The Druids: A Very Short Introduction | Barry Cunliffe

Quem teriam sido os druidas? A pergunta aparentemente simples tem provocado debates e polêmicas na historiografia contemporânea. Pode-se dizer que esses personagens cercados pelas brumas de antigos mistérios no imaginário popular continuam a despertar, em pleno século XXI, o fascínio e admiração de muitas pessoas.

O livro escrito por Barry Cunliffe, The Druids: A Very Short Introduction busca apresentar ao público e discutir algumas das principais questões envolvendo os múltiplos universos do “druidismo”, a partir de uma perspectiva conciliadora entre Arqueologia, História e Literatura. A obra faz parte de uma coleção da editora da Universidade de Oxford que busca disponibilizar para o público (acadêmico ou não) manuais introdutórios de temas clássicos e atuais escritos por especialistas através de abordagens inovadoras. Os livros que pertencem à série intitulada A Very Short Introduction se caracterizam por um preço acessível, um formato prático e leve (estilo pocket) e, sobretudo, uma linguagem de fácil entendimento. The Druids é o segundo livro publicado pelo autor nesta série, precedido por The Celts (2003). Cunliffe é professor Emérito da Universidade de Oxford onde ocupava a cadeira de titular de Arqueologia Europeia, além de manter vínculos variados com diversas instituições britânicas de pesquisa e de preservação do patrimônio histórico como o British Museum e o English Heritage, dentre outros. De suas obras mais recentes destacam-se: Facing the Ocean (2001), The Extraordinary Voyage of Pytheas the Greek (2001); The Celts: A very short introduction (2003), Europe Between the Oceans (2008) e Celtic from the West: Alternative Perspectives from Archaeology, Genetics, Language and Literature (2010), esta última editada junto com J. T. Koch.

Em The Druids, o autor traça um panorama histórico em relação à figura dos druidas, em um misto de construção e desconstrução. Explora desde os primeiros relatos históricos, que datam do séc. IV a.C. em língua grega, passando pelos textos latinos, os mitos e fragmentos de uma tradição oral antiga cristianizados na literatura vernácula galesa e irlandesa do séc. VIII-XI d.C., até as produções intelectuais mais recentes do séc. XVII e dos românticos dos séculos XVIII e XIX. Aliada a isso, encontra-se uma arqueologia das práticas religiosas a partir da cultura material encontrada na Gália e nas Ilhas Britânicas ao longo de aproximadamente cinco séculos antes da ocupação romana. Desta forma, é apresentada ao leitor uma análise das evidências arqueológicas ressaltando a vida intelectual e os sistemas de crenças dessas populações europeias ao longo da Idade do Ferro – tradicionalmente chamadas de celtas –, a partir de ritos mortuários, sacrifícios, calendários, santuários e estatuetas votivas dentre outros. O que se busca é propor uma reflexão conjunta, aliando os “druidas históricos” descritos nos textos gregos e latinos às evidências materiais de atividades rituais encontradas ao longo da Europa antiga, com textos medievais irlandeses e galeses que representam e evidenciam resquícios de algumas práticas culturais antigas compartilhadas.

Da Proto-História à Antiguidade clássica passando pelo Medievo, Cunliffe apresenta a seguir parte significativa dos movimentos intelectuais de redescoberta do passado a partir do séc. XVII. São destacados os trabalhos de autores tais como John Aubrey, George Buchanan, Aylett Sammes, Paul-Yves Pezron e alguns outros. Assim, o leitor passa a ser gradualmente apresentado ao contexto histórico das principais discussões intelectuais em regiões como a França (e, sobretudo, a Bretanha: região do noroeste francês), a Inglaterra, a Irlanda e a Escócia. O objetivo é mostrar ao leitor a partir de documentos da época (textuais e visuais) como parte considerável do imaginário atual associado aos druidas foi gradualmente construída de uma releitura dos textos clássicos.

A ideia de druidas detentores de mistérios mágicos, construtores de Stonehenge e praticantes de sacrifícios humanos em larga escala como no famoso “Wicker Man” [1], todos esses elementos são explorados por Cunliffe. O autor analisa esses estereótipos a partir de seus locais e contextos de produção, em um jogo de desconstrução de anacronismos que são, de certa forma, duplamente históricos: primeiro, por se proporem a representar sociedades históricas antigas, modelos de representação estes ainda presentes em larga escala no imaginário atual (cf. BIRKHAN, 2009); segundo, porque (por mais anacrônicos que sejam) esses olhares são, eles próprios, dotados de historicidade (cf. LEERSSEN, 1996).

Cunliffe explora a relação entre as artes, a literatura, o Romantismo e os nacionalismos na virada do XVIII, XIX e início do XX, mostrando partes importantes dos usos (políticos) do passado. Chega a apresentar e discutir também o surgimento de novas seitas, grupos neopagãos e ordens neodruídicas, como a United Ancient Order of Female Druids, fundada em 1876 como reflexo das novas dinâmicas de gêneros existentes no interior da sociedade Vitoriana e a Ancient Order of Druids, na qual Winston Churchill foi introduzido em 1908. Boa parte desses grupos existe ainda nos dias atuais, além de muitos outros mais recentes que surgiram nas últimas décadas e se espalharam pelo mundo inteiro – inclusive, no Brasil.

Ao longo desse livro e, sobretudo, em sua conclusão, Cunliffe deixa claro, no entanto, que “os Druidas foram um fenômeno do passado e que esses indivíduos que, desde o século XVII, vêm se denominando de tal forma não são capazes de reivindicar nenhum grau de continuidade com a antiga prática druídica” (CUNLIFFE, 2010: 131). Em outras palavras, as ordens neodruídicas do século XVIII ou dos dias atuais nada têm a ver com os druidas mencionados pelas fontes textuais da Antiguidade ou com os indivíduos que nos deixaram alguns vestígios materiais de atividades rituais realizadas ao longo da Idade do Ferro europeia. Não se tratam, portanto, de perpetuadores de uma tradição ininterrupta ancestral, mas, sim, de releituras sobre esse passado. Talvez este seja um dos maiores méritos da obra: permitir ao público entender, ainda que de forma indireta e não tão explícita, que o termo “druida” é um conceito histórico e plural, cuja acepção varia de acordo com a época. Postura semelhante, aliás, foi defendida pelo mesmo autor a respeito do conceito “celta” (cf. CUNLIFFE, 2003). De certa forma, The Druids: A Very Short Introduction se assemelha ao livro de Detienne (2008): ainda que possua uma estrutura, organização, linguagem, metodologia e propostas completamente distintas ambos permitem entender como partes de um passado antigo se tornam historicamente partes do nosso passado; como identidades são construídas a partir de [re]leituras da Antiguidade e estão enraizadas em nossas percepções e projeções culturais.

Do livro escrito por Cunliffe surge um retrato mais complexo em relação à figura dos antigos druidas e que vai além da representação historiográfica tradicional associada à figura exclusiva de sacerdotes religiosos. Se por um lado a documentação disponível nos dias atuais pode ser considerada lacunar e desafiadora sob vários aspectos, por outro o autor é capaz de relacionar o druidismo antigo com um conjunto maior de transformações sociais, religiosas, políticas e econômicas na região Atlântica da Europa, atestadas desde a metade do segundo milênio antes da era comum (CUNLIFFE, 2010: 134-5). Os druidas aparecem como indivíduos detentores de saberes, que vão desde o domínio da arte do cultivo, dos ciclos naturais e dos calendários lunares, até serem compositores de canções e poemas, intérpretes, adivinhos, professores, filósofos e intermediadores entre os homens e os deuses. Tratava-se muito mais, portanto, de uma elite intelectual que poderia acumular em si diferentes funções que, na Antiguidade, estavam interligadas (CUNLIFFE, 2010: 136).

Outras publicações acadêmicas também direcionadas à discussão da temática dos druidas entre os celtas antigos vêm sendo publicadas ao longo das últimas décadas. Dentre elas se destacam as de Guyonvarc’h e Le Roux (1986), Lonigan (1997), Ellis (2003), Ross (2004), Brunaux (2006), Hutton (2007) e Green (1997; 2010). Tratam-se de diferentes abordagens, com diferentes enfoques. A obra de Cunliffe, por sua vez, se apresenta em meio a esse debate maior como uma contribuição de enriquecimento, redigida de uma forma simples e acessível. Apesar de ser relativamente curta (não mais de 145 páginas), The Druids: A Very Short Introduction representa um livro original na medida em que aborda a figura dos druidas de uma maneira complexa e problematizada, ousando articular diferentes suportes de informação a partir de dados e questões atuais. Particularmente interessante é o modo como o autor é capaz de fazer dialogar evidências históricas que datam da metade do segundo ao primeiro milênios a.C. em uma zona Atlântica de contatos pré-históricos, a fim de mostrar a existência de contatos (religiosos, econômicos, sociais, culturais), trocas e circulações (de pessoas e de ideias) entre diferentes populações – uma característica marcante e recorrente em diversos outros trabalhos do autor.

Discutir o papel histórico dos druidas requer certa sensibilidade e cuidados, não apenas do ponto de vista histórico ou arqueológico, mas também social–contemporâneo. De certa forma, os “druidas” ainda vivem, mesmo sem possuírem quaisquer vínculos com as populações da Idade do Ferro, senão os desejados e sonhados. Parece certo pensar que se toda a tradição e identidade são, de alguma forma, inventadas (HOBSBAWM, RANGER, 2002; MEGAW & MEGAW, 1996: 180), The Druids: A Very Short Introduction, com seu formato modesto, é uma pequena, mas bela contribuição, como Megaw (2005: 66) se referiu ao livro publicado em 2003 pelo mesmo autor, ao entendimento de como os Druidas foram sendo inventados ao longo da História: desde a Antiguidade aos dias atuais.

Nota

1. “O homem de vime” é descrito por César (DBG,VI, 16) como sendo supostamente uma estrutura gigante feita de palha no formato de um homem, onde pessoas seriam aprisionadas e queimadas vivas, como parte de um ritual de sacrifício organizado pelos antigos druidas gauleses. Nenhuma outra referência semelhante é encontrada em nenhum texto antigo. A temática foi amplamente revisitada na modernidade. Na contemporaneidade, o ícone do “Homem de vime” se faz presente em produções cinematográficas de terror com os filmes “The Wicker Man” (1973 e 2006); em um single de 1999-2000 da banda britânica Iron Maiden e em festivais neopagãos.

Referências

Documentação antiga

CAESAR. C. J. The Gallic War. Trad: H. J. Edwards. Cambridge: Harvard University Press/Loeb Classical Library, 2004.

Instrumentais ou específicas

BIRKHAN, H. Por que nos encantamos tanto com os celtas e a ‘elfização’ do mundo?. In: TACLA, A. B.; TÔRRES, M. R. (et alii). Livro de Atas do III Simpósio Nacional e II Internacional de Estudos Celtas e Germânicos. São João Del Rei: UFSJ, 2009, p.15-36.

BRUNAUX, J.L. Les druides: des philosophes chez les Barbares. Seuil: Editions du Seuil, 2006.

CUNLIFFE, B. Europe Between the Oceans: themes and variations: 9000 BC to AD 1000. Yale: Yale University Press, 2008.

____________. Facing the Ocean: The Atlantic and Its Peoples 8000 BC-AD 1500. Oxford: OUP, 2001.

____________. The Celts: A very short introduction. Oxford: OUP, 2003.

____________. The Extraordinary Voyage of Pytheas the Greek. Oxford: OUP, 2001.

CUNLIFFE, B.; KOCH, J. (eds). Celtic from the West: Alternative Perspectives from Archaeology, Genetics, Language and Literature. Oxford: Oxbow Books, 2010.

DETIENNE, M. Os Gregos e Nós: Uma antropologia comparada da Grécia Antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

ELLIS, P. B. A Brief History of the Druids. New York: Carroll & Graf, 2003.

GREEN, M. J. Caesar’s Druids. Yale: Yale University Press, 2010.

_________. Exploring the World of the Druids. London: Thames & Hudson, 1997.

GUYONVARC’H, C.; LE ROUX, F. Les Druides. Rennes: Ouest-France,1986.

HOBSBAWM, E; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

HUTTON, R. The Druids. London: Hambledon Continuum, 2007.

LEERSSEN, Joep. Celticism. In: BROWN, T. Celticism. Amsterdan-Atlanta: Rodopi, 1996, p. 3-20.

LONIGAN, P. R. The Druids: Priests of the Ancient Celts. Westport: Greenwood Press, 1997.

MEGAW, J. V. S. The European Iron Age with – and without – Celts: a bibliographical essay. European Journal of Archaeology, 2005, Vol. 8 (1): 65-78.

MEGAW, J. V. S.; MEGAW, M. R. Ancient Celts and modern ethnicity. Antiquity, 70, 1996: 175-181.

ROSS, A. Druids: Preachers of Immortality. Gloucestershire: Tempus, 2004.

Pedro Vieira da Silva Peixoto – Universidade Federal Fluminense. Mestrando do PPGH-UFF. Bolsista do CNPq. Professor-tutor UNIRIO-CEDERJ. E-mail: ito_pedro@hotmail.com


CUNLIFFE, Barry. The Druids: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010. (vol. 232 de Very Short Introductions series). Resenha de: PEIXOTO, Pedro Vieira da Silva. Os Druidas: um passado presente. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.12, n.2, p. 118-122, 2012. Acessar publicação original [DR]

Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros | Antonio L. Furtado

Com o convidativo título de Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros, mais uma vez, Antonio Furtado apresenta ao público brasileiro outra tradução [1] das narrativas da “Matéria da Bretanha”. As estórias do Rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda que, nos séculos XII e XIII encantaram tanto a nobreza, pois naquelas narrativas estavam presentes os ideais mais elevados e os modos e maneiras que esta mesma nobreza vivenciava e, também enchia os ouvidos e o imaginário dos menos abastados que, talvez, almejassem serem súditos de um rei justo como Artur e protegidos por cavaleiros como Lancelot e Gawaine.

Essas “aventuras” empreendidas tanto próprio Artur como pelos seus cavaleiros estão impregnadas pelo maravilhoso que, não são estranhos às personagens, pois fazem parte do cotidiano, como nos explica Todorov no livro As Estruturas Narrativas, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens nem no leitor implícito” (TODOROV, 1979: 160). Muitas personagens das narrativas são conduzidas para situações onde se deparam com seres sobrenaturais, como gigantes, tema da primeira “aventura”, onde o próprio rei Artur enfrenta um gigante monstruosos na narrativa “O gigante do Monte Saint Michel”:

– Irei à frente, disse Artur, para combater o gigante. Vireis atrás de mim, e atentai para que nenhum de vós interfira enquanto eu mesmo puder valer, já que de outra ajuda não necessito. Pareceria covardia vir outro, além de mim, a combatê-lo. Socorrei-me, porém se perceberdes minha necessidade. (FURTADO, 2003: 70).

Artur parte sozinho para enfrentar o gigante e deixa claro os seus companheiros, que devem socorrê-lo só em caso de necessidade. Vemos aqui a representação do rei que está sempre à frente dos seus nas batalhas e faz questão de que a lei seja também aplicada a ele, como nos mostra John Boorman no seu filme Excalibur, de 1980, na cena em que a rainha Guinevere é acusada de adultério por um cavaleiro e implora ao seu marido e rei para que não seja julgada, mas Artur, responde que a lei deve ser aplicada também ao rei, caso isso não ocorra, não há justiça. Artur deve marchar à frente de seus cavaleiros na caça das aventuras.

Em “O juramento ambíguo de Isolda”, Artur e mais alguns cavaleiros, como seu sobrinho Gawaine (que nos apresentado como Galvão), “o mais cortês de todos os homens”, são chamados para julgarem Isolda esposa do rei Marcos, Duque da Cornualha e tio de Tristão, que foi acusada de adultério por três barões da Corte da Cornualha.

O rei Artur é convocado por Isolda por ser conhecido como o mais justo e nobre dos reis e por repudiar todo e qualquer ato de vilania. E, como Artur e seus cavaleiros representam os ideais da cortesia e da honra, vemos nas palavras de Galvão todo o asco que o ato dos barões contra Isolda lhe causa:

– Tio, se tenho permissão, a justificação que está combinada terminará mal para os três felões. O mais dissimulado é Ganelon: conheço-o bem e ele a mim. Já o derrubei em um lamaçal, durante uma justa forte e encarniçada. Se pego de novo, por São Richier, Tristão não precisará mais vir. Se puder agarrá-lo com as mãos, farei nele bastante estrago e o enforcarei no alto de um morro. (FURTADO, 2003: 160).

Os cavaleiros não hesitam em atender o apelo de uma donzela ou mesmo de uma rainha que esteja em perigo, pois são estas as oportunidades que esses homens de armas e de cortesia têm para fazerem valer seu juramento de defenderem as mulheres e os mais fracos, partirem em busca de aventuras e, talvez, conseguirem o amor da mulher que necessita de socorro.

As narrativas que têm como personagem principal Artur ou outro cavaleiro, fluem de maneira a cativar o leitor, com se este estivesse envolvido pela voz dos trovadores que, habilmente “encantavam” os homens e mulheres dos séculos XII e XIII quando apresentavam as aventuras e, mais ainda, os ideais que essas aventuras e as personagens representavam.

A leitura de Aventuras proporciona o resgate da ambientação, das falas das personagens e, principalmente, das suas atitudes, sejam elas de indignação perante a injustiça – como a de Galvão – ou de bravura e até de desolamento. As personagens arturianas estão vivas e, nas páginas do livro de Furtado é possível “viajar” ao lado de Galvão, Lancelot e Percival; seja na busca do Santo Graal ou no salvamento de uma donzela.

A tradução primorosa do francês antigo onde o estilo, a linguagem e o conteúdo mantiveram-se fiéis aos originais como o próprio autor afirma na Introdução da obra é um convite a mais – tanto aos estudiosos e pesquisadores da Idade Média, como aos leitores em geral – para que se descubra o mundo arturiano e da Matéria da Bretanha.

Aventurar-se pelas páginas dessa obra é como um mergulho no universo mágico do mito arturiano e um eterno encantar-se com as estórias do “rei que não morreu, apenas dorme e, em breve, retornará…”

Nota

1. Em 2001 foi publicada pela Editora Vozes a tradução dos Lais de Maria de França. Tradução de Antonio Furtado e prefácio de Marina Colassanti.

Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/São José do Rio Preto. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br


FURTADO, Antonio L. (Organização e tradução). Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros. Prefácio de Gilberto Mendonça Teles. Petrópolis- Rio de Janeiro: Vozes, 2003. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. Cavaleiros da Aventura. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.2, p. 62-63, 2003. Acessar publicação original [DR]

Matéria de Bretanha em Portugal | Leonor Curado Neves

Uma iniciativa como esta das organizadoras é sempre bem-vinda: informa-se na Introdução que estas Atas representam a recolha de um Colóquio e, por sua vez, de vários seminários realizados por e em favor de alunos do mestrado em Literatura Portuguesa Medieval, não só do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, como de outras universidades portuguesas, os quais, ao longo de 1999-2001, tiveram por tema de estudos a “matéria de Bretanha”. É, de fato, louvável oferecer tal oportunidade a futuros pesquisadores que, sob a orientação de nomes conhecidos como Irene Freire Nunes, Ivo Castro, José Carlos Ribeiro Miranda, Ana Sofia Laranjinha e outros, além de um convidado “estrangeiro”, Michelle Szkilnik, têm a chance de prosseguir na carreira tomando por base modelos de investigação rigorosos e cientificamente respeitados. Cumprimentos às organizadoras pela abertura, nem sempre usual nos meios acadêmicos.

Contudo, por isto mesmo, por seu caráter de sumário heterogêneo, a obra é qualitativamente desigual – risco, ao que parece, conscientemente abraçado, pois também referido na Introdução. Nem se poderia esperar o contrário: dificilmente um mestrando teria a experiência crítica de Irene Freire Nunes, a quem se deve a edição de A Demanda do Santo Graal (cópia portuguesa), de 1995, trabalho que, embora não substitua o de Magne, a ele se acrescenta como consulta obrigatória; ou de Ivo Castro, que há anos vem preparando a edição do José de Arimatéia, igualmente destinada a somar-se à de H. H. Carter, a mais conhecida; ou, ainda, de José Carlos Ribeiro Miranda, cujas teses, aliciantes e revolucionárias, acerca da organização cíclica da Vulgata e da Pós-Vulgata, em diálogo cerrado com as propostas até então indiscutíveis de Fanni Bogdanow, têm suscitado tanta polêmica. Por enquanto, pelo que se deduz da maioria das comunicações recolhidas, seus autores estão antes para aprender com eles que para ombreá-los em perspectivas analíticas. O que não desmerece, reitere-se, a participação do grupo, disposto a enfrentar as teias extremamente complexas da matière – para cujas profundezas míticas Ana Paiva Morais chamou a atenção (p.125).

Compreensíveis as discrepâncias, mas nem por isso livres de reparos, a começar pelos lugares-comuns, espécie de estigma do assunto desde que dele se apossou a mídia, o cinema americano e uma certa imaginação popular aficcionada por fadas, duendes e dragões. Aqui, nas Atas, não se extrapola, é evidente, para a banalização; porém, elas não se isentaram de retornar à repisada idéia de que o Amadis de Gaula propõe uma cavalaria humanizada, cortesã, em consonância com a “revolução” provençal do século XII e como contraponto à elevada espiritualização da Demanda e ao paradigma ascético representado por Galaaz (p. 105); ou também à desgastada constatação de que a carnalidade de Lancelote, plena de erotismo e de sensualidade, espelho às avessas do grandioso filho bastardo, está atrelada a sentimentos cristãos de culpa, castigo, remorsos, reincidências, contrição – empecilhos em muito responsáveis, no plano simbólico, pela decadência de Artur e pela destruição do reino de Logres (p. 267); ou, ainda, à intrigante concepção da figura feminina, ora vítima de um discurso misógino, tendo Eva como respaldo emblemático, ora heroína de um discurso enaltecedor, abrindo espaço para a Virgem Maria e para uma série de reformas por que passava a Igreja na Idade Média Central (p. 69). Conclusões como estas não podem mais ser pontos de chegada, mas de partida, são pertença daquela já extensa bibliografia de fundo que deve assessorar qualquer projeto de trabalhos na área. Conhecê-la bem evita não só a repetição indesejável, como as comparações esdrúxulas do tipo de “um artigo de jornal, Tristão e Isolda, duas novelas camilianas e sociologia de Luhmann” (p. 277) – único texto da obra que realmente não precisaria estar ali.

O longo artigo de Irene Freire Nunes (20 páginas), “Merlin, o elo ausente” (p. 29), não traz grandes novidades enquanto “tese” – sabe-se, hoje, que o mito de Merlin veio se constituindo por etapas, das tradições orais às recriações literárias, e que a figura é “elo” indispensável na lógica estrutural de todo o ciclo – mas é utilíssimo, porque repassa várias vertentes que concorreram para a edificação do poderoso mago no imaginário coletivo, bem como resenha os principais estudos que foram, a pouco e pouco, montando o quebra-cabeças. O mesmo se pode dizer do ensaio de Ivo Castro, “Sobre a edição do Livro de José de Arimatéia” (p. 59) – uma defesa contundente, e justa, do minucioso labor filológico que exige a preparação de qualquer desses textos, a exigir não só o domínio de um vasto instrumental técnico, de teor comparativo, mas também boa dose de ousadia, de sensibilidade perceptiva e de criatividade. Embora bem provido das duas condições, como demonstra sua dissertação de doutorado apresentada à Universidade de Lisboa em 1984, o autor confessa dúvidas que, ao final do artigo, desnudam o quanto ainda se tem por avançar, por responder, por “demandar”: que lugar ocupa no estema da Estoire o manuscrito francês [do José de Arimatéia] que serviu de exemplar à tradição peninsular? Quem trouxe para Portugal os manuscritos da Estoire, da Queste e da Mort Artu, e possivelmente do Merlin, terá trazido outros (Lancelot, Tristan)? A “coesão” da “matéria de Bretanha”, cada vez mais documentada, será “retrato” da realidade ou “miragem”? (p. 68). Neste sentido – o das indagações que estimulam – José Carlos Roberto Miranda tem uma bela proposta sobre o papel de Elaim, o Branco, filho de Boorz, muito menos “estrela” que seu casto pai, na continuação da linhagem de Lancelote, depois que seu “duplo” Galaaz (nas palavras de Miranda) assume de vez a condição angélica. A pujante formulação, se suscitar interesses mais amplos, pode ser encontrada em Galaaz e a ideologia da linhagem (Lisboa: Granito, 1998), onde José Carlos relaciona a organicidade do universo arturiano e a questão sociológica linhagística própria de uma estrutura feudal como a da Baixa Idade Média. E para encerrar o rol de colaborações que movem à verticalização dos diálogos, continuam fundamentais as análises genológicas (p. 125, em que pese à opção por hermetismos de linguagem), as devassas do plano simbólico (p. 81, p. 145, p. 241) ou, como fez Michelle Szkilnik, de modo original, as localizações das chamadas “personagens secundárias”, cujo papel vai muito além de simples “mediadoras” na narrativa.

Como se percebe, comutados “prós” e “contras”, as Atas sobre A matéria de Bretanha em Portugal prestam à causa serviço de mérito. Quando menos por recolocar, no centro da arena, tema tão mais polissêmico quanto mais cindido entre a visão ligeira, incompatível com a realidade histórica de curta e longa duração em que todo o ciclo se insere, e a visão acadêmica, que muitas vezes peca por excesso oposto, em seu anseio de “precisão”, ao subestimar as diversas e quase sempre obscuras camadas culturais compactadas na matière. As coordenadoras estiveram atentas ao equilíbrio de linhas, o que já de si recomenda a obra.

Lênia Márcia Mongelli – Universidade de São Paulo / ABREM. E-mail: mongelli@dialdata.com.br


NEVES, Leonor Curado; MADUREIRA Margarida e AMADO, Teresa. (Coordenadoras). Matéria de Bretanha em Portugal. Lisboa: Colibri, 2001. Resenha de: MONGELLI, Lênia Márcia. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.2, p. 64-65, 2003. Acessar publicação original [DR]

Mabinogion | José Domingos Morais

A importância da tradução desta obra para o português é enorme principalmente pela dificuldade de acesso a fontes célticas em língua portuguesa. Mabinogion é um conjunto de contos galeses que foram escritos entre os séculos XI e XIV, mas que referem-se por vezes a acontecimentos muito mais antigos, datando do século VII, e a crenças ancestrais. Os relatos começaram a ser postos por escrito por ocasião da invasão normanda quando os chefes locais resolveram mandar escrever as narrativas que haviam circulado oralmente por muitos séculos, como forma de manter a tradição.

Estes contos foram compilados no Livro Branco de Rhydderch (Llyfr Gwyn Rhydderch) e no Livro Vermelho de Hergest (Llyfr Coch Hergest) e foram traduzidos pela primeira vez para o inglês por Lady Charlotte Guest no século XIX, a qual utilizou o termo mabinogion como título para colêtanea dos onze contos. A denominação da tradutora inglesa é errônea, pois o termo mabinogi refere-se à infância de um herói. Esta palavra aparece no fim do primeiro relato, Pwyll, Príncipe de Dyved, mas relaciona-se apenas aos quatro primeiros contos ou ramos (além de Pwyll, Branwen, a filha de Lyr, Manawyddan, o Filho de Lyr e Math, o Filho de Mathonwy). Nestes, a personagem de Pryderi aparece como elo de ligação entre as histórias embora não seja personagem principal, unindo-as em acontecimentos que tratam do nascimento, infância, juventude e morte.

Uma outra interpretação para a palavra mabinogi seria a de relato de um jovem, pois a palavra maban, diminutivo de mab significa filho ou juventude; por isso trataria das façanhas de um herói relacionado aos antigos deuses. Neste sentido, Pryderi seria um mac ind óc, isto é o filho do Deus Pwyll, senhor de Dyved. Os quatro ramos do Mabinogion relacionam-se a três famílias de deuses, a de Pwyll e sua descendência, representada por Pryderi, a dos filhos de Llyr (Bran, Branwen e Manawyddan) e a dos filhos de Don (Gwydion e Gilvaethwy, que aparecem no quarto ramo). Através dos contos podemos notar as correspondências entre deuses galeses e irlandeses, por exemplo, a deusa irlandesa Dana ou Don galesa, Manannan e Manawyddan, Deus do Mar. É possível perceber o sentido de clã, da união familiar como essenciais à sobrevivência dos celtas e para levar as aventuras ao bom termo. Um exemplo ocorre no terceiro ramo: uma maldição havia sido mandada e com ela animais, habitações, plantas, tudo havia sumido. Ao final do relato a revelação: tratava-se de uma vingança de Llwyd, amigo de Gwawl contra a descendência de Pwyll, pois Gwawl havia sido ultrajado pelo pai de Pridery, Pwyll, o qual lhe batera enquanto estava num saco e tomara dele Rhiannon.

Os onze contos podem ser agrupados em três grupos: o primeiro, com narrativas relacionadas a Pryderi (os quatro ramos do Mabinogi), um segundo contendo quatro contos independentes (O sonho de Maxen, Llud e Levelys, Culhwch e Olwen e O Sonho de Rhonabwy) e o terceiro composto por três romances arturianos, influenciados pela temática de Chrétien de Troyes. Os romances são A Dama da Fonte, Peredur, o filho de Evrawc e Gereint, filho de Erbin e correspondem respectivamente a Ivain ou o Cavaleiro do Leão, Perceval, ou o Conto do Graal e Erec e Enide. Por muito tempo, considerou-se que eram adaptações galesas dos romances em verso de Chrétien, mas atualmente a conclusão é que esses dois tipos de narrativa provenham de uma fonte comum.

Nos contos dos quatro primeiros ramos do Mabinogi percebe-se vários elementos interessantes do fundo céltico, tais como a ida de um mortal ao Outro Mundo. Este troca de lugar com o deus do Além e depois recebe o título de Pwyll, Príncipe de Annwvyn (o Outro Mundo). No mesmo relato aparece o tema da deusa-égua, por quem Pwyll se apaixona e que depois se torna a mãe de Pryderi. Trata-se da deusa Rhiannon, que na tradição gaulesa é conhecida por Epona. Pwyll é impedido de casar-se com ela por um estranho (Gwawl) que vem à corte lhe pede um dom (presente). Nos contos célticos o dom era exigido ao rei e este não podia negar-se a dá-lo mesmo sem saber do que se tratava, e o forasteiro pede a Pwyll sua noiva, que ele é obrigado a entregar. Através de um estratagema, um ano depois ele consegue retomá-la ao pedir que o outro enchesse de comida um saco que nunca ficava cheio (tema relacionado ao caldeirão da abundância e ao graal) e depois convece o próprio Gwawl a entrar no saco. Neste momento Pwyll começa a bater em Gwawl até ele desistir de Rhiannon, fato que é vingado por Llwyd no terceiro ramo (Manawydan, o Filho de Llyr).

No segundo ramo, um interessante elemento é a menção ao caldeirão do renascimento, que Bran entrega a Matholwch. Nele os homens mortos são jogados e recobram a vida, mas perdem o poder da fala. Branwen, filha de Llyr é maltratada após o casamento e o irmão Bran, senhor de Llundein (Londres) a vinga. Na luta entre irlandeses e bretões apenas cinco mulheres grávidas da Irlanda e sete guerreiros da Bretanha salvam-se.

É importante destacar nesta narrativa a crença céltica na cabeça cortada, que era cultuada desde à época da cultura pré-histórica La Tène. Ao ser atingido com uma flecha envenenada, Bran pede que sua cabeça seja cortada. Ele vive e se alimenta por mais oitenta anos e depois deste período a cabeça é enterrada em Gwynn Vrynn (atual Dover).

No grupo das narrativas independentes, uma das mais interessantes é o conto Culhwch e Olwen, primeiro a apresentar Artur e seus guerreiros. Artur não é o personagem central. O jovem Culhwch deseja casar-se com Olwen, filha do gigante Yspaddaden Penkawr, e recorre ao primo Artur e a seus guerreiros para enfrentar uma série de aventuras, sendo ao final, vitorioso. No relato são citados os principais companheiros de Artur como Bedwyr, Cai e Gwalchmei e que vemos depois referenciados em outras obras arturianas. Este conto influenciou a Historia Brittonum, de Nennius (século VIII), na qual aparece a caça ao javali Twrch Trwyth, que faz parte da história de Culhwch, demonstrando assim a Antigüidade desta última.

É recorrente nas lendas célticas a relação entre o herói e o Outro Mundo, representado pelos deuses ou forças sobrenaturais. O herói, como Culhwch, deve passar por provas para demonstrar que merece o conhecimento ou a soberania, na história, representada por Olwen.

Uma outra menção a Artur é o conto O Sonho de Ronabwy (escrito por volta do século XIII) no qual um homem sonha com um cavaleiro que teria semeado a discórdia entre Artur e seu sobrinho e por isso seria o responsável pela batalha de Camlan, na qual Artur matou Medrawd. Neste relato percebe-se claramente uma influência anglo-normanda.

A importância do Mabinogion é grande para o conhecimento de crenças celtas como o Outro Mundo, o caldeirão da abundância e o do renascimento, a relevância dada à cabeça, que mesmo cortada do corpo pode viver por muito tempo e a mulher como elemento capaz de fazer o homem atingir a soberania.

A tradução de José Morais é boa e traz notas explicativas além de acrescentar um último poema, Taliesin (composto no século XVI) à narrativa, conforme consta na tradução de Lady Charlotte Guest. Uma versão ainda mais interessante do Mabinogion e que pode ser cotejada com esta, acessível aos leitores latino-americanos é a de Victoria Cirlot em espanhol (Ediciones Siruela, 1988), pois a autora demonstra maior contato com os estudos célticos e aponta para uma bibliografia que contribui para a continuidade da investigação da obra.

Adriana Zierer – Doutoranda em História/ UFF. E-mail: medieval@domain.com.br


MORAIS, José Domingos (tradução e introdução). Mabinogion. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000. Resenha de: ZIERER, Adriana. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.1, n.1, p. 77-79, 2001. Acessar publicação original [DR]