retorno do mesmo, o pensamento mais abissal de Zaratustra, já é anunciado desde A gaia ciência, em último grau, o pensamento do eterno retorno manifesta “uma pluralidade de contextualizações possíveis, que se desdobram em pretensões científicas, morais estéticas, cosmológicas” (p.103). Também denota uma experiência própria ao âmbito individual que se traduz psicofisiologicamente como afirmação ou negação da existência.
Frente ao eterno retorno, a grande saúde se mostra como “a capacidade de suportar os perigos e sofrimentos” (p.111) que a existência coloca ao homem e, mais ainda, o desejo de enfrentar tais condições para poder conseguir criar algo afirmativo. A morte de deus pode ser descrita como a face do niilismo que liberta o homem de seu apequenamento na moral, ela impulsiona o indivíduo para uma busca por superação. Esse o faz desde que consiga transvalorar os valores. Justamente aqui incide o alcance do conceito de além-do-homem, este é o símbolo da necessidade humana de superar a si mesmo, o termo estético com o qual o “ensinamento do eterno retorno pode ser interpretado a partir de sua significação afirmativa para a existência humana” (p.114). Sob tal configuração, o dionisíaco emerge como indicativo da crise dos fundamentos da tradição filosófico-científica e da religião – “ele é o ato decisivo de retorno da humanidade a si própria e que no autor faz carne e gênio” (p.114). A arte liga-se ao dionisíaco através da “postura heróica” (p.180) com a qual o homem entende a existência em sua tragicidade, empurrando-o em uma viagem épica movida pelo “desejo de conhecer com suas representações interpretativas” (p.180) as possíveis, novas e positivas valorizações da vida e da existência (cf. 180).
Destaca-se também a centralidade da tese sobre o renascimento do pensamento trágico na obra de Nietzsche.
Barros mostra como tal concepção ganha importantes traços a partir de A gaia ciência, a tragicidade inunda a filosofia com o ímpeto dionisíaco. Ela se traduz na aceitação incondicional da vida que é levada por Nietzsche a sua mais alta expressão através da escrita de Assim falava Zaratustra.
Uma obra onde o filósofo reconcilia seu pensamento com a natureza, a vida, o conhecimento, a arte e a afirmação de si.
O livro escrito por Roberto Barros é um trabalho robusto, no texto, obras e conceitos são articulados com coerência e originalidade mostrando um duplo caráter do pensamento nietzscheano – seu lado crítico e seu lado afirmativo.
Tudo isso realizado através de um claro fio condutor mantido do início ao fim da obra, a saber, a noção de além-do-homem. Enquanto trabalho interpretativo, restanos reafirmar o elogio escrito por Oswaldo Giacoia Júnior, para quem “o livro de Roberto A. P. Barros é um excelente guia de viagem para um fascinante percurso pela obra de um dos espíritos mais vigorosos de nossa tradição, tanto no rebelde ímpeto crítico-destrutivo quanto na extraordinária potência de criação e beleza”.
Notas
1 Doravante Zaratustra
2 Doravante O nascimento.
3 Doravante Humano.
Referências
BARROS, Roberto de A. P. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética.Campinas: Editora Phi, 2016, pp.198.
Bruno Martins Machado – Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju, SE, Brasil. E-mail: br.ma.machado@gmail.com
Historia. Las últimas cosas antes de las últimas – KRACAUER (CCS)
KRACAUER, Siegfried. Historia. Las últimas cosas antes de las últimas. Buenos Aires: Las Cuarenta. 2010. Resenha de: GURPEGUI VIDAL, F. Javier. Una epistemología del fragmento. El pensamiento histórico de S. Kracauer. Con-Ciencia Social – Anuario de Didáctica de la Geografía, la Historia y las Ciencias Sociales, Salamanca, n.20, p.165-170, 2016.
Con-Ciencia Social – Anuario de Didáctica de la Geografía/ la Historia y las Ciencias Sociales (CCS)
En esta publicación, con frecuencia hemos trabajado con los autores de la “Escuela de Fráncfort”, pero nunca nos detuvimos en Siegfried Kracauer (Fráncfort, 1889 – New York, 1966), mentor y amigo personal de Adorno, personaje marginal y compañero de viaje, recurrente interlocutor crítico de los planteamientos del grupo. Durante mucho tiempo, en el entorno español su figura estuvo casi exclusivamente vinculada al cine, a raíz de la publicación de dos estudios relativamente tardíos: el relativo al expresionismo alemán, De Caligari a Hitler (1947), así como su Teoría del Cine. La redención de la realidad física (1960). Sin embargo, su obra significativa arranca a comienzos de los veinte, cuando publica en el diario liberal Frankfurter Zeitung una serie de crónicas culturales y sociológicas (1921-30), de donde surgen libros como La novela policial. Un tratado filosófico (1925), Los empleados (1930) o la recopilación El ornamento de la masa (1963). Tras escribir en París su “biografía social” Jacques Offenbach o el secreto del Segundo Imperio (1937), se traslada a Estados Unidos. Todo ello aparte de dos novelas y otros trabajos académicos.
Estas obras han sido traducidas, con un cierto desorden, entre España y Latinoamérica, al castellano. A ellas habría que añadir la publicación argentina de un texto póstumo, Historia. Las últimas cosas antes de las últimas (Kracauer, 2010), a partir de la edición preparada por Paul Oskar Kristeller en 1969, que partía de unos apuntes fragmentarios, especialmente dispersos en tres de los ocho capítulos del libro. Y precisamente en la reflexión histórica de Kracauer se centra una publicación reciente, Historia y teoría crítica.
Lectura de Siegfried Kracauer (Díaz, 2015), que recoge los trabajos presentados en el seminario del mismo título, mantenido en 2013 en la sede valenciana de la Menéndez Pelayo. Se trata del segundo estudio editado en España sobre el escritor, después de la biografía de Enzo Traverso Siegfried Kracauer, itinerario de un intelectual nómada (1998). Como suele ocurrir en los libros de autoría colectiva, sus capítulos ostentan un desigual calado, produciéndose frecuentes solapamientos, y, sin embargo, constituye una llave valiosa para acercarse al universo histórico del autor.
En un autor como Kracauer, que concede gran importancia cognitiva al fragmento y al detalle, resumir sistemáticamente los planteamientos de Historia (2010) constituye una especie de traición, pero resulta inevitable para aprehender su enfoque general. El primer eje expositivo de Kracauer se corresponde con los ámbitos del conocimiento.
Sitúa en el siglo XIX el nacimiento de la historia moderna, en un movimiento de emancipación respecto a las especulaciones filosófico- teológicas sobre el pasado. El relato tradicional debía sustituirse por un discurso objetivamente científico, aun admitiendo las especificidades del conocimiento histórico.
Mientras las leyes científicas se basan en el establecimiento de predicciones, las ciencias de la conducta aspiran a la comprensión de los fenómenos humanos y sociales. Ahora bien, aun así, la historia moderna no deja de atribuir a los hechos históricos rasgos de los acontecimientos naturales. Incurren los historiadores así en dos errores: identificar “historia” y “naturaleza” y confiar en el tiempo como continuo homogéneo. Pero la historia se revela impermeable a las leyes longitudinales, de manera que el historiador se ve abocado a explorar las cualidades específicas de los hechos.
Al hilo de esta explicación, la obra resalta los paralelismos entre historia y fotografía (asimilando a esta última también otro medio, el cine). Para Kracauer, la realidad de la cámara posee los rasgos distintivos del “mundo de la vida”, ya que está destinada a retratar el flujo heterogéneo de la vida. Los planteamientos del autor, relativos tanto a la historia como a la teoría del cine comparten la misma perspectiva epistemológica.
Un segundo eje se corresponde con la dialéctica entre pasado y presente. Se considera al historiador un hijo exclusivo de su tiempo, de manera que la verdad histórica se convierte en una mera variable del interés del presente. Sin embargo, el contexto histórico y social del historiador no es un todo autosuficiente, sino un flujo frágil y heterogéneo.
Pensar que todas las evidencias históricas van a cuadrar en un sistema cerrado del presente se corresponde con el sueño imposible de una razón liberada. Ni el presente es la llave que abre las puertas del pasado, ni la perspectiva del historiador se agota en términos de influencias contemporáneas. El historiador está condenado, por consiguiente, a reconocer el carácter dinámico de su “yo”, alterando la disposición de su mente para llegar al núcleo de las cosas, sin por ello desprenderse de todas las categorías de origen. La realidad histórica se convierte así en un palimpsesto, que superpone las capas del pasado y del presente. Lo cual nos lleva a una concepción no homogénea del mundo y del tiempo histórico.
El mundo histórico tiene una estructura heterogénea porque lo macro y lo micro, lo general y lo particular, no son categorías mecánicamente reconciliables. Cuanta más generalidad se alcanza, se incrementa la inteligibilidad, pero disminuye la densidad de la realidad histórica. Moverse entre los dos niveles implica el reconocimiento de dos principios. Según la ley de perspectiva, el avance hacia lo macro conlleva la ocultación o priorización de circunstancias concretas.
Según la ley de los niveles, la heterogeneidad de universo histórico siempre impedirá la fusión completa entre la perspectiva del pájaro y de la mosca.
La fascinación de las fechas, propia del tiempo cronológico, ayuda a dar sentido a los acontecimientos, provocando además un hechizo de homogeneidad que desencadena la tentación de concebir el pasado histórico como un “todo”, vinculado muchas veces a la idea de progreso. Así se configura el pretencioso fantasma de esa historia universal, que cuestiona fuertemente la obra. Sin embargo, cada secuencia de acontecimientos tiene su propia agenda, según su pertenencia a diferentes “áreas” (arte, literatura, política, economía…), porque cada hecho es significativo en función de una magnitud. El concepto de periodo histórico tampoco será homogéneo, sino que será el punto de encuentro para cruces casuales, algo así como la sala de espera de una estación.
La historia, como la fotografía, ocupa un espacio provisional, situado entre la ciencia y la mera opinión. Si la ciencia no sirve como modelo para la historia, tampoco la filosofía, discurso que apunta al estudio de las “cosas últimas”, desde una perspectiva general y aspirando a una validez objetiva.
El radicalismo y la rigidez de las ideas filosóficas no se adecuan bien al conocimiento histórico. La historia constituye un pensamiento de antesala, situado entre el “mundo de la vida” y la filosofía, alimentado de la heterogeneidad inherente al mundo intelectual, pues ni el histórico ni el intelectual son universos homogéneos.
Este resumen no hace justicia a la obra, porque es fragmentaria por inacabada, pero también por situar en el centro de su reflexión el fragmento que se resiste a pertenecer a una totalidad. No en vano en uno de los trabajos de Historia y teoría crítica (2015, pp. 101-21), Miguel Ángel Cabrera señala que la de Kracauer es una lectura convencional de teoría de la historia. Quizá por ello Cabrera lo instrumentaliza al servicio de su propio discurso, sin respetar su entidad.
Sin embargo, lo interesante del libro del escritor alemán reside en los intersticios que deja entrever la estructura, quizá excesivamente académica, de algunos capítulos. ¿De qué nos habla esta “tierra de nadie”?
Por lo pronto, aspectos de una corriente de pensamiento considerada “central” como la Escuela de Fráncfort pueden resultar más claros a la luz de un personaje marginal como Kracauer.
Es significativo en este sentido el vínculo teórico con otro marginal, como Walter Benjamin, cuestión estudiada por Carlos Marzán (ob. cit., pp. 167-87), especialmente en relación con la famosa introducción a El origen del Drama Barroco alemán (1925) y las Tesis de Filosofía de la Historia (1940). Ambos autores parten de un diálogo con Husserl, y ambos rechazan el historicismo, el cientifismo y la especulación filosófica en historia, que les conduce a un giro epistemológico donde lo concreto y fragmentario viene a representar el testimonio de las víctimas de la historia. Otro colaborador del libro, Sergio Sevilla (ob. cit., pp. 57-59), insiste en la importancia para Kracauer de la mencionada introducción al Drama Barroco, “Algunas cuestiones preliminares de crítica del conocimiento”, según la cual el conocimiento se relacionaría con las ciencias positivas, y la verdad se manifiesta otorgando un sentido a los conceptos, con los que operan las ciencias.
El conocimiento es la posesión conceptual de fenómenos, mientras que la verdad, interpretación y símbolo.
Prosigue su discurso Marzán, ahondando en las diferencias entre los dos autores: mientras el benjaminiano “ángel de la historia” reivindica un anhelo de justicia que desquicia el presente, inclinándolo hacia una acción revolucionaria, el judío errante de Kracauer es identificado con un melancólico “ángel de la duda” (en palabras del cuentista Andersen), más compasivo y sereno que realmente reivindicativo. Con todo, nosotros entendemos que no hay que sacar excesiva punta teórica a estas alegorías de carácter ensayístico, frecuentes en estos autores, y que el “aire de familia” entre los dos es evidente. Aunque Kracauer plantea su reflexión histórica en lo epistemológico, tiene consecuencias éticas y políticas evidentes.
Su llamada a que ningún hecho histórico se pierda por criterios macro es una forma de piedad por los muertos (2010, pp. 141-171).
Dos trabajos clarifican la relación de Kracauer con el grueso de la Escuela de Fráncfort.
Para Hernández i Dobon (Díaz, 2015, pp. 147-65), hacia 1931, el autor ejerce sobre el “Instituto de Investigación Social” una intensa influencia dialógica, que activa un juego de mutuas influencias, que se cruzan a menudo con el pie cambiado. Lleva algún tiempo trabajando sobre las manifestaciones culturales como exponentes de las tendencias inconscientes de la sociedad. La idea de ratio, acuñada en su estudio sobre el relato policial, constituye un importante antecedente de la razón instrumental, mientras que sus trabajos sobre los empleados contradicen las profecías de Marx sobre la progresiva dualización de las clases sociales, en una perspectiva dialéctica sobre lo social característica del grupo. Cuando llega a Estados Unidos, Kracauer ha profundizado en la necesidad de estudios empíricos, justamente cuando Adorno se encuentra de vuelta de ellos. En Historia Kracauer parece dirigirse hacia el horizonte de una “empiria sin teoría” (valga la expresión figurada, no literal, del mismo Hernández), en un intento de pensar a través de las cosas, no por encima de ellas (2010, p. 220).
En este contexto, añadimos nosotros, es imposible ignorar las consecuencias de la famosa “disputa del positivismo” en la sociología alemana, que a lo largo precisamente de los años sesenta estaba enfrentando a autores como Habermas o Adorno, representantes de la teoría crítica de la sociedad, con otros como Karl Popper o Hans Albert, identificables con el llamado “racionalismo crítico”. La desconfianza respecto a lo empírico (vinculado a la razón instrumental) que se derivó de estas posturas ha teñido medio siglo de pensamiento de la izquierda, de modo que lo teórico y abstracto se ha consolidado como la forma por excelencia del pensamiento crítico, capaz de desnaturalizar las prácticas sociales, mientras que la empiria es un instrumento naturalizador del poder. De alguna forma, seguimos con el “pie cambiado” respecto a Kracauer.
Pero sigamos. Para Jiménez Redondo (ob.cit., pp. 123-46) las discusiones con Adorno explicitan una cuestión medular para la Escuela.
En su artículo del Frankfurter “El ornamento de la masa” (1928), Kracauer explica cómo el pensamiento abstracto procede a desmitologizar la naturaleza, pero a su vez no puede sobrepasar los límites que él mismo se ha impuesto, al configurarse al servicio de un sistema económico que lo limita. Dicho de otra forma, al nacer bajo una lógica de dominio capitalista, el pensamiento abstracto paraliza el alcance de la razón, y se acaba convirtiendo a su vez en una mitología.
Años más tarde, en su discurso radiofónico de 1964, retratando a Kracauer, Adorno sería plenamente consciente de la deuda de la Dialéctica de la Ilustración (1944) con estas ideas.
En la paradójica relación que ambos mantenían, Kracauer siempre cuestionó en Adorno la falta de referencias positivas para el ejercicio de una razón crítica tanto en la mencionada Dialéctica de la Ilustración como en la Dialéctica Negativa (1966). Para Antonio Aguilera (ob. cit., pp. 78-79), se cuestiona la existencia de una “dialéctica sin suelo”, el libre vuelo de un pensamiento sin nada que se le resista, que acabe fagocitando lo fáctico.
En el otro extremo, el escritor defiende un proceder filosófico que se entregue a la cosa, para lo cual le será útil un concepto heredado de Husserl, el “mundo de la vida” (Lebenswelt), mediador entre lo abstractosistémico y lo concreto-vivido. El trabajo más importante del libro, a cargo de Sergio Sevilla (ob. cit., pp. 51-75), profundiza en esta construcción.
Para Sevilla, ante la necesidad de hacer inteligible la heterogeneidad de las evidencias empíricas, las ciencias idealizan las experiencias humanas. Para evitar esto, y satisfacer la necesidad de atender a lo particular por parte de la historia, Kracauer recurre al “mundo de la vida”, que para Husserl es un entorno de experiencias y vivencias prerreflexivas que da sentido al discurso, y que debe ser trascendido a través del pensamiento científico. Kracauer reelabora el concepto como una instancia que otorga sentido a un mundo de particulares, evitando que el historiador se diluya en la multiplicidad.
La historia limitaría de esta forma tanto con el “mundo de la vida” como con la “filosofía”.
El “mundo de la vida” articula así una pluralidad de ámbitos, proponiendo para el mundo histórico una lógica semejante al sentido común de la vida cotidiana. Desde el “mundo de la vida”, la historia mantiene una continuidad con el historiador, lo cual tiene dos consecuencias: la historia trasciende el status de “objeto”, para provocar la iluminación de un ámbito de la experiencia social y el historiador deja de ser mero sujeto de conocimiento, ya que el sujeto se distancia de la experiencia y excluye formas de acción ubicada. Por ello está llamado a ser respecto al mundo histórico un exiliado o un nómada.
En el contexto del “mundo de la vida” se entiende la opción de Kracauer por el empirismo.
En su trabajo, Pedro Ruiz Torres (ob.cit., pp. 213-38) señala el distanciamiento del autor respecto al “empirismo ingenuo”, propio de los historicistas y positivistas del XIX, que pretenden inducir a partir de los datos las leyes generales de la historia. Pero también respecto a algunas perspectivas críticas (la escuela de los Annales, la historiografía marxista…), que parten de la puesta en marcha de procesos deductivos, que parten de preguntas e hipótesis. Sin embargo, ambos empirismos parten de la misma base:
más que del culto al dato positivo, de considerar el conocimiento de lo general como la clave para la comprensión del mundo. A este respecto, Ruiz Torres llama la atención sobre la obra de dos autores, Charles V. Langlois y Charles Seignobos, a los que no hay constancia de que Kracauer conociera, que en 1898 alertaron contra los historiadores que, influidos por su formación filosófica, introducían “conceptos trascendentes” en la organización de la historia.
Pero Kracauer no renuncia al uso de generalizaciones. Así, configura un concepto de periodo histórico (2010, pp. 173-94) semejante a la mónada benjaminiana, entendido como el punto en que se entrecruzan tensiones históricas diversas, más que como un periodo de tiempo homogéneo. También acuña una variante especial de “idea histórica”, el resultado de intuiciones del historiador, surgida a raíz de los hechos, pero que deriva en algo distinto a ellos. No dejaría de ser una generalización, pero más producto de una intuición basada en criterios prácticos que de un proceso de abstracción lógica.
Diríase que Kracauer busca perfilar un concepto de “idea histórica” vinculado al “mundo de la vida”, más que basado en procesos académicos; sin embargo, justamente esa intención genera una ambigüedad que dificulta la eficacia del concepto. Por un lado, a pesar de sus reticencias respecto a la filosofía, Kracauer se está moviendo en el terreno de la filosofía de la historia y de la epistemología.
Para él, hay un punto en el que lo general y lo concreto son irreductibles, es decir, lo general es solo general, y lo concreto solo concreto. Solo entonces es posible una dialéctica que nunca se clausure, añadimos nosotros. Kracauer desconfía de la abstracción porque se encuentra demasiado cerca de la lógica del sistema. Al mismo tiempo, su opción por el empirismo (o, mejor dicho, “lo concreto”) trasciende lo académico para convertirse en una propuesta que debe ser concretada en el mundo de la vida, donde nuestros razonamientos se entremezclan con nuestra percepción e intuición ante las cosas.
Todo lo cual es perfectamente coherente con sus formas expositivas. Kracauer se reafirma en el uso de una narración como un dispositivo literario apropiado para el discurso histórico. Sin embargo, la cualidad artística de esta modalidad textual narrativa es un subproducto del planteamiento, no un objetivo central (Kracauer, 2010, pp.195-218). En una línea semejante a la defendida por Adorno en “El ensayo como forma” (1954-58), el gusto por lo concreto, la flexibilidad y la capacidad de sugerencia propias de un género literario hacen que el relato sea el más adecuado para mostrar el fluir heterogéneo de la realidad. Esta actitud cristaliza en distintas metáforas, resaltadas por Miguel Ángel Cabrera (2015, pp. 101- 103): en su reseña a Los empleados, titulada “La politización de los intelectuales”, Benjamin denominó a Kracauer como un trapero al amanecer del día de la revolución, que recoge jirones lingüísticos y trapos discursivos para confeccionar un tejido polícromo de retazos, como es el calicó, claro equivalente del caleidoscopio, imagen de raigambre proustiana que alude a la catarata de tiempos históricos, imposible de homogeneizar.
La insistencia de Kracauer en lo inmediato e intuitivo está estrechamente relacionada con su reflexión sobre la imagen. Sobre dos trabajos de la compilación no vamos a ahondar: el que viene a ser un adecuado artículo introductorio a Kracauer, a cargo de su biógrafo Enzo Traverso (ob. cit., pp. 39-50), así como un útil resumen crítico del libro Historia, escrito por Sabina Loriga (ob. cit., pp. 239-62). Y aludiremos ahora a los tres artículos específicos sobre lo visual.
Por su parte, Anacleto Ferrer (ob. cit., pp.192-195) hace especial hincapié en los 499 textos para Frankfurter Zeitung (1921-1930), que establecen un canon crítico que concede importancia a la cultura de masas, como un instrumento para el desvelamiento de las ideologías sociales, a pesar de su fragmentariedad, y con una autonomía estética instransferible.
Subraya Ferrer la idea de que el realismo estético del cine es consecuencia de su realismo técnico. Justamente poco más tarde, publicaba Benjamin “Pequeña historia de la fotografía” (1931), estudiado por Antonio Aguilera (ob. cit., pp. 77-100), que también vinculaba la productividad estética del medio a sus dimensiones técnicas.
Ese mismo año, Kracauer también publicará “La fotografía” (1931), trabajo que para Susana Díaz (ob. cit., pp. 11-37), configura algunas ideas que determinarán su enfoque sobre historia. Al constituirse la foto, a diferencia de la pintura, como un producto relativamente independiente de las intenciones últimas del fotógrafo, se convierte en testimonio objetivo de una época.
Desde este punto de vista, cualquier intento de practicar la fotografía artística se alineará con las fuerzas sociales defensoras del orden establecido. Para la autora, este planteamiento se perfilará en el posterior Teoría del cine (1960), donde a partir de “la naturaleza fotográfica” del medio, se reivindicará su capacidad para “captar al vuelo” la realidad física. La publicación de Teoría del cine en España sugirió en la crítica una cierta relación con el cine inmediatamente anterior, es decir, con el neorrealismo italiano y algunas modalidades del estilo clásico.
El cine, frente a formas artísticas basadas en el pleno dominio del lenguaje por parte del autor, constituye un reducto que el pensamiento abstracto no debe colonizar.
Mirar la imagen en la pantalla proporciona una sensación de extrañamiento respecto a la realidad preexistente a la filmación. Como Jasón percibe el rostro de la Gorgona desde su reflejo en el escudo (para no quedar petrificado con su mirada), contemplar el cine proporciona una mirada más distanciada sobre el contexto cotidiano. De esta manera, deducimos que el cine facilita un constante ejercicio de aprender a mirar y volver a mirar las cosas desde distintas perspectivas.
Más que de un empirismo propiamente filosófico, o inserto en el método científico, la opción de Kracauer por lo concreto parte de la inmersión del individuo en la sensorialidad visual intuitiva del “mundo de la vida”.
Aunque tan solo sea esa sensorialidad vicaria que nos facilita el cine. Desde esta perspectiva, la mera insistencia en que el cine construye la realidad, y no la “refleja”, se ha convertido en un callejón sin salida, si no entramos a detallar cómo es esa construcción.
Referencias pricipales
DÍAZ, Susana (Ed.) (2015). Historia y teoría crítica. Lectura de Siegfried Kracauer. Madrid: Biblioteca Nueva.
KRACAUER, Siegfried. (2010). Historia. Las últimas cosas antes de las últimas. Buenos Aires: Las Cuarenta.
Javier Gurpegui Vidal – I.E.S. “Pirámide”, Huesca.
[IF]Max Weber in der Welt. Rezeption und Wirkung – KAISER; ROSENBACH (RH-USP)
KAISER, Michael; ROSENBACH, Harald. Max Weber in der Welt. Rezeption und Wirkung. Tübingen: Mohr Siebeck, 2014. 243 pp. Resenha de: MATA, Sérgio da. A weberianização do mundo. Revista de História (São Paulo) n.174 São Paulo Jan./June 2016.
Uma das mais sedutoras teses presentes na obra de Max Weber é a que postula um processo geral, inexorável, de racionalização do mundo. Vista de uma perspectiva brasileira, não é preciso dizer o quão ambiciosa, até mesmo quimérica, tal tese pode parecer. O virtual emperramento do nosso sistema político desde as grandes manifestações de junho de 2013 – com sua recusa explícita dos partidos e a denegação do direito de ir e vir como estratégia privilegiada de pressão dos grupos à margem (direita ou esquerda, pouco importa) do poder -, o caos das contas e da saúde pública, a recusa em encarar de frente o caráter finito dos recursos naturais, os níveis alarmantes de violência interpessoal, a crise de legitimidade de uma presidente recém-eleita, o autismo generalizado, tudo isso sugere que a perspectiva weberiana da história tem lá os seus limites.
Mas teria Weber dado um sentido literal à sua ideia da racionalização do mundo? Entre 1917 e 1919, ele acompanha atônito a derrota alemã na guerra, a renúncia do kaiser, a proclamação dos conselhos operários em diversas cidades alemãs e o caos político em seu país. Ele viu na democracia a única salvação possível, e sua última série de escritos lança luz, quando não por simples homologia, sobre os dilemas do Brasil contemporâneo. Weber constatava a ascensão da rua como o espaço privilegiado da política, e pressentia que se a revolução alemã tinha o potencial de mover o país, certamente não seria no rumo do socialismo, mas sim no da mais abjeta reação. Nos últimos parágrafos de Economia e sociedade, ele escreve que
um fator completamente irracional (…) é dado pelas “massas” não-organizadas: a democracia de rua. Esta é mais poderosa em países com um parlamento impotente ou politicamente desacreditado, e isto significa sobretudo: na ausência de partidos racionalmente organizados. Na Alemanha, (…) organizações como os sindicatos, mas também como o Partido Social-Democrata, constituem um contraponto muito importante ao atual domínio irracional da rua, típico de nações puramente plebiscitárias.1
Àquela altura Weber considerava o sistema político alemão ante bellum “completamente obsoleto”. No início de 1919, em meio às reuniões da comissão que elaborou a Constituição da República de Weimar, Weber – então no auge de sua popularidade como erudito e homem público – advertia que caso se mantivessem intocadas as bases de tal sistema,
a democracia política e economicamente progressiva não terá nenhuma chance num futuro previsível. As eleições mostraram que, por toda a parte, os antigos políticos profissionais conseguiram, contrariamente à disposição dos eleitores, eliminar os homens que gozam de confiança dessas massas em favor de uma mercadoria política ultrapassada. Como resultado, as melhores cabeças têm se afastado de toda a política.2
Poderíamos continuar indefinidamente, apontando as homologias existentes entre a Alemanha de 1917-1919 e o Brasil de 2013-2016. Que Weber tenha avaliado aquela época com notável clareza talvez seja uma razão a mais para ver em sua obra um potencial de esclarecimento que nem de longe se poderia encontrar no marxismo tardio de um Mészáros, no obscuro esteticismo de um Agamben, no cômico nonsense de Žižek ou nas incontinências verbais de um Olavo de Carvalho. Estamos condenados a pensar o hoje; mas em face do vazio de ideias contemporâneo, não nos resta outra saída senão buscar os clássicos de ontem. Chame-se a isso, se se quiser: aprender com a história.
A racionalização do mundo, tal como a descreveu Weber no preâmbulo do primeiro volume dos seus ensaios reunidos de sociologia da religião, não se concretizou. As grandes forças mobilizadoras deste processo (o direito, o capitalismo moderno, a ciência e a burocracia) nem sempre atuaram com o grau de integridade que se lhes atribuía.
Apesar de tudo isso, talvez se possa falar de uma weberianização do mundo. Num sentido muito preciso: o de uma gradativa mundialização de seu legado intelectual. Não apenas na condição de clássico das ciências sociais, mas também como um autor de cabeceira dos poderosos – de Theodor Heuss, o primeiro presidente da Alemanha após a catástrofe do nazismo, a FHC. De sua Alemanha natal à América Latina, dos Estados Unidos à Rússia, do leste europeu ao mundo árabe, o interesse pelo pensamento de Weber não encontra fronteiras nem padece do veto da história que se abateu sobre o marxismo após 1989.
Sendo assim, é apenas natural que, em julho de 2012, os institutos de humanidades alemães no exterior, há pouco rebatizados como Fundação Max Weber, tenham dedicado um simpósio internacional ao tema “Max Weber no mundo – Recepção e influência”. O volume resultante, publicado em 2014, é o que nos cabe aqui resenhar. Estudos sobre a recepção de Weber não são propriamente uma novidade, todavia o interesse a respeito tem adquirido força, entre outras razões graças à redescoberta de Weber nos países que compunham o antigo mundo socialista.
“Max Weber em tempos de transformações”, de Edith Hanke, abre o volume com um esboço de sociologia comparada da recepção da sociologia weberiana. A tese principal da autora é que o interesse por Weber tende a crescer especialmente em sociedades que passam por períodos de intensa transformação econômica, social e política (p. 2). Primeiramente, ela procede a uma avaliação do número de edições/traduções por país, o que nos revela algumas surpresas. A primeira delas é a liderança absoluta do Japão, com nada menos que 190 títulos entre 1925 e 2012. A carreira japonesa de Weber é, por assim dizer, inteiramente autóctone, deu-se sem intermediários. Mais que isso, os estudiosos daquele país produziram trabalhos sobre Weber que, vistos desde hoje, estavam muito à frente de seus congêneres anglo-saxões. Em 1981, Yoshiaki Ushida já criticava a perspectiva “a-histórica” da literatura internacional sobre Weber. Isso é tão mais impressionante se levarmos em conta que o início da publicação na Alemanha da edição crítica das obras de Weber (Max Weber Gesamtausgabe) só se iniciou em 1984. Hanke mostra ainda que, em países como Japão, Itália, Grécia e Coreia do Sul, as traduções mais recentes de Weber têm se baseado no gigantesco trabalho de erudição histórico-filológica da Gesamtausgabe. Poupemos ao leitor uma constrangedora comparação com o que, a esse respeito, se tem feito no Brasil.
Hanke identifica três tipos de transformação por detrás dos booms weberianos em diferentes países: (a) rápidas e drásticas mudanças de paradigmas científicos, (b) na estrutura socioeconômica e, por fim, (c) crises de legitimidade do ordenamento político. Tendo exercido o papel de pioneira (data de 1897 a tradução do opúsculo A bolsa), a Rússia assistiu a uma virtual proscrição de Weber após a década de 1920. Tornou-se famosa a passagem da Grande Enciclopédia Soviética de 1951, em que Weber é chamado de “sociólogo, historiador e economista alemão reacionário, neokantiano, inimigo maldoso do marxismo” (apud p. 15). Na década de 1980, sobretudo a partir de 1990, com a derrocada do regime comunista e o fim do veto ideológico, a situação se inverte. Em curto espaço de tempo mais que dobra o número de obras de Weber disponíveis em russo.
Situação semelhante se observa na China, onde o advento do turbo-capitalismo gerou uma demanda irrefreável por paradigmas alternativos. Graças aos esforços da germanista Rongfen Wang traduziram-se seções de Economia e sociedade, Confucionismo e taoísmo e as conferências Ciência como vocação e Política como vocação. A versão chinesa de A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicada em outubro de 1986, esgotou-se em horas. Naquele mesmo ano, um jornal chinês publica uma entrevista com a sra. Wang com o significativo título “A febre Max Weber e a democratização política”. Em 1989, tal situação se alteraria dramaticamente. Num colóquio realizado em julho de 2014 na Universidade de Erfurt, este resenhista teve a oportunidade de ouvir da própria sra. Wang o impressionante relato de como o auditório reservado para acolher o primeiro grande simpósio sobre Weber em Pequim acabou sendo usado como depósito militar tão logo estourou a repressão ao movimento estudantil na praça da Paz Celestial. O evento evidentemente não pôde ocorrer, frau Wang mora há anos na Alemanha e os chineses ainda esperam pela democracia.
Como o maoísmo não passa hoje, na China, de uma formalidade vazia na autoencenação do poder, não paira ali qualquer proibição formal a Weber e é revelador do espírito dos novos tempos que em 2006 A ética protestante tenha se tornado um verdadeiro best seller naquele país. Situação muito diferente da do Irã, em especial depois da derrota da “Revolução verde” de 2009. Edith Hanke (p. 20) mostra que Said Hajjarian, “que estava entre os mais próximos estrategistas do presidente reformista Khatami, foi ameaçado com a pena de morte também por difundir as teorias de Weber”, e tendo de desculpar-se publicamente por isso.
O fato de Weber não ter produzido qualquer estudo sistemático sobre o islamismo decerto contribuiu para sua fraca recepção no mundo muçulmano, tema do ensaio de Stefan Leder (Max Weber in der arabischen Welt). Embora A ética protestante esteja disponível em árabe desde 1980, poucas traduções se seguiram. A recepção deve ali muito ao impulso de comentaristas franceses como Julian Freund, Colliot-Thélène e Philippe Raynaud. De forma geral, porém, Leder constata a inexistência de uma “confrontação produtiva com Max Weber” (p. 27). As razões não seriam apenas de natureza intelectual, posto que refletiriam também a ausência de uma relação dialética entre racionalismo prático (intramundano) e a ética religiosa islâmica. A conexão presente em toda a obra de Weber entre valores religiosos e a dinâmica da vida político-econômica, não se revelaria naquelas culturas uma chave heurística tão fértil quanto o foi no Ocidente.
Alexandre Toumarkine mostra, em “The introduction of Max Weber’s thought and its uses in Turkey”, que a Turquia diverge do padrão descrito acima. O autor evoca o interessante caso de Kayseri, uma capital de província famosa por seu tradicionalismo religioso e dinamismo empresarial. Um antigo prefeito da cidade, Şükrü Karatepe, chegou a declarar que, “para entender Kayseri, é preciso ler Max Weber” (apud p. 33). A possível existência de um islamic calvinism gerou um amplo debate na imprensa turca. Tornavam-se evidentes os resultados a que chegaram diversos pesquisadores, para os quais “a fé islâmica não é um obstáculo ao desenvolvimento econômico ou à modernização social” (p. 34). É interessante notar que a Turquia tem uma história de recepção análoga à do Brasil sob vários aspectos: a defasagem temporal em relação a outras comunidades intelectuais, a importância dos imigrados de origem germânica (Alexander Rüstow e Gerhard Kessler tiveram ali um papel similar ao de Otto Maria Carpeaux e Emílio Willems entre nós), a influência exercida pela tradução de livros como As etapas do pensamento sociológico de Raymond Aron, e a coletânea From Max Weber de Gerth e Mills.3 As apropriações de Weber na ciência social turca giram em torno de questões como a aplicabilidade do conceito de carisma a Ataturk, o fundador da república, e ainda à permanência de um forte componente patrimonialista naquele país. Para o historiador Halil Inalcik o Estado turco constituiria um caso extremo de patrimonialismo, chamado por Weber de sultanismo. Inalcik teria demonstrado que “a fusão entre poder político e espiritual na pessoa do sultão fez do Império otomano o tipo perfeito de sultanismo” (p. 46).
O weberianismo no islã é objeto de outro capítulo, “Max Weber and the revision of secularism in Egypt”. O autor, Haggag Ali, expõe as discussões que intelectuais egípcios têm feito nos últimos anos sobre a “secularização” numa chave weberiana. Atenção especial é dada à monumental Enciclopédia dos judeus, judaísmo e sionismo escrita por Abdel-Wahab El-Messiri (1938-2008), em que se faz uma distinção entre “secularismo parcial” e “secularismo compreensivo”, sendo o primeiro uma modalidade mais branda (e que El-Messiri acreditava ser compatível com o Islã), e o último uma forma mais radical de desencantamento do mundo. É interessante notar que o que adquiriu centralidade na recepção de Weber no Egito é talvez o aspecto mais frágil de sua visão da modernidade, qual seja, o conceito mesmo de “secularização”. Mas nada se compara ao mal-entendido que atribui a Weber a ideia de que somente no Ocidente teria havido racionalização, e que Haggag Ali repete um tanto acriticamente. Sob a influência da legenda segundo a qual a racionalização conduziu ao holocausto – é preciso desconhecer um livro como Mein Kampf para se estabelecer uma relação entre uma coisa e outra –, El-Messiri difunde em seu país um mal-entendido em cuja origem, curiosamente, está o antimodernismo judaico presente em autores como Horkheimer e Bauman. Sua preocupação maior era fazer um diagnóstico histórico-sociológico do sionismo, visto como “uma ideologia secular que aspira à salvação dos judeus, prometendo a seus adeptos (…) o fim das perseguições e do sofrimento no aqui-e-agora” (p. 57).
“Max Weber in the world of Empire” é o título da contribuição de Sam Whimster. Trata-se de situar Weber no contexto da época áurea do imperialismo, bem como as possíveis ressonâncias disso para sua obra. Com base em cartas inéditas até então, Whimster mostra a evolução das ideias de Weber a respeito das aspirações de grandeza da Alemanha – contudo não estamos certos de que ele de fato “olhava para o mundo através das lentes do império, mais que das do estado-nação” (p. 77). Excetuada a forte influência dos junkers, não há dúvida de que Bismarck e a Prússia das décadas de 1870-1890 permaneceram como uma espécie de modelo para Weber durante quase toda sua vida. Entretanto, é revelador que o conceito de imperialismo não seja definido com mais clareza por Whimster, o que lhe permite – assim nos parece – empregar o termo com uma liberdade demasiada, e assim classificar Weber como um “imperialista”. Sinceramente, não nos vem à memória algum texto deste autor que dê ensejo a tal classificação.
Seguem-se dois importantes estudos sobre a Rússia e a Polônia. O primeiro deles, da autoria de Dittmar Dahlmann (p. 81-102), examina o interesse de Weber pelo enigma russo, assim como o papel da Rússia em sua obra. Mantendo estreita relação com a comunidade eslava em Heidelberg, Weber publicou dois longos estudos sobre a fracassada revolução liberal de 1905 naquele país, e seu conceito de “pseudoconstitucionalismo” tornou-se influente nos meios jurídicos russos antes da ascensão dos bolcheviques. Cabe notar ainda que não foram sociólogos, mas historiadores (Dimitri Petrusevski, Nicolai Kareev, Alexandr Neusychin) os que deram início à recepção russa de Weber. Em artigo de 1923, Neusychin defendeu inclusive a tese, que nos inclinamos a abonar, de que a sociologia weberiana nada mais é que “a história traduzida na linguagem dos conceitos gerais” (apud p. 87). Igualmente curioso é o fato de que alguns excertos de A ética protestante e da Ética econômica das religiões mundiais tenham sido traduzidos e publicados no período soviético, precisamente num número de 1928 de uma revista chamada Ateísta. De resto, prevaleceu o veto ideológico a Weber. Uma tradução de A ética protestante chegou a ser feita em 1972 por Neusychin, mas como levava um selo com as palavras “apenas para o uso interno”, evidentemente não pôde ser publicada. Desnecessário dizer que uma Weber-renaissance digna desse nome teria de esperar pela Glasnost e pela derrocada definitiva do aparato de poder em 1990.
Marta Bucholc se dedica ao espinhoso capítulo polonês da weberianização do mundo em seu estudo “A reação dos sociólogos poloneses aos escritos de Max Weber sobre a Polônia”. Relação espinhosa nem tanto pelo fato de este país ter se tornado parte da Cortina de Ferro, mas porque as poucas menções de nosso autor aos poloneses estão entre as mais infelizes que ele escreveu.4 A ponto de ele próprio admitir em 1916: “Eu era tido como um inimigo da Polônia. Preservo ainda hoje uma carta assinada e enviada de Lemberg há vinte anos, em que se lamentava que meus antepassados não tivessem sido comidos por um porco mongol” (apud p. 111-112). O fato é que não houve influência alemã digna de nota sobre os pais fundadores da sociologia polonesa, Stefan Czarnowski e Florian Znaniecki, os quais reverberavam uma nítida ascendência francesa. Segundo Bucholc, esta situação não se alterou desde então.
Traduções de Weber em polonês só surgiram no alvorecer do século XXI. Mas mesmo com o advento da open society, observa Bucholc,
os escritos políticos de Weber provavelmente eram percebidos como irrelevantes na nova realidade da integração europeia, na qual Polônia e Alemanha há muito mantinham relações amigáveis (…). Os escritos políticos de Weber sobre a Polônia seriam então não apenas muito difíceis de se ler e de maneira alguma aceitáveis, mas seriam também desinteressantes (p. 118).
Caso inteiramente diverso e sob todos os aspectos digno de atenção nos é apresentado por Wolfgang Schwenkter em “Controvérsias japonesas sobre A ética protestante de Max Weber”. Um dos mais competentes estudiosos das relações intelectuais entre Japão e Alemanha, Schwenkter enumera em seu bem documentado ensaio as razões da ascendência japonesa nos estudos weberianos. A carreira japonesa de Weber deve muitíssimo a eruditos devotados à história econômica (Fukuda Tozuko, Kawada Shiro e Hani Goro). Não menos importante foi a passagem pelo Japão de autores influenciados por Weber, tais como Karl Löwith e Robert Bellah. Para que se tenha noção da singularidade do caso em tela, basta dizer que, desde 1964, existe uma versão japonesa integral de O judaísmo antigo. Praticamente toda a obra de Weber acha-se hoje traduzida naquele país, algo com que o pobre leitor brasileiro só pode sonhar. Em seu diagnóstico da situação atual, Schwenkter mostra que a chegada das teorias pós-modernas ao Japão se articula com o surgimento de uma nova geração de intelectuais japoneses que questionam – como é justo que seja – a atualidade do legado de Weber. O autor examina ainda a grande polêmica gerada em 2002 pela publicação de livro do sociólogo Hanyu Tatsuro, O crime de Max Weber. O “crime” em questão assenta no uso pouco rigoroso que Weber fez de certas fontes bíblicas na Ética protestante. Raramente se terá empregado uma terminologia tão forte numa querela essencialmente filológica, mas no final das contas há que dar razão a Schwenkter por sua crítica a Tatsuro por se valer de um título “inteiramente absurdo” por razões mercadológicas (p. 140).
Nos quatro ensaios seguintes de Max Weber in der Welt o leitor familiarizado com os estudos weberianos não consegue manter o mesmo nível de atenção. Ora o tratamento dos problemas não se aprofunda o suficiente, ora os resultados apresentados são magros demais para recompensar o esforço de leitura. Em “A estadia romana (1901-1903) e a relação de Max Weber com o catolicismo”, Peter Hersche trata de uma questão potencialmente relevante, mas para a qual, ao fim e ao cabo, nenhuma evidência nova chega a ser aportada.
Em “The American journey and the protestant ethic”, Lawrence Scaff oferece uma síntese de sua alentada monografia Max Weber in America (2011), revisitando os topoi da experiência americana de Weber: da longa viagem empreendida com sua esposa em 1904 à importância de nomes como Parsons e Edward Shils ou de instituições como as Universidades de Chicago, Columbia e a New School na recepção de sua obra. Scaff sublinha dois pontos que parecem mesmo relevantes. Por um lado, o impacto da viagem aos Estados Unidos sobre a redação da segunda parte da Ética protestante; de outro, o fato de que sua recepção norte-americana jamais teria sido a mesma, caso este escrito não oferecesse uma espécie de narrativa mestra do American dream.
Quanto ao ensaio “Max Weber e a Philosophie de l’art de Hippolyte Taine”, de Francesco Ghia, este parecerista não encontrou razões para traçar qualquer comentário a respeito, dado o seu caráter altamente especulativo e inconclusivo. Melhor seguir em companhia de Hinnerk Bruhns e seu capítulo “Max Weber na Guerra Mundial (1914-1920) – Com uma olhadela da França”. No país da escola durkheiminiana, a introdução do pensamento de Weber jamais teria sido algo fácil. Por muito tempo, intelectuais como Raymond Aron e Julian Freund amargaram uma solidão de mil desertos. A lentidão com que apareceram as traduções francesas é de fato impressionante. Até o ano de 2014 não havia uma versão francesa da pioneira biografia publicada por Marianne Weber em 1926. Bruhns explora a experiência de Weber na Primeira Guerra Mundial – ele foi encarregado de administrar os hospitais da região de Heidelberg – e como as vivências daquele período se traduzem em seus escritos posteriores. É sabido que Weber saudou o conflito entusiasticamente, sem, porém, aderir ao Hurrapatriotismus de um Max Scheler ou dos signatários do famoso manifesto “Ao mundo cultural”, em que eruditos alemães de prestígio defenderam as ações do exército alemão. Não é pequeno, em todo caso, o papel do fenômeno “guerra” na sua sociologia, e ninguém duvida que, ao definir a política como “luta”, ele pavimentou uma perspectiva do político que atingiria seu ápice em Carl Schmitt.
Chegamos finalmente ao último ensaio do volume, “Max Weber e os problemas histórico-universais da modernidade”, de Gangolf Hübinger (p. 207-224). O autor faz um criativo exercício de análise da modernidade – entendida enquanto um estágio da vida social marcado antes de mais nada pela aceleração civilizacional e pela tensão crescente entre visões seculares e religiosas de mundo (p. 208) – a partir das pistas deixadas por Weber em seus escritos. Hübinger distingue na sua obra quatro indicadores fortes do caminho alemão para a modernidade: o advento e afirmação do capitalismo, a crítica do historicismo, a cultura de massas e a democracia. Nas seções seguintes de seu capítulo, Hübinger trata de iluminar cada uma dessas variáveis à luz da erudição histórica e, sobretudo, de mostrar como o legado intelectual e científico de Weber constitui um lócus privilegiado para visualizarmos cada um desses processos. Tanto do ponto de vista econômico quanto do científico, cultural e político, o pensamento weberiano se presta, como poucos de seu tempo e posteriores a ele, a iluminar uma época que – a despeito de toda doxa pós-moderna – ainda não deixamos para trás.
Nesse sentido, e ao menos enquanto as quatro estruturas acima evocadas se mantiverem, o lugar de Max Weber no grande museu das antiguidades intelectuais do Ocidente permanecerá vazio. Ele continuará incontornável para nós, no sentido preciso daquele termo que volta e meia surge em seus escritos, a saber: como destino.
Referências
MATA, Sérgio da. Modernity as fate or as utopia: Max Weber’s reception in Brazil. Max Weber Studies, v. 16, 2016, p. 51-69. [ Links ]
VILLAS BÔAS, Glaucia. A recepção controversa de Max Weber no Brasil (1940-1980). Dados. Revista de Ciências Sociais, v. 57, n. 1, 2014, p. 5-33. [ Links ]
WEBER, Max. Economia e sociedade, vol. II. Brasília: EdUnB, 1999. [ Links ]
WEBER, Max. Escritos políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2014. [ Links ]
1WEBER, Max. Economia e sociedade, vol. II. Brasília: Edunb, 1999, p. 580.
2WEBER, Max. Escritos políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 385.
3Cf. MATA, Sérgio da. Modernity as fate or as utopia: Max Weber’s reception in Brazil. Max Weber Studies, v. 16, 2016, p. 51-69; VILLAS BÔAS, Glaucia. A recepção controversa de Max Weber no Brasil (1940-1980). Dados. Revista de Ciências Sociais, v. 57, n. 1, 2014, p. 5-33.
4WEBER, Escritos políticos, op. cit., p. 3-36.
Sérgio da Mata – Professor do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais. E-mail: sdmata@ichs.ufop.br.
Diários de Berlim, 1940-1945 | Marie Vassiltchikov
Há seis anos começava a guerra.
Parece o tempo de
uma vida
Missie Vassiltchikov, Berlim, setembro de 1945
Mestre no escutar e no escrever, Truman Capote legou ao mundo da Cultura uma participação indelével, baseada na sua incrível capacidade de ver, mentalizar e, na sequência, descrever detalhadamente fatos havidos, por ele percebidos no instantes em que aconteciam ou recriados tempos depois. Entrou para a História assim.
O século 20 tem mais destes autores – muitos dos quais compõem o que hoje conhecemos por New Journalism, por exemplo -, tão ou mais famosos que Capote. Mas, singular que ele só, o século 20 tem gentes que não atingiram (nem almejavam isso) o que podemos chamar de Grande Mídia – nem eram jornalistas. Marie Vassiltchikov é uma dessas figuras. Princesa russa (bem nascida, portanto), poliglota, viajada, Missie (como era conhecida) também foi refugiada de guerra civil, funcionária de serviços diplomáticos e, o mais impressionante, um olhar atento voltado e situado no coração do Nazismo, essa chaga da Humanidade da qual tanto já lemos, tanto já expurgamos, tanto já discorremos e, paradoxalmente, tanto ainda temos a descobrir. Leia Mais
Heidegger urgente: introdução a um novo pensar – GIACOIA JÚNIOR
GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Heidegger urgente: introdução a um novo pensar. São Paulo: Três Estrelas, 2013. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 1, p. 232-237, jan/abr, 2016.
Já há no Brasil uma imensidão de obras, quer originais em português, quer oriundas de traduções de outros idiomas, que se propõem a comentar, introduzir, explicar ou compreender o pensamento de Martin Heidegger (1889-1796). A obra de Oswaldo Giacoia Junior, publicada em 2013, encontra-se nessa lista e conta com algumas peculiaridades que dão a ela um destaque diante das outras. Isso não sem justificativa: há elementos que somente um bom leitor, intérprete e escritor conseguiria captar diante dos volumosos números das Obras completas (Gesamtausgabe) do filósofo alemão; uma leitura atenta e refinada e, sobretudo, um olhar filosófico, estão presentes nesse pequeno ensaio que leva como subtítulo “introdução a um novo pensar”. Desse modo, a presente obra de Giacoia conduz não somente a uma introdução ao pensamento de Heidegger, mas a um pensar filosofante com Heidegger.
Para um bom entendimento daquilo que aqui se propõe, é muito interessante apresentar a estrutura da referida obra: Introdução; O pensador do fim da metafísica; O primeiro Heidegger; A viravolta e a história da verdade do Ser; Como ler Heidegger; Conclusão. As divisões da obra, com certeza, possuem uma lógica baseada na estrutura do pensamento de Heidegger, o que, de fato, deve ser considerado. Porém, mudanças no trajeto de leitura serão propostas com o presente trabalho, bem como a intersecção de textos do próprio Heidegger para que, assim, o “pensar com Heidegger” ganhe maior clareza e, ao final do texto, tenha-se reais condições para construir um “novo pensar”, singular e autêntico. Deve- se destacar ainda que o foco maior do presente trabalho recai sobre a penúltima parte da obra acima referida, pelo fato de ela mostrar a grande erudição do autor. Leia Mais
Genealogia di un pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx – MORFINO (RFMC)
MORFINO, Vittorio. Genealogia di un pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx. Hildesheim: Georg Olms Verlag AG, 2016. Resenha de: LANCIATE, Diego. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p. 116-119, n.2, 2016.
Publicado pela Georg Olms Verlag em 2016, Genealogia di um pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx [Genealogia de um preconceito. A imagem de Spinoza na Alemanha de Leibniz a Marx] de Vittorio Morfino é resultado de um estimulante e rigoroso trabalho de fôlego em que a articulação entre Spinoza e spinozismo se faz pela efetividade de sua recepção, sua Wirkungsgeschichte, em terras germânicas. Assim, três grandes momentos são divididos: a refutação do spinozismo clandestino, o renascimento spinozano e, por fim, o Spinoza do Idealismo. Filósofos como Leibniz, Wachter, Bayle, Mendelssohn, Lessing, Jacobi, Kant, Herder, Goethe, Schelling, Hegel, Heidegger, Feuerbach, Marx, Engels até Plekhanov, Althusser, Pascucci, Negri, Fischbach et alii são mobilizados, porém, longe de um procedimento genético e historicista de apreensão do par significante spinoza/spinozismo, Morfino investiga genealogicamente, ou seja, é tal articulação que é posta em exame em seus efeitos. E, para tanto, podemos dizer que seu centro geométrico é localizado em Marx, cujo olhar míope sobre Spinoza é, em certa medida, efeito do spinozismo germânico. Assim, a questão posta por Morfino assume traços e contornos ímpares: Marx lê Spinoza, todavia, tal leitura, não é caracterizada por uma inadequação no sentido em que se diz do inadequado enquanto erro – um pressuposto de um sujeito empírico de conhecimento – tampouco que seja uma leitura cujo pressuposto seria um sujeito tout-court como epicentro, mas que se trata, antes do mais, de um efeito sujeito que a historialidade efetiva do spinozismo provoca na leitura de Marx. Como efeito de um discurso, Marx é atravessado em seu ver. Uma efetividade post festum que retroage certos sentidos do spinozismo e de Spinoza construindo uma narrativa linear capaz de evidenciar-se na contemporaneidade de Marx leitor. E é em tal narrativa evidente que se instaura a opacidade mesma de Spinoza, então, que a contemporaneidade da evidência, que se faz narrativa da historialidade efetiva da articulação spinoza/spinozismo, é o que permite Morfino rearticular o jogo complexo entre tais significantes pelo ato de ler como efeito desta narrativa. Marx viu através dessa narrativa límpida e linear e, por isto mesmo, não viu em Spinoza uma teoria da História e da Política. Como Marx não pôde ver, o não-visto de Marx é o início da trajetória genealógica de Morfino, por aí ele propõe-se a abrir os pontos de sutura do discurso que interpela Marx e que compõe a imagem de Spinoza através da contemporaneidade de certo sentido que faz seu não-visto, porém, que reintroduzida em sua não-contemporaneidade, i.e.¸ em seu Kampfplatz, abre-se a complexa trama de operações discursivas em sua pluralidade mesma. Ou seja, o sentido é atingido em sua equivocidade pela abertura das suturas que compõem a narrativa da imagem de Spinoza/spinozismo, então, tudo se passa como se a estratificação de conflitos discursivos, deslocamentos de sentidos e defasagens articuladas em temporalidades diferenciais nas quais se desvelam os níveis em ritmos entremeados produzissem certo efeito-imagem de Spinoza, cuja estruturação não seria outra que a produção de sua opacidade pela lógica de poder característica da ideologia/imaginário. A leitura que faz Marx, assim, é o “efeito da complexa história da presença e ausência de Spinoza em terra germânica”.
Não-contemporâneo que se faz contemporâneo, a opacidade do real dada pela narrativa linear, pela sucessividade cumulativa de sedimentos discursivos, é submetida à desconstrução materialista por Morfino. Cada contexto pontual de disputa que se produz uma imagem sedimentada compondo a linearidade ideológico-discursiva do par significante Spinoza/spinozismo, sua trama interrelacional que produz o sentido desta narrativa, é submetida, então, ao exame e recontrução das interpretações que foram feitas de Spinoza nos três momentos principais. E, para tal reconstrução, Morfino suspende o juízo sobre a adequação dos objetos interpretados, i.e., não se trata de trazer um Spinoza como régua da adequação ou inadequação das interpretações que lhe são dadas, mas sim de examinar precisamente como tais interpretações se fazem e exercem um efeito na recepção de Spinoza e no spinozismo. Morfino analisa cada intérprete através da problemática que lhe é própria e não através da problemática do próprio Spinoza, e disto se pode dizer que cada problemática, cada estrutura de pensamento analisada, provoca significativas modificações e reafirma certas permanências da imagem mesma de Spinoza e do spinozismo. Mais ainda, trata-se de problemáticas não só de cada intérprete, mas também de sua dimensão conflitiva com problemáticas de intérpretes entre si, seu diálogo plural, tanto no que diz respeito à estrutura de pensamento de cada intérprete modificando a imagem de Spinoza e do spinozismo quanto no que diz respeito também ao ambiente de produção interpretativa. A tensão e conflitualidade entre problemáticas, os encontros entre os ritmos defasados, impõem-se na tarefa genealógica. Tal trama de problemáticas defasadas, que podemos chamar de sobreproblemática, é a interpenetração mesma das tramas problemáticas singulares, as quais configuram o presente de uma instabilidade discursiva de algo que, em sua posteridade, é tido como acabado, como ponto pacífico e suturado, ou seja, que se lê o presente passado pelo futuro já passado projetando-o teleologicamente – i.e.¸ pelos seus resultados sedimentados – num esquema genético de uma temporalidade histórica de sucessão, esquema cumulativo em sua opaca transparência, pois, em suma, também tais problemáticas sempre-já são interpenetradas por certo e determinado futuro anterior.
Daí que Morfino ausculta a materialidade textual em seu tecido através dos sintomas, da ausência e presença, os quais, por sua vez, são detectados em suas diversas roupagens. É, com efeito, a espectralidade mesma que faz dos significados sintomáticos procedimentos textuais no jogo entre as problemáticas e a sobreproblemática em sua historicidade tomada não mais geneticamente, mas sim genealogicamente, a saber, em sua historialidade efetiva. Sintomas tais que, em seu campo semântico, fazem-se como desvios de sentido, os quais são operados por mecanismos marcados, como a redefinição de conceitos, inversão de conceitos, os efeitos de tradução como sintoma da resistência de um campo problemático ao estranhamento de uma filosofia alheia em sua economia teórica o que força a “tradução criativa”, ou seja, força a tradução entre significantes tendo em vista a problemática de recepção, as remoções inusitadas como tecidos invisibilizados na própria materialidade textual de Spinoza e, sobretudo, dos efeitos destes movimentos de escritura que condensam a espectralidade em sua posteridade próxima como “imagemlimite”, como sentido retroagido capaz de transmitir-se como tal sob uma problemática de um intérprete futuro, um intérprete, de certo modo, do futuro anterior.
Morfino perquire a “imagem-limite”, ou a imagem de Spinoza/spinozismo, referindose a ela como pregiudizio, que podemos traduzir por preconceito, desde que considerando que aí se condensa o juízo dado pela inadequação de sua anterioridade temporal que se faz presente no ato de julgar – tenhamos em mente que preconceito está submerso no sentido propriamente spinozano de imagem, pelo que se remete aos mecanismos de superstição capaz de suscitar afetos e dominação.
Por trás da desconstrução materialista, são as teses de Althusser que Morfino não só mobiliza, mas que as aprimora consideravelmente em estado prático em sua genealogia. Assim, é à revolução teórica inaudita de Spinoza, segundo Althusser, que Morfino dá consequências: a história não se lê na evidência de seu discurso como um logos manifestando-se como a voz uníssona de uma estrutura sedimentada, contudo, que nesta presença mesma uníssona do logos a dissonância se faz pela sua ausência, pelo inaudível e ilegível. O ler, o escrever, o ouvir etc não são de modo algum indiferentes e atos neutros, e é a opacidade ela mesma em sua imediatidade ou, para utilizar-me de um oximoro, a translucidez turva do discurso uníssono manifesto, que exerce o efeito de modificação dos atos de ler, escrever, ouvir etc. Uníssono composto pela plural dissonância de uma contemporâneo não-contemporâneo, pelos ritmos diversos que compõe conflitantes os sentidos. Notável é que a revolução de Spinoza indicada por Althusser pela posição do problema do ler e do escrever tornou-se apreensível a partir da problemática do próprio Marx, pela sua estrutura de pensamento que mobilizou a articulação entre ideologia e política. É por isto que Morfino pôde escavar o subterrâneo dissonante suturado pela presença de uma narrativa de um preconceito, então, que ele pôde voltar Spinoza contra sua imagem que, com toda sua potência explicativa, fez da miopia de Marx o reconhecimento/ desconhecimento de Spinoza em sua problemática.
É o “trabalho spinozano sobre a linguagem da tradição” em sua conjuntura de produção e seu horizonte semântico que intervém como uma máquina filosófica combatente em seu Kampfplatz. Uma máquina de guerra filosófica que Spinoza opera pela posição do problema da Histórica e da memória, ou seja, é sua teoria da imaginação e sua teoria da História que são confrontadas com a imagem do spinozismo alemão em seus três momentos. Não é que a memória, para Spinoza, seja mero conhecimento inadequado, mas que ela é, simultaneamente, hábito, o que implica a eficiência de suas formas discursivas, de sua “história sacra”, como diz Morfino, na história real. São, por isto, os ritmos dos ritos, dos gestos e comportamentos, em suma, dos corpos que são materializados e efetivados na atualidade de um presente, de sorte que a pluralidade dos hábitos, a defasagem de seus ritmos todos, permitem a Spinoza desconstruir a temporalidade linear, simples e contínua de uma narrativa teológico-política. Daí a articulação entre a causalidade imanente e a opacidade do real (teoria da imaginação) permitir conceber a história “como construção conceitual que mostre o estatuto imaginário de cada autobiografia dando relevo ao complexo intrincamento de causas naturais e sociais que produzem a simplicidade de uma história.”
Aparente circularidade, Spinoza contra o spinozismo em terras alemãs, põe em questão a adequação deste Spinoza que permite abrir as suturas da narrativa do preconceito. De fato, o Spinoza que Morfino lança sobre o percurso genealógico seria a imagem de certo Spinoza? Seria a imagem de Spinoza composta pelo que podemos chamar de “segundo renascimento spinozano” datado, mais ou menos, dos meados do século XX na França até os nossos dias? A lição deste Spinoza materialista a que o século XX foi capaz de começar a dar outra voz através de Cavaillès, Guéroult, Deleuze, Chauí etc e, mais próximos de Morfino, de Althusser, Macherey e Balibar, é a de que justamente os ritmos plurais da história, suas defasagens e deslocamentos, em suma, a pluralização das temporalidades da história também produzem e são produtos de uma intervenção política em filosofia, ou seja, que a genealogia de Morfino não só nos presenteia com uma obra imprescindível de erudição e aprendizado de sua laboriosa empresa teórica, mas também e, sobretudo, que ela é a posição política que o materialismo do século XXI apenas começa a colocar em nosso atual Kampfplatz. Ademais, o trabalho de Morfino nos instiga à possibilidade de confrontar a desconstrução materialista com a tradição anglo-saxônica que hoje se faz presente e potente em nosso Kampfplatz, ou melhor, de desconstruir a posição das formas dominantes de interpretação idealista de Spinoza que repercutem com força em nossa conjuntura.
Genealogia di um pregiudizio é um acerto de contas do materialismo em geral e do materialismo de Spinoza em particular com a história que, simultaneamente, deixa seu rastro da vitalidade e força na impura conflitualidade constitutiva da filosofia entre materialismo e idealismo. Mas não só um acerto de contas. O trabalho de Morfino abre positivamente a articulação teórica imprescindível e demarcatória do próprio materialismo hodierno: trata-se de pensar a “fábrica Spinoza-Marx”, como escreve, visando construir uma ontologia da relação sob o primado das indicações do materialismo aleatório de Althusser e, ainda, pensá-lo sob o primado da teoria das temporalidades plurais. O problema fundamental aqui é pensar o compor-se e decompor-se de toda e qualquer estrutura em termos relacionais, de toda e qualquer história, o que implica diretamente a inteligibilidade do campo de ação política. Não só inteligibilidade, mas a intervenção teórica de Morfino é ela mesma política, pois, como dizia Althusser, filosofia é, em última instância, luta de classes em teoria, ou seja, filosofia e política são de certo e determinado modo – não idênticas – mas coextensivas. O êxito e rigor de Genealogia di um pregiudizio é um convite para a desconstrução materialista, para a posição materialista em filosofia e, também, um convite para enfrentar sob este prisma o desafiante e imprescindível problema da articulação entre História e Política.
Diego Lanciate – Doutorando Universidade Estadual de Campinas.
Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX / Samuel Albuquerque
Samuel Albuquerque / Foto: Conectando Com Jota /
Ao dar visibilidade no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX, Samuel Barros de Medeiros Albuquerque, professor da Universidade Federal de Sergipe, narrou neste livro as vivências e experiências da sergipana Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952), futura Dona Sinhá, durante sua estada no Rio de Janeiro com sua família, e sua preceptora alemã, Marie Lassius.
Tais memórias, arquivadas em textos, são fonte de informações preciosas sobre o cotidiano feminino, incluindo o trabalho de governantas, bem como as experiências e práticas culturais de meninas, moças e senhoras na sociedade carioca.
Assim, fazendo uma breve descrição dos familiares de Aurélia, da chegada de Marie Lassius no Brasil e na casa da jovem, ainda em Sergipe, Albuquerque buscou investigar
o universo de preceptoras europeias que viveram entre os grandes centros e a periferia do Império do Brasil e, para tanto, enveredo pelo cotidiano de uma típica família da nossa antiga elite política e econômica, buscando interpretar sobretudo, as práticas culturais femininas (2015, p. 17).
Para isso, Albuquerque abordou no primeiro capítulo, intitulado “Nas memórias de Aurélia”, as experiências e vivências dessa jovem sergipana, bem como das demais mulheres da família, inclusive de sua preceptora alemã.
Ao narrar a conjuntura que levou a família do deputado geral Antonio Dias Coelho e Mello (1822-1904), Barão da Estância, a se mudar para o Rio de Janeiro, e o cotidiano das mulheres da família, Albuquerque conseguiu estabelecer pontos de convergência entre a política e cultura do século XIX.
A ligação política do Barão da Estância rendeu às mulheres da família e à preceptora alemã, o acesso a espaços de sociabilidade típicos da corte carioca, como bailes, jantares, cerimônias políticas e religiosas, inclusive contato direto com a família imperial, por meio das visitas residenciais ou cerimônias específicas.
Além disso, tal ligação política também possibilitou identificar o cotidiano dessas mulheres e suas práticas culturais. Dentre essas práticas, Albuquerque destacou as experiências vivenciadas e narradas por Aurélia nos diversos espaços de sociabilidade em que frequentou com sua família e com sua preceptora.
A frequência nesses espaços possibilitava às mulheres da corte e da elite se conhecerem, trocarem informações e experiências sociais e culturais. Assim, Aurélia, as mulheres de sua família, e sua preceptora, conseguiram se inserir no cotidiano feminino carioca e se adaptarem nessa nova realidade sociocultural, uma vez que todas elas provinham de outras realidades culturais.
Quanto à ligação cultural existente no cotidiano da família sergipana, podemos observar a atenção que o autor deu aos indícios textuais de Aurélia sobre a educação recebida pela preceptora alemã.
Da gramática ao estudo de idiomas e de música, a jovem sergipana foi educada para tornar-se uma mulher culta e preparada para um bom casamento e, consequentemente, saber cuidar da casa, do marido, dos filhos e dos criados.
Sua vivência e experiências pela cidade do Rio de Janeiro, acompanhada por sua família e por Marie Lassius, fizeram de Aurélia uma moça atenta ao cotidiano feminino e aos espaços de sociabilidade por ela frequentados.
Guiado pelos indícios das práticas culturais e dos espaços de sociabilidade acessados por Aurélia, Albuquerque continuou explanando no segundo capítulo, intitulado “No Reino Encantado de Pedro II”, o cotidiano feminino pelo Rio de Janeiro durante o reinado de D. Pedro II.
A frequência nos ritos religiosos, no estabelecimento de modistas franceses, na confeitaria Paschoal, nas residências de políticos e damas da elite carioca, em teatros, museus, passeios públicos, jardins botânicos, zoológico, praias e demais endereços ilustram a diversidade de espaços de sociabilidade existentes na cidade do Rio de Janeiro, bem como os locais permitidos ao acesso feminino.
Toda vivência e experiência obtida durante a estadia no Rio de Janeiro, provavelmente proporcionou a Aurélia noções do cotidiano e das práticas femininas, além de prepará-la para a vida de esposa, mãe e dona de casa.
Assim, com o encerramento das atividades políticas do Barão da Estância no Rio de Janeiro em 1879, ele e sua família retornam a Sergipe, deixando para trás o amigo da família Gonçalo de Faro Rollemberg, futuro esposo de Aurélia, e a preceptora alemã, Marie Lassius que faleceu no mesmo ano.
Aurélia, já amadurecida, continuou escrevendo suas vivências e experiências, porém, não da mesma forma como antes. Diante de seus retornos ao Rio de Janeiro, de seu casamento, filhos que teve, permanecia em sua memória os ensinamentos, as práticas, as vivências e as experiências deixadas por sua preceptora.
Assim, se Samuel de Albuquerque buscou destacar em seu livro a importância da prática da preceptoria no Brasil para a formação feminina, em especialde Aurélia, ele também conseguiu dar visibilidade às experiências, vivências e práticas culturais no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX.
Everton Vieira Barbosa Correio – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Campus de Assis). Bolsista pelo processo 15555-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).E-mail: semusico@hotmail.com.
ALBUQUERQUE, Samuel. Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX. São Cristóvão: Editora UFS, 2015, 152p. Resenha de: CORREIO, Everton Vieira Barbosa. História histórias. Brasília, v.4, n.7, p.231-233, 2016. Acessar publicação original. [IF]
Oder Auschwitz Vor Gericht | Ronen Steike
Ronen Steinke’s essay is characterised by the journalistic style the author chose for his work, which however is supported by a wide array of documents as evidence of his reading of Fritz Bauer’s life and work. The subtitle of the book is quite a different matter, though, as it sounds restrictive compared with the contents and in fact with the Attorney General himself.
His work is not just about the Auschwitz-Prozess, even if that was the highlight and maybe also the beginning of a downward parabola in Bauer’s legal career, but there were also another two key events, as also perfectly recalled by Steinke’s book, such as his decisive cooperation with the Israeli secret service in finding Adolf Eichmann ‑ in order to have him tried in Israel, and not in Germany, where, due to the magistracy’s compromised position with the earlier regime, he would not have been fairly tried – and the Remer-Prozess which rehabilitated Claus Schenk von Stauffenberg and all those who had made an attempt on Hitler’s life on July 20th 1944. Leia Mais
A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano | MIchael Löwy
Publicado no Brasil pela editora Boitempo em 2014, A jaula de aço, do cientista social Michael Löwy, corrobora relacionar duas correntes sociológicas – a weberiana e a marxista –, muitas vezes entendidas como defensoras de proposições opostas, impossíveis de serem alocadas de forma amistosa na formulação de um quadro conceitual ou mesmo teórico-metodológico, mas que também, segundo o autor, têm sido frequentemente pensadas guardando convergências entre si.
De ascendência judaica, Michael Löwy nasceu em 1938 no Brasil, formou-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo em 1960, doutorando-se sob orientação de Lucien Goldmann em 1964 pela Sorbonne. Atualmente reside na França e é diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique. Löwy tem expressiva bibliografia sobre a história do pensamento de esquerda, desenvolvendo trabalhos sobre Karl Marx, György Lukács, Lucien Goldmann e Walter Benjamin. Nesse sentido, o presente livro, o qual se resenha, é instigante, uma vez que propõe pensar os usos da sociologia de Max Weber – considerado por Löwy um pensador liberal – por autores reconhecidamente marxistas, formando assim, uma “corrente” sociológica referida como webero-marxista. Leia Mais
Alemanha 1918-1924: Hiperinflação e Revolução | Osvaldo Coggiola
Neste trabalho, o historiador marxista Osvaldo Coggiola enfatiza a importância do historiador econômico para a interpretação de fenômenos econômicos e suas consequências na sociedade e na política ao longo da história. Na análise do período 1918-1924 da história econômica alemã, Osvaldo Coggiola se utiliza de um referencial teórico rico, como algumas das teorias socialistas, Marxistas e Keynesianas, inserindo a importância de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht para o partido comunista alemão em sua criação e desenvolvimento. Leia Mais
“Zu wißen und kundt sey hiemit…”. Neue Erkenntnisse zur Osnabrücker Landes- und Stadtgeschichte aus studentischen Forschungen / Volker Arnke e Heinrich Schepers
André Gustavo de Melo Araújo – Universidade de Brasília – UnB.
ARNKE, Volker; SCHEPERS, Heinrich (orgs.). “Zu wißen und kundt sey hiemit…”. Neue Erkenntnisse zur Osnabrücker Landes- und Stadtgeschichte aus studentischen Forschungen. Osnabrück: Selbstverlag des Vereins, 2014. 328p. Resenha de: História histórias. Brasília, v.3, n.5, p.221-222, 2015. Acesso apenas pelo link original. [IF]
A fascinação weberiana: As origens da obra de Max Weber – MATA (AN)
MATA, Sérgio da. A fascinação weberiana: As origens da obra de Max Weber. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. 236p. Resenha de: CUNHA, Marcelo Durão Rodrigues. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, p. 417-426, jul. 2014.
Na linha de estudos atuais no campo da história intelectual e das ideias, o professor Sérgio da Mata realiza em A fascinação weberiana: as origens da obra de Max Weber um trabalho que, dentre outros objetivos, busca elucidar as bases do encantamento intelectual, da sedução que a obra de Max Weber suscita na comunidade acadêmica em todo o mundo.
A “fascinação” – termo cunhado na década de 1950 por Nelson Werneck Sodré – denota, segundo o historiador mineiro, um tipo de tentação intelectual que, de forma ambivalente, poderia levar ao mesmo tempo à obliteração da autonomia da obra de um autor, bem como à sua consequente abnegação no campo das ideias.
Na contramão deste caminho entre fascinação e sacrifício do intelecto, Sérgio da Mata traz um instigante estudo acerca do legado weberiano, desde a dívida do intelectual para com a Escola Histórica Alemã até os caminhos e as fronteiras da recepção de sua obra em terras brasileiras.
Ancorados num extenso trabalho de pesquisa em arquivos e bibliotecas alemãs, os estudos reunidos pelo Weberforscher brasileiro baseiam-se em uma melhor compreensão dos chamados “anos de aprendizagem”, de formação histórico-jurídica do intelectual alemão, antes do seu tardio sociological turn, ao fim da primeira década do século vinte.
Com o princípio metodológico básico de analisar apenas o que antecede esse marco, preocupando-se com o “início” e o desenvolvimento progressivo da vida intelectual weberiana, o autor evita a tendência a panoramas retrospectivos ou a um tipo de teleologismo muito comum em abordagens sobre obra de Weber, ainda perceptível em trabalhos recentes, como os de Francisco Teixeira e Celso Frederico (TEIXEIRA; FREDERICO, 2011), ou no artigo de Gerhard Dilcher (DILCHER, 2012).
Tendo como pressuposto a elevação feita pelo próprio Weber da ciência histórica à categoria de Grundwissenschaft, o pesquisador enxerga na formação intelectual do autor de A ética protestante uma perspectiva que seria sempre e decididamente histórica. Essa ideia de um approach weberiano às ciências históricas – que há alguns anos causaria estranhamento a leitores desatentos – é a base do argumento de Mata em boa parte de sua obra.
Em um exercício de história contrafatual, o autor chega mesmo a sustentar que, caso a carreira de Weber tivesse se encerrado em 1909, este dificilmente estaria situado entre os fundadores da moderna sociologia alemã.
É em tal provocação que reside a tentativa por parte do historiador de reconstrução da trajetória de Weber dentro daquilo que denomina a “era de ouro do historicismo”. Discordando de interlocutores que tendem a observar na virada do oitocentos ao século vinte o germe de uma crise da ciência histórica, Mata vê, pelo contrário, na fundamentação epistemológica do historicismo – realizada por Dilthey, Schmoller, Bernheim, Windelband e Rickert no período – uma indissociável gênese da obra e da metodologia weberianas.
É justamente fugindo da sombra da sociologia de Max Weber que o autor inicia todo um capítulo acerca daqueles anos de aprendizagem em Heidelberg, Göttingen e Berlim – “três templos da ciência histórica oitocentista” (MATA, 2013, p. 35) –, quando o jovem “jurista” formar-se-ia em um ambiente intelectual amplamente influenciado pela Weltanschaung histórica.
Mata busca aqui identificar algumas das figuras que mar‑caram o início da trajetória intelectual do estudante oriundo de Erfurt para concluir que Weber foi, nem mais nem menos que qualquer contemporâneo seu, o resultado dos estilos de pensamento histórico
419.
Anos 90, Porto Alegre, eentão vigentes. Seus laços familiares com o eminente historiador Hermann Baumgarten, a simpatia inicial pelo trabalho de Heinrich von Treitschke, além do convívio do jovem Max com o círculo de Theodore Mommsen, são alguns dos muitos indícios que corroboram a tese do autor.
Desconstruindo a ideia de que Weber teria rejeitado, ou mesmo se oposto à ciência histórica de seu tempo, o historiador nos prova o contrário a partir de um olhar atento sobre a pouco estudada primeira fase da carreira do intelectual germânico. Considerando a perspectiva trazida por Mata nesse primeiro capítulo, torna-se fácil concordar com sua assertiva, segundo a qual “Max Weber começou a tornar-se o Max Weber que conhecemos no berço esplêndido do historicismo alemão” (MATA, 2013, p. 35).
Mas, longe de limitar a ascendência intelectual do jovem autor aos domínios da Ciência Histórica, Mata fornece-nos o panorama de toda uma constelação de ideias e relações intelectuais que teriam influenciado a formação do economista e historiador do direito Max Weber.
A partir da leitura sincrônica de alguns dos mais importantes estudos históricos e econômicos publicados pelo autor até 1905, Mata é capaz de identificar um padrão metódico comum na obra do então professor de Heidelberg. Ao tratar em especial da concepção plural das relações de causalidade e, ao mesmo tempo, da tendência de Weber a enfatizar determinadas macrodeterminações em função do problema específico elucidado, o pesquisador contesta aquelas leituras que tendem a exagerar a perspectiva “idealista” do autor alemão.
É este apurado exame dos primeiros trabalhos de Weber que permite ao historiador chegar a duas conclusões gerais: primeiro, que Weber (ao menos na primeira fase de sua carreira) não teria proposto nem se tornado refém de uma “teoria” histórico-social abrangente. Segundo, que somente o desconhecimento em relação à obra weberiana explicaria por que se chegou a ver no autor de Erfurt uma versão idealista de Marx. E são justamente as preocupações práticas que permitem ao historiador identificar uma “clavis weberiana” – especialmente nos vinte primeiros anos da trajetória intelectual do autor. Por trás da inteligência teórica, Weber falaria sempre em uma intenção prática.
Na trilha do que persegue nas digressões teóricas de um Weber prematuro, Mata procurará, entretanto, nas publicações tardias do intelectual turíngio, sinais de uma possível concepção filosófica da história. Principalmente no que tange à sua percepção do processo de racionalização ocidental e no caráter inexorável que atribui ao conceito de Rationalizierung, o autor brasileiro irá buscar no resultado das investigações empíricas weberianas possíveis ligações com a obra do historiador escocês Thomas Carlyle.
Por sua “extraordinária força ética” e pelo ideal de reforma social em harmonia com a recusa a toda alternativa que implicasse a subversão violenta da ordem, Carlyle tornara-se bastante sedutor aos olhos da intelectualidade alemã do fin-de-siècle. Do autor de Past and Present, Weber herdara, por exemplo, aquela ampla dimensão atribuída ao trabalho na modernidade e as idiossincrasias da noção de “heroís‑mo carismático” no cerne do processo de burocratização ocidental.
Exercício semelhante é feito pelo autor no que diz respeito à dívida weberiana ao pensamento do filósofo neokantiano Heinrich Rickert. Distanciando-se da apressada leitura de Ivan Domingues (DOMINGUES, 2004) e dos equívocos cometidos por Fritz Ringer (RINGER, 2004) na análise de tal relação, Mata insiste na necessidade de entendimento dos pressupostos rickertianos para melhor compreensão dos fundamentos do pensamento histórico de Weber. Do autor de Os limites da formação de conceitos nas ciências naturais, Weber extraíra a ideia de que as pré-condições à caracterização de um trabalho de história como científico seriam: objetividade, contextualização e imputação causal. Weber teria expressado bem esta preocupação de Rickert ao observar que o historiador que abre mão dessas pré-condições comporia “um romance histórico, não uma verificação científica”.
Além disso, do filósofo prussiano, teria sido importante para o economista político aquele abrangente conceito de cultura – segundo o qual o cultural seria qualquer realidade investida não apenas de sentido, mas de valor – e o seu ideal de “verdade” como um valor do qual a ciência jamais poderia abrir mão. Longe de expressar um relativismo, o perspectivismo histórico weberiano, como exposto por Mata, estaria muito mais próximo daquele modesto ideal de verdade defendido por Rickert. 420 Marcelo Durão Rodrigues da Cunha.
Abertas tais perspectivas críticas quanto à análise das origens do pensamento histórico weberiano, Sérgio da Mata amplia o debate no quarto capítulo, ao tratar da discussão em torno da “teoria” dos tipos ideais, desenvolvida por Weber. É realizando uma história do próprio conceito em tela que o autor relativiza a originalidade da tal aspecto do pensamento teórico-metodológico do intelectual alemão.
Expressando uma tentativa de fundamentar a perspectiva tipologizante nas ciências naturais, o autor alerta que a noção de “tipo” havia se tornado um jargão na Alemanha entre fins do século dezenove e início do vinte. Como reverberação da Methodenstreit entre economistas alemães e austríacos – envolvendo nomes como Gustav von Schmoller e Carl Menger (RINGER, 2000) – e do debate, igualmente intenso, que contrapôs historiadores políticos a historiadores culturais (ELIAS, 1997, p. 117), Mata verifica a percepção de alguns daqueles limites do historicismo que contribuíram para a reformulação epistemológica da disciplina histórica na Alemanha guilhermina. Nas discussões entre Eberhard Gothein, Dietrich Schäfer e Ernst Troeltsch, seria perceptível o embate acerca da utilidade de categorias tipológicas que visassem a extrapolar os limites do singular na representação de fenômenos históricos.
É também na ciência jurídica e na ligação de Weber com o jurista Georg Jellinek que Mata identifica como o autor do artigo sobre a “Objetividade”, de 1904, teria feito uso dos “tipos empíricos” de Jellinek, invertendo seus polos – os denominando “tipos ideais” – de modo a se distanciar de seu elemento propriamente normativo, – aproximando-os do que classificava como “ciências da realidade”.
A dívida de Weber para com a teologia – e aqui destacam-se as formulações de Ernst Troeltsch – é ressaltada como igualmente importante naquilo que se tornaria tão central em sua obra. Como uma espécie de conceito jurídico “desnormativizado”, o tipo ideal weberiano representaria uma forma de compromisso entre o abandono e a conservação da filosofia da história, sendo, nesse sentido, uma “forma resignada da filosofia da história”. Mais do que simples‑mente comprovar que não há originalidade na “teoria” weberiana dos tipos ideais, Mata é capaz de trazer novamente à tona uma série de debates entre eruditos que outrora padeciam em um longo período de esquecimento.
Ao tratar de outro controverso aspecto da obra de Weber, a “isenção de valor” ou “neutralidade axiológica” (Wertfreiheit) do conhecimento histórico social, o autor opta por reconstruir a evolução de tal sentido na obra de Weber, contrapondo a posição do intelectual às de alguns de seus contemporâneos. Em trabalhos como o ensaio sobre a “Objetividade” ou em A ética protestante, além do diálogo com as obras de Rickert e Schmoller, o historiador evidencia, em um primeiro momento, que há na obra de Weber uma preocupação com o “dever ser” (Sollen) do erudito que extrapola o campo propriamente epistemológico, estendendo-se também à ética da prática pedagógica.
Mata conclui que Weber sustenta a opinião segundo a qual o historiador, o jurista e o sociólogo podem e devem ter sua própria visão de mundo, sua ética e suas convicções políticas, mas não a ciência histórica, o direito e a sociologia enquanto tais. Weber afirmaria querer se afastar dos adeptos de uma neutralidade axiológica “radical”, para quem a historicidade dos postulados éticos deporia contra a importância histórica destes. Ao mesmo tempo, julgaria que não cabe à ciência empírica valorar positivamente uma ética só por ela ter dado forma a épocas e culturas inteiras. Nesse sentido, a neutralidade axiológica weberiana residiria, em última análise, numa transposição da ética da convicção para o campo gnosiológico.
Apontando o caráter estritamente formal da solução weberiana para o problema dos valores, além de sua posição pouco consequente do ponto de vista filosófico, Mata joga luz sobre o tão atual debate acerca das relações entre ciência e consciência moral.
Dando prosseguimento ao debate acerca da influência do pensamento weberiano na ciência histórica, o pesquisador ambiciona, no sexto capítulo, compreender os motivos do amplo desconhecimento a respeito da obra de Weber – tanto no Brasil quanto no exterior – e do seu legado para o ofício dos historiadores.
Dedicando-se ao entendimento de alguns importantes aspectos da visão de Weber sobre a ciência histórica, Mata analisa a opinião do intelectual frente aos escritos de três relevantes historiadores – Leopold von Ranke, Karl Lamprecht e Eduard Meyer – de modo a melhor aproximar-se de sua própria visão a respeito do tema.
Em tal exercício, o historiador conclui que tudo parece afastar as posições de Weber, sobretudo, do segundo desses autores. Os argumentos apresentados na polêmica com Meyer levam-no, toda‑via, a concluir que entre a história “positivista” de Lamprecht e a história compreendida como “ciência cultural” de Weber existiam evidentes afinidades eletivas. Mata percebe que ambos se reconheciam como representantes de uma história cultural que desafiava abertamente os rígidos cânones historiográficos vigentes.
A aproximação com o trabalho do Weber historiador no atual momento do que classifica como “crises de sentido intersubjetivas” seria, segundo Mata, profícua na medida em que – distanciando-se de uma perspectiva de exagero do ficcional – este versaria sobre uma ciência preocupada com os desdobramentos do real.
Nos capítulos seguintes, o autor reitera tal posição referente à relevância da Weberforschung no presente, ao analisar o uso do conceito de “despotismo oriental” e o debate acerca da existência de uma posição religiosa e de uma teologia política na obra de Max Weber.
No primeiro caso, em um pequeno excurso complementar, Mata empreende uma elucidativa avaliação dos escritos weberianos acerca da situação política na Rússia do início do século vinte. Em sua análise, o autor conclui que Weber surpreendentemente mantém sua opinião a respeito do suposto imobilismo russo – de forma coerente com o que era pensado pelos fundadores do materialismo histórico em sua noção de “despotismo oriental”.
No segundo, Mata reserva dois capítulos inteiros para debater a complexa relação do autor em tela com a teologia e a prática religiosa. A partir de uma perspectiva própria à história das ideias, o historiador enaltece a importância do homo religiosus Max Weber para o “estudioso da religião Max Weber”. Em uma minuciosa análise da trajetória dos estudos teológicos de sua família, além das relações do jovem jurista com seu primo Otto Baumgarten, o autor percebe que, longe do que era pregado por Friedrich Schleiermacher, Weber entendia que vida religiosa interior e ação transformadora no mundo não deveriam nem poderiam se contradizer.
Mais adiante, ao discutir a existência de uma teologia política por trás da Ética protestante, o autor traz – em recurso a elementos sociopolíticos, acadêmicos e biográficos do contexto de produção da obra – uma surpreendente interpretação do mais conhecido trabalho do intelectual alemão. Levando em consideração elementos biográficos, além da posição do autor diante da política de seu tempo, Mata é capaz de perceber no estudo de história cultural weberiano tanto a expressão tardia do Kulturkampf1 quanto um tratado de teologia política.
Tratando ainda do clássico estudo de Weber, o historiador irá desconstruir no capítulo seguinte o que considera a formulação do mito de A ética protestante e o espírito do capitalismo como obra de sociologia. Considerando a forma pela qual o autor emprega as categorias de “tipos ideais” – “uma construção mental destinada à medição e caracterização sistemática de conexões individuais, isto é, importantes devido à sua especificidade” (WEBER apud MATA, 2013, p. 180) –, Mata percebe em tal recurso heurístico a tentativa por parte do autor de facilitar a identificação e a análise de realidades percebidas como singulares, que seriam, em última instância, históricas. Além disso, declarações do próprio Max Weber e uma análise do contexto de produção historiográfica do período corroboram a tese do historiador mineiro, segundo a qual A ética protestante teria sido concebida, antes de tudo, como um estudo de história cultural.
Uma última e relevante preocupação de Mata em seu traba‑lho diz respeito à recepção da obra de Max Weber entre historiadores brasileiros desde o início da difusão de seus escritos em território nacional ao longo do último século. De uma favorável leitura de suas ideias durante as décadas de 1930 e 1940 – em interlocutores como Sérgio Buarque de Holanda e José Honório Rodrigues – à crítica e incompreensão de sua “interpretação espiritualista da História” Mata busca em nossa historiografia aquele “elo perdido” entre a obra weberiana e sua interpretação por interlocutores locais.
Neste caminho de reconstrução de itinerários e desmistificação de noções há muito atreladas à herança weberiana, o autor brasileiro erige novas perspectivas úteis à apreciação do “mito de Heidelberg” e de sua obra. Como alternativa a uma ótica demasiado contextualista, Mata opta por trabalhar com a noção de constelações intelectuais e suas delimitações (HEINRICH, 2005, p. 15-30) – ou “espaços de pensamento”. Tal esforço metodológico, conforme buscou-se demonstrar no curto espaço desta resenha, é coroado pelo sucesso da análise do autor em combinar contextos e insights biográficos, fornecendo-nos um panorama das principais conquistas da obra histórico-sociológica de Max Weber.
Se um dos objetivos de Sérgio da Mata – conforme exposto em suas últimas digressões – estava associado à compreensão de um autor dedicado à história como ciência da realidade, pode-se considerar que seu trabalho cumpre à risca a intenção de trazer à tona tal debate. De posse daquela “coragem diante do real” e diante da recente tendência à “ficcionalização de tudo”, Mata é capaz de perceber em seu estudo o quanto o legado de Max Weber se mostra cada vez mais relevante ao entendimento do real enquanto vocação e profissão também no mundo contemporâneo.
Notas
1 Política implementada pelo chanceler Otto von Bismarck entre 1871 e 1878 com o objetivo de secularizar o Estado alemão e eliminar a influência da Igreja Católica Romana sobre a cultura e a sociedade germânica do período.
Referências
DIEHL, Astor Antônio. Max Weber e a história. Passo Fundo: Ediupf, 2004.
DILCHER, Gerhard. As raízes jurídicas de Max Weber. Tempo social, v. 24, n. 1, p. 85-98, 2012.
DOMINGUES, Ivan. Epistemologia das ciências humanas. São Paulo: Loyola, 2004.
ELIAS, Norbert. “História da cultura” e “história política”. In:______. Os alemães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
HEINRICH, Dieter. Konstellationsforschung zur klassischen deutschen Philosophie. In: MUSLOW, Martin; STAMM, Marcelo (Hrsg.). Konstellationsforschung. Frankfurt am Main: C.H. Beck, 2005.
HÜBINGER, Gangolf. Max Weber e a história cultural da modernidade.
RINGER, Fritz. O declínio dos mandarins alemães: a Comunidade Acadêmica Alemã, 1890-1933. São Paulo: Edusp, 2000.
______. A metodologia de Max Weber. São Paulo: Edusp, 2004.
TEIXEIRA, Francisco José Soares; FREDERICO, Celso. Marx, Weber e o marxismo weberiano. São Paulo: Cortez, 2011.
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968.
______. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Marcelo Durão Rodrigues da Cunha – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista Fapes. E-mail: marceloduraocunha@gmail.com.
Egocentricidade e mística: um estudo antropológico – TUGENDHAT (C)
TUGENDHAT, Ernst. Egocentricidade e mística: um estudo antropológico. Trad. de Adriano Naves de Brito e Valerio Rohden. São Paulo: WMF M. Fontes, 2013. Resenha de: CESCO, Marcelo Lucas. Conjectura, Caxias do Sul, v. 19, n. 2, p. 204-208, maio/ago, 2014.
Ernest Tugendhat nasceu em 1930, em Brünn. Atualmente, vive em Tübingen. É professor emérito de Filosofia nas Universidades de Berlin e Tübingen. Sua obra, traduzida para o português, é composta por uma grande variedade de livros e artigos, entre eles se destacam Propedêutica lógico-semântica (1996), Lições introdutórias à filosofia da linguagem (2006) e Lições de ética (1997). Vem somar-se a estas obras traduzidas Egocentricidade e mística: um estudo antropológico, texto que será apresentado nesta resenha.
No referido texto, Tugendhat faz uma análise filosóficoantropológica, buscando, se não primeiramente responder, suscitar outras perspectivas de possíveis respostas para perguntas como: O que significa dizer “eu”? Por que os seres humanos buscam a paz de espírito? O que diferencia o homem dos outros animais? Como é que se dá a relação do homem com a vida e com a morte? Qual a diferença entre religião e mística? Este livro é dividido em duas grandes partes, a saber: na primeira, com o título de “Relacionar-se consigo mesmo”, o autor se foca mais em questões antropológicas, especificamente tentando responder o que ele entende por egocentricidade. Na segunda parte, sob o título “Tomar distância de si mesmo”, Tugendhat tem o foco voltado para as questões do que e como ele compreende a mística. Leia Mais
Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette – ALVES (Tempo)
ALVES, Rubem. Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011. 188 p. Resenha de: COSTA, Tati. Livro para saborear: método científico regado a sensibilidades. Tempo v.19 no.35 Niterói jul./dez. 2013.
Pelo que sei, só existe um lugar, no universo inteiro,
onde o puro pensamento é capaz de mover
a matéria. Esse lugar é o corpo. No corpo, a gente
pensa na moqueca e a boca fica cheia d’água. (p. 144)
Resenhar obra de Rubem Alves é saboroso desafio pela qualidade de sua escrita e erudição de seus conhecimentos. Resenhar, com objetivo de circulação acadêmica orientada ao conhecimento histórico, é como acrescentar pitada de pimenta ao desafio. Porque a experiência de vida narrada pelo autor, então aos 77 anos, carrega uma provocação ao fato de que ambientes educacionais, acadêmicos e científicos ignoram o aspecto sensível do conhecimento e as dimensões do amor, prazer, desejo e alegria. Felizmente, nas ciências humanas, algumas experiências com história do tempo presente têm se dedicado a desafios semelhantes. Por exemplo, já se trilha com sabedoria a história das sensibilidades; já se trabalha, há algum tempo, a arte de uma boa conversa nas pesquisas com história oral. E, na história cultural, cada vez mais nos debruçamos sobre as artes e artistas da poesia e literatura, da música, da culinária, das imagens, buscando dimensões de economias do desejo ali presentes. Desde o início, o autor sugere aproximações entre a construção do conhecimento e a gastronomia, destacando as coincidentes raízes etimológicas de saber e sabor. Recorda inclusive que, antigamente, quando uma comida era saborosa, dizia-se: “esta comida sabe bem”.
O livro transita por variações nas quais os objetos de análise são retomados por diferentes pontos de vista e, a cada capítulo, têm caráter ensaístico. Além do prefácio, do próprio autor, 12 ensaios variam bastante em estrutura narrativa. Nos títulos, lê-se marcante presença de bom humor, combinado com provocações críticas. As notas de rodapé, por exemplo, recebem o nome de notas de canapé, termo que Rubem Alves considera mais apropriado, pois devem ser “coisas pequenas e saborosas, algumas doces, outras apimentadas, que abrem o apetite, e que são servidas no meio da festa”.1
Atenta, sobretudo, às questões de história e memória, algo que ocupa significativamente a cena dos atuais estudos históricos, minha observação versa sobre o potencial metodológico da obra como contribuição para as pesquisas em História cultural, História do tempo presente e História oral. Além disso, o livro oferece uma bela retomada de autores clássicos, prato cheio para quem pesquisa apropriações e percursos de leitura a respeito de Nietzsche, Marx, Fernando Pessoa, Bachelard, Paulo Freire, Wittgenstein, Manoel de Barros, Guimarães Rosa, William Blake, entre outros.
A velhice é o ponto de onde fala (ou escreve) o autor: “A consciência da morte nos dá uma maravilhosa lucidez”.2 Tal singularidade sobre a fase da vida nos informa a respeito tanto dele quanto das categorias que lhe são atribuídas: escritor vencedor do prêmio Jabuti em 2009, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pedagogo, poeta, cronista, contador de estórias, ensaísta, teólogo e psicanalista.
Quando fala sobre envelhecimento, refere-se às metamorfoses do ser humano ao longo do tempo, o processo histórico das mudanças no corpo e nas perspectivas sobre a experiência. Em se considerando a frequente participação de pessoas idosas na História oral, o testemunho do autor sugere ingredientes úteis à linha epistemológica interessada em considerar as elaborações, as composições narrativas, os processos de autopercepção que operam durante a produção e registro dos relatos, como sinalizam Walter Benjamin,3 Alessandro Portelli4 e Eduardo Coutinho.5
Outro diálogo importante: a realização de entrevistas é ato de sensibilidade que exige o gosto por uma boa conversa, e uma epistemologia sobre o prazer da boa conversa é um dos elementos presentes na obra. O encontro entre a pessoa que pesquisa histórias de vida e aquela que narra é um espaço de arte e sabedoria, onde o prazer do corpo revela-se essencial. A dimensão do corpo como elemento de conhecimento tem fundamental importância para quem trabalha com o tema da memória na história. Lembremos, por exemplo, da discussão de Henri Bergson em “Matéria e Memória,”6 atualizada no debate de Ecléa Bosi7 sobre sociedade e memória nas lembranças dos velhos e complementada no diálogo com Paul Ricoeur8 na dimensão da memória compartilhada entre as pessoas “próximas”. Considerando-se as diversas operações entre memória individual e coletiva, é através do universo corporal que a lembrança de uma experiência vivida se inscreve na pessoa.
Mas a memória vive tanto de lembranças quanto de esquecimento, tema que recebe de Rubem Alves um ensaio específico, intitulado “O esquecimento: Barthes (ou ‘Me esqueci do sabido para me lembrar do esquecido’)”. Leem-se algumas propostas produzidas na velhice, quando Barthes dedicou-se à pesquisa e à experimentação. Outra lição importante para o trabalho com História oral:
se quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que sou contemporâneo dos jovens corpos presentes, e não de meu corpo passado.9
A relação entre saberes e fases da vida, alvo da reflexão de Rubem Alves, delineia uma rota de aproximação da obra com o fazer histórico no contemporâneo:
Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar.
Não estaria aí uma inspiração para a história do tempo presente? Uma história escrita a partir da compreensão de que essa ciência chegou à “beira da falésia,” e que toma como objeto de atenção o próprio processo de construção da pesquisa, em seus caminhos e descaminhos, escolhas e descartes, enfim, a “operação historiográfica” em si, tomada como objeto de análise.
Por aí transitamos para o diálogo com a concepção de ciência discutida pelo autor: embate sobre os limites da objetividade em relação às subjetividades e saberes do corpo, um universo além do saber “lógico-racional”. Afinal, indaga Rubem Alves, o que faz uma boa moqueca? O livro de receitas não é garantia de sucesso se não contar com a experiência da cozinheira. Por aí se insere a questão do método científico regado a sensibilidades: juntar ingredientes só resultará em uma boa moqueca se for capaz de gerar água na boca. E, para isso, é imperativo contar com os saberes do corpo, que vão desde a memória do gosto ideal de uma moqueca, passam pela sabedoria dos gestos de salpicar temperos e mexer os ingredientes até atingir o ponto.
A inspiração, esse elemento que todos conhecemos (buscamos, ao menos), é essencial nas escolhas do prato a preparar, das quantidades e qualidades de ingredientes, nos momentos de aumentar ou diminuir o fogo. Por esse caminho, Rubem Alves nos conduz ao paradoxo da (im)possibilidade de um método para a escrita ou para a inspiração. Contudo, tal ponto faz da obra uma inspiradora provocação! Preocupado com que a própria escrita seja prazerosa como uma boa conversa, nos ensina sobre as relações entre oralidade e escrita e sugere alguns temperos narrativos para se contar uma boa história:
Um artigo científico é isso: o relato do caminho que se seguiu para se ir do ponto de onde se partiu até o ponto aonde se chegou. Isso se chama método. Mas o corpo não entende a linguagem do método. Método são procedimentos racionais. Mas o corpo é um ser musical. “O organismo é uma melodia que se canta,” diz Merleau-Ponty citando o biólogo Uexküll.10
Mesmo que Rubem Alves defenda sua escrita “contra o método,” com a licença e respeito profundo ao autor, ouso ler, a partir do livro que tenho em mãos, uma proposta metodológica. Não se trata de um método linear, objetivo, racional, como o da ciência cartesiana ou, para a história, no sentido hegeliano. Trata-se, a meu ver, de uma metodologia da inspiração e das sensibilidades — considerando que o sufixo possa ser uma forma de situar em palavras um sentido mais aberto de conhecimento.
Tratar de métodos e metodologias é demanda presente. Diversas áreas da ciência tiveram uma “crise” ou “virada” epistemológica,11 principalmente nas transições e revoluções que caracterizaram o decorrer do século XX. Depois do que se nomeou linguistic turn, o próprio papel do autor na produção do conhecimento científico é reconhecida como questão-chave e, se buscarmos uma emergência da temática, poderemos desfiar interessante debate, reunindo temporalidades por meio das obras de Walter Benjamin,12 Roland Barthes,13 Michel Foucault14 e Giorgio Agamben.15 Daí se decanta um desafio de como operar a transição, à la Deleuze e Guattari, da “árvore do conhecimento” para o conhecimento “rizomático”.16
É com uma escrita por imagens, de caráter sensivelmente rizomático, que se exibe no livro uma metodologia para a construção do saber sensível: no modo de escrever, acompanhado por boa música; no conselho, “para aprender lógica, leia poesia;” nas mil e uma maneiras diferentes que o autor encontra para inserir o diálogo com autores e teorias ou, como ele gosta de dizer, nas conversas com os autores. E traz até uma “receita” para encontrar inspiração, por meio da descrição de Nietzsche:
Repentinamente, com certeza e sutileza indescritível, algo se torna visível, audível, algo nos sacode em nossas últimas profundezas e nos lança por terra… A gente não busca, ouve. Não pede ou dá, aceita. Como o relâmpago, um pensamento se ilumina, com necessidade, sem hesitações com respeito à sua forma.17
Com a metáfora: “ideias são bailarinas, a inspiração é a solista,” o texto se compõe organicamente como num corpo de baile. A cadência do conhecimento científico que considere a inspiração como elemento metodológico está afinada, por exemplo, com o trabalho de Durval Muniz Albuquerque Jr.,18 quando diz que a história é a arte de “inventar” o passado, e com a defesa de João-Francisco Duarte Jr.19 por uma educação (do) sensível. Ambos pontuam uma metamorfose do próprio olhar sobre a verdade, ao longo da história da ciência: mais do que absoluta, a verdade figura como o horizonte de possibilidades, quando se considera a relação de interdependência entre a realidade observada e o seu registro pelo observador.
Rubem Alves ocupa-se dos limites da linguagem para dar conta da experiência sensível. E os problemas que ocorrem quando a ciência, estritamente racional, ignora ou silencia uma importante gama de conhecimentos presentes nos saberes do corpo, não ditos em palavras puramente lógicas. Como uma trilha do prazer, propõe a metodologia da sapiência culinária: ter conhecimento do desejo e do que fazer para produzi-lo. A função da inteligência, nesse sentido, “é organizar o poder de tal forma que ele se transforme em ponte entre o desejo e seu objeto”.20
Nesse sentido, destaco “Os saberes do corpo,” sexto ensaio do livro, dedicado a uma ideia “bergsoniana”: a percepção que temos de algo é a percepção de seus efeitos sensíveis, processo que ocorre de modo muito íntimo nos caminhos da subjetividade. Além do conhecimento acumulado, verificado e atestado, existe um nível subjetivo do conhecimento, elaborado por cada pessoa. Um exemplo: a forma como cada pessoa sente o sabor da mesma manga. A experiência é incomunicável, impossível de traduzir-se em palavras, menos ainda em dados verificáveis.
Sete são os ensaios dedicados ao que arrisco chamar de uma epistemologia do conhecimento sensível. Seguem-se outros cinco em torno das variações sobre o prazer. Inspiram-se na prática, algo comum no universo musical, de compor “variações sobre o mesmo tema”. Além de obras eruditas que trabalham a partir dessa modulação, as Jam Sessions de blues ou jazz têm a mesma levada, com boa dose de improvisação. A cada ensaio, Rubem Alves compõe uma variação sobre o prazer, partindo do ponto de vista de uma área do conhecimento, em companhia de um autor central. A primeira variação, teologia, possui como ponto de partida um texto de longa história. Trata-se do De doctrina christiana, de Santo Agostinho (354–430 d.C.). A segunda variação, filosofia, é uma conversa com Nietzsche, escrita de modo transliterário, em que as ideias “nietzscheanas” são transpostas ao texto, com destaque para a especialidade de Nietzsche: ir além da preocupação com as coisas que podem se tornar palavras, para buscar o universo do indizível, que é visível, audível, sensível. A terceira variação, economia, é uma conversa do autor com Marx, num cenário boêmio, regado a cerveja e envolto por uma fumaça de charuto. A quarta variação, culinária, aproxima os temas da ciência e do saber ao espaço culinário, conversando com cozinheiras como Babette.
Acompanha o cafezinho, do ensaio Post scriptum, um saboroso chocolate mentolado dedicado à ausência do amor e do prazer na educação. Pela minha leitura a partir da História, devemos compartilhar essa observação, já que nosso ofício está ligado à educação em todos os níveis da escola formal, do ensino básico até o superior. E, mesmo quando não nos dedicamos diretamente à docência, concentramo-nos em pesquisas, estamos a produzir um conhecimento que, para ter sentido de ser, carrega o devir de se dirigir a um público e servir como ferramenta do saber.
O gosto que fica na boca após a leitura desse livro delicioso é o sabor de um texto escrito com prazer. Metáforas na arte da escrita, permeada por imagens da culinária e da música, revelam a importância da experiência pessoal e da potência sensível para o exercício da pesquisa e construção do conhecimento científico. Para Rubem Alves, o primeiro passo é o sonho. Levar o corpo a trabalhar, por prazer, mais do que por dever. Que o professor se ponha a sonhar e a ensinar a sonhar… Por isso, encerro com uma frase do filósofo e escritor Euclides Sandoval, leitor de Nietzsche e professor durante 40 anos, do ensino básico à faculdade de Artes, em um de seus cadernos diários: “Antes de uma aula, é preciso que o professor durma… E sonhe”.
1 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 7. [ Links ]
2 Idem, Ibidem, p. 9.
3 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1987. [ Links ]
4 Alessandro Portelli, “A Filosofia e os Fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais,” Tempo, vol. 1, n. 2, Rio de Janeiro, 1996, p. 59-72. [ Links ]
5 Eduardo Coutinho, “O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade”, Projeto História, n. 15, São Paulo, 1997, p. 165-191. [ Links ]
6 Henri Bergson, Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito, 4. Ed., São Paulo, WMF M. Fontes, 2010. [ Links ]
7 Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos, 3. Ed., São Paulo, Cia das Letras, 1994. [ Links ]
8 Paul Ricoeur, A memória, a história, o esquecimento, Campinas, Editora da Unicamp, 2007. [ Links ]
9 Roland Barthes apud Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 52. [ Links ]
10 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 17. [ Links ]
11 Dentre possíveis abordagens, menciono autores que situam o tema em suas áreas de estudo, com a ressalva de serem escolhas dentro de variado e saboroso menu! Roger Chartier debate a história entre certezas e inquietudes; Fritjof Capra dedica-se ao diálogo entre teorias das ciências físicas e biológicas, com sistemas políticos e sociais; Beatriz Sarlo pensa a emergência da cultura da memória a partir da guinada subjetiva. Cf. Roger Chartier, À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes, Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2002. [ Links ] Fritjof Capra, As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável, São Paulo, Cultrix, 2005. [ Links ] Beatriz Sarlo, Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva, São Paulo, Cia das Letras; Belo Horizonte, UFMG, 2007. [ Links ]
12 Aqui me refiro ao ensaio “O autor como produtor”, de 1934, Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1987. [ Links ]
13 Roland Barthes, “A morte do autor” (1968), In: ______. O rumor da língua. 2. Ed., São Paulo, M. Martins, 2004, p. 65-78. [ Links ]
14 Michel Foucault, O que é um autor?, 4. Ed., Lisboa, Passagens; Vega, 2000. [ Links ]
15 Giorgio Agamben, “O autor como gesto,” In: ______. Profanações, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 55-62. [ Links ]
16 Giles Deleuze, Felix Guatari, “Introdução: Rizoma,” Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995, p. 11-37. [ Links ]
17 Rubem Alves, Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette, São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2011, p.23. [ Links ]
18 Durval Muniz Albuquerque Jr., História. A arte de inventar o passado, Bauru, Edusc, 2007. [ Links ]
19 João-Francisco Duarte Jr., O Sentido dos Sentidos: A Educação (do) Sensível, 4. Ed., Curitiba, Criar Edições, 2006. [ Links ]
20 Rubem Alves, op cit., p. 147.
Tati Costa – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – Florianópolis (SC), Brasil. E-mail: tatilcosta@yahoo.com.br.
Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann – GAY (C)
GAY, Peter. Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann. Trad. de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 2, p. 157-162, maio/ago, 2013.
Literatura e história: aproximações teóricas e divergências metodológicas
A narração não podia ter uma condição própria, pois, conforme os casos, estava submetida às disposições e às figuras da arte retórica, ou seja, era considerada como o lugar onde se revelava o sentido dos próprios fatos ou era percebida como um obstáculo importante para o conhecimento verdadeiro. […] Só o questionamento dessa epistemologia da coincidência e a tomada de consciência sobre a brecha existente entre o passado e sua representação, entre o que foi e o que não é mais e as construções narrativas que se propõem ocupar o lugar desse passado permitiram o desenvolvimento de uma reflexão sobre a história, entendida como uma escritura sempre construída a partir de figuras retóricas e de estruturas narrativas que também são as da ficção. (CHARTIER, 2009, p. 12).
Assim, Roger Chartier, em seu livro A história ou a leitura do tempo, resumia as contendas entre historiadores, críticos literários e filósofos nos anos 1960 e 1970, e que se desdobraria na “crise da história” dos anos 1980 e 1990. Na década de 1970, o historiador Peter Gay não deixou de lado essas questões, mas seu caminho seguiu um rumo também peculiar. Em suas obras: O estilo na História: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt (de 1974), Arte e ação: as causas na história – Manet, Gropius, Mondrian (de 1976) e Freud para historiadores (de 1985), além de “pagar seu tributo à historiografia”, com uma trilogia não planejada, o autor também revisou o campo dos estudos históricos, ao propor articular novamente arte e ciência na escrita da história, em uma abordagem inovadora sobre o estudo da história social das ideias, utilizando-se das contribuições da Psicologia (em especial, da Psicanálise), para entender os homens e as sociedades do passado.
Ao publicar, em 1974, O estilo na história, ele não destacava especial apreço, ou atenção, sobre as discussões a respeito da “virada linguística”, proporcionada pela recepção do estruturalismo e do pós-estruturalismo francês nos Estados Unidos. Como ele próprio indica no livro, destinava maior consideração aos trabalhos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), Ferdinand de Saussure (1857-1913), Claude Lévi-Strauss (1908-2008) e Erich Auerbach (1892-1957). Principalmente o último, que o marcou profundamente, ao ler seu livro: Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, de 1946. Ao tratar da composição do estilo na obra de cinco historiadores: Edward Gibbon (1737-1794), Leopold von Ranke (1795-1886), Thomas Macaulay (1800-1859), Jacob Burckhardt (1818- 1897) e Theodor Mommsen (1817-1903), discutido na conclusão do livro, acentuaria de modo sutil sua crítica a Roland Barthes (1915-1980). Primeiro, porque o estilo não se encontrava apenas no campo da escrita, mas na sua interação com o escritor, sua época e seu meio. Segundo, porque as metáforas que lhe seriam inerentes não inviabilizavam a representação do princípio da realidade, antes a destacaria com maior sensibilidade e profundidade. Isso porque, ao ser o próprio homem, como o definiu Georges-Louis Leclerc (1707-1778), (mais conhecido como) conde de Buffon, o estilo demarcaria a matéria, a retórica, a maneira e as estratégias da escrita, mas ao ser também mais do que ele, como destacou Peter Gay, o estilo “nem sempre é o homem, decerto não o homem por inteiro”, mostraria sua relação com o “contexto de produção”, com o “lugar social ocupado pelo autor”, suas “leituras” e sua “formação”. Com isso, o estilo “por vezes, é menos do que o homem; com frequência é mais que ele”. (1990, p. 193).
Por isso, também, o estilo “é a arte da ciência do historiador”. Não foi por acaso, nesse sentido, que a continuidade de seus estudos, nesse campo, o levasse a analisar a “causalidade na história”, e a maneira como se apresentava na escrita, mas tendo em vista seus contornos em “artistas”, e não, nesse caso, em “historiadores”, como mostrou em seu livro: Arte e ação: as causas na história – Manet, Gropius, Mondrian (de 1976). No início dos anos de 1980, o autor prolonga tal esforço metodológico, apresentando sua proposta de aproximar a escrita da história, com a análise do “inconsciente”, exposta pela Psicanálise – tendo em vista a obra de Sigmund Freud (1856-1939), de seus seguidores e intérpretes (GAY, 1989b).
Assim, a sua “justificativa para a história como uma ciência elegante, razoavelmente rigorosa, apoiava-se fortemente […] no [s]eu comprometimento com a psicologia, em particular com a psicanálise”. Para o autor, a maior contribuição a ser encontrada nessa aproximação, outrora iniciada pelas descobertas de Marc Bloch (1886-1944) e de Lucien Febvre (1878-1956), com o movimento que geraram a partir da revista Annales, é que a “história psicanalítica pode entrar para expandir a nossa definição de história total decisivamente ao incluir o inconsciente, e o incessante tráfico entre a mente e o mundo, no território legítimo da pesquisa do historiador”.
(1989a, p. 165). Apesar de não dialogar diretamente, até este momento, com os filósofos franceses dos anos 60, que contribuíram para desencadear “a virada lingüística”, que nos Estados Unidos trouxe um grande impacto, ao questionarem a maneira pela qual os estudos históricos eram apresentados em suas formas narrativas, a obra de Peter Gay, nem por isso, deixou de reiterar a incontornável ligação entre a arte e a ciência, sobre os estilos da escrita da história apreendidos pelo historiador.
Quase duas décadas depois de concluir sua trilogia, sobre o estilo e suas relações com a história e sua escrita, o autor volta-se agora com maior atenção para o que até então havia deixado um pouco de lado, o romance e sua representação da realidade. Por que não só de divergências são constituídos os discursos histórico e literário. E seu livro Represálias selvagens (originalmente publicado em 2002), neste caso, não é apenas uma reconciliação do autor com o campo da produção literária, mas também um avanço quanto as suas análises sobre o estilo e a maneira pela qual caracteriza autor e obra, ao abordar o “princípio de realidade” contido na escrita – tanto da narrativa histórica, quanto na do romance. Contudo, o estudo da produção literária exige certa cautela, porque o romance encontra-se na “intersecção estratégica entre a cultura e o indivíduo, o macro e o micro, apresentando ideias e práticas políticas, sociais, religiosas, desenvolvimentos portentosos e conflitos memoráveis, num cenário íntimo”.
(GAY, 2010, p. 16). Apesar de os leitores quererem confiar “nos escritores de ficção tanto quanto acham que querem confiar nos historiadores”, ambos constroem representações peculiares sobre a realidade. Ainda que as aproximações teóricas, sobre os espaços de análise do romancista e do historiador sejam evidentes, há divergências metodológicas significativas na maneira como cada um procede com as fontes e reconstrói o vivido.
Para realizar seu estudo, o autor pautou-se na trajetória de três romancistas representativos do século XIX e início do XX: Charles Dickens (1812-1870), Gustave Flaubert (1821-1880) e Thomas Mann (1875-1955), dando destaque, respectivamente, aos seus romances: Casa sombria (de 1852- 1853), Madame Bovary (de 1857), e Os Buddenbrook (de 1900). Poderíamos resumir seus objetivos, neste livro, em três questionamentos principais, a saber: 1 – De que maneira a Literatura (e a História) (re)constrói uma representação peculiar da realidade?; 2 – Como uma visão de mundo molda uma linguagem e forja uma prática discursiva?; 3 – E de que modo a linguagem é perpassada por ideologias (ou por componentes ideológicos)? Para ele, Dickens teria sido um anarquista zangado (ao criticar e satirizar a sociedade inglesa da Era Vitoriana), Flaubert um anatomista fóbico (por ver os pormenores das relações sexuais e ironizar a maneira pela qual a sociedade francesa da Belle Époque viam-nas como um tabu) e Mann um aristocrata rebelde (ao viver silenciosamente sua homossexualidade e expor o cotidiano da aristocracia alemã oitocentista), em suas formas específicas de apreenderem o princípio de realidade nos seus romances históricos.
Apesar das evidentes contribuições que esses romances, e seus autores, possam trazer para a pesquisa histórica, o historiador deve ter claro que seu uso “é severamente limitado”, ainda que o “mundo que o romancista realista cria [seja] o mesmo do historiador, apenas alcançado por seus próprios caminhos” (p. 141), e que ambos tenham também em comum “o estudo das mentes individuais e das mentalidades coletivas”. (p. 144).
Dito isso, o autor passa a verificar por que a crítica pós-moderna, ao delinear o espaço de produção da história e do romance, estabelece uma fronteira tênue quanto ao significado da verdade, e seu alcance entre esses diferentes discursos narrativos. Se Jacques Derrida (1930-2004) foi o guru do movimento, Hayden White foi, sem dúvida, “o mais influente entre os historiadores pós-modernistas”, e “levou a perspectiva relativista a seus limites” (p. 145-46), ao ver indistintamente o discurso histórico e o discurso literário: “Ele converte a história num tipo de romance (geralmente não reconhecido) sobre o passado.” (p. 176). Para dar maior consistência aos seus argumentos, Peter Gay demonstra por que foi importante para Hayden White alinhar sua trajetória com os apontamentos centrais da virada linguística, estabelecendo uma relação direta com as obras de Michel Foucault e Friedrich Nietzsche. O que, em suas palavras, se constituiria como o mestre desse autor, “como de outros pós-modernistas, é (além de Friedrich Nietzsche, o favorito de todo mundo nesta escola de pensamento) Michel Foucault. Mas, o “principal problema com as excursões pós-modernistas de Foucault na história é que sua psicologia é irremediavelmente reducionista: para ele, é tudo uma questão de poder, de uma conspiração meio involuntária dos que têm contra os que não têm [o poder em suas mãos]”. (p. 176-77).
Para ele, as mesmas ressalvas seriam válidas para outros pós-modernistas (como: Jacques Lacan, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Jean Baudrillard). De acordo com ele: Para os pós-modernistas, os fatos não são descobertos, mas criados; seus ancestrais intelectuais, remontando ao menos até Goethe, insistiram por muito tempo que todo fato já é uma interpretação.
Como uma interpretação social, é inerentemente modelado pelos mitos dominantes que mantêm o historiador (bem como o romancista) preso em sua garra de ferro. Vieses, antolhos, estreiteza de visão, pontos cegos, toda espécie de impedimentos à objetividade são essenciais na própria natureza de todos os esforços humanos para conhecer; o estudioso do passado é o prisioneiro de sua própria história pessoal. Nessa visão, escrever história é apenas outra maneira de escrever ficção. (p. 146, grifo nosso).
Postura frágil, o pós-modernismo, para o autor estabeleceria sutilmente: À parte seu absurdo inerente, a tentativa pós-modernista de reduzir à irrelevância a busca da verdade empreendida pelo historiador tem conseqüências práticas. Forçaria os escritores de fatos e os escritores de ficção a um casamento indesejado sob a mira de uma arma. […] O que significa que os historiadores não precisam dos pós-modernistas para lhes dizer que o ponto de vista de profissionais individuais, em parte inconsciente, pode impedir um tratamento objetivo do passado. Eles assim afirmariam ao desmascarar alegremente a parcialidade dos outros. Mas tratariam essas armadilhas no caminho para a verdade antes como obstáculos a ser superados do que como leis da natureza humana a ser humildemente seguidas. (p. 146-148).
O que significa que os “debates dos historiadores (sem os quais a profissão seria reduzida a um tedioso relato de fatos universalmente aceitos) fazem parte de um interminável empreendimento coletivo que tenta se aproximar do exato ideal de lorde Acton: um acordo inteiramente bem informado sobre o passado”. Além disso, nenhuma “das objeções propostas contra esse ideal é válida”, por que para “falar sem rodeios: pode haver história na ficção, mas não haver ficção na história”. (p. 150).
Após resumirmos os principais pontos da discussão do autor nos anos 1970 e 1980, e o modo como avança sobre eles neste livro (ainda que nos aspectos fundamentais não tenha mudado sua perspectiva de análise), podemos passar a algumas constatações: a) mesmo não considerando todos os argumentos provenientes da virada linguística nos anos 1970 e 1980, o autor não deixou de lado tal questão, e ao voltar sobre ela, além de resumir as principais fragilidades dessa postura, e do empreendimento pós-moderno (que lhe deu continuidade), também demonstrou a importância dos romances para a pesquisa histórica; b) ao indicar as especificidades metodológicas do discurso histórico e do discurso literário, o autor também mostrou que os caminhos como cada um chega à, ou pensa, a verdade são diversos; c) como diversos são ainda os recursos que ambos têm à disposição para, a partir do princípio de realidade, construir suas narrativas.
Referências
CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
GAY, P. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
____. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Resenha recebida em 21 de setembro de 2012 e aprovada em 5 de outubro de 2012.
Diogo da Silva Roiz – Mestre em História pela Unesp. Professor na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campo Grande – MS – Brasil. E-mail:diogosr@yahoo.com.br
Die Späten Wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814) – FICHTE (Ph)
FICHTE, J. G. Die Späten Wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814). Editado por H. G. von Manz, E. Fuchs, R. Lauth, e Radrizzani, I. 3º volume. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 2012. Resenha de: SANTORO, Thiago Suman. Philósophos, Goiânia, v.18, n. 1, p.233-243, jan./jun., 2013
Como terceiro volume da série intitulada J.G. Fichte – Späte wissenschaftliche Vorlesungen (Studientexte), o livro ora avaliado traz a lume importantes textos da fase berlinense do filósofo, que na sua maior parte permaneceram inéditos até metade do século XX, com o início da edição crítica de suas obras completas. O presente volume inclui uma reprodução dos manuscritos originais de três cursos ministrados entre o inverno de 1811 e o verão de 1812, que têm por título Lições sobre a Determinação do Sábio1 (Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten), Doutrina do Direito (Rechtslehre) e Doutrina da Ética (Sittenlehre). Enquanto objetivo geral da presente resenha, pretendo não exatamente estabelecer uma análise crítica do conteúdo filosófico das obras em questão, algo que sem dúvida necessariamente ultrapassaria em muito o escopo de uma resenha padrão, considerando-se a complexidade dos textos aqui recolhidos, e considerando sobretudo que não são textos de um novo autor senão obras de um filósofo já consagrado na história, mas almejo apenas apresentar de modo sucinto alguns dos principais temas tratados no livro, de modo a instigar a curiosidade filosófica do leitor, e principalmente chamar a atenção para algumas qualidades dessa edição primorosa em novo formato. Segue abaixo, assim, uma breve descrição geral do conteúdo dos cursos em questão.
Também denominado Doutrina Ética para o Sábio2, temos na presente edição o terceiro ciclo de preleções sobre esse tema, intitulado Lições sobre a Determinação do Sábio (Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten), e proferido em 1811 na recém fundada Universidade de Berlim, um curso que Fichte já lecionara no início de sua carreira acadêmica em Jena (1794)3, e posteriormente no seu retorno à vida universitária em Erlangen (1805).
Na primeira versão do curso, em Jena, encontramos ainda um texto que traz diversas questões teóricas não resolvidas, pois somente alguns anos mais tarde, após a elaboração da Doutrina do Direito de 1976 e da segunda versão da Doutrina-da-Ciência (nova methodo), Fichte responderá de maneira adequada, por exemplo, ao problema do papel que a intersubjetividade desempenha na definição da tarefa do sábio. Além disso, esse texto inicial consagra suas primeiras preleções à descrição de três premissas fundamentais da definição da tarefa do sábio: se na primeira lição temos uma determinação do homem em si, na lição subsequente encontramos uma determinação do homem na sociedade, seguida de uma investigação sobre as distintas posições ou classes profissionais na sociedade. Só a partir dessas etapas seria possível ao filósofo sistemático Fichte deduzir, na quarta lição, uma Determinação do Sábio. Ao final da obra, o autor faz um excurso sobre Rousseau.
Todas essas etapas preparatórias serão suprimidas já na edição de 1805, e o curso de Berlim, seguindo os moldes deste último, apresenta como desenvolvimento ulterior das teses de 1794, além da determinação do sábio, uma espécie de tipologia dos distintos modos de atuação e comunicação desse mesmo sábio. Assim, o referido curso pretende responder, nas próprias palavras de Fichte, às seguintes questões fundamentais: 1) o que é o sábio? 2) como ele se torna sábio? 3) como seu ser interior se exterioriza no fenômeno?4 Engana-se, todavia, aquele leitor que pretende encontrar aqui uma simples investigação superficial acerca do status quo da emergente classe acadêmica na Alemanha da época, ou alguma espécie de manual de etiqueta para o métier do filósofo universitário. Não por acaso decidi traduzir o termo alemão Gelehrte, utilizado no título da obra, por “sábio”, ao invés de “douto” ou “erudito”. De acordo com as primeiras lições do curso de 1811, o sábio serve como uma espécie de mediação entre os aspectos suprassensíveis e sensíveis da realidade. Em outras palavras, Fichte sugere que a essência do sábio, na esteira do modelo platônico, consiste em uma visão de ideias, isto é, em certa compreensão intuitiva do fundamento conceitual que determina a própria realidade humana. Caso o sujeito decida transmitir essas ideias a outros, ele se torna professor. Caso ele pretenda implementar essas ideias no mundo, ele se torna administrador do estado.
Ao responder à segunda questão inicial, Fichte observa que o processo de tornar-se sábio não pode se realizar desde fora, desde um procedimento mecânico, mesmo que através do domínio da razão ou da linguagem, pois o objetivo final dessa formação só é atingido quando o indivíduo acessa sua intuição interna e desenvolve, conforme indica em tom um tanto místico o próprio texto de Fichte, um “olho para o suprassensível” 5 . Somente através desse esforço interno próprio, para além da mera erudição, é que o sujeito alcança o estatuto de sábio.
Nesse sentido, o teor da tese anterior parece delimitar o percurso ulterior da obra, na medida em que Fichte utiliza a distinção entre sábios e não sábios para estabelecer uma controversa estrutura hierárquica de funções sociais (mais uma vez ressoa aqui a politiké platônica). E a partir disso chegamos à tentativa fichtiana de responder à terceira questão fundamental da obra. Contudo, infelizmente a natureza inacabada do texto original (pois não dispomos mais do restante das lições que continuaram o curso de Berlim), ao invés de explicitar a forma de manifestação ou exteriorização do ser interior do sábio, conforme o plano inicial da obra, traz na sua quinta e última lição apenas uma descrição de critérios para a escolha dos distintos tipos de alunos nessa formação.
A presente edição das conferências de Fichte no período tardio de sua filosofia contém ainda duas importantes obras dos ciclos de lições sobre subdisciplinas filosóficas iniciados já no período de Jena, a saber, a Doutrina do Direito e Doutrina da Ética. No que diz respeito ao primeiro, o texto final dessa edição estudantil enfrentou certo desafio editorial. Na edição crítica GA, temos uma reprodução exata do manuscrito resumido e muitas vezes críptico redigido pelo próprio autor. Além disso, há uma versão desse curso editada pelo filho de Fichte6, que no entanto acrescenta, sem indicar precisamente em que situação, passagens do texto fichtiano de 1796 sobre o mesmo tópico, ao considerar que o curso de Berlim faz remissões às preleções desse primeiro ciclo. A presente edição optou por um sensato meio termo, na medida em que adotou o texto original como base, acrescentando quando estritamente necessário à compreensão os trechos de 1796 entre colchetes.
Ainda que através de dois manuscritos de estudantes da época possamos afirmar que Fichte de fato fez referências à sua obra do período jenense sobre direito no curso de Berlim, não se trata aqui no presente texto de uma simples reformulação das teses anteriores. As lições tardias estão estruturadas em duas grandes partes, sendo a primeira uma introdução ao próprio conceito de direito que supera em clareza e facilidade de compreensão a exposição de Jena, e tendo como segunda parte principal uma análise dos contratos de propriedade. Além disso há um anexo relativo ao direito internacional (Völkerrecht), e desaparece o conteúdo, frágil em sentido argumentativo, a respeito do direito familiar que constava na primeira versão da doutrina do direito.
Outra diferença marcante dessa versão tardia da doutrina do direito com relação à anterior consiste na exposição mais direta daquilo que poderíamos denominar por fundamentação do direito. Ao contrário do texto de 1796, redigido ainda na época em que Fichte iniciava o desenvolvimento de seu sistema filosófico, a presente obra pôde já tomar como pressupostas as deduções da intersubjetividade estabelecidas, por exemplo, na Doutrina-da-Ciência nova methodo. Não se pode ler, contudo, nessa diferença de método uma espécie de transformação no próprio projeto fichtiano.
A doutrina do direito de 1796 simplesmente apresenta um prenúncio dessas deduções necessárias ao sistema do filósofo, e agora Fichte pode considerar isso como realizado e explicar a origem do conceito de direito a partir de seu fato fundamental, a saber, a existência de uma comunidade de seres livres.
Uma das teses fundamentais apresentadas na teoria do direito fichtiana envolve a distinção radical entre a esfera jurídica e aquela relativa à moral, ainda que Fichte jamais considere aceitável uma separação absoluta entre ambos os termos. A esfera jurídica, que concerne a totalidade ou conjunto dos indivíduos em sociedade ao invés do indivíduo particular, funciona como um mecanismo de coação, no sentido de que garante ao corpo social a manutenção dos direitos individuais ao exigir de cada cidadão o cumprimento dos seus deveres, através da obediência às normas vigentes em sua legislação. Mas isso não impede a qualquer indivíduo que sua atuação no meio social se paute por princípios éticos, desde que em acordo com tais leis. Nesse sentido, o direito se mostra como condição necessária porém não suficiente para a realização da ética.
Outro aspecto interessante da teoria fichtiana concerne o limite inerente ao papel do estado na definição das atividades individuais. Longe de defender um estado completamente controlador, como algumas de suas críticas mais radicais ao liberalismo econômico feitas em outro texto anterior poderia sugerir7, Fichte admite que a determinação das obrigações políticas do cidadão por parte do governo não pode interferir no uso que cada indivíduo faz de seu tempo de ócio.
Por fim, uma mudança notável que surge nessa nova versão da doutrina do direito diz respeito ao que Fichte denominou Ephorat. Essa instituição, que deveria se contrapor ao abuso de poder por parte do estado, e que em última instância teria o direito de convocar a população à uma espécie de revolta ou revolução coletiva em defesa de sua liberdade, tem agora na teoria fichtiana um papel menor, e acaba se transformando naquilo que Fichte já naquela época definiu como “eforato natural”. Sem dúvida surge aqui uma mudança significativa no pensamento político de Fichte, em grande parte influenciada pela experiência negativa do filósofo após a invasão napoleônica na Prússia, e em consequência disso por sua crescente decepção com os efeitos contraditórios da Revolução Francesa.
Tomando agora em consideração o terceiro texto do livro ora resenhado, vemos na Doutrina da Ética (Sittenlehre) de 1812 uma obra completamente repensada, se a comparamos com a Ética escrita no período de Jena, sem a proximidade teórica antes encontrada entre as duas Doutrinas do Direito. Isso se deve em grande parte ao fato de que Fichte, alguns anos após sua saída de Jena, elaborou uma teoria sobre cinco modos distintos de compreensão ou visão de mundo (Weltansicht). Essa tese, cujo desenvolvimento detalhado aparece em dois textos da fase intermediária, intitulados Anweisung zum seligen Leben e Die Grundzüge des gegenwärtigen Zeitalters, ambos publicados em 1806, apresenta uma escala hierárquica de visões de mundo, e dentre essas cinco etapas encontram-se dois pontos de vista da moralidade, denominados por moralidade inferior e superior.
Fichte indica nesse período que seu texto sobre ética de 1798 se refere ainda àquilo que o autor entende por moralidade inferior, isto é, trata-se neste caso de uma teoria moral que permanece atrelada à lei ordenadora, uma moralidade fundamentada em princípios restritos aos interesses da sociabilidade humana.
Podemos afirmar que o texto reformulado de 1812 representa a tentativa fichtiana de postular uma teoria da moralidade superior, que não mais se restringe à lei simplesmente ordenadora, mas aponta para uma lei ao mesmo tempo criadora. Para compreendermos melhor essa distinção, será necessário indicar qual o papel preciso que a doutrina ética representa na determinação dessa classificação.
Fichte postula na sua teoria dos pontos de vista sobre o mundo uma subdivisão importante. Por um lado, os dois primeiros graus da escala, referentes respectivamente aos pontos de vista da Filosofia da Natureza e da Filosofia do Direito ou da Ética inferior, constituem isso que o autor denomina por Scheinlehre, isto é, uma doutrina da aparência ou da ilusão, na medida em que tais posições não compreendem o estatuto primordial do conceito na fundamentação do mundo manifesto. Do outro lado do espectro encontra-se as posições relativas àquilo que Fichte denomina Wahrheitslehre, ou doutrina da verdade. Temos neste caso dois pontos de vista, a saber, a Doutrina da Religião e a Doutrina da Ciência, que permitem, a partir de vias distintas, a compreensão do fundamento último da realidade, o próprio Absoluto, em sua natureza incompreensível, ou melhor, em sua incompreensibilidade. Nesse sentido, a doutrina da ética tem como função principal servir como mediação desses dois extremos, e isso se realiza através do desenvolvimento de uma Erscheinungslehre, de uma doutrina da manifestação ou do fenômeno.
Justamente por essa razão o texto da Ética de 1812 se divide em duas partes principais. A parte inicial apresenta uma dedução do sujeito, da causalidade real, da vontade e do dever, a partir do próprio conceito, enquanto fundamento provisório da moralidade. Na segunda parte encontramos propriamente a Erscheinungslehre, uma fenomenologia que desvenda a natureza provisória daquele conceito, na medida em que revela o caráter fenomênico de toda figuração ou imagem do Absoluto. Não por acaso o texto da presente obra encerra com uma longa discussão a respeito da relação entre as doutrinas da religião e da ciência.
Finalmente, gostaria de tecer um comentário a respeito de certa importância pragmática dessa série. Até meados do século passado considerado por grande parte da comunidade acadêmica filosófica como um dos mais obscuros membros do idealismo alemão pós-kantiano, Johann G. Fichte finalmente recuperou, após o elogiável esforço realizado pelo comitê da edição crítica de sua obra, seu verdadeiro estatuto como um dos pilares da história da filosofia. Com a recente finalização da referida edição das obras completas do filósofo (conhecida como Johann G. Fichte Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften ou, abreviadamente, GA), podemos agora avaliar corretamente a importância e atualidade deste que, em sua época, sem dúvida foi um dos mais admirados pensadores germânicos.
Não há como negar que o trabalho da edição crítica seguiu um padrão de rigor e minúcia exemplar, algo que se percebe imediatamente no imenso aparato de notas explicativas, nos índices remissivos separados por autores ou personagens mencionados, locais, e assuntos, tudo isso acompanhado, em cada volume, de uma introdução geral bastante detalhada bem como de prefácios para cada um dos textos principais. Somando-se a qualidade gráfica da impressão e o zelo pela impecável escolha do material de encadernação, compreende-se porque a GA de Fichte tornou- se de fato um modelo de edição crítica em meio à comunidade acadêmica da área.
No entanto, o alto custo dos 42 volumes da obra completa faz com que poucas sejam as bibliotecas universitárias a adquirir e disponibilizar a coleção, ao menos em nosso país, e não se faz necessário observar que o mesmo vale ainda mais para aquisições individuais. Nesse sentido, a edição da versão estudantil do mesmo texto da GA, infelizmente por enquanto restrita aos manuscritos, tanto do próprio Fichte como de seus alunos, referentes aos cursos realizados na Universidade de Berlim (série IV da edição crítica) – bem como ao segundo volume da série I, edição em separata dos importantes textos inaugurais Ueber den Begriff der Wissenschaftslehre e Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre 1794/95, preenche uma lacuna na medida em que disponibiliza, em formato completo e ao mesmo tempo economicamente acessível à maior parte dos estudantes e pesquisadores, fontes imprescindíveis para a correta compreensão do pensamento do filósofo tanto em seu período inicial quanto em sua fase tardia, como bem representa o recém publicado terceiro volume da série aqui em foco.
Notas
1 Sigo aqui a sugestão da tradução portuguesa (cf. nota seguinte), com a diferença de que traduzo “Bestimmung” por “determinação”, ainda que a primeira tenha adotado “vocação” para traduzir mais livremente o termo.
2 Cf. Fichte, J. G. Die späten wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814), p.xvi da introdução do editor.
3 Existe uma tradução portuguesa para essas conferências de Jena em: FICHTE, J. G. Lições sobre a Vocação do sábio. Trad. Artur Morão. Edições 70: Lisboa, 1999.
4 Isso já aparece no primeiro parágrafo da obra em questão. Cf. GA II 12, p.313. Como de praxe, GA refere- se à edição crítica da obra de Fichte (Gesamtausgabe), seguido do número da série e do volume correspondente.
5 Cf. GA II 12, p.343.
6 Cf. Fichte, J. G. Sämmtliche Werke, vol. X.
7 Refiro-me aqui ao texto do autor intitulado Der geschlossene Handelsstaat (O Estado Comercial Fechado), publicado em 1800. Cf. GA I 7.
Referências
FICHTE, J. G. Die Späten Wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814). Editado por H. G . von Manz, E. Fuchs, R. Lauth, e Radrizzani, I. 3º volume. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 2012.
_________. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften. Reihe II: Nachgelassene Schriften, v. 12 (1810-1812). Editado por R. Lauth, E. Fuchs, H. Gliwitzky, e P. K. Schneider, Stuttgart-Bad Cannstatt : Frommann- Holzboog Verlag 1962-2012.
_________. Sämmtliche Werke. Editado por Fichte, I. H.
Berlin: de Gruyter, 1962.
_________. Lições sobre a Vocação do Sábio. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1999.
Thiago Suman Santoro – Professor Adjunto na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO, Brasil. E-mail: thsantoro@gmail.com
Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt – CASTELO BRANCO (C)
CASTELO BRANCO, P. H. V. B. Secularização inacabada: política e direito em Carl Schmitt. Curitiba: Appris, 2011. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17, n. 2, p. 187-190, maio/ago, 2012.
A obra de Carl Schmitt foi, durante muito tempo, lida em função das ligações de seu autor com o Terceiro Reich na Alemanha nazista. Entre essa e outras razões permaneceu silenciada na França, como nos indica o estudo de Jean-François Kervégan (2006), ao analisar as dimensões da ideia de político e da ação política nas obras de Hegel e Schmitt. Além disso, prossegue o autor, “o fato de Schmitt ter se alinhado ao nacional-socialismo, cuja vitória foi descrita por ele mesmo como ‘a morte de Hegel’, parece ser a confissão de um xeque especulativo: o decisionismo professado durante os anos 1920″. (2006, p. XIV). Isso, por acaso, não redundou somente na França, mas também na Itália, na Alemanha e nos Estados Unidos, na elaboração de estudos polêmicos, cujo norte era justamente o de alinhar a obra de Schmitt ao antissemitismo e ao nazismo.
Ainda que não parta de avaliação semelhante, a obra de Castelo Branco procura justamente destacar em que medida as tentativas de secularização da política e do direito permaneceram inacabadas na obra de Schmitt.
Versão revista de sua Tese de Doutorado, seu texto nos apresenta de que maneira Schmitt construiu seu projeto político e intelectual. Para Gabriel Cohn, que faz o prefácio da obra, secularização “é mais do que trânsito de ideias no éter dos significados”, pois é “literalmente trazê-las para o século, torná-las efetivas aqui e agora, manchá-las com a marca da empiria e da existência concreta”. (2011, p. 15). Para efetuar tal análise, Castelo Branco efetua um estudo minucioso da obra de Carl Schmitt, detalhando como apreendia a questão da lei e da decisão, qual era a representatividade do Estado e qual era a função da secularização nos processos de formação de suas estruturas institucionais, e em que medida a secularização do conceito de político agiria em prol desse processo. Nesse aspecto, sua hipótese é de que “o conceito de secularização é um pressuposto imprescindível para compreender alguns dos principais temas abordados por Schmitt nos seus estudos, como é o caso da decisão, do significado do Estado e do indivíduo e dos critérios do político”; assim, por “desempenhar um papel epistemológico no pensamento de Schmitt, entender seu conceito de secularização é uma condição essencial para tornar acessível o modo como o autor desenvolve outros conceitos, como decisionismo, exceção, mediação e soberania”. (2001, p. 20).
Desse modo, antes de aprofundar como Schmitt entende a secularização, o autor nos demonstra seu itinerário, tendo em vista que o progresso da razão universal e autônoma da época das Luzes do século XVIII teria eliminado os laços tradicionais e realizado a independência de uma esfera temporal. Sob este ponto de vista, os conceitos jurídicos e políticos do Estado moderno encontrariam seu fundamento racional no aperfeiçoamento moral e no progresso de um desenvolvimento histórico. O uso do conceito de secularização é objeto de disputa, por ser utilizado para legitimar a descontinuidade da modernidade e, consequentemente, do fundamento dos conceitos jurídicos que surgem com o Estado moderno. (p. 21).
E que, aliás, estaria na obra de Schmitt, apesar de suas preocupações, numa forma inacabada. Mas entender como tal questão se processa em sua obra não é uma tarefa nada fácil, e Castelo Branco conduz com desenvoltura seus argumentos para nos demonstrar que, ainda que esteja em estado inacabado, a ideia de secularização construída na obra de Schmitt é fundamental para entender todos os nexos de sua interpretação do político e do Estado, da lei e da decisão. Apesar de se aproximar da concepção de secularização de Löwith, que “não reconhece uma modernidade autônoma”, Schmitt percebe que a “transformação da religião em assunto privado não elimina a existência de um núcleo metafísico ou a crença de que o privado ocupe o lugar de algo sagrado”, entre outras razões, porque a “cultura da satisfação individual, do consumo ou da possibilidade de subjetivação de toda sorte de experiência, remete ao tema da secularização e, consequentemente, ao problema do esvaziamento de referências supraindividuais de orientação da conduta”. (p. 22). Por isso, o autor indica que “sob o ponto de vista político, mais importante do que a privatização dos bens da Igreja seria examinar a privatização do meio ambiente que fornece a medida ou diretriz às ações humanas” (p. 23), e é esse o caminho que segue para compreender a obra de Schmitt.
Ao centrar seu olhar sobre a obra de Schmitt, a partir da maneira que ele constrói seu conceito de secularização, o autor entende que sem ela esse não teria chegado a seu conceito de decisão. Daí a importância de inquirir a lei e a decisão, como se articulam e como são produzidas e empreendidas.
Com isso, passa a inquirir como a secularização constitui um dos alicerces fundamentais, para dar solidez à formação do Estado moderno, significado às suas instituições e bases às suas regulamentações. Por fim, demonstra como o conceito de secularização atua sobre o conceito de político.
Depois de efetuar tal análise, observa que “o sentido principal do conceito de secularização de Schmitt revela que a negação dos conflitos eleva o grau de contingência, aumentando o risco dos antagonismos”, pois a “omissão ou o encobrimento do conflito impede a sua restrição”, e o “reconhecimento da impossibilidade de se extinguir os antagonismos da vida humana abre a possibilidade para a sua contenção” (p. 291), ao se efetuar uma distinção clara entre amigo e inimigo. Além disso, o “conceito de secularização de Schmitt intenta recuperar as distinções nítidas alcançadas pelo Estado moderno europeu com a neutralização das guerras religiosas, a fim de postular o monopólio do político pelo Estado e evitar sua subordinação a categorias econômicas e princípios universalizantes”.
(p. 292). Por outro lado, após definir amigo e inimigo, e revelar o caráter inevitável dos antagonismos, o autor nos indica que secularizar, para Schmitt, “consiste em romper a generalidade e a regularidade de ordenamento de normas e expor a realidade concreta do sentido político do agir e decidir humanos”, tendo em vista que “não está mais em jogo o enfrentamento do poder espiritual de representantes da Igreja que buscam intervir na esfera secular de um domínio público, mas combater o encobrimento do político por parte do liberalismo e do positivismo”. (p. 295).
Portanto, ao descortinar os nexos e os significados do conceito de secularização na obra de Carl Schmitt, Castelo Branco, além de nos oferecer caminhos instigantes para rever a obra desse autor, a oportunidade de verificar que, apesar de aparecer de modo inacabado, a secularização constituía verdadeiramente um dos núcleos pelos quais Schmitt pensou a política, definiu a ideia de amigo e inimigo, como os antagonismos poderiam ser arrefecidos, mas não anulados completamente, e de que forma lei e decisão estavam articuladas em sua obra para perfazer a compreensão do conceito de político.
Referências
KERVÉGAN, J-F. Hegel, Carl Schmitt: o político entre a especulação e a positividade. Barueri: Manole, 2006. Recebido em 26 de abril de 2012.
Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). Professor na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Uems). E-mail: diogosr@yahoo.com.br
Nazi Germany and the Jews, 1933-1945 | Saul Friedländer
Saul Friedländer, catedrático de História da Universidade da Califórnia em Los Angeles, tem se dedicado, há tempo, ao estudo da História Contemporânea e, em particular, à Alemanha nazista e a perseguição aos judeus. Ganhador de diversos prêmios, o historiador nascido na década de 1930 em Praga, em família judia de idioma alemão, viveu a infância na França e enfrentou a ocupação. Após a Segunda Guerra (1939-1945), imigrou para Israel e desde o final da década de 1980 é professor na Califórnia. Este volume é uma versão resumida do original que ganhou o prêmio Pulitzer, resultado do belo trabalho de Orna Kenan, e que permite o acesso mais amplo à obra.
Logo na introdução de Kenan, o leitor é apresentado à tese de Martin Broznat, do Instituto de História Contemporânea de Munique, de que até o final da guerra a população alemã nada sabia sobre a Solução Final (o extermínio de judeus e outros povos) e que deveria ser considerado um período normal da História alemã e europeia. Friedländer questionou a noção de normalidade e apontou que o antissemitismo era popular (völkisch) e, para isso, examinou, em detalhe, a documentação referente ao período em que o nazismo controlou o estado alemão, a partir de 1933. Fica claro que as restrições aos judeus foram crescentes, atingindo, também de maneira cada vez mais intensa, os chamados mestiços (Mischlinge), como quando em 15 de abril de 1937 os doutorandos de sangue judeu não poderiam defender suas teses. A radicalização, contudo, ocorreu a partir de 1938, com a anexação da Áustria e o estabelecimento de um modelo de ação contra os judeus que antevia a solução final. A Noite dos Cristais e a intensificação à perseguição foram consequências imediatas. Leia Mais
O expresso Berlim-Bagdá. O Império otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918 – McMEEKIN (Tempo)
McMEEKIN, Sean. O expresso Berlim-Bagdá. O Império otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918. São Paulo: Globo, 2011. 495 p. Resenha de BERTONHA, João Fábio. O Império otomano e a Primeira Guerra Mundial. Tempo v.18 no.33 Niterói 2012.
Sean McMeekin é autor de vários livros sobre as origens da Primeira Guerra Mundial e sobre a Revolução Russa, tendo publicado alguns trabalhos de grande importância – ainda que controversos – sobre os objetivos do Império czarista na guerra, suas responsabilidades na eclosão daquele conflito e também sobre os tratados de paz entre os alemães e os bolcheviques em 1918.
Seu novo livro – O expresso Berlim-Bagdá. O Império otomano e a tentativa da Alemanha de conquistar o poder mundial, 1898-1918 (São Paulo: Globo, 2011. 495 p.) – traz a seus leitores uma temática tradicionalmente negligenciada no mundo ocidental, ou seja, a participação do Império turco-otomano na guerra de 1914-1918 e, especialmente, a ação alemã no Oriente Médio durante o conflito. Nesse sentido, ele aborda não apenas o esforço alemão para, com a ferrovia Berlim-Bagdá, colocar o território turco-otomano em sua área de influência, como também a tentativa de Berlim de instigar os muçulmanos que viviam nos Impérios russo, francês, inglês e italiano a se insurgirem contra seus dominadores por meio da bandeira da jihad islâmica.
Os alemães gastaram, realmente, muito tempo, esforço e, acima de tudo, dinheiro para dar conta desses objetivos. O autor calcula que, dos cerca de 200 bilhões de marcos (5 trilhões de dólares, a preços de hoje) gastos pela Alemanha em seu esforço de guerra, cerca de 1,5%, ou seja, 3 bilhões de marcos (75 bilhões de dólares), foi utilizado para sustentar o esforço de guerra turco ou para tentar espalhar a bandeira da jihad pelo amplo território do Marrocos à Índia. Eles tentaram mobilizar os xiitas no Irã, várias tribos afegãs, árabes ou sudanesas e os sanussis no Norte da África.
Apesar de tanto ouro, dinheiro e armas alemãs fluírem para esses grupos e de eles terem conseguido que o califa turco e altos clérigos xiitas declarassem a guerra santa, os resultados obtidos foram escassos. Ao contrário do que eles imaginavam, ou seja, de que os muçulmanos, movidos por seu fanatismo religioso, incendiariam a região, quase nada foi em frente. Mesmo a ferrovia, que, com seus 3.200 quilômetros, deveria ter sido capaz de reforçar a autoridade do sultão em todo o seu território, permitir a integração econômica turco-alemã e dar suporte logístico para ações militares na direção do Egito ou do Irã, não ficou pronta, em sua totalidade, a tempo.
Ao contrário do que o título sugere, assim, o livro não se limita a narrar as peripécias na construção da Berlim-Bagdá, mas acaba por abordar temas pouco conhecidos, especialmente para os que leem unicamente em português, como o envolvimento otomano na Primeira Guerra Mundial, sua participação nesta, a história do Islã etc. Também o tema do genocídio armênio é abordado pelo autor, com o uso de fontes russas e turcas.
Alguns desses temas merecem destaque. A decisão de Constantinopla de entrar na guerra ao lado de Berlim parece lógica, dados os laços que uniam os dois países desde o fim do século XIX e a oposição de ambos aos futuros Aliados. O autor demonstra, contudo, que a relação bilateral era muito mais dinâmica, com muitas idas e vindas. Ao final, a posição pró-Alemanha triunfou no governo turco-otomano, mas essa decisão não estava dada desde o início, e o governo turco hesitou muito antes de se comprometer.
Durante a guerra, igualmente, apesar de aliados, alemães e turcos viveram uma relação de amor e ódio, com tensões culturais, interesses conflitantes e desconfianças mútuas envenenando o relacionamento. Com as derrotas, o ressentimento mútuo apenas cresceu e, na disputa pelos espólios do Império russo em 1918, soldados turcos e alemães chegaram a trocar tiros perto de Baku, no Azerbaijão.
Outro aspecto da ação ocidental no Oriente Médio naqueles anos abordado pelo autor é o sionismo. Ele indica como, depois da tragédia do Holocausto, nós tendemos a esquecer que a sede mundial do sionismo no período anterior era a Alemanha, e que esse foi, em linhas gerais, apoiado pelo governo do Kaiser, ainda que por motivos instrumentais. Os ingleses abraçaram, até certo ponto, a causa sionista apenas durante a guerra, para tirar essa bandeira dos alemães, gerando um movimento antissemita árabe que depois, paradoxalmente, se ligou ao nazismo de Hitler, como no caso do mufti de Jerusalém e na criação das divisões muçulmanas da Waffen-SS.
As informações que ele levanta sobre o fronte caucasiano entre russos e turcos durante a guerra também são inéditas para os não especializados, e suas análises das fragilidades militares do Império turco-otomano são, no mínimo, instigantes, com muitos dados sobre as dificuldades dele de manter o fluxo de recrutas no Exército, financiá-lo e armá-lo.
Pensando nas conexões entre o período que ele estuda e o momento atual, algumas questões se tornam evidentes. Uma delas é, utilizando termos contemporâneos, que instrumentos de soft power, como subversão política de minorias em outros Estados ou apelos à solidariedade ideológica ou religiosa em geral, não funcionam a não ser que sejam apoiados e sustentados por elementos de hard power, como dinheiro, armas, vitórias militares etc.
Os alemães tentaram várias estratégias desse tipo durante a Primeira Guerra, como a tentativa de jogar o México contra os Estados Unidos, a exploração do sionismo no Império russo e na Palestina ou a deflagração da jihad no mundo islâmico, mas tudo isso falhou por falta de alicerces materiais mais sólidos, mesmo com todo o esforço alemão. Como indica o autor, a única aposta alemã em termos de subversão interna que deu certo foi o envio de Lenin para a Rússia e o apoio aos bolcheviques entre 1917 e 1918, mas foi algo isolado e que só funcionou pelas condições especiais da Rússia naquele momento.
Outro erro alemão que continuou a ser repetido pelas outras potências imperialistas que tentaram conquistar posições na região nas décadas seguintes foi o desconhecimento da cultura e das tradições locais. Os alemães não entenderam que o que movia as tribos árabes eram seus interesses próprios, e não um mítico apelo à solidariedade islâmica ou a um obscuro nacionalismo árabe. Ao contrário do que aparece em filmes como Lawrence da Arábia, o nacionalismo árabe era algo incipiente, e as tribos estavam mais interessadas em dinheiro, ouro, armas, posições sociais e, em alguns casos, a defesa de sua visão do Islã do que em conceitos vagos como o nacionalismo.
Os alemães também não entendiam as sutilezas da jurisprudência ou da fé islâmicas ou as diferenças entre sunitas e xiitas, e isso os levava a erros de avaliação. Os militares americanos no Iraque e no Afeganistão também aprenderam, a duras penas, como é lidar com sociedades não mais puramente tribais, mas nas quais vínculos além da nacionalidade ou da política ainda são fortes e, muitas vezes, contraditórios. Para elas, ainda hoje, muitas vezes a demonstração de poder e a disponibilidade de dinheiro para suborno ainda são mais importantes do que ideais vagos como democracia ou Estado de direito.
É muito interessante igualmente quando ele comenta como vários problemas do Oriente Médio de hoje tiveram sua origem na tentativa alemã de controlar a região e como certos padrões e questões estão sempre presentes na realidade local. Vale destacar, nesse ponto, suas reflexões sobre como o obscurantismo religioso sempre serviu, na região, para sufocar ideais progressistas e como o disfarce da modernidade anti-islâmica foi instrumental para certos regimes reprimirem as populações locais em nome do laicismo. Ele também menciona como a decisão inglesa de bancar os wahabitas na hoje Arábia Saudita, em boa medida para combater as pretensões de Constantinopla e Berlim na região, gerou o regime saudita atual, uma das fontes centrais da versão contemporânea mais reacionária do Islã. Para quem acompanha o noticiário recente sobre o mundo árabe, tais reflexões são mais do que atuais.
Claro que várias questões e hipóteses que ele levanta podem levar a questionamentos e a dúvidas. Ele deixa a entender, por exemplo, que a Drag nach Osten alemã visava essencialmente ao espaço muçulmano e que os interesses alemães na Europa do Leste só se tornaram predominantes com a oportunidade única do colapso russo em 1917. Isso ignora a larga tradição alemã de olhar para o Leste europeu como sua futura base de poder imperial e superestima a ambição alemã pelo território turco-otomano. Os alemães, provavelmente, gostariam de ter tudo, formando um império que iria de Berlim a Moscou e Teerã. Mas a prioridade sempre foi o Leste europeu, e as ambições no Oriente Médio, a meu ver, eram acessórias. Se os alemães tivessem de escolher entre Kiev e Cairo, as planícies ucranianas seriam as escolhidas.
Ele também peca quando tenta, em poucas páginas, resumir o nazismo a uma explosão de antissemitismo autopiedoso, a forma com que os alemães formataram seu ressentimento pela derrota na Primeira Guerra. Que o ódio ao judeu foi reforçado no pós-1918 em boa medida como uma tentativa de explicar como a grande Alemanha poderia ter sido derrotada é um fato, mas essa explicação reduz a questão do antissemitismo nazista a um quase nada, ignorando séculos de antissemitismo, racismo científico etc.
O livro também traz alguns equívocos de tradução e vários erros tipográficos que poderiam ter sido evitados por uma revisão mais cuidadosa. O autor também merece questionamentos por sua tendência de buscar “complôs” e intrigas em toda parte, e fica evidente no livro seu tom fortemente pró-turco e antirrusso. Ele parece, nesse e em outros livros, fazer o mesmo que Fritz Fischer e sua escola fizeram com a Alemanha décadas atrás: identifica na Rússia a grande culpada da guerra e relativiza a ação dos outros, como a Alemanha e o Império turco-otomano, como mais reativas do que ativas. Isso forma uma contradição, aliás, com a tese do próprio livro, que trabalha, como visto, com os projetos e esforços alemães naquela região, os quais, muitas vezes, respondiam aos outros atores (russos, ingleses e franceses), mas não de modo exclusivamente defensivo ou reativo.
Mesmo assim, suas hipóteses são, em geral, consistentes, calcadas em um número imenso de fontes coletadas em arquivos austríacos, franceses, ingleses, americanos e, especialmente, alemães, turcos e russos. Um esforço de pesquisa e linguístico que pode ser questionado, em alguns aspectos, em termos de análise, mas que deve e pode ser valorizado, já que escapa da armadilha de tentar abordar um tema multinacional sem o uso de fontes de vários países.
Enfim, não é sempre que eu, que já estudo temas ligados aos impérios, à Rússia e à Primeira Guerra Mundial há vários anos, consigo encontrar um livro que me forneça uma nova perspectiva desses temas e/ou que me faça aprender realmente algo novo sobre eles. Foi esse o caso, contudo, do livro de Sean McMeekin, e é por isso que recomendo sua leitura, o qual só tem a acrescentar, mesmo que não se concorde com todas as suas propostas para o entendimento do tema e do período.
João Fábio Bertonha – Doutor em História pela Unicamp, com estágios de pós-doutorado na Università degli Studi di Roma e na Universidade de São Paulo; pós-graduado em assuntos estratégicos internacionais pela National Defense University (EUA); professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá e pesquisador bolsista do CNPq. E-mail: fabiobertonha@hotmail.com.
La idea de principio en Leibniz y la evolución de la teoría deductiva. obras completas – ORTEGA Y GASSET (Ph)
ORTEGA Y GASSET, Jose. La idea de principio en Leibniz y la evolución de la teoría deductiva. obras completas. 2. reimpresión. V. 8. Madrid: Alianza, 1994. Resenha de: CARVALHO, José Maurício de. Philósophos, Goiânia, v.16, n. 2, p.387-396, jul./dez., 2011.
O livro de Ortega y Gasset, escrito no verão de 1947, em Lisboa, expressa sua maturidade intelectual, período inicia-do com a publicação de Meditaciones del Quijote e desenvolvido durante a escrita dos oito livros de El Especta-dor (1916-1934). Nesta obra o autor aprofunda, de modo único, o historicismo raciovitalista, aplicado às questões de epistemologia e lógica. Daí a importância deste livro para o entendimento de seu pensamento filosófico.
Ortega y Gasset examina, na obra, o conceito de expe-riência básico para a ciência moderna, que se torna assunto central da filosofia durante a modernidade. No livro, o au-tor compara a forma moderna de pensar o mundo, representada pelas ideias de Descartes e Leibniz, com a ma-neira tradicional utilizada por Aristóteles e Euclides. Também aprofunda a noção de crença, que para ele é as-sunto fundamental do conhecimento humano, como indicaremos adiante.
A referência a Leibniz como o autor em torno do qual Ortega y Gasset desenvolve suas considerações sobre o co-nhecimento humano deve-se ao pensador alemão ser, por excelência, um filósofo de princípios, ou de fazer com ma-estria o que todo filósofo espera realizar: propor princípios que forneçam certezas para pensar o real. O conhecimento, para Ortega y Gasset (1994, 63), é atividade que se faz com princípios. Ele afirma: ―Em filosofia isto se leva a extremos […], se exige dos princípios que sejam últimos, isto é, em sentido radical, princípios‖. Leibniz, avalia o autor, é ainda o filósofo mais completo da modernidade e, pela extensão de seus interesses e estudos, pode ser comparado ao que A-ristóteles representou na Idade Antiga. O estudo de Leibniz, o confronto de suas teses com Aristóteles, pede que se separe o aristotelismo de suas interpretações escolás-ticas. Ortega y Gasset entende que os princípios construídos em determinado tempo cristalizam uma con-cepção de mundo e que essa solidificação é a base das crenças que representam a forma de pensar de certo tempo.
Na tentativa de estabelecer princípios radicais para es-truturar o real cada filósofo desenvolve um método novo, uma forma própria de pensar, ainda que como filosofar conserve algo da tradição. A filosofia antiga pensa que as coisas são ou parecem ser de determinado modo, não fala de necessidades, ―as coisas não dependem de nosso arbítrio reconhecer ou não‖ (p. 72), elas são como são. Quando do surgimento da ciência moderna, Galileu afirmou que os te-oremas geométricos valem para os fenômenos físicos, isto é, ―basta a Física supô-los para eles serem válidos‖ (p. 76). Essa forma de pensar o mundo foi modificada nos séculos se-guintes, chegando-se à conclusão de que apenas alguns pontos da teoria coincidem com a realidade. A mudança fez surgir os símbolos e, mais recentemente, a ideia de probabi-lidade.
No momento em que viveu Leibniz, a Física já fazia um discurso aceito como verdadeiro sobre a realidade. Leibniz é um filósofo de princípios e representa bem a visão que a nova ciência tem do mundo, ou melhor, ―a Filosofia tem que contar com o modo de pensar destas ciências, quer di-zer, tem que se considerar Ciência‖ (p. 90).
René Descartes, ao lado de Leibniz, é outro pensador importante daquele século e está envolvido com a revisão da álgebra. A álgebra parte de uma intuição básica, a saber, a possibilidade de o número traduzir o real, isto é, ―há uma correspondência entre o número e a extensão‖ (p. 98). Des-cartes utilizou tal entendimento e percebeu que ele abria infinitas possibilidades, dando início à Geometria Analíti-ca. O resultado é que a busca da verdade e da relação entre as coisas ganhou, com o propósito de precisão da lógica, uma nova possibilidade nas formulações da ciência e filoso-fia modernas.
A tradição matemática euclidiana e aristotélica pensa o mundo com um princípio tido como verdadeiro, usado pa-ra justificar outros princípios. O exame da matemática aristotélico-euclidiana nos permite uma comparação com o modo de pensar moderno. Eis como Ortega y Gasset (1994, 127) se refere a essa tradição: ―A teoria dedutiva do tipo aristotélico-euclidiana consiste em deduzir proposições par-tindo de princípios cuja verdade é evidente‖. Essa forma de pensar se aproxima do procedimento dedutivo usado pelos filósofos, mas possui caráter próprio. A definição de ponto, por exemplo, possui significado puramente lógico, não é al-go que se refira a um ente que exista no mundo. Logo, uma verdade anunciada por Euclides não assegura a existência da coisa. A verdade que traduz a expressão matemática não tem coincidência exata com as coisas do mundo, pois a ex-pressão matemática quer possuir uma exatidão que o olhar humano não possui. No caso das formulações de Descartes e Leibniz, os princípios matemáticos se comparam não com a intuição dos seres, mas com uma visão íntima que a cons-ciência forma do mundo. Nem uma maneira nem outra conseguem a exatidão que pretende possuir a geometria. As duas posições: a antiga e a moderna, ainda que com este as-pecto semelhante, a saber, a falta de correspondência entre o mecanismo do mundo e a representação matemática, dei-xam ver uma diferença fundamental: os antigos pensam a partir dos seres, os modernos tomam as ideias como ponto de partida. A teoria aristotélico-euclidiana parte do real, tentando extrair das coisas o que há de comum entre elas. O problema dessa forma de pensar é entender como se ex-trai o universal do que nos vem pela sensibilidade. Ao sugerir esse caminho, Aristóteles entende que a razão toca o ser, o que dá aos dados sensíveis uma nova função e sugere uma continuidade entre a ordem sensível e a espiritual. Os princípios aristotélicos devem estar sob a forma inteligível retirada dos dados sensíveis. Para Aristóteles, é pela defini-ção das coisas que o raciocínio deve começar, buscando apreender o que é invariável no que se modifica no mundo. Os modernos seguem outra trilha, eles se perguntam como fazer para chegar ao essencial das coisas a partir da imagina-ção.
Antes de prosseguir a comparação entre as formas de proceder à dedução no mundo antigo e moderno, o autor considera essencial esclarecer um aspecto fundamental de seu pensamento historicista: separar o aristotelismo de suas interpretações medievais. O fato parece-lhe inevitável e ne-cessário porque os escolásticos não eram capazes de penetrar na circunstância em que se formou o modo de pensar dos gregos. Dito de outra forma: ―Os frades da Idade Média recebem a filosofia grega, porém não recebem, claro está, os pressupostos, as peripécias históricas que obrigaram os gregos a criar a filosofia‖ (p. 215). A escolástica foi uma espécie de recepção de ideias desconectadas da realidade histórica em que foram pensadas e isso é uma tragédia na avaliação orteguiana. O filosofar não pode ser separado dos desafios do tempo. Ortega y Gasset denominará escolásticas todas as tentativas existentes, ao longo da história da filoso-fia, para reproduzir elaborações filosóficas fora do contexto em que foram concebidas. Ele afirma, a título de exemplo: ―a Ontologia é uma coisa que se passou aos gregos, e não pode voltar a se passar a ninguém‖ (p. 217).
O pensamento escolástico e as limitações decorrentes de sua inadequada apropriação de ideias fora do contexto foram abandonados pelos modernos. O autor do livro ob-serva que: ―Descartes começa esvaziando a tradição cultural européia, isolando-a, aniquilando-a‖ (p. 225). Lembramos que Aristóteles estabelece uma continuidade entre a maté-ria e os números, procedimento euclidiano que ganhou continuidade na Idade Média. O pensamento analógico não tinha força científica para Aristóteles, afastava-se da rea-lidade e é esse caminho, rejeitado por Aristóteles, que foi seguido por René Descartes, para quem as coisas aparecem como relações. Escreve o autor: ―Descartes toma as correla-ções como correlações, enquanto Aristóteles as toma como se fossem coisas não relativas, mas absolutas independentes da relação, quer dizer, formalmente como coisa‖ (p. 238). Assumida como forma de entendimento, Descartes entende a dedução como um método válido para aplicação em qualquer ciência e propõe o método como preâmbulo da ciência. Ele não necessita valer-se da Metafísica, como fizera Aristóteles. Eis a razão pela qual ―a nova ciência não se o-cupa das coisas como coisas, mas como suas relações e proporções‖ (p. 244). Reside nisso a diferença fundamental entre a antiga e a nova ciência.
A evolução do aristotelismo produziu, no decorrer da história, outro problema que Descartes e Leibniz precisa-ram superar: a aproximação entre o sensualismo e o materialismo. Esse vínculo entre essas teorias, assumido pe-la escola estoica, era uma espécie de extensão do aristotelismo e consiste em uma crença. O critério de ver-dade do estoicismo é uma crença usada na relação com o mundo. Quem não vive na crença mergulha na dúvida. Ao tratar da concepção estoica de mundo, Ortega y Gasset des-cobre que a crença é um importante elemento cognitivo de uma pessoa ou geração, sendo uma verdade vivida pelas pessoas sem o menor questionamento.
A inserção das crenças na concepção historicista de Or-tega y Gasset se explicita no uso dos conceitos ideoma e draoma. Toda teoria filosófica se apresenta em proposições, um conjunto sistemático de ideias ou ideoma. A filosofia é a reunião de ideias, mas o conjunto de proposições elabora-das por um filósofo tem pressupostos implícitos que ele toma como absolutamente certos. Essas assertivas não são sequer pensadas porque parecem absolutamente evidentes ao pensador e aos seus contemporâneos, isto é, o draoma. O draoma não é a crença, mas sim o ingrediente dela. Os pres-supostos, as verdades vividas e nem sequer pensadas são os componentes das crenças. Como a crença se explicita no es-tudo dos filósofos? Ortega y Gasset assim exemplifica: ―As causas mais radicais em que Aristóteles acreditava, isto é, que os sentidos nos mostram verdadeiramente o ser […] elas estão, não em Aristóteles, mas em toda a vida grega de três séculos anteriores a ele‖ (p. 259). O draoma é, portanto, uma ação vivente ou um ingrediente dela.
Entendida a relação entre o ideoma e o draoma nos de-paramos com outro aspecto fundamental do historicismo raciovitalista, a explicação para a origem do filosofar. Quando o filósofo se coloca a pensar e a descobrir os prin-cípios capazes de conferir entendimento ao mundo ele responde a problemas vitais, a questões impossíveis de pas-sar adiante sem novas considerações. Essas questões já não podem ser respondidas pelas filosofias elaboradas em ou-tros tempos porque elas já não respondem às necessidades vitais do novo tempo. Assim, o filosofar significa a busca de princípios que respondem às necessidades vitais do pensa-dor, uma vez que ele já não encontra na tradição resposta para seus problemas.
O entendimento orteguiano de que o filosofar é uma resposta aos problemas vitais nos coloca diante do filosofar. Trata-a como parte do esforço que o homem faz para dar um sentido à sua vida. Em outras palavras, ―o homem se dedica a esta estranha ocupação que é filosofar quando, por haver perdido as crenças tradicionais, se encontra perdido na vida‖ (p. 267). O que o faz filosofar não é, portanto, uma espécie de disposição natural para investigar o que é ser. Essa dúvida não consiste no mais radical problema que o homem pode formular. Essa é a razão do afastamento de Ortega y Gasset das posições heideggerianas: ―O fenômeno sistemático é a vida humana e é de sua intuição e análise que temos que partir‖ (p. 273). Chegamos ao núcleo do en-tendimento raciovitalista: é a vida o desafio e o problema a ser enfrentado.
Ortega y Gasset considera Wilhelm Dilthey um grande filósofo porque ele intuiu, antes de todos, que era a vida o grande problema a ser meditado. Apesar disso, Dilthey não chega ao núcleo do raciovitalismo porque tratou o filosofar como uma disposição natural, e esta só nasce quando há desencanto com uma crença. Quando uma crença já não responde aos problemas vitais, ela e o sistema de ideias ao qual se associa são questionados. Diz o filósofo: ―Uma ânsia de certeza se apodera dele e ele viverá sem sossego, cutuca-do, em grande perturbação, até que consiga fabricar para a crença fraturada o aparelho ortopédico que é uma certeza‖ (p. 290).
Ao referir-se à vida como problema radical do filosofar o filósofo rejeita a tese heideggeriana de que o componente essencial do viver é a angústia. Se a tanto se resumisse o vi-ver, o caminho natural para todo homem seria o suicídio, mas a vida não é só desespero. Existe a tragédia na vida, mas a vida é também esportiva. O sentimento trágico da vi-da foi uma invenção romântica que precisa ser superada. Entre os gregos o sentido do filosofar era diverso do roman-tismo. A filosofia é a combinação de ideias, ―sua índole própria é jovial como corresponde a um jogo‖ (p. 305). Daí o apelo do filósofo: ―Deixemos, pois, de intempestivos me-lodramas e filosofemos jovialmente, que dizer, como é devido‖ (p. 316).
Feitos esses esclarecimentos, volta Ortega y Gasset à his-tória da filosofia para concluir. A diferença do pensamento moderno de Descartes e Leibniz do aristotélico-euclidiano revela uma diferença básica. Para os antigos, a proposição trata da coisa mesma; para os modernos, a relação descrita do mundo é uma ideia e a verdade uma relação entre idei-as.
O livro termina com dois textos em forma de apêndice colocados pela editora. No primeiro, escrito também em 1947 para o XIX Congresso Espanhol Para o Progresso da Ciên-cia, Ortega y Gasset reafirma que Leibniz representa o momento de reintegração cultural depois da desintegração ocorrida ao final da Idade Média, ocasião em que as antigas crenças já não diziam nada às novas gerações. A verdade desse tempo, bem expressa por Leibniz, é a verdade de uma proposição. Quanto ao entendimento de mundo, estáva-mos diante do melhor dos mundos possíveis porque ele foi o escolhido por Deus. O racionalismo da época exigia para tudo uma explicação. O segundo texto, deixado de lado por Ortega, era provavelmente um parágrafo do livro. Ele trata o Renascimento como um momento de rompimento com a escolástica, avaliada como um cadáver ao final da Idade Média. O mundo pedia novas formas de entendimento e foi o que tentou fazer o pensamento moderno, conclui Or-tega y Gasset.
O livro, por sua extensão, detalhamento de assuntos fundamentais no raciovitalismo, como a origem desportiva do filosofar, a formação e o papel das crenças na vida hu-mana, a evolução da consciência humana ao longo da história como resposta a desafios específicos das circunstân-cias, a diferença entre o mundo moderno e o antigo, tem um papel de destaque na reflexão orteguiana. O método historicista do raciovitalismo, tema de Historia como sistema, aqui é retomado e contrasta com o racionalismo do século XVII, tão bem estudado no livro. Essa razão não consegue alcançar a realidade cambiante e temporal da vida humana, a vida só pode ser compreendida em sua evolução histórica. Também fica bem esclarecida a razão pela qual o homem fi-losofa, assunto tratado no ensaio Apuntes sobre el pensamiento, pois, depois de desaparecida uma crença, este se acha perdido e precisa descobrir novas razões às quais se dedicar.
José Maurício de Carvalho – Professor titular da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ)., São João Del-Rei, Goiás. E-mail: mauricio@ufsj.edu.br
Jörn Rüsen e o ensino de história – SCHMIDT et al. (RBHE)
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Resende Martins. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Consciência histórica, mudança social e ensino de história. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 11, n. 2 (26), p. 191-197, maio/ago. 2011.
A obra de Jörn Rüsen começa a ser traduzida com maior regularidade no Brasil. Isso se deve a vários fatores, dentre os quais, a formação de grupos que se preocupam com a introdução da teoria da história e da história da historiografia de cunho alemão no país, ao amadurecimento da pesquisa histórica, a maior preocupação com questões de método, ao fortalecimento de um diálogo interdisciplinar, e, no interior dessas questões, a própria contribuição que traz a obra desse autor.
Até agora o leitor brasileiro tinha acesso a um pequeno conjunto de artigos traduzidos e publicados em revistas especializadas do país, a partir do final dos anos de 1980, e a sua trilogia sobre teoria da história (2001, 2007a, 2007b). Com a publicação desse livro, o leitor tem a oportunidade de verificar que as contribuições desse autor se estendem para além do campo da teoria, metodologia e história da historiografia, e conjugam também o campo da didática e do ensino de história. Para os menos próximos do conjunto dos textos e da trajetória de Rüsen, isso talvez possa parecer um tanto quanto estranho. No entanto, nada mais articulado do que também tratar da didática e do ensino de história. Como Estevão Martins nos informa, sua bibliografia articula história, filosofia, antropologia e historiografia “de modo comparativo, debruçando-se sobre as grandes linhas culturais do mundo comtemporâneo – em seus contatos e em seus estranhamentos” (p. 7). Além disso, a própria condição docente nas universidades alemãs vinculava a cadeira que ocupou, entre os anos de 1970 e 1990 – de 1974 a 1989 na Universidade de Bochum e de 1989 a 1997 na de Bielefeld –, na conjugação de parâmetros reguladores, para o de teoria, metodologia, historiografia e didática da história. Em virtude disto, para Martins, sua proposta de reflexão quanto aos critérios de orientação do agir humano no tempo, de modo que se viabilize suprir as carências existenciais, que constata serem corriqueiras entre nós, fá-lo propor linhas de análise quanto à expressão narrativa nas suas três versões mais comuns: a da linguagem do quotidiano, a da historiografia e a da linguagem do ensino (p. 9). Leia Mais
Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais – HONNETH (C)
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003. Resenha de: SALVADORI, Mateus. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, Jan/Abr, 2011.
A figura mais proeminente dentre os teóricos da terceira geração de Frankfurt é Axel Honneth. Os seus estudos concentram-se nas áreas: filosofia social, política e moral, tratando ,principalmente, da explicação teórica e crítico-normativa das relações de poder, respeito e reconhecimento na sociedade atual.
O objetivo central de Honneth na obra Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, é mostrar como indivíduos e grupos sociais se inserem na sociedade atual. Isso ocorre por meio de uma luta por reconhecimento intersubjetivo e não por autoconservação, como salientavam Maquiavel e Hobbes. As três formas de reconhecimento são as seguintes: o amor, o direito, e a solidariedade. A luta pelo reconhecimento sempre inicia pela experiência do desrespeito dessas formas de reconhecimento. A autorrealização do indivíduo somente é alcançada quando há, na experiência de amor, a possibilidade de autoconfiança, na experiência de direito, o autorrespeito e, na experiência de solidariedade, a autoestima.
Honneth, inspirando-se no conceito de reconhecimento do jovem Hegel, busca fundamentar a sua própria versão da teoria crítica. Com isso, ele pretende explicar as mudanças sociais por meio da luta por reconhecimento e propõe uma concepção normativa de eticidade a partir de diferentes dimensões de reconhecimento. Os indivíduos e os grupos sociais somente podem formar a sua identidade quando forem reconhecidos intersubjetivamente. Esse reconhecimento ocorre em diferentes dimensões da vida: no âmbito privado do amor, nas relações jurídicas, e na esfera da solidariedade social. Essas três formas explicam a origem das tensões sociais e as motivações morais dos conflitos.
A primeira forma de reconhecimento consiste nas emoções primárias, como o amor e a amizade. Para investigar essa esfera, o autor volta-se aos trabalhos da psicologia infantil de Donald Winnicott. O ponto de partida dessa primeira forma é uma fase de simbiose, chamada por Winnicott “dependência absoluta”. A mãe e o filho estão em um estado de indiferenciação. As reações do filho são percebidas pela mão como um único ciclo de ação. Winnicott chama isso “intersubjetividade primária”, em que há uma unidade de comportamento. Porém, para ampliar o seu campo social de atenção, a mãe começa a romper a sua identificação com o bebê. Com isso, o bebê aprende que a mãe é algo do mundo e que não está à sua inteira disposição.
Essa segunda fase é chamada “dependência relativa”. É nesse período que a criança desenvolve a sua capacidade para uma ligação afetiva. A criança reconhece o outro como alguém com direitos próprios, independente. Para Winnicott, a fim de alcançar essa independência do outro, a criança tem que desenvolver dois mecanismos psíquicos: destruição e os fenômenos e objetos transicionais. A destruição (mordidas no corpo da mãe) consiste em atos que a criança pratica quando descobre a independência da mãe. Eles se tornam positivos quando o bebê reconhece a independência da mãe, amando-a sem as fantasias de onipotência. Os fenômenos e objetos transicionais (travesseiro, brinquedo, dedo polegar) são elos de mediação entre a fase da fusão e a da separação.
A criança somente alcança a criatividade quando fica sozinha com os objetos transicionais. Isso é possível devido à dedicação emotiva da mãe, mesmo estando distante da criança. Essa confiança na dedicação materna faz com que a criança desenvolva a autoconfiança. Nessa análise de Winnicott, pode-se concluir que o amor é uma forma de reconhecimento e, por meio dele, o indivíduo desenvolve uma confiança em si mesmo, indispensável para seus projetos de autorrealização pessoal.
Para Honneth o amor somente surge quando a criança reconhece o outro como uma pessoa independente, ou seja, quando não está mais num estado simbiótico com a mãe. O amor é o fundamento da autoconfiança, pois permite aos indivíduos conservarem a identidade e desenvolverem uma autoconfiança, indispensável para a sua autorrealização. O amor é a forma mais elementar de reconhecimento.
O amor se diferencia do direito no modo como ocorre o reconhecimento da autonomia do outro. No amor, esse reconhecimento é possível, porque há dedicação emotiva. No direito, porque há respeito.
Em ambos, somente há autonomia quando há o reconhecimento da autonomia do outro. A história do direito ensina que, no século XVIII, havia os direitos liberais da liberdade; no século XIX, os direitos políticos de participação e, no século XX, os direitos sociais de bem-estar. De modo geral, essa evolução mostra a integração do indivíduo na comunidade e a ampliação das capacidades, que caracterizam a pessoa de direito. Nessa esfera, a pessoa é reconhecida como autônoma e moralmente imputável ao desenvolver sentimentos de autorrespeito.
A solidariedade (ou eticidade), última esfera de reconhecimento, remete à aceitação recíproca das qualidades individuais, julgadas a partir dos valores existentes na comunidade. Por meio dessa esfera, gera-se a autoestima, ou seja, uma confiança nas realizações pessoais e na posse de capacidades reconhecidas pelos membros da comunidade. A forma de estima social é diferente em cada período histórico: na modernidade, por exemplo, o indivíduo não é valorizado pelas propriedades coletivas da sua camada social, mas surge uma individualização das realizações sociais, o que só é possível com um pluralismo de valores.
A passagem progressiva dessas etapas de reconhecimento explica a evolução social. Ela ocorre devido à experiência do desrespeito que se dá desde a luta pela posse da propriedade até à pretensão do indivíduo de ser reconhecido intersubjetivamente pela sua identidade.
Segundo Honneth, para cada forma de reconhecimento (amor, direito e solidariedade) há uma autorrelação prática do sujeito (autoconfiança nas relações amorosas e de amizade, autorrespeito nas relações jurídicas e autoestima na comunidade social de valores). A ruptura dessas autorrelações pelo desrespeito gera as lutas sociais. Portanto, quando não há um reconhecimento ou quando esse é falso, ocorre uma luta em que os indivíduos não reconhecidos almejam as relações intersubjetivas do reconhecimento. Toda luta por reconhecimento inicia por meio da experiência de desrespeito. O desrespeito ao amor são os maus-tratos e a violação, que ameaçam a integridade física e psíquica; o desrespeito ao direito são a privação de direitos e a exclusão, pois isso atinge a integridade social do indivíduo como membro de uma comunidade político-jurídica; o desrespeito à solidariedade são as degradações e as ofensas, que afetam os sentimentos de honra e dignidade do indivíduo como membro de uma comunidade cultural de valores.
As mudanças sociais podem ser explicadas por meio do desrespeito, gerador de conflitos sociais. Os conflitos surgem do desrespeito a qualquer uma das formas de reconhecimento, ou seja, de experiências morais decorrentes da violação de expectativas normativas. A identidade moral é formada por essas expectativas. Uma mobilização política somente ocorre quando o desrespeito expressa a visão de uma comunidade.
Portanto, a lógica dos movimentos coletivos é a seguinte: desrespeito, luta por reconhecimento, e mudança social. Honneth, seguindo as ideias de Hegel, afirma que a eticidade é o conjunto de condições intersubjetivas, que funcionam como condições normativas necessárias à autodeterminação e a autorrealização.
A teoria de Honneth é explicativa, pois busca esclarecer a gramática dos conflitos e a lógica das mudanças sociais com a finalidade de entender a evolução moral da sociedade, e crítico-normativa, porque fornece um padrão – a eticidade – para identificar as patologias sociais e avaliar os movimentos sociais. A eticidade, portanto, é o conjunto de práticas e valores, vínculos éticos e instituições, que formam uma estrutura intersubjetiva de reconhecimento recíproco. Por meio da vida boa, há uma conciliação entre liberdade pessoal e valores comunitários. A identidade dos indivíduos é formada pela socialização, ou seja, é formada na eticidade, inserida em valores e obrigações intersubjetivas. Portanto, não há como pensar a existência de um contrato para o surgimento da sociedade, mas nas transformações das relações de reconhecimento.
Esse conceito formal de eticidade, elaborado por Honneth, visa a ser uma ampliação da moralidade, integrando tanto a universalidade do reconhecimento jurídico-moral da autonomia individual como a particularidade do reconhecimento ético da autorrealização. Por conseguinte, esse conceito tem como objetivo alcançar todos os aspectos necessários para um verdadeiro reconhecimento.
Na sociedade moderna, o indivíduo tem de encontrar reconhecimento tanto como indivíduo autônomo livre quanto como indivíduo, membro de formas de vida culturais específicas. Essa concepção formal de eticidade fica sempre limitada pelas situações históricas concretas. Portanto, ela não cai num etnocentrismo, nem numa utopia, pois ela é uma estrutura que se encontra inserida nas práticas e instituições da sociedade moderna.
Mateus Salvadori – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor na Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: mateusche@yahoo.com.br
Sobre ética: Aristóteles, Kant e Levinas – NODARI (C)
NODARI, Paulo César. Sobre ética: Aristóteles, Kant e Levinas. Caxias do Sul: Educs, 2010. Resenha de: CROCOLI, Daniel José. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 1, Jan/Abr, 2011.
A obra Sobre ética apresenta as diferentes formas de se pensar a dimensão ética, fazendo referência ao olhar teleológico, ao deontológico e ao da alteridade. A primeira parte do texto, organizada no primeiro capítulo, descreve, a partir de Aristóteles, o entendimento teleológico da ética. A segunda parte, constituída de três capítulos, coloca a visão deontológica de Kant. O quinto capítulo se configura a partir dos estudos de Levinas e a alteridade como pano de fundo para se pensar a problematização das questões éticas. O texto é uma leitura acessível do ponto de vista argumentativo, passando pelos principais conceitos referentes ao entendimento ético dos autores em discussão. A riqueza do texto também se confirma pela vasta bibliografia consultada pelo autor ao escrever essa obra. Nas notas de rodapé, o autor nos possibilita um contato direto com os originais referidos no texto, abrindo um importante espaço para esclarecimento de conceitos.
Na abordagem aristotélica, o autor retoma a pergunta de Aristóteles: “Qual o bem supremo do homem e o fim a que tendem todas as coisas?” (p. 9) e retoma o conceito de felicidade como sendo o bem supremo a que se dirige o ser humano pela atividade racional que esteja de acordo com a virtude. O autor destaca que “Aristóteles interpreta a ação humana segundo a categoria de meio e fim”. (p. 16). E, nessa relação, há a necessidade de se pensar um limite para essa sequência. Se todas as coisas tendem a um fim, a um bem, esse bem não é unívoco, pois há uma multiplicidade de fins a que cada ser se dirige. Essa multiplicidade de bens, ou de fins, é organizada em categorias o que faz pensar em um bem supremo. “Aristóteles acredita que a felicidade é este bem soberano, porque é algo final e autossuficiente.” (p. 18). Mas como entender a felicidade no sentido universal sem cair na concepção subjetiva de que cada um possui um conceito próprio de felicidade e, ao mesmo tempo, se distanciar de Platão e manter o caráter imanente do bem soberano? A resposta surge com a ideia de natureza racional do homem, ou seja, “se nós somos seres racionais, por nossa forma natural, então, fica claro que o fim natural será agir segundo a razão”. (p. 20). A felicidade só é alcançada na medida em que o homem se orienta pela razão: “Portanto, para ser feliz, o homem deve viver pela inteligência e segundo a inteligência.” (p. 21). O homem chega à felicidade somente pelo uso da razão em conformidade com a virtude. Essa proximidade entre razão e virtude permite afirmar que o homem feliz é aquele que pensa e age a partir da virtude, e a sabedoria é virtude por excelência.
A virtude está associada à atividade da alma, própria do homem, que se divide em três partes: duas irracionais, presentes em todos os seres vivos, e uma racional, própria do homem. “Então, a parte da alma especificamente humana, que consiste em dominar as tendências e os impulsos, que são por si desmedidos, Aristóteles chama virtude ética.” (p. 25). As virtudes éticas não estão dadas por natureza, mas se desenvolvem com a prática, pelo hábito. É somente realizando ações justas que o homem se torna justo. O autor reforça que, para Aristóteles, o hábito, a ação virtuosa, é que consolida a verdadeira virtude, pois nenhum homem se torna virtuoso da noite para o dia, mas pelo conjunto de suas ações. A virtude se caracteriza não pela falta, nem pelo excesso, mas pela equidade, pelo equilíbrio.
O texto apresenta a divisão feita por Aristóteles entre as virtudes éticas e dianoéticas, ou seja, enquanto as virtudes éticas estão ligadas ao hábito, à ação, as dianoéticas estão ligadas à parte mais elevada da alma e se relacionam com a phronesis [prudência] e com a sabedoria. A phrónesi: “consiste em saber dirigir corretamente a vida do homem”. (p. 29).
Nessa primeira parte do texto, fica claro o entendimento global da abordagem aristotélica sobre a ética, de aproximar a razão, o conhecimento e a prática. A felicidade somente é alcançada a partir de uma vida virtuosa, orientada pela razão. A ética e a política estão próximas em Aristóteles, de forma que as ações concretas, realizadas de acordo com a sabedoria prática, possibilitam que o homem chegue à sua finalidade, ao seu bem, que se identifica com a felicidade e com a visão teleológica da ética.
O capítulo segundo dá início à segunda parte do texto, que se prolonga juntamente com os capítulos terceiro e quarto e faz referência à filosofia de Kant voltada ao estudo da ética. A proposta dessa parte é pensar a chamada revolução copernicana levanta para o entendimento da ética kantiana. Assim como a revolução copernicana traz a possibilidade de pensar que o conhecimento não se regula a partir do objeto, mas do sujeito que conhece, “a intuição dos objetos não deve se regular pela natureza dos objetos, mas, antes, pela natureza da nossa faculdade de intuição”. (p. 54). Assim também o fundamento da ética deve ser buscado na própria razão. A ética nos sentidos universal e racional não pode depender de fundamentos externos (como é o caso de uma fundamentação metafísica), ou pela tradição. Nesse caso, a razão deve ser entendida como autônoma e capaz de dar-se a si mesma uma vontade e uma vontade boa em si mesma. “Kant revoluciona a ética com a ideia da autonomia moral da razão, capaz de determinar a ação.” (p. 61). A autonomia nada mais é do que a possibilidade de pensar o homem com a capacidade de dar-se a própria lei no sentido universal. “O bem não deve mais ser pressuposto ou se constituir em fundamento da lei moral, mas deve, antes, ser deduzido dela.” (p. 62). Para Kant, acentua o autor, a lei moral leva à constituição do bem, ao passo que na metafísica a ideia de bem-trazida pela tradição – determina a lei moral. A parte final desse segundo capítulo reforça a ideia de que a virtude é a capacidade do homem de guiar-se pela razão, é uma conquista de si próprio como ser moral.
O capítulo terceiro apresenta o texto da Fundamentação da metafísica dos costumes para mostrar que os conceitos de lei moral e liberdade não tornam contraditória a argumentação sobre a autonomia e de que a razão se impõe uma lei justamente para se distanciar das determinações da natureza sensível. O imperativo categórico representa um acréscimo ao sujeito na medida em que esse não é somente razão, mas influenciado pelos sentidos. O caráter imperativo do “dever ser” dá condições à vontade de se manter guiada por proposições sintéticas a priori, de caráter universal e que superam as inclinações sensíveis, “de modo que aquilo para o qual as inclinações e os apetites o estimulam em nada pode lesar as leis de seu querer como inteligência”. (p. 97). Dessa forma, o imperativo categórico é uma determinação da vontade que tem como pressuposto a liberdade. É justamente por ser a vontade livre, que essa se lhe apresenta o dever-ser, fortalecendo a ideia de autonomia e de não determinação externa a si mesma. O entendimento de que é a razão, que determina os objetos no campo da ciência pelas condições de possibilidade de todo o conhecimento é a mesma razão, que no campo da ética, torna-se o fundamento de toda lei moral. Assim, se abre a noção de revolução copernicana para o entendimento da ética kantiana tendo a razão no seu aspecto normativo como fundamento da ética.
No capítulo quarto, o autor apresenta o conceito de “sumo bem”, de Kant, argumentando que a moralidade e a felicidade são os dois elementos que o compõem. Acrescenta que a felicidade e a moralidade não podem ser os princípios da vontade, pois essa deve ter seu fundamento em princípios formais o que reforça a necessidade de que a vontade tenha em si a causa de suas ações. (p. 117). Desse modo, a felicidade e a virtude se tornam consequência da lei moral e não o contrário. “O conceito de sumo bem é usado, portanto, para ligar especialmente natureza e liberdade, felicidade e moralidade”. (p. 125-126). O texto faz distinção entre saber e acreditar, mostrando a não contradição entre esses dois termos na medida em que o primeiro se refere ao mundo fenomênico, e o segundo aos elementos que estão além da experiência como é o caso dos postulados da razão (Deus, imortalidade e liberdade).
Para esse estudioso, a existência de Deus é necessária na argumentação kantiana, pois a razão coloca Deus como condição de se pensar a natureza como causada, e a felicidade como elemento subordinado à moralidade.
O sumo bem representa a totalidade dos fins morais, e essa ordenação racional exige um fim do qual decorre toda derivação, por isso a exigência de admitir a existência de Deus. A felicidade torna-se um conceito racional que indica a capacidade de autodeterminação da vontade, sendo o segundo elemento do sumo bem. A capacidade da razão de dar-se a própria lei pela determinação da vontade caracteriza a visão deontológica da ética.
A terceira parte da obra se concentra no quinto capítulo e aborda a visão de Levinas sobre a ética. Destaca o autor, já no título do capítulo, a importância do conceito de rosto como apelo à responsabilidade e à justiça. “O rosto do outro ser humano é a sua forma de apresentar-se, não de ser representado, diante do eu que o olha e o toca, mas sem objetivá-lo.” (p. 175). Pelo rosto, do encontro face a face, Levinas entende que ocorre a superação da visão ontológica do ser, pois essa aprisiona e neutraliza o outro na medida em que o reconhece a partir do eu. A descoberta do outro é a descoberta do totalmente outro, ou seja, que não se opõe ao eu, mas se apresenta como diferente. “O outro não é o que eu sou. Não é um alter ego, mas um alter do ego.” (p. 174). Significa dizer que o outro faz uma exigência ao eu, de ser reconhecido como diferente, que não se aprisiona. Na relação face a face, o outro é o fundamento da ética. “O rosto do outro é um mandamento, […] exige justiça.” (p. 177).
O eu perde seu lugar, torna-se vulnerável e é exigido a ele ser responsável e justo. Para o autor, Levinas, ao se distanciar da ontologia, permite que se pense a dimensão ética como um movimento que é anterior à própria consciência, referindo-se ao conceito de proximidade. “Bem antes da consciência da escolha, o homem aproxima-se do homem. É tecido de responsabilidade.” (p. 183). O outro, que está próximo, possibilita a criação de sentido para a subjetividade e, dessa forma, o eu se torna responsável originariamente pelo outro. A alteridade é a “relação sem relação”, originária da responsabilidade e da justiça.
Daniel José Crocoli – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: djcroco@hotmail.com
How Enemies Become Friends | Charles Kupchan
Charles Kupchan é professor de relações internacionais na Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos. Também é associado ao Conselho de Relações Exteriores. Foi diretor do Departamento de Assuntos para a Europa, órgão do Conselho Nacional de Segurança, durante o governo Clinton. Portanto, um especialista renomado e influente.
Tem estudado sistematicamente o que os americanos já chamaram de «nova ordem mundial». Kupchan, de forma mais contundente, considera o momento como «O fim da Era Americana» («The End of the American Era: U.S. Foreign Policy and the Geopolitics of the Twenty-first Century», publicado em 2002) e um período de transição, não para uma nova, mas para uma outra ordem mundial («Power in Transition: The Peaceful Change of International Order», 2001). Leia Mais
Bildungsbürger im Urwald: Die deutsche ethnologische Amazonien-forschung (1884–1929) – KRAUS (BMPEG-CH)
KRAUS, Michael. Bildungsbürger im Urwald: Die deutsche ethnologische Amazonien-forschung (1884–1929). Marburg: Curupira, 2004. 539 p. Resenha de: DRUDE, Sebastian. Expedições alemães que fundaram a etnologia da Amazônia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.5, n.1, jan./abr. 2010.
Existem hoje, no Brasil, várias instituições, especialmente universidades e museus, onde se realizam pesquisas científicas dedicadas à população nativa, suas culturas e línguas, em particular na Amazônia. É impossível se interessar por esta área de estudos sem conhecer bem os nomes de seus fundadores, entre eles muitos alemães, como Karl von den Steinen, Theodor Koch-Grünberg e outros. Mas quem eram esses ilustres personagens? Cientistas eruditos? Aventureiros? O que fizeram aqui, como se organizavam, como obtinham financiamento, como aproveitaram suas viagens? O que os motivou? Quais eram os principais conhecimentos buscados e obtidos por suas pesquisas? E por que a tradição etnológica alemã, que tanto prometia no século XIX, foi praticamente interrompida nos anos 1920?
Com esta obra, cujo título em português poderia ser “Burgueses de educação (ou de formação) na selva: a pesquisa etnológica alemã na Amazônia (1884–1929)”, o antropólogo alemão Michael Kraus1 apresenta um estudo completo e detalhado com algumas respostas para estas perguntas. Esta obra preenche uma lacuna, pois além de algumas notas bio- e bibliográficas (em especial as feitas no Brasil por Herbert Baldus e Egon Schaden), não há muito material disponível sobre os fundadores dos estudos científicos antropológicos e linguísticos sobre a população indígena das terras baixas da América do Sul2. No entanto, mesmo que hoje não seja um fato amplamente conhecido, esta área de estudos foi uma das mais destacadas no estabelecimento da disciplina ‘etnologia/antropologia’.
O estudo de Kraus tem quase 500 páginas, além de 35 páginas de referências. Estas proporções são indício de uma das características mais notáveis do livro: um grande cuidado e respeito pelas fontes originais e pelos seus autores. Apesar deste rigor científico exemplar (em média, três notas de rodapé por página, muitas com valiosas observações adicionais), o livro em nenhum momento é uma leitura seca ou chata – ao contrário, é muito bem escrito (a linguagem chega a ter qualidades literárias) e prende o leitor em todas as páginas.
O foco do trabalho são as viagens ou expedições dos pesquisadores alemães; as condições institucionais e pessoais constituem seu fundo; os resultados científicos são abordados de forma sucinta. O livro é estruturado em cinco partes, iniciadas por um curto prólogo que explica a ênfase e a abordagem escolhidas. A segunda parte, “condições básicas na Alemanha”, tem três capítulos: um apresenta os pesquisadores examinados; o seguinte, as instituições envolvidas; enquanto que o último analisa as motivações individuais e institucionais, a concorrência e o papel da então jovem disciplina ‘etnologia’, ainda em processo de constituição, discutindo, por exemplo, sua fixação em objetos etnográficos.
Os pesquisadores examinados são Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Konrad T. Preuss, Theodor Koch-Grünberg, Max Schmidt e Fritz Krause (ao final do livro, o leitor parece conhecer estes pesquisadores como se tivesse convivido algum tempo com eles). São incluídos, ainda, mas com menos ênfase, três pesquisadores que não foram amazonistas ou que não foram cientistas profissionais: Hermann Meyer, Wilhelm Kissenberth e Felix Speiser.
A parte principal do trabalho, “expedições à Amazônia”, consiste de três capítulos extensos dedicados a três ‘passos’ das expedições: 1) os preparativos e a viagem até a América do Sul; 2) as viagens até a região dos índios; e 3) as pesquisas em si, no local de destino. Para cada etapa, Kraus organiza sua exposição em três ou quatro subcapítulos temáticos. Por exemplo, o sub-capítulo III.2.4, “Trabalhadores braçais de mula, lenha e remo: – Os ‘camaradas’ da ciência”, consiste de 25 páginas dedicadas às relações de cooperação, amizade, conflito, dependência e poder entre os pesquisadores e seus acompanhantes europeus, crioulos e indígenas. Analisa desde a quantidade de pessoas envolvidas (ao longo do tempo, as expedições levavam cada vez menos acompanhantes, o que ajudava a intensificar o contato direto entre os pesquisadores e a população nativa estudada, indicando que o ideal moderno da pesquisa de campo como experiência de imersão cultural já existia na época) até as personalidades e os estilos dos pesquisadores ao lidar com este aspecto das expedições. Para cada um destes aspectos, Kraus apresenta o que encontrou no rico material deixado pelos pesquisadores e, ao comparar diferentes expedições e relatos, identifica padrões e características individuais dos cientistas e de suas pesquisas. A maioria dos subcapítulos são estudos preciosos, que podem ser considerados separadamente, sem perder seus méritos.
A parte quatro, “a antropologia dos etnógrafos”, dirige seu foco sobre a história da ciência, analisando as ideias, a visão e as contribuições dos pesquisadores, sem, contudo, apresentar análise e avaliação abrangentes de seus resultados etnográficos e antropológicos, a partir das teorias e dos conhecimentos atuais. Em vez disso, os dois capítulos elucidativos desta parte, “metodologia e temática” e “teoria e visão global”, tentam se aproximar do native’s point of view – ou seja, da visão e concepção dos próprios pesquisadores estudados.
Isto, aliás, é um dos pontos mais marcantes do livro. Kraus sempre procura se aproximar dos pesquisadores que estuda como um etnógrafo deve se aproximar de uma população nativa – procurando um entendimento profundo e holístico, ciente das próprias limitações e do fato de não estar livre das influências de sua própria origem e formação, respeitando a visão ‘êmica’ em vez de julgá-los etnocentricamente ou, neste caso, ‘cronocentricamente’. Evidentemente, esta abordagem encontra seus limites nas fontes existentes – não foi possível para Kraus entrevistar os pesquisadores estudados e muito menos participar como observador das suas pesquisas (é interessante ver como os alemães eram, em geral, francos e honestos o bastante para admitir suas próprias limitações e falhas – o que contrasta com a visão muitas vezes difundida sobre eles, de acordo com a qual estes buscariam esconder os lados menos bem sucedidos de suas pesquisas, na suposta tentativa de construir uma imagem impecável).
O procedimento escolhido por Kraus tem o mérito de ser muito mais instrutivo do que a simples confirmação (ou não) das opiniões modernas difundidas sobre a etnologia do final do século XIX. Assim, um ponto que Kraus discute em várias passagens do livro é que, muitas vezes, o discurso moderno e supostamente ‘desmistificador’ sobre os fundadores da disciplina é, de fato, preconceituoso e algo arrogante, não conseguindo fazer jus à obra realizada e ao avanço científico que esta trouxe. Isto vale, em particular, para o discurso pós-moderno e desconstrutivista – em muitas ocasiões, em contraste com os nossos preconceitos, é possível perceber que os pesquisadores antigos tinham uma visão muito mais diferenciada dos ‘índios’ e de suas culturas do que a que seus críticos modernos têm destes pesquisadores.
Felizmente, Kraus raramente corre o risco de idealizar os pesquisadores alemães, e tampouco fecha os olhos diante de ideias ou comportamentos que são inaceitáveis, do atual ponto de vista (e, às vezes, também a partir de um ponto de vista humanista já existente na época). Em geral, os pesquisadores estudados surgem como humanistas e críticos do etnocentrismo e das crenças progressistas de sua época; e como pensadores independentes e, em vários aspectos, céticos das teorias universalistas (em particular, do evolucionismo e do difusionismo). Depois da Primeira Guerra Mundial, chegaram a ser pessimistas sobre a própria cultura ao compararem-na com as culturas indígenas por eles observadas. Este contraste entre ‘nossa’ cultura e as dos povos indígenas já era bastante visível nas próprias viagens, no contexto colonial e de exploração do interior da Amazônia, em particular durante o primeiro ciclo da borracha, que marca a época das viagens estudadas por Kraus. As pesquisas não deixaram de se realizar neste contexto violento, que, às vezes, era vantajoso para elas, outras vezes não. Isso não significa que as pesquisas fossem de motivação ou caráter colonialista ou explorador, como tantas vezes se proclama. Como Kraus mostra convincentemente, ao menos entre os pesquisadores interessados na Amazônia, a tradição humanista e liberal se manteve viva nos anos 1920. Os homens aqui abordados estavam muito mais preocupados em contribuir para a construção de conhecimento, universal sobre a diversidade cultural ainda existente, do que com interesses nacionais e imperialistas, econômicos ou missionários3.
Lamentavelmente, preconceitos contra pesquisadores do ‘primeiro mundo’ retornam, hoje, por exemplo, sob o rótulo de ‘combate à biopirataria’, no discurso nacionalista e também no discurso anti-imperialista e anti-globalização, supostamente progressista, colocando sob suspeita todo tipo de cooperação internacional. Este não é o único paralelo à situação atual que se pode estabelecer ao ler a obra de Kraus. Quem já fez expedições para estudar grupos indígenas pode ver as próprias experiências espelhadas nos relatos dos viajantes de 100 ou 120 anos atrás, por exemplo, quando são abordados problemas de financiamento ou de transporte, o ritmo diferente do tempo na viagem e ‘no campo’, e, em particular, os relacionamentos (sempre muito diversos e heterogêneos) com indivíduos e grupos indígenas. Estas relações são descritas muito vivamente pelos pesquisadores – e Kraus consegue transmitir esta plasticidade em seu trabalho.
Prosseguindo na comparação da situação da época com a de hoje: embora a população indígena tenha se mostrado, em geral, bem mais resistente do que se poderia imaginar a partir dos cenários pessimistas de alguns dos ilustres cientistas de um século atrás, a situação geral das populações amazônicas, inclusive no Brasil, não é muito animadora, pois continua a ser marcada pela dominação, pela ignorância, pelo desrespeito, pela negligência e, às vezes, pela violência brutal. Na época, como hoje, qualquer pesquisa que ignora esta realidade está condenada a ser julgada de forma negativa pela posteridade. Muito se perdeu nos últimos 100 anos. Assim, os relatos dos pesquisadores são, muitas vezes, as únicas fontes de informação sobre elementos culturais ou sobre grupos indígenas que não existem mais. Como o processo da globalização (interno e externo) está se acelerando cada vez mais, o risco de perder muito mais nos próximos 100 anos é iminente. Na época, como hoje, somente uma parcela pequena da sociedade está ciente destas questões, e muitas vezes não é fácil achar aliados e apoio substancial nas instituições estatais na tentativa de documentar e preservar a riqueza cultural e linguística ainda existente, tarefa cada dia mais urgente4.
Também neste sentido, há boas razões para crer que é lamentável que a tradição alemã da etnologia dos grupos indígenas que habitam as terras baixas da América do Sul não tenha conseguido se recuperar da ruptura que significou a Primeira Guerra Mundial. É deplorável que esta área de estudos não tenha conseguido estabelecer-se nas universidades alemãs (até hoje, na Alemanha, pouquíssimas cadeiras de Etnologia possuem professores com esta especialidade), sendo, posteriormente, quase esquecida nesse país, muito embora em outros, inclusive nos Estados Unidos5 e no Brasil, suas contribuições sejam valorizadas até hoje. No seu epílogo, Kraus reflete brevemente sobre os caminhos desta área de estudos na Alemanha depois da época delimitada pelo seu trabalho (de 1884 a 1929, anos da primeira expedição ao Xingu e da morte de Karl von den Steinen, respectivamente).
A única crítica que se poderia fazer às 500 páginas do livro de Kraus é a mesma que J. R. R. Tolkien acatou em relação ao seu “Senhor dos Anéis”: “O livro é curto demais”. Porém, era necessário, embora lamentável, que o livro se restringisse para poder ser finalizado e publicado. Seria muito bom podermos dispor de uma abordagem semelhante para os precursores (em particular, von Martius) e para alguns estudiosos que não faziam parte da comunidade científica alemã, não tendo sido, por isso, incluídos neste estudo. O próprio autor admite que, provavelmente, muitos iriam sentir falta de Curt Nimuendajú na lista dos estudados. Uma das maiores lacunas na historiografia da antropologia brasileira é a ausência de estudos detalhados sobre as viagens deste pesquisador e sobre os resultados que obteve, e a não publicação da sua volumosa obra inédita6 (o mesmo vale para outros pesquisadores, ainda falando de alemães, como Emilie e Emil Snethlage).
Em suma, o estudo de Michael Kraus é de grande valor e merece ser conhecido internacionalmente, sobretudo entre os antropólogos no Brasil. Por sorte, várias das obras dos ilustres alemães vêm sendo traduzidas e continuam nas listas de leitura dos cursos universitários. É desejável que o mesmo aconteça com o livro de Kraus.
Notas
1 O alemão Michael Kraus, que obteve seu doutoramento em 2002 em Marburg com uma tese que depois transformou neste livro, não deve ser confundido com Michael E. Krauss, linguista norte-americano baseado em Fairbanks, Alaska, que estuda as línguas nativas norte-americanas, nem com os desportistas alemães homônimos.
2 No Brasil, felizmente, existe o tomo editado por Vera Penteado Coelho (1993), embora este seja limitado aos estudos do Alto Xingu e, em particular, aos de Karl von den Steinen.
3 Nisto, Kraus confirma os resultados de Penny (2002), que salientam a visão humanista, anti-racista e o interesse pelo entendimento holístico, do ponto de vista êmico, das culturas humanas (no plural, já nos anos 1880), dominantes na etnologia na Alemanha entre 1870 e 1920.
4 Recentes iniciativas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), como os projetos de documentação de línguas e culturas indígenas do Museu do Índio, são motivo para alguma esperança neste contexto. Ver http://prodoc.museudoindio.gov.br/.
5 Neste contexto, vale lembrar que Franz Boas recebeu uma parte importante de sua formação nos museus etnológicos alemães. Suas ideias anti-etnocentristas, que hoje são um dos pilares da antropologia moderna, mostram que ele, como também os pesquisadores aqui em foco, era parte da mesma tradição humanista pluri-culturalista alemã, iniciada por Herder e continuada por Wilhelm Humboldt e Adolf Bastian (Bunzl, 1996; Frank, 2005).
6 Existem poucos estudos em alemão sobre este pesquisador, notadamente Dungs (1991), que também merecem ser conhecidos no Brasil.
Referência
BUNZL, Matti. Franz Boas and the humboldtian tradition: from Volksgeist and Nationalcharakter to an anthropological concept of culture. In: STOCKING JR., G. W. (Org.). Volksgeist as Method and Ethic. Madison: University of Wisconsin Press, 1996. p. 17-78. [ Links ]
COELHO, Vera Penteado (Org.). Karl von den Steinen: um século de antropologia no Xingu. São Paulo: EDUSP, 1993. [ Links ]
DUNGS, Günther F. Die Feldforschung von Curt Unckel Nimuendaju und ihre theoretisch-methodischen Grundlagen. Bonn: Holos, 1991. (Série Mundus Ethnologie, v. 43). [ Links ]
FRANK, Erwin. “Viajar é preciso”: Theodor Koch-Grünberg e a Völkerkunde alemã do século XIX. Revista de Antropologia, v. 48, n. 2, p. 559-584, 2005. [ Links ]
PENNY, H. Glenn. Objects of Culture: Ethnology and Ethnographic Museums in Imperial Germany. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2002. [ Links ]
Sebastian Drude – Doutor em Linguística pela Freie Universität Berlin. Dilthey-Fellow da Goethe-Universit ät Frankfurt e Pesquisador Associado do Museu Paraense Em ílio Goeldi/MCT. E-mail: sebastian.drude@gmail.com
[MLPDB]La Europa Cosmopolita: sociedad y política en la segunda modernidade / Ulrich Beck e Edgar Grande
A obra La Europa Cosmopolita, publicada em 2006 pela editora Paidós em países de língua espanhola, é a última parte da série de estudos dividida em três volumes e escrita por Ulrich Beck sobre o cosmopolitismo, tendo como co-autor Edgar Grande2. Originalmente, o estudo foi apresentado ao público em 2004, ainda em alemão, sob o título Das kosmopolitische Europa: Gesellschaft und Politik in der Zweiten Moderne.
Contando com uma elaborada reflexão, os autores abordam na obra a sociedade de risco global, a possibilidade de uma modernização reflexiva e de realismo cosmopolita; fundamentos estes sobre os quais Beck e Grande discorrem suas análises sobre a ideia de Europa. Desse modo, a relação de temas colocada logo nas primeiras páginas do livro fornece ao leitor uma aparente sensação de afinidade com questões tradicionalmente cultivadas pela teoria crítica da Escola de Frankfurt. Preferivelmente a analisar a Europa como um mecanismo de mercado, os autores a vêem como um projeto dinâmico de política aberta, recorrendo a autores como Benedic Anderson para sugerir que a Europa precisa ser ―inventada‖, o que leva à discussão dos autores sobre o fato de que, ao invés de Europa, o que realmente existe é um processo de europeização.
Ulrich Beck e Edgard Grande discutem neste livro a possibilidade da principal dificuldade da europeização poder estar radicada no fato de que o projeto político que os europeus têm em mente não corresponde ao esquema que determina sua realidade. Sendo assim, necessita-se, segundo os autores, de um relato de europeização que torne compreensível a vinculação de fracassos e iniciativas (pp.15-21). Nesta circunstância, seria relevante que se repensasse a Europa, que se reconhecesse e entendesse as contradições da europeização, fundamentando seus momentos comuns em um novo conceito político de integração e em uma nova visão política; possibilidade de coexistência esta conceitualizada pelos autores como Europa cosmopolita.
A importância cultural da europeização radicada em um cosmopolitismo é caracterizada pelos autores através da fertilização cruzada de identidades e discursos com a qual se poderia relacionar um novo modelo cultural sócio-cognitivo, em que a ideia de Europa se tornaria realidade. Para Beck e Grande, a Europa não existe, o que existe é uma europeização entendida como um processo institucionalizado em transformação, obedecendo à lógica das consequências indiretas. A Europa é, deste modo, um projeto politicamente alternante e em permanente processo de transformação, ilustrando um estado de coisas que, na teoria de conjuntos imprecisos, é conhecido como a ―lei de incompatibilidade‖, ou seja, caso cresça a complexidade de um sistema, os problemas enunciados com sentido perdem sua determinação; e os enunciados determinados, seu sentido (pp.21-31). Entretanto, tal definição não significa a impossibilidade de se formular enunciados com sentido, e o conceito de cosmopolitismo, discutido por Grande e Beck, procura oferecer a chave para esta questão.
Os autores empregam o cosmopolitismo como um conceito caracterizado pela superação de dualismos, principalmente em sua dimensão global/local, nacional/internacional. A compreensão da europeização de forma cosmopolita apresentada caracteriza a preocupação com a transformação da subjetividade cultural e política, procurando determinar o conceito de sociedade européia como um caso regional, especial e histórico de interdependência global e de relação reflexiva. Contrário a um sistema de subordinação verticalizada, o cosmopolitismo seria o princípio da superação das diferenças, sendo sua condição de possibilidade, alegam os autores, o reconhecimento e o desenvolvimento das normas universais que permitem institucionalizar e fundamentar a igualdade do modo com que se trata o diferente. O sentido atribuído ao cosmopolitismo converte, por conseguinte, o reconhecimento da diferença em pensamento, convivência e ação, que exige um conceito de integração e identidade o qual permita a convivência sem que isto implique sacrificar a particularidade e a diferença em benefício de uma suposta igualdade. Vista desta forma, uma Europa cosmopolita seria uma Europa da diferença, reconhecida, aceitada e significada por limitações e regulações desta diferença – diferença e integração, lugar de diversidade como fonte da auto-consciência cosmopolita (pp.31-34).
O cosmopolitismo requer a existência de normas universais que permitam regular a relação com o diferente, e equilibrar a luta por reconhecimento de uma forma socialmente aceitável. Se o cosmopolitismo quiser garantir identidades e direitos coletivos, ele necessitará de um mecanismo político que permita produzir e estabilizar institucionalmente a diferença coletiva. Sem estes estabilizadores de diferença, o cosmopolitismo corre o risco de converter-se em universalismo substancial (pp.35-36). Esta racionalidade – que trouxe uma forma específica e complexa de etnocentrismo: uma globalização do jeito racional dominante ocidental de viver, que tem se tornado uma ameaça à vida das pessoas na maioria dos países não ocidentais; uma ameaça à peculiaridade de suas culturas e de suas próprias tradicionalidades identitárias – é muitas vezes vista como uma globalização das formas ocidentais de vida que não permitem lugar para as culturas diferentes. Nesse sentido, a modernização é uma ameaça à diferença e à variedade, guiada pelo princípio do etnocentrismo. Deste modo, nos encontramos diante do problema de uma intransponível lacuna entre diferença cultural e discurso universalista.
Assim entendido, o conceito de universalidade exclui e suprime a alteridade. Para lidar com esta generalização, e equilibrar a luta por reconhecimento, pode-se pensar a proposta de Jörn Rüsen, que sugere que se critique perspectivas diferentes pela projeção entre elas, e isso colocaria em movimento ambas as perspectivas, enriquecendo umas as outras3. Deste modo, a crítica poderia levar à integração. Este enriquecimento mútuo seria possível sobre uma certa condição expressa pela categoria universalística de igualdade argumentativa para a plausibilidade narrativa. Entretanto, uma tal tipologia das diferenças culturais precisa evitar o engano de um conceito de cultura como unidade previamente dada. Nesta direção, o cosmopolitismo europeu discutido por Beck e Grande propõe um método de conceitualização que procura evitar etnocentrismos bem como qualquer pressuposição de comparação que excluiria as culturas uma das outras, apresentando a alteridade de diferentes culturas como um espelho que habilita uma melhor compreensão de si mesmo, constituindo a peculiaridade de nossas próprias características culturais, e ocasionando uma inter-relação de culturas que permite às pessoas usarem o poder cultural de reconhecimento.
Para Beck e Grande, na Europa, a cosmopolitização do Estado tem dado origem a uma estrutura política que se baseia em pressupostos compartilhados de qualidade normativa, o que configuraria a possibilidade de respeito e reconhecimento baseado no consenso. Entretanto, os autores advertem que esta cosmopolitização do Estado também deveria se fundamentar na delimitação nacional, na livre vontade, nas interdependências transnacionais e no valor político, organizado e posto em prática pela tolerância constitucional; pela diversidade e incrementalismo transnacional; pelo pluralismo ordenado; pelo decisionismo reflexivo; e pelas afiliações múltiplas. (p. 133-139) Nesta interdependência global, a realidade se torna cosmopolita – sem obedecer a uma intenção, sem publicidade, sem obedecer a uma determinação, a um programa político, de forma completamente deformada, afirmam os autores. O surgimento deste cosmopolitismo estaria centrado em um projeto político que aponta à transformação das lealdades e das identidades em um mundo de múltiplas modernidades. Sendo assim, a europeização é entendida como um caso especial, como uma forma regional e histórica da gestão de fronteiras de interdependência global (pp. 171-174).
Outra questão importante para que a dimensão social possa ser generalizada, pressupondo que todos compartilham características básicas e que se reconheçam reciprocamente, é referida como a transnacionalização dos direitos humanos contra a soberania jurídica dos Estados nacionais, determinante para a criação de uma sociedade civil européia. Deste modo, a europeização da sociedade civil poderia criar as condições adequadas para realizar o experimento de vincular entre si direitos humanos e direitos civis, estatuto jurídico e identidade, formas de vida transnacional e participação política. Trata-se de europeizar as sociedades nacionais, de abri-las, de fazê-las permeáveis e receptivas umas às outras sem eliminar suas peculiaridades, incluindo seus provincianismos e suas limitações. Esta europeização horizontal dos Estados nacionais necessita, segundo Beck e Grande, de um humanismo cosmopolita; de uma dimensão social identitária, que compartilhe características básicas de humanidade (pp. 181-180). Sendo assim, compartilha-se da mesma qualidade normativa de ser um ser humano que configuraria uma possibilidade de respeito e reconhecimento.
Outro fator relevante para que se compartilhem características básicas de humanidade diz respeito ao fato de que a transformação interna das sociedades nacionais não poderia renunciar à experiência das guerras e das ditaduras e de sua assimilação política. Deste modo, criaram-se conceitos jurídicos e um tribunal situados além da soberania dos Estados nacionais, onde se idealizou uma prática político-jurídica que articula em forma de conceitos e de procedimentos jurídicos a ruptura da civilização representada pelo extermínio dos judeus organizado pelo Estado alemão4 (p.190). Esta categoria de ―crimes contra a humanidade‖ introduz uma nova lógica jurídica que rompe com a lógica baseada no conceito de nação, substituindo-o pelo princípio jurídico da responsabilidade cosmopolita. Se as tradições que deram lugar ao horror do holocausto eram européias, também eram os valores e os conceitos jurídicos com os que estes fazeres se julgaram ante o mundo como crimes contra a humanidade (pp. 191-192).
A discussão destes conceitos pode ser compreendida como resultado de desilusões políticas, ou como conseqüência de um aumento da sensibilidade moral, que diz respeito ao fato de termos nos tornado consciente do fato de que o reconhecimento da dignidade humana condensa um princípio central de justiça social. Deste modo, todo sujeito seria dependente de um contexto de formas sociais de interação regulada por princípios normativos de reconhecimento mútuo. Sendo assim, a integração normativa das sociedades seria substituída por princípios de institucionalização de reconhecimento que regulam compreensivelmente as formas de reconhecimento mútuo através do qual seus membros possam se relacionar no contexto social da vida. Se corroborarmos estas premissas, a consequência é que uma política ética, ou uma moralidade social, deveria ser fundamentada para a qualidade de garantias sociais de relações de reconhecimento.
Contudo, o tipo de cosmopolitismo apresentado por Beck e Grande parece sugerir algo mais do que a coexistência da diferença. Por essa razão, a perspectiva abordada pelos autores implica ainda o reconhecimento da dimensão transformativa dos encontros sociais. A fertilização cruzada que se dá quando as sociedades entram em contato conduz a formas sociais mais fixas e a uma certa lógica de convergência, que transcende a superficialidade da ―unidade na diversidade‖. Trata-se, deste modo, do fato da integração das sociedades envolver diferenciação e integração reflexiva. A europeização é compreendida pelos autores mais em termos de autotransformação reflexiva do que de princípios normativos. Sendo assim, a ideia de uma Europa Cosmopolita se baseia no princípio de unidade e diversidade, indo mais além no problematizar reflexivamente a subjetividade política da Europa.
A tarefa proposta por Ulrich Beck e Edgar Grande de se compreender a europeização de forma cosmopolita exige um conceito de integração e identidade que permita uma convivência, sem que isto implique sacrificar a particularidade e a diferença em benefício de uma hipotética igualdade. Entretanto, este cosmopolitismo requer a existência de princípios que permitam regular a relação com o diferente, e equilibrar a luta por reconhecimento. Este tipo de pensamento transcenderia os limites do etnocentrismo, sendo um compromisso para refletir, historicisar e universalizar os princípios básicos e determinantes do pensamento histórico, além de poder servir de escopo para se pensar a existência de princípios universais, bem como para que possa haver a regulação da relação com o diferente. Aqui se configura uma possibilidade de respeito e reconhecimento que estabilizaria a diferença, não havendo o risco do cosmopolitismo proposto por Beck e Grande, converter-se em universalismo substancial.
Notas
2. Ulrich Beck é sociólogo, professor da universidade Ludwig-Maximilians, de Munique, e da Escola Londrina de Economia e Ciências Políticas. Desde 1992, tem sido professor de Sociologia e diretor do Instituto de Sociologia da Universidade de Munique. De 1995 a 1997 foi membro da Comissão para Questões Futuras do Estado da Bavária e Saxônia. É editor, desde 1980, do jornal de Sociologia Soziale Welt, e autor e editor de vários artigos e livros, além de ser um dos principais tradutores de idéias sociológicas contemporâneas do alemão para o inglês. Sua importância no campo da Sociologia, e das ciências sociais em geral, é incontestável, julgando sua extensa e ininterrupta evidência de publicações em alemão e inglês desde a publicação de seu determinante Risk Society, em meados de 1980. Edgar Grande é cientista político e ex-professor da Universidade de Konstanz . Desde de 2004 é professor de política comparada no Instituto de Ciências Políticas Geschwister-Scholl, da Universidade Ludiwig-Maximilians, de Munique.
3. Ver: RÜSEN, Jörn. Towards a new idea of humankind – unity and difference of cultures in the crossroads of our time. Working Papers n.2. Kulturwissenschaftliches Institut, Essen; University of Witten/Herdecke; University of Duisburg-Essen. Essen, 2006. _____ Comparing cultures in intercultural communication. In. FUCHS, Eckhardt; STUCHTEY, Benedikt. Across cultural borders: historiography in global perspective. p.335-348. Rowman&Littlefield, 2002.; _____. How to overcome ethnocentrism: approaches to a culture of recognition by history in the twenty-first century. In. History and Theory. Theme Issue 43. p.118-129. Wesleyan University, 2004.
4. Em toda a Europa existe uma disputa cada vez maior sobre a subjetividade política de novas formas de comemorações pós-nacional baseadas no perdão e no reconhecimento das vítimas. A recordação do Holocausto é paradigmática destas formas de comemorações. Deste modo, é característico que uma ética da memória se converta em um cenário para o discurso público sobre a natureza da identidade histórica.
Johnny Roberto Rosa – Mestrando em História Cultural pela Universidade de Brasília – UnB. Bolsista Capes. Contato com o autor: johnnyrobertorosa@hotmail.com.
BECK, Ulrich; GRANDE, Edgar. La Europa Cosmopolita: sociedad y política en la segunda modernidad. Barcelona, Buenos Aires, Mexico: Paidós, 2006, 392p. Resenha de: ROSA, Johnny Roberto. Em Tempo de Histórias, n.16, p.191-195, jan./jul., 2010. Brasília, Acessar publicação original. [IF].
Lords of Finance: The Bankers Who Broke the World | Liaquat Ahamed
Durante a crise asiática, Liaquat Ahamed olhou com apreensão uma capa da revista Time com fotografias de autoridades econômicas com o título “o comitê para salvar o mundo”. Economista formado em Harvard e Cambridge, com longa carreira como banqueiro de investimentos, Ahamed pensou no fracasso dos titulares dos bancos centrais dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Alemanha em enfrentar a Grande Depressão da década de 1930. Do desconforto nasceu o excelente livro “Lords of Finance: The Bankers Who Broke the World”.
As biografias dos quatro protagonistas se entrelaçam com os dilemas de seus países. Montagu Norman, da Grã-Bretanha, era um aristocrata herói da guerra dos bôeres. Émile Moreau, da França, tecnocrata da prestigiosa Inspetoria de Finanças. Benjamin Strong, dos Estados Unidos, executivo de Wall Street que participara da organização tardia do Fed, após a sucessão de crises que afligiu “o primitivo, fragmentado e instável sistema bancário” (p.52) do país. O personagem mais interessante é Hjalmar Schacht, raro exemplo de self-made man da Alemanha imperial. Brilhante, mas de ambição desmedida, que o levou à aliança com os nazistas. O economista John Maynard Keynes foi o contraponto ao quarteto, na qualidade de intelectual em ascensão cujas opiniões críticas desafiavam a ortodoxia com a qual os banqueiros tentaram lidar com a Grande Depressão. Leia Mais
America between the wars: from 11/9 to 9/11 | James Goldgeiger
Após o fim da Guerra Fria, o debate acerca de qual seria a melhor estratégia para os Estados Unidos adotarem em substituição à contenção se tornou um tema muito controverso para os analistas de Relações Internacionais e, principalmente, para os formuladores de política e tomadores de decisão do país. A dificuldade para se encontrar um novo termo e um projeto de ação de longo prazo se tornou um desafio instigante. Em tal contexto, examinando a história recente da política externa norte-americana de 09/11, a queda do Muro, à 11/09, os atentados terroristas ao território continental, James Goldgeiger e Derek Chollet em America Between the Wars oferecem uma interessante análise desta fase 1989/2009.
Passando pelos governos Bush sênior (1989/1992), Bill Clinton (1993/2000) e George W. Bush (2001/2008), o texto define estas duas décadas como “os anos modernos entre guerras” (modern interwar years). A obra discorre sobre os principais acontecimentos, os diferentes conceitos cunhados no período e o debate acadêmico e político que vigorou ao longo destes anos, mostrando de forma perspicaz a dificuldade dos EUA em reencontrar um sentido norteador de sua atuação no Sistema Internacional após a eliminação do rival soviético. Mais do que diferenças, os autores apontam as semelhanças em táticas e retóricas entre as administrações (em particular o recorrente tema da democracia e do lugar especial da liderança no mundo, associada ao seu intervencionismo) que enfrentaram estes momentos do pós-Guerra Fria, identificando-os, como indica o subtítulo do livro de “os anos mal-compreendidos entre a queda do Muro de Berlim e o começo da Guerra Contra o Terror (GWT)”. Leia Mais
Where the world ended: re-unification and identity in the german borderland – BERDAHL (CP)
BERDAHL, Daphne. Where the world ended: re-unification and identity in the german borderland. Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 1999. Resenha de: RUI, Taniele. Where the world ended: re-unification and identity in the german borderland. Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jan./Jun 2009.
Em 1991, um ano depois de estar em campo, no vilarejo de Kella, a antropóloga norte-americana Daphne Berdahl observou que várias mulheres do local começaram a se reunir para pintar tecidos juntas. Essa observação não era banal. Para além de ser um modo de se manterem ocupadas, tais mulheres estavam tentando renovar uma comunidade que se perdeu quando a fábrica na qual elas trabalhavam foi fechada. A autora logo viu que deveria haver um sentido nessa produção coletiva; com isso, viu também que elas estavam re-criando uma memória do socialismo e, ainda, um modo de se distinguir das mulheres da Alemanha Ocidental.
Todavia, para mostrarmos a importância desses encontros aparentemente comuns, é preciso antes dizer onde está Kella, bem como os temas e propósitos do livro de Berdahl.
Era em Kella que se localizava a separação entre a Alemanha Oriental e a Ocidental. Ali estava a fronteira que dividia o Leste do Oeste, o capitalismo do socialismo, e a própria Kella de um mero contato com o resto do mundo. Com a construção do “Muro de Berlim”, Kella acabou se tornando, para seus moradores, “o lugar onde o mundo terminava”: apenas uma única rodovia ligava a vila ao restante da Alemanha Oriental e seus seiscentos habitantes precisavam de licença para sair e para entrar na cidade. Duzentos anos antes, essa mesma linha fronteiriça delineava não somente o Leste do Oeste, mas também Prússia e Hesse, Thuringia e Hesse, Católicos e Protestantes. Kella era, assim, uma vila de muitas fronteiras, de fronteiras literais e metafóricas, todas elas faziam parte de uma narrativa de identificação local. Kella era também um lugar para construir e articular identidades e distinções, bem como, uma zona de interstício cultural. Por causa de sua história de fronteira, o Estado em Kella era uma presença constante e visível; algo que, no dia-a-dia, as pessoas tinham que interpretar, sobretudo porque fronteiras geram estórias, lendas, eventos e incidentes; são contestadas e negociadas de formas específicas, tanto pelos indivíduos quanto pelo Estado.
Fruto de um trabalho de campo de dois anos (1990-1992) em um lugar tão sui generis, o texto de Berdahl é tanto um relato etnográfico da reunificação da Alemanha, quanto uma tentativa de entender a condição paradoxal da fronteira – que é, a um só tempo, a metáfora que organiza o livro e o seu objeto de estudo. Desse modo, Where the world ended é um livro sobre fronteiras, limites e todos os espaços entre eles. Numa afirmativa apressada,
é sobre como limites geográficos podem ser investidos com significados culturais, para além das intenções políticas, e sobre como seu desmantelamento pode tanto desestabilizar quanto gerar novas práticas e identidades culturais (1).
Decorre dessa afirmativa que a principal questão perseguida é o que acontece ao sentido de identidade e personalidade das pessoas quando elas passam por um colapso no sistema político e econômico e, ainda, como as pessoas negociam e manipulam uma condição liminar criada pelo desaparecimento de um significativo quadro de referência. Mas o livro é mais que isso: Berdhal busca discutir essa problemática à luz de vários aspectos da vida social, entre eles identidade nacional, memória, gênero, religião e consumo. E é melhor ainda porque ela não vê tais aspectos como categorias separadas, mas como sendo eles também “zonas de fronteiras sobrepostas e frequentemente interdependentes, que cruzam a vida cotidiana das pessoas” (19). Tomados juntos, tais aspectos não somente ilustram continuidades importantes entre socialismos e pós-socialismos, mas também iluminam os múltiplos modos nos quais o Estado-Nação tenta implantar a si mesmo no dia-a-dia dos indivíduos.
Embora dedique parte do livro a uma história local (e do local), este ganha em descrições e análises quando ela relata as transformações materiais e simbólicas – algumas dramáticas, outras divertidas – que marcaram a vida dos habitantes de Kella com a queda do Muro. Junto com os novos significados do consumo (em que tudo o que era do Oeste passou a ser considerado melhor simplesmente porque não era do Leste), práticas de identidade e construção de alteridade começam a aparecer de ambos os lados da fronteira. Taxonomias de classificação e de identificação de quem é “Ossi” e de quem é “Wessi” se tornam parte do cotidiano. Para além de identificar, respectivamente, os alemães oriundos do Leste e os oriundos do Oeste, essa classificação carrega uma hierarquia e “Ossi” passa a ser um atributo pejorativo.
O mais interessante é que tal classificação é feita, sobretudo, através da leitura dos corpos. “Ossis” eram identificados pela face pálida, cabelos oleosos, pobre tratamento dental, jeans surrados, sapatos genéricos, perfumes baratos. Ao passo que os “Wessi” eram conhecidos por seus cortes de cabelo “estilosos”, sapatos Gucci, bolsas ecologicamente corretas e por serem mais seguros e arrogantes. A falta de certa fluência cultural no consumo emergiu como marca chave de um “Ossi“, pois ele sempre andava de cabeça baixa e perguntava ao vendedor não onde estava tal produto, mas se o tinha – pergunta fruto de uma economia onde os bens eram escassos. “Ossis” eram sempre vistos como ignorantes em matéria de consumo e tal ignorância era sempre ridicularizada e explorada. Adquirir certa “competência cultural” no consumo se tornava, assim, um rito de iniciação no interior de uma nova sociedade. Tais marcas de distinções desapareciam à medida que “Ossis” tentavam copiar o estilo de vida dos ocidentais.
Se alguns “Ossis” tentavam adquirir a tal “competência cultural” no consumo, outros, entretanto, tentavam resistir – paradoxo esse que, segundo a antropóloga, reflete os aspectos contraditórios e complexos da identidade na fronteira. Muitas mulheres de Kella voltaram a usar roupas que não eram consideradas “modernas” no Ocidente e a usar detergentes do Leste. Famílias voltaram a usar seus carros antigos. Homens voltaram a consumir cervejas da Alemanha Oriental. Em poucos anos, práticas sutis de resistência simbólica se tornaram práticas culturais disseminadas pela Alemanha Oriental num fenômeno que foi chamado de “renascimento da GDR”.
É nesse aspecto e nesse contexto que o fato de as mulheres de Kella se reunirem para pintar juntas passa a ter importância central, uma vez que a recriação de um espaço feminino era capaz de promover a discussão entre a experiência delas em contraste com a experiência das mulheres ocidentais. Esse acontecimento revelador capturou o peso da consciência social dessas mulheres, que estavam recriando para elas mesmas, por um breve momento, o espaço feminino que foi perdido com o fechamento das fábricas. Mas o que de fato foi perdido? Para responder a essa pergunta, é preciso retomar a experiência dessas mulheres sob o socialismo.
Durante o período socialista, mulheres negociaram contradições que estavam presentes na própria ideologia de gênero do Estado: a proclamação da igualdade de gênero, de um lado, e a política pró-natalista que incentivava papéis tradicionais da mulher, de outro. Em Kella, a ideologia da igualdade de gênero também entrava em conflito com a forte presença da Igreja Católica e sua tradicional visão sobre a mulher, que reforçava sua responsabilidade pela esfera doméstica. Com a reunificação, essa visão tradicional foi ainda desafiada por um diferente conjunto de ideologias de gênero que competiam com as idéias feministas ocidentais. Nesse sentido, diz Berdahl, “gênero pode ser visto como um jogo dinâmico entre internacionalização, negociação e contestação de diversas e competitivas ideologias de gênero” (193).
Como em toda a Alemanha Oriental, a força de trabalho em Kella foi rigidamente segregada por gênero durante o socialismo – 99% das mulheres trabalhavam fora de casa e mais da metade em fábricas mantidas pelo Estado, exclusivamente para empregar mulheres. Além de ser um lugar de emprego, essas fábricas eram lugares de encontro e de disseminação de “fofocas”, conhecimentos e trocas de informação. Também eram locais onde o Estado promovia sua ideologia para as “mães-trabalhadoras”. Mesmo as creches e os consultórios médicos ficavam localizados nas fábricas.
A Constituição da Alemanha Oriental assegurava não somente igualdade legal, mas de pagamento para trabalho igual. Toda mulher grávida tinha garantido um ano de salário depois do nascimento da criança e, desde 1972, havia direito ao aborto durante o primeiro trimestre da gravidez. Participação na esfera política era também parte dos direitos, privilégios e obrigações das mulheres sob o socialismo. O esforço do Estado de integrar as mulheres nos trabalhos do Partido envolveu-as em uma variedade de funções políticas: por um sistema de cotas, 30% dos membros do conselho da vila deveriam ser mulheres.
Como as revistas femininas socialistas indicam, era esperado que as mulheres combinassem maternidade, serviço doméstico, ativismo político e trabalho assalariado. A sua identidade de trabalhadoras e mães também servia para reforçar o papel “natural” da mulher: geradoras da nação socialista e socializadoras dos seus cidadãos. O esforço para atender a tudo isso afetava a vida das mulheres de maneira muito pessoal.
Dezoito meses depois da queda do muro, as fábricas socialistas fecharam. Com poucas perspectivas de emprego, especialmente para mulheres que tinham mais de 40 anos, a maioria foi relegada à esfera doméstica e se tornou “dona-de-casa” pela primeira vez em suas vidas. Sem emprego, perdiam também as informações e os eventos que ocorriam na vila. Muitas se viram isoladas. Parando de se ver, o sentimento de futilidade e a insegurança financeira, além da perda de uma identidade trabalhadora, contribuíram para que muitas entrassem em depressão. A participação das mulheres na política também caiu muito com o fim das cotas. Todas essas transformações ocasionaram a revalorização e reorganização das relações familiares. O tempo e o espaço dessas mulheres também tiveram que ser transformados.
Uma forma que a antropóloga encontrou para analisar a tensão produzida pelas contrastantes ideologias de feminilidade e os sentimentos de inferioridade e inutilidade relatados por essas mulheres foi explorar ainda mais a tensão entre Leste e Oeste, e mostrar como também essa tensão pode ser diferentemente estruturada, vivenciada e rememorada em termos de gênero. Pois na distinção que lia os corpos “ossis” e “wessis“, lia-se, principalmente, o corpo feminino, onde as diferenças eram vistas mais imediatamente, especialmente nas mulheres mais velhas e de meia-idade, que podiam ser identificadas pelas suas próprias roupas, maquiagem, cabelos, acessórios, cuidados com os dentes e/ou com a pele. Em um esforço para se “misturar”, muitas mulheres descartaram suas roupas, mudaram seus cabelos e gastaram muito para terem produtos “ocidentais” em suas casas. Outras, entretanto, resistiram – o que contribui para não termos uma visão homogênea das mulheres na Alemanha Oriental.
Essas que resistiram foram ainda além da simples recusa a não assumir um corpo “wessi“. Elas se reapropriaram de uma identidade socialista de “worker-mothers” como um símbolo de distinção entre elas e as mulheres da Alemanha Ocidental. É verdade que construíram essa identidade a partir de estereótipos imaginados, sobretudo pela idéia que tinham das mulheres donas-de-casa das décadas de 1960 e 1970; mas isso também reflete as tensões que têm sido, e continuam sendo, negociadas e contestadas de muitos modos, tanto individuais quanto coletivamente.
O mais interessante disso é que um ano depois do silêncio que seguiu à queda do Muro, em que não houve nenhuma menção sobre as vantagens do sistema socialista, foram essas mulheres as primeiras na vila a iniciar a discussão sobre os aspectos positivos da vida sob o socialismo, demonstrando como a memória histórica e a identidade nacional podem ser fenômenos de interação complexos marcados por gênero.
Ao fazer tal afirmação, Berdahl nos faz pensar sobre os paradoxos e contradições presentes nas fronteiras, sobre o modo como esses paradoxos podem ser diferentemente vividos e experenciados em termos de gênero, e sobre o modo como as fronteiras políticas e culturais marcam profundamente o dia-a-dia das pessoas, suas redes de relações e a visão que fazem de si. O mérito do trabalho é fazer tudo isso a partir de uma conexão quase perfeita entre descrição e análise. Isso porque mostrar a realidade das fronteiras envolve mostrar como esta afeta as várias esferas que compõem a vida social. Envolve mostrar também os distintos arranjos e negociações feitos diariamente pelos indivíduos, não como estratégias de resistência ou tentativa de assimilação, mas como frutos da própria condição de viver na fronteira.
Quase perfeita, porque acredito que o escorregão da antropóloga é ver as identidades tensas e conflituosas de “Ossis” e “Wessis” como frutos de uma fronteira cultural que emergiu com o fim de uma fronteira política. Segundo ela, a Alemanha pode até ser unificada em um Estado, mas seus cidadãos teriam permanecido dois povos separados culturalmente. E seria essa diferença cultural que teria produzido as tensões resultantes da abertura da fronteira. Seria essa diferença cultural que teria feito, por exemplo, algumas mulheres recusarem a ideologia de gênero ocidental e voltarem a valorizar a identidade de mães e trabalhadoras que tinham sob o socialismo. Penso que não está na diferença cultural a grande chave explicativa para essa tensão.
Concordando com outro dos seus argumentos, penso ser melhor afirmar que se trata de mais uma das tantas formas que as pessoas encontram para interpretar, negociar, contestar e incorporar processos sociais, políticos e econômicos que ocorrem num nível extra-local. Nesse sentido, a distinção tensa e conflituosa entre Leste e Oeste faz parte da própria dinâmica de manutenção e invenção das fronteiras. E o maior ensinamento da vida nas fronteiras é mostrar como seus efeitos no dia-a-dia das pessoas são sempre reais. Como Glória Anzaldúa escreveu, em citação que a própria Berdhal recuperou, a fronteira é “um lugar vago e indeterminado pelos resíduos emocionais e limites não naturais”. Acho que, neste caso, não é apenas de diferenças culturais que estamos falando.
Levando em conta essa crítica, que em nada invalida a reflexão analítica promovida pelo livro, Where the World ended é um convite à reflexão sobre as separações, tensões e contatos daqueles que vivem na condição limiar das fronteiras. No caso específico da contribuição aos estudos de gênero, é um convite a pensar gênero junto com as tantas outras esferas da vida social e a pensar como a memória nacional, quando vista à luz das experiências de gênero, pode complexificar ainda mais a imagem que temos de um determinado sistema político.
Taniele Rui – Doutoranda em Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp. tanielerui@yahoo.com.br.
[MLPDB]
As relações em eixo franco-alemãs e as relações em eixo argentino-brasileiras: génese dos processos de integração | Raquel Cristina de Caria Patrício
O livro ora apresentado é resultado da tese de doutoramento da autora apresentada ao Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília no ano de 2005, cujo reconhecimento a equivalência da tese pela Universidade Técnica de Lisboa já fora realizado. Obra de fôlego, trás em seu bojo a tarefa de reescrever o velho e apresentar um novo olhar, a partir da teoria das relações internacionais, sobre os processos de integração europeu e sul-americano.
O ponto de partida é o biênio 1870-1871, período que corresponde a um rearranjo de forças, tanto para as relações entre França e Alemanha, quanto para Argentina e Brasil. Por um lado, a unificação alemã após a guerra franco-prussiana marca o surgimento de um Estado centralizado e forte economicamente a fazer frente aos interesses hegemônicos da França, por outro, a Guerra do Paraguai consolida o fortalecimento político argentino – antes fragmentado – e a reestruturação da órbita de influências na Bacia do Prata. A partir deste contexto, busca-se reconstruir o longo caminho pelo qual estes países realizaram seus processos de aproximação e dessa forma, avaliar: primeiro a possibilidade de se equiparar o papel das relações bilaterais entre os casos de Argentina- Brasil e Alemanha-França em relação aos respectivos processos de integração; segundo, considerar em ambos os casos as relações bilaterais como relações em eixo; por fim, saber se é possível creditar aos dois eixos, a função de elemento determinante da gênese dos processos de integração. Leia Mais
La insubordinación fundante: breve historia de la construcción del poder de las naciones / Marcelo Gullo
La insubordinación fundante, de Marcelo Gullo, é obra que se propõe original em pelo menos dois aspectos: a perspectiva analítica e a criação de conceitos. Para tanto, percorre a trajetória dos casos de sucesso no processo de desenvolvimento econômico e construção do poder nacional, desde o século XIV – Portugal, Espanha, Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha, Japão e China –, em uma perspectiva periférica; e propõe novos conceitos para serem aplicados aos atuais países emergentes, principalmente o de umbral de poder. Nos últimos capítulos, o autor analisa a presença de novos atores no jogo político internacional e os desafios que se lhes apresentam na busca pelo desenvolvimento socioeconômico, e desenvolve análise prospectiva, incluindo a atual posição dos Estados Unidos no cenário internacional. Dessa forma, Gullo se lança em um estudo de caráter multidisciplinar, situado na interface da História Moderna e Contemporânea com a Economia Política e a Teoria do Desenvolvimento.
No prefácio do livro, Hélio Jaguaribe destaca que o conceito de periferia utilizado pelo autor apresenta duas dimensões, a de uma perspectiva e a de um conteúdo, ou seja, de um autor sul-americano que analisa as condições de possibilidade de um país periférico deixar de sê-lo. Ao longo do texto, a tese central – que todos os processos de crescimento comercial e/ou industrial exitosos resultaram da conjugação de uma atitude de insubordinação ideológica em relação ao pensamento dominante com um impulso estatal eficaz – é construída em perspectiva comparada. Aproxima-se, assim, de forma explícita, da interpretação cara ao neoestruturalismo econômico latino-americano referente às estruturas hegemônicas de poder e à necessidade de superá-las.
Na realização do duplo intento do autor, os dois primeiros capítulos, de natureza essencialmente teórica, discutem a teoria da subordinação e o conceito de umbral de poder. A teoria da subordinação considera que a igualdade jurídica entre os Estados é uma ficção e que as regras criadas no jogo do sistema internacional expressam os interesses das grandes potências, disfarçados na forma de princípios éticos e jurídicos universais. Para enfrentar as estruturas hegemônicas e as regras do jogo internacional, os países periféricos precisariam acumular recursos de poder e alcançar o umbral que se redefine a cada conjuntura histórica distinta. Por exemplo, Portugal e Espanha alcançaram o papel de pioneiros na expansão europeia dos séculos XV e XVI por intermédio da capacitação tecnológica, da vantagem estratégica (a opção por buscar outra rota para as Índias que não o Mediterrâneo) e do impulso estatal, com base na organização administrativa do Estado moderno e da racionalidade que o sustentava. Em linhas gerais, foi o mesmo processo seguido pelo Japão com a Revolução Meiji e com a China das últimas décadas do século XX e início do XXI.
Quanto ao conceito de umbral de poder, Gullo o conceitua como o quantum mínimo de poder necessário para se alcançar o desenvolvimento socioeconômico e a construção da potência, abaixo do qual cessa a capacidade de autonomia de uma unidade política. Em outras palavras, é o poder mínimo que necessita um Estado para não cair na subordinação, em um momento determinado da história. Os Estados que, historicamente, se transformaram em potência obtiveram em determinado momento o quantum mínimo de poder para atuar de maneira autônoma no cenário internacional e projetar o seu poder. Na verdade, do estudo aprofundado da história da política internacional se revela que, na origem do poder nacional dos principais Estados que conformam o sistema internacional, se encontra sempre presente o impulso estatal. Por impulso estatal entende o autor todas as políticas realizadas por um Estado para criar ou incrementar quaisquer dos elementos que conformam o poder desse Estado. Com efeito, o conceito de impulso estatal envolve todas as ações levadas a cabo por uma unidade política para estimular o desenvolvimento ou o fortalecimento dos elementos de poder nacional. O exemplo utilizado como paradigmático pelo autor foi a Lei de Navegação inglesa, de 1651, segundo a qual era permitido importar somente mercadorias transportadas em navios ingleses que estivessem sob comando inglês e cuja tripulação fosse de maioria inglesa. Assim, ao tratar da noção de impulso estatal, Gullo se aproxima nitidamente da corrente realista das relações internacionais, em diálogo indireto com o historiador Edward Carr e seus ensinamentos na obra Vinte anos de crise, publicada originalmente na conjuntura do início da Segunda Guerra Mundial.
Nos capítulos 3 a 9, são percorridas as experiências dos países bem sucedidos em seu processo de desenvolvimento, com a preocupação voltada para o momento no qual tais Estados decidiram pela insubordinação diante da ideologia predominante em determinada época e, por meio de forte ação estatal, envidaram esforços no sentido da construção do poder nacional. O mais importante exemplo contemporâneo de processo de construção do poder nacional é o da China que, a partir de Deng Xiaoping, iniciou uma mudança metodológica e, na visão do autor, não uma ruptura com o passado, na busca da construção – ou reconstrução – do poder da nação chinesa.
No caso da China, a ênfase da análise recai sobre a figura política de Sun Yat-Sen que, nascido em 1866, se converteu progressivamente, após a revolta nacionalista dos Boxers (1900-1901), na figura chave dos revolucionários chineses que lutavam contra a monarquia Manchú e na defesa da democracia e do fim da dependência chinesa em relação às potências estrangeiras.
A revolução contra a monarquia eclodiu em outubro de 1911 e, no início do ano seguinte, uma assembleia constituinte elegeu Sun Yat-Sen como presidente da nascente República da China. No entanto, o general pró-monarquia Yuan She-Kai, com um golpe de mão, provocou a renúncia de Sun Yat- Sen e assumiu o cargo de presidente.
Foi após esses episódios que Sun Yat-Sen desenvolveu um conjunto de concepções que afirmavam que uma revolução, para ser vitoriosa na China, precisaria da aproximação com operários, camponeses e com a burguesia nacional. Tais ideias orientaram, sob sua liderança, a fundação do Kuomintang – partido nacional e popular – que aspirava organizar uma frente única para a libertação da China, mas que enfrentou uma conjuntura interna politicamente caótica. Sun Yat-Sen faleceu em 1925 e deixou o Kuomintang firmemente organizado como um partido policlassista, dotado de um exército eficaz e reforçado pelos comunistas. Sua doutrina política, porém, encontrou terreno fértil para se desenvolver, tendo por base a ideia dos três princípios, utilizada pela primeira vez por Sun Yat-Sen em 1905 e significando a integração, em um mesmo projeto político e revolucionário, de suas teses sobre o naci que tais princípios devem ser adaptados a cada conjuntura histórica.
É nesse sentido que Marcello Gullo sustenta que a influência de Sun Yat-Sen chega a Mao Zedong e seus sucessores, sob o princípio da adaptação da teoria à realidade e não a realidade à teoria. A trajetória do modelo chinês de desenvolvimento, desde sua abertura no final da década de 1970, confirma a presença dos três princípios e revela extraordinária capacidade de adaptação a cada conjuntura histórica, além de um modelo planejado e gradual de desenvolvimento. Se até os anos noventa o governo chinês orientou a maior quantidade de capitais estrangeiros para a produção em setores intensivos em mão de obra, a partir de então, tratou de orientá-lo para os setores intensivos em capital e tecnologia. A nova estratégia ficou conhecida como desenvolvimento em paralelo, que consiste em desenvolver simultaneamente a indústria “tradicional” e a intensiva em conhecimento.
São esses exemplos de desenvolvimento econômico que, analisados em perspectiva histórica, podem auxiliar países emergentes, como os latinoamericanos, a encontrar seus próprios caminhos. Para tanto, Gullo sugere que líderes políticos, jornalistas especializados e estudiosos das relações internacionais na América Latina devem procurar ultrapassar a agenda, o debate e o vocabulário produzidos nos grandes centros de excelência acadêmica dos Estados Unidos. Significa pensar as relações internacionais desde a periferia latino-americana, para gerar ideias, conceitos, hipóteses e, certamente, um vocabulário próprio, capaz de dar conta da nossa própria realidade e dos nossos problemas específicos no sistema internacional. Na visão do autor, o pensar desde a periferia não deve levar à repetição das lamentações do passado, mas à ação no sentido da superação da condição periférica. Nosso debate teórico principal deveria ser cómo alcanzar el nuevo umbral de poder.
É justamente em sua análise prospectiva que Gullo deixa de contemplar o que tem sido o debate regional mais recente, voltado para a discussão em torno da existência ou não de consensos nacionais em relação ao tema do desenvolvimento e, no caso de resposta afirmativa, a discussão sobre os limites políticos enfrentados pela maioria dos países latino-americanos em seus esforços de desenvolvimento econômico e social. Gullo não aborda a questão das alternativas de desenvolvimento apresentadas por países como Bolívia e Equador, tomando o desenvolvimento econômico como um valor em si, principalmente quando o toma apenas como caso de crescimento e não de desenvolvimento em seu sentido amplo.
Outro aspecto a ser destacado é o fato de o autor não fazer referências a uma obra muitíssimo próxima da sua, o livro Chutando a escada, de Ha-Joon Chang (CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São Paulo: Editora UNESP, 2004). Chang analisou a trajetória histórica de potências como a Grã-Bretanha e retirou dessas experiências algumas lições, principalmente a necessidade de se rever algumas das ideias fartamente divulgadas na década de 1990, como a de que os países em desenvolvimento têm que seguir as sugestões dos desenvolvidos, a de que devem fazê-lo porque é o desejo dos investidores internacionais e a de que há um “padrão mundial” de desenvolvimento institucional das nações.
O diálogo com Chang daria condições a Gullo de aprofundar a dimensão institucional do desenvolvimento, tanto nos aspectos que freiam o desenvolvimento dos países periféricos quanto na busca de alternativas.
Não obstante as observações acima, La insubordinación fundante – livro premiado em Buenos Aires como melhor livro de 2008 – é obra original que consegue cumprir os objetivos de sustentar uma visão sul-americana dos casos históricos de êxito no processo de desenvolvimento e de propor novos conceitos nos estudos sobre o desenvolvimento. Os conceitos de umbral de poder e de insubordinação fundante trazem, indubitavelmente, novo vigor ao tema do desenvolvimento latino-americano.
Carlos Eduardo Vidigal – Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade de Brasília.
GULLO, Marcelo. La insubordinación fundante: breve historia de la construcción del poder de las naciones. Buenos Aires: Biblos, 2008. Resenha de: VIDIGAL, Carlos Eduardo. Textos de História, Brasília, v.16, n.2, p.307-311, 2008. Acessar publicação original. [IF]
Nachklassische Romane und höfische “Novellen” | Helmut Birkhan
Como produto de suas aulas ministradas durante o semestre de inverno de 2003- 2004, Helmut Birkhan apresenta ao público leitor o quinto volume da série História da antiga literatura alemã à luz de textos escolhidos, um manual dividido em oito volumes que contém, de maneira sucinta, porém bem embasada lingüística, literária e historicamente as principais obras escritas e ou compiladas no espaço germanófono continental durante a Idade Média. Neste número, o autor preocupa-se em discutir sobre textos menos conhecidos dos germanistas, tanto de língua alemã quanto estrangeiros.
À guisa de introdução ao volume, Birkhan circunscreve a época de sua análise, isto é, mais ou menos entre 1200 e 1300. O erudito austríaco abarca neste volume as obras, cuja temática se prende à Antigüidade ou a Bizâncio. É interessante notarmos que normalmente nos curricula universitários dos cursos de língua e literaturas de língua alemã muito pouco espaço é dado à produção literária em alemão anterior ao século XVIII [1], menos ainda ao período de tempo abarcado pela pesquisa do autor de Romances pós-clássicos e “novelas” corteses.
A partir de uma discussão sobre o desenvolvimento dos conceitos metodológicos referentes às obras, primeiramente classificadas como “epigonais” e hoje em dia como pós-clássicas, Birkhan (2004, 10) discute e afirma a existência de “novos juízos valorativos em favor daquelas obras anteriormente difamadas”. Do mesmo modo são apresentados romances menos conhecidos com temática arturiana, mitológica [2], poemas com forma similar à das canções de gesta, alguns excertos de romances de amor e romances de aventura, trechos de quatro “novelas” em versos e, por fim, trechos de um drama medieval em médio-alto-alemão.
Como este volume, de número 5, integra a série História da antiga literatura alemã à luz de textos escolhidos e devido à temática ser circunscrita ao período cronológico visto no volume precedente, o autor prescinde de informações de cunho histórico-social, optando, pois, por uma análise das obras à luz das informações retiradas dos próprios textos, o que configura uma escolha metodológica, em nosso ver, pertinente, na medida em que sua análise literária traz consigo os elementos culturais da época em questão.
Aspecto importante para facilitar a apreensão dos dados acadêmicos sobre as obras e momento histórico estudados é a preocupação do autor em apensar ao fim do volume uma série de reproduções de iluminuras, fotos, capas de fac-símiles e páginas de manuscritos, quadros genealógicos, esboços arquitetônicos e até mesmo uma discutível partitura do Titurel de Wolfram. No trabalho com a Idade Média, para nós brasileiros distante e praticamente alheia ao nosso passado, é fundamental a disponibilização da maior quantidade possível de dados, a fim de tornar menos incompleto o painel do objeto que estudamos.
O cuidado de Helmut Birkhan não apenas com a apresentação do conteúdo, porém com sua efetiva e merecida valoração está expressa no comentário da última capa do volume, que traduzimos:
“O livro é dirigido àqueles que querem uma introdução na criação romanesca medieval (em especial no romance arturiano). Serão analisadas aquelas obras, que freqüentemente são desqualificadas como romances de aventuras, as quais, porém, são extremamente interessantes sob uma perspectiva psicológica, da ciência da cultura e sob várias outras.”
No tocante às obras em mittelhochdetusch com reminiscências da Antigüidade Clássica são arrolados autores como Herbort von Fritzlar, Albrecht von Halberstadt, Konrad von Würzburg, dentre outros. Um texto que nos chama a atenção pelo seu quase total desconhecimento pelos medievistas brasileiros é Eraclius, de Otte, de quem não há praticamente informação alguma. A obra, de datação provável entre 1190 e 1230, apresenta temática bizantina. Birkhan inicia sua análise com um resumo do texto, entremeado com comentários da mais variada ordem acerca da originalidade do fazer poético de Otte, composição da obra, intertextualidade e informações de cunho histórico contidos no conto.
Com relação aos temas arturianos encontram-se listados e discutidos pelo pesquisador de Viena os seguintes títulos: [3]
1 O Lanzelet de Ulrich von Zatzikhoven
2 O romance de Segremors em médio-alto-alemão
3 Os “fragmentos de Titurel” de Wolram von Eschenbach
4 Titurel mais recente de Albrecht – Merlin de Albrecht von Scharfenberg [4]
5 O Lancelote em prosa
6 Diu Crône [5] de Heinrich von dem Türlin
7 O casaco
8 O Wigalois de Wirnt von Grâvenberc [6]
A matéria mitológica, presente por exemplo em Gauriel e Muntabel, de Konrad von Stoffeln, traz o universo das fadas e elfos [7] ao leitor moderno, no que personagens humanos se envolvem sentimentalmente com seres pertencentes ao mundo místico. Nesse momento podem ser inferidos comentários intertextuais com relação ao Tannhäuser, romance em alemão do século XIII sobre um cavaleiro, que decide se dedicar exclusivamente ao amor venal, optando por viver com Vênus, depois de desventuras no mundo social perfeito da cavalaria cristã.
As canções de gesta, embora de tradição mais antiga no continente europeu e de influência predominantemente francesa, foram bem representadas entre os séculos XII a XIV no espaço germanófono. Uma outra vertente da produção de gesta liga-se às sagas com a personagem Guilherme – em francês Guillaume d´Orange – 8, cujos primeiros textos remontam à primeira metade do século XII! Em alemão, a obra Willehalm de Wolfram von Eschenbach tematiza essa personagem e dentre todas as outras é a mais conhecida.
Os romances de amor e de aventura, bem como as novelas corteses em verso e como também o drama medieval são analisados através de exemplos textuais, nos quais Birkhan atenta pra detalhes lingüísticos, exegéticos e filológicos das obras.
Na História da antiga literatura em alemão à luz de textos escolhidos – parte V: romances pós-clássicos e “novelas” corteses há a versão completa de todos os fragmentos textuais para o Neuhochdeutsch, moderno-alto-alemão, o que acreditamos ser de capital importância não apenas para o leitor germanofalante, porém principalmente para os discentes de língua portuguesa, interessados em acompanhar a evolução histórica do idioma alemão, investigar suas características e ter, com isso, facilitado seu acesso às fontes primárias.
Por fim, se lembrarmos que as aulas de Saussure serviram de base à Lingüística Moderna e guardando as devidas proporções, somos de opinião de que a obra de Helmut Birkhan ora resenhada se inscreve dentro daquelas que podem se constituir entre nós como marco para o início de uma tradição de pesquisa com textos quase que totalmente desconhecidos, conferindo à Medievística Germanística e à Filologia Germânica o velho motto latino Labor omnia vincit. O trabalho tudo vence!
Notas
1. Para um maior detalhamento sobre o assunto cf. BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Deutschsprachige Literatur des Mittelalters – Beispiel einer methodischen Perspektive zur Behandlung von älteren Texten im Literaturunterricht. In: WIESINGER, Peter et alii. Akten des X. Internationalen Germanistenkongresses Wien 2000. Bern: Peter Lang, 2002. Jahrbuch für Internationale Germanistik, Reihe A, Volume 57, p. 203-209.
2. Trata-se neste caso de contos, cujos temas giram ao redor de problemas no casamento de seres humanos com seres femininos da “baixa mitologia”, como fadas e elfos. Cf. BIRKHAN, 2004, p. 159.
3. Não nos esqueçamos de que no volume
4. são trabalhados textos arturianos vistos pelo cânone como modelares, acompanhados por uma concisa, mas eficiente listagem com dados sobre o surgimento do mito e sua comprovação histórica. Cf. BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Literatura romanesca da época dos Staufer. In: SILVA, José Pereira da. (Org). Revista Philologus. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2005. Ano 11, nº 32, p.156-159.
4. A obra de Scharfenberg é vista por Birkhan como continuação da estruturação estrófica temática de Titurel. Cf. BIRKHAN, 2004, p. 99-100.
5. Em português, “A coroa”.
6. Para a listagem completa remetemos o leitor interessado a Birkhan, 2003, p.5.
7. Convém lembrar que elfos pertencem à mitologia germânica, diferenciando-se de duendes, de fundo celta.
8. Orange, aqui, é uma cidade do provençano Departamento de Vaucluse, cuja etimologia provém do galoromano Arausio. Cf. BIRKHAN, 2004, p. 195.
Álvaro Alfredo Bragança Júnior – Departamento de Letras Anglo-Germânicas Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em História Comparada UFRJ. E-mail: alvabrag@letras.ufrj.br
BIRKHAN, Helmut. Geschichte der altdeutschen Literatur im Licht ausgewählter Texte. Wien: Edition Praesens, 2004. 296 Seiten. Band 12, Teil V: Nachklassische Romane und höfische “Novellen”. Resenha de: BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. Romances Pós-Clássicos e “Novelas” Corteses. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.5, n.2, p. 114-116, 2005. Acessar publicação original [DR]
Enseignement de l’histoire et mythologie nationale. Allemagne-France du début du XXe siècle aux années 1950 – BAUVOIS-CAUCHEPIN (HE)
BAUVOIS-CAUCHEPIN, Jeannie. Enseignement de l’histoire et mythologie nationale. Allemagne-France du début du XXe siècle aux années 1950. Berne: Peter Lang, 2002. 340p. – « L’Europe et les Europes, XIXe et XXe siècles ». Resenha de: BRUTER, Annie. Histoire de l’Education, v.105, p.105-106, 2005.
Cet ouvrage, issu d’une thèse soutenue en 1995, propose une comparaison de l’histoire enseignée en France et en Allemagne dans la première moitié du XXe siècle (période entendue au sens large : des années 1880 aux années 1950), à partir d’un corpus de textes officiels (malheureusement parfois connus à travers des sources secondaires, d’où des erreurs plus ou moins importantes)1, de journaux professionnels où s’exprimaient les enseignants d’histoire, et de manuels français (au nombre de 59) et allemands (au nombre de 61), pour la plupart destinés à l’enseignement secondaire (88 sur 120). Comme l’indique le titre, cette comparaison s’inscrit dans le cadre d’une étude des mythologies nationales : la « littérature scolaire » est considérée comme « un poste d’observation privilégié des édifications mémorielles », qu’elle « métamorphose en mythe, intrinsèquement durable et collectif » (p. 17).
C’est le chapitre III de l’ouvrage, le plus long, qui correspond proprement à ce projet, les deux chapitres précédents constituant une sorte de « construction de l’objet » qui envisage tour à tour, pour chaque pays, le rapport entre histoire des historiens et histoire enseignée, l’histoire de la pédagogie de l’histoire et les caractères généraux de son enseignement, tandis qu’une section à la fin du chapitre I résume les tentatives franco-allemandes de discussion des manuels. Disons tout de suite que ces deux premiers chapitres posent, au moins pour ce qui est de l’enseignement historique français, le problème de la date de parution d’un travail déjà ancien. On comprend que Jeannie Bauvois-Cauchepin, à l’époque où elle a écrit sa thèse, n’ait pu tirer parti de recherches touchant de près son sujet, mais qui n’ont été publiées que plus tard2 (ce qui pose, soit dit en passant, le problème de l’organisation de recherches que rien ne coordonne). On comprend moins bien que, sans même parler de son texte, sa bibliographie n’ait pas été mise à jour depuis, ce qui amoindrit la valeur scientifique de l’ouvrage, en dépit de la présence de dix planches hors-texte et de divers index. Du moins l’auteur fait-elle preuve d’une sage prudence quant à la portée véritable des instructions officielles et à l’influence réelle des manuels (p. 59).
Décrire le contenu de ces manuels en France et en Allemagne à l’époque considérée est pourtant l’objet majeur du livre. C’est à quoi J. Bauvois-Cauchepin s’attache dans son chapitre III, en comparant le contenu de manuels allemands et français sur six points précis : mythe des origines, Charlemagne (peu aimé des nazis), Moyen Âge, Louis XIV et Frédéric de Prusse (les deux « hommes forts » des monarchies française et prussienne), Luther (donc la Réforme) et 1789 (considérés, chacun dans son pays, comme des moments-clés de l’histoire), guerre franco-allemande de 1870 et guerres mondiales. Ce chapitre apporte nombre d’éléments intéressants sur l’enseignement historique allemand de la première partie du XXe siècle, d’autant qu’il prend souvent appui sur des travaux menés en Allemagne après 1945, qu’il fait ainsi connaître au lecteur français. Les conclusions sont cependant souvent attendues, parfois faciles : la première moitié du XXe siècle apparaît bien comme un temps fort du discours historique nationaliste dans les deux pays, compte tenu du décalage lié aux défaites militaires qui l’ont exacerbé à des moments différents, après 1870 en France, après 1918 en Allemagne ; l’enseignement de l’histoire n’est qu’une entreprise de conformation idéologique dans les régimes autoritaires et totalitaires tels que le IIIe Reich, l’État français de Vichy, la R.D.A (on s’en doutait un peu) ; et l’exécration se substitue parfois à l’analyse, particulièrement quand il est question des manuels nazis (« délire », « amalgame décousu », etc.) : même légitime, l’indignation n’est pas un savoir. La « violence verbale instillée dans les manuels scolaires » national-socialistes, dont il est affirmé qu’elle « préparait et annonçait » les crimes perpétrés par le régime (p. 283), aurait mérité de faire l’objet d’une analyse prenant en compte sa rhétorique propre, outre son contenu.
Par ailleurs, en dépit de la périodisation adoptée, qui souligne la « volonté de renouvellement de l’enseignement historique » de la République de Weimar, bien des éléments relevés par J. Bauvois-Cauchepin militent pour l’idée d’une continuité de cet enseignement dans l’entre-deux-guerres, comme par exemple l’hostilité des professeurs d’histoire de l’époque de Weimar au régime et le fait que les nazis n’aient pas ressenti le besoin de mener d’épuration parmi eux (hors l’épuration raciale, bien entendu) après avoir pris le pouvoir (pp. 94-100) ; ou encore la présence, dans des manuels d’avant 1933, de mentions de la « race indo-germanique » (p. 155), ou de représentations du territoire allemand auxquelles « les nazis n’eurent pas grand-chose à ajouter » (pp. 259-260), etc. En d’autres termes, le « délire » nazi ne sortait pas du néant… J. Bauvois-Cauchepin le reconnaît d’ailleurs à la fin, lorsqu’elle identifie les années 1930, « dès avant le nazisme », comme un des « moments particuliers de crispation identitaire » en Allemagne (p. 281). Ainsi, le lien qu’elle semble parfois établir entre nature du régime politique et « mythologisation » de l’histoire enseignée est peut-être moins univoque qu’elle ne le dit.
Si on la suit volontiers lorsqu’elle évoque, en conclusion de ce chapitre, les diverses fonctions de l’histoire scolaire de la nation (« histoire de soi », histoire collective, leçon de morale, destin d’un territoire, etc.) et la complexité de son élaboration (pp. 271-284), les considérations finales laissent perplexe puisqu’elles reconnaissent à l’enseignement historique la possibilité d’une « distanciation » par rapport au mythe national, grâce aux conceptions « humanistes » de l’instruction – conceptions humanistes dont il ne nous est pas dit grand-chose sinon qu’elles se situent du côté de l’individuel, de la raison et de la logique (pp. 292-293). Passons sur les raccourcis historiques vertigineux (les encyclopédistes mis dans le même sac que Richelieu et Colbert !) que nous vaut cette incursion dans la « philosophie de l’instruction », mais le moins qu’on puisse dire est que l’optimisme de cette conclusion générale n’a guère été documenté par le reste du volume (sans doute fallait-il laisser au lecteur historien, enseignant ou chercheur, une lueur d’espoir après ce sombre exposé des méfaits de sa discipline). Pouvait-il en être autrement dans une étude définissant l’histoire scolaire uniquement comme lieu de manifestation du « mythe national » ? L’étroitesse de sa problématique de départ semble avoir empêché la recherche de J. Bauvois-Cauchepin de porter tous ses fruits, en dépit de la somme de connaissances déployée.
Notes
1. Par exemple, les petites classes des lycées du XIXe et de la première moitié du XXe siècle n’étaient pas des classes « primaires » (p. 132), primaire et secondaire constituant à l’époque deux ordres d’enseignement différents et non pas deux degrés d’un même système ; ou encore, « le fait de débuter les programmes du 6e[…] avec les Égyptiens et non plus avec Adam et Éve » ne date pas de 1890 (p. 163) mais de 1880, etc.
2. On songe ici aux ouvrages sur l’enseignement de l’histoire en France de Brigitte Dancel : Enseigner l’histoire à l’école primaire de la IIIe République, Paris, PUF, 1996 ; d’Évelyne Hery : Un siècle de leçons d’histoire. L’histoire enseignée au lycée, 1870-1970, Rennes, Presses universitaires de Rennes, 1999 ; et de Philippe Marchand : L’histoire et la géographie dans l’enseignement secondaire. Textes officiels. Tome 1 : 1795-1914, Paris, INRP, 2000.
[IF]Images malgré tout / Georges Didi-Huberman
Meise Lucas – Universidade Federal do Ceará.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. Resenha de: LUCAS, Meise. Revista Trajetos, Fortaleza, v.3, n.6, p.239-242, 2005. Acesso somente pelo link original. [IF].
Images malgré tou | Georges Didi-Huberman
Resenhista
Meise Lucas
Referências desta Resenha
DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. Resenha de: LUCAS, Meise. Trajetos. Fortaleza, v.3, n. 6, 2005.
La transmission de l’histoire – MESSMER (CC)
MESSMER, Kur. La transmission de l’histoire. Irène Hermann ; Jonas Römer (Hg.), vol. 32, 2/2004, pp. 130-138. Resenha de: BUGNARD, Pierre-Philippe. Le cartable de Clio – Revue romande et tessinoise sur les didactiques de l’histoire, Lausanne, n.4, p.300-303, 2004.
Dans la dernière livraison de Traverse consacrée à la transmission de l’histoire (voir la table des matières ci-dessous), Kurt Messmer, didacticien de l’histoire au « Pädagogisches Zentrum » de Lucerne, propose une très intéressante réflexion sur ce qu’il appelle un Röstigraben de la didactique de l’histoire… qui n’aurait en fait aucune raison d’exister.
Je résume d’abord l’article de façon très libre. La Suisse alémanique compte essentiellement sur son grand frère du nord, non seulement pour ses manuels d’histoire du secondaire II mais aussi pour ses quatre revues de didactique de l’histoire. Le problème c’est que dans les revues allemandes, en ce qui concerne l’histoire helvétique, il n’est fait allusion qu’à des questions secondaires. Dès lors, la seule révolution libérale qui n’est pas traitée dans les cahiers spéciaux de l’année anniversaire 1998 par exemple, c’est celle de l’Etat fédéral de 1848 ! La faute en incombe aux historiens et didacticiens suisses, tant de la partie alémanique que de la partie latine. Car il existe bien un Röstigraben de la didactique de l’histoire. L’exemple le plus flagrant est celui du canton de Fribourg qui cultive deux concepts, un pour chacune de ses parties linguistiques, la partie alémanique travaillant de concert avec les six cantons du Sonderbund emmenés par Lucerne, césure qui justement remonte, encore une fois, à 1848 (1845). Pourtant, de chaque côté de la Sarine, par-dessus ce fossé, on reste uni. La Suisse des enseignants d’histoire est bien coupée en deux, sans compter une sorte de Chiantigraben avec la Suisse italophone ! Or depuis bientôt trente ans se tiennent autour d’un Bodenseekreis des Journées de didactique de l’histoire avec une orientation internationale mais suivies presque exclusivement par des participants en provenance des régions d’expression allemande de l’Europe. Et si l’on sonde la production courante de didactique de l’histoire en Allemagne, on s’apercevra que les travaux issus de la sphère d’expression française y sont ignorés. Kurt Messmer ne cherche en aucune manière à jeter la pierre aux autres et se remet aussi en question. Il voit cependant un nouvel exemple de l’érection de la frontière des langues en barrière dans la création du Cartable de Clio, traduit en un joli « Der Schulsack der Frau Clio », revue au sein de laquelle pratiquement tout est axé sur des contributions en français ou traduites de l’italien.
Au sein du relativement mauvais classement de la Suisse dans le domaine de l’éducation à la citoyenneté en comparaison internationale, les régions française et italienne fournissent de meilleurs scores que la partie allemande, et la vente des premiers tomes du DHS marche mieux en Suisse romande qu’en Suisse allemande. Qui s’étonnera dès lors qu’une revue comme Le Cartable de Clio démarre en Romandie? La revue est animée par un bureau de quatre historiens didacticiens et elle bénéficie d’un réseau international de correspondants mais dont aucun ne provient des mondes germanique ou anglo-saxon.
Et ce qui frappe particulièrement Kurt Messmer, c’est l’appel de la revue aux historiens universitaires pour qu’ils se préoccupent des usages publics de l’histoire et de la transmission de la discipline, notamment dans l’enseignement, sachant que s’il y a une nouvelle éducation et une nouvelle histoire, une nouvelle didactique de l’histoire peine à émerger. Justement, bien des historiens se sentent plus que jamais sollicités pour descendre de la tour d’ivoire des recherches savantes et apporter leur contribution à la compréhension du passé jusque dans la société, rappelle Messmer. Les sciences historiques ne se dénigreraient nullement en poursuivant une telle finalité. Ce serait plutôt une occasion de démontrer leur efficacité, en toute indépendance.
Suit la présentation des sept rubriques de la revue, ainsi que de l’approche compréhensive et structurelle en neuf propositions affichées dans le numéro 1, une approche jugée en phase avec celle préconisée également dans l’espace allemand, approche que revendiquait d’ailleurs déjà le didacticien allemand Ebeling… en 1965 (pour le primaire?) ! Dans le monde germanique, on parle maintenant de deux compétences clés. Celle de la reconstruction: à partir des matériaux bruts et en usant de méthodes de travail spécifiques à l’histoire, les élèves peuvent se mettre à donner sens à une histoire qu’ils construisent en autonomie. Inversement, par une déconstruction à partir d’une histoire rationnelle, les élèves peuvent développer leur capacité à l’analyse, une capacité à la déconstruction d’autant plus précieuse que, une fois leur cursus scolaire achevé, ils n’auront plus d’autre alternative que d’être confrontés à une histoire « finie ». La rédaction du Cartable de Clio a donc opté, poursuit Messmer, pour une approche recouvrant les deux conceptions. Ainsi, permettre aux élèves d’entrer dans les grandes questions à différents niveaux, selon la formulation du Cartable de Clio, recoupe tout à fait les préoccupations du projet international de recherche FUER Geschichtsbewusstsein (Förderung und Entwicklung von reflektiertem und -selbst-reflexivem Geschichtsbewusstsein).
Et Kurt Messmer de se réjouir que les principes affichés par Le cartable soient ensuite réellement transposés. En particulier dans la livraison de 2002 avec cinq contributions jugées « stimulantes », dont un exemple particulièrement « convaincant » pour l’approche de déconstruction, en ce sens qu’il fournit aux élèves les versions contrastées en provenance des sept collections suisses de manuels d’histoire (donc y compris alémaniques) sur la question des relations de la Suisse avec le IIIe Reich durant le Second conflit mondial. Mais la formule d’une nouvelle histoire enseignée n’est-elle pas dépassée? Certains historiens sont devenus prudents avec l’acception « nouvelle » qu’ils associent au mouvement de 68 (en fait, la nouvelle histoire, pour l’école française, remonte au moins aux années 1940). Messmer présente alors les caractéristiques d’une histoire enseignée plus concrète et plus globale, à l’occasion d’un tournant sans doute moins marquant que celui des années 1970 mais qui se laisse maîtriser. « Chapeau » au Cartable de Clio, conclut Kurt Messmer, qui constate que les questions de didactique se posent finalement de la même manière de chaque côté du Röstigraben et qu’en fait les Suisses latine et alémanique poursuivent des buts analogues. Et de lancer en français un appel à la coopération du Léman au Bodensee et de Bâle à Lugano! L’article mérite un prolongement.
L’analyse de Kurt Messmer réjouira les enseignants romands et tessinois. L’hommage qu’il rend au Cartable en montrant que l’initiative d’une revue de didactique de l’histoire en Suisse revient aux Latins sera apprécié à sa juste valeur. Nous nous rendons compte à notre tour combien nous fonctionnons, à notre façon, de la même manière… sans le savoir. La Romandie aussi est tournée vers son grand frère (de l’ouest) qui lui fournit pour le secondaire II les manuels qu’elle ne produit pas et qui lui propose les revues de didactique de l’histoire qu’elle ne… rédigeait pas, tout comme l’Allemagne pour la Suisse alémanique. A cela près que la France ne produit qu’une seule revue de didactique de l’histoire (celle, prolixe, de la puissante association des professeurs d’Histoire-Géographie, mais qui est plutôt une revue d’histoire tout court), si l’on fait exception des nombreuses publications spécifiques des centres de recherche en didactique rattachés aux IUFM ou à l’INRP. Et il en va de même pour la Suisse italienne.
En ce qui concerne le Bodenseekreis également, les didacticiens de la Suisse française participent aux Journées d’histoire de Blois (où Le cartable de Clio tient un stand et un forum), ainsi qu’aux Journées françaises des didactiques de l’Histoire-Géograhie. Des terreaux précieux pour la réflexion disciplinaire ou didactique, journées auxquelles les participants affluent quasi exclusivement de la francophonie.
En fait, si le Cartable a lancé l’idée d’une nouvelle didactique de l’histoire, c’est bien parce qu’à l’origine, la revue dépendant d’un groupe d’étude des didactiques de l’histoire affilié au WBZ/CPS de Lucerne, donc centré sur le secondaire II, il apparaissait assez clairement que dans les établissements préparant à la maturité, la didactique avait relativement moins renouvelé les pratiques qu’aux autres niveaux d’enseignement.
Finalement, les premiers contacts noués avec le groupe alémanique de didactique de l’histoire du WBZ, en particulier avec sa présidente actuelle, Christiane Derrer de Zurich, les articles consacrés par le Cartable aux manuels alémaniques, comme l’a souligné Kurt Messmer, au lancement du concours suisse d’histoire « Historia» ou à l’enseignement comparé entre gymnase hessois et lycée français, montrent un Röstigraben dépassé en ce qui concerne les points de vue entre régions culturelles. Pour autant, cela signifie-t-il que les cultures d’enseignement de l’histoire fonctionnent à l’identique? Pour en savoir plus, il faudrait répondre à l’appel de coopération lancé par Kurt Messmer, ouvrir Le cartable de Clio, et aussi peut-être « ein alemannischen Schulsack der Frau Clio », aux contributions des pays anglo-saxons. Avec le risque de produire une revue dont l’ancrage régional ne constituerait plus un caractère, voire une richesse.
Pierre-Philippe Bugnard – Universités de Fribourg et Neuchâtel.
Traverse, table du volume 32
Schwerpunkt
Roger Sablonier: Schweizergeschichte: ein Sonderfall?
Charles Heimberg: Comment communiquer l’histoire, la transmettre et la faire construire à l’école?
Interview mit Heinz Horat (von Jonas Römer): Vermittlung durch Inszenierung. Das historische Museum als «Depot » und Schauspieler als «Lagerführer »
Jeanne Pont, Irène Herrmann, Jonas Römer: Quand l’histoire s’expose. Transmission et mise en scène du passé dans les musées d’arts et d’histoire genevois
Evgenija Kolomenskaja: Russie: Un présent aux passés pluriels
Irène Herrmann: L’histoire entre Eltsine et Poutine. La vision du passé dans le discours politique russe
Boriana Panayotova: Les limites des transformations possibles au récit scolaire d’histoire nationale en Bulgarie
Frédéric Demers: Fiction sérielle et conscience historique dans le Québec d’aujourd’hui
Gerald Munier: Geschichte im Comic. Können ernsthafte historische Themen auch in Form von Bildergeschichten behandelt werden?
Debatte:
Peter Kamber: Hitler als «Charismatiker »? – «Zweiter Dreissigjähriger Krieg? » Zur Kritik an Hans Ulrich Wehlers «Deutscher Gesellschaftsgeschichte »
Kurt Messmer: Der geschichtsdidaktische Röstigraben. Anmerkungen aus der Deutschschweiz zur Westschweizer Revue «Le cartable de Clio »
[IF]Réseaux philanthropinistes et pédagogie au 18e siècle – CHALMEL (CC)
CHALMEL, Loïc. Réseaux philanthropinistes et pédagogie au 18e siècle. Berne: Peter Lang, « Exploration. Education: Histoire et pensée », 2004. 270 p. Resenha de: BUGNARD, Pierre-Philippe. Le cartable de Clio – Revue romande et tessinoise sur les didactiques de l’histoire, Lausanne, n.4, p.305-307, 2004.
On ne s’est plus guère avisé, depuis Ferdinand Buisson et son célèbre dictionnaire de 1911, de l’importance des réseaux, quasi européens, qui des établissements d’éducation philanthropinistes aux Loges maçonniques, en passant par un associationnisme intellectuel et privé actif, diffusent et appliquent les plans d’études modernes en gestation entre Comenius et Rousseau.
Alliant analyses comparatives et traitement de sources, l’ouvrage démarre sur un récit: le déroulement d’un examen public en 1776 organisé au Philanthropinum de Dessau (Anhalt). Il s’agit de démontrer l’efficacité de la méthode philantropiniste issue de la théorie éducative de Basedow dont la genèse et la diffusion constituent un des objets centraux de cette passionnante étude. L’examen débouche d’ailleurs sur un concert de louanges. Les visiteurs ébahis s’aperçoivent qu’en classe hétérogène des enfants de 7 ou 8 ans instruits depuis une année et demie peuvent parler couramment français et latin! Tel est le résultat d’une vision pédagogique qui conditionne la progression des apprentissages par une formation des maîtres de qualité. Les maîtres reçoivent d’ailleurs du prince de Anhalt le titre de professeur… mais pas les moyens financiers qu’ils escomptaient de leur démonstration. Performante, la pédagogie ne peut guère espérer plus qu’un éloge et c’est sans doute ce qui fait qu’elle peine à le rester sans discontinuer.
Alors, d’où vient une méthode aux résultats apparemment si probants? Loïc Chalmel, professeur des Universités et fondateur du Conseil scientifique du musée Oberlin de Waldersbach en Alsace, fait justement l’histoire pionnière d’une modernité pédagogique qu’il circonscrit au « couloir rhénan » tout au long duquel se croisent au XVIIIe siècle reliquats d’humanisme, lumières et Aufklärung, piétismes, rationalisme critique ou mysticisme irrationnel, Sturm und Drang et romantisme… au nom d’une « Réforme » susceptible de conduire à la Révolution. Quatre jeunes maîtres, regroupés autour de Basedow à Dessau, dans ce qui deviendra le Philanthropinum, décident de consacrer leur vie à mettre en valeur le capital hérité de Rousseau. Ils feront bien plus que cela. En alliant théologie et pédagogie, ils raniment la flamme de la didactique en rejetant la religion révélée au profit d’une religion naturelle (ce qui entraîne d’aborder l’environnement de façon empirique) et en proposant un apprentissage des langues en immersion et en interdisciplinarité (ce qui conduit à faire d’élèves compris partout les prosélytes d’un homme nouveau: religieux et philanthrope. D’ailleurs est-ce dissociable?).
L’expérience conduite par le grison Planta, présentée au cœur de l’ouvrage, est à ce titre symptomatique: examiner méthodiquement les vérités divines afin d’éradiquer la superstition, enseigner les langues anciennes et modernes en formant des classes cosmopolites, éduquer à la citoyenneté (pour reprendre l’étiquette d’un concept actuel) en instituant l’école en République dont les discours et la justice sont rédigés et rendue en quatre langues par les élèves, réaliser des collections qui permettent d’utiliser les langues, cultiver le chant populaire éducatif ou pratiquer les exercices physiques… tout concourt dans le séminaire de Haldenstein à expérimenter les préceptes de l’Emile et à constituer un espace pionnier des principes philanthropinistes.
Sinon, impossible de faire état de toutes les influences qui ont concouru au modelage de la méthode recherchant l’harmonie entre les formations de l’esprit, du corps et du cœur, modernité qui sera d’ailleurs aussi celle de Pestalozzi. Chalmel souligne à juste titre que la méthode illustre des « nouveautés » souvent attribuées à l’éducation nouvelle: éducation à la citoyenneté et à l’environnement, éveil de l’intérêt de l’enfant au monde et à la nature, apprentissage précoce des langues vivantes, utilisation des médias (l’image en tant que substitut à toute réalité hors de portée visuelle de la classe), correspondance scolaire, développement des habiletés manuelles et artistiques… Mais n’est-ce pas déjà un programme que n’aurait pas même renié un Mathurin Cordier, le maître de Calvin? Finalement, la méthode philanthropiniste, centrée sur des élèves enseignés par des maîtres ouverts à l’articulation théorie-pratique, ne réalise-t-elle pas l’utopie intemporelle de cosmopolitisme moral, intellectuel et pratique? L’échec politique du mouvement (l’Ecole Normale de l’An III préférera abreuver les futurs instituteurs de la Nation de pensées savantes plutôt que de les former au modèle philanthropiniste du compagnonnage) ne doit pas occulter les réussites pédagogiques que le mouvement enregistre au-delà même du couloir rhénan et la flamme des pédagogies naturelles qu’il transmet ainsi jusqu’à l’éducation nouvelle.
Pierre-Philippe Bugnard – Universités de Fribourg et Neuchâtel.
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