Homero | Barbara Graziosi

Homero, da classicista e professora em Princeton, Barbara Graziosi, é um livro com capítulos curtos que trazem uma discussão introdutória e interessante sobre temas selecionados. A autora optou por deixar as referências dos capítulos (passagens utilizadas e autores mencionados) em um título à parte no final do livro, o que proporciona fluidez na leitura. A obra cumpre, assim, o papel a que se propõe: introduzir um público leigo, em sua maioria de não leitores de Homero, nas principais discussões a respeito desse autor e de seus poemas. Dentro dessa mesma abordagem, o livro possui uma seção com sugestões de leituras complementares para aqueles que quiserem se aprofundar no assunto, também dividida de acordo com os capítulos. Há ainda um índice remissivo e um prefácio de Teodoro Rennó Assunção (FALE-UFMG), “O Homero de Graziosi: uma introdução exemplar”, em que o autor situa este livro dentro de uma produção bibliográfica mais específica da autora sobre o tema e também apresenta uma síntese dos tópicos discutidos, acrescentando referências de obras em português.

Começando por um relato de como Petrarca ficou satisfeito em receber uma cópia em grego da Ilíada, ainda que não pudesse lê-la, Graziosi parte do pressuposto, exposto na “Introdução”, de que Homero é muito conhecido mas pouco lido. A autora articula uma obra com exposições que têm por objetivo apresentar o poeta e seus poemas para esse público e dar exemplos retirados da Ilíada e da Odisseia de temas que tornam os épicos homéricos imortais, na esperança de ser um convite e um guia para a sua leitura. Um dos méritos da obra é que os capítulos podem ser lidos em qualquer ordem, pois constituem unidades temáticas independentes e são capítulos curtos e objetivos entre seis e treze páginas (curiosamente, o prefácio é maior que os capítulos, contando com quinze páginas). Leia Mais

A História Global e as fronteiras na Antiguidade | Fronteiras – Revista Catarinense de História | 2022

Detalhe da Estela de um mercenario em Patiris 2134–2040 a.C. Imagem Wikipedia
Detalhe da Estela de um mercenário em Pátiris (2134–2040 a.C.) | Imagem: Wikipédia

Entre as grandes rupturas culturais do final do século XX, a crise do eurocentrismo – entendido como a cosmovisão que situa a modernidade ocidental como modelo e destino da história universal – foi a que teve mais efeitos no campo historiográfico global. As diferentes áreas do campo reagiram de modos particulares: enquanto a História Econômica e comparada reviu a centralidade da Europa na história mundial (revisão exemplificada na corrente intelectual do ReOrient), a História Social buscou ressaltar a imbricação entre estruturas e agência dos grupos subalternos tanto nas sociedades, quanto nas memórias ocidentais. A História Cultural, por sua vez, ressaltou as tensões implicadas na construção de identidades e representações sociais tais como “civilizado” ou “colonial” (como nas abordagens pós- e decolonial), e a História Ambiental reelaborou as relações entre sociedade e ambiente para além do discurso da “conquista da natureza” ou do “lamento da degradação”.

Neste contexto, novas áreas emergiram, como a História Global, cuja missão de criticar o eurocentrismo e o internalismo metodológico orienta os mais diversos estudos, das macro comparações ao estudo das “micro globalizações”, das redes aos sistemas-mundo, dos impérios em contato aos viajantes, dos processos transnacionais aos fenômenos ambientais globais. Central no projeto da História Global é a crítica das fronteiras projetadas pelas sociedades contemporâneas sobre o passado, sob o efeito dos estados nacionais e suas comunidades imaginadas, o que desvinculou as sociedades de seus contextos concretos. A História Antiga dialogou com estas perspectivas, resultando na promoção de três abordagens significativas: a história dos grupos subalternos antigos, a história da recepção e usos da Antiguidade no mundo contemporâneo, e a história das conexões e contatos entre as várias sociedades antigas em seus contextos mais amplos. Nestas três abordagens, o problema das fronteiras é central e se desdobra em múltiplos aspectos, fronteiras sociais e espaciais, internas e externas, trazendo a necessidade de se revisitar conceitos e metodologias que tomavam este termo como dado. Assim, é preciso refletir como definir as fronteiras entre grupos sociais, como dominantes e subalternos, por exemplo, ou entre segmentos de grupos subalternos. De que maneira Antiguidade foi utilizada em contextos de fronteira no Ocidente, como a América Latina contemporânea? Em relação à História Global, fronteiras como “mundo romano”, “Egito”, “mundo grego”, “África”, estão além da projeção dos estados nacionais sobre o passado antigo, mas de que maneira podemos entender esses limites tendo em vista uma visão êmica de fronteira? Quais eram os contextos nos quais as sociedades se interagiam? Qual era a relação entre fronteiras internas e externas às sociedades? A integração a contextos maiores potencialmente eliminava as fronteiras? O objetivo deste dossiê é refletir sobre os problemas associados aos conceitos de fronteira na Antiguidade. Leia Mais

La mia Grecia | Nikos Kazantzakis

Tutta l’umanità per guarire dovrebbe passare dal nobile sanatorio della Grecia (da La mia Grecia, p. 74).

Si deve al lavoro encomiabile di Crocetti editore la riscoperta di uno dei più grandi scrittori greci della prima metà del Novecento: Nikos Kazantzakis (Hiraklion 1883-Friburgo in Brisgovia 1957). Infatti, grazie alla recente pubblicazione di diverse opere di questo poeta, che per la prima volta sono tradotte direttamente dal greco all’italiano , la cultura italiana oggi ha modo di accostarsi in modo nuovo alla profondità concettuale di uno degli autori più prolifici e affascinanti del panorama letterario mondiale. In questo commento, si cercherà di ripercorrere gli aspetti più rilevanti de La mia Grecia, una raccolta di riflessioni frutto di un viaggio in treno nella sua terra nel 1937, commissionato dalla rivista Kathimerini. Leia Mais

Serving Athena: the festival of the Panathenaia and the construction of Athenian identities | Julia L. Shear

L’oggetto di indagine della più recente monografia di Julia L. Shear nasce, come lei stessa informa i suoi lettori nella prefazione (p. xvii), da uno dei primi interessi di ricerca dell’Autrice. Già verso la fine degli anni Novanta, la studiosa si era dedicata alla comprensione storica del fenomeno delle Panatenee, seguendo la discussione sviluppatasi nell’ambiente accademico statunitense intorno all’interpretazione di J.B. Connelly del fregio del Partenone. Oggi, la ricca esperienza da lei maturata nei diversi campi che contribuiscono alla comprensione della storia della Grecia antica ha consentito all’Autrice di presentare i risultati di un lavoro il cui scopo non è semplicemente quello di scrivere una storia delle Panatenee (p. 34). Come si evince subito dal sottotitolo, lo studio si pone in linea con uno dei temi più attuali delle scienze dell’antichità e, più genericamente, delle scienze umane. Con questo studio, l’Autrice si rivolge, senza discostarsi dall’analisi dei realia, ad un aspetto spesso trascurato, ma fondamentale, della festa ateniese, ossia la sua capacità di innescare dinamiche relazionali in grado di fornire ai partecipanti modelli identitari. Serving Athena è dunque un’esaustiva ricostruzione storica delle Panatenee sensibile alla diacronia del fenomeno analizzato, ma anche un saggio di metodo che mostra come si possa arricchire la produzione storiografica contemporanea sulle società antiche grazie all’integrazione di categorie operative e modelli ermeneutici provenienti dalle scienze sociali. Leia Mais

La giustizia in scena. Diritto e potere in Eschilo e Sofocle | Emanuele Stolfi

La giustizia in scena rappresenta un contributo innovativo nel vasto panorama degli studi sul diritto greco antico, ponendosi come modello per l’interlocuzione scientifica tra gli storici dei diritti antichi e gli studiosi della tragedia. L’Autore, pur riconoscendo l’attenzione di giuristi e filosofi del diritto ai quesiti posti dai testi tragici alla moderna sensibilità giuridica e la recente fortuna della corrente di studi «Law in Literature», rileva un limitato interesse da parte degli storici dell’esperienza giuridica. Questo libro indica le possibili direzioni del contributo degli studiosi di diritto greco all’esame del teatro di Eschilo e Sofocle, proponendo un’integrazione del metodo storico-giuridico entro ampie linee di indagine (filologicoletterarie, linguistiche, antropologiche) per illustrare questioni nevralgiche rappresentate dai tragediografi. Leia Mais

Revista de Estudos Filosóficos e Históricos da Antiguidade | Aristóteles | 2021

Diante da irracionalidade que domina o mundo, é importante voltar a Aristóteles. Nesse sentido, fizemos deste número 36 uma publicação temática, centrada em Aristóteles e em diálogo com diversos momentos da sua posteridade. Agradecemos a todos que contribuíram com artigos.

Destacamos entretanto a honrosa contribuição de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. Sobretudo pois, além da qualidade de sua contribuição, lembramos que no primeiro número do Boletim do CPA, publicado nos idos de 1996, já constava um artigo de Carlos Arthur. Leia Mais

Religiões na grécia e roma antigas: contatos, encontros e trocas / História – Questões & Debates / 2021

RELIGIÃO NA GRÉCIA E ROMA ANTIGAS: CONTATOS, ENCONTROS E TROCAS [1]

A natureza fragmentária e variada do Mediterrâneo foi estudada por pesquisadores que se dedicaram, de fato, a entender a região. As ideias revolucionárias da obra pioneira de Fernand Braudel, La Méditerranée et le Monde méditerranéen à l’époque de Philippe II (1949), mudaram o foco do espaço mediterrânico, deslocando-o de suas fronteiras continentais para a bacia marítima, bem como reorientaram a pesquisa histórica da região, encaminhando-a da política para a cultura e a economia. É certo que, depois de Braudel, foram necessários muitos anos para que os estudos na escala mediterrânica se tornassem tendência. A nova contribuição significativa foi feita por Peregrine Horden e Nicholas Purcell, com a publicação The Corrupting Sea: A Study of Mediterranean History (2000), que identificou elementos comuns ao longo dos mais de três mil anos de história no Mediterrâneo. Explorando a extrema fragmentação da região em suas paisagens terrestres e marinhas, os autores produziram uma análise inovadora das relações entre suas diferentes microecologias. Horden e Purcell evidenciaram o peso do elemento da incerteza nos microcosmos mediterrânicos, seja quanto ao clima e à quantidade de precipitação, seja quanto à direção e a intensidade do vento, e ainda quanto à possibilidade de catástrofes vulcânicas e sísmicas. Por outro lado, se o Mediterrâneo passa então a ser pensado enquanto uma área de incerteza, entende-se que ele se constituiu também como região de grande mobilidade, dados seu elevado número de ilhas e a extensão de sua área costeira, a maior do planeta. Com efeito, o fato de seus navegadores raramente perderem de vista a terra e do sol brilhar durante todo o ano fez do Mediterrâneo um espaço de oportunidades, o que encorajou os homens a diversificarem, produzirem e explorarem.

Esse poder que o Mediterrâneo tem de conectar mundos é explorado num outro livro monumental do século XXI, The Making of the Middle Sea (2014). Seu autor, Cyprian Broodbank, utiliza uma vasta quantidade de dados arqueológicos para desvelar a história da região, de um milhão e oitocentos mil anos atrás até o Período Clássico, demonstrando como o mundo mediterrânico, facilmente navegável e ecologicamente fragmentado, evoluiu para uma oecumene através da agência dos habitantes de suas ilhas e costas.

A natureza fragmentária da região mediterrânica é, com efeito, uma de suas características mais distintivas. Ela atua como estímulo histórico para a formação de redes de transporte complexas, responsáveis por ligarem lugares de tamanhos e importância desiguais, da família aos estados imperiais, e por envolverem todo tipo de atores, do comerciante ao monarca (MALKIN; CONSTANTAKOPOULOU; PANAGOPOULOU, 2011). O Mediterrâneo, por isso, permitiu o movimento de multidões em torno da sua vasta área, não só devido à proximidade dos seus locais costeiros e suas ilhas, mas também devido às condições climáticas (ou seja, um verão semi-árido e um inverno úmido) amplamente favoráveis à disseminação de produtos e técnicas (agricultura, perfumaria, cerâmica, navegação) (BROODBANK, 2014). A extensa circulação de pessoas e bens no Mediterrâneo reflete-se também na natureza das práticas religiosas da região. Objetos provenientes de todo o mundo antigo eram apresentados como ofertas em túmulos e santuários pela região mediterrânica. As práticas religiosas, por sua vez, eram transmitidas durante diferentes ciclos de convulsões sociais e migrações, o que envolvia o contato tanto de habitantes de áreas próximas entre si quanto daquelas situadas a grandes distâncias, cuja comunicação se dava por meio da rede de rotas.

Este dossiê apresenta então estudos de caso que enfatizam a diversidade cultural e os intercâmbios religiosos no mundo greco-romano, centrando-se nas relações entre fragmentos da região mediterrânica (MALKIN, 2011). Com nove artigos em múltiplas áreas temáticas, os primeiros cinco se desenvolvem no campo da Arqueologia Clássica, e os quatro seguintes em História e Literatura. As contribuições (feitas em português, inglês e francês) provêm de pesquisadores que trabalham sobre diferentes aspectos da religião no mundo greco-romano. Iniciamos com uma investigação sobre trocas e práticas de culto no coração das Cíclades, onde se deu uma das mais importantes descobertas arqueológicas realizadas na Grécia nos últimos dez anos. Yannos Kourayos e Kornilia Daifa, que dirigem as escavações em Despótiko, apresentam em seu texto um panorama deste que é um importante santuário cicládico, só conhecido a partir de evidências arqueológicas. Localizado no centro da região cicládica, o santuário em questão foi erigido pela poderosa ilha de Paros e revelou uma quantidade impressionante de oferendas votivas originárias de múltiplos pontos das Cíclades e também de partes mais afastadas do Mediterrâneo. O segundo trabalho deste volume, escrito por Elena Korka e membros de sua equipe, divulga alguns dos recentes resultados das escavações em Tenea, situada nos arredores da aldeia de Chiliomodi em Corinto, um local cuja cultura material e ciclo de mitos estão ligados à Guerra de Tróia. Depois de sumarizar o trabalho arqueológico realizado até agora, os autores discutem a principal divindade adorada em Tenea, o deus Apolo, e os artefatos encontrados ali, importantes para a interpretação e o entendimento do antigo culto. Vale destacar que alguns dos objetos escavados têm suas imagens publicadas pela primeira vez neste dossiê. O próximo artigo, escrito por Michael Fowler da East Tennessee State University, examina os quatro monumentos tumulares arcaicos tardios da Necrópole Setentrional do povoado grego de Istros. O autor explora as características desses monumentos comparáveis à descrição das cerimônias heroicas de cremação, tal como narradas na poesia épica (particularmente, no caso do funeral de Pátroclo na Ilíada) e discute, ainda, a possibilidade surpreendente de sacrifício humano. Para além dos hábitos religiosos incomuns entre os gregos e das reconsiderações sobre a Pira A em Orthi Petra (Eleutherna, Creta), a discussão de Fowler inclui também em seu estudo um sítio arqueológico situado no Mar Negro, região que segue pouco estudada fora dos círculos acadêmicos russos. Do Mar Negro, nosso dossiê retorna para Corinto, desta vez às margens do golfo. Dora Katsonopoulou, diretora das escavações em Helike, discute o culto de Poseidon Helikonios com ênfase nos antigos altares ancestrais dos jônicos. Ela examina o estabelecimento do culto de Poseidon Helikonios, trazido pelos aqueus para a costa da Ásia Menor, transmitido em seguida para a já mencionada região do Mar Negro. O próximo trabalho, escrito por Lilian Laky da Universidade de São Paulo, explora a interconectividade do Mediterrâneo examinando a iconografia das moedas com imagens de águias e relâmpagos, atributos de Zeus. A autora utiliza como fontes moedas cunhadas por Crótone na Magna Grécia e por Olympia no Peloponeso para discutir a difusão do culto de Zeus Olympios. Contribuindo para o tema da relação entre Olympia Sicília, o artigo, ademais, dá um importante aporte para os estudos sobre a disseminação regional dos epítetos locais, tema pouco abordado que, porém, está lentamente ganhando a atenção necessária.

Os próximos quatro textos de nosso dossiê examinam os contatos e as trocas entre as religiões gregas e romanas pelas lentes da História e da Literatura antiga. Esta seção é aberta com um artigo de Pierre Ellinger, da Université de Paris. O autor analisa os raptos de estátuas divinas de santuários à beira-mar, a partir de mitos gregos, especialmente o de Ártemis Táurida, tal como elaborado pela tragédia euripideana, enfatizando-o. O texto explora a presença do mar nesses registros antigos, dando destaque às rotas mediterrânicas e sua articulação com determinados pontos, à experiência de partida e de chegada e ao contexto em que tais estórias teriam sido narradas. Ao ressaltar a dimensão marítima dessas fontes, o autor põe em questão a nossa familiaridade com o espaço grego, reorientando nossa perspectiva da visão da cidade para a visão do mar ao longo de suas margens. O artigo, portanto, não só lança luz sobre o culto enigmático de Ártemis Táurida, cujo culto continua a confundir e intrigar os estudiosos modernos, como apresenta uma grande contribuição para os estudos emergentes sobre as religiões mediterrânicas.

Em seguida, o texto de autoria de Lucio Maria Valletta da École Pratique des Hautes Études, discute novos cultos da região do Mar Negro. O autor examina uma passagem de Heródoto sobre o povo cita para refletir sobre a existência de elementos culturais que seriam próprios a povos que viveram e se deslocaram nas regiões circundantes da bacia do Mediterrâneo, incluindo o Mar Negro. O dossiê segue com o trabalho de Júlia Avelar, da Universidade Federal de Uberlândia, que aborda cultos romanos e festivais religiosos do início do Império por meio do trabalho do poeta romano Ovídio. Avellar examina as intersecções entre cultos privados e festivais públicos na Roma antiga. A autora demonstra de que forma os cultos religiosos da poesia ovidiana seriam recriações poéticas que, através de elementos religiosos, provocam reflexões sobre as relações de poder na Antiguidade. Voltando às Cíclades e a Paros, o último trabalho deste volume, escrito por Rafael Silva e Teodoro Rennó Assunção da Universidade Federal de Minas Gerais, parte de fragmentos ditirâmbicos atribuídos a Arquíloco (fr. 120 W, fr. 96 Lasserre) para desenvolver considerações sobre a relação entre o culto de Dioniso e a difusão do ditirambo.

Juntos, os artigos apresentados neste volume expõem a riqueza das trocas religiosas no Mediterrâneo, particularmente no mundo greco-romano. Enquanto alguns revelam pesquisas arqueológicas originais sobre regiões sócio-políticas estratégicas, outros apresentam autênticos quadros teóricos, capazes de iluminar a complexidade dos intercâmbios culturais observados pela disseminação tanto da cunhagem oficial quanto dos mitos vernáculos.

Nota

1. Nós gostaríamos de agradecer o convite para organizarmos este dossiê e toda a assistência durante a confecção do número à Renatta Garraffoni (UFPR) e Priscila Vieira (UFPR), agora à frente da editoria da Revista História: Questões & Debates. Somos também enormemente gratas a Yannos Kourayos, que cedeu os direitos de uso da foto de capa, com o recém-restaurado edifício A do santuário de Despótiko. Estendemos nosso agradecimento ainda a Andrew Gipe Lazarou (Diakron Institute) que produziu a capa e fez a revisão do texto em inglês desta introdução. Qualquer erro que persista é, no entanto, de nossa inteira responsabilidade.

Erica Angliker (Institute of Classical Studies, University of London).

Lorena Lopes da Costa (Universidade Federal do Oeste do Pará).


ANGLIKER, Erica; COSTA, Lorena Lopes da. Introdução. História – Questões & Debates. Curitiba, v.69, n.1, jan. / jun., 2021. Acessar publicação original [DR]

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Religiões na Grécia e Roma antigas: contatos, encontros e trocas / História – Questões e Debates/ 2021

Yannos Kourayos. Vista aerea do santuario de Despotiko Foto Historia Questoes e Debates

Apresentação [1]

A natureza fragmentária e variada do Mediterrâneo foi estudada por pesquisadores que se dedicaram, de fato, a entender a região. As ideias revolucionárias da obra pioneira de Fernand Braudel, La Méditerranée et le Monde méditerranéen à l’époque de Philippe II (1949), mudaram o foco do espaço mediterrânico, deslocando-o de suas fronteiras continentais para a bacia marítima, bem como reorientaram a pesquisa histórica da região, encaminhando-a da política para a cultura e a economia. É certo que, depois de Braudel, foram necessários muitos anos para que os estudos na escala mediterrânica se tornassem tendência. A nova contribuição significativa foi feita por Peregrine Horden e Nicholas Purcell, com a publicação The Corrupting Sea: A Study of Mediterranean History (2000), que identificou elementos comuns ao longo dos mais de três mil anos de história no Mediterrâneo. Explorando a extrema fragmentação da região em suas paisagens terrestres e marinhas, os autores produziram uma análise inovadora das relações entre suas diferentes microecologias. Horden e Purcell evidenciaram o peso do elemento da incerteza nos microcosmos mediterrânicos, seja quanto ao clima e à quantidade de precipitação, seja quanto à direção e a intensidade do vento, e ainda quanto à possibilidade de catástrofes vulcânicas e sísmicas. Por outro lado, se o Mediterrâneo passa então a ser pensado enquanto uma área de incerteza, entende-se que ele se constituiu também como região de grande mobilidade, dados seu elevado número de ilhas e a extensão de sua área costeira, a maior do planeta. Com efeito, o fato de seus navegadores raramente perderem de vista a terra e do sol brilhar durante todo o ano fez do Mediterrâneo um espaço de oportunidades, o que encorajou os homens a diversificarem, produzirem e explorarem.

Esse poder que o Mediterrâneo tem de conectar mundos é explorado num outro livro monumental do século XXI, The Making of the Middle Sea (2014). Seu autor, Cyprian Broodbank, utiliza uma vasta quantidade de dados arqueológicos para desvelar a história da região, de um milhão e oitocentos mil anos atrás até o Período Clássico, demonstrando como o mundo mediterrânico, facilmente navegável e ecologicamente fragmentado, evoluiu para uma oecumene através da agência dos habitantes de suas ilhas e costas.

A natureza fragmentária da região mediterrânica é, com efeito, uma de suas características mais distintivas. Ela atua como estímulo histórico para a formação de redes de transporte complexas, responsáveis por ligarem lugares de tamanhos e importância desiguais, da família aos estados imperiais, e por envolverem todo tipo de atores, do comerciante ao monarca (MALKIN; CONSTANTAKOPOULOU; PANAGOPOULOU, 2011). O Mediterrâneo, por isso, permitiu o movimento de multidões em torno da sua vasta área, não só devido à proximidade dos seus locais costeiros e suas ilhas, mas também devido às condições climáticas (ou seja, um verão semi-árido e um inverno úmido) amplamente favoráveis à disseminação de produtos e técnicas (agricultura, perfumaria, cerâmica, navegação) (BROODBANK, 2014). A extensa circulação de pessoas e bens no Mediterrâneo reflete-se também na natureza das práticas religiosas da região. Objetos provenientes de todo o mundo antigo eram apresentados como ofertas em túmulos e santuários pela região mediterrânica. As práticas religiosas, por sua vez, eram transmitidas durante diferentes ciclos de convulsões sociais e migrações, o que envolvia o contato tanto de habitantes de áreas próximas entre si quanto daquelas situadas a grandes distâncias, cuja comunicação se dava por meio da rede de rotas.

Este dossiê apresenta então estudos de caso que enfatizam a diversidade cultural e os intercâmbios religiosos no mundo greco-romano, centrando-se nas relações entre fragmentos da região mediterrânica (MALKIN, 2011). Com nove artigos em múltiplas áreas temáticas, os primeiros cinco se desenvolvem no campo da Arqueologia Clássica, e os quatro seguintes em História e Literatura. As contribuições (feitas em português, inglês e francês) provêm de pesquisadores que trabalham sobre diferentes aspectos da religião no mundo greco-romano. Iniciamos com uma investigação sobre trocas e práticas de culto no coração das Cíclades, onde se deu uma das mais importantes descobertas arqueológicas realizadas na Grécia nos últimos dez anos. Yannos Kourayos e Kornilia Daifa, que dirigem as escavações em Despótiko, apresentam em seu texto um panorama deste que é um importante santuário cicládico, só conhecido a partir de evidências arqueológicas. Localizado no centro da região cicládica, o santuário em questão foi erigido pela poderosa ilha de Paros e revelou uma quantidade impressionante de oferendas votivas originárias de múltiplos pontos das Cíclades e também de partes mais afastadas do Mediterrâneo. O segundo trabalho deste volume, escrito por Elena Korka e membros de sua equipe, divulga alguns dos recentes resultados das escavações em Tenea, situada nos arredores da aldeia de Chiliomodi em Corinto, um local cuja cultura material e ciclo de mitos estão ligados à Guerra de Tróia. Depois de sumarizar o trabalho arqueológico realizado até agora, os autores discutem a principal divindade adorada em Tenea, o deus Apolo, e os artefatos encontrados ali, importantes para a interpretação e o entendimento do antigo culto. Vale destacar que alguns dos objetos escavados têm suas imagens publicadas pela primeira vez neste dossiê. O próximo artigo, escrito por Michael Fowler da East Tennessee State University, examina os quatro monumentos tumulares arcaicos tardios da Necrópole Setentrional do povoado grego de Istros. O autor explora as características desses monumentos comparáveis à descrição das cerimônias heroicas de cremação, tal como narradas na poesia épica (particularmente, no caso do funeral de Pátroclo na Ilíada) e discute, ainda, a possibilidade surpreendente de sacrifício humano. Para além dos hábitos religiosos incomuns entre os gregos e das reconsiderações sobre a Pira A em Orthi Petra (Eleutherna, Creta), a discussão de Fowler inclui também em seu estudo um sítio arqueológico situado no Mar Negro, região que segue pouco estudada fora dos círculos acadêmicos russos. Do Mar Negro, nosso dossiê retorna para Corinto, desta vez às margens do golfo. Dora Katsonopoulou, diretora das escavações em Helike, discute o culto de Poseidon Helikonios com ênfase nos antigos altares ancestrais dos jônicos. Ela examina o estabelecimento do culto de Poseidon Helikonios, trazido pelos aqueus para a costa da Ásia Menor, transmitido em seguida para a já mencionada região do Mar Negro. O próximo trabalho, escrito por Lilian Laky da Universidade de São Paulo, explora a interconectividade do Mediterrâneo examinando a iconografia das moedas com imagens de águias e relâmpagos, atributos de Zeus. A autora utiliza como fontes moedas cunhadas por Crótone na Magna Grécia e por Olympia no Peloponeso para discutir a difusão do culto de Zeus Olympios. Contribuindo para o tema da relação entre Olympia Sicília, o artigo, ademais, dá um importante aporte para os estudos sobre a disseminação regional dos epítetos locais, tema pouco abordado que, porém, está lentamente ganhando a atenção necessária.

Os próximos quatro textos de nosso dossiê examinam os contatos e as trocas entre as religiões gregas e romanas pelas lentes da História e da Literatura antiga. Esta seção é aberta com um artigo de Pierre Ellinger, da Université de Paris. O autor analisa os raptos de estátuas divinas de santuários à beira-mar, a partir de mitos gregos, especialmente o de Ártemis Táurida, tal como elaborado pela tragédia euripideana, enfatizando-o. O texto explora a presença do mar nesses registros antigos, dando destaque às rotas mediterrânicas e sua articulação com determinados pontos, à experiência de partida e de chegada e ao contexto em que tais estórias teriam sido narradas. Ao ressaltar a dimensão marítima dessas fontes, o autor põe em questão a nossa familiaridade com o espaço grego, reorientando nossa perspectiva da visão da cidade para a visão do mar ao longo de suas margens. O artigo, portanto, não só lança luz sobre o culto enigmático de Ártemis Táurida, cujo culto continua a confundir e intrigar os estudiosos modernos, como apresenta uma grande contribuição para os estudos emergentes sobre as religiões mediterrânicas.

Em seguida, o texto de autoria de Lucio Maria Valletta da École Pratique des Hautes Études, discute novos cultos da região do Mar Negro. O autor examina uma passagem de Heródoto sobre o povo cita para refletir sobre a existência de elementos culturais que seriam próprios a povos que viveram e se deslocaram nas regiões circundantes da bacia do Mediterrâneo, incluindo o Mar Negro. O dossiê segue com o trabalho de Júlia Avelar, da Universidade Federal de Uberlândia, que aborda cultos romanos e festivais religiosos do início do Império por meio do trabalho do poeta romano Ovídio. Avellar examina as intersecções entre cultos privados e festivais públicos na Roma antiga. A autora demonstra de que forma os cultos religiosos da poesia ovidiana seriam recriações poéticas que, através de elementos religiosos, provocam reflexões sobre as relações de poder na Antiguidade. Voltando às Cíclades e a Paros, o último trabalho deste volume, escrito por Rafael Silva e Teodoro Rennó Assunção da Universidade Federal de Minas Gerais, parte de fragmentos ditirâmbicos atribuídos a Arquíloco (fr. 120 W, fr. 96 Lasserre) para desenvolver considerações sobre a relação entre o culto de Dioniso e a difusão do ditirambo.

Juntos, os artigos apresentados neste volume expõem a riqueza das trocas religiosas no Mediterrâneo, particularmente no mundo greco-romano. Enquanto alguns revelam pesquisas arqueológicas originais sobre regiões sócio-políticas estratégicas, outros apresentam autênticos quadros teóricos, capazes de iluminar a complexidade dos intercâmbios culturais observados pela disseminação tanto da cunhagem oficial quanto dos mitos vernáculos.

Nota

1. Nós gostaríamos de agradecer o convite para organizarmos este dossiê e toda a assistência durante a confecção do número à Renatta Garraffoni (UFPR) e Priscila Vieira (UFPR), agora à frente da editoria da Revista História: Questões & Debates. Somos também enormemente gratas a Yannos Kourayos, que cedeu os direitos de uso da foto de capa, com o recém-restaurado edifício A do santuário de Despótiko. Estendemos nosso agradecimento ainda a Andrew Gipe Lazarou (Diakron Institute) que produziu a capa e fez a revisão do texto em inglês desta introdução. Qualquer erro que persista é, no entanto, de nossa inteira responsabilidade.

Erica Angliker (Institute of Classical Studies, University of London).

Lorena Lopes da Costa (Universidade Federal do Oeste do Pará).

Imagem: Yannos Kourayos. Vista aérea do santuário de Despótiko / Foto: História – Questões e Debates /

 


ANGLIKER, Erica; COSTA, Lorena Lopes da. Introdução. História: Questões e Debates, Curitiba- PR, v.69, n.1, jan/jun, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Between Greece and Babylonia: Hellenistic Intellectual History in Cross-Cultural Perspective | K. Stevens

La cuestión de las relaciones entre griegos y nativos durante el período Helenístico ha llamado la atención de los estudiosos desde hace más de un siglo. En las últimas décadas se ha asistido a una renovación de este interés desde perspectivas post-constructivistas e interdisciplinarias, que han abierto nuevas vetas de investigación y han hecho progresar nuestro entendimiento de aquellas relaciones. Mesopotamia ha ocupado un lugar especial en estas consideraciones, en tanto para el momento en que los griegos establecieron una presencia permanente en la región, esta ya contaba con una larga tradición política e intelectual. Resulta sumamente interesante analizar la interacción de esta tradición local con aquella griega recién llegada, siendo una de las principales dificultades para el investigador el contar con la capacidad de acceder al registro de ambas culturas a la vez y poder establecer comparaciones. Leia Mais

La cultura giuridica dell’antica Grecia. Legge/politica/giustizia | Emanuele Stolfi

La cultura giuridica dell’antica Grecia è un libro portatore di novità nel vasto panorama di studi sul diritto greco. Esso si inserisce, infatti, come voce nuova all’interno di un dibattito assai vivo e produttivo, il quale, soprattutto a partire dagli anni Novanta del secolo scorso, ha portato ad un rinnovamento e ad un progressivo ampliamento delle prospettive e delle modalità di interpretazione dell’esperienza giuridica ellenica. In questo orizzonte, il contributo di Stolfi si presenta come l’esito maturo di una riflessione di ampio respiro, fondata sui temi e sui metodi della storia dei diritti antichi, ma che attinge anche a categorie storico-antropologiche. L’argomento e il taglio dell’opera sono visibili già nel titolo: studiare la cultura giuridica dei Greci implica lo scostamento da un esame di complessi normativi, istituti e procedure, per indagare l’esperienza giuridica della civiltà greca individuando le «forme di pensiero razionale» (p. 63) che l’hanno costituita.

Il volume si articola in dieci capitoli, preceduti da una breve ma importante Premessa (pp. 11-12), finalizzata all’illustrazione del senso di un lavoro che si caratterizza per la sua peculiarità entro la contemporanea letteratura di studi giuridici. Questa peculiarità risiede nella scelta, esplicitata da Stolfi, di percorrere una strada diversa rispetto a quella, ampiamente esplorata, di una «trattazione esaustiva» (p. 11) e manualistica delle leggi e degli istituti che fanno parte dell’esperienza giuridica greca, rivolgendosi, invece, alla «trama teorica» (ibidem) inerente alla legge e alla giustizia elaborata dalla civiltà greca e della quale le testimonianze letterarie sono espressione. L’Autore propone, infatti, «un itinerario […] attorno alle peculiarità del lessico, dell’immaginario concettuale e dei grandi quesiti che, dalle società omeriche sino all’avvento macedone, possiamo individuare in relazione al diritto» (p. 11): lo studio viene svolto a partire dall’analisi delle occorrenze e dei significati assunti dai termini afferenti la vita giuridica, per approdare alla costruzione di una visione d’insieme, seppur complessa e problematica. Centro dell’indagine non è il volto tecnico e procedurale del diritto, ma «il nesso con la dimensione politica e le forme mentali proprie del contesto storico» (pp. 11-12), e dunque il pensiero sotteso ad esso – che è pensiero mitico, filosofico, religioso, politico, e che costituisce il contenuto più puramente culturale del fenomeno giuridico greco. Leia Mais

Greek Religion and Cult in the Black Sea region | David Braund

Il volume è l’ultimo contributo prodotto nell’ambito del Black Sea History Project. Si tratta di una linea di ricerche sulla colonizzazione greca nella regione del Bosforo, che l’Autore porta avanti, con interessi di respiro storico-archeologico ed epigrafico-letterario, ponendosi come interlocutore di una consolidata tradizione di studi di matrice europea orientale. Il contributo intende analizzare il ruolo di due divinità centrali del Bosforo, Parthenos e Afrodite Urania, e l’impatto che i loro culti ebbero in termini di mediazione tra gruppi sociali di matrice greca e gruppi autoctoni, coesistenti nella regione pontica, in un arco di tempo che va dal V sec. a.C. all’epoca romana.

Il libro si compone di sei capitoli, preceduti da un’utile premessa introduttiva alla ricerca, che si sofferma in modo dettagliato sulla peculiare conformazione geomorfologica dell’aera protesa sullo stretto del Bosforo. Definendo l’aspetto della regione an extraordinary phenomenon (p. 2), l’Autore pone in risalto la presenza di aree acquitrinose e di rilievi che fungono da confini naturali per i gruppi che la abitano, e la particolare posizione dello stretto di mare, che divide il regno in due blocchi antistanti – le attuali Crimea e penisola di Taman’ – e legati rispettivamente ai culti delle due divinità trattate. Questi, i due poli religiosi e geografici attorno ai quali si snoda il contenuto dei capitoli di un volume che, complessivamente, non perde mai di vista la fondamentale interazione fra territorio, componenti sociali e dimensione religiosa. Leia Mais

Stranieri. Figure dell’altro nella Grecia antica | Andrea Cozzo

Sei anni dopo la pubblicazione di Stranieri. Figure dell’altro nella Grecia antica, Andrea Cozzo pubblica una nuova edizione del suo lavoro di indagine sul tema dello straniero nell’area di civiltà greca, rinnovando così il suo contributo a una tematica particolarmente feconda delle scienze dell’antichità su cui ha avuto modo di offrire ulteriori riflessioni anche nel successivo Nel mezzo. Microfisica della mediazione nel mondo greco antico (Pisa 2014) e nel più recente Riso e sorriso. E altri saggi sulla nonviolenza nella Grecia arcaica (Sesto San Giovanni 2018).

Nel volume recensito l’Autore si propone di esplorare attraverso un’analisi sistematica delle fonti in quali modi si declinasse il rapporto tra Noi e gli Altri (per utilizzare le categorie di indagine di cui si serve egli stesso) entro l’area di civiltà greca, ma anche in quei contesti di confine e di convivenza fra gruppi sociali inscrivibili entro le due categorie appena citate, entrando così nel merito di «realtà politiche e culture dell’identità» (p. 8). Nel fare ciò viene coperto un arco temporale che da Omero arriva fino al IV sec. d.C., e quindi al periodo di incontro e scontro tra la tradizione pagana greco-romana e quella dei Padri della Chiesa; quest’ultimo tema è ulteriormente approfondito in un paragrafo pubblicato nella nuova edizione del volume (4.7. Come pensare le credenze religiose degli Altri? pp. 145-56). Leia Mais

Eudemo | Aristóteles

Hacer una contribución dentro del ámbito de la historia de la filosofía no es una tarea fácil. Por ello, cabe destacar la labor realizada por Benjamín Ugalde en la edición de los fragmentos y testimonios del diálogo Eudemo de Aristóteles. Este libro, que recopila y comenta sistemáticamente los fragmentos del –supuestamente– joven Aristóteles sobre el alma, se nos ofrece como ejemplo de que aún se le pueden sumar importantes contribuciones a la producción de textos en el ámbito de la historia de la filosofía.

En su introducción (pp. 14-15; 25-28), Ugalde aborda la siguiente cuestión: ¿Qué aporte tiene para la comprensión del pensamiento sistemático de Aristóteles la consideración de un texto fragmentario como el Eudemo? Nos atreveríamos a responder que la teoría evolutiva del pensamiento del filósofo encuentra aquí un punto a su favor y nos recuerda que el pensamiento de los filósofos puede ser influenciado por sus maestros, cambiar y devenir a una posición propia. En este contexto, el aspecto más notable corresponde a lo que oportunamente destaca Ugalde (p. 28) sobre el tránsito que habría en el pensamiento de Aristóteles en relación al estatus ontológico del alma, ya que en el Eudemo la concebiría como una cierta idea (εἶδός τι), mientras que en el De Anima como una forma de algo (εἶδός τινος). Leia Mais

História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides | Martinho T. M. Soares

Em sua tese de doutoramento na Universidade de Coimbra, Portugal, Martinho Soares aborda uma lacuna relevante na história da teoria contemporânea da historiografia: o papel do paradigma historiográfico de Tucídides nas reflexões do filósofo Paul Ricoeur; o primeiro uma referência clássica que resiste pertinente e atual há milênios, o segundo talvez quem melhor sintetizou a polêmica sobre a relação entre histórica e ficção ao longo do séc. XX. O objetivo é em si problemático: Soares está ciente que Ricoeur cita Tucídides apenas em notas, não dedica nem uma página para análise específica de sua obra, e não apresenta indícios de conhece-la a fundo, para além de alguns de seus comentaristas modernos mais ilustres (SOARES, 2014, p.23). No entanto, Tucídides é um marco inaugural, exercendo inegável influência em intelectuais com quem Ricoeur dialoga, principalmente historiadores e teóricos modernos que o viam como paradigma de historiografia antiga. Se o filósofo moderno foi a pedra angular nos intensos debates do séc. XX sobre história e ficção, os estudos sobre a fortuna crítica da obra História da Guerra do Peloponeso extrapolam o próprio ambiente acadêmico, como demonstram os constantes apelos às lições tucideanas em situações geopolíticas contemporâneas2. Para cumprir tal tarefa Soares divide seu livro em duas partes: a primeira, mais longa, dedica-se exclusivamente à Ricoeur; a segunda aborda Tucídides, mas seguindo uma estrutura organizacional estabelecida com base na leitura da obra ricoeuriana.

A primeira parte é a própria sistematização da contribuição do filósofo francês que, nas palavras de Soares (2014, p.18), serviu de “pretexto para uma compilação, inédita em Portugal, de teorias (e pensadores), ora complementares ora antagônicos, sobre história e ficção”. Em quatro capítulos, Soares refaz o longo percurso da contribuição ricoeuriana: começa em Histoire et Vérité (1964) no capítulo I, passando pelos três volumes de Temps et Récit (1983- 1985) nos capítulo II e III, e finalmente se concatena em La mémoire, l’histoire, l’oubli (2000) no último capítulo desta primeira parte do livro de Soares.

No capítulo I são abordadas as primeiras reflexões de Ricoeur sobre objetividade e subjetividade na interpretação histórica, que desembocam no capítulo II sobre a dialética entre explicação e compreensão histórica. Este segundo capítulo refaz o percurso duplo de Ricoeur que perpassa, de um lado, o eclipse da narrativa histórica, o qual envolve tanto a historiografia francesa dos Annales quanto o modelo nomológico de língua inglesa; e de outro lado, as teses narrativistas que, oriundas da filosofia analítica e da crítica literária, focam no papel da narrativa na historiografia, cujos nomes mais conhecidos são Hayden White e Paul Veyne.

A concepção narrativista, que pode ser simplificada na máxima “narrar já é explicar”, torna opaca a fronteira entre história e ficção, o que certamente serve de gatilho para a maior parte das reflexões de Paul Ricoeur. Contra ambas tendências – rejeitar a narrativa histórica em prol de seu caráter científico ou ofuscar seu caráter veritativo por conta da sua dimensão narrativa – Ricoeur interpôs sua dialética sobre o papel da compreensão narrativa à explicação histórica, restaurando a função da ficção na configuração narrativa histórica. O saber histórico procede da compreensão narrativa, resguardando seu caráter investigativo alicerçado na interpretação dos traços do passado, prática na qual a intenção do historiador não deixa de ter sua marca subjetiva, sem negar seu caráter epistêmico (SOARES, 2014, p.53, 76). Assim, Soares revisita as teses de Ricoeur de forma a sedimentar os instrumentos de análise com o qual abordará a obra tucideana.

Se a história precisa de narrativa para ser compreendida, a última não deixa de definirse pela sua relação com o tempo. O capítulo III de Soares concentra-se no itinerário de Ricoeur sobre o tempo desde a dimensão fenomenológica (tempo vivido) até histórica (tempo histórico e narrado). Soares sintetiza ideias já conhecidas de Ricoeur sobre a distentio animi de Agostinho de Hipona, a teoria das três mimeses e as abordagens da ficção do século XX sobre as aporias do tempo vivido, de forma a desembocar no axioma de que o tempo se torna humano na medida em que é articulado de modo narrativo. Deste longo percurso, Soares retém a narrativa enquanto tríplice mimese da prefiguração ética, configuração narrativa e refiguração receptiva (ou leitura). Tal tríplice noção de narrativa organiza a leitura que Soares faz da História da Guerra do Peloponeso na segunda parte da obra. Na fase final da vida intelectual de Ricoeur, o prestígio da narrativa havia se restabelecido na historiografia francesa, devido a fatores que vão do ressurgimento da história política, e perpassa a micro-história e principalmente a predominância do conceito de representação histórica. Daí que Soares concentre-se no capítulo IV sobre os conceitos de representação e representância, especialmente se a narrativa histórica e seu encadeamento do tempo resolve (ou não) as aporias da representação mnemônica enquanto presença do ausente. A questão envolve debates éticos intensos sobre a possibilidade de representação do holocausto judeu e o risco do fortalecimento do negacionismo histórico, com as teses narrativistas que ofuscam a fronteira entre histórica e ficção. Até aqui, pode-se parabenizar a leitura industriosa que Soares faz de Paul Ricoeur, mas não sem notar o longo percurso percorrido até finalmente concatenar tais reflexões com o texto tucideano.

A segunda parte volta-se para Tucídides em dois capítulos. O primeiro se preocupa com a noção de história e verdade na obra, revisitando discussões já consagradas sobre a noção de “ktema es aei” (tesouro para sempre) e sobre o procedimento de composição dos discursos na História da Guerra do Peloponeso. O segundo capítulo se desdobra na aplicação dos três estádios ricoeurianos da operação historiográfica na obra: a fase documental (prefiguração compreendida como testemunhos, indícios e prova documental), a fase narrativa, (explicaçãocompreensão e configuração narrativa), e a fase da refiguração ou leitura, que concentra-se nas estratégias retórico-persuasivos e seus efeitos de “fazer ver” (SOARES, 2014, p.405-406). Em contraste com Heródoto, Tucídides é lacônico e reticente ao expor suas fontes e procedimentos de investigação, logo Soares admite e enfatiza as dificuldades em abordar a metodologia histórica da obra, bem como sua inadequação para os parâmetros modernos (2014, p.502-504, 545-549). A leitura de Soares, portanto, desenvolve-se melhor quando aborda as estratégias persuasivas do autor ateniense, de forma a encontrar nelas ecos das teses de Ricoeur.

O estudo é industrioso e pertinente, mas desmembrar a análise em duas partes acaba por ser simultaneamente uma qualidade e um defeito da pesquisa. Sua exposição sobre Ricoeur revela excelência e domínio das discussões, por outro lado, alonga-se demasiadamente divorciada do seu segundo objeto de pesquisa. Isto significa que não teremos notícias de Tucídides pelas 360 páginas e 4 capítulos que compõem a primeira parte da obra. Da segunda parte, somente o segundo capítulo propõe interpelação direta entre Ricoeur e Tucídides, ou seja, de um volume de 600 páginas o leitor pode esperar tal confronto apenas na última centena, e ainda assim de forma tímida, ao que se segue uma conclusão extremamente sucinta.

No entanto, as sendas abertas pela pesquisa de Soares são profícuas, por exemplo, na abordagem do método de composição de discursos de Tucídides (I. 22.1-2) à luz das teses ricoeurianas. Desde Heródoto a dramatização (no sentido de “representação da ação”) de discursos e debates oratórios são conectores de acontecimentos que conferem sentido a estes tanto progressivamente (antecipam fatos ainda não narrados) como regressivamente (julgam e explicam fatos já narrados), assim o historiador revela ao leitor as disposições dos agentes históricos frente a uma ação inacabada, bem como expectativas frustradas ou não pelos acontecimentos desenrolados (SOARES, 2014, p.454-455). Ainda que construção subjetiva, os discursos ligam-se à interpretação dos acontecimentos, na medida em que funcionam como narração-explicação do sucesso ou insucesso das ações (SOARES, 2014, p.479). Tucídides na sua escrita não procura a descrição asséptica de acontecimentos, mas enreda-os narrativamente. Tal procedimento revela ressonância evidente com a tríplice mimese ricoeriana, na medida em que exige do historiador uma prefiguração ética na avaliação e seleção das fontes e traços do passado, bem como uma configuração narrativa na forma de ação (discurso e acontecimento), e por fim, subscreve a intenção deste em elementos persuasivos que visam alcançar a refiguração do leitor capaz de reconhecer o que foi ali prefigurado e configurado.

Soares desdobra-se com competência na apresentação destas questões, no entanto, lidar simultaneamente com a tradição milenar da hermenêutica tucideana e a profundidade das discussões de Ricoeur é, de fato, muito trabalhoso, e a pertinência destas fontes acaba por ofuscar a marca autoral de Soares. O diálogo entre duas referências fundamentais para a historiografia, no qual consiste a originalidade da obra, acaba ficando frágil na separação rígida das duas partes do livro.

Soares ressalta especialmente o papel da narrativa como uma forma da história “cativar o público”, “se dar a ler” (2014, p.30), em suma, “uma forma estilizada de apresentar a verdade”, sendo esta a “tese maior” que pretende expor (2014, p.483), e defende enfaticamente a fronteira entre história e ficção, e talvez por isso privilegia a função ornamental e persuasiva da narrativa. Afirmar isto parece subestimar o papel da narrativa na configuração do tempo histórico: as reflexões de Ricoeur e a metodologia de Tucídides apontam que a ficcionalização dos fatos está para além da persuasão e do elemento imagético (ou cor local) da história: ela é a forma privilegiada de expressar o pensamento e a compreensão do historiador sobre as ações humanas no tempo, resolvendo poeticamente o embaraço da distentio animi agostiniana e a própria noção aristotélica de história enquanto narrativa episódica, sem vínculo com o provável e o necessário. Sua discussão do confronto entre a Poética aristotélica com a obra de Tucídides (2014: p.552-565) faz excelente balanço bibliográfico da questão, mas não responde se Tucídides almejava configurar um tempo histórico nos moldes ricoeurianos a partir das suas generalizações, ou se ele de fato tentava se aproximar do cronista imaginado por Aristóteles que narra indiscriminadamente o que “Alcibíades fez ou sofreu”. Soares opta por descrever Tucídides como parte poeta e parte historiador (2014, p.561-565), e por fazer eco às teses que Aristóteles não reconhecia nele um historiador, mas sim um pensador político (2014, p.552- 558).

Esta indefinição, no entanto, tem implicações. Por exemplo, Soares afirma, com base em A. W. Gomme (1954), que os contrastes dramáticos de Tucídides residem nos próprios acontecimentos que “se sucedem no tempo, sem nada de relevante entre eles” (SOARES, 2014, p.492), o que faz parecer que o historiador apenas revela os acontecimentos sem precisar configurá-los narrativamente. Isto deixa em segundo plano a configuração narrativa que Ricoeur extrai da Poética de Aristóteles (“um por causa do outro” ao invés de “um depois do outro”) e faz parecer que Tucídides seguia uma sucessão natural dos eventos, e nãos os compôs e enredou numa síntese do heterogêneo. Tucídides poderia ter apresentado outros eventos menores entre a sucessão, poderia ter-se dado às digressões tipicamente herodoteanas, mas é na disposição das ações que reside o efeito dramático alcançado, que não se pode atribuir aos próprios acontecimentos sem subestimar o papel da configuração narrativa, que Soares claramente não ignora de todo, mas ao longo do texto dá mais ênfase ao seu papel ornamental e persuasivo, especialmente na sua discussão sobre o “fazer ver” o passado, sua exposição sobre os conceitos de enargeia e ekphrasis (2014, p.582-595).

Em conclusão, Soares faz justíssima representação das teses ricoeurianas e das principais discussões em torno da obra de Tucídides, mas na hora de enredá-las em conjunto na sua própria configuração narrativa, oferece ao leitor uma interpretação que, por vezes, subestima a complexidade da configuração narrativa histórica enquanto síntese do heterogêneo e ordenador do tempo humano e histórico, ao menos no que diz respeito na sua interpelação das teses ricoerianas com o texto tucideano. Esta característica não apaga o brilho das conquistas de Soares, pois o leitor da sua obra pode esperar excelente abordagem da contribuição de Ricoeur sobre história e ficção, bem como uma expedição competente aos debates em torno da obra tucideana, cuja sombra projetou-se desde as teorias positivistas e metódicas da história do séc. XIX até as teses narrativistas que agitaram o debate historiográfico no séc. XX.

Nota

2. Para um estudo de dois casos relevantes nos quais o paradigma tucidideano foi invocado em contextos geopolíticos contemporâneos ver PIRES, Francisco Murari. “O General Marshall em Princeton, Tucídides na Guerra Fria”. História da Historiografia n. 2, 2009, pp. 101-115.

Referências

GOMME, A. W. The Greek atitude to poetry and history. Berkeley: University of California Press: 1954

RICOEUR, Paul. Histoire et Vérité. Paris: Seuil, 1964 (2003).

______. Temps et Récit – Tome I. Paris: Seuil, 1983 (2005).

______. Temps et Récit – Tome II. Paris: Seuil, 1984 (2005).

______. Temps et Récit – Tome III. Paris: Seuil, 1985 (2005).

______. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris, Seuil, 2009.

SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Fundação Eng. António de Almeida: Porto, 2014, 638 pp.

Denis Renan Correa – Professor Adjunto II na área de História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e estudante de doutoramento da Universidade de Coimbra.


SOARES, Martinho T. M. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2014. Resenha de: CORREA, Denis Renan. História e Ficção em Paul Ricoeur e Tucídides por Martinho Soares. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.24, p.388-393, ago., 2019.Acessar publicação original [DR]

Heráclito. ΛΟΓΟΣ ΠΕΡΙ ΤΟΥ ΠΑΝΤΟΣ. Discurso acerca del todo | Sebastián Aguilera Quiroz

El libro de Sebastián Aguilera, titulado Discurso acerca del todo ΛΟΓΟΣ ΠΕΡΙ ΤΟΥ ΠΑΝΤΟΣ, nos presenta las traducciones de los fragmentos de Heráclito, los que comprenden un total de 43 páginas bilingüe, precedidos de una nota acerca de la traducción. Siguen a estos su Ensayo bajo el título de HERÁCLITO Y EL DESPERTAR DE LA SABIDURÍA, título muy de bajo perfil –podríamos decir- y engañador, pues es de una extensión y profundidad temática mucho más significativa.

En este Ensayo el autor nos va a hablar, a través de unas observaciones preliminares, de la desafiante y controversial figura de Heráclito, pero sobre todo de la tesis que sustenta el libro, esto es, de que Heráclito habría escrito un libro y cuyo tema central habría sido el del lógos. Se trata de una palabra central en el pensamiento heleno cuyo campo semántico es de una amplitud que difícilmente podríamos dar cuenta aquí. No obstante, cabe destacar que en el pensamiento de Heráclito lo que abarca los diferentes ámbitos de la realidad, el físico como el humano escuetamente hablando, es el lógos, por tanto, según Aguilera, este es el elemento fundamental de la realidad, del todo -podríamos añadir nosotros- que está en los fundamentos de todo devenir, incluyendo nuestro devenir humano, naturalmente. Leia Mais

Recepción histórica y política de las Historias de Tucídides. Algunos casos en lengua hispana | Paulo Dnoso Johnson

El libro de Paulo Donoso Johnson podría definirse, en primer término, como un estudio monográfico sobre recepción clásica de una de las obras más representativas de la historiografía griega: la Historia de la Guerra del Peloponeso de Tucídides. Pero esta misma condición hace de este texto un estudio mucho más complejo, que puede ser leído, en parte, como una historia de la lectura, una historia de la traducción, la historia de una historia y el relato cuasi-biográfico de una comunidad de lectores y de autores (o de lectores-autores), cuyo vínculo común ha sido y es, más allá de los límites cronológicos y geográficos, la pasión por el mundo griego antiguo y, en particular, por la obra de Tucídides.

El libro se inicia con un prólogo de Raúl Buono-Core, quien define la originalidad de la cultura griega por su carácter heroico y político, condiciones que precisamente dan razón de la trascendencia de una obra como la de Tucídides. Luego, el estudio en sí se estructura por una introducción y tres capítulos, ordenados según las etapas de traducción y recepción de la obra de Tucídides al español, que son objeto de análisis: una traducción aragonesa del siglo XIV; una traducción castellana del siglo XVI; y las lecturas y traducciones que se han realizado en Chile desde época colonial hasta el presente. Leia Mais

Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro – MARX (C)

MARX, Karl. Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2018. Resenha de: RECH, Moisés João; TAUFER, Felipe. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Karl Marx, nascido em 5 de maio de 1818, em Trier, província alemã do Reno, estudou Direito na Universidade de Bonn e, em 1841, doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Jena. Sua tese de doutoramento corrobora essa sua afinidade com o estudo filosófico, embora revele um Marx muito diferente do militante comunista. Marx escreve sua tese sob uma Prússia arcaica, com o objetivo de assumir o cargo de professor na Universidade de Berlim, que foi frustrado em razão da situação política prussiana.

Sua tese de doutorado, Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, ganhou sua tradução para o português através da editora Boitempo. Com tradução direta do alemão, o texto conserva a afinidade com o original e proporciona acesso a mais um escrito para os leitores de língua portuguesa daquele que foi um dos principais intelectuais e revolucionários do século XIX.

A tese não é um corpo literário único em razão de ter sido encontrada incompleta, mas, a despeito da incompletude, ela revela um antigo projeto de Marx de resgatar as filosofias epicuristas, estoicas e céticas, de destacá-las como chave para compreender a filosofia grega em geral, haja vista que eram tidas como resquícios pós-aristotélicos “sem importância” para a história da filosofia.

A tese é dividida em duas partes: a primeira, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos gerais”, conta com cinco capítulos. Porém, o Capítulo IV apresenta a exposição de notas dispersas de Marx, e o Capítulo V, que se destinaria à síntese da primeira parte, foi totalmente extraviado. Esse ponto é uma certa interrupção no manuscrito. A segunda parte, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, apresenta cinco capítulos completos. O achado incompleto ainda conta com um apêndice sobre a polêmica entre Plutarco e Epicuro.

No primeiro capítulo da primeira parte, Marx estabelece seu objeto de estudo. “Parece suceder à filosofia grega o que não deve suceder a uma boa tragédia: ter um fim insosso”. (p. 29). Com essas palavras, Marx busca indicar que Aristóteles, para certos intérpretes da história da filosofia, marcou o fim da filosofia grega, assim, “epicuristas, estoicos e céticos são encarados como um suplemento quase inconveniente, totalmente desproporcional a suas formidáveis premissas”. (p. 29). Dessa forma, mediante questionamentos à tradição filosófica e à concepção hegeliana apresentada em sua Introdução à história da filosofia, Marx ressalta a importância desses sistemas filosóficos sob o argumento de que são esses mesmos sistemas “arquétipos do espírito romano, a forma em que a Grécia migrou para Roma”. (p. 30). Em outras palavras, se os sistemas pré-socráticos “são mais significativos e mais interessantes pelo conteúdo” (p.31), os pós-aristotélicos “o são pela forma subjetiva” (p. 31), que consiste no suporte espiritual dos sistemas filosóficos, quase esquecido por suas “determinações metafísicas”. (p. 31).

Trata-se, para Marx, de demonstrar como a diferença entre os sistemas de Demócrito e de Epicuro deve ocupar um lugar maior na discussão metafísica da história da filosofia. Por razões de economia textual, reserva-se para uma análise mais detalhada a exposição total desses dois sistemas e a relação com a filosofia grega em geral. Com efeito, a especificidade da proposta de Marx é somente a relação entre a o núcleo da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, e, por essa razão, o autor denuncia o preconceito arraigado à identificação da física democrítica com a epicurista.

No segundo capítulo da primeira parte, “Pareceres sobre a relação entre a física de Demócrito e a de Epicuro”, Marx cita comentários de  Posidônio, Nicolau e Sólon a respeito da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro. Ainda apresenta como Cícero, Plutarco e Leibniz criticam a filosofia epicurista em benefício da democrítica. Assim, finaliza o capítulo mostrando que todos esses estudantes de filosofia de natureza antiga “concordam em que Epicuro tomou sua física emprestada de Demócrito”. (p. 36).

Na sequência, em “Dificuldades quanto à identidade da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro”, encontra-se um esboço de contraste entre as duas filosofias. Trata-se de um capítulo de maior importância dentro da economia discursiva da obra em razão de ser e embasamento para o argumento central de Marx. A primeira divergência salta à vista na questão da “verdade e convicção do saber humano”. (p. 37, grifo no original). Marx contrapõe o ceticismo de Demócrito desenvolvido na concepção de como “se determina a relação entre o átomo e o mundo que se manifesta aos sentidos” (p. 38, grifo no original) ao dogmatismo de Epicuro. Tudo se passa como se Demócrito assumisse que a aparência do mundo sensível é subjetiva, pois os verdadeiros princípios são o átomo, e o vácuo e tudo o mais é opinião. (p. 38). O fato é que a dogmática de Epicuro toma o mundo como manifestação objetiva. Afinal, nada pode contradizer as sensações. (p. 40).

A segunda divergência: “a relação entre a ideia e ser, o relacionamento de ambos”. (p. 46, grifo no original). Para Marx Demócrito entende que a “a necessidade se manifesta na natureza finita como necessidade relativa, como determinismo”. (p. 51, grifo no original). A contraposição, dessa vez, reside no fato de Epicuro afirmar que “acaso é uma realidade que só tem valor de possibilidade”. (p. 52). O acaso, como uma possibilidade abstrata, é o que torna os fenômenos físicos possíveis, e não, necessários. Admitido todo o possível, como possível tem-se que “o acaso do ser apenas é traduzido em acaso do pensar”. (p. 53, grifo no original). Eis outra dificuldade para quem visa a identificar as duas filosofias da natureza. Aqui mora a tal interrupção no manuscrito.

Na segunda parte, “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, Marx diferencia as características do átomo no vácuo em Epicuro e Demócrito. Para o primeiro, há uma tríplice característica: a) queda em linha reta; b) desvio em linha reta; e c) repulsão dos muitos átomos. Para o segundo não há a possibilidade de um “desvio em linha reta”. Essa característica atribuída por Epicuro ao átomo é determinante na diferenciação de sua física em relação à de Demócrito.

A “declinação do átomo” – que Marx designará como a “alma do átomo” – é a particularidade abstrata que possibilita a autonomia do movimento; a possibilidade de liberdade e contingência – ao contrário da necessidade de Demócrito. (p. 78-79). Enquanto Demócrito atribui ao átomo um “princípio espiritual” (p. 78), Epicuro desenvolve a noção de declinação – de desvio em linha reta como possibilidade da contingência e da liberdade na física. “A particularidade abstrata só pode operar seu conceito […] abstraindo da existência com que ela se depara”. (p. 79, grifo do autor).

De fato, o desvio é uma libertação de sua existência relativa da linha reta. Marx destaca que “a contradição entre existência e essência, entre matéria e forma, que reside no conceito de átomo, está posta no próprio átomo individual, quando este é dotado de qualidades […] o átomo é estranhado no seu conceito”. (p. 101). Outra maneira de dizer que a natureza contraditória do conceito de átomo deriva das qualidades – tamanho, forma e peso – adotadas pela posição de Epicuro, em contraposição à Demócrito que ignora tal contradição. Para Epicuro é “por meio das qualidades, [que] o átomo adquire existência que contradiz seu conceito, [e] é posto como existência exteriorizada, diferenciada de sua essência”. (p. 86, grifo do autor). Essa diferenciação faz a contradição no conceito de átomo alcançar “sua mais gritante realização”. (p. 101).

No capítulo sobre o tempo, há uma argumentação a respeito da natureza do tempo. Em Demócrito o tempo é irrelevante para o átomo. Não tem função em seu sistema. Mas, quando a consciência filosófica questiona se a substância (átomos) é temporal invertem-se os termos: o tempo torna-se algo substancial, i.e., suprime seu conceito. (p. 103-104).

Na contramão, para Epicuro o tempo está ausente do mundo da essência, assim “torna-se a forma absoluta da manifestação”. (p. 104, grifo do autor). Marx destaca que o tempo é determinado como accidens do accidens, “é a mudança enquanto mudança refletida em si mesma, variação como variação”. (p. 104). Significa dizer que o tempo não existe em si, mas enquanto uma decorrência (acidente) do movimento e do repouso, ele é a “mutabilidade do mundo sensível agora como mutabilidade, sua variação como variação, essa reflexão da manifestação em si mesma, formada pelo conceito de tempo, tem sua existência isolada na sensualidade consciente” (p. 105), a sensualidade do ser humano é “o tempo encarnado, a reflexão existente do mundo dos sentidos em si mesma”. (p. 105, grifo do autor). Marx deixa claro que para Epicuro o tempo, como accidens do accidens, é  determinado pelos acidentes dos corpos percebidos pelos sentidos, em que “a percepção dos sentidos refletida em si é, aqui, portanto, a fonte do tempo e o próprio tempo” (p. 106); pois a reflexão dos acidentes na percepção dos sentidos humanos e sua reflexão em si mesmos são a mesma coisa. (p.107).

Em “Os meteoros”, há uma crítica às concepções astronômicas de Demócrito sobre os corpos celestes, pois “não há como extrair delas alguma coisa filosoficamente interessante”. (p. 111). A teoria dos meteoros de Epicuro demonstra ser mais profícua para debates filosóficos contemporâneos. Em oposição a todo o pensamento filosófico grego – especialmente de Aristóteles –, que estabelecia uma ligação entre os corpos celestes e os deuses e suas qualidades, Epicuro afirma que é uma tolice humana atribuir a Atlas a sustentação do céu, ou seja, é uma tolice humana divinizar os corpos celestes. (p. 115). Além disso, a teoria dos meteoros de Epicuro tem uma forte vinculação ética, o que não é raro para o pensamento grego que estabelecia uma ligação entre cosmo e polis. Assim, Marx afirma que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115).

Para Epicuro a teoria dos meteoros carrega a possibilidade, por outros meios, de fundamentar uma ética. Sendo assim, Marx defende que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115). Dessa forma, salta à vista uma tese de fundo: ao estabelecer as diferenças entre Demócrito e Epicuro, Marx encontra a autoconsciência da filosofia epicurista. (p.

31). Se para Epicuro a contradição entre forma e matéria, entre essência e aparência é constitutiva da possibilidade de declinação do átomo e, por consequência, da liberdade, logo se percebe que, nos corpos celestes, “foram resolvidas todas as antinomias entre forma e matéria, entre conceito e existência, que constituíra o desenvolvimento do átomo” (p. 121); de tal forma que os meteoros “declinam da linha reta, formam um sistema de repulsão e atração”. (p. 122).

Os corpos celestes são os átomos que se tornam reais, uma vez que a particularidade foi interiorizada, e a contradição, cessada. Contudo, no momento da reconciliação entre forma e matéria, a autoconsciência da “forma abstrata” se “proclama como o verdadeiro princípio, hostilizando a natureza que se tornou autônoma”. (p. 123). Os meteoros são a própria universalidade na qual a natureza se torna autônoma. Em contrapartida, sua constituição pela “forma abstrata” origina a particularidade abstrata que é a autoconsciência em sua ataraxia. (p. 124). “A absolutidade e a liberdade da autoconsciência constituem o princípio da filosofia epicurista”. (p. 124).

Ao final da obra, há um apêndice com o título “Crítica à polêmica de Plutarco contra a teologia de Epicuro” do qual restaram apenas fragmentos do texto original. Nesse apêndice, Marx faz remição direta a textos de Kant e Schelling, uma das poucas vezes que cita diretamente textos desses dois filósofos do idealismo alemão, ao tratar sobre a prova ontológica de Deus.

O texto revela um jovem em sua formação intelectual, com preocupações muito distantes das que o tomarão, na maturidade; mas revela igualmente nova dimensão de seu pensamento, que auxilia na reconstituição e reapropriação de seu legado intelectual: um materialismo que se abre à liberdade. A recente publicação em português da tese de doutoramento de Marx vem auxiliar os pesquisadores e estudiosos marxianos, além de contribuir, fundamentalmente, com o aprofundamento de suas ideias e de sua figura no cenário nacional.

Moisés João Rech – Docente do curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. Integrante do Observatório do Direito da mesma instituição. E-mail: mjrech7@gmail.com

Felipe Taufer – Mestre em Filosofia e Bacharel em Administração pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. E-mail: fe.taufer@hotmail.com Orcid ID: http://orcid.org/0000-0002-4137-9999

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La démocratie contre les experts: les esclaves publics en Grèce ancienne – ISMARD (Tempo)

ISMARD, Paulin. La démocratie contre les experts: les esclaves publics en Grèce ancienne. Paris: Seuil: 2015. 273 p.p. Resenha de: TRABULSI, José Antonio Dabdab. Experts e democracia: uma convivência impossível? Tempo v.23 no.2 Niterói mai./ago. 2017.

Paulin Ismard, maître de conférences em história grega antiga na Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne e nome emergente no campo dos estudos sobre a Grécia antiga, publica um novo livro muito interessante. Desde a apresentação e a contracapa, o autor não deixa pairar qualquer dúvida sobre sua vontade de propor um livro de intervenção cidadã:

Suponhamos por um instante que o diretor do Banco da França, o chefe da polícia nacional e o chefe do Arquivo público sejam escravos, propriedades do povo francês a título coletivo. Imaginemos, em suma, uma República na qual alguns dos maiores dirigentes do Estado fossem escravos. Eles eram arquivistas das leis, policiais, controladores da moeda: todos escravos, apesar de se beneficiarem de uma condição privilegiada, e foram os primeiros funcionários públicos das cidades gregas […]. Que a democracia tenha se construído em sua origem contra a figura do expert que governa, mas também segundo uma concepção do Estado que nos é radicalmente estrangeira, eis o que deveria nos intrigar.

Vemos como o autor atiça desde o início a atenção do leitor, seja ele helenista, seja ele simples cidadão atento aos assuntos coletivos.

Na Introdução (p. 13-30), ele propõe colocar seu estudo no contexto de renovação dos trabalhos sobre a escravidão, e os escravos públicos gregos como um exemplo análogo a outros ao longo da história ocidental, mas também africana ou asiática. Faz uma revisão bibliográfica e observa, com razão, que apenas um livro (Jacob, Oscar. Les esclaves publics à Athènes. Liège: Champion, 1928), já bem antigo e puramente descritivo, existe sobre o tema dos escravos públicos na Grécia antiga. Afirma:

Algumas das tarefas confiadas aos dêmosioi requeriam de facto competências excepcionais. Confiando-as a escravos, a cidade queria colocar fora do campo político alguns saberes especializados, impedindo que seu exercício pudesse vir a legitimar a detenção de um poder. A expertise dos dêmosioi esclarece assim com uma nova luz a questão espinhosa – e tão contemporânea – do status político dos saberes no seio da cidade democrática. (p. 30)

Observemos de passagem sua estimativa do número de escravos públicos na Atenas clássica, entre 1000 e 2000, o que parecerá a certos analistas um pouco excessivo, sobretudo porque ele tende a privilegiar na argumentação o limite mais alto desse intervalo, o que tem implicações importantes para seu ponto de vista, pois ele pensa quase sempre (ou pelo menos deixa o leitor pensar) que as numerosas magistraturas propriamente políticas ficavam fora do campo das competências, quaisquer que fossem. Outra vez, muitos historiadores do período não estarão de acordo com ele. Isso não invalida a constatação de que o livro se apresenta como muito atrativo, com uma abordagem renovada e muito atual.

No Capítulo I (“Gênese”, p. 31-61), Ismard procede a uma arqueologia do dêmosios desde o início do arcaísmo, a partir do dêmiourgos homérico, das figuras de Dolon, de Dédalo, de Spensithios, o Escriba, na Creta do século VI, e de Patrias, na Élis do início do século V. Considera também o papel das tiranias arcaicas na gênese de um aparelho estatal no qual o escravo público encontrará, mais tarde, seu lugar. Tudo resultando, na época clássica, em uma nova configuração:

Abrindo o acesso à participação política ao maior número de cidadãos, os regimes democráticos instauraram enfim novas relações entre saber e poder. A competência herdada de uma longa familiaridade com o poder era doravante imprópria para legitimar a autoridade política. Sem dúvida, em certos campos, a competência permanecia indispensável, mas os valores do regime democrático proibiam que tais funções fossem confiadas a uma categoria restrita de cidadãos. Os atenienses preferiram então, na maior parte das vezes, atribuí-las a escravos, o que resultava em suma em relegar essa expertise para “fora do político”. (p. 60)

Temos aqui um capítulo muito bom, realmente original.

No Capítulo II (“Servidores da cidade”, p. 63-94), o autor procede a um levantamento sistemático das atividades dos escravos públicos na Atenas clássica, mas também na época helenística, em várias cidades, o que abre o campo de observação de forma muito enriquecedora. Ele explica sucessivamente o papel dos dêmosioi na assembleia, no conselho, diante dos tribunais e no ginásio. Seu papel é muito importante nas escrituras públicas, na gestão dos arquivos oficiais, no estabelecimento dos inventários de bens, nas contas dos canteiros de obras ou dos santuários religiosos em Atenas; eles garantiam a autenticidade das moedas e cuidavam da regularidade dos pesos e das medidas. Muitas vezes, em Atenas e em outros locais, eles encarnavam a autoridade pública em sua dimensão repressiva, com um papel de polícia e de manutenção da ordem, auxiliavam os magistrados quando das detenções e cuidavam da prisão da cidade. Em Atenas, os “cítios” (nem sempre provenientes desse povo) tinham papel-chave no funcionamento das instituições (assembleia, conselho, festas, mercado etc.). Outros, menos especializados, trabalhavam em tarefas de interesse coletivo, nas oficinas e canteiros diversos. Por vezes, puderam até ser encarregados de alguns sacerdócios. Em sua maioria comprados nos mercados de escravos, eram numerosos em Atenas, sem que possamos ter um número preciso (ele insiste nos valores entre mil e 2 mil, p. 85). Segundo o autor:

Assegurar com competência o controle da comunidade cívica sobre um dirigente; efetuar no lugar de um cidadão uma tarefa infamante; fornecer força de trabalho indispensável aos grandes canteiros de obras cívicas: não faltam razões para explicar o interesse das cidades gregas em ter a seu serviço escravos. Algumas dessas tarefas conferiam de facto aos dêmosioi um certo poder sobre os membros da comunidade cívica. Entretanto, como afirmava Sócrates o Jovem, a função deles não participava do domínio da arché. Os dêmosioi não eram magistrados da cidade e sua atividade era entendida como estranha ao campo político. (p. 88-89)

Muitos intérpretes viram nos dêmosioi as primícias de um “serviço público” na cidade clássica.

O Capítulo III (“Estranhos escravos”, p. 95-130) é um dos mais importantes para o objetivo do autor e apresenta o interesse de estar “irrigado” por um comparatismo bem-feito com outras sociedades com escravos e outras sociedades escravistas (não apenas o velho sul dos Estados Unidos, o que é frequente na bibliografia, mas também os mundos árabe, otomano, africano, indiano, entre outros, o que é bem mais raro). Ele examina o corpo escravo, os privilégios dos dêmosioi que os distinguiam dos escravos-mercadoria típicos. Por exemplo, eles podiam ser proprietários de bens, e até, talvez, de escravos; beneficiavam-se de um “privilégio de parentesco” (p. 107); em pelo menos um caso bem conhecido (Pittalakos), um escravo público pôde ter acesso aos tribunais, diretamente, como um cidadão; não estavam excluídos de todas as honras públicas, o que revela a delicada questão da timè; se o próprio do escravo é estar privado dela, o caso dos dêmosioi apresenta uma exceção notável. Eles eram um “bem público” em um universo em que o Estado não era um sujeito de direito; e, portanto, seu pertencimento era mais vago, definido pela negação, pelo fato de “não pertencer” a ninguém de forma individualizada. O autor volta às teorizações de juventude de Moses Finley (p. 125-126), para reabilitar o uso da noção de status como um conjunto de direitos, privilégios, imunidades, capacidades etc.; tudo ligado à timè (com mil configurações e contornos):

Neste sentido, a sociedade ateniense não se decompõe em blocos de estatutos homogêneos, superpostos à maneira das ordens. Ela também não é uma sociedade aberta, na qual cada um pode se liberar de suas determinações estatutárias e transitar de um status a outro graças ao mérito ou à sorte. Ela se apresenta como um espaço social multidimensional, atravessado por um caleidoscópio de statusDêmosios é o nome de um deles. (p. 128)

Trata-se, é preciso observar, de uma muito rara reabilitação de Finley… Estaríamos assistindo aos primórdios de uma reviravolta historiográfica? A questão se apresenta, a tal ponto Finley foi criticado ao longo dos últimos 20 anos.

Em um capítulo que está, em certo sentido, no âmago do argumento do livro (Capítulo IV, “A ordem democrática dos saberes”, p. 131-165), o autor analisa em detalhes certo número de “casos” muito esclarecedores: a função de “verificador” das moedas, uma das funções exigindo um conhecimento técnico dos mais profundos, é confiada a dêmosioi. O caso de Eucles, escrivão e contador de santuários, realizando inventários da maior importância para a cidade; o caso de Nicomachos, o Jurista, filho de dêmosios, encarregado durante vários anos seguidos da tarefa de revisar e republicar as leis de Atenas. Tais exemplos, entre outros, mostram, segundo o autor, que

[…] a experiência ateniense encontra aqui uma das questões mais ardentes do nosso presente democrático. O status político da expertise está, com efeito, no coração do “desencanto” contemporâneo em relação à democracia representativa. Democracia e saber: os dois termos se apresentam o mais das vezes no discurso corrente sob a forma de duas exigências contraditórias. O ideal democrático de participação do maior número de pessoas nos assuntos públicos seria incompatível com a exigência de eficácia que é necessária ao governo dos Estados, coisa forçosamente complexa, e, portanto, especializada: quem não reconheceria aqui um refrão do nosso tempo, que faz da “epistocracia” dos governos o horizonte necessário de qualquer política? (p. 133)

Ismard mostra muito bem a que ponto a figura do expert governante é estranha à ideologia democrática antiga. O fato de confiar tarefas muito importantes a escravos não implica nenhum desprezo pelos conhecimentos inerentes à função, que são considerados como muito importantes. Mas a preocupação era manter certos saberes especializados fora do campo político para conservar todo o espaço para o debate político entre não especialistas, na convicção de que desse debate sairia um saber coletivo útil à cidade (p. 134-135). Foi também a razão pela qual a cidade grega privilegiou o recrutamento de seus escravos públicos muito qualificados no mercado externo, para impedir a constituição de um grupo muito hereditário que poderia controlar uma parte do poder social:

Se os escravos públicos da Atenas clássica não vieram a formar um corpo autônomo na cidade, foi também porque a ideologia democrática ateniense, estabelecendo uma barreira entre a ordem da expertise e o campo político, proibia que sua competência própria pudesse resultar no exercício de um poder. Neste sentido, a epistemologia democrática ateniense, ao relegar os saberes especializados para fora dessa nobre atividade reservada aos cidadãos, ou seja, a política, não se apresenta apenas como a defesa de um saber público fundado na prática deliberativa. Ela também tem indiretamente por função legitimar a distinção fundamental que separa o escravo do homem livre e fundar na razão a estrutura escravista da sociedade ateniense. Na Atenas clássica, a ordem democrática dos saberes é também a ordem da sociedade escravista. (p. 165)

Mais uma análise que tem no final uma “sonoridade finleyana”; lembramo-nos imediatamente da célebre expressão da marcha “de mãos dadas”, da democracia e da escravidão, formulada pelo grande historiador. Quanto a mim, se aprovo totalmente a primeira parte do argumento de Ismard, ou seja, a parte relativa à preocupação em preservar a totalidade da soberania popular colocando o conhecimento técnico sob controle político, a segunda parte do argumento me deixa relativamente cético; que as coisas tenham acontecido historicamente como ele diz, é um fato. Que a democracia antiga deva sua existência ao fato escravista, no absoluto, é outro debate, longo demais para ser levado adiante aqui.

Em um Capítulo V mais teórico (“Os mistérios do Estado grego”, p. 167-202), Ismard discute sobre os escravos públicos no quadro mais amplo do debate sobre o Estado e sua existência no mundo grego antigo:

Pois é este o sentido dessa surpreendente instituição: ao mesmo tempo em que confiava funções que atribuíam um poder de facto a escravos, as cidades manchavam essas funções com um déficit irremediável ligado ao status dos que as exerciam […]. Tornando invisíveis os que tinham o encargo de sua administração, a cidade conjurava o aparecimento de um Estado susceptível de se constituir em instância autônoma e, em certas circunstâncias, se voltar contra ela. Podemos formular isso de outra forma: na cidade clássica, o Estado nunca se encarnou de outra forma que não fosse na pura negatividade do corpo-escravo do dêmosios. (p. 176)

O autor examina, então, três casos: os últimos momentos de Sócrates na prisão; a queda de Édipo; o batismo do primeiro dos gentis. Três casos que fazem intervir a figura de um escravo público ou real.

Em sua conclusão, insiste ainda acerca desse aspecto “obscuro” da cidade antiga ao dizer que

[…] a viva luz que ainda brilha a partir das assembleias e dos teatros das cidades talvez nos cegue. A “transparência” do político grego tem, com efeito, a medida do véu de opacidade com o qual a cidade encobre o que permanece nas suas margens e que, portanto, é indispensável ao seu funcionamento. Pois à digna gestualidade das belas palavras dos cidadãos reunidos em assembleia responde, como num teatro de sombras, a cenografia muda de seres anônimos, sem identidade e sem voz. Quase escondidos nos cantos da Acrópole contando e recontando os bens de Palas Ateneia, anotando conscienciosamente as despesas dos estrategos em expedição militar, ou se agitando por todos os lados para orientar os jurados cidadãos e dirigir os espectadores nos tribunais: era preciso que todos esses homens fossem invisíveis para que pudesse se manter a ilusória transparência da comunidade cívica. (p. 205)

Ele prolonga sua análise sobre a diferença radical entre a cidade grega e os Estados modernos, falando do “primitivismo” da cidade, “condição intransponível da experiência democrática na Grécia antiga” (p. 213), em um último eco finleyano. A retração dos circuitos do comércio de escravos a partir de meados do século III de nossa era, conjugada com uma nova concepção, agora cristológica, do poder, pôs fim à prática então quase milenar da escravidão pública nas cidades antigas.

Estou de acordo com a maior parte das opiniões do autor, mas uma vez que seu livro toca voluntariamente a questão da política atual, e como eu também sou historiador da antiguidade grega preocupado com a política atual, permito-me não estar de acordo quanto a um ponto importante da análise de Ismard, que podemos ler ao longo de seu texto e especialmente no final: “Nesse sentido também, a democracia direta era paga com o preço da escravidão” (p. 215). Tal posição me parece ligeiramente excessiva no que se refere à política antiga e, sobretudo, muito pesadamente desanimadora para o interesse que podemos ter hoje pela política antiga na intenção de renovar nossa política. Mas isso não muda nada quanto ao interesse do livro; é uma obra cheia de qualidades, um tipo de livro que faz bem aos estudos clássicos e ao debate político contemporâneo ao mesmo tempo. E esses livros não são assim tão numerosos para nos impedir de saudar calorosamente a iniciativa de Paulin Ismard.

José Antonio Dabdab Trabulsi – Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte – Brasil. E-mail: dabdabtrabulsi@fafich.ufmg.br.

Plutarco e Roma: O mundo Grego no Império | Maria Aparecida de Oliveira Silva

Maria Aparecida de Oliveira Silva – historiadora ligada à Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora no campo da História Clássica, língua e literatura da Grécia antiga, autora de outra obra sobre o autor em questão denominada Plutarco Historiador: Análise das Biografias Espartanas, de 2006, pela Edusp – expõe o papel de ligação e distanciamento entre as culturas grega e romana, desempenhado por Plutarco e sua obra, isto a partir de um extenso trabalho de doutoramento em História Social, desenvolvido entre 2003 e 2007, na Universidade de São Paulo. Trabalho este, amparado por amplas pesquisas em fontes primárias e correntes historiográficas. Assim, o livro Plutarco e Roma: o Mundo Grego no Império, de 2014, publicado pela Edusp, nasce como resultado da já citada pesquisa, abordando a forma como Plutarco (45 d.C. – 120 d.C.), um grego de Queronéia, trata a função da cultura grega e seus desdobramentos, durante o Principado, no Império Romano.

Entre os eixos em pauta, divididos em três partes, inicia-se, no capítulo I, a tratativa da relação entre Plutarco, Roma e os romanos; a partir da historiografia moderna, ressalta-se a conjuntura do período, a qual os gregos tinham um status positivamente diferenciado em relação a outros povos sob domínio romano. Desse modo, Plutarco surge com um discurso integrador entre ambos os povos, criando, principalmente em territórios helenizados, ou seja, em regiões a oriente do império, uma visão estabilizadora que converge para uma sociedade greco-romana. A autora, entretanto, observa o caráter de superiorização do pensamento e conceito de civilização grego em relação a Roma, perceptível na obra plutarquiana, como, também, a influência grega nas políticas imperiais e na questão identitária do império eram fundamentais . Por outro lado, a afirmação pode ser exagerada, pois a Prof.ª Maria Aparecida enfatiza, de modo perspicaz que “[…] outros povos também exerceram influência nas decisões tomadas pelo imperador” (p.41).

Ainda assim, a relação entre Grécia e Roma é tema de diversos estudos por parte de especialistas que pesquisam Plutarco. Não obstante, é comum a tais estudos acabarem por reforçar uma ideia de cooptação da elite grega, por parte do império, com o intuito de sustentar o poder romano por meio da intelectualidade local, , ponto relativizado pela autora. Porquanto, segundo ela, é improvável um processo de domínio cultural ter ocorrido sem alguma resistência.

Para compreender o pensamento plutarquiano é necessário ressaltar a questão literária, pois a importância de Plutarco se propagou pelo império por influência de sua obra, cujo acesso a sua literatura era possível, em especial, para a elite. Com efeito, os romanos estavam habituados desde o século III a. C. “[…] com temas e estilos literários dos gregos”. “Ainda que no primeiro século antes de nossa era a tradição literária grega tenha passado por uma época de rupturas […]”,manteve-se viva através da intelectualidade romana (p. 53). Essa manutenção da tradição literária, mesmo em período de afastamento oficial, permitiu um ressurgimento literário durante o principado, o qual foi chamado de Segunda Sofística, já que a primeira havia surgido há séculos, durante a Grécia clássica. O período, ainda, é colocado como a Renascença grega, isso porque intelectuais gregos encontraram um modo de evocar seu passado mesmo estando sob domínio romano.

Ainda sobre a Segunda Sofística, termo cunhado por Filóstrato décadas após a morte de Plutarco, a autora considera plausível reputar ao movimento certo exagero historiográfico e literário, pois tal enquadramento nasceu da necessidade de construir um conceito de continuidade nos acontecimentos históricos.

Silva expõe a ocorrência de um movimento de retorno à tradição literária grega, a Segunda Sofística, composta por um grupo de intelectuais, inclusive Plutarco, que convivia e participava da administração imperial acrescido o fato de possuírem, também, a cidadania romana. Assim, a literatura grega não seria apenas um modo de promover o conhecimento e a habilidade retórica helênica, mas principalmente para que Roma reconhecesse nos gregos a têmpera diferenciada, elemento imprescindível para a manutenção política e cultural romana. Desse modo, o povo desprovido “[…] (p.78), de pátria no sentido geográfico e político[…]”, poderia manter-se vivo por uma unidade consolidada em sua literatura.

A obra de Plutarco é analisada ou tida como […] uma manifestação cultural-identitária de um grego no império (p.79), revelando, assim, um sentimento de pertencimento ao período, outrora glorioso, da Grécia clássica.

Outra característica de Plutarco, apontada a partir do capítulo II, foi sua fundamentação da cultura grega em uma estrutura monolítica, na qual as variações se davam por diferenças de habilidades técnicas de cada cidade-estado. Por outro lado, as diferenças perceptíveis na variação geográfica grega – a Grécia ia além da Ática e do Peloponeso – eram relativizadas, sendo que identidade convergia para o plano linguístico-cultural.

Não obstante, a Grécia era parte do império e por mais que sua cultura estivesse presente no mundo romano, os gregos ainda estariam subordinados ao poder imperial. Nesse âmbito, Plutarco teria reestruturado a história de seu povo. Como colocado pela autora, a obra plutarquiana traça um paralelo entre a história grega e a romana, buscando pontos comuns em seus mitos fundadores, Teseu e Rômulo, ligando o último genealogicamente aos gregos. Também procura explicar a absorção do mundo grego por Roma e a maneira como os padrões helênicos ajudaram a construir a própria civilização nascida no Lácio. Assim, segundo Silva, Plutarco destaca que as duas civilizações estão em um nível à parte, no qual os gregos são a sabedoria do império e os romanos a força bruta e militar, relegando ao restante dos povos ligados a Roma um papel dispensável em termos contributivos. Haveria uma constituição cultural de povos irmãos, mas, discretamente, ressalta que os romanos não se aprofundavam em suas práticas como os gregos. Sintetizando, a autora traça, na página 130, o contexto acima citado como uma relação de proteção dos romanos das práticas culturais gregas, utilizando-as para fortalecer as suas tradições e organização, bem como para diferenciarem-se dos bárbaros presentes no império.

Ainda no capítulo II, como forma de demonstrar o verdadeiro motivo da derrocada grega, a autora cita a alusão de Plutarco sobre a Grécia clássica e as causas que levaram à sua fragilidade e dominação por parte de Roma. Dentre os fatores explicitados, ele aborda as guerras citadinas, tendo como expoente máximo o conflito do Peloponeso e a corrupção e suborno personificados na figura de Alcibíades. Porém, algo ainda mais grave no discurso plutarquiano é a não manutenção da tradição, principalmente no tocante à questão étnica, ligada ao discurso filosófico. Por ter um pensamento higienista e eugênico, ele considerava a participação de estrangeiros ou mestiços um risco à sociedade grega, e imputa a Alcibíades, um homem de linhagem desconhecida, a desgraça ateniense e espartana. Além de relacionar a origem desse líder grego ao seu desvio de caráter, segundo os preceitos plutarquianos regidos por normas amparadas na tradição, Silva destaca que “O julgamento moral que Plutarco induz o leitor a fazer é inevitável, pois ele usa a história para mostrar o quanto a recusa pela disciplina filosófica guia os homens para acontecimentos funestos” (p.170).

Para a autora, Plutarco é diacrônico, ou seja, busca entender os fatos históricos de acordo com a evolução dos mesmos. Com tal visão, desenvolve uma narrativa esclarecedora para todo o período clássico grego e seus conflitos até a conquista macedônica – partindo sempre da obra do pensador objeto central de seu livro e autores diversos que tratam sobre a temática –, chegando, por fim, ao “quadro de debilidade que surgem os romanos, fortes e vigorosos, a destruir e dominar a combalida Grécia” (p.199). Lembra, sempre, que o conceito de Grécia antiga não é baseado em um estado-nação e sim em cidades-estados agregadas em pequenas ligas que tinham em comum uma consistente matriz linguística, religiosa e cultural.

No capítulo III, ao tratar do mundo grego no império, Silva descreve o próprio conceito de Grécia antiga como uma criação moderna, ao passo que na Antiguidade a região consistia em várias cidades-estado agregadas em ligas. Embora haja essa fragmentação, o conceito de ser grego era existente, de modo que rechaça uma ideia bem difundida e defendida, inclusive, pela renomada Susan Alcock (1994), de que o triunfo romano teria criado a Grécia. “A noção de Grécia, portanto, não nasceu após a conquista romana; já havia entre os escritores gregos a necessidade de estabelecer traços característicos e distintivos dela.” (p.208).

Outro ponto que leva a distinguir as culturas em questão é o próprio início de uma realidade greco-romana, principiada no século III a. C., quando os gregos influenciam a organização institucional da Sicília e Magna Grécia com a adoção de um calendário comum, sistema de pesos e medidas e festas à moda grega, como descrito no terceiro capítulo. A autora sublinha tais elementos como alguns dos responsáveis pela familiaridade dos romanos com as práticas helênicas.

Em contrapartida, é destacado na pesquisa que os gregos que ocupam a antiga Grécia conservam suas práticas afastadas do modo de vida dos romanos, recusando-se a absorver algo do império. Um ponto interessante, pois a autora expõe que a maior ferramenta de helenização do império, por parte dos romanos, é o latim.

A dominação, porém, é relativa se analisada a partir de Plutarco, de modo que o mesmo aponta: “o quadro político romano não apenas expõe ao romano o que é ser grego, como ainda aponta o que há de grego nos romanos” (p.224).

Mesmo traçando paralelos diversos entre Grécia e Roma, como a analogia entre a Guerra do Peloponeso e as Guerras Púnicas, a obra plutarquiana também critica, mesmo que veladamente, o que a seu ver são distorções da sabedoria helênica, como o uso romano da geometria, destinado a construção de artefatos e máquinas bélicas. Ou então, ao evidenciar a dificuldade de Roma em aceitar o pensamento político grego ao mesmo tempo em que o exalta, como observado nas páginas 233 e 234.

Outra maneira, de se observar a resistência da cultura grega em pleno principado, apontada pela Prof.ª Maria Aparecida, é a manutenção do idioma em territórios helenizados, mesmo com a concessão de cidadania romana aos gregos.

Ao caminhar para o final do capítulo III, e consequentemente do livro, a autora destaca que Plutarco tenta demonstrar o quanto os romanos são devedores da filosofia e de Platão, pois ao buscar latinizar territórios conquistados, não se define um sistema pedagógico, além do mos maiorum, cabendo a paidea a responsabilidade de educação no império, em geral. Assim, a filosofia assumia no mediterrâneo, segundo a autora, um papel preponderante, coroado pela escola de Platão. Vale ressaltar que o próprio Plutarco convergia ideologicamente com Platão.

Em síntese, o desafio de Plutarco é relacionar-se com Roma sem comprometer sua identidade grega (p.289), ao passo que o ressurgir da tradição literária beneficiou os romanos que acabaram por encontrar em seus dominados a preservação de parte importante de sua memória. Assim, ao tratar da contribuição grega na formação de Roma, a autora ressalta o caráter híbrido na composição do próprio império romano.

Em relação ao livro de Maria Aparecida de Oliveira Silva, salienta-se, como considerações finais, o rico conteúdo que sua pesquisa sobre Plutarco traz à tona. A partir desta, vislumbra-se as relações que permeavam a multifacetada ligação entre romanos e gregos, isto a partir da percepção de um erudito grego, que além de ser cidadão romano, possui certo prestígio no império do qual sua terra natal depende política e economicamente. Para mais, é possível compreender como um povo sitiado foi capaz de manter sua cultura e influenciar os costumes de seu dominador de forma decisiva.

Ressalva-se que o período do Principado Romano é extenso e com muitas peculiaridades que vão além das relações entre Grécia e Roma, incluindo a participação de diversos povos com distintas condições culturais. Acrescenta-se a isso que a obra em questão é um estudo do discurso e do olhar de um grego sobre seu conquistador. O texto de Silva é cativante e insere o leitor no monumental legado helênico e na formação de uma matriz greco-romana na Antiguidade.

Hélio Gustavo da Silva Andrade – Formado em jornalismo pela Universidade do Oeste Paulista e aluno do curso de História e da especialização em História, Cultura e Poder na Universidade do Sagrado Coração, em Bauru/SP. Atua profissionalmente na área da educação em uma escola Waldorf.


SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. Plutarco e Roma: O mundo Grego no Império. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. Resenha de: ANDRADE, Hélio Gustavo da Silva. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.1, p.139-147, 2016.  Acessar publicação original [DR]

Política y religión en el Mediterráneo antiguo. Egipto, Grecia, Roma | Marcelo Campagno, Julián Gallego, Carlos G. GArcía Mac Gaw

Sería lógico pensar que los campos que actualmente identificamos con el nombre de “religión” y “política” en nuestro universo simbólico son esferas diametralmente opuestas, dado que el imaginario colectivo contemporáneo asume que la dimensión que abarcan una y otra son asuntos totalmente distintos, en tanto a la primera le conciernen cuestiones vinculadas con el mundo de “lo sagrado”, “lo trascendente” y la espiritualidad del ser humano, mientras que la segunda se inclina a asuntos netamente terrenales conectados grosso modo con las acciones que tienen lugar en la esfera pública y afectan por tanto la vida de una determinada sociedad. Sin embargo, la experiencia histórica demuestra que la política y la religión han coincidido en varios aspectos, así como también tejido numerosos vínculos y construido escenarios comunes, al punto de confundirse y llegar a semejar un único plano de la realidad, desdibujándose de este modo la línea entre lo espiritual y lo terrenal. En efecto, las relaciones entre lo religioso y lo político han marcado de manera diversa, abigarrada y compleja la trayectoria de las más variopintas culturas a lo largo de la historia. Para bien o para mal, las prácticas y representaciones de la religión interactuaron con las prácticas y representaciones de la política a lo largo de diversos contextos espacio-temporales, dando por resultado una suerte de trasvase de actitudes, comportamientos, sentimientos, aspiraciones, ideas, referencias, imágenes, significaciones y concreciones. Indudablemente, este tipo de argumentaciones puede aplicarse al mundo antiguo, una de cuyas principales características radica en el hecho de que el conjunto de sus formas de ejercicio del poder, instituciones, prácticas económicas, modos de sociabilidad, costumbres rituales y percepciones se ve afectadas – de un modo directo y profundo – tanto por las dinámicas producto de la religiosidad como por aquellas que se originan en el ámbito político, aunque sus respectivos alcances no siempre son fácilmente discernibles, ya que ambas esferas definían una realidad inextricablemente unida y no una simple interconexión o superposición de capas, como parecen demostrar la articulación entre las costumbres rituales y las prácticas institucionales, el rol del templo y la religión en el ejercicio del poder, o la amalgama entre el universo simbólico y las dinámicas políticas. En consecuencia, la escisión entre ambos aspectos es acertada sólo en términos analíticos cuando el objetivo pase por comprender cómo operaban la política y la religión en la estructuración y funcionamiento de las sociedades antiguas. Leia Mais

De Atenas a Sidney: el cine y la televisión em los Juegos de verano | Juan Gabriel Tharrats

O registro dos Jogos Olímpicos é uma prática cultivada em todo mundo por profissionais e espectadores esportivos. As tentativas de eternizar momentos de superação dos atletas, das nações e do esporte enquanto prática cultural motiva o desenvolvimento de variadas estratégias para documentação. Neste sentido, destacam-se as formas de registros audiovisuais que acompanharam historicamente o nascimento dos Jogos Olímpicos da Era Moderna.

Inegavelmente, o cinema foi testemunho recorrente das transformações do esporte, e, apresentou registros de competições esportivas em produções desde sua origem em diversos países (Grã Bretanha, Austrália e Espanha) e com enfoque em diversas práticas esportivas (MONTIN, 2004). Leia Mais

The Greek Theatre and Festivals. Documentary Studies | Peter Wilson

As ruínas permanecem em seus lugares. Alguns textos dos tragediógrafos e comediógrafos chegaram até nós, mas o entendimento da dinâmica do teatro grego permanece ainda um mistério. Para os pesquisadores do teatro antigo, principalmente aqueles que se dedicam a entender as relações entre o teatro, a política e a sociedade na Atenas do século V a.C., ou aqueles que investigam a problemática da performance no teatro antigo, nenhum evento é tão importante como os festivais em honra ao deus Dionísio nos quais eram encenadas as tragédias e as comédias.

Compartilhando deste interesse e partindo da necessidade de atualizar as abordagens historiográficas sobre o teatro em seu âmbito material, o helenista e historiador do teatro clássico Peter Wilson editou The Greek Theatre and Festivals. Documentary Studies. O livro é um esforço coletivo de treze pesquisadores do teatro e das festas em homenagem a Dionísio, os quais realizaram em 2003 em Oxford uma conferência para reflexão sobre o tema. Ao abordar este assunto, sempre é preciso retomar os seminais estudos de Sir Arthur Wallace Pickard-Cambridge (1873- 1952): o Dithyramb Tragedy and Comedy (1927) e o The Theatre of Dionysus in Athens (1946). Estas duas obras de Pickard-Cambridge inauguraram em seu tempo a problemática das bases arqueológicas do teatro grego, tendo se tornado durante décadas referências absolutas sobre o tema.

Assim, consciente da dívida em relação às obras de Pickard-Cambridge mas também percebendo a importância de novas descobertas e enfoques sobre o tema, já na introdução Peter Wilson postula o seu objetivo com esses textos: “Introduction: From the Ground Up”, ou seja, rever tudo, reatualizar as premissas, recolocar os problemas. Os textos editados por Wilson desejam abordar o teatro grego de forma renovada, a partir de novas inquietudes historiográficas e trazendo como documentos as coleções de epigramas muitas vezes esquecidas pelos historiadores do teatro. O livro divide-se então em três grandes partes: I. Festivals and Perfomers: Some New Perspecives, II. Festivals of Athens and Attica, III. Beyond Athens.

Os festivais em honra a Dionísio inseriam-se no calendário cívico da cidade, ocorrendo durante o ano ocorriam três festas sua homenagem : as Lenéias, que aconteciam no final de janeiro, para as quais se interrompiam os trabalhos do campo, do comércio e da navegação de forma que os cidadãos se dedicassem exclusivamente às festividades; as Grandes Dionisíacas, que aconteciam no final de março e traziam grande número de viajantes para Atenas; as Dionisíacas rurais, que aconteciam em dezembro em regiões da Ática (CUSSET, 1997, p.12-3). No edifício do teatro consagrado a Dionísio era reservado um lugar para um templo do deus contendo uma imagem sua, no centro da orkhestra havia um altar de pedra em sua homenagem e nas arquibancadas, um trono esculpido era reservado ao sacerdote de Dionísio (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999). Os festivais em honra ao deus Dionísio tornavam o teatro grego um espetáculo com dia, lugar e público específicos, o qual conciliava problemas internos, contribuindo para a coesão do corpo cívico.

A primeira parte do “The Greek Theatre and Festivals”, “Festivals and Perfomers: Some New Perspecives” (p. 21-84), a qual, nas palavras do próprio autor, “reconhece a necessidade de arriscar amplas inspeções de algumas questões gerais (p. 3)”, sendo formada por três artigos. O primeiro artigo “Deconstructing Festivals”, de William Slater (p. 21-47), ambiciona uma leitura do material epigráfico disponível para a compreensão do teatro grego e propõe que os festivais têm importantes ramificações para a compreensão de questões tradicionais como a política e o poder no Mediterrâneo. Slater adota uma postura crítica em relação aos historiadores do teatro grego que não exploram as possiblidades da numismática ou da epigrafia para a compreensão dos festivais. A “desconstrução dos festivais” revela o tom de desafio aos historiadores do teatro e a urgência de restabelecer bases teóricas e documentais para compreender o fenômeno do teatro grego.

O segundo texto da primeira parte, “Theatre Rituals” de Angelos Chaniotis (p. 48-66), começa a estabelecer a importância do teatro antigo para além da teatralidade e da performance artística, tentando resgatar uma série de atividades ritualísticas ou de caráter cívico que ocorriam ao redor do evento teatral. O espetáculo do teatro, principalmente em Roma, congregava outros eventos que ajudavam a dar uma maior dimensão ao evento, como o anúncio das honras, a coroação dos benfeitores, a entrada dos magistrados, além de concursos de canto e declamações. Para Chaniotis, o teatro antigo é composto por “rituais de comunicação”, os quais podem ser entre os mortais e os imortais, em um nível social entre o “sujeito” e o seu papel dentro da sociedade, ou entre cidadãos e estrangeiros (p. 65).

No terceiro e último texto da primeira parte, com o título bastante descritivo de “The Organization of Music Contests in the Hellenistic Period and Artists’ Participation: An Attempt at Classification” (p. 67-84), Sophia Aneziri procura mostrar como os artistas ligados à música ou “Dionysiac Artists” ajudavam a organizar concursos musicais em homenagem ao deus no período helenístico. A autora classifica os concursos musicais em três categorias em relação à sua organização: (1) concursos organizados pelas associações, (2) concursos co-organizados por elas e (3) concursos dos quais elas apenas participavam. Essa espécie de “guilda” ou associação de músicos mostra uma certa cooperação entre profissionais ligados à arte e a importância desses eventos no contexto helenístico.

A segunda parte do livro, chamada de “Festivals of Athens and Attica” (p. 87-182), pode interessar mais a quem pesquisa relações entre o teatro grego, tanto a tragédia como a comédia, em relação a contextos políticos e sociais. Nas palavras do próprio Wilson, essa parte pode ser definida como “um chamado a revigorar o estudo do material familiar da metropolis do teatro através de novas perguntas, da recombinação dos seus elementos de formas produtivas e inusitadas, e da integração de evidências menos conhecidas na corrente principal da discussão” (p. 3).

O primeiro artigo, “The Men Who Built the Theatres: Theotropolai, Theatronai, and Arkhitektones” (p. 87-121) de Eric Csapo, é um dos principais artigos do livro. Csapo trabalha com epigrafia assim como Slatter, e com os indícios anuais dos festivais. Suas perguntas são dirigidas à administração do teatro em sua monumentalidade, mostrando que havia uma economia que girava em torno dessas apresentações, como os aluguéis de tendas. Assim ele demonstra como termos que aparecem apenas em fontes literárias e que foram sempre tratados como de pouca importância, como “theatrones” (Theatron-buyer) ou “theatropoles” (Theatron-seller), aparecem em relação a outros termos como o “arkhitekton” e podem dar indícios da dinâmica espacial que se desenvolvia nos festivais a Dionísio. As descobertas de Csapo levam a pensar dinâmicas econômicas e certas condições de existência material para o evento em homenagem a Dionísio. Além das fontes literárias citadas pelo autor há no final do capítulo um pequeno apêndice arqueológico escrito por Hans Rupprecht Goette, que mostra uma evolução material do espaço físico do teatro.

O segundo texto, “Choregic Monuments and The Athenian Democracy” (p. 122-49) de Hans Rupprecht Goette, debruça-se sobre os monumentos existentes perto do teatro de Dionísio e a sua representação de poder. Tais monumentos fazem contraste com algumas ideias da democracia grega. Já o último artigo da segunda parte e sexto do livro é escrito pelo editor Peter Wilson, “Performance in the Pythion: Athenian Thargelia” (p. 150-182). O artigo de Wilson desvia o foco do festival de Dionísio para o festival de Apolo, a Targélia. O festival da Targélia durava apenas dois dias e levava esse nome por ser celebrado no período chamado “Thargelion” que corresponde ao final de maio. Para o autor, o festival representava a criação da ordem civil, claramente oposto ao festival a Dionísio. A Targélia era celebrada com coros masculinos semelhantes em certos aspectos ao coro das tragédias. Peter Wilson discute as questões de performance nesse festival, pensando as relações com a música. A importância do artigo reside em trazer à discussão um festival que é pouco lembrado pelos estudantes da performance no mundo antigo, além de mostrar aspectos que circundam a ritualística que envolve o deus Apolo.

A terceira e ultima parte do livro, “Beyond Athens” (p. 184-377), é a maior em contribuições, com sete artigos. Estes artigos exploram um rico material ligado ao teatro e aos festivais menos estudados para além de Atenas. O primeiro artigo, “Dithyramb, Tragedy and Cyrene” (p. 185- 214), escrito por Paola Ceccarelli and Silvia Milanezi, analisa por meio da epigrafia evidências sobre a tragédia na cidade de Cirene (antiga colônia grega na atual Líbia) no século IV a.C. O texto das pesquisadoras trata da dinâmica organizacional em Cirene das apresentações trágicas e dos coros ditirâmbicos, tentando traçar um quadro de como era encenada uma tragédia fora de Atenas.

O segundo artigo, “A Horse from Teos: Epigraphical Notes on the Ionian Hellespontine Association of Dionysiac Artists” (p. 215-45) de John Ma, parte também da epigrafia para demonstrar a singularidade do ditirâmbico na Anatólia no século II a.C. Ma levanta a hipótese de que nesse período helenístico o ditirâmbico era apresentado por um “pseudo-coral” e envolvia também solos virtuosos de instrumentos como a cítara.

O terceiro artigo, “Kraton, Son of Zotichos: Artists Associations and Monarchic Power in the Hellenistic Period” (p. 246-278) de Brigitte Le Guen, analisa a vida de Kraton, um tocador de aulos, uma espécie de flauta também conhecida por tíbia, sobre o qual existem várias referências nos epigramas. A autora analisa o seu percurso tentando desvelar os possíveis caminhos para uma “carreira” de músico no período helenístico.

O quarto artigo, “Theoria and Theatre at Samothrace: The Dardanos by Dymas of Iasos” (p.279- 293) de Ian Rutherford, explica as bases do teatro na Samotrácia no século II, mostrando as relações entre um culto a Dardanos e um poema da série “Poeti Vaganti”.

O quinto artigo, “The Dionysia at Iasos: Its Artists, Patrons, and Audience” (p. 294- 334) de Charles Crowther, também trabalhando com epigrafia, mostra como era o teatro na cidade de Iasos, mostrando pelos documentos que a arte de Dionísio era bem recebida na cidade, tendo uma série de peças sido encenadas. Crowter mostra as listas das inscrições existentes sobre as peças e os possíveis valores pagos ou doados aos artistas de Dionísio.

No sexto artigo, “An Opisthographic Lead Tablet from Sicily with a Financial Document and a Curse Concerning Choregoi” (p. 335-350), David Jordan investiga uma tablete de chumbo de característica opistográfica, ou seja, escrito dos dois lados. O documento traz uma espécie de maldição e uma referência a uma disputa de ordem teatral. O texto de Jordan é principalmente uma apresentação deste raro documento que pode ajudar a traçar algumas ideias sobre a Sicília e as relações entre os Choregoi.

O último capítulo do livro, escrito por Peter Wilson e intitulado “Sicilian Choruses” (p. 351-77), é também dedicado à Sicília no século V. a.C. Wilson tenta mostrar as singularidades desse teatro ligado a cultos locais, em que diferentemente da Grécia as mulheres participavam do coro, e discute novamente questões de performance.

Assim, “The Greek Theatre and Festivals. Documentary Studies” é um livro que ousa em sua proposta e deseja revisar certezas para lançar novos desafios aos pesquisadores do teatro antigo. A leitura do livro é desafiadora e convida o leitor a pensar o teatro antigo por outro ângulo. Tal qualidade não é diferente e nem rara se olharmos para as outras contribuições de Peter Wilson, cujas obras se destacam sempre pelo enriquecimento aos estudos do teatro antigo em relação a dinâmicas de performance e a elementos cênicos na tragédia ou comédia. Entre os seus livros mais importantes está The Athenian Institution of the ‘Khoregia’: the Chorus, the City and the Stage (2000), além do trabalho de sociologia da música na pólis clássica, “Music and the Muses: the Culture of ‘Mousike’ in the Classical Athenian City”, editado conjuntamente com P. Murray . Mais recentemente, em 2008, Wilson editou com Martin Revermann o “Performance, Reception, Iconography: Studies in Honour of Oliver Taplin”. Os livros de Peter Wilson tornaram-se caminho obrigatório para quem deseja reatualizar as abordagens do teatro grego trabalhando com antiguidade e história cultural e atentando para evidências documentais utilizadas com menor frequência.

Referências

CUSSET, Christophe. La tragédie grecque. Paris: Éd. du Seuil, 1997.

VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999.

Mateus Dagios – Mestre em História pela UFRGS com a dissertação “Neoptólemo entre a cicatriz e a chaga: lógos sofístico, peithó e areté na tragédia Filoctetes de Sófocles”. E-mail: mateusdagios@yahoo.com.br.


WILSON, Peter (Ed.). The Greek Theatre and Festivals. Documentary Studies. Oxford Studies in Ancient Documents. Oxford: Oxford University Press, 2007. Resenha de: DAGIOS, Mateus. Redescobrindo o Teatro de Dionísio: novas possibilidades para o teatro antigo. Aedos. Porto Alegre, v.5, n.12, p.279-283, jan. / jul., 2013. Acessar publicação original [DR]

 

Greece and the Augustan Cultural Revolution | Anthony Spawforth

Após algumas décadas de crítica ao conceito de “romanização”, o leitor poderia estranhar as teses expostas no recém-publicado Greece and the Augustan Cultural Revolution, de Anthony J. Spawforth. Apesar do termo romanisation aparecer poucas vezes no corpo do texto, a tônica do livro é, justamente, demonstrar a romanização da Grécia. Mais do que isso: demonstrar que a romanização da Grécia se alinhava à política cultural dos imperadores, especialmente Augusto e Adriano. Seria indício de um retorno do paradigma da romanização nos estudos sobre o Império Romano?

Não exatamente. O livro de Spawforth se situa em um lugar específico do debate da romanização: o “oriente romano”. Até a segunda metade do século XX, o conceito de romanização se aplicava sem constrangimentos às provinciais ocidentais, bárbaras, que adotaram a vida urbana e a civilização somente com a conquista romana; as províncias orientais, por outro lado, densamente urbanizadas e com uma enraizada cultura grega (ao menos entre as elites), resistiram à romanização plena, limitada aos aspectos políticos e militares. Com as críticas ao caráter imperialista do conceito de romanização, realizadas na segunda metade do século XX, a cultura das províncias ocidentais do Império deixou de ser vista como simples resultado da “aculturação”, enquanto que, no oriente, a “resistência grega” se tornava o símbolo de um “imperialismo cultural reverso”, no qual os dominados submetiam culturalmente os dominadores. Leia Mais

Il Dizionario delle scienze e delle tecniche di Grecia e Roma – COLACE et al (RA)

COLACE, P. Radici; MEDAGLIA, S. M.; ROSSETTI, L.; SCONOCCHIA, S. (Ed.). Il Dizionario delle scienze e delle tecniche di Grecia e Roma, 2 vols. Tradução de Maria da Graça Gomes de Pina. Pisa-Roma: Fabrizio Serra, 2010. Resenha de: D’ALESSANDRO, Tonia. Revista Archai, Brasília, n.9, p.141-151, jul., 2012.

Quando, ao dirigir o olhar para a antiguidade, se fala de ciência e de técnica e se procura configurar as suas dinâmicas de desenvolvimento ou explicitar as suas conquistas mais significativas, respeitando um modelo hermenêutico que mantém viva a separação das ciências da natureza das ciências humanas, em geral, a atenção foca-se, de forma quase exclusiva, em poucas disciplinas, as que fazem rigorosamente parte dos parâmetros convencionais do saber positivo. A tal propósito, não se pode deixar de recordar o já distante e poderoso Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines de Daremberg e Saglio (Paris, 1877-1919), cujo corte marcadamente positivista induz os autores a dar relevo apenas ao que responde aos requisitos de uma investigação pura e abstratamente ligada às ‘Ciências da natureza’; noções, mecanismos, definições, termos técnicos, extrapolados do contexto geral em que se encontram inseridos, são analisados com extrema precisão, mas são apenas fragmentos ou restos sem sentido de um saber mais vasto e articulado, que poderiam ter sido iluminados, mas de cujo contexto não há, contudo, nenhum vestígio. Mais próximo de nós é o The Encyclopedia of Ancient Natural Scientists. The Greek Tradition and its many heirs (P. T. Keyser e G. L. Irby-Massie eds., Londres, 2008), que usa um elenco, alfabeticamente disposto, de autores que se ocuparam de ciência; não se dá nenhuma atenção àquele background mínimo feito de interesses múltiplos, hábitos, crenças, usos, questões teóricas, disciplinas pouco definidas que dialogam entre si, necessário para um tratamento orgânico e coerente do que era a ciência e do que representava na antiguidade. No que diz respeito especificamente à tecnologia, parte-se do trabalho pioneiro de R. J. Forbes, Studies in ancient technology (Leiden, 1955-1964) até ao interessante Oxford Handbook of Engineering and Technology in the Classical World (J. P. Oleson ed., Oxford, 2008). Com isto, não se pretende absolutamente desvalorizar o extraordinário trabalho de escavação de especialistas autorais em cada âmbito da ciência antiga, quer-se só realçar que considerar um facto assente uma separação rígida de Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften e ter em conta apenas a história das ciências naturais, as técnicas, os artefactos, os instrumentos que Gregos e Romanos aperfeiçoaram, significa não conseguir penetrar no sentido dessa ciência, não transpor o limite da mera, acrítica, recolha e organização cronológica de eventos, dados, autores; significa renunciar a entrar na mentalidade destes povos, nos seus modos de ver e entender o mundo e, enfim, renunciar a apreender “a importância central que a ciência e a técnica tiveram”nas civilizações clássicas.

No Dizionario delle scienze e delle tecniche di Grecia e Roma, coligido por Paola Radici Colace (Univ. de Messina), com Silvio M. Medaglia (Univ. de Salerno), Livio Rossetti (Univ. de Perúgia), Sergio Sconocchia (Univ. de Trieste), a perspetiva e os objetivos mudam e a história das ciências entrelaça-se com a história humana. Esta obra imponente, a meio caminho entre o dicionário e a enciclopédia, chega ao leitor como um quid novi no panorama historiográfico nacional e internacional dos estudos científicos sobre o mundo antigo, quer porque o vê sob vários aspetos quer, principalmente, pela estrutura metodológica da obra, ou seja, pela superação daquela característica sectorial, unilateral e histórico-evolucionista, que desde sempre contradistinguiu o modo como se via o pensamento técnico-científico grego e romano. Os estudiosos que idearam o projeto e que intervieram diretamente na redação de muitos lemas, conseguiram compor, com base numa recolha considerável de informações sobre autores, textos, práticas, processos produtivos, um quadro sinóptico, criticamente fundado, do caminho percorrido pelas ciências e pelas técnicas nas sociedades antigas e do valor que tiveram nelas, sem descurar a interação com o húmus intelectual, cultural, sociopolítico e económico que, nesses séculos, as sustentou. Eles não se limitaram a organizar o material visando a mera recognição dos protagonistas da ciência antiga ou as invenções extraordinárias que o seu génio produziu, nem dirigiram a atenção somente para a aparição de modelos hermenêuticos do mundo natural e humano canonicamente reconhecidos como pertencentes ao território das ciências positivas. Junto a notícias sobre a vida e as obras de personagens famosos ou desconhecidos à maioria do público, a um exame das problemáticas e dos tópicos metodológicos que caracterizam a sua investigação, a uma análise dos instrumentos e dos conceitos, encontram-se no Dizionario pesquisas minuciosas sobre a cultura popular, sobre a arte, sobre a literatura, disciplinas que se intersectam na antiguidade, quer com os chamados saberes técnico-científicos quer com aquele background feito também de superstições, crenças e práticas religiosas de que se alimentavam os Gregos e os Latinos (vejam-se, por exemplo, as entradas Mântica, pp. 656-60, Sonho revelador, pp. 931-3, Pseudociência e crenças, pp. 881-3, feitas por F. Cuzari, ou então, Astrolatria, pp. 204-7, ao cuidado de C. Lupini). Folheando as páginas densas dos dois volumes que constituem o Dizionario, encontramo-nos face a uma exploração a 360 graus da ciência antiga, em que cada lema – no interior do qual se aprecia o trabalho preciso, meticuloso, de análise lexical feito diretamente a partir das fontes – que faça referência a um autor, a uma disciplina, a um instrumento ou a uma técnica produtiva, inserido numa sequência alfabética, acompanhado de notas e de uma bibliografia peculiar, se torna paradigmaticamente representativo dos esforços feitos pelos antigos para explicar racional e globalmente o mundo da physis e de quem a habitava e para poder, se for o caso, intervir sobre ele.

A aspiração a permanecer fiéis ao espírito, à estrutura e às intenções da investigação dos Gregos e dos Romanos conduziu os autores do Dizionario à recusa a encerrar em âmbitos disciplinares apertados as múltiplas formas em que a ciência deles  se declina e a isolá-la, ao retirá-la daquele grande território a que pertence e de onde se origina: o da experiência vivida. Inúmeras disciplinas nasceram, como sabemos, das exigências da realidade quotidiana destes povos, uma realidade que abrange  ocupações ligadas à terra, à navegação, ao cuidado e à criação de animais, à identificação dos segredos das plantas, à procura de soluções para reduzir ou eliminar os sofrimentos, fazer frente às guerras ou às calamidades naturais, mas também ao cultivo do que pode tranquilizar e alimentar a mente: poesia, música e filosofia. Por conseguinte, no Dizionario, a consciência da impossibilidade de reduzir a uma só dimensão qualquer discurso sobre a ciência e sobre a técnica antigas levou os redatores a alargar o espectro das áreas disciplinares comummente tomadas em consideração. Estas tornam-se vinte e nove precisamente pela inclusão de assuntos que, em geral, se inserem no campo das ‘ciências humanas’ e de temas que dizem respeito a agricultura, agrimensura, alimentação, arquitetura, cosmética, fisionómica,  geografia, hidráulica, mineralogia, náutica, arte bélica, pneumática, toxicologia, veterinária, sectores aos quais se atribui dignidade équa aos que sempre a tiveram, tais como, astrologia, botânica, cosmologia, direito, física, lógica, matemática, mecânica, medicina, música, ótica e zoologia. Por um lado,  como se pode facilmente verificar, dedica-se atenção a todos aqueles ‘saberes’ que derivam da especialização e diferenciação progressiva das technai, isto é, daquelas artes que, partindo de um uso empírico e utilitarista, com o tempo atingirão um estatuto pleno de cientificidade, serão ensinadas e se tornarão objeto de tratamento científico; por outro  lado, não se negligenciam aqueles outros ‘saberes’ normalmente pouco investigados pelos historiadores da ciência grega e romana, considerados não nobres, ou, como prefere dizer Rossetti, insensíveis “a níveis altos de racionalização”. Trata-se especificamente  daquele conjunto de conhecimentos, de habilidades profundamente ancoradas na vida quotidiana,  que nunca atingirão o estatuto de ciência e que  eram objeto de trabalhos práticos, de manuais, de prontuários, com objetivo didático ou divulgativo, transmitidos de geração em geração, sobre os quais achamos notícias também nas obras dos poetas e dos trágicos, ou então, num tratadozito qualquer  (que com muita sorte chegou até nós inteiro) ou  em compilações tardias. É exemplar o caso dos  Geoponica – uma espécie de “suma do pensamento agronómico antigo”–, em vinte livros, cuja primeira redação, atribuível a Cassiano Basso, deveria ser  colocada por volta do século vi (E. Lelli, p. 586). Uma empresa editorial de tão vastas proporções e de tão profundo conteúdo científico  certamente não se poderia realizar a não ser através do contributo de um válido e numeroso grupo de  investigação constituído por peritos em sectores  específicos do pensamento científico antigo. O risco de uma deformidade na redação das entradas, no  que concerne ao conteúdo e ao método, presente precisamente pelo estilo diferente e pelo campo  diversificado de interesses de cada colaborador, foi eliminado pela sapiente direção dos organizadores que, sem sacrificar a sensibilidade científica de cada um deles, conseguiram salvaguardar a coerência  e a unidade da obra. Isso revela-se com grande  evidência na construção equilibrada dos lemas e na convergência do trabalho de todos para um projeto inspirador comum: dar uma imagem da ciência e da técnica grega e romana, ao mesmo tempo histórica e crítica, aderente à mentalidade e à vida dos antigos.

Num projeto tão ambicioso, que com as suas 421 entradas promete um tratamento completo  dos aspetos que conotam as técnicas e as ciências antigas e dos seus resultados, sente-se contudo a ausência de fichas, que talvez encontrassem um lugar preciso no Dizionario, dedicadas a noções tais como arte, corpo, techne, cor. Quanto à arte, se é verdade que se trata amplamente da arquitetura e que se faz um pequeníssimo aceno à pintura, não se menciona de todo a escultura, que na antiguidade tem uma relação íntima com a matemática, a anatomia, as técnicas de manufactura dos materiais, etc. Algumas indicações interessantes sobre as metodologias de pesquisa dos antigos poderia ter sido obtida de lemas que não foram tidos em conta, tais como  experimento/experimental, dado que uma certa forma de experimentação, mesmo que ocasional, se encontra  na ciência grega e romana; encontramos vestígios dela na medicina já no Corpus Hippocraticum, na física, na ótica, na pneumática e em outras disciplinas. Maravilha-nos também, face a uma vasta recognição de máquinas, mecanismos e instrumentos, o silêncio sobre o calculador de Antikyithera (cuja descoberta se cita demasiado rapidamente no ensaio de V. Tavernese, Fortuna e valutazioni della scienza e della tecnica antiche nel pensiero medioevale, moderno e contemporaneo [Fortuna e avalia ções da ciência e da técnica antigas no pensamento medieval, moderno e contemporâneo ], p. 1338) e sobre o  mesolábio de Eratóstenes. Analogamente, um tratamento mais amplo dos cientistas de relevo indubitável para o crescimento de algumas ciências particulares, tais como, só a título de exemplo, Amónio de Alexandria, Antígono de Niceia, Astrâmpsico, Porfírio de Tiro, Trasilo de Alexandria, teria maiormente satisfeito a curiositas que impele o leitor para o assunto declarado, isto é, ciência e técnica.

Escolher a organização por lemas torna certamente os volumes fáceis e rápidos de consultar e distribuí-los por estudiosos de competência  comprovada é garantia de exame preciso e aprofundado do seu conteúdo. Todavia, a grande margem de ação deixada aos autores de cada entrada, que em geral é uma ótima pré-condição para enfrentar qualquer pesquisa, revela-se por vezes uma faca  de dois gumes. Se considerarmos, por exemplo, a  entrada Medicina,  quem escreve, antes de entrar  no busílis da questão, detém-se por algum tempo em problemáticas de carácter geral, certamente  interessantes e derivadas de estudos cuidadosos e profundos, mas que, na verdade, não têm grande  relevância para o assunto tratado. Começa-se com um excurso sobre a cultura latina, que se formou  em modelos gregos, continua-se com um elenco da documentação relativa a algumas das disciplinas mais significativas  (astronomia, astrologia, etnografia)  para tentar provar a interconexão existente, também neste caso, entre a era grega e a latina. Uma ligação que se torna mais evidente em âmbito médico. Estaríamos, portanto, à espera de um exame bem mais aprofundado e alargado das características peculiares da iatrich è techne, sobretudo a partir das suas origens helenistas. Mas aqui a análise apresenta-se pouco penetrante, limitando-se o colaborador a uma escassa apresentação de alguns aspetos da medicina grega. Após ter realçado as relações de dependência da medicina egípcia e a sua autonomia de quaisquer elementos mágico-religiosos, ele esboça alguns  aspetos gerais da medicina hipocrática, evidenciando nela o nascimento de algumas especializações  (fisiologia, anatomia, ginecologia). Pelo contrário, com mais amplidão e de maneira precisa e bem  circunstanciada, o autor fala da medicina romana – considerada quase um decalque da grega, pelo menos até ao século i – e dos seus caracteres essenciais, chamando a atenção não só para a formação da  linguagem m é dica, em grande parte vestígio da helenista e, por isso, “ponto de vista privilegiado para um estudo da língua latina”(p. 678), mas também para os contributos doutrinais e críticos de Celso, Escribónio Largo e para a centralidade da obra de Galeno, promotor e defensor da doutrina hipocrática. A ficha está cheia de reenvios para as entradas (cerca de 46) do Dizionario em que se trata mais amplamente dos protagonistas da medicina greco-romana e de algumas noções específicas que constituem o seu esqueleto. Vejam-se, por exemplo, as entradas Anatomia  (pp. 109-12),  Fisiologia  (pp. 544-8),  Terapêutica médica e veterinária (S. Sconocchia, V. Scipinotti, pp. 973-6), Cirurgia (S. Sconocchia, D. Monacchini, pp. 304-12), que englobam as subsecções: C. celsiana, Gli interventi chirurgici, Un intervento di litotomia secondo la descrizione di Celso [ C. Celsiana, As intervenções cirúrgicas, Uma intervenção de litotomia segundo a descrição de Celso ]. Também se poderia citar a  Veterinária (V. Scipinotti, pp. 996-1007), considerada um autêntico ensaio sobre o assunto. Em cada uma destas entradas, aprecia-se especialmente a tentativa, bem conseguida, de conjugar a recognição de dados, autores e textos  com relevos de tipo metodológico, histórico e ético. Todavia, convém dizer que uma análise detalhada e maiormente incisiva teria servido certamente para melhorar as fichas dedicadas a Díocles de Caristo (F. Fiorucci, pp. 373-4), Herófilo (refiro-me, em especial, ao pequeníssimo § 3., s. v. medicina, realizado por D. Crismani, pp. 455-6), e mesmo a Galeno (D. Crismani, D. Monacchini, pp. 554-6), pois algumas das conquistas metodológicas, teóricas e práticas de tais médicos infelizmente ficaram embotadas. Sobre as pesquisas destes médicos recebemos claramente informações maiores do que as que aparecem nas fichas que lhes são destinadas, ao lermos outras  entradas para as quais somos conduzidos seguindo as indicações do Glossário, o qual cumpre plenamente a tarefa de exaltar os nexos entre os diversos campos de investigação e a de enfrentar cada assunto ou noção de maneira transversal. Apesar disso, alguns temas são só esboçados, outros são ignorados.  Refiro-me, sobretudo, às investigações levadas a  cabo tanto por Herófilo quanto por Díocles sobre  as perturbações mentais 1 e sobre os sonhos 2, além de sobre as inovações que ambos introduziram no campo do vocabulário médico e sobre os protocolos diagnósticos, prognósticos e terapêuticos que  adoptaram. No que diz respeito a Galeno, segundo as finalidades do Dizionario, talvez fosse oportuno evidenciar as íntimas inter-relações entre diet ética, ética e política. Mas só pequenas referências, quase de fugida, se fazem à psicologia e à psicopatologia e não se fala absolutamente do que Galeno sabia de lógica, de geometria e de arte 3. Mais ainda: apesar de se tratar com amplidão das pesquisas e das ‘demonstrações’ efetuadas pelo médico de Pérgamo no campo da anatomia e da fisiologia normais e patológicas e de se voltar bastantes vezes à prática da dissecação e da vivissecção, não se dá o merecido relevo àquele método de investigação, na verdade introduzido  por Herófilo – como bem evidenciou L. Radici (s. v. Herófilo de Calcedónia, §. 2, pp. 454-5) –, fundado em procedimentos baseados num experimentalismo de tipo quantitativo. Um tema, este, que galvanizou o interesse de numerosos estudiosos a partir de  Claude Bernard que, na sua Introduction à l’ étude de la médecine expérimentale (Paris, 1865), considera Galeno o pai “de la méthode expérimentale ”, dando razões para esse atributo. Também se poderiam  mencionar os estudos de J. S. Wilkie, Galen’s experiments and the origin of the experimental method (D. J. Furley e J. S. Wilkie, Galen on respiration and arteries, Princeton, 1984, pp. 47-57), de A. Debru (L’ éxperimentation chez Galien, W. Haase ed., ANRW, vol. 37.2, Berlin, 1993, pp. 1718-56) ou de M. D. Grmek (Il calderone di Medea. La sperimentazione  sul vivente nell’antichità, Bari, 1996).

A presença das chamadas  defaillances  não  invalida, todavia, o valor e o conteúdo científico  do Dizionario porque, consultando as entradas, na grande maioria dos casos se fica positivamente maravilhados pela riqueza e qualidade das informações, pela subtileza das análises e da abordagem metodológica. Normalmente, os assuntos examinados são tratados de forma meticulosa, as interpretações são passadas pelo crivo crítico e os instrumentos filológicos são sabiamente empregues para desambiguar dados, formas de saber e atividades, ou para fazer luz sobre os efetivos contributos teóricos e/ou práticos de alguns autores aquando da afirmação e do progresso também daquelas ciências não codificadas que começaram a desenhar-se como tais no denso tecido da cultura antiga.

Particularmente apreciável, do ponto de vista estratégico para a composição e distribuição dos  conteúdos, é o escamotage dos frequentes reenvios, técnica feliz, graças à qual o material pesquisado é retirado do seu isolamento, construindo-se uma espécie de trama que liga os assuntos dotando-os de unidade e continuidade e, ao mesmo tempo,  aumentando de maneira exponencial o acervo de  informações disponíveis para quem quer aprofundar ou clarificar os seus aspetos específicos. Em  tal sentido, poder-se-ia dizer, com razão, que cada página do Dizionario pretende constituir uma espécie de mapa intertextual que o próprio leitor desenha: este não recebe passivamente as informações, mas pode (servindo-se também do guia imprescindível e profícuo oferecido pelo Glossário), em função dos próprios interesses ou das curiosidades que quer  satisfazer, dirigir a investigação e decidir das etapas do seu percurso de pesquisa. Pensemos na entrada Matemática (F. Marcacci, pp. 662-5), onde se percebe realmente o proveito que se obtém em termos de profundidade de análise, de unidade conceptual,  até de originalidade dos conteúdos, da organização reticular de que falámos. Ao delinear e discutir  as características gerais de tal disciplina, as suas  distinções internas e diferenciações progressivas,  as relações que possui com a filosofia, os âmbitos de pesquisa que a distinguem, os problemas ligados à periodização, a autora frequentemente insere  links para outros lemas em que se trata mais clara  e pormenorizadamente de filósofos e cientistas,  noções, conceitos, disciplinas, temas que têm a  ver com a matéria examinada. Obtém-se no conjunto um quadro muito articulado e analítico dos  desenvolvimentos do saber geométrico e aritmético e desenvolve-se no leitor a ideia de uma comunhão específica e interdisciplinaridade dos saberes.

Portanto, são duas as vantagens que a escolha organizativa inteligente dos links oferece: uma de natureza epistemológica, dado fornecer grandes  quantidades de notícias e conhecimentos, a outra axiológica, pois se finalizam todos os discursos à  definição, compreensão e conservação não fragmentária de um património cultural de inestimável valor.

São exemplares, em relação a este último aspeto, algumas macro-entradas, autênticos ensaios de dez/vinte ou mais páginas, não destituídas de valor pelo modo como se recuperam fontes descuradas ou não adequadamente interpretadas da literatura de sector, também ela em mais do que uma ocasião  amplamente discutida, de onde a abertura de perspetivas hermenêuticas insondadas. Por exemplo, tais são as entradas:  Astrologia, que se completa com  as correlativas  A. literatura da Grécia e de Roma,  A. metáforas, A. compêndios e compilações, A. manuscritos, A. léxico. (P. Radici Colace, pp. 207-20), Astronomia (C. Santini, pp. 220-38), Cosmologia (L. Rossetti, pp. 330-56), Direito (G. Crifò e L. Rossetti, pp. 376-95), Geografia (P. Janni, pp. 558-78), Caça (O. Longo, pp. 263-77), Construção Pública nas suas diversas especifica ções, C. comemorativa, C. comercial, C. privada, C. pública, C. desportiva e recreativa (P. Radici Colace, S. Pirrotti, pp. 406-526), Ó tica (S. M. Medaglia, pp. 752-62).

Assim, lendo, por exemplo, a entrada Execução musical (S. Grandolini, pp. 457-70), inicia-se uma viagem ideal que percorre a história da poética antiga a partir de Homero, em que, com abundância de pormenores, com uma análise minuciosa apoiada nas fontes, a autora nos informa da idade, do sexo dos cantores, dos lugares, da ocasião, da decoração cenográfica, da situação histórica, do roupeiro, até das diatribes entre poetas; além do mais, liga a  mudança de gosto musical e as inovações métricas e rítmicas à invenção de novos instrumentos de  acompanhamento ou à modificação dos velhos.

Por conseguinte, não é um mero elenco de teorias, instrumentos, descobertas, mas sim um exame antropológico, crítico e histórico onde teorias, instrumentos e descobertas ganham sentido e finalidade. Um interesse análogo suscita a entrada Náutica (P. Janni, pp. 715-28), um campo pouco conhecido e explorado pelos cultores da tradição clássica. Graças a uma recognição precisa dos subsídios que provêm das descobertas arqueológicas, da iconografia, das fontes literárias, da fotografia subaquática, etc.,  somos projetados para o mundo fascinante dos métodos de construção das embarcações, mas também para o das viagens, da geografia, da política, da  guerra, da economia, para ver como estes âmbitos estão inseparavelmente ligados e como cada um  deles pode apresentar material idóneo para fazer  luz sobre os outros.

Agrada-nos também a já citada entrada  Astronomia (C. Santini, pp. 220-37), particularmente atrativa pela riqueza de temas, teorias, personagens, textos analisados, onde se v ê claramente o conhecimento do autor de literatura técnico-científica grega e sobretudo latina. Com mão certa, e prestando  a devida atenção às fontes literárias, filosóficas,  científicas, às ligações entre os conhecimentos  próprios do mundo greco-latino e os dos outros  povos, Santini reconstrói histórica e criticamente a evolução do saber astronómico das suas simples e, se se quiser, ambíguas expressões, até à aquisição de uma organização sistemática apoiada em bases matemáticas. Nas páginas densas em que se articula a entrada, nunca se perdem de vista a complementaridade entre a Astronomia e a esfera humana,  nem a aspiração didática e/ou divulgativa que  conduz alguns dos que foram, de certo modo e por várias maneiras, seus protagonistas, nem, por fim, se negligenciam as diversas conotações e valências que tal disciplina ganha no encontro com culturas específicas e formas de poder político particulares. Passamos, assim, por uma astrometeorologia, uma astronomia filosófica literária, científica, em suma, uma astronomia que serve o poder, que “de ‘literária’ se torna ‘cortesã’”(p. 237).

De grande valor é a entrada Farmacologia (S. Sconocchia, D. Monacchini, M. A. Cervellera e M. Baldini, pp. 486-518), onde, após alguns esclarecimentos sobre o significado do termo – impostos pelas valências não unívocas que pharmakon e pharmakeia adquirem no tempo e em diversos contextos –, graças a um meticuloso trabalho de escavação efetuado sobre as fontes antigas, do Corpus Hippocraticum até Celso, Escribónio, Plínio o Velho, Marcelo Empírico et al., e também sobre as recolhas de  simplicia, sobre os receitários e as receitas de medicamentos, se realiza uma atenta e precisa classificação e descrição da natureza, do uso e do valor terapêutico dos medicinais extraídos do mundo vegetal, do  reino mineral e animal; portanto, passa-se depois a analisar alguns tipos de medicamentos compostos, para acabar nos Realien farmacêuticos, representados pelos laboratórios e pelas oficinas utilizadas para a preparação dos fármacos e sobre os contentores onde eram conservados.

Não se pode deixar de evidenciar também a perspetiva de investigação original que caracteriza os artigos dedicados à Filosofia, em geral pouco considerada em estudos científicos, mas omnipresente na cultura antiga. Além da explicação e focalização de algumas noções fundamentais – partindo do  próprio termo-conceito  Filosofia  (L. Rossetti, pp.  522-31) até ao de Lógica (F. Marcacci, pp. 641-6), que teve no tempo múltiplas conotações antes de especializar-se, no pensamento moderno, em formas bem diversificadas – muita atenção é dedicada aos grandes protagonistas do pensamento grego e latino. Viaja-se do Orfismo aos Pré-socráticos, de Platão a Aristóteles a Epicuro, a Lucrécio, Plotino, Séneca, Agostinho, nos quais a inspiração filosófica se entrelaça com a inclinação para tratar temáticas ligadas ao mundo das ciências. Em especial, as fichas que dizem respeito a Platão (L. Rossetti e P. Tarantino, pp. 836-43), Arist ó teles (L. Rossetti, F. Marcacci e M. Vegetti, pp. 185-92), e também a Tales (L. Radici, F. Marcacci e L. Rossetti, pp. 961-6) e Zen ão (L. Rossetti e F. Marcacci), dividem-se numa série de subsecções organizadas por autores diversos e, longe de serem um mero seco repropor, à maneira dos manuais, dados biográficos, conceitos que são o fundamento das doutrinas dos citados filósofos, ou um elenco esquemático dos contributos que deram ao desenvolvimento das ciências, como seria de esperar de um Dicionário, representam uma releitura do significado completo da investigação destes mestres antigos, reconstruída pari passu, sector por sector, segundo várias angulações e diferentes pontos de vista. A estrutura ‘coral’ (usada com sucesso também nas entradas não filosóficas como, por exemplo, na já citada Farmacologia) parece-nos uma carta bem jogada. De facto, finalizada a leitura da ficha inteira, não se sente nenhuma desarmonia entre as partes, tem-se antes pelo contrário a impressão de estar  no centro de um debate vasto e aceso – do qual se fornecem as coordenadas textuais e críticas –, em que nenhum conhecimento pode ser tomado como definitivo; além do mais, toma-se consciência de que algo de novo, que afasta dos costumeiros clichés, se pode ainda descobrir e dizer acerca de personagens tão estudadas.

Uma prova do sucesso de tal abordagem metodológica é, em especial, a entrada Aristóteles, já antes referida, onde o Estagirita é apresentado num modo que não encontra igual na literatura corrente. O relevo dado à sua metodologia e à organização dos âmbitos de pesquisa; a identificação dos antecedentes e dos objetivos do seu trabalho; o papel central que o filósofo atribui ao Direito comparado e à matemática; a atenção aos seus escritos de  carácter jurídico; a inserção das investigações lógicas e científicas num plano de compreensão global do mundo humano e natural, são  só alguns dos  momentos de um exame do pensamento aristotélico levado a cabo de maneira problemática e crítica. O discurso dos autores, que passa por momentos de grande originalidade, está particularmente atento  a não desarticular as reflexões de Aristóteles do  ambiente em que se formou e a descontaminá-lo  também das revisitações dos seus discípulos diretos ou daqueles imediatamente sucessivos.

Neste caso, como em outros em que a disciplina tratada se distribui por diversos especialistas, percebe-se a peculiaridade da organização do Dizionario, que pretende harmonizar a sensibilidade científica de cada autor e, ao mesmo tempo, salvaguardar a coerência interna das entradas. Empresa não fácil, que pediu a direção atenta dos quatro estudiosos que orientaram os trabalhos; todos, tecelões críticos e perspicazes, conseguiram fazer convergir estrategicamente no Dizionario os resultados de anos de pesquisa de uma fecunda équipe de connaisseurs da literatura técnica e científica grega e romana; hábeis também na construção balanceada dos lemas e na sua uniformização ao projeto comum inspirador:  apresentar o saber científico greco-romano na sua totalidade, unidade e progressiva diferenciação  em disciplinas propedêuticas à s que nós hoje encontramos como possuidoras de um estatuto e de uma identidade próprias, “construir um quadro do desenvolvimento integrado do pensamento científico e técnico”(p. 10). Integração que não quer dizer dissolvência das ciências na cultura geral dos antigos, devida à precariedade e à imprecisão dos seus confins, mas sim religação a essas relações que se fundam em novas bases, abrir o caminho a novas investigações, vencer a preguiça intelectual que  encontra conforto e sossega com o já dado, no já dito, nos esquemas impostos por uma tradição que no fundo já não tem sentido.

Se procuramos as provas de como uma tal  atitude dá concretamente frutos preciosos e duradouros, basta considerar uma das mais importantes conquistas epistemológicas do Dizionario, ou seja, a revalorização, bem documentada, da dimensão  científica contida na filosofia pré-socrática muito  frequentemente marginalizada pelos historiadores  da ciência. De Tales (L. Radici, F. Marcacci, L. Rossetti, pp. 961-6), unilateralmente apresentado pelos filósofos como o archegos sophos (Arist. Metaph. A, 3983 b20) que identifica na matéria os princípios de todas as coisas (b7) e pelos cientistas como  astrónomo e matemático, graças a uma recognição meticulosa das fontes até ao corrente pouco analisadas, foca-se o alcance filosófico e o sentido global de uma investigação com múltiplos aspetos, de um saber complexo que se desenvolve num ambiente  que ainda não tem ideia das especializações disciplinares. Discurso análogo vale para Anaximandro, Anaxímenes, Empédocles, Anaxágoras, Demócrito e para todos os Pré- socráticos, intelectuais com  interesses variados, que estudam cosmologia e astronomia, meteorologia, medicina, matemática, que são inventores e defensores de teorias destinadas a sobreviver por muito tempo, mas sobretudo são sophoi, que progressivamente irão idear técnicas  lógico-retóricas e estratégias de comunicação idóneas à defesa da validade do modelo interpretativo da realidade que propõem.

Embora corram o risco de suscitar perplexidade naqueles leitores não participantes do trabalho, que se formaram com a ideia do escasso peso científico das teorias dos Eleatas, o lugar relevante que os autores do Dizionario atribuem a estes filósofos é amplamente justificado pelos interesses que estes tiveram em relação a temáticas que concernem ao mundo da natureza, à matemática, à medicina, à  astronomia, à cosmologia, à meteorologia, que foram para os antigos aspetos plenamente integrantes da cultura de um  sophos, tal como o é a construção  de um discurso que pretende apresentar-se como  científico. De facto, os Eleatas começaram a definir estruturas argumentativas e artifícios lógico-retóricos finalizados à demonstração da validade/ verdade das próprias teses e a torná -las inatacáveis. O poeta e filosofo Xenófanes (D. Panchenko, pp. 917- 9), observador perspicaz da realidade natural e dos fenómenos celestes, pressupõe, com base em dados evidentes, que a arché – isto é, aquilo de onde tudo provém e para onde tudo regressa – é a terra; procura encontrar explicações plausíveis para a sua grandeza e posição, esforça-se por dar conta dos eclipses, do nascer e do pôr do sol, das fases lunares, da formação das nuvens. Parm é nides (L. Rossetti, F. Marcacci, pp. 779-82), recordado como o primeiro filósofo que  raciocina sobre o ser e como pai do princípio de não-contradição, escreve o seu poema Sobre a natureza usando uma concatenação de deduções e conclusões, prelúdio de um pensamento demonstrativo de tipo apodíctico. Como se pode verificar por uma leitura direta do que ficou da sua obra e de uma tradição de segunda m ã o, o Eleata não desdenha ocupar-se de cosmologia: de facto, cria a hipótese de uma terra no centro do universo, procura explicações sobre  como esta é iluminada e aquecida pelo sol, deteta faixas climáticas, interroga-se sobre o fenómeno da luz lunar e, em geral, sobre quais são as relações existentes entre o nosso planeta e os outros corpos celestes. Parménides, como se verifica por uma  inscrição encontrada durante as escavações de Eleia em que ele é indicado como o ouliades physikos, é também m é dico – o epíteto oulis iatros é atribuído a outros médicos da mesma cidade que viveram em épocas sucessivas, algo que até poderia induzir a  pensar que fora precisamente Parménides o primeiro a introduzir na sua comunidade tal disciplina – e  sente particular interesse pelos problemas ligados à reprodução humana e às condições que predispõem a ter, ou não, uma caracterização sexual bem definida. Poder-se-ia, talvez, considerá-lo pioneiro daquela especialização médica que hoje chamamos de genética, como sugere L. Rossetti? Zenão (L.  Rossetti, F. Marcacci, pp. 1028-30), inventor da  dialética segundo Hegel, cujos paradoxos encontraram lugar na história da matemática, porque  com base numa certa leitura levantam dificuldades ligadas quer à noção pitagórica de número quer à de pluralidade, parece ter dado início a uma perda de fisicalidade de tal disciplina e a uma reflexão sobre as grandezas infinitesimais. Melisso (F. Marcacci, p. 683) usa de maneira consciente e controlada “regras de inferência para uma argumentação apodíctica”, como se deduz dos fragmentos 7 e 8. Para provar a absoluta indivisibilidade e unicidade do ser, em cujo domínio faz reentrar também a natureza, serve-se de um tipo inovador de raciocínio fundado em teses contra a evidência dos factos, que não encontrará decerto a aceitação de Aristóteles.

Mesmo os três ensaios que encerram o Dizionario s ã o dignos de nota. A estes é confiada uma função ‘arquitectónica’, no sentido que têm a tarefa de ligar criticamente o conjunto de informações  apresentadas.

  1. Rossetti, no seu Nas origens da ideia ocidental de ciência e técnica (pp. 1291-315), afastando-se por alguns aspetos da communis opinio, que atribui a Platão e a Aristóteles a distinção entre ciência e técnica e a organização do  saber em  âmbitos específicos com  margens metodologicamente bem  nítidas, encontra na reflexão dos Pré-socráticos  “os núcleos originários da formação das ciências”. Exemplar é o caso de Demócrito, autor de muitíssimos tratados, que vão da geografia, à medicina, à música, à pintura, etc., cuja composição certamente requereu “competência especializada e uma ideia de ciência precisa”. Se andarmos um pouco  para trás no tempo, encontramos Hecateu, discípulo de Anaximandro que, embora tivesse herdado conhecimentos dos predecessores, tende a marcar as distâncias entre o seu saber especializado e as narrações ridículas dos Helenos (fr. A 1.1 Jacoby), e ainda Anaximandro, Anaxímenes, “especializados em fornecer um saber sobre o mundo no seu conjunto”e sobre os seus variados aspetos particulares.

Não só. Daquelas fontes que nos legaram um Tales amante da geometria, que trabalha com ângulos, retas e  triângulos, um Parménides que fala de esfera, um Anaximandro que cria uma terra de forma cilíndrica, deduz-se claramente como “uma matemática, uma geometria, começaram a constituir-se já durante  o século  vi  a.C.”. Dentro de uma construção bem  articulada e precisa do ponto de vista histórico e crítico, Rossetti encontra e passa pelo crivo todos aqueles indícios que levam a pensar que “a ideia  de ciência e de técnica ganha forma na época dos Pré-socráticos”. De facto, isso seria provado pela  invenção da prosa e a publicação de textos em  que se procura dar conta do próprio saber e/ou de habilidades profissionais especiais, pela valorização da escrita no couro, recurso seguro para a construção de uma comunidade científica, pela tendência a certificar as próprias teorias ou a invalidar as de outrem, pela afirmação de um pensamento abstrato, pela produção de doxai em conflito. Fora do terreno batido é também o percurso que o nosso estudioso faz da chamada passagem do mito ao logos e a discussão sobre as relações entre as ciências egípcia, babilónica e grega.

  1. Radici Colace, em Metáforas da ciência e da técnica (pp. 1317-22), detém-se brevemente sobre a função das metáforas e do falar por meio de imagens que, nascidas no seio da linguagem comum ou das artes pobres, refluem para a científica. Carregada de valências epistemológicas e técnicas, desta última escorrem depois, com significados análogos ou diferentes, para os vários âmbitos da cultura grega e romana, sobrevivendo por vezes em época cristã. Quase de relance, a estudiosa enfrenta o problema espinhoso do uso metafórico do vocabulário médico a nível político e de como esse pode representar uma chave hermenêutica segura para a compreensão de passagens cruciais de algumas tragédias. Exemplos paradigmáticos de vocábulos que são colonizados pelos mais diversos âmbitos do saber, destinados, sem quererem, a unir “mundos incrivelmente distantes”, são pithos, chalcheus, demiurgos, originariamente pertencentes ao mundo “do artesão e do trabalhador braçal”; mas pode-se pensar também no termo diktuon, rede de pesca, inserido até na “macrometáfora da conquista das almas no Evangelho”.

Da transmissão e fortuna da ciência e da  técnica grega e latina ocupa-se V. Tavernese, em  Fortuna e valorização da ciência e das técnicas antigas no pensamento medieval, moderno e contemporâneo (pp. 1323-43). Nas suas páginas o estudioso empenha-se num trabalho complexo de reconstrução do percurso feito pelas ciências e pelas técnicas  antigas, passando pela cultura árabe até aos nossos dias, através da menção de posições de alguns filósofos e cientistas. A multiplicidade e parcialidade dos modos de entender e avaliar as conquistas técnico-científicas dos antigos depende, a seu ver, de métodos interpretativos viciados pela ideologia e pelos “nexos especulativos”; obstáculos, estes,  superáveis pelo “desenvolvimento do conhecimento histórico-crítico da literatura científica e técnica  antiga”e pelos principais problemas teoréticos,  necessários “a uma melhor compreensão do papel da técnica no mundo moderno e contemporâneo”. Seguramente lúcida, finamente articulada e de clara matriz filosófica é a análise levada a cabo por Tavernese, embora não contemple um aprofundamento daquela relação interessante que se tem entre a  técnica antiga, as suas descobertas e os usos que deles se fizeram em laboratórios científicos e nas  oficinas de épocas sucessivas. Além disso, é indubitavelmente suportado e partilhável no seu incipit o juízo, acima citado, acerca da necessidade de  potenciar os conhecimentos relativos à literatura  técnico-científica; todavia, a asserção peremptória, como coda ao ensaio sobre a utilidade de tais conhecimentos para uma melhor compreensão do mundo moderno e contemporâneo, talvez necessitasse de alguns esclarecimentos pois poderia ser entendida por um leitor pouco experiente como o reflexo de um modo de pensar anti-histórico, há muito superado, que acaba por privar o pensamento científico antigo da própria autonomia e unicidade. De outros lugares, e há mais tempo (Momigliano, Finley, Lloyd, Cambiano), convida-se a receber uma perspetiva  de investigação que visa compreender e valorizar  o saber científico dos antigos pelo que era por si mesmo, irredutivelmente outro em relação à ciência e à técnica do mundo moderno e contemporâneo.

O Dizionario  é acompanhado por um índice  completo das entradas (pp. 17-20), um  Glossário (organizado por P. Radici Colace, pp. 1187-274, de cuja utilidade e função se falou), uma vasta bibliografia de cerca de 4000 títulos, que inclui muitos dos mais recentes estudos sobre o pensamento científico antigo (pp. 1039-185) e uma apresentação sintética dos autores, dos seus interesses e dos lemas que  cada um escreveu (pp. 1275-88).

Para terminar,  é verdade que por vezes se  sente uma espécie de desequilíbrio entre certas  entradas, no que diz respeito aos conteúdos e às  modalidades da análise, mas é também verdade que a grande maioria delas corresponde plenamente às linhas programáticas do  Dizionario. Alguns lemas  de um certo relevo, como se disse, não foram tomados em consideração, outros foram enfrentados de maneira sintética, outros ainda poderiam até  fazer surgir dúvidas acerca da pertinência da sua  inserção na obra. Por outro lado, o Dizionario deixa-se apreciar por toda uma série de características, sobretudo pelo fatigante e preciso trabalho de  arranjo, recolha e discussão crítica de fontes dificilmente identificáveis ou adequadamente valorizadas noutros lugares, pela riqueza e complexidade dos  temas tratados, pela distância de quaisquer formas de esquematismo expositivo rígido sem  pathos, que nos trabalhos científicos costuma levar a tratamentos pouco empáticos. Talvez não encontremos definições nítidas e precisas, que são o estigma  da matriz à ‘dicionário’; talvez devamos procurar,  consultando mais do que uma entrada, detalhes  técnicos ou aprofundamentos que não sobressaem no lema destinado; faltará também aquela descrição simples e linear das descobertas e dos instrumentos de teor positivista que tanto agrada a alguns leitores. Facto está que, pelo contrário, teremos ampla liberdade de ação na pesquisa, seremos solicitados a ir além do que se pode encontrar no Dizionario, que mentaliza e educa a interpretar a ciência e a técnica como uma atividade entre tantas outras,  teóricas e práticas, às quais os antigos se dedicavam e que se podem redescobrir e compreender só se não forem setorizadas e se não realizarem abstrações e extrapolações deletérias e anti-históricas; seremos encorajados a seguir um método de investigação  histórico e crítico que, permanecendo ancorado na experiência vivida pelos Gregos e Romanos, na sua cultura geral, proceda pelo percurso acidentado de constituições e transmissões, em várias formas, de ‘saberes’ originariamente destituídos de quaisquer  pretensões de cientificidade, até chegarem ao  estatuto de ciência. Por todos estes aspetos e por aqueles evidenciados anteriormente, o  Dizionario pode considerar-se um reference-work imprescindível no que diz respeito à ciência e à técnica antigas, válido seja qual for a formação, o interesse específico ou a intenção de quem o usa.

Notas

  1. Para Herófilo, cf. frag. 211, H. von Staden, Herophilus: The Art of Medicine in Early Alexandria, New Haven 1989. Díocles fala expressamente de frenite, melancolia e mania, cf. frag.s 38, 39, 40, 41, 42, 43, 96, 110, M. Welmann, Die fragmente der sizilischen Aerzte, Berlin, 1901. Cf. também Ph. van der Eijk, Diocles of Carystus: a Collection of the Fragments with Translation and Commentary, 2 voll., Leiden 2000-2001, n. 72 vol. 1 e vol. 2, pp. 144-148.
  2. Em Herófilo encontra-se uma bem precisa e detalhada teoria dos sonhos. Cf., Diels, Doxographi Graeci = Aet. Plac. V, p. 416. Para Díocles de Caristo, veja-se frag. 141 Welmann.
  3. No que diz respeito aos conhecimentos de Galeno nestes campos, cf. K. Kalbfleisch (ed.), Galen. Institutio logica, Leipzig, 1896; De usu part., C. G. Kühn, Claudi Galeni opera omnia, Leipzig 1821-1833 (reed. anastática Hildesheim 1997), III, 830; De med. meth., Kühn, X, 36; De opt. corp. nostr. const., Kühn, IV 743- 745; De Plac. Hipp. et Plat., Kühn, V, 449, 2-3.

Tonia D’Alessandro – Università di Bari.

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Plato and the city | Gabriele Cornelli

Sinal dos tempos de globalização, o livro Plato and the City, editado por Gabriele Cornelli, da Universidade de Brasília, e Francisco Lisi, da Universidade Carlos III de Madrid, está em inglês, recheado de citações em grego, foi publicado em 2010 na Academia Verlag de Sankt Augustin da Alemanha, sobre Platão e a cidade. Não há um urbanista no elenco, mas professores de filosofia antiga. Se queriam apenas “especialistas”, poderiam ter deixado o latim atual, a língua inglesa, e escrito o livro em grego. Sinal dos tempos: não só o intelectual brasileiro, mas também o espanhol, o italiano ou o francês que quiser dar uma contribuição para o mundo, precisa publicar em inglês. Quem escreve em português, parece estar morto de antemão para o mundo da ciência, da arte e da teoria. Não se trata aqui de bater no peito e se orgulhar da língua portuguesa. Ela resulta de uma dupla derrota e uma dupla prepotência: derrota dos povos ibéricos invadidos pelos romanos; derrota dos povos indígenas pela invasão lusitana; prepotência romana sobre as pro-víncias (regiões vencidas), prepotência senhorial lusa sobre a língua geral que se falou no Brasil até o século XVIII.

Se o livro foi publicado em inglês para um mundo dito latino, cabe examinar se ele merece o temor reverencial do neolatim da hegemonia atual. Caberá ver a que nos leva essa interiorização da dominação alheia. Está-se discutindo a questão da justiça nas relações sociais, o direito que o filósofo se atribui não só para dizer o que ela é, mas transformar sua definição em prática de governo. Está em jogo, portanto, a pretensão do filósofo de se considerar dono da verdade e formar uma casta governamental. O ponto nevrálgico disso está no Livro VII da República, conhecido como “mito da caverna”, o que leva a releitura dessa obra de trás para diante, dando prioridade ao seu “fecho de ouro”, o momento em que Sócrates desmonta todo o sistema proposto.

O que menos se deve fazer, no entanto, é mitificar e mistificar essa alegoria estendida, essa parábola do “mito da caverna”. Assim como, em vez de fazer de Platão um monopólio de helenistas, teria sido estratégico levar em conta o que um urbanista teria a dizer quanto à visão dele sobre a cidade, não teria sido nocivo o olhar de um literato. Professores de filosofia tendem a ver em Platão apenas um filósofo, quando, antes de mais nada e sobretudo, ele é um escritor. Isso pode parecer pouco, parecer inferior, para quem afirma em alta voz que Nietzsche não é um filósofo e sim apenas um escritor. A pergunta que se impõe é o que fica aí escondido, o que não se quer que seja dito.

Isso se torna ainda mais difícil de expor numa “resenha”, da qual se espera que ela seja uma propaganda do livro, pois é isso o que impera no país. Não há mais crítica literária no Brasil. Os espaços na mídia são tomados por poucas editoras grandes, que divulgam aí seus livros, ignorando os dos concorrentes. Não há também mais crítica de cinema nem cadernos de ideias no Brasil. Estranhamente, havia mais liberdade para esse tipo de crítica nos pérfidos tempos da ditadura militar do que hoje, tempos ditos de democracia. Quando a censura foi encerrada oficialmente em 1985, ela se interiorizou na mídia e se deixou de ter a frente ampla pela liberdade de expressão que reunia intelectuais de segmentos diversos durante a ditadura, gerando nichos críticos.

Olhando a extensa bibliografia publicada no final do livro, p. 125 a 131, ficam evidentes duas ausências sintomáticas, como se não tivessem nada a dizer sobre Platão e nunca tivessem dito nada crucial: Nietzsche e Heidegger. Tratei de retomar proposições deles num capítulo sobre “a alegoria da caverna”, no livro Fundamentos da teoria literária, publicado em 2002 pela Editora da Universidade de Brasília, mas que já havia sido escrito quinze anos antes. Não se trata de vaidade, mas de retomar um ponto central, já tornado público e que desloca a discussão. Não adianta ignorar o que já foi dito e que altera de modo fundamental a temática, fazendo-se de conta que a discussão pode ser mantida nos termos da conveniência conivente. Ser professor de filosofia não é ser filósofo. Aliás, os grandes filósofos não fizeram doutorado em filosofia, não poderiam lecionar nos cursos de filosofia que deveriam estudar suas obras.

Quando se retoma um grande filósofo, a tendência dominante é diluir seus questionamentos, divinizar algumas assertivas, ser peão de seu rodeio, em vez de pegar o pião dos problemas na unha e tratar de pensá-lo adiante. As grandes obras guardam em si uma diferença, um abismo, entre o que elas puderam dizer e aquilo que elas gostariam de ter dito, mas apenas conseguiram sugerir. Se o leitor não conseguir penetrar nesse reino da diferença e recriar seu imaginário, ele não vai captar os impulsos e as pulsões que movem a obra e constituem o estatuído. Ele não vai conseguir pensar adiante, sem pensar adiante não vai conseguir chegar ao que foi pensado.

Qual é a pólis que existe dentro da caverna? Ela é um resumo da sociedade grega e de todas as sociedades de classe. Divide-se entre uma minoria de senhores ociosos e uma maioria de serviçais de dois tipos. Os ociosos são alimentados e cuidados por escravos e ficam olhando o cinema das sombras projetadas na parede a partir de uma fogueira nos fundos. Há “artistas”, titiriteiros ou bonequeiros, que movimentam figuras e imitam vozes: eles se enquadram entre os serviçais. Tanto as figuras quanto as vozes copiam entes que existem fora da caverna. Para fazer isso, os “copistas” precisariam ter saído da caverna e visto como é o mundo lá fora. Isso não é, porém, lembrado na argumentação do “filósofo”, embora esteja contido na fábula.

A fogueira deve ser alimentada provavelmente por madeira, já que não há a menor referência a uma fonte de petróleo permanente na caverna. Árvores não crescem dentro de cavernas. Os escravos precisariam sair da caverna para buscar a madeira. É muito provável que tenham de ir lá também a fim de arranjar alimentos para si e para seus senhores, pois seria absurdo que comessem apenas musgo e cogumelos.

No discurso de Sócrates, sem contradição do coroinha Glauco, é apenas entre os ociosos que há de surgir alguém que se liberte das cadeias e vá até lá fora, vendo a maravilha do sol como centro do universo (essa bobagem é postulada como verdade absoluta em contrapartida à doxa do geocentrismo). A saída necessária dos artistas e a dos escravos não é considerada. Oficialmente ela nem acontece. O filósofo só pode aí surgir entre os aristocratas, jamais entre os que trabalham. Ele quer ser aristocrata sendo filósofo, ele quer ser servido, ele quer mandar. Sabe-se o estrago que essa proposta de meritocracia fez à razão crítica ao ser implantada como estrutura da Igreja Católica.

Quando se transforma uma história em mito, ela é sacralizada, tornada tabu, não pode mais ser questionada em suas contradições, omissões, errâncias. A exegese trata de acobertá-las, fala do menor como se fosse maior, deixa o maior de fora, distorce, finge, mente. A hermenêutica filosófica deveria ser o contrário disso, mas continua presa à exegese teológica. Quem julga os juízes? Qual é o mérito do mérito?

Na República, o filósofo não é alguém que ama o saber: ele ama, antes e acima de tudo, o poder. Por isso participa da mentira. Ele finge que nem os artistas nem os que trabalham já saíram antes dele da caverna, que ele é o primeiro e único e, por isso, merece o poder. Ora, o poder ele já tinha, estava entre os que eram servidos, o que ele propõe é uma nova casta sacerdotal no poder, a dos pseudofilósofos. Não é irônico, e ainda mais eficaz, que essa proposição seja feita por Sócrates, que não tinha origem aristocrática? Por que um filósofo não pode surgir entre os que trabalham? Não foi Kant filho de um carpinteiro?

Quando Heidegger examinou o mito da caverna, insistiu muito no perigo que o filósofo corre quando se dispõe a libertar seus antigos companheiros das cadeias que os prendem. Eles não querem ser libertados. Eles preferem continuar no estado de alienação. O pressuposto é, porém, que o filósofo realmente sabe o que é a verdade, que ele está acima da doxa da plebe e dos demais contemplativos. O que ele tem por verdade é, no entanto, mais um erro, que não se corrige com a assertiva de que o sol é apenas uma estrela de quinta grandeza, já que não se conhecem todas as estrelas. Supor que a verdade seja um “desencobrimento” sugere que ela já tenha estado aí um dia, tendo apenas sido esquecida. Isso leva a fetichizar a etimologia como filosofia.

É uma grande ruptura propor aí que a maioria dos membros da oligarquia não quer nada com nada, quer apenas ficar sendo servida, gozando uma vida vegetativa. Isso significa que não vai ter mérito todo aquele que tem sangue nobre, mas que é preciso ter sangue azul para poder ter mérito. É o mesmo que Sófocles postulou na trilogia tebana, quando aparentemente ousou propor que fosse alçado ao poder alguém que mostrou ter mais mérito do que os demais, mas que acaba se revelando como filho do antigo rei. É um reformismo que nada tem de revolucionário. O erro da aristocracia não faz, todavia, com que o “povo” esteja certo, que dele emana toda a verdade: a Terra continua não sendo o centro do universo, já porque não há universo nem centro. Só não há classe baixa porque a alta não é elevada.

Se o “filósofo” nega o seu nome e não é amigo da verdade, mas como qualquer político apenas usa o discurso para chegar ao poder, ele não tem “mérito” maior, ele não representa a verdade. Por isso, é preciso desconfiar de toda a sua argumentação, mesmo quando se supõe que haja algo como um princípio de justiça, e que a justiça não se deve confundir com a vontade do mais forte. A República precisa ser relida pelo avesso. Assim como a Bíblia, ela deve ser dessacralizada para ser entendida como a ficção que ela é. Isso acaba com o tabu e o temor reverencial, mas permite estabelecer outro tipo de diálogo e reconhecer outra grandeza, a literária.

Sócrates propõe a existência de um mundo das ideias do qual os entes reais seriam cópias, mas, no fim, quando propõe a Glauco andar pelo campo com um imenso espelho, ele sugere que existem primeiro as coisas reais e só depois o reflexo delas na mente humana. Numa obra que é basicamente uma criação ficcional, ele elogia Homero como grande poeta, para depois dizer que ele teria de ser expulso da cidade ideal, já que os artistas ficam inventando outros mundos. Ora, com isso ele acaba questionando e desconstruindo tudo o que havia proposto. Se Homero merece ser preservado, é problemática a proposição de um Estado totalitário, que não dê liberdade ao artista, em que um artista como Homero não possa ter espaço (como não tem na escola brasileira).

Questões centrais como essas aqui aventadas a título exemplificativo, pouco vi propriamente discutidas e levadas adiante pelos autores que compõem essa antologia (que é, aliás, muito boa para o relatório da CAPES e o currículo Lattes). Quando eles beiram alguma questão, em vez de pensarem por conta própria adiante, em geral recuam e tratam de ver o que o Mestre disse. Uma coisa é, porém, o que Sócrates diz, outra o que ele pensa sobre o que diz, uma terceira é o que Platão pensa sobre o que Sócrates pensa sobre o que Sócrates diz: maior é, no entanto, aquilo que o escritor Platão deixou entrever para que se pense adiante. Cada caixa maior altera a menor nela embutida. Em vez de ficar preso ao primeiro nível, teria sido melhor que os membros da antologia tivessem ousado ir para o quarto nível.

Flávio R. Kothe – Professor titular de Estética na FAU/UnB, autor de obras sobre o cânone literário brasileiro, a narrativa trivial, a teoria literária e a arte comparada, tradutor de Nietzsche, Marx, Kafka, Benjamin, Adorno, Habermas e outros, autor de poemas, contos e novelas.


CORNELLI, Gabriele; LISI, Francisco L. (Eds). Plato and the city. St. Augustin dei Bonn: Academia Verlag, 2010. Resenha de: KOTHE, Flávio R. Urbana. Campinas, v.4, n.1, p.251-255, jan./jun. 2012. Acessar publicação original [DR]

 

The Nation and its Ruins: Antiquity, Archaeology, and National Imagination in Greece / Yannis Hamilakis

Eu vos saúdo, ruínas solitárias, túmulos santos, muros silenciosos! É a vós que invoco; é a vós que dirijo minhas preces. Sim! Enquanto vossa aparência afasta com pavor secreto os olhares do vulgo, meu coração encontra, ao vos contemplar, o encanto de sentimentos profundos e altos pensamentos. Quantas úteis lições, reflexões tocantes ou fortes não ofereceis ao espírito que sabe vos interrogar! (Volney, Les ruines, ou Méditations sur les révolutions des empires, 1791)

Volney, no famoso livro Les ruines, ou Méditations sur les révolutions des empires, mostra-nos seu fascínio pela imagem das ruínas. Para este historiador e filósofo francês, as ruínas significam os escombros de um mundo que não existe mais; são testemunhas mudas de um passado, esfinges que merecem a atenção do presente e que nos lembram do caráter efêmero de nossas conquistas.

As ruínas, principalmente as gregas, serviram de diferentes formas para representações na modernidade, foram inspiração para a arquitetura no período pós Revolução Francesa e tema para poetas românticos. Consciente desse poder estético das ruínas e preocupado com a identidade nacional da Grécia moderna, o autor grego Yannis Hamilakis escreveu seu livro The Nation and its Ruins: Antiquity, Archaeology, and National Imagination in Greece, publicado em 2007 pela Oxford University Press, ganhador do Edmund Keeley Book Prize, da Modern Greek Studies Association.

O livro é dividido em oito capítulos, nos quais Hamilakis estuda as relações entre Antigüidade clássica e imaginário nacional. O autor levanta uma série de questões que se interligam para formar a problemática da pesquisa: Por que o imaginário nacional precisa de vestígios do passado? Como esses vestígios se interligam no processo de formação imaginária de uma nação? Como a antigüidade pode contribuir para a formação do topos imaginário de uma nação? Como a arqueologia, um dispositivo da modernidade ocidental, auxilia na produção da materialidade de uma nação?

As perguntas ambiciosas que formam a problemática de Hamilakis se enquadram naquilo que François Hartog e Jacques Revel chamaram de “les usages politiques du passé.” Uma das maneiras de fazer uso político da história é a deformação da mesma por motivos nacionalistas, ou seja, a necessidade de formar uma imagem da nação coesa faz com que se excluam certos fatos e acontecimentos para favorecer a idéia de nação (Hartog; Revel, 2001: 08). O uso da história é tão importante para uma nação que Hobsbawm afirma que “nações sem um passado são uma contradição nos termos. O que faz uma nação é o passado, o que justifica uma nação contra outras é o passado, e os historiadores são as pessoas que o produzem.” (Hobsbawm, 1992: 03)

De acordo com Anne-Marie Thiesse (2001/02), existem elementos que permeiam um discurso nacionalista e podem ajudar a sustentar uma pseudo-unidade nacional como a idéia de ancestrais fundadores, uma história que tenha continuidade através de vicissitudes, podendo formar a saga de um povo, uma galeria de heróis que povoam essa história, uma língua e lugares de memória. No caso do livro The Nation and its Ruins, também são elementos importantes a paisagem e os monumentos culturais. No caso da nação grega, nada mais emblemático do que as ruínas arqueológicas como as do Parthenon ou a Acrópoles de Atenas.

O título do primeiro capitulo, “Memories cast in marble: introduction” (pp. 1-33), é uma referência ao clássico de David Sutton, Memories Cast in Stone: The Relevance of the Past in Everyday Life. Hamilakis começa a sua análise refletindo sobre os ícones referentes à Antigüidade presentes na abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas no ano de 2004. Para o autor a abertura dos Jogos Olímpicos colocou em evidência para toda a comunidade internacional os símbolos do imaginário da nação grega, especialmente as ruínas arqueológicas da Antigüidade. Utilizando fotografias do evento, o autor nos mostra que reproduções vivas das ruínas, animadas por atores, desfilaram como emblemas nacionais gregos. O uso das ruínas também é comum como recurso da publicidade de empresas tanto nacionais como multinacionais. O autor discute também os avanços da relação entre a questão do nacional e a arqueologia, colocando as bases teóricas para seu livro na leitura das idéias de Eric Hobsbawm, Benedict Anderson, Ernest Gellner e arqueólogos como Nadia Abu El-Haj:

Neste estudo, valho-me de escritos que vêem o nacionalismo como um sistema cultural, uma ideologia e uma ontologia, como um conjunto de idéias que define o ser-no-mundo das pessoas, organiza a sua existência social corporal, a sua imaginação e mesmo os seus sonhos sociais (cf. Kapferer 1988, 1989; Anderson 1991[1983]; Herzfeld 1992; Gourgouris 1996). Eu vejo o nacionalismo como um quadro de referência organizatório, sempre em processo de construção de si mesmo, do seu objeto (a nação) e dos seus agentes sociais. As suas raízes históricas estão bem documentadas (cf. Gellner 1983; Hobsbawm 1992) e as suas ligações com as tecnologias da modernidade como a tipografia, o mapa, o censo e o museu, bem expostas (cf. Anderson 1991[1983]). A conhecida frase de Anderson sobre a nação como uma comunidade imaginada está agora nos lábios de todos, embora raramente haja qualquer reflexão sobre o que esta afirmação acarreta. (Pg. 15)

Depois de assim estabelecer as suas bases conceituais, no segundo capitulo, “The ‘Soldiers’, the ‘Priests’, and the ‘Hospitals for Contagious Diseases’: the Producers of Archaeological Matter-realities” (pg. 35-56), Hamilakis dedica-se a uma discussão crítica sobre as estruturas e as políticas das produções arqueológicas na Grécia, enfocando os órgãos oficiais que desenvolvem as principais escavações, sendo os principais o State Archaeological Service e o Athens Archaeological Society. Hamilakis defende a idéia de que a arqueologia em solo grego está ligada a uma idéia de “missão nacional”, colocando os museus dedicados à Antigüidade como templos nacionais de uma cultura que às vezes se associa à confusa idéia de uma idade de ouro.

Assim o autor desenvolve uma teoria da arqueologia grega, colocando-a em um cenário religioso, realizada dentro da religião secular da nação, ou seja, a Antigüidade. Os arqueólogos, na interpretação de Hamilakis, atuam como sacerdotes dessa religião, sendo mediadores entre o passado e o presente, enquanto as ruínas ou os monumentos são os seus ícones. A importância da arqueologia como religião secular da nação é atribuída ao seu papel como um provedor de argumentos para a defesa do que é considerado nacional.

No terceiro capítulo, “From Western to Indigenous Hellenism: Antiquity, Archaeology, and the Invention of Modern Greece” (pg. 57-123), há um exame genealógico de como surgiram as estreitas relações entre as antigüidades e a imaginação nacional helênica no século XIX. Hamilakis sustenta que antes da consolidação da idéia de nação, as antigüidades eram vistas pela maioria dos gregos como feitos admiráveis do passado, porém alheios a eles. Ao final do período, contudo, elas haviam tornado-se um recurso simbólico chave da imaginação nacional, essencial à construção do novo Estado-nação grego após a guerra da Ásia Menor. O autor também defende que a Antigüidade, apesar de ter seu uso e significado fomentados pela concepção ocidental do helenismo, foi reformulada por intelectuais gregos em uma nova síntese local, chamada por ele de “helenismo nativo” (Indigenous Hellenism), que envolvia a reabilitação de Bizâncio e o estabelecimento de uma continuidade histórica nacional, além da fusão do nacionalismo com a Ortodoxia Grega.

O capítulo seguinte (“The Archaeologist as Shaman: the Sensory National Archaeology of Manolis Andronikos” pp. 126-167) trata de Manolis Andronikos (1919-1992), considerado o arqueólogo nacional por excelência na Grécia, elevado ao status de grande “xamã” da nação. Andronikos defendia uma praxis arqueológica que enfatizava a ligação emocional com o passado e as propriedades sensoriais e mnemônicas dos artefatos e sítios arqueológicos. A sua filosofia combinava a modernidade da narrativa arqueológica nacional com as visões “pré-modernas” de encontros corpóreos com os ancestrais mortos, os quais eram vistos como tendo uma ligação genealógica direta com as pessoas de hoje. Para o autor, Andronikos é a expressão arqueológica do Helenismo nativo que constrói uma modernidade seletiva, muito diferente de algumas formas da modernidade ocidental.

Em “Spartan Visions: Antiquity and the Metaxas Dictatorship” (pp. 169-204), o autor examina os papéis e significados da Antigüidade durante a ditadura de Metaxas (1936-1941). Nela, buscou-se estabelecer uma nova narrativa nacional, aspirando a uma sociedade utópica chamada “A Terceira Civilização Helênica”, sendo a primeira a Antigüidade clássica e Bizâncio a segunda. Esta narrativa idealizava a Esparta clássica devido aos seus supostos militarismo e austeridade social. Algumas novidades introduzidas no período persistem até a atualidade, como o uso ideológico da antigüidade como ferramenta educacional e as evocações cerimoniais e performáticas do passado e da sua materialidade.

O sexto capítulo, “The Other Parthenon: Antiquity and National Memory at the Concentration Camp” (pp. 205-241), trata dos campos de concentração estabelecidos pelo governo na ilha de Makronisos, conhecida como o “Novo Parthenon”, para onde foram enviados os soldados e cidadãos de esquerda durante a Guerra Civil Grega, com o propósito de reabilitá-los pela doutrinação ideológica. A Antigüidade clássica era usada nessa doutrinação, havendo tentativas de convencer os presos de que o seu destino como descendentes dos gregos antigos era incompatível com ideologias “estrangeiras” como o comunismo. Os presos “redimidos” eram encorajados a construir réplicas de monumentos clássicos como o Parthenon, encenar peças e compor poesia evocando a Antigüidade clássica. O autor contrapõe esta tentativa com as memórias dos presos, que expõem a brutalidade do “experimento”, mas também invocam a Antigüidade clássica – ambos os lados retiram das ruínas o que lhes convêm ideologicamente. Hamilakis sustenta que uma vez estabelecido o mapa mítico nacional, ele se torna o quadro aceito, dotado de suprema autoridade moral, dentro do qual todos os nacionais operam, apesar das suas divergências.

No sétimo capítulo, “Nostalgia for the Whole: the Parthenon (or Elgin) Marbles” (pp. 243-286), a questão dos mármores do Parthenon, atualmente no Museu Britânico de Londres, é analisada tendo em vista superar algumas idéias sobre a restituição cultural e discutir a produção e reprodução da imaginação nacional, as ligações entre os nacionalismos e o colonialismo e as noções de alienabilidade e inalienabilidade.1 O autor sustenta que atualmente os mármores são como os membros exilados e aprisionados do corpo nacional e personificam um elemento chave para a imaginação nacional: a nostalgia pela totalidade. Os mármores são como uma manifestação material do desmembramento e da fragmentação, processos que ameaçam a completude do nacional, cujo discurso baseia-se na unidade e na coesão.

Por fim, no oitavo e último capítulo, “The Nation in Ruins? Conclusions” (pp. 287-301), o autor resume e reitera as questões discutidas previamente sobre as relações entre as antigüidades e a imaginação nacional. Então, Hamilakis parte para uma análise sobre as perspectivas futuras da nação, debate em que freqüentemente se prevê um enfraquecimento ou mesmo fim da nação em conseqüência do fenômeno da globalização. O autor, ao contrário, acredita que esta possa levar ao fortalecimento da nação, pois a incerteza gerada requer a ilusão de permanência e o sentimento de enraizamento proporcionados pela idéia de nação e singularmente presentes na materialidade das ruínas incorporadas à imaginação nacional.

O livro de Hamilakis é uma importante contribuição para os estudos de recepção e apropriação da Antigüidade, da arqueologia e das suas utilizações, assim como para os estudos sobre os usos políticos do passado e sobre a nação, o nacionalismo e a identidade nacional. Por lidar com o caso específico da Grécia moderna de forma tão profunda e variada, The Nation and Its Ruins é esclarecedor para a discussão sobre a construção da nação e dos seus símbolos e sobre os papéis e significados do passado no imaginário nacional. As ruínas acabaram sendo protagonistas na construção da identidade nacional grega – como Volney, permanecemos deslumbrados diante desses restos de pedra.

Referências

HARTOG, François; REVEL, Jacques (Orgs.). Les usages politiques du passé. Paris: Éditions de l’EHESS, 2001.

HOBSBAWM, Eric. Ethnicity and Nationalism in Europe Today. In: Anthropology Today, v.8, n. 1, Feb. 1992

THIESSE, Anne-Marie. Ficções criadoras: as identidades nacionais. In: Anos 90. Porto Alegre: UFRGS, n. 15, 2001/2002.

VOLNEY, Constantin-François. Les ruines, ou Méditations sur les révolutions des empires. Paris: Bossanges Frères, 1821 [1791].

Notas

1 Os conceitos de “alienabilidade” e “inalienabilidade” são construídos em torno do caso do Friso do Párthenon, atualmente pertencente ao British Museum e reivindicado pela Grécia, com constantes protestos e processos internacionais. Hamilakis discute como certos artefatos arqueológicos ganham conotação de alienabilidade, dentro da idéia de trocas simbólicas de Pierre Bourdieu, assumindo valores nacionais e econômicos (Hamilakis, p. 275). Tanto a Alienabilidade e Inalienabilidade estão em uma “symbolic arena” (p. 274), em que são disputados na construção de sentidos nacionais. Tais sentidos não são dados, mas processos de significações.

Mateus Dagios – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGHIS/UFRGS).


HAMILAKIS, Yannis. The Nation and its Ruins: Antiquity, Archaeology, and National Imagination in Greece. (Classical Presences). Oxford University Press, 2007. 352p. Reeditado em 2009. Resenha de: DAGIOS, Mateus. As ruínas e a modernidade. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.20, p.183-188, jan./jul., 2012. Acessar publicação original. [IF].

Os gregos e nós: uma antropologia comparada da Grécia Antiga – DETIENNE (HH)

DETIENNE, Marcel. Os gregos e nós: uma antropologia comparada da Grécia Antiga. Tradução de Mariana Paolozzi Sérvulo da Cunha. São Paulo: Loyola, 162pp. Resenha de: BENHIEN, Rafael Faraco. Em defesa de uma antropologia histórica: com os gregos e para além deles. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.352-357 março 2010.

Como seu nome indica, este livro de Marcel Detienne explora certas relações entre os antigos gregos e nós. Ainda assim, em contraposição ao que geralmente se projeta em tais relações, o autor se recusa a reificar por meio delas quaisquer mitos de origem do Ocidente. Da mesma forma, enfrenta com ousadia o discurso corporativista, mais ou menos sofisticado conforme o caso, daqueles que sustentam uma epistemologia própria aos estudos históricos, sejam eles “antigos” ou “modernos”, “nacionais” ou “estrangeiros”. Os Gregos e Nós trata, antes de tudo, da defesa e dos resultados de uma metodologia experimental, o comparatismo.

É bem verdade que tal método nada tem de novo, como sugere o próprio autor ao recuperar alguns dos fundadores da sociologia, da antropologia e da linguística modernas. Com efeito, para Émile Durkheim, Marcel Mauss e Antoine Meillet, aos quais se somaram mais tarde Marcel Granet e Émile Benveniste, a comparação deveria estar no cerne de toda a reflexão sobre essa dimensão específica da Natureza que é o Social. Não por acaso, no prefácio do primeiro volume do Année Sociologique, publicado em 1898, o próprio Durkheim afirmou: “a história só pode ser uma ciência na medida em que explica, e não pode explicar senão comparando. Mesmo a simples descrição é impraticável de outra maneira: não se descreve bem um fato único, ou do qual se possuem raros exemplos, porque ele não é bem observado”. Ora, tanto para Detienne, como para os cientistas sociais por ele citados, não se trata de reafirmar a essência de um objeto dado a priori, mas sim de colocar em cheque o próprio arranjo de questões a partir do qual o pesquisador concebe a série documental a ser estudada. Em outras palavras, o autor se quer herdeiro da tradição que toma o comparatismo como um instrumento privilegiado para dissolver especulações ontológicas.

Mas se o comparatismo já possui uma história considerável, não deixa de ser interessante ver o quanto sua presença é relativamente recente na obra de Detienne. Explico-me. Entre as décadas de 1960 e 1980, intervalo no qual o autor iniciou carreira e conquistou renome internacional, sua adesão ao grupo que tinha por patrono Louis Gernet e por patrão Jean-Pierre Vernant deu-se em sintonia com os estudos helênicos. Detienne notabilizou-se então por estudar exclusivamente as sociedades gregas, em especial seus mitos e sua religião.

Neste período, o comparatismo, embora evocado de tempos em tempos, não produziu muito mais do que as tímidas páginas que servem de anexo a Problèmes de la Guèrre en Grèce Ancienne (1985), cuja organização ele dividiu com Vernant.

A partir de meados dos anos 1970, contudo, em paralelo aos trabalhos do “helenista puro”, Detienne passou a se interessar cada vez mais pela história crítica de certos conceitos-chave em seu próprio métier. Em L’Invention de La Mythologie (1981), por exemplo, sem se ater a recortes temporais institucionalmente estabelecidos, ele procurou analisar a constituição do campo epistemológico que marcou o sentido moderno de categorias como mito e mitologia. Acompanhando seus empregos ao longo dos séculos, ele mostrou como tais termos foram utilizados por especialistas para reafirmar subrepticiamente toda uma série de pré-conceitos, em particular aqueles que servem para opor civilização e barbárie, razão e imaginação.

Tal esforço reflexivo, associado ao rompimento com Vernant, acabou levando Detienne a, na sequência, reavaliar o papel do comparatismo em sua produção. Em trabalhos como Transcrire les Mythologies (1994), Comparer L’Incomparable (2000) e Comment Être Autochtone (2003), o “helenista” foi aos poucos se confundindo com o “antropólogo”. Vale dizer: cada vez mais distante do discurso que localiza nos antigos gregos uma especificidade ontológica em geral dotada de inestimável valor (os inventores da razão, da estética e da política), Detienne se propôs a observá-los a partir do confronto, ancorado em determinadas variáveis, com as mais distintas experiências societárias. Surgem assim outras razões, outras estéticas e outras políticas, todas aptas a iluminarem-se reciprocamente. Poder-se-ia dizer, e isto estaria correto, que tal transformação só foi possível em função das questões e dos conhecimentos acumulados por Detienne enquanto helenista. Não obstante, na medida em que a perspectiva defendida em seus derradeiros trabalhos engendra um desencantamento dos nossos gregos, tornados um entre tantos povos igualmente interessantes, é preciso reconhecer que há também aí um ataque aos valores celebrados nos mesmos espaços em que ele se formou.

Os Gregos e Nós, publicado originalmente na França em 2005, aprofunda ainda mais esta guinada na trajetória de Detienne. Ao longo de seus seis capítulos, o autor ora procura fundamentar intelectualmente sua proposta comparatista, ora apresenta de forma sucinta os trabalhos coletivos que ele coordenou em torno de temas tratados por tal viés. O capítulo que abre o livro, Fazer antropologia com os gregos, por exemplo, apresenta o projeto de uma antropologia histórica da Grécia Antiga. Tal texto opõe, a partir de um balanço da história das ciências sociais, historiadores e antropólogos. Em linhas gerais, para Detienne, enquanto estes se propuseram desde cedo a comparar “incomparáveis”, colocando frente a frente sociedades que lhes pareciam dotadas de dignidades distintas, aqueles estabeleceram genealogias e oposições destinadas a instaurar ou a reforçar o caráter singular de cada experiência societária. É contra esta história do particular, organizada desde o século XIX em torno da categoria de nação, que Detienne conclama os historiadores e antropólogos atuais a se unirem.

O próximo capítulo, Do mito à mitologia, discute as diferentes embocaduras que, desde o século XVI, guiaram o estudo da mitologia. Na primeira parte do texto, o autor explora o estratégico lugar reservado aos gregos por inúmeros especialistas, qual seja, o de guardiões da fronteira que separa o mito e a razão. Para colocar em cheque tal posição, Detienne então recupera a polissemia da própria noção grega de mito e evoca, em seguida, a análise estruturalista como um caminho eficaz para dar conta desta diversidade.

Afinal, sugere ele, trata-se de um método atento à correspondência entre muitos planos semânticos no mais amplo recorte comparatista possível.

Transcrever as Mitologias, o terceiro capítulo, remete aos estudos realizados no livro homônimo que o autor organizou em meados da década de 1990. A questão que guia aqui a análise é a seguinte: como reagem diferentes sociedades ao verem suas tradições orais ganharem suporte escrito? Comparando experiências gregas, romanas, ameríndias, japoneses e judaicas, Detienne evoca os atores das transcrições, bem como a estrutura social que dá sentido a seus atos. Contrastando um e outro caso, ele procura evidenciar o quanto a cristalização da tradição jamais é ingênua, bem como seu papel na consolidação de novos regimes de historicidade, ou seja, nas formas de se reinventar os vínculos entre o passado, o presente e o futuro.

No capítulo seguinte, A Boca da Verdade, o autor faz um balanço das discussões que se seguiram à publicação de seu livro Les Maîtres de la Vérité dans La Grèce Anchaïque (1967), em particular no que diz respeito à história do vocábulo grego “verdade” (alétheia). De início, a preocupação de Detienne é desvincular este seu antigo trabalho dos defensores da Grécia como “inventora da verdade”. Afinal, mudanças nos sistemas de verdade não são um privilégio do Ocidente, tampouco implicam a substituição de um bloco monolítico por outro. Para o autor, aliás, a modalidade de “verdade” que passa a vigorar na Grécia a partir do século VIII a.C. tomou vários caminhos, muitas vezes conflitantes entre si (a vontade da assembléia de guerreiros, a dos filósofos, a dos sofistas, a dos poetas e assim por diante). A segunda parte do texto, por seu turno, defende a importância de se continuar nas trilhas de uma antropologia das figuras míticas dos mestres da verdade arcaicos. Segundo o autor, tanto os hermeneutas de Lille (p. 83-7), quanto os filósofos discípulos de Heidegger (p.

87-90), ignoraram a importância de tal ciência e, portanto, não puderam avançar muito além do que já sabiam. Aqui, porém, o mais interessante é ver quem Detienne elege como interlocutor e quais argumentos utiliza para desbancá-los.

Quanto aos próprios argumentos, ao menos no que concerne o círculo constituído em torno de Jean Bollack, o mínimo que se pode dizer é que eles simplificam de modo grosseiro os trabalhos dos hermeneutas. Basta abrir os volumes de Bollack sobre Empédocles ou Heráclito para perceber que uma antropologia está sim ali presente e que ela permite colocar em relação diversos textos.

Achar seu Lugar é o título do quinto capítulo da obra. Retomando tópicos já trabalhados em seu livro Comment Être Autochtone (2003), Detienne se preocupa em abordar o problema da construção de identidades históricas. Por certo, o tema não poderia ser mais atual: graças aos esforços de políticos como Le Pen e Sarkozy, a especificidade da França voltou a transformar-se em terreno de acirrados debates. Buscando instrumentos de crítica contra tais novas “mitologias”, o autor volta-se para as práticas e os processos administrativos implicados na produção da crença acerca da autoctonia e da fundação em diferentes sociedades. É assim que ele contrasta, entre outras, as experiências da Atenas do século V a.C. com as da Padânia, da França e de Israel modernos.

Já o derradeiro capítulo, Comparáveis nos balcões do político, investe contra o culto da origem da política e do político na Grécia Antiga. Para tanto, o autor toma como terreno de combate diferentes modalidades de reuniões de pessoas em processos decisórios. A assembléia dos guerreiros gregos é assim comparada à dos cossacos e à dos circacianos, bem como às reuniões dos religiosos budistas no Japão, dos cônegos seculares na França Medieval e dos iniciados (senufo) da Costa do Marfim. Por meio de tais expedientes, interessa a Detienne inventariar quem, em que circunstâncias e de que modo, tem acesso à palavra pública. Assim se compreende melhor, insiste ele, tanto o fato do exercício da política não possuir uma única origem, como ajuda a problematizar as circunstâncias que destruíram estas experiências sociais particulares.

Tendo em vista a estrutura e o tema da referida obra, cumpre dizer aqui que sua tradução para o português chega em boa hora. Com efeito, nós, que vivemos uma expansão sem precedentes do sistema universitário brasileiro (talvez com os dias contados, quem sabe?), podemos pensar a partir dela mudanças interessantes a serem implementadas para as futuras gerações.

Entre os historiadores, por exemplo, qual a razão, além da corporativa, para se manter o curriculum centrado nas etapas de uma história que raramente reflete sobre o ato, em grande medida arbitrário, que a nomeia “Ocidental”? Precisamos de mais cadeiras de Grécia e de Roma Antigas, de Idade Média ou de História do Brasil? A sugestão de Detienne é clara: uma vez que “nossa história não começa com os gregos”, que ela é “infinitamente mais vasta”, é preciso estender nossos interesses para outros domínios. E há mais: é também necessário fazer com que novos e velhos domínios se cruzem, dialoguem entre si. Uma história comparada, outro nome para uma antropologia histórica, não pode se dar ao luxo de formar eruditos inteiramente dedicados ao estudo de uma só cultura.

Afinal, parodiando o Durkheim de As Formas Elementares da Vida Religiosa, o cientista social não deve se interessar apenas por este ou aquele homem em particular, mas também pelo Homem e, ainda mais urgentemente, por todos aqueles com os quais ele compartilha o privilégio e a responsabilidade de dividir um presente.

Por fim, algumas rápidas ponderações sobre a tradução e a edição. Embora tenha realizado um trabalho honesto, a tradutora demonstra não ter grande familiaridade com o vocabulário próprio das ciências sociais, algo nefasto para o leitor desavisado. Assim, contrariando os usos consagrados em português, ela traduz Année Sociologique por Ano Sociológico (p. 33); Potière Jalouse por Ceramista Ciumenta (p. 46 – é bom lembrar que o interessado nesta obra de Claude Lévi-Straus a encontrará em bibliotecas e livrarias brasileiras com outro título, Oleira Ciumenta); e os Annales por Anais (p. 188). A editora deveria ter sanado tais deslizes com uma revisão técnica adequada. Quanto à edição, é simplesmente lamentável que o desaparecimento das oito páginas repletas de fotografias do original francês não seja sequer indicado ao leitor brasileiro.

Rafael Faraco Benthien – Doutorando Universidade de São Paulo (USP) Bolsista FAPESP rfbenthien@hotmail.com Rua Dr. Nogueira Martins, 420/83 – Saúde São Paulo – SP 04143-020 Brasil.

The Feminine Matrix of Sex and Gender in Classical Athens | Kate Gilhuly

The Feminine Matrix of Sex and Gender in Classical Athens é o primeiro livro solo de Kate Gilhuly e resultado de uma pesquisa intitulada Landscapes of Desire: The Erotics of Place in Classical Athens, desenvolvida no Radcliffe Institute for the Advancement of the Humanities entre 2007 e 2008. A autora é professora assistente do Departamento de Estudos Clássicos do Wellesley College e especialista em gênero e história da sexualidade na Grécia Antiga, tendo como publicações como publicações prévias mais importantes os artigos The Phallic Lesbian: Philosophy, Comedy, and Social Inversion in Lucian’s “Dialogues of the Courtesans” (2006) e Bronze for Gold: Subjectivity in Lucian’s “Dialogues of the Courtesans” (2008).

O capítulo introdutório, que podemos considerar como o ápice da obra, apresenta as bases teóricas – da matriz feminina do título – que nortearão as análises de textos antigos ao longo do livro – e que fornecem um novo leque de possibilidades a futuros estudos acerca das temáticas de gênero e sexualidade na Atenas Clássica. Leia Mais

Os gregos, os historiadores, a democracia, o grande desvio | Pierre Vidal-Naquet

Resenhista

Pedro Paulo Abreu Funari – Professor Titular de História Antiga, Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos, Universidade Estadual de Campinas.

Referências desta Resenha

VIDAL-NAQUET, Pierre. Os gregos, os historiadores, a democracia, o grande desvio. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Resenha de FUNARI, Pedro Paulo A. História Revista. Goiânia, v.10, n.1, 2005.  Acessar publicação original.

A História de Homero a Santo Agostinho | François Hartog

Portanto, assim deve ser para mim o historiador: sem medo, incorruptível, livre, amigo da franqueza e da verdade; como diz o poeta cômico, alguém que chame os figos de figos e a gamela de gamela; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou por amizade; que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime, benevolente com todos até o ponto de não dar a um mais que o devido; estrangeiro nos livros, apátrida, autônomo, sem rei, não se preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se passou.

Esta orientação téorico-metodológica, esta introdução aos estudos históricos, embora tenha semelhança com o postulado estabelecido por Ranke no século XIX, aquele que instruía o historiador a “mostrar como algo realmente aconteceu” (wie es eigentlich gewesen 2), não pertence, no entanto, ao grande historiador alemão. Nem a W. Humboldt, ou a G. Monod, e muito menos a Langlois e Seignobos 3. Esta passagem é uma criação antiga, cuja data remonta ao ano 165 de nossa era, e foi escrita por Luciano de Samósata (119-175 d.C.), autor de numerosos tratados (diálogos, panfletos e sátiras), e da “única obra sobre a história que nos chegou da Antiguidade!”, explica François Hartog, na introdução que faz à coletânea, da qual também é o organizador e comentador, A história de Homero a Santo Agostinho 4. Leia Mais

Historein | CIHS | 1999

Historein

Historein (Athens, 1999)   is an international, peer-reviewed, open-access electronic journal published biannually by the Cultural and Intellectual History Society (Athens). It is both historical and interdisciplinary in its perspective. It is thus situated within a scholarly “free trade” zone that encourages the interaction between history, philosophy, social anthropology, sociology, gender and labour studies, epistemology, literary and cultural studies. Its main aim is to promote the study of themes and phenomena that cannot be approached solely from within one discipline.

Historein strongly supports approaches that tend to erase the distance between theory and research by making self-reflection a vital element of historical scholarship at all levels and stages. At the centre of its interest are questions concerning the production of knowledge about the past, the historicity of interpretative and argumentative strategies, and the politics of disciplinarity. Within this framework, Historein also aims at the enrichment of the evolving debates around class, gender, race, ethnicity, nationality, religion and generation, and the impact respective conceptualisations have had on the establishment of collective formations and subjectivities.

The journal invites articles that present research around the theme of each issue. Contextual approaches and case-studies are welcomed, while emphasis is put on the national, transnational and global structures and dynamics that have defined and determined these phenomena in the modern era. Apart from scholarly articles, it also contains a review section referring mostly to recently published works mainly but not exclusively on Greece. Its intention is to create a vibrant forum for critical insights and exchanges, and invites contributions that include reviews, commentaries and review articles that promote crucial dialogue and take positions within contemporary debates in the fields of history and the humanities.

Periodicidade semestral.

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Antiguidade Clássica. A história e a cultura a partir dos documentos | Pedro Paulo A. Funari

FUNARI, Pedro Paulo A. Antiguidade Clássica. A história e a cultura a partir dos documentos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. Resenha de: MARTIN, Gabriela. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.16, n.1, p. 175-176, jan./dez. 1996.

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