História pública na América Latina: mediações do passado demandas sociais e tempo presente | Estudos Ibero-americanos | 2021

Discurso de Bolsonaro na ONU Laerte História Pública
Sobre o discurso vergonhoso de Bolsonaro na OUN | Charge: Laert | Chargeonline.com.br Disponível no Blog da KIKACASTRO

Sob a expressão história pública, reúnem-se múltiplas iniciativas em favor do redimensionamento do saber histórico (produção compartilha­da e ampliação dos públicos da história), observando-se as mediações do passado e as demandas sociais no tempo presente. A história não é aprendida e assimilada somente por meio da educação formal; isto significa que praticá-la requer uma ação problematizadora no debate público, de maneira responsável e integrada, para uma história partici­pativa. A história pública, por meio das discussões sobre os usos e os abusos do passado, abarca questões socialmente vivas que catalisam significações, teóricas e práticas, sobre a memória social em perspectiva transnacional: a diversidade de públicos da história; o impacto social e público da produção acadêmica em história; a interface entre história pública e divulgação científica; os debates públicos sobre patrimônio material e imaterial; o impacto das novas mídias sobre as estratégias de produção e de publicização da história; os procedimentos da história diante de celebrações, comemorações e memoriais; os cruzamentos entre história pública e história oral para uma história participativa; o entrecruzamento da história com áreas de conhecimento aplicado, como o jornalismo, o cinema, as relações públicas, a gestão de organizações, o turismo; a relação entre história e literatura em múltiplos âmbitos de narrativa histórica: as biografias, os testemunhos, a ficção histórica.  Os caminhos da história pública na América Latina, para além de fronteiras físicas e disciplinares, estão sendo traçados. As experiências que transitam entre a documentação, a construção de conhecimentos e sua ampla disse­minação fortalecem, a cada passo, esse movimento. Peça a peça, a história pública se monta em um amplo quebra-cabeças – com interstícios e amplos mapas, na medida em que evidencia os ecos e as entranhas da produção e reprodução da vida cotidiana, social, cultural e política de cada um e de cada comunidade. Leia Mais

Mulheres intelectuais: práticas culturais de mediação | Estudos Ibero-Americanos | 2021

Em tempos de pandemia, organizar um dossiê sobre as práticas culturais de mediação, especificamente sobre o lugar e o papel das mulheres intelectuais, obrigou-nos a refletir sobre nossas próprias práticas mediadoras, como professoras e pesquisadoras. Lendo os artigos enviados, pensando em pareceristas e lendo os pareceres, quer dizer, atuando como editoras (uma prática de mediação cultural), íamos nos dando conta das temáticas, períodos e possibilidades de ação das mulheres, quando se dedicavam à mediação cultural. Nessa atividade editorial, fomos também nos apercebendo do nosso papel como intelectuais mediadoras. Por isso, iremos começar essa apresentação, usando o nosso próprio exemplo de mulheres professoras universitárias para pensar a categoria de intelectual mediador(a). Isso porque, se tal categoria é bastante operacional, não deve ser banalizada, correndo o risco de perder seu valor cognitivo.

Desde que o isolamento social se fez necessário, fomos desafiadas a, não só transformar nossas práticas de ensino, que de uma sala de aula “real” foi para uma sala “virtual” de mídia eletrônica; como também, nossas práticas de divulgação do conhecimento, que passaram a se voltar para públicos mais amplos e diferenciados, além do público de pares e estudantes costumeiro. Foi necessário reinventar formas de continuar ministrando aulas, de realizar e publicizar pesquisas, mas nos acostumando – não sem dificuldades – com tipos de comunicação a distância e com novos públicos. Assim, muitos de nós experimentamos, pela primeira vez, os procedimentos da produção de vídeos, podcasts, aulas abertas e entrevistas, disponibilizadas em plataformas digitais, que além de alcançar nossos alunos e pares, ultrapassam em muito o mundo acadêmico. Leia Mais

História das mulheres, das relações de gênero e das sexualidades dissidentes / Estudos Ibero-Americanos / 2021

A pesquisa sobre História das Mulheres, relações de gênero e sexualidades dissidentes da cisheteronormatividade vem rendendo muitos textos publicados na forma de livros, capítulos e artigos. Essa trajetória de pesquisa que, em 1989, rendeu o primeiro dossiê intitulado “A mulher no espaço público”, publicado na Revista Brasileira de História e organizado por Maria Stella Martins Bresciani,[3] tem crescido significativamente, ampliando seus debates, incorporando novas discussões e enfrentando novos desafios.

Quando fomos convidadas a propor uma chamada de artigos para o dossiê, sabíamos que havia no campo uma grande quantidade de resultados merecendo ser divulgados. Foi com agradável surpresa que recebemos 43 artigos. Desses, 12 estavam fora das normas e foram devolvidos; e 31 foram enviados para avaliação. Da lista dos que tiveram pareceres ad hoc favoráveis, escolhemos apenas 12, como constava das regras da revista.

Essa experiência foi gratificante, mas nos causou preocupação. Muitos artigos com grande qualidade e bons pareceres não puderam ser publicados aqui, nesse dossiê. No entanto, demonstram a potencialidade do campo, resultado de recursos investidos na pesquisa, especialmente entre 2005 e 2016, da criação de grupos de estudos nas universidades e da vitalidade de movimentos sociais. Mostra, também, que a chamada “onda conservadora” antifeminista e homofóbica na América Latina, apesar dos seus ganhos eleitorais, não tem conseguido implantar seu “pânico moral”[4] na academia. Ao contrário, observa-se resistência, crescimento e diversificação.

Os artigos escolhidos para publicação neste dossiê se concentram, principalmente, na discussão sobre História das Mulheres. Apenas um dos artigos focalizou as sexualidades dissidentes da cisheteronormatividade. Pelo menos três artigos fizeram balanços historiográficos. O debate com a mídia, tendo como fontes livros, novelas e jornais, foi o principal suporte para a discussão sobre as subjetividades e a prescrição de normas para mulheres em diferentes momentos.

Abrindo o dossiê, o artigo “Relações de gênero, capitalismos afetivos, literatura ‘Chick-lit/Soft Porn’ e a ‘nova’ escrita contemporânea de/para mulheres”, escrito por Ana Carolina Eiras Coelho Soares, focaliza a literatura recente, sucesso de vendas, voltada para mulheres. A autora mostra como, apesar de essa literatura partir do pressuposto de que o prazer no sexo é um direito das mulheres, muitas imagens antigas são revisitadas. Nos pares que se formam, nessa literatura, os homens são sempre brancos, bem-sucedidos profissionalmente e muito mais ricos que as mulheres. Essas, possuem empregos insignificantes e nunca têm carreiras de sucesso. Elas se submetem “livremente” aos desejos do homem, por mais violentos que esses sejam. Uma cinderela contemporânea?

Raquel de Barros Pinto Miguel, no artigo “Fotonovelas: prescrevendo normas, modos e modas”, analisou as fotonovelas publicadas na revista Capricho nas décadas de 1950 e 1960. Nelas, as mocinhas, em geral pobres e órfãs, sofriam até encontrar a felicidade, casando-se com homem rico e lindo. A autora analisa essa “literatura de escape” e mostra o sucesso que obteve, observando a constituição das subjetividades engendradas.

O artigo “Modernidad, cultura y vanguardia feminista: Concha Méndez, una adelantada a su tiempo. De la voluntad emancipadora al exilio trasatlántico”, de Esmeralda Broullón, trata de analisar a trajetória pessoal e cultural da poetisa da geração de 1927, Concha Méndez, destacando o seu papel como escritora, editora e promotora cultural na Espanha nos anos 1920 e 1930, juntamente com o conhecido poeta Manuel Altolaguirre. Enfoca o período caracterizado pela grande efervescência política, pelo avanço do feminismo no país ibérico e por instituições de estudos como o Lyceum Club, um influente círculo cultural do qual Concha Méndez fez parte e onde se conheceram destacadas feministas que, pouco depois, em 1931, defenderam a conquista do voto feminino. A trajetória da autora no exílio mexicano, após a derrota da república espanhola em 1939, é, também, rapidamente delineada no artigo.

As discussões que articulam gênero e decolonialidade ou, como dizem as autoras, as “perspectivas contra coloniais” estão presentes no texto de Cintia Lima Crescêncio e Gleidiane de Sousa Ferreira, intitulado “Da História das Mulheres às perspectivas Contra-Coloniais? Reflexões sobre a historiografia do gênero no Brasil (2001-2019)”. Buscando, em eventos promovidos pela Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil) e pelo Fazendo Gênero a presença da discussão contra-colonial entre pesquisadoras/es que discutem História das Mulheres e gênero, as autoras constatam que esse é um tema iniciante e com pouca presença, o que demonstra um pouco de resistência do campo da historiografia para essa questão.

Utilizando com principal fonte o periódico argentino Brujas, Júlia Glaciela da Silva Oliveira, no artigo “’Sin senderos prefijados’: a defesa da autonomia feminista nas páginas de Brujas (1981-1996)”, discute a autonomia do movimento feminista. Além de apresentar a historicidade desse debate nos anos 1970, a autora articula o tema com o avanço neoliberal na América Latina.

Também usando periódicos como a principal fonte, o artigo “As mulheres e suas tramas impressas: um repensar historiográfico das produções sobre a sociedade carioca e portenha dos anos iniciais da segunda metade do século XIX”, escrito por Bárbara Figueiredo Souto, mostra como a historiografia da imprensa e a que focaliza intelectuais ainda não deu a devida visibilidade às mulheres que escreveram e dirigiram periódicos em Buenos Aires e no Rio de Janeiro no século XIX. No artigo, Joanna Paula Manso de Noronha, por sua trajetória como editora e escritora, tanto na Argentina como no Brasil, é classificada como uma intelectual-mediadora-feminista-transnacional.

Patrícia Lessa e Claudia Maia, no artigo “Feminismo, vegetarianismo e antivivisseccionismo em Maria Lacerda de Moura”, trazem do início do século XX uma discussão que tem ganhado força neste início do século XXI: o antiespecismo. No caso de Maria Lacerda de Moura, tratava-se de um feminismo que se articulava com a questão da classe, com a luta pelo vegetarianismo e contra a vivissecção. Importante destacar como questões que hoje ganham destaque eram alvo de discussões e de publicações por Maria Lacerda de Moura e, no entanto, ficaram esquecidas.

O artigo “Algunas reflexiones sobre género y memoria en las narrativas sobre los años setenta en Argentina”, de Ana Laura Noguera, levanta questões importantes sobre a memória e a História do Tempo Presente na Argentina. A autora aponta as discussões teórico metodológicas que articulam gênero e memória na história recente. Mostra a importância da história oral para a pesquisa em História das Mulheres e do Gênero. Destaca, também, a forma como homens e mulheres narram suas histórias de vida e o impacto historiográfico das diferentes histórias para a noção de agência.

Caroline Pereira Leal, no artigo “’Mais bela do que o sol, mais bela do que o céu’: representação feminina no discurso carnavalesco da Porto Alegre do início do século XX (1906-1914)”, nos leva de volta ao início do século passado para mostrar as tentativas de definir, nas elites e com repercussões duvidosas, como deveriam se comportar as mulheres nas festas de carnaval.

O artigo “Memória em disputa: Inah Costa e os desafios da história das mulheres artistas”, escrito por Rebecca Corrêa e Silva, discute a invisibilidade, as dificuldades e o impacto do gênero na vida das mulheres que atuam no campo da arte. Ela traz a história de uma artista que passou da pintura figurativa para a moderna e abstrata.

O único artigo que discute sexualidades dissidentes é o de Marina Leitão Mesquita, intitulado “Gênero, dissidência e tradição na (re)invenção da feminilidade em concursos de beleza gay”. Trata- -se de uma etnografia sobre concursos de beleza gay em Fortaleza, Ceará. A discussão sobre as hierarquias, formas de feminilidades aceitas, assim como a memória de momentos em que a polícia interferia, marcam a narrativa. A discussão sobre a “feminilidade espetacular”, como padrão de beleza, ajuda a questionar as configurações de gênero.

O artigo de María Laura Osta Vázquez, intitulado “Manos que mecen la cuna: las nodrizas uruguayas bajo el control del discurso médico en el siglo XIX”, mostra o fim de uma profissão assumida por muitas mulheres pobres, negras, mestiças e estrangeiras: as amas de leite. Na segunda metade do século XIX, o discurso médico passou a questionar as mulheres que entregavam seus filhos para amas de leite e a discutir a saúde e a moral dessas profissionais. Toda essa campanha foi feita pela imprensa e pelo discurso médico higienista que – em nome da redução da mortalidade infantil – passou a cobrar das mulheres o “amor materno”.

Temos a honra que encerrar este dossiê com a entrevista de Maria Odila Leite da Silva Dias, professora emérita da Universidade de São Paulo (USP). Autora, entre outros, do livro Quotidiano e Poder, que abriu caminhos para a história das mulheres no Brasil, focalizando mulheres pobres, escravizadas e forras nas suas lidas para prover a existência no início do século XIX, ela é responsável pela formação de pesquisadoras que trouxeram inúmeras contribuições para o campo da História das Mulheres, do gênero e das sexualidades dissidentes.

Boa leitura.

Notas

3. BRESCIANI, Maria Stella Martins (org.). A Mulher no Espaço Público. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n. 18, p. 7-8, ago./ set. 1989.

4. MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Sociedade e Estado, Brasília, v. 32, n. 3, p. 725-744, set./dez. 2017

Joana Maria Pedro –  Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, SP, Brasil; pós- doutora na França, na Université d’Avignon e, também, nos Estados Unidos, na Brown University; professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, SC Brasil. Coordenadora do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), Florianópolis/SC, Brasil. Atuou como Presidenta da Associação Nacional de História (ANPUH), na gestão 2017-2019. orcid.org/0000-0001-5690-4859 E-mail: [email protected]

Pilar Domínguez Prats –  Doctora en Historia por la Universidad Complutense de Madrid (UCM), en Madrid, España. Profesora honorífica del área de Historia del Pensamiento Político y Movimientos Sociales de la Universidad de Las Palmas de Gran Canaria, España. En la actualidad es investigadora del proyecto: Redes de Cooperación Interuniversitaria Canarias-Africa en Políticas de Igualdad desde metodologías colaborativas” y del Centro de Estudios y Difusión del Atlántico, CEDA. Socia fundadora del Seminario de Fuentes Orales de la Universidad Complutense de Madrid y del Instituto de Investigaciones Feministas de la UCM; presidenta de la Asociación Internacional de Historia Oral, IOHA (2008-2010) y miembro del Consejo de IOHA (2004 a 2012). orcid.org/0000-0002-8829-2508 E-mail: [email protected]


PEDRO, Joana Maria; PRATS, Pilar Domínguez. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 47, n. 1, jan./ abr. 2021. Acessar publicação original [DR]

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Pan-americanismo: novos olhares sobre as relações continentais | Estudos Ibero-Americanos | 2020

A criação da União Internacional das Repúblicas Americanas (1889), depois renomeada União Pan-americana (1910), e a realização das chamadas Conferências Internacionais Americanas, que acabaram ficando muito mais conhecidas simplesmente como Conferências Pan-americanas – Washington (1889-1890), Cidade do México (1901-1902), Rio de Janeiro (1906), Buenos Aires (1910), Santiago de Chile (1923), Havana (1928), Montevidéu (1933), Lima (1938), Bogotá (1948) e Caracas (1954) – marcou de forma profunda o estabelecimento de novos canais e formas de relacionamento econômico, político, diplomático e cultural dos Estados Americanos, entre si e com as nações de outros continentes.

Ainda que muitos estudos remontem suas origens ao Congresso do Panamá, convocado por Simon Bolívar, em 1826, é certo que o Pan-americanismo da União Pan-americana (UPA) em nada lembra o ideal bolivarista de formação de uma Confederação dos novos Estados americanos recém independentes. Ao contrário, remete muito mais às ideias esboçadas pelo Presidente James Monroe na sua célebre mensagem ao Congresso dos Estados Unidos em 1923 e que se tornaram os pilares da chamada Doutrina Monroe. Leia Mais

Imprensa, cultura e circulação de ideias / Estudos Ibero-Americanos / 2020

Este dossiê foi proposto, tendo por norte os objetivos do grupo de pesquisa inscrito no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq): Imprensa e circulação de ideias o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX que reúne cerca de 90 pesquisadores nacionais e estrangeiros, distribuídos em várias linhas de estudos, para pensar a imprensa impressa periódica de grande circulação em suas conexões nacionais e internacionais. Proposto pela linha de pesquisa O Brasil e as Américas, o dossiê aqui apresentado reúne artigos que ultrapassam os limites desta última, apresentando temas que envolvem não só a imprensa ibero-americana, mas também aspectos mais gerais do fazer jornal e do fazer jornalismo.

Demos aos artigos selecionados uma organização cronológica, mas que acaba por atender também a uma divisão temática. O artigo de Karen Racine transporta a questão para a década de 1820, em Birghman, na Inglaterra, a nação mais poderosa do mundo e berço da imprensa periódica. Em um contexto tanto de expansão da imprensa como de novas experiências pedagógicas, jovens estudantes, filhos da elite de uma América hispânica revolucionada foram enviados para o estrangeiro, a fim de estudar numa escola progressiva chamada Hazelwood onde produziram um curioso jornal, o Hazelwood Magazine, que alinhado com os objetivos cívicos e pedagógicos da escola, pretendia formar os cidadãos de bom caráter dentro da lógica revolucionária liberal. Do outro lado do mundo, no Brasil, o embate que se verificava entre as elites de um Maranhão ainda divido entre a adesão à independência brasileira e a fidelidade a Portugal, aparece nas páginas do jornal longevo – para os padrões do tempo –, o Conciliador do Maranhão. Exemplo que demonstra como as notícias e o debate constitucional tiveram uma circulação transatlântica que incluía os pontos mais distantes desse imenso país, como o demonstra o artigo de Marcelo Cheche. Na corte do Rio de Janeiro, uma imprensa incipiente, mas de grande atividade agitaria a cena da independência. Um dos personagens de maior destaque foi João Soares Lisboa, redator do Correio do Rio de Janeiro que liderou o movimento pela convocação de uma constituinte brasileira, a partir de um abaixo-assinado apresentado a d. Pedro. Soares Lisboa foi um difusor da cultura política das luzes e, em seu artigo, Paula Caricchio apresenta e discute a forma como as ideias de Civique Gastine foram difundidas no Brasil através as páginas do Correio do Rio de Janeiro.

Dentro do mesmo recorte temporal, século XIX, reunimos os artigos que contemplam o papel da evolução das técnicas de impressão e da especialização das atividades jornalísticas que sucederam aos embates travados na imprensa do Primeiro Reinado. O uso da litografia pela imprensa periódica possibilitou o surgimento e a popularização das revistas ilustradas dando vez a um elenco de caricaturistas e ilustradores especialmente estrangeiros, que tornariam bem mais animada a cena impressa brasileira. Um dos que aqui aportou, em 1875, foi Rafael Bordalo Pinheiro, maior nome da caricatura portuguesa do XIX. Rosangela de Jesus analisa as dificuldades de adaptação de Bordalo Pinheiro em um ambiente já consolidado em que outros artistas já tinham conquistado renome. Com a multiplicação de jornais e revistas ao longo do século XIX, os empregos nas tipografias para profissionais do ramo também se multiplicaram. Exercendo uma profissão que requeria o bom conhecimento da língua, os tipógrafos foram uma das primeiras categorias a se organizar e a publicar seus próprios jornais. Tania de Luca analisa esse processo a partir do estudo de uma das publicações do gênero, a Revista Tipográfica, que circulou no Rio de Janeiro entre 1888 e 1890, revelando a forma como os tipógrafos viam a profissão e como avaliavam o avanço da arte tipográfica no Brasil. O progresso da imprensa no dezenove também levou a uma especialização setorial com destaque para a imprensa esportiva uma das que primeiro se firmou. Sendo o famoso esporte bretão o que viria a se tornar o mais popular no Brasil, Victor Melo apresenta as adaptações que o futebol sofreu, comparando as informações que a imprensa fluminense fornecia sobre a prática daquele esporte na Inglaterra, na França e na Argentina. Em 1898, a realização, em Lisboa, do Congresso Internacional da Imprensa, como nos revela Adelaide Machado, seria um fator de reconhecimento da grande transformação que a imprensa sofrera ao longo do século XIX: o jornalismo tinha se firmado como profissão independente; fora criado um estilo jornalístico de escrita e a própria imprensa se convertera um negócio altamente lucrativo dando origem às grandes empresa jornalísticas.

A segunda parte de nosso dossiê se ocupa do século XX e se divide entre quatro artigos. Os dois primeiros voltados para o tema da imigração em dois contextos bem diferentes. A política de imigração europeia iniciada por d. Pedro II teve grande impulso no final do século XIX. O artigo de Rosane Marcia Neuman nos apresenta curiosa publicação aparecida em Leipzig, na Alemanha, em 1902 e 1903. Era assinada pelo dono de uma empresa de colonização, Hermann Meyer, com o objetivo de fazer propaganda das vantagens de imigrar para o Brasil. Em sua publicação, Meyer reproduz artigos e cartas de e / imigrantes alemães, membros da colônia criada por ele, entre os municípios de Cruz Alta e Palmeira, no Rio Grande do Sul. Uma outra imigração, bem diversa foi a que, depois da Segunda Guerra Mundial, deu origem a uma colônia formada por certa de 2500 pessoas que se estabeleceram no município de Guarapuava, no Paraná, no hoje distrito de Entre Rios. Esse distrito foi fundado, entre março de 1951 e janeiro de 1952, justamente para acolher aqueles imigrantes. Os membros dessa colônia se identificam coletivamente como suábios do Danúbio e eram oriundos de áreas da antiga Iugoslávia, Hungria e Romênia. Marcos Nestor Stein em seu artigo, apresenta e analisa as narrativas desses imigrantes publicadas em 1991 e 1992 no Jornal de Entre Rios em comemoração aos 40 anos de fundação daquele distrito.

O uso da imprensa para a desconstrução de imagem de um político é contemplado com dois artigos que falam sobre Getúlio Vargas em dois períodos momentos distintos. George Seabra escreve sobre o jornal Anhanguera, principal veículo de divulgação do ideário do movimento bandeirante que se apropriava de representações literária dos bandeirantes paulistas com finalidades políticas. O autor apresenta o perfil de alguns de seus membros, analisa a forma como divulgam seu ideário e mostra como o jornal foi recebido por militares e civis. Destaca ainda o papel de Anhanguera na construção da imagem negativa de Getúlio Vargas, em contraste com a do candidato paulista à Presidência da República, Armando de Salles Oliveira, nas eleições de 1937, abortadas pelo golpe do Estado Novo. Outro Getúlio Vargas, eleito presidente em 1951 e já transformado pela história, será o alvo dos ataques do jornal Correio da Manhã. Luiz Carlos dos Passos Martins, mostra em seu artigo como aquele jornal fundando no final do século XIX, seria uma das trincheiras de combate a Vargas e ao próprio regime democrático.

Finalmente, mas não menos importante, é a contribuição que nos traz de Cuba Yaneidys Arencibia Coloma, que nos revela um pouco do que era a imprensa que se fazia na ilha, antes da revolução de Fidel. A autora nos apresenta a Jorge Manach, jornalista, editor e intelectual de grande influência no seu país, destacando o caráter de ensaística cultural que caracterizava seus escritos, seus vínculos com vários projetos editoriais e sua ação decisiva no sentido de que fosse criada a Universidad del Aire. Esse artigo nos ajuda a conhecer o gradual processo de autonomia e de legitimação do pensamento cultural cubano, além de contribuir para nos mostrar formas específicas de sociabilidade intelectual, originadas pela atuação de Manach em seu tempo.

Temos o privilégio de encerrar esse número com uma entrevista com Celia Del Palácio Montiel, importante pesquisadora da história da imprensa mexicana, fundadora da Red de Historiadores de la Prensa en Iberoamérica (1999) e, desde 2018, coordenadora do Grupo Temático Historia de la Comunicación, da Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación (ALAIC) e autora de inúmeras publicações. Nesta entrevista, Célia del Palácio reafirma a importância da imprensa como campo estratégico fundamental para a história e demonstra como esse campo de estudos vem se consolidando na América Latina. A historiadora também destaca o papel dos estudiosos da imprensa no atual contexto mundial: “A los estudiosos de los medios toca analizar a profundidad lo que ocurre, desde la academia, denunciar los ataques a la libertad de expresión y presentar la evidencia en los foros más allá del reducido espacio académico” [3]. Esperamos que este Dossiê seja uma contribuição à essa tarefa.

Notas

3. PALÁCIO, Célia Del. Depoimento de Célia Del Palácio. Destinatários: Marlise Regina Meyrer e Helder V. Gordim da Silveira. [S. l.], 7 abr. 2020. 1 mensagem eletrônica.

Isabel Lustosa – Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, RJ. orcid.org / 0000-0003-2456-6925 E-mail: [email protected]

Marlise Regina Meyrer – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs). orcid.org / 0000-0002-6446-7799 E-mail: [email protected]


LUSTOSA, Isabel; MEYRER, Marlise Regina. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 46, n. 2, maio / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Escrevendo a História Ambiental da América Latina: Processos de Ocupação, Exploração e Apropriação da Natureza / Estudos Ibero-Americanos / 2020

Tendo-se implantado no cenário acadêmico latino-americano apenas no início do século XXI, depois de já bem estabelecida nos Estados Unidos e na Europa, a história ambiental é um campo jovem da produção científica no subcontinente, mas podemos considerar que já dotado de firmes alicerces. Desde então, a pesquisa na área ganhou espaço nas instituições universitárias de muitos países, abrindo caminho para uma renovação dos horizontes teóricos, temáticos e interpretativos da historiografia. Sua presença tem se mostrado crescente em programas de pós-graduação, dando origem a grupos, laboratórios e centros de investigação, conduzindo à organização de sociedades científicas e eventos de dimensão variada. Ao estudar as interações ativas entre os agrupamentos humanos e os elementos da natureza, com base em abordagens dinâmicas que intersecionam áreas como a geografia, a biologia, a antropologia, os estudos culturais e a produção discursiva, a história ambiental mostra-se capaz de configurar objetos ainda não explorados e gerar perspectivas originais de leitura do passado.

No contexto latino-americano, o campo tem oferecido referenciais capazes de conduzir à problematização de diversos aspectos da trajetória desses países: os modos de exploração colonial do território e seus desdobramentos; a incorporação do imaginário da natureza nas culturas nacionais; a geração de ferramentas intelectuais e técnico-científicas para o escrutínio da base físico-geográfica das nações; a apropriação do território e dos elementos do ambiente como “recursos naturais” e “matérias-primas”; as formas de ocupação humana do espaço; os impactos ambientais da produção econômica e de suas externalidades; a circulação e a comodificação de espécies; os movimentos sociais conservacionistas e ambientalistas; os aspectos sensoriais, perceptivos e emocionais do contato com a natureza. Esses estudos caracterizam-se por seus aspectos interdisciplinares, seus diversificados temas, problematizações, bases conceituais, escalas de referência e delimitações espaciais, em uma demonstração da heterogeneidade e do dinamismo do campo.

Este dossiê apresenta uma amostra da produção contemporânea em história ambiental latino-americana. “A agricultura e floresta dos alemães no Brasil: mobilidade, conhecimentos e transfers no Urwald (século XIX)”, assinado por Eduardo Relly, abre horizontes inovadores para o campo. O autor questiona, sobretudo, o que denomina “nacionalismo metodológico”, perspectiva que conduz a uma abordagem estática da dimensão espacial, reduzindo o escopo das análises a referências territoriais estanques. No contexto da história das migrações em massa dos séculos XIX e XX, ele propõe uma abordagem transcultural em que a região e a localidade sejam trabalhadas a partir da dinâmica das construções e práticas sociais, que conduzem à constante reelaboração das fronteiras. Aplicando o conceito de transfers à história agrícola e florestal, ele enfatiza, ao contrário da definição do processo migratório como ruptura cultural, até hoje privilegiada, a necessidade de também atentar para os fluxos de informação e experiência entre o Brasil e a Europa, escrevendo a história de uma agropecuária, por exemplo, teuto-brasileira. Sua pesquisa esclarece que, para além da incorporação de técnicas e produtos agrícolas próprios da cultura brasileira, os imigrantes também aportaram conhecimentos europeus relacionados ao manejo do fogo e introduziram sementes e mudas de sua sociedade de origem. A própria escolha dos setores agropecuários a serem adotados por eles nas colônias refletiu, como observa o autor, afinidades culturais prévias.

Também em um contexto relacionado à colonização neoeuropeia, o trabalho de Claudia Schemes, Magna Lima Magalhães e Cleber Cristiano Prodanov, “Um rio, uma cidade: caminhos que se cruzam – São Sebastião do Caí (RS)” exemplifica a pesquisa em história ambiental urbana, estudando a relação de uma cidade com o rio que a cruza. Acompanhando a história do município pelo viés de suas interações com o rio Caí, o estudo explora os condicionamentos, limites e possibilidades por ele representados desde a ocupação europeia e, particularmente, desde a colonização da região por imigrantes alemães. As múltiplas dimensões da simbiose entre cidade e rio são descritas a partir do estudo do ordenamento espacial, das práticas econômicas, dos modos de ocupação e distribuição populacional ao longo de sua evolução histórica. À medida que aborda os resultados dessa interação, que compreendem o desmatamento das áreas ribeirinhas e o consequente assoreamento do rio, o estudo permite acompanhar as rotinas sociais e econômicas do município, que consagraram a navegação fluvial como fator de impulsionamento da atividade produtiva. Ao mesmo tempo, enfoca os prejuízos causados pelas enchentes periódicas, tão recorrentes que passaram a ser vistas tanto quanto eventos naturais como culturais. Ao longo do artigo, o panorama histórico permite descrever a dinâmica da relação entre o rio e o município, exemplificando a reciprocidade das interações entre sociedade e ambiente.

Questões similares são tratadas pelo artigo de Alfredo Ricardo Silva Lopes, “Uma história social dos desastres de 1974 na bacia do rio Tubarão (SC- Brasil)”, que analisa o impacto das enchentes e deslizamentos de terra então ocorridos na região catarinense. O autor reconstitui o evento conforme as narrativas de suas testemunhas, registradas pela imprensa e pela escrita memorialística locais. O estudo dessa produção textual permite observar o impacto imediato da catástrofe a partir dos modos de representação e significação da experiência, ao mesmo tempo que explicita as estratégias de mobilização empregadas para a reorganização da vida urbana em função da profunda crise social que se seguiu. As fortes ondas emigratórias foram sua manifestação mais visível, além do desalojamento, das dificuldades de subsistência, da desorganização das atividades produtivas, da generalização da violência e sua decorrente política de controle e repressão social. O autor demonstra como, com a reconstrução da cidade, obras públicas lograram manter sob controle uma região caracterizada como uma “bacia de inundação”, onde as condições geográficas apontam para um elevado risco de enchente. Para além da excepcionalidade do evento em questão, esse estudo de caso ilustra exemplarmente o dinamismo, a reciprocidade e a busca de um equilíbrio – por vezes precário – característicos da interação entre as sociedades e seu ambiente físico.

Compreendendo um âmbito geográfico mais amplo, o trabalho de Eduardo di Deus, “A borracha que apaga o café: notas para uma história tecnoambiental da seringueira em São Paulo”, aborda a expansão do plantio da Hevea spp no planalto ocidental paulista, desde as primeiras experiências como árvores laticíferas no final do século XIX até o auge da produção no final dos anos 1980. O trabalho reconstitui o processo de implantação da heveicultura em seus aspectos tecnológicos e produtivos, atentando também para fundamentos institucionais e econômicos, para sua articulação com a tradicional agricultura cafeeira e para a circulação internacional de informação e de meios tecnológicos no setor. Ao mesmo tempo, o estudo demonstra a centralidade das instituições de pesquisa e desenvolvimento agrícola do estado na prestação de assistência técnica aos produtores, enquanto atenta para as demandas do setor industrial, para as condições de manejo, transporte e processamento da produção. Como se vê, o artigo integra os múltiplos aspectos que condicionaram a produção da seringueira como alternativa econômica em São Paulo, demonstrando a importância de considerar os processos produtivos a partir das relações das sociedades humanas com os elementos ambientais, e identificando na apropriação de tecnologia os meios de sua viabilização.

Trazendo para o debate a delimitação de uma esfera regional de abrangência a partir de um bioma específico, o estudo “As fronteiras geopolíticas do condomínio panamazônico: observações epistemológicas” dedica-se a discutir o tema da incorporação da dimensão geográfica nas políticas públicas, segundo a obra de Carlos Moreira Mattos. Tomando como referência seus escritos sobre a Amazônia, Delmo de Oliveira Torres Arguelhes demonstra como, na visão do General, cabia trabalhar para a defesa do território amazônico através de programas de cooperação entre os países da região, no sentido de buscar o compartilhamento da responsabilidade sob sua administração, nas perspectivas do desenvolvimento e da integração regional. Seria necessário promover, simultaneamente, o fortalecimento de seus nexos com os estados brasileiros e a criação de diretrizes comuns para a gestão da Amazônia entre os países que dividiam seu território. Definem-se, a partir daí, tanto medidas diplomáticas de abrangência internacional, como a assinatura do Tratado de cooperação amazônica (1978), quanto a formação de uma infraestrutura de transportes e comunicação entre a região e os estados brasileiros. Através de uma abordagem que combina as teorias da geopolítica e das relações internacionais, o artigo reflete, assim, sobre as bases intelectuais das políticas públicas que, nas últimas décadas, intentaram imprimir ao território amazônico diretrizes institucionais de controle, ao mesmo tempo inserindo-o nas redes nacionais e internacionais de intercâmbio material e simbólico.

Outro dos grandes biomas brasileiros foi tematizado por Sandro Dutra e Silva e Altair Sales Barbosa em “Paisagens e fronteiras do Cerrado: ciência, biodiversidade e expansão agrícola nos chapadões centrais do Brasil”. O trabalho explora os recentes desenvolvimentos na produção de uma história ambiental do cerrado como sistema biogeográfico, enquanto promove uma reflexão sobre os danos a ele causados pelo recente avanço da fronteira agrícola em seu território, que demonstram o dramático processo de destruição de sua fisionomia primitiva, hoje residual. Os autores inventariam a produção acadêmica recente sobre a região, apresentando um retrato das transformações por ela experimentadas, sobretudo nas últimas décadas. Através de um viés ecológico, eles interpretam as interações entre os elementos constituintes desse sistema biogeográfico, demonstrando, por exemplo, o comprometimento da flora do cerrado pela extinção de elementos de sua fauna. Partindo de conceitos consagrados por textos clássicos da história ambiental, pela produção científica ligada à tradição dos naturalistas-viajantes e pelos trabalhos acadêmicos contemporâneos sobre o sistema, o estudo oferece um vasto painel da historiografia regional, culminando com a análise da situação contemporânea. No que toca ao processo recente de expansão da fronteira agrícola, os autores examinam os expressivos impactos ambientais da agricultura sobre o bioma, demonstrando os severos danos causados a seu equilíbrio ecológico, que abrangem o solo, a fauna, a flora, o clima e os recursos hídricos. O diagnóstico demonstra o comprometimento de seu patrimônio genético – e, consequentemente, de seu potencial farmacêutico –, apontando para a insustentabilidade desse modelo de exploração.

A incorporação de espécies vegetais exóticas, um dos fatores observados por Sandro Dutra e Silva e Altair Barbosa como uma das características da inserção do Centro-oeste brasileiro no mercado mundial de alimentos e energia, é o tema do estudo seguinte, de autoria de Marília Teresinha de Sousa Machado, José Augusto Drummond e Cristiane Gomes Barreto. O artigo “Leucaena leucocephala (Lam.) de Wit in Brazil: history of an invasive plant” busca analisar a dispersão da espécie, uma das mais invasivas do mundo, no território brasileiro. Os autores observam que o fenômeno da propagação de espécies fora de seu bioma nativo, intencionalmente ou não, representa uma das áreas de investigação mais relevantes na história ambiental para a abordagem das relações entre as sociedades humanas e o meio físico-natural. Considerando que a dispersão de plantas atende a diversos propósitos humanos, sua propagação na atualidade tem sido objeto de estímulo, considerada a facilidade com que se reproduz e sua utilidade econômica como forragem para a criação de gado. Sendo assim, essa pesquisa examina, em primeiro lugar, a chegada da espécie ao País, muito anterior à data em que foi introduzida oficialmente por uma instituição de pesquisa. Com base nesse estudo, são observados os padrões de sua difusão por grande parte do território nacional, chegando a atingir uma área de preservação, o Parque Nacional de Brasília.

O artigo seguinte também se debruça sobre uma espécie em particular. “História, ciência e conservação da onça-pintada nos biomas brasileiros”, de José Luiz de Andrade Franco e Lucas Gonçalves da Silva, faz um balanço da produção de informação científica sobre a Panthera onca e da atuação de entidades dedicadas a projetos efetivos voltados para sua conservação. Compreender a articulação entre a pesquisa e o conservacionismo é um dos objetivos alcançados pelo artigo, após uma caracterização da espécie e uma recensão historiográfica em que obras escritas por caçadores são identificadas como os primórdios da produção de conhecimento sobre a onça-pintada. Os autores demonstram que as iniciativas efetivamente dedicadas à pesquisa sistemática sobre a espécie datam da década de 1970, quando se iniciam os estudos sobre suas características ecológicas. Demonstrando o imbricamento entre a investigação científica e os projetos protetivos, já esses primeiros estudos apresentavam propostas de medidas conservacionistas. Esse aspecto seria uma constante também nos empreendimentos de cunho científico desenvolvidos no século XXI, quando se intensifica a atuação de entidades ambientalistas, centros de pesquisa ligados ao poder público, fundações e organizações não governamentais. Considerando a ameaça de extinção da espécie, sobretudo nos biomas da Mata Atlântica e da Caatinga, seus projetos têm alcançado, simultaneamente, repercussão acadêmica e colaboração de ativistas. O artigo nos permite também observar o diálogo entre a história ambiental e outras áreas do saber – em particular a zoologia, a veterinária e a genética –, e, também, entre ela e os movimentos sociais ambientalistas. Como concluem os autores, a ciência tem sido o principal instrumento para a conservação da espécie.

Desde o trabalho de seus pioneiros, o tratamento dos aspectos culturais e intelectuais da relação entre homem e natureza é uma das linhas mais produtivas da história ambiental, como demonstram os dois artigos seguintes do dossiê. Em “José Mármol e o ambiente brasileiro do século XIX visto por um exilado”, Amanda da Silva Oliveira e Maria Eunice Moreira empreendem uma análise dos aspectos identitários relacionados à elaboração, pelos intelectuais latino-americanos, de concepções acerca da originalidade da região. Nesse texto, elas analisam os artigos publicados pelo escritor argentino José Mármol durante seu exílio brasileiro, entre 1845 e 1846, e observam que suas impressões etnográficas difundem uma concepção paradisíaca da natureza, que lhe inspira sentimentos do sublime, em contraposição a visões da sociedade urbana como espaço conspurcado pelo cosmopolitismo. Em sua escrita, enquanto a natureza carrega as insígnias do americanismo, incorrupta, copiosa e opulenta, a sociedade, em contato com a cultura europeia, prendia-se a laços de dependência que inviabilizavam o projeto de uma identidade americana comum. Assim, observa-se na análise das autoras a plasticidade dos conceitos de natureza e cultura e sua capacidade de traduzir concepções e representações sobre a vida social que incorporam aspirações e projetos de cunho político-ideológico.

Também nessa categoria direcionada aos estudos da cultura e da vida intelectual, o trabalho de Rodrigo Antonio Vega y Ortega Baez, “Matías Romero, las ciencias geográfico-naturales y la transformación ambiental del sureste de México, 1870-1883”, ilustra a crença, pelos letrados latinoamericanos, de que o desenvolvimento científico proporcionaria a prosperidade econômica do País por meio de ações efetivas sobre o território. Caberia promover, segundo o político, o direcionamento das forças produtivas nacionais no sentido do fomento ao plantio de gêneros de exportação para os mercados norte-americano e europeu, por meio da ampliação e da diversificação da oferta. A base para tal seria a incorporação dos saberes da geografia e das ciências naturais, que conduziriam a uma racionalização das iniciativas econômicas. Em particular, buscavam-se plantas nativas ou aclimatadas que possuíssem alto valor comercial e que poderiam ser cultivadas em terras até então tidas como inférteis. Por meio de um trabalho de propaganda, Romero promoveu a divulgação dos conhecimentos adquiridos em suas leituras científicas, e que exploraram as possibilidades de uso produtivo de parcelas intocadas do território. Nessa análise de sua obra, Vega y Ortega Baez explora, assim, as bases intelectuais de uma transformação do meio ambiente mexicano a partir das últimas décadas do século XIX que estimulou a conversão de “terras ociosas” – selvas, bosques e manguezais – em campos agrícolas, conduzindo a uma sensível alteração da paisagem do País.

O dossiê finaliza com uma entrevista concedida aos organizadores por John Soluri, professor da Carnegie Mellon University, nos Estados Unidos. Soluri narrou sua trajetória como pesquisador em história ambiental da América Latina e apresentou reflexões sobre diversos temas relativos ao campo: o estado atual da pesquisa; as áreas e temas mais promissores e imperiosos; perspectivas de investigação globais versus regionais e locais; as relações do conhecimento científico com os problemas sociais e ambientais do mundo contemporâneo; a história ambiental nos Estados Unidos; as oportunidades de intercâmbio entre pesquisadores e estudantes; a responsabilidade dos intelectuais. Ao final, refletiu sobre o significado da história ambiental no meio científico, suas particularidades, desafios e riscos.

Convidamos todos os leitores da revista Estudos Ibero-americanos a conhecer esse dossiê. Agradecemos aos autores que nos confiaram seus artigos e aos pareceristas que contribuíram anonimamente para sua apreciação e aprimoramento.

Luciana Murari – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora da Escola de Humanidades e do Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orcid.org / 0000-0003-1517-1016 E-mail: [email protected]

Georg Fischer – Doutor em História pela Universidade Livre de Berlim. Professor associado da Escola de Cultura e Sociedade da Universidade de Aarhus, Dinamarca. orcid.org / 0000-0003-4791-5884 E-mail: [email protected]


MURARI, Luciana; FISCHER, Georg. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 46, n. 1, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Justiça de Transição, experiências autoritárias e democracia / Estudos Ibero-Americanos / 2019

Ao longo das últimas décadas, o debate sobre Justiça de Transição ganhou novos contornos e direcionamentos. Por se tratar de um campo reflexivo intrinsecamente interdisciplinar, envolvendo, entre outros, pesquisadores vinculados à História, às Ciências Sociais e ao Direito, a justiça de transição tem sido abordada a partir de perspectivas diversas, possibilitando uma compreensão multifacetada sobre a busca de verdade e de justiça em contextos democráticos de países que passaram por experiências de autoritarismo ou guerra.

No Brasil, em particular, a produção bibliográfica orientada pela busca de justiça em relação aos crimes da ditadura militar, ainda que relevante, é reduzida frente à importância do tema. Sob a sombra da Lei de Anistia de 1979, muitos anos transcorreram antes que a agenda da justiça de transição fosse nomeada e ganhasse fôlego no País. O olhar investigativo para o passado padecia – e ainda padece – do estigma do revanchismo. A partir de 2007, com a inflexão que Paulo Abrão imprimiu na Comissão de Anistia, o vocabulário e os enquadramentos da justiça de transição aportaram no Brasil. Temos ali uma primeira leva de estudos dedicados a compreender – em perspectiva comparada ou não – a trajetória transicional brasileira, fortemente ancorada no princípio de reparação. Mais recentemente, em 2012, com a Comissão Nacional da Verdade e a onda de outras comissões da verdade que a sucederam – municipais, estaduais, universitárias, sindicais, entre outras –, novo impulso foi dado às pesquisas sobre justiça de transição. Contudo, há ainda vasto território a ser explorado sobre o assunto.

Este dossiê se insere precisamente nessa agenda de reflexões, buscando preservar a sua vocação plural e interdisciplinar. Ele é composto por uma entrevista e cinco artigos. Na entrevista com Paulo Abrão, o leitor tem um precioso relato sobre a trajetória brasileira de institucionalização das políticas de memória e verdade. Nosso entrevistado foi presidente da Comissão de Anistia (2007-2016) do Ministério da Justiça, Secretário Nacional de Justiça (2011-2016), diretor do Instituto em Políticas Públicas dos Direitos Humanos do Mercosul (2015-2017) e, atualmente, exerce o cargo de Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2016-2020). Em um impressionante exercício de articulação e síntese, ele percorre um grande arco temporal, partindo da primeira geração de ativistas, que enfrentaram as portas fechadas do Estado, até o evento mais recente das comissões da verdade, quando setores do Estado e da sociedade atuaram em redes de cooperação e conflito. Trata-se de um importante panorama da justiça de transição no País, de interesse para iniciantes e iniciados no assunto.

Quanto à seção de artigos, ela se inicia com texto de Pedro Rolo Benetti, intitulado “Excessos, exceção e ordem: entraves para a construção democrática póstransições”. Nele, o autor aborda de que maneira setores das Forças Armadas no Brasil buscaram construir uma retórica orientada para a legitimação da violência sistemática do Estado durante o período da ditadura militar no País, com ênfase nas noções de excessos, exceção e ordem. Para tanto, o autor se vale de duas fontes principais produzidas em contextos distintos: os debates em torno das Forças Armadas do Estado durante o processo da Constituinte de 1987-1988 e os depoimentos prestados por militares à Comissão Nacional da Verdade.

O segundo artigo do dossiê, de autoria de Maria Inácia Rezola, direciona o olhar para a justiça de transição no contexto português. Em seu texto “Punir ou perdoar? A difícil gestão do passado ditatorial no Portugal democrático – o caso dos seneamentos”, a autora chama a atenção para o fato de que, em Portugal, a conjuntura de transição da ditadura para a democracia abriu uma “janela de oportunidade” para a investigação de crimes cometidos durante o período autoritário. Para discutir esse cenário, Rezola analisa a legislação e a prática dos chamados “saneamentos”, que foram processos de exclusão do serviço público de funcionários considerados como autoritários ou corruptos.

San Romanelli Assumpção é autora do terceiro artigo do dossiê, com o título “Comissões da verdade e justiça de transição: problemas de fundações morais deliberativas para se pensar graves violações de direitos humanos massivamente praticadas”. Em diálogo com as obras de Amy Gutmann e Dennis Thompson, a autora busca refletir sobre as “fundações morais” das comissões da verdade, com o intuito de analisá-las tendo-se em vista a relação entre a normatividade da justiça de transição e as teorias deliberativas da democracia. Ainda que sustente as virtudes e os aspectos positivos dos requisitos e dos processos democráticos deliberativos, para a autora, eles não devem ser priorizados para se pensar normativamente acerca dos períodos de transição de regimes autoritários para democracias.

O quarto artigo do dossiê se intitula “Patrimônio, mudanças e memórias traumáticas: a Arqueologia da Repressão e da Resistência”, de autoria de Pedro Paulo Abreu Funari, Rita Juliana Soares Poloni e Darlan de Mamann Marchi. Ancorados na discussão teórica sobre os Estudos Patrimoniais e a Arqueologia da Repressão e da Resistência, os autores desse texto abordam novas interpretações da questão patrimonial e a sua relação com as memórias traumáticas no Brasil e na América Latina no contexto democrático. Ao colocar em diálogo diferentes campos do conhecimento, como a História, os Estudos Patrimoniais e a Arqueologia, o artigo contribui para uma reflexão ampla sobre as políticas patrimoniais e a justiça de transição em diferentes contextos.

O último artigo do dossiê, de autoria de Wallace Andrioli Guedes, intitulado “A freira, a tortura e a censura: um filme de Ozualdo R. Candeias entre a crítica política e a ofensa moral”, se dedica a analisar o filme A freira e a tortura, do diretor Ozualdo R. Candeias, lançado em 1983, que aborda a repressão sofrida por uma religiosa durante a ditadura militar brasileira. O autor busca refletir sobre a obra, censurada pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) no período final do regime ditatorial, com o objetivo de refletir sobre os processos de censuras moral e política em um contexto de transição do período autoritário para a democracia.

A publicação de um dossiê sobre justiça de transição já se justificaria pela grande relevância do campo, sempre ocupado em depurar os lastros do passado autoritário no presente democrático. Em uma conjuntura marcada pela disseminação de discursos que buscam negar a ditadura ou relativizar os processos de repressão no País, esse dossiê também se propõe como um gesto político e uma afirmação da democracia qualificada pela devida compreensão e enfrentamento do passado autoritário e pela defesa dos direitos humanos.

Cristina Buarque de Hollanda – Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ); Professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP / UERJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Também é Secretária Executiva da Associação Brasileira de Ciência Política. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0002-1600-4044

Fernando Perlatto – Doutorado em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ); Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. E-mail: [email protected]  https: / / orcid.org / 0000-0003-4301-0826


HOLLANDA, Cristina Buarque de; PERLATTO, Fernando. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 45, n. 3, set. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Memórias da Violência Colonial: reconhecimentos do passado e lutas pelo futuro / Estudos Ibero-Americanos / 2019

Memórias da Violência Colonial: reconhecimentos do passado e lutas pelo futuro*

O crescente interesse sobre a memória dos colonialismos tem tornado cada vez mais evidente a necessidade de se confrontarem os legados das violências instauradas pelos impérios modernos. Nesse sentido, este dossiê reúne artigos que contribuem para uma reflexão sobre a atualidade do passado colonial português em uma perspectiva que privilegia o peso das heranças da violência colonial. Pretende-se, por um lado, avaliar uma realidade social invadida pelas implicações das lógicas que instauraram genocídios, escravidões, elisão de culturas ancestrais, guerras coloniais, deslocamentos, trabalhos forçados e todo um rol de opressões quotidianamente reiteradas. Por outro lado, pretende-se reconhecer de que modo o presente é também, e significativamente, o resultado de resistências e lutas anticoloniais que, inscritas historicamente, contribuíram para o fim do colonialismo político e que legaram ao tempo presente inspiradoras narrativas de dignidade humana. É esse o sentido mais amplo dos artigos aqui reunidos.

Em “As múltiplas vidas de Batepá: memórias de um massacre colonial em São Tomé e Príncipe (1953-2018)”, Inês Nascimento Rodrigues examina as reverberações memoriais produzidas por um evento disruptivo ocorrido na ilha de São Tomé em fevereiro de 1953, quando um número indeterminado de são-tomenses foi massacrado a mando do poder colonial. Posteriormente conhecido como o “Massacre de Batepá”, ele viria a transformar-se em um marco paradigmático da violência, mas também em um dia comemorativo que, a partir de 1975, permitirá conectar o imaginário de sofrimento e resistência ao colonialismo com a legitimação da nova nação independente. A autora analisa diacronicamente as três vidas do “Massacre de Batepá”, mostrando como a sua evocação é sensível a mudanças políticas e socioculturais e como o evento se mantém em uma relação espectral com o percurso pós-colonial da nação são-tomense.

Rosa Cabecinhas, por seu turno, compara representações sociais sobre o passado colonial em Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e Timor Leste. Socorrendo-se do conceito de Mia Couto de “luso(a)fonias” – implicitamente denunciador de desencontros entre antigos países colonizadores e colonizados e recorrendo a uma noção como a de lusofonia, ela própria problemática nas suas emanações neocoloniais –, a autora analisa um amplo conjunto de dados que denotam diferenças substanciais no modo como se caracterizam e valorizam as histórias nacionais ligadas a um “passado comum” colonial. Não obstante as diferenças de percepção detetadas entre os jovens participantes nos estudos, denota-se uma distinção essencial entre os participantes portugueses, que de forma dominante referem-se positivamente ao passado dos “Descobrimentos” e secundarizam a violência colonial e os jovens dos países africanos, que valorizam as lutas de libertação e tendem a visibilizar o peso e o carácter desestruturante dos modos de violência intrínsecos à experiência colonial.

No texto de Clodomir Cordeiro Matos Júnior, “A perspectiva das vítimas e a teoria social contemporânea: entre memórias do passado e futuros alternativos”, é explorada a centralidade da figura da vítima para a compreensão da violência colonial. Nessa perspectiva, a partir das contribuições de Enrique Dussel, Aníbal Quijano e Boaventura de Sousa Santos, o autor procura aprofundar a importância do processo de reconhecimento das vítimas do colonialismo na produção de uma teoria social comprometida com a superação de políticas de esquecimento. Debruçandose sobre as críticas que envolvem a versão eurocêntrica e hegemônica da Modernidade (DUSSEL, 1993), as heranças materiais e subjetivas dos arranjos coloniais (QUIJANO, 2005) e as possibilidades das Epistemologias do Sul (SANTOS, 2018), o artigo faz emergir o reconhecimento da figura da vítima e suas experiências dentro de processos significativos para a validação de memórias silenciadas e a imaginação de futuros impensados.

Em “Escrita e cicatriz: da colonização à prisão”, de Ivete Walty, são colocadas em diálogo algumas imagens da série Cicatriz, de Rosângela Rennó, com a escrita de / sobre a prisão em diferentes momentos da história da literatura brasileira, à luz do conceito de colonização em seu sentido lato, em relação com os conceitos de biopolítica (Foucault) e necropolítica (Mbembe). Representando momentos ditatoriais diversos, a autora analisa, sob o enfoque da imagem da cicatriz / tatuagem associada à da escrita, cenas de Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos (1954), Cartas da Prisão (1977), O canto na fogueira (1977) e Batismo de Sangue (2006), de Frei Betto, para além da trilogia de Luis Alberto Mendes: Memórias de um sobrevivente (2001), Às cegas (2005) e Confissões de um homem livre (2015).

No artigo “Existências deslocadas pelo colonialismo e pela guerra”, Fátima da Cruz Rodrigues toma como pano de fundo a experiência da guerra colonial combatida, entre 1961 e 1974, pelo Estado português e por movimentos de libertação africanos. Depois de uma guerra, os que lhe sobrevivem têm de se reconstruir e de recompor as suas vidas em articulação com a realidade que o fim do conflito inaugura. É de algumas dessas heranças que trata esse texto que apresenta uma reflexão sobre a forma como a guerra colonial interferiu nas existências de antigos combatentes africanos que integraram as Forças Armadas Portuguesas (FAP) e que passaram a residir em Portugal após a libertação dos territórios onde nasceram. Com base em um trabalho de pesquisa de caracter qualitativo, com recurso a histórias de vida, reconstroem-se os percursos de alguns desses homens e procura-se perceber o sentido que os mesmos atribuíram às suas existências marcadas por descontinuidades e momentos particularmente fraturantes no que toca a construção dos seus projetos de vida. Nesse texto, caracterizam-se os diversos tipos de percursos que resultaram dessa análise, bem como os principais eixos discursivos que esses homens mobilizaram para justificar as diversas opções tomadas. A análise desses percursos e discursos permitiu, por sua vez, interpelar a problemática da construção de identidades marcadas por descontinuidades e por posicionamentos múltiplos, ambíguos e aparentemente contraditórios.

Este volume conta ainda com uma detalhada entrevista a Mustafah Dhada, professor na California State University e um estudioso da violência colonial no Império português. Percorremos, nessa entrevista, aspectos relacionados com o seu último livro sobre o massacre de Wiriyamu, perpetrado pelas tropas portuguesa em 1972, em Moçambique, no contexto da guerra colonial. Dhada revela-nos desafios associados ao trabalho com entrevistas, examina a articulação entre violência e colonialismo e traz-nos uma cuidadosa autorreflexão sobre o posicionamento do historiador na escrita da história. Ao mesmo tempo, levanta um pouco o véu sobre o seu próximo livro – que terá ainda como tema o massacre de Wiriyamu – e faz um balanço, mais de quinze anos depois, sobre a originalidade e também os limites da sua obra Warriors at Work, um trabalho seminal sobre o PAIGC e a guerrilha anticolonial na Guiné.

Os textos aqui reunidos colocam ao centro a violência colonial e se posicionam ante os quadros de sentido complacentes com políticas do esquecimento e com versões triunfalistas dos mundos que o colonialismo criou. Olhar o futuro a partir das tensões, discriminações e lutas instauradas pelo passado-presente da imaginação eurocêntrica, racista e imperial convida, nessa perspectiva, a uma imaginação política renovada e ampliada por um dever cívico da memória, ou seja, por um imperativo ético que conecte o necessário reconhecimento do passado com as lutas por futuros questionadores das heranças de violência instauradas pelos colonialismos.

Nota

* O presente dossier foi organizado no âmbito do projeto CROME – Crossed Memories, Politics of Silence. The Colonial-Liberation Wars in Postcolonial Times, financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação (StG-ERC-715593).

Referências

DUSSEL, Enrique. Eurocentrism and modernity: Introduction to the Frankfurt lectures. Boundary 2, Durham, v. 20, n. 3, p. 65-76, 1993. Disponível em: https: / / doi.org / 10.2307 / 303341 . Acesso em: 7 maio 2019.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo. Coimbra: Almedina, 2018. Recebido em: 1 / 4 / 2019.

Sheila Khan – Socióloga, é atualmente investigadora do Centro Estudos de Comunicação e Sociedade, da Universidade do Minho. Doutorada em Estudos Étnicos e Culturais pela Universidade de Warwick, tem, no seu percurso académico, centrado a sua atenção nos estudos pós-coloniais, com especial enfoque nas relações entre Moçambique e Portugal, incluindo a questão dos imigrantes moçambicanos em Portugal. De entre os temas que tem trabalhado inclui-se a história e a literatura moçambicana e portuguesa contemporâneas, narrativas de vida e de identidade a partir do Sul global, autoridades de memória e de pós-memória. É de destacar os seus recentes livros, “Portugal a Lápis de Cor: A Sul de uma pós-colonialidade” (Almedina, 2015); “Visitas a João Paulo Borges Coelho: leituras, diálogos e futuros” (et al., 2017, Colibri); “Mozambique on the Move: Challenges and Reflections” (com Paula Meneses e Bjorn Bertelsen, Brill, 2018). Atualmente, investigadora doutorada do projeto financiado pelo Conselho Europeu de Investigação, EXCHANGE e membro da equipa de investigação do projeto FCT / Aga Khan sobre as relações interculturais entre Moçambique e Portugal. E-mail: [email protected]  https: / / orcid.org / 0000-0002-8391-8671

Bruno Sena Martins – Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES / UC). É Co-coordenador do Programa de Doutoramento Human Rights in Contemporary Societies e Co-coordenador no Programa de extensão académica “O Ces vai à Escola”. É docente no Programa de Doutoramento “Pós-colonialismos e cidadania global”. Com trabalho de campo em Portugal, India e Moçambique, tem pesquisado e publicado sobre o colonialismo, o corpo e os direitos humanos. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0003-3367-9155

Miguel Cardina – Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). Foi Presidente do Conselho Científico do CES (2017-2019) e membro da coordenação do Núcleo de Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz (NHUMEP) (2013-2106). Recebeu em 2016 a bolsa Starting Grant do European Research Council (ERC – Conselho Europeu para a Investigação) na qualidade de coordenador do projeto de investigação “CROME – Crossed Memories, Politics of Silence. The Colonial-Liberation Wars in Postcolonial Times” (2017-2022). É autor ou coautor de vários livros, capítulos e artigos sobre colonialismo, anticolonialismo e guerra colonial; história das ideologias políticas nas décadas de 1960 e 1970; e dinâmicas entre história e memória. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0001-5428-457X


KHAN, Sheila; MARTINS, Bruno Sena; CARDINA, Miguel. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 45, n. 2, maio / ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Direitos Humanos, História e Memória (1968-2018) / Estudos Ibero-Americanos / 2019

Este primeiro número de 2019 traz o dossiê “Direitos Humanos, Memória e História (1968-2018)”, organizado pelos professores Bruno Groppo (Centre d’Histoire Sociale du XXe Siécle Université Paris I, França) e Tatyana de Amaral Maia (PUCRS). Os materiais nele reunidos revelam a multiplicidade de temas referentes aos direitos humanos e, sobretudo, a sua importância para o exercício da cidadania em regimes democráticos. A própria ideia de direitos humanos surge em associação à compreensão da democracia como regime que garante ao indivíduo plena participação na vida política, reconhecendo o pluralismo de ideias e os direitos de associação e de organização. O dossiê é composto por nove artigos e uma entrevista. Este número também publica na sua Seção Livre três artigos e duas resenhas. Todos os artigos foram submetidos à avaliação no sistema duplo cego.

Os artigos publicados no dossiê trazem as recentes experiências de violação aos direitos humanos, especialmente, durante as ditaduras do Cone Sul, além de discutir as formas com que os Estados democráticos têm lidado com esse passado sensível. Não obstante, também propõem uma reflexão crítica sobre os limites desses mesmos Estados em garantir plenamente o cumprimento dos direitos humanos, tal como definido em suas respectivas Constituições.

A emergência dos regimes democráticos no Cone Sul, a partir dos anos de 1980, não garantiu automaticamente a adoção de uma agenda política voltada para os direitos humanos. Ao contrário, tais países ainda são marcados por graves violações de direitos humanos. A democracia e os direitos subjacentes a ela dependem de uma contínua ação política. Afinal, como propõe Lyan Hunt,

Os direitos humanos só se tornam significativos quando ganham conteúdo político. Não são os direitos de humanos num estado de natureza: são os direitos de humanos em sociedade. Não são apenas direitos humanos em oposição aos direitos divinos, ou direitos humanos em oposição aos direitos animais: são os direitos de humanos vis-à-vis uns aos outros. São, portanto, direitos garantidos no mundo político secular (mesmo que sejam chamados “sagrados”), e são direitos que requerem uma participação ativa daqueles que os detêm (HUNT, 2009, p. 19).

O artigo que abre o dossiê, “Más allá de organizaciones históricas, las figuras emblemáticas y las prácticas reconocidas. Elementos para repensar al movimiento de derechos humanos en la Argentina”, de Emílio Crenzel, traz uma instigante e inédita questão ao debate acerca dos direitos humanos na Argentina, qual seja, a ação de múltiplos atores na construção de uma cultura política de defesa de direitos humanos no país pós-redemocratização. Crenzel demonstra como é fundamental considerarmos o papel dos pequenos grupos organizados, das associações de bairro e dos sindicatos na conformação de uma ação política em busca de justiça e memória acerca das graves violações de direitos humanos cometidas pela última ditadura argentina (1976-1983). A ampla rede que se formou em busca de informações sobre os desaparecimentos forçados também exigiu a punição dos responsáveis pelas violações cometidas, fomentando o engajamento de vários segmentos da sociedade em torno dos direitos humanos. Neste sentido, a construção de uma cultura política positiva em defesa dos direitos humanos dependeu sobremaneira do papel ativo da sociedade organizada em prol desses direitos.

Em seguida, “Uma história social da expertise em direitos humanos: trajetórias transnacionais dos profissionais do direito na Argentina”, de Virgínia Vecchioli, demonstra a importância das redes transnacionais na consolidação de uma expertise acerca dos direitos humanos, que envolveu a intensa participação de advogados e agentes do Estado na configuração de um campo jurídico dedicado ao tema, tornando-se referência nas ações de Justiça de Transição de vários outros países. A ação engajada de advogados e movimentos de direitos humanos promoveu o desenvolvimento de um conhecimento específico sobre o tema, tornando-se fundamentais para a consolidação da cultural política em defesa dos direitos humanos, tal como se observa hoje na Argentina.

O terceiro artigo, “História de violações dos direitos humanos na era Pinochet: sequestros, desaparecimentos forçados e autoritarismo”, das autoras Anna Flavia Arruda Lanna Barreto e Natália Silva Teixeira Rodrigues de Oliveira, analisa o caso de desaparecimento de mulheres e crianças durante a ditadura de Pinochet, no Chile, a partir de dois acervos: o Fundo Clamor e o Arquivos do Terror. A partir desses acervos, as autoras demonstram a participação do Brasil em casos de violação dos direitos humanos praticados pelo regime ditatorial chileno, assim como reforçam as pesquisas sobre as conexões repressivas existentes entre os países do Cone Sul.

O quarto artigo, “Defensa de DDHH en Chile en el contexto transnacional del movimiento de defensa de los derechos humanos, 1973-1990”, de Nancy Nicholls, propõe compreender a construção de uma cultura de direitos humanos alicerçada nas redes de defesa das vítimas do regime Pinochet criada logo após o golpe que destituiu o governo de Allende e que estabeleceu diversas estratégias de ação para proteger as vítimas da ditadura chilena. Tais redes atravessaram as fronteiras nacionais e se constituíram através de um aprendizado prático sobre como atuar diante das ações repressivas empreendidas pelo governo de Pinochet. Para Nicholls, essas redes forjaram um legado para as novas gerações sobre como se organizarem e a relevância das conexões internacionais, tornando-se um importante elemento na configuração de uma cultura de direitos humanos no Chile.

O quinto artigo, “No capítulo dos direitos humanos: Direito, Política e História na Coluna do Castelo (1969- 1973)”, de Lúcia Grinberg, se propõe a investigar a atuação engajada do jornalista Carlos Castello Branco na denúncia de violações de direitos humanos cometidas pelo regime ditatorial brasileiro entre os anos de 1969 e 1973. A autora demonstra as estratégias do jornalista através da análise da sua coluna no Jornal do Brasil, sugerindo que o tema dos direitos humanos atravessava diversas matrizes políticas, favorecendo a construção de laços de solidariedade entre jornalistas, intelectuais e políticos com diferentes posicionamentos ideológicos, porém, engajados na resistência à ditadura.

O sexto artigo, “A democracia em questão: com a fala, as mulheres militantes de esquerda durante a ditadura militar nos anos de 1964 a 1985”, de autoria de Mateus Gamba Torres e Eloísa Pereira Barroso, busca através da história oral compreender o papel das mulheres na resistência à ditadura civilmilitar brasileira, considerando às questões de gênero referentes ao engajamento feminino na luta armada. Os autores têm o cuidado de analisar a ressignificação da participação dessas mulheres na militância ao longo do tempo, investigando como a construção das memórias acerca dessa participação também responde às demandas do tempo presente sobre o passado vivido.

O sétimo artigo, de Caroline Bauer, “Presenças da ditadura e esperanças na Constituição: as demandas da população sobre a prática da tortura”, busca compreender através do projeto “Diga Gente”, como a população, às vésperas da votação da Constituição de 1988, se posicionou diante da tortura. O artigo estabelece, portanto, um diálogo, com a experiência trazida por Crenzel. Se Crenzel demonstra o papel fundamental de diversos grupos na construção de uma cultura política em torno dos direitos humanos através da busca por justiça e pelo direito à memória, Bauer, por sua vez, analisa como no Brasil, a construção da cidadania através da participação popular ocorreu a partir de visões múltiplas sobre o tema. Neste sentido, ao dar voz a esses anônimos, Bauer demonstra a existência de narrativas concorrentes acerca de como lidar com os legados do regime autoritário.

Os dois últimos artigos tratam de temas recentes e de violações de direitos humanos cometidos durante o regime democrático brasileiro. Em “Percepções sobre a violência no processo de estruturação do MST no Nordeste brasileiro (1985-1995)”, Rose Elke Debiasi se dedica ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no período imediato à redemocratização no Nordeste, considerando as especificidades que marcam aquela região. A presença de lideranças sulistas do MST no Nordeste, na tentativa de manter a organicidade do movimento, foi marcado pela inexperiência dos primeiros imigrantes que passaram a conviver com regras de funcionamento distintas das experimentadas no Sul. Para a autora, a violência estrutural que marca a vida campesina no Nordeste, onde a presença de pistoleiros e jagunços faz parte do cotidiano do camponês, amplia os desafios de organização de um movimento social no campo.

O nono e último artigo deste dossiê, retrata um caso recente de violência política que chocou o País e mobilizou diversos organismos de direitos humanos nacionais e internacionais: o assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018, que foi amplamente coberto pela imprensa nacional e estrangeira. Em “O corpo que se manifesta na imagem”, Dúnya Pinto Azevedo propõe analisar as imagens produzidas pela imprensa alternativa, através da análise das fotografias produzidas pela Mídia Ninja, que circularam amplamente pela internet. As imagens retratam os protestos ocorridos contra o assassinato da vereadora e que exigiam a identificação dos responsáveis pelo crime e a promoção da justiça. O caso, que até o início deste ano de 2019 continua sem solução, se tornou paradigmático da permanência da impunidade e das violações de direitos humanos que ocorrem diariamente no Brasil.

Para finalizar o dossiê, publicamos a entrevista realizada com o professor Carlos Artur Gallo sobre o seu livro recém-publicado: Um acerto de contas com o passado: crimes da ditadura, leis de impunidade e decisões das Supremas Cortes no Brasil e na Argentina.

Ainda incluímos neste número, três artigos na Seção Livre e duas resenhas. O primeiro da Seção Livre, “La Calidad de la democracia em Honduras, 2014-2018: sistema político, sociedade civil e instituições em perspectiva”, de Carlos Federico Ávila e Carlos Ugo Joo, é dedicado à análise da qualidade do regime democrático, compreendendo as crises políticas recentes e as limitações da democracia hondurenha, incluindo os desgastes no campo político que levam o descrédito da população acerca das formas de exercício da democracia representativa.

O segundo artigo, “¿Pertenece a Chile?”. Civilización y desierto, rentismo y subordinación: la formación del território nacional em el extremo sur del Perú (Tarapacá, 1827-1877)” de Luis Castro Castro e Inmaculada Simón Ruiz, dedicado à construção do território nacional e as múltiplas ações e estratégias na conquista e colonização do extremo Sul do país. A integração do território nacional peruano, conforme propõe os autores, foi realização de forma assimétrica, estabelecendo uma relação de subordinação da região ao governo Central.

O último artigo publicado neste número é “Administração de diretórios partidários e ação política de elites provinciais no Brasil do Segundo Reinado: a implantação do Centro Liberal e suas implicações no funcionamento do Partido Liberal na Província do Paraná (1868-1889)”, de Sandro Gomes, que propõe analisar as relações entre o Partido Liberal na província do Paraná e o diretório nacional, revelando a manutenção da sua relativa autonomia frente ao diretório nacional.

Ao final do número, duas resenhas fecham a edição. A primeira, de Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos, sobre o livro de Jorge Nállim dedicado ao antiperonismo. E a segunda, de Cláudia Castello, sobre o recente livro publicado por Alexandre Valentim acerca da crise do Império português.

Tal como já é usual na revista, reunimos pesquisadores de diferentes IES nacionais e estrangeiras no intuito de divulgar pesquisas inéditas e de elevado nível acadêmico acerca do mundo ibero-americano. Esperamos que tais artigos contribuam com os diversos campos das Ciências Humanas dedicados à IberoAmérica e instiguem novas pesquisas.

Referência

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos. Uma História. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Tatyana de Amaral Maia – Editora da Revista Estudos Ibero-Americanos. Professora da Escola de Humanidades e do PPGH / PUCRS. Pós-Doutorado em História pela Universidade do Porto. Doutorado em História / UERJ. E-mail: [email protected]  https: / / orcid.org / 0000-0002-1558-2192

Luciana Murari – Editora executiva da Revista Estudos Ibero-Americanos. Professora da Escola de Humanidades e do PPGH / PUCRS. Pós-Doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutorado em História Social USP, 2002. E-mail: [email protected]  https: / / orcid.org / 0000-0003-1517-1016


MAIA, Tatyana de Amaral; MURARI, Luciana. Editorial. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 45, n. 1, jan. / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Cores, classificações e categorias sociais: os africanos nos impérios ibéricos, séculos XVI a XIX / Estudos Ibero-Americanos / 2018

O presente dossiê reúne investigação de historiadores do Brasil, Canadá, Estados Unidos, México e Portugal, em torno das categorias sociais empregadas para classificar os africanos e seus descendentes nos impérios ibéricos. O elemento central das diversas contribuições é a tentativa de problematizar as classificações e as hierarquias na documentação e nas sociedades aqui examinadas, sejam elas Luanda, Rio de Janeiro, Paraíba, Coimbra, o norte de Moçambique, a fronteira sul do Brasil, a Nova Espanha ou o Reino do Congo. Na problematização, os autores acabam por historicizar as diferenciações sociais que, em distintos espaços e épocas, resultavam em privilégios ou exclusões.

Conquista e ocupação significavam impor uma nova forma de classificação nas populações sob domínio, aspecto esse que não foi exclusivo dos impérios espanhol e português (ANDERSON, 1983; APPADURAI, 1993; SCOTT, 2005; SALESA, 2011). Ao contrário da historiografia sobre os impérios britânicos e franceses, principalmente produzida em inglês e francês, que defende a invenção do conceito de raça como um fenômeno do século XIX, os agentes dos impérios espanhol e português já utilizavam categorias de classificação baseada na cor da pele no século XV (PERRONE-MOISÉS, 1989; SWEET, 1997; MENDES, 2012, 2013; BETHENCOURT; PEARCE, 2012). O conceito de raça está associado à crença de que “os fundamentos da alteridade postulada entre grupos humanos não é – e apenas – social, mas também – e igualmente – natural” (SCHAUB, 2016, p. 102). Entre outras características culturais e físicas, incluía-se a cor atribuída aos indivíduos. É certo que nos estados ibéricos, a genealogia medieval do conceito de raça aponta para a linhagem e o sangue, articulados posteriormente com critérios religiosos que, nos estatutos de limpeza de sangue, associavam “raça”, ou “raças infectas”, a judeus, mouros e infiéis, uma identificação que se foi afirmando a partir da expulsão dos judeus e muçulmanos da Península Ibérica. Essa marca alargou-se aos africanos e aos seus descendentes quando, na disputa por recursos, “mulatos” e “pardos” entraram no rol das raças infectas e viram ser-lhes recusados ou dificultados o acesso a determinados privilégios que ordenavam a sociedade estamental do Antigo Regime. Esse percurso não foi simples nem linear, sendo notório em diversa legislação do século XVII, apesar de medidas que, mais do que grupos, exceptuavam indivíduos (VIANA, 2007; FIGUEIROARÊGO, 2009; FIGUEIROA-RÊGO; OLIVAL, 2011; PAIVA, 2015). A cor “preto”, frequentemente relacionada com a qualidade mecânica do trabalho feito pelos escravos, foi conectada com os africanos e a escravidão. O padre António Vieira, por exemplo, escreveu tratados e sermões sobre brancos e negros, suas diferenças físicas e morais, e os vínculos entre ser negro e ser escravo. No Sermão XX do Rosário, sobre as irmandades de brancos e negros argumentou: “os brancos e senhores não se deixem vencer dos pretos, que seria grande afronta da sua devoção: os pretos e os escravos procurem de tal maneira imitar os brancos e os senhores, que de nenhum modo consintam ser vencidos deles” (BOSI, 2011, p. 244-245). Ou seja, o vocabulário e a atribuição de valores associados à cor da pele já estavam presentes no século XVII.

Classificações, sejam por afiliações religiosas e culturais ou cor da pele, atuam como instrumentos perniciosos empregados pelo estado para diferenciar populações e limitar direitos e o acesso a recursos. Toda a classificação implica ordenação e hierarquização. Nem todos os historiadores, entretanto, vinculam o uso de marcadores associados à cor da pele à existência do conceito de raça ou do racismo presente no período anterior ao século XIX e priveligiam a ideia de hierarquias de cores. (LARA, 2007; RAMINELLI, 2012; GUEDES, 2017; PAIVA, 2015). De qualquer modo, é importante destacar que os termos preto, negro, mulato ou branco eram utilizados antes do século XIX, como os autores dos artigos neste dossiê também demonstram. Na maioria dos casos, essas classificações são empregadas de forma ambígua, em que a terminologia tem o objetivo de, como apontado nas palavras do historiador e cientista político Achelle Mbembe, “transformar-se em um complexo perverso, gerador de medos e tormentos, de pensamentos perturbadores e de terror, mas especialmente de sofrimento infinito e, em última análise, de catástrofe” (MBEMBE, 2017, p. 10).

Os impérios ibéricos do período moderno na América, África e Ásia, independentemente dos modos de dominação aí introduzidos, colocaram em contato pessoas de origens diversas e implementaram classificações que priorizavam a textura do cabelo, a cor da pele ou o formato do nariz. Nessas sociedades, construíram-se formas de identificação e de hierarquização social baseadas em aspectos físicos como a cor, que se combinavam com o estatuto jurídico, o patrimônio, a distinção, a religião ou vinculação política. Tais critérios deram origem a um amplo vocabulário, que assumiu fórmulas comuns nos distintos territórios imperiais, mas traduziu, igualmente, especificidades locais. Com variações temporais e espaciais, as classificações eram construções subjectivas, mas estigmatizaram grupos sociais que foram alijados de uma série de direitos. O conceito de classificações, tanto no passado quanto no presente, possui a mesma definição, ou seja, são ficções epistemológicas que estão diretamente vinculadas ao contexto histórico e social (BOURDIEU, 2000; BOURDIEU; SAYAD, 2004; BETHENCOURT, 2014). A partir do final do período moderno, as associações entre a cor da pele dos indivíduos e os seus comportamentos foram reforçadas como critérios de classificação social e foram perdendo sua fluidez e flexibilidade. Em sua concepção, no final do período medieval, os sistemas de classificação eram teológicos e baseados na pureza de sangue, com o objetivo de excluir judeus e muçulmanos em um contexto de expansão do cristianismo e expulsão dos não católicos da Península Ibérica. Religiosos, juristas e burocratas cristãos eram responsáveis por um sistema epistemológico que permitia classificar os demais sem ser classificados. E essa classificação legitimava a conquista, o saque dos bens, a conversão forçada e a expulsão dos muçulmanos e judeus. Esse sistema classificatório passou por transformações, porém, criou a base da hierarquização que privilegiava os ideais cristãos, ancorado em diferenças ontológicas que justificavam a conquista e a colonização. Durante os séculos XVIII e XIX, a teologia foi lentamente substituída pela filosofia secular de Immanuel Kant e pela ciência de Charles Darwin, que elaboraram a noção de que as classificações são inerentemente biológicas, inatas e hereditárias (MIGNOLO, 2013, p. xiv-xv).

Foi, principalmente, no contexto da Iluminismo e das reformas administrativas então encetadas que os impérios começaram a expandir as suas redes de informação sobre os povos conquistados, e, assim, a tentar melhorar a governabilidade. Mapas populacionais, relação de moradores, apontamentos de viagens e inventários de chefes locais foram tentativas de enumerar e determinar a população a ser governada, com o objetivo de taxá-la ou de mobilizá-la para fins defensivos (CANDIDO, 2011, p. 75-99; MATOS, 2013; MATOS; VOS, 2014; RODRIGUES, 2013; SILVA, 2017; WAGNER, 2009). Enumerações e catalogações nunca funcionaram como simples coleção de informações sobre as populações colonizadas. Faziam parte da estratégia de enumeração e objetificação que culminaram com a criação de novas categorias de identificação, baseadas em simplificações binárias, como povos gentios ou vassalos, livres ou escravizados, solteiros ou casados. Essas categorias moldaram estatutos políticos e jurídicos e influenciaram as condições de mobilidade social. A lógica da classificação gerou uma riqueza documental nos arquivos coloniais, onde é possível consultar censos, mapas populacionais, relatórios de viagem, informes etnográficos, entre outros documentos, que justificavam a colonização e a subordinação e forneciam munições à administração colonial para impor tributos, resolver disputas, legislar sobre direitos e representação política, etc. (STOLER, 2002; APPADURAI, 2003; CRAIS, 2003). Apesar do caráter prático e utilitário, as classificações eram, e continuam a ser, uma ilusão burocrática, ou uma abstração, que sugere a ideia de compreensão e clareza. No entanto, o controle burocrático do estado colonial sempre foi frágil no período moderno, apesar do uso constante da violência para garantir a ordem desejada e o controle social.

No caso dos africanos e dos seus descendentes, tanto na África quanto nas sociedades da América e da Ásia, para onde foram transportados como escravizados, as classificações baseadas no mesmo tipo de normas tiveram um forte componente de cor associado à construção de categorias sociais, conquanto, em alguns contextos, elas fossem suficientemente maleáveis para os indivíduos poderem transitar de umas para outras (CASTRO, 1995; MATTOS, 2008; LARA, 1997, 2007; GUEDES, 2008; TWINAM, 2015). É importante ressaltar que nos impérios ibéricos a cor era uma entre outras formas de classificação, e, combinadas com outras categorias como o gênero, o estatuto jurídico, ou a ocupação, garantia ou excluía indivíduos de uma série de direitos e proteções. A crescente analogia entre características físicas e hereditárias moldou um discurso de classificação e hierarquização e a associação entre brancura, pureza, acesso a direitos, a privilégios e à cidadania, que se reforçou no século XIX (LARA, 2007; SILVA, 2009; FIGUEIROA-RÊGO; OLIVAL, 2011; MENDES, 2012; GUEDES, 2013). Tais formas de diferenciação, que não permaneceram fixas, ecoam ainda nas sociedades atuais, como acontece nos debates sobre cotas raciais no Brasil.

Em impérios onde a ideia da naturalidade e da pureza de sangue eram centrais para a organização social e o acesso a cargos, a mistura entre os povos também passou por um processo de organização que resultou na pintura das castas na Nova Espanha (MARTÍNEZ, 2008; VELÁZQUEZ, 2006; KATZEW, 2004), ou na criação de termos como cabra, pardo, mameluco, cafuzo para ordenar os mestiços nas colónias ibéricas da América (RAMOS, 2004; VIANA, 2007; PAIVA, 2015). A mestiçagem deveria ser legislada e encarada como parte do processo de expansão colonial e a categoria social do mestiço deveria ser definida. A miscigenação, seja no Brasil, em Portugal, Angola ou no México, forçou os centros de poder a repensar as relações jurídicas entre súditos e colonos e determinar o status e o lugar social de cada um. No Brasil e nas colónias espanholas da América, africanos e seus descentes, livres, libertos ou escravizados eram classificados não só pela cor como também pela “nação”, criando ainda mais camadas nos processos de identificação (REIS, 1993, 1996; SOARES, 2004; VIANA, 2007; TWINAM, 2015).

Este dossiê da Revista Estudos Ibéricos reúne estudos que revelam as dicotomias dos processos de classificação e mostram, na sequência de outras investigações, que nem sempre os critérios privilegiados pelos poderes centrais das monarquias ibéricas prevaleciam nas colônias. As categorias de cor, almejadas nos mapas populacionais ou nos registros eclesiásticos, eram suscetíveis de apropriação pelos actores locais, que adaptavam a terminologia imperial para exprimir as hierarquias sociais locais. Assim, os limites entre os termos brancos, pretos e mulatos eram constantemente negociados e repensados, em um contexto de expansão do comércio de seres humanos escravizados e do uso de mão de obra africana escravizada. Os textos aqui reunidos apresentam reflexões sobre o lugar dos africanos nos territórios dos impérios ibéricos e exploram a construção das classificações nos vários espaços imperiais. Os autores examinam como essas identificações se sobrepuseram, coexistiram e se transformaram ao longo do tempo, problematizando visões a-históricas das classificações que não consideram o lugar da epistemologia no processo de colonização. Os textos aqui reunidos interrogam a relevância que essas classificações tiveram na formação de categorias sociorraciais e em que medida condicionaram a mobilidade social dos indivíduos.

No artigo “Habitantes desta negra Etiópia, descendentes de Ham”, Carlos Almeida analisa o papel da literatura missionária na construção do mito de Ham para justificar e legitimar a escravização dos africanos centro-ocidentais e a sua comercialização. Almeida identifica a crônica de Gomes Eanes de Zurara, escrita no século XV, como o texto fundador da imagem do africano como o Outro, com uma clara associação entre os povos africanos, os mouros negros a serem temidos, e a maldição hamítica. Nos séculos seguintes, missionários capuchinhos fizeram uso da crônica de Zurara para justificar a conquista, o batismo e o cativeiro dos centro-africanos em textos religiosos. O autor mostra como a maldição de Ham favoreceu a criação de visões estigmatizantes sobre a cor negra e, posteriormente, sobre os africanos, o que levou a associar a cor branca com à pureza e à civilização. A ideia da descendência de Ham também justificou a escravização e o cativeiro como medidas disciplinadoras para salvar almas em um contexto onde a expansão colonial caminhava lado a lado com a missão evangelizadora da Igreja Católica. A associação entre Ham, negritude e cativeiro resultou em imagens estereotipadas dos africanos e seus descendentes e na associação entre comportamento e moral, com consequências que chegam aos nossos dias.

As representações dos africanos construídas a partir desse e de outros mitos operavam na estruturação classificaçções e categorias sociais na Europa e nos seus impérios. Lucilene Reginaldo examina a presença de estudantes de cor na Universidade de Coimbra, em Portugal, durante o século XVIII, apesar dos silêncios das fontes históricas no registro da presença desses indivíduos. “‘Não tem informação’: mulatos, pardos e pretos na Universidade de Coimbra” traz importantes contribuições metodológicas ao evidenciar as dificuldades que historiadores encontram para identificar a cor de indivíduos de certa posição social no passado. Defendendo o diálogo entre os estudos sobre as categorias de cor em Portugal e no seu império, Reginaldo analisa a história de estudantes na Universidade de Coimbra, entre eles o reinol António de Souza Falcão, o baiano Ignácio Pires de Almeida e o mineiro André Couto Godinho, para discutir os conceitos de limpeza de sangue e defeito mecânico nos processos de habilitação académica e seus significados para os africanos e seus descendentes. A miscigenação, ou o “impedimento da mulatice”, podia servir como argumento para negar direitos e o acesso a qualificações académicas e prevenir a mobilidade social de descendentes de africanos, com o argumento sustentado no defeito de qualidade, ou na origem mecânica, que também estava associada à escravidão. Apesar da ausência de estatutos que proibissem a admissão de homens de cor na Universidade de Coimbra, Lucilene Reginaldo registra os percalços que homens pardos e mulatos passavam para concluir o curso e obter o diploma. O texto mostra como se foram reforçando no século XVIII as hierarquias de cor na universidade, que reduziam a mobilidade social dos homens de ascendência africana e o acesso a direitos e privilégios inerentes ao percurso académico. Reginaldo demonstra claramente a variação temporal dos significados e usos dos termos pretos, pardos e mulatos no centro da Universidade de Coimbra.

No artigo “De castas, calidades y razas. Nociones y significados de las clasicaciones sociales”, Maria Elisa Vélazquez discute como as classificações sociais operavam no Vice-Reino da Nova Espanha, entre os séculos XVI e XIX. Conforme a autora destaca, ainda persiste um desconhecimento e silêncio sobre o papel dos africanos e seus descendentes no México, principalmente devido a uma representação da nação, com raízes oitocentistas, que celebra a miscigenação e silencia os processos de diferenciação. Conforme a prática na América espanhola em relação aos grupos sociais estruturados em função da colonização, no período vicereinal também emergiram classificações para os africanos transportados como escravos para o Novo México, sobretudo no período de união das coroas ibéricas, e para os seus descendentes. Em seu artigo, Maria Elisa Vélazquez analisa os conceitos de nação, casta, qualidade e raça ao longo de diversos contextos históricos e discute a complexidade e fluidez das classificações construídas para os africanos e afrodescendentes. Assim como no Império Português, um vocabulário rico foi inventado para descrever os grupos sociais baseados em hierarquia de cores, castas, nações e qualidades, frequentemente combinando mais do que uma dessas características atribuídas ou fazendo-as equivaler. No entanto, a autora sublinha, na sequência de outros estudos, que os famosos quadros de castas que, principalmente no século XVIII, catalogaram grupos sociais minuciosamente tinham pouca correspondência com as práticas quotidianas, onde emergia um leque mais reduzido de catalogações. O empenho por catalogar e hierarquizar indivíduos e grupos não preveniu a mobilidade social, em parte associada à ascensão econômica de africanos livres.

Transitando para o outro lado do Atlântico, “Donas, pretas livres e escravas em Luanda” traz como discussão as classificações e a hierarquização das cores para o maior porto escravista no litoral africano. Vanessa Oliveira compara as possibilidades de mobilidade social e os limites que as mulheres enfrentavam em Luanda. Algumas eram mercadoras e proprietárias de terras, gado e pessoas escravizadas e desfrutavam de posições econômicas e sociais de destaque, apesar de excluídas das decisões políticas. A maioria da população feminina, no entanto, eram mulheres escravizadas ou livres pobres que ofereciam serviços urbanos. A autora examina registros eclesiásticos, escrituras de compra e venda de propriedades e registros de escravos para demonstrar como a hierarquia das cores operava em Luanda no século XIX. As filhas da elite eram identificadas como donas na documentação colonial e, geralmente, classificadas como brancas ou pardas, independentemente da sua genealogia ou aparência física. Oliveira argumenta que “a posse de patrimônio embranquecia”. O comércio atlântico e as atividades urbanas atraíam mulheres de outras regiões do interior que se mudavam para Luanda em busca de oportunidades. A existência da escravidão e a possibilidade de sequestro e de cativeiro ameaçavam a circulação dos centro-africanos livres e os residentes de Luanda se viam obrigados a estabelecer redes de proteção para garantir sua liberdade. As mulheres escravizadas em Luanda eram classificadas como pretas e encarregadas de todas as atividades produtivas. Algumas chegaram a atuar como escravas de ganho, o que lhes permitia acumular algum dinheiro para uma eventual compra da alforria. Vanessa Oliveira indica como a classificação por cor estava associada ao estatuto jurídico e ao acesso à posse de bens materiais e de seres humanos. Assim, as mulheres centro-africanas eram classificadas como pretas, pardas ou brancas de acordo com a sua posição social e suas relações com a administração colonial.

Ainda com considerações sobre o continente africano, mas com um olhar voltado para a costa oriental, Regiane Augusto de Mattos reflete sobre a construção das categorias sociais no norte de Moçambique, durante o século XIX. O artigo “Entre suaílis e macuas: o norte de Moçambique como espaço de interconexões” mostra a importância das relações religiosas, culturais, econômicas e sociais entre diferentes espaços, e não necessariamente o fenótipo, na catalogação de indivíduos e grupos nas margens do império português. Usando fontes orais, incluindo as que foram registadas na escrita de autores coloniais, Mattos explora o modo como os grupos locais e os agentes externos, tanto os portugueses quanto os omanitas, construíam identificações para os povos do norte de Moçambique. Certas categorizações podiam assumir um caráter pejorativo, como no caso de “mouros”, transposto da Europa pelos portugueses para designar os africanos muçulmanos. Entretanto, vocábulos originalmente empregues de forma pejorativa podiam adquirir um significado positivo quando reapropriados pelos locais, como o caso do termo “suaíli”, usado pelos omanitas no século XIX para designar os muçulmanos da África Oriental, colocando-os na “margem” do Islão, já que estariam “contaminados” por valores africanos. Os próprios suaílis usavam a palavra “macua”, sinónimo de “sertão” ou “selva”, em sentido pejorativo para distinguir os habitantes do interior. As fontes permitem à autora problematizar classificações como suaílis, macuas, imbamelas, namarrais ou mujojos, e acompanhar as mudanças de significado, dependendo dos atores sociais que a empregavam. Mattos destaca o papel da geografia, trocas comerciais, alianças políticas, parentesco, migrações e afiliação religiosa nos processos de construção de identidades e de classificação no Norte de Moçambique. Neste caso, as “cores” não eram tão relevantes na configuração de catalogações e hierarquias que se estruturaram nos impérios como apontam os outros artigos que compõem este dossiê.

Os últimos três textos do dossiê analisam a mobilidade social e as hierarquias de cor no Brasil do século XIX. No artigo “‘Diz a preta mina…’: marcas e categorias sociais nos processos de divórcio abertos por africanas ocidentais, Rio de Janeiro, século XIX”, Juliana Barreto Farias examina as associações entre cor, estatuto jurídico, condição social e identidade étnica no Rio de Janeiro de oitocentos, a partir dos processos de divórcio iniciados por mulheres identificadas como pretas minas forras, africanas provenientes ou descendentes de originários da Costa da Mina na África Ocidental. Essas mullheres evidenciavam ser economicamente independentes de seus maridos, possuíam bens, inclusive seres humanos escravizados, e uma rede vasta de amigos e familiares que serviam de testemunhas. Autoras, réus e testemunhas desses processos revelam um mundo de relações em que emergem classificações sociais que, ainda que flexíveis, operavam no dia a dia e estruturavam as hierarquias sociais na cidade. Farias analisa neste artigo as formas de identificação e classificação accionadas por essas mulheres, discutindo como elas se articulavam com valores de bom comportamento, honestidade e recato. Relevantes para a discussão são, igualmente, os registros das classificações dos padres, que, permanecendo muito tempo nas freguesias, conheciam o vocabulário social. Embora o direito canónico não exigisse a indicação de quaisquer “cores”, elas eram anotadas para os africanos e seus descendentes, geralmente acompanhadas da “nação”, a partir de indumentárias, marcas corporais e comportamentos. Já no caso dos europeus, a cor era frequentemente omitida, constando apenas o bispado de onde eram naturais.

Em “Ser negro na Parahyba do Norte: cores, condições, qualidades e universo letrado no século XIX”, Surya Aaronovich Pombo de Barros discute, a partir da imprensa e de documentação administrativa, a polissemia das classificações empregadas para a população afrodescendente da Paraíba, que incluía definições de cor, qualidade e jurídica, relacionando-as com as que circulavam noutras regiões do Brasil. No caso da Paraíba de oitocentos, o estigma da escravidão e a possibilidade de rescravização actuavam na forma como os mesmos indivíduos eram classificados em diferentes documentos, identificados como escravos, negros, cabras, crioulos e pretos. Surya Aaronovich Pombo de Barros discute a flutuação nos usos dos termos e o seu carácter subjectivo e explora o modo como alguns escravos fugidos usavam as fronteiras fluidas entre a liberdade e a escravidão. Essas classificações e estatutos garantiam ou excluíam direitos, como o acesso à instrução, vedado a pessoas escravizadas. Aproveitando as brechas do sistema escravista, alguns escravos tentavam aceder à escolarização. Assim como o texto de Vanessa Oliveira sobre Luanda, a autora argumenta que o acesso à escolarização e a inserção cultural também influenciavam o modo como os afrodescendentes eram rotulados, seja como preto, pardo, mulato ou africano. Em todos os casos, a precariedade da liberdade e a ameaça de escravização rondavam os afrodescendentes. Marcelo Matheus narra a história de Maria Francisca do Rosário, outra mulher identificada como mina, para refletir sobre o lugar dos africanos e seus descendentes em Bagé, no Rio Grande do Sul. O artigo “A africana mina Maria Francisca do Rosário: escravidão, cor e ascensão social em um contexto fronteiriço (Brasil, segunda metade do século XIX)” é uma micro-história que permite compreender as mudanças políticas e jurídicas na segunda metade do século XIX no Brasil. Seguindo a tradição dos estudos sobre escravidão no Brasil, que fazem uso dos registros eclesiásticos para entender a formação das nações, a miscigenação e a mobilidade social, o autor examina como as classificações de cor, procedência e projeção social influenciavam na construção de identificações sociais. A novidade nessa contribuição está em explorar a vida dos africanos e seus descendentes na fronteira do Império Brasileiro e não necessariamente nos grandes centros urbanos ou nas áreas de importância econômica, que têm atraído um maior número de estudos. A atenção a eventuais diversidades regionais permite complexificar a história dos africanos e seus descendentes no Brasil.

Marcelo Matheus mostra como classificação da cor de indivíduos, e a marca da escravidão que estava associada à cor “preta” e “parda”, podia desaparecer ou ser alterada ao longo de sua vida, o que sugere mecanismos de mobilidade social. Esse foi o caso de Maria Francisca, que de escrava se tornou proprietária e branca, mesmo numa sociedade em que o estigma da escravidão operava na configuração das hierarquias sociais.

O dossiê conta, ainda, com uma resenha escrita por Kara Schultz do livro de David Wheat, Atlantic Africa and the Spanish Caribbean, 1570-1640. O estudo de David Wheat, publicado em 2016, destaca várias das questões abordadas nesse dossier e também a presença africana no processo de ocupação e colonização da América Espanhola. Uma entrevista com a historiadora Silvia Hunold Lara conclui o dossiê. Silvia Hunold Lara, professora na Unicamp, publicou obras importantes como dos Campos da Violência (1988) e Fragmentos Setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa (2007). Também escreveu dezenas de artigos e capítulos de livros que apresentam novas contribuições sobre os processos de classificação e hierarquização no Brasil durante o período moderno. Seus estudos constituem uma importante contribuição para a historiografia sobre a presença africana no Brasil. Nesta entrevista, Sílvia Hunold Lara reflecte sobre os desenvolvimentos da historiografia sobre os africanos no Brasil nas últimas dédadas e alerta para a importância da integração da História de África nesses estudos. E explica-nos como “o racismo está directamente ligado ao jogo de forças que constitui certa sociedade”.

Acreditamos que as contribuições nesse dossiê apresentam reflexões importantes no campo de debate sobre cores, classificações e categorias sociais. Ao reunir esses oito artigos, resenha e entrevista priorizamos a reflexão sobre os africanos nos impérios ibéricos, séculos XVI a XIX, e esperamos que despertem interesse para novas investigações e diálogos.

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Mariana P. Candido – Doutora em História pela York University, é professora na University of Notre Dame. Lecionou também na University of Kansas, Princeton University e University of Wisconsin-La Crosse. É autora de Fronteiras da Escravidão. Escravatura, comércio e identidade em Benguela, 1780-1850 (Ondijara / Katyavala Bwila, 2018) e de An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and its Hinterland (Cambridge University Press, 2013). Organizou Crossing Memories: Slavery and African Diaspora, com Ana Lucia Araujo e Paul Lovejoy (Africa World Press, 2011); Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos, com Carlos Liberato, Paul Lovejoy e Renée Soulodre-La France (Museu da Escravatura, 2017); African women’s access and rights to property in the Portuguese empire, número especial de African Economic History (n. 43, 2015), com Eugénia Rodrigues.


CANDIDO, Mariana P.; RODRIGUES, Eugénia. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 44, n. 3, set. / dez., 2018. Acessar dossiê [DR]

Acessar dossiê

Trinta anos da “Constituição cidadã”: contribuições da História e da Ciência Política / Estudos Ibero-Americanos / 2018

As constituições, de uma forma geral, possuem o importante papel de submeter o poder político ao direito, definindo “as regras do jogo” e subordinando o Estado à coletividade. Segundo Schmidt, elas garantem rigidez à estrutura de governo, delimitando as suas funções e, ao mesmo tempo, definindo os direitos e deveres dos cidadãos (SCHMIDT, 1982). Dessa maneira, o estudo dos textos constitucionais é passo importante para a compreensão de regimes políticos.

Entre os estudiosos da democracia, nas mais diferentes disciplinas, há um consenso sobre a importância da Carta Constitucional de 1988 para a compreensão do atual sistema político brasileiro. A carta magna ficou conhecida como “constituição cidadã” em virtude da ampliação dos direitos civis, políticos e sociais, não apenas em relação à constituição que ela substituiu – a constituição de 1967 –, mas também em relação às demais constituições brasileiras.

A Constituição Federal promulgada em 1988 (CF 88) é o sétimo documento constitucional do Brasil independente. A primeira foi promulgada ainda no Império, em 1824, logo após a independência de Portugal. Essa constituição ficou marcada pela restrição dos direitos políticos a uma pequena parcela da população privilegiada economicamente e pela concentração de poder nas mãos do imperador por meio do estabelecimento do poder moderador, entre outras características. Era, portanto, uma constituição monárquica e autoritária.

A primeira constituição republicana do Brasil foi promulgada em 1891, e ela marca a institucionalização do Estado brasileiro como República Federativa presidencialista. Todavia, ainda apresentava profundas limitações à plena cidadania. Como exemplo, podemos destacar o fato de que os direitos políticos foram destinados apenas a homens e ainda que excluiu alguns setores da população numericamente relevantes no período, como a população analfabeta (BONAVIDES, ANDRADE, 2002). Além disso, o voto não era secreto, permitindo que poderes locais coagissem eleitores a votar de acordo com seus interesses, criando o chamado fenômeno do coronelismo (LEAL, 1975). Diante disso, tornou-se um consenso entre os estudiosos da temática que a primeira constituição republicana não representou uma garantia de cidadania e falhou na tarefa de submeter o poder político ao direito.

A terceira constituição – a segunda constituição republicana – foi promulgada durante o governo de Getúlio Vargas em 1934 e representou um avanço se comparada à sua antecessora. Entre os avanços registrados nessa constituição, convém destacar a ampliação do acesso aos direitos políticos, uma vez que estabeleceu eleições diretas, voto secreto e permitiu o voto feminino. O voto feminino, todavia, estava condicionado à autorização do marido quando a mulher fosse casada, entre outras restrições. Destaca-se ainda que a população analfabeta continuava excluída do sistema político. Por outro lado, alguns avanços foram registrados no âmbito dos direitos civis e sociais, em virtude da positivação dos direitos trabalhistas.

No entanto, apesar dos avanços registrados, essa constituição ficou vigente por pouco tempo: três anos depois, em 1937, Vargas outorgou uma nova constituição que ficou marcada pela concentração dos poderes nas mãos do chefe do poder executivo, forjando assim um caráter legal a um Estado autoritário que limitava os direitos civis e políticos. O estabelecimento de eleições indiretas para a presidência, a retirada do direito à greve, entre outras medidas, são exemplos de como a constituição de 1937 suprimiu várias liberdades previstas na sua antecessora (BONAVIDES, ANDRADE, 2002).

Com o fim do Estado Novo, em 1946, é instalada uma nova constituinte. A constituição que resultou desse processo marca o início de uma experiência democrática no Brasil, de acordo com Jorge Ferreira (FERREIRA, 2006). Com efeito, a constituição reestabeleceu a divisão de poderes e outros direitos sociais e políticos que haviam sido suprimidos pela constituição de 1937. Contudo, ela manteve a exclusão dos analfabetos.

Os avanços do período democrático que teve início em 1945 foram interrompidos pelo golpe de 1964, que procurou conquistar legitimidade política por meio da promulgação de uma nova constituição em 1967, a sexta constituição brasileira. O interesse dos militares em criar um arranjo político que combinasse características tradicionais de um regime democrático com a concentração de poderes nas mãos da cúpula militar e limitações à participação política, incentivou o governo a tentar manter a constituição democrática de 1946 nos primeiros anos após o golpe. Contudo, o caráter arbitrário dos atos institucionais se tornou ainda mais evidente com a multiplicação dos atos complementares, forçando os militares a promulgar uma nova constituição (ALVES, 2005, p. 65-123). Assim, a constituição de 1967 reuniu o aparato jurídico que pretendia justificar o Estado de direito mesmo diante de grandes impedimentos ao exercício da cidadania. Ao mesmo tempo, foram registrados avanços sociais (ROCHA, 2013, p. 33). Essa característica particular do regime militar brasileiro incentivou estudiosos a denominá-lo “regime burocrático-autoritário” (O’DONNELL, 1996), entre outras denominações.

Percebe-se que, ainda que teoricamente haja uma relação entre as constituições e a subordinação do Estado à coletividade (Cf. SCHMIDT, 1982; NASCIMENTO; MORAIS, 2007), no caso brasileiro, muitas vezes as constituições foram utilizadas para legitimar o arbítrio e os privilégios. Assim, no Brasil, o papel das constituições para a afirmação, o fortalecimento e a ampliação da cidadania nem sempre foi ativo, muito embora avanços tenham sido registrados entre os recuos e permanências da história constitucional brasileira. De qualquer maneira, constata-se que as constituições que representaram avanços tiveram pouco tempo de vigência e foram atingidas por golpes de estado que estabeleceram regimes autoritários que as substituíram.

Diante dessa trajetória histórica, é natural que a CF 88, que completa trinta anos em 2018, tenha se tornado um marco na história política nacional. O caráter “cidadão” atribuído à CF 88 refere-se à inédita adoção pelo Brasil de uma noção ampla de cidadania no texto constitucional. Para José Murilo de Carvalho (2015), partindo da definição proposta por Thomas MARSHALL (1967), a cidadania plena reúne a garantia de direitos políticos, civis e sociais, combinando “liberdade, participação e igualdade para todos” (CARVALHO, 2015, p. 14-15). Dessa forma, a sua existência está condicionada à ação do Estado em favor da garantia dos direitos ligados à participação do cidadão na vida política, os direitos fundamentais – tais como o direito à liberdade, à propriedade, à vida e à igualdade diante da lei – e os direitos sociais – relativos à distribuição justa das riquezas pela administração pública.

Os caminhos para se alcançar a cidadania plena se mostraram mais diversos do que a trajetória apontada por Marshall ao analisar a sequência de aquisição de direitos na Europa. O caso do Brasil, para Carvalho, evidencia a existência de trajetórias distintas, uma vez que, no Brasil, muitas vezes os direitos sociais antecederam os demais (CARVALHO, 2015). De qualquer maneira, pode-se afirmar que, no século XXI, a definição de cidadania plena relaciona democracia, liberdades individuais e justiça social.

A CF 88 afirma esses valores em seu texto. Em 1987, em um cenário marcado pela revitalização da participação popular, após décadas de “constitucionalização das normas antidemocráticas e das medidas de exceção por parte dos militares e dos seus aliados civis” (ROCHA, 2013, p. 29), a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi instalada com a tarefa de destruir os resquícios autoritários, colocar fim ao lento processo de transição democrática e estabelecer uma relação entre democracia e cidadania no Brasil. Em seu discurso na promulgação da Constituição de 1988, Ulysses Guimarães, presidente da ANC refletiu sobre o papel da CF nesse processo:

“Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar”. São palavras constantes do discurso de posse como Presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. Num país de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam (CÂMARA DOS DEPUTADOS…, 1988, p. 14380).

O histórico discurso de Ulysses Guimarães aborda a relação entre direitos sociais, direitos civis e direitos políticos, destacando a dimensão participativa do processo constituinte. Assim, a CF 88 marca uma etapa importante do processo de democratização no Brasil e ficou caracterizada pelo seu caráter “cidadão”, por afirmar a legitimidade da cidadania plena e o papel do Estado em garanti-la.

Ao longo dos últimos trinta anos, diversos estudos procuraram se debruçar sobre a constituição, no intuito de analisar o seu papel para a compreensão das mais variadas dimensões do regime e da sociedade brasileira. As mais diversas disciplinas procuraram trazer contribuições para a compreensão da Carta Magna, seus efeitos e limites, dentre as quais merecem destaque o Direito, a Sociologia, a História e a Ciência Política. É possível citar abordagens variadas: a análise do texto constitucional; o papel do judiciário após 1988; as implicações da carta nos planos social e cultural; a relação entre os três poderes; as reformas constitucionais; e, mais recentemente, a dinâmica do processo constituinte, entre outras.

Na Ciência Política, merecem destaque as contribuições que procuraram conectar a relação entre o autoritarismo dos militares, o caráter negociado do processo de transição e a dinâmica interna da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) para a compreensão do documento promulgado em 1988 e o presidencialismo de coalizão pós-constituinte. A História, por sua vez, trouxe importantes contribuições sobre a mobilização popular que antecedeu a ANC e que trouxe a unificação da oposição em torno de alguns temas como direitos humanos, democracia, anistia política e constituinte. Assim, o diálogo entre as duas disciplinas parece apontar caminhos interessantes para a análise da CF 88 [1].

Em comemoração aos trinta da promulgação da constituição, o Centro Brasileiro de Pesquisa em Democracia (CBPD) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) – em parceria com o Centre d’Études de la Vie Politique (CEVIPOL), vinculado à Université Libre de Bruxelas (ULB) –, se propôs a receber e reunir contribuições da História e da Ciência Política para a compreensão das múltiplas dimensões da CF 88, se beneficiando da distância propiciada pelo passar do tempo. Em um momento de intenso debate político, interessa, sobretudo, lançar um olhar sobre o cenário político atual que estabeleça a sua relação com o passado, para então refletir sobre os diferentes usos da constituição feitos atualmente. O resultado dessa proposta é apresentado neste dossiê que reúne cinco artigos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, revelando diferentes olhares sobre a chamada constituição cidadã.

O primeiro artigo apresentado pelo dossiê intitulado “Do escravo ao escravizado: o longo caminho para a construção dos Direitos Humanos no Brasil”, de autoria de Vitale Joanoni Neto, busca estabelecer essa relação entre o passado e o presente proposta pelos organizadores do dossiê. A partir de uma análise de longa duração, o autor se propõe a compreender as diferentes formas assumidas pela escravidão no Brasil desde o período colonial, lançando luzes para a compreensão da persistência dessa grave violação dos direitos humanos mesmo em tempos de constituição cidadã. Para o autor, a persistência de desigualdades sociais com profundas raízes históricas não impediu que a CF 88 desempenhasse um importante papel no combate a essa prática, uma vez que, ao afirmar a importância da cidadania plena, deslocou o sentido da expressão “condição análoga à de escravo”. Dessa forma, fortaleceu os discursos que combatem a prática, sejam eles provenientes da sociedade civil, sejam provenientes do próprio poder judiciário.

O artigo “A participação em conflito na Assembleia Constituinte: confrontos discursivos e racionalidade dos atores” de Marie-Hélène Sá Vilas-Boas busca analisar o papel da Constituição de 1988 para a compreensão da dimensão participativa na dinâmica da própria constituinte. Para tanto, a autora se volta para o estudo dos debates em torno dos direitos políticos e da saúde, a partir da análise dos trabalhos de duas subcomissões distintas relativas a esses temas. Para Vilas-Boas a mobilização social que marcou o período contribuiu para que a dimensão participativa fosse destacada ao longo da ANC por meio das emendas populares, audiências públicas e outras ferramentas que permitiram que setores sociais influenciassem o texto final. Por outro lado, ainda que as elites tenham concordado com a participação desses setores, o texto final destaca o caráter representativo da participação e o relega à esfera coletiva por meio de grupos organizados e comunidades. Apenas na década de 1990 o conceito de “participação cidadã” passa a se fortalecer, em detrimento do conceito de “participação coletiva”.

Françoise Montambeault também aborda a questão da participação no artigo intitulado “Uma Constituição cidadã? Sucessos e limites da institucionalização de um sistema de participação cidadã no Brasil democrático”. Focando-se nos efeitos da carta nessa dimensão ao longo dos trinta anos que se seguiram após 88, a autora buscar analisar o papel da Constituição para a abertura de canais institucionais da participação cidadã no Brasil. Para a autora, ainda que a carta tenha o mérito de ter inscrito o princípio participativo no documento final, conectando-o com o modelo de democracia adotado, a efetivação desse princípio esteve condicionada à combinação da vontade social com o compromisso político. Para a autora, essa combinação se concretizou apenas durante os anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT).

Em “Constituição de 1988: o avanço dos Direitos Humanos Fundamentais”, Maria Cecília Barreto Amorim Pilla e Amélia do Carmo Sampaio Rossi buscam compreender os avanços no âmbito dos direitos humanos fundamentais a partir da carta magna por meio da aplicação do método histórico-dialético. Para as autoras, a CF 88 reconheceu os direitos humanos fundamentais a partir de uma perspectiva ampla, porém o cenário global marcado pelo liberalismo impediu a plena implementação dos direitos sociais. Por outro lado, nesse cenário globalizado, a relação entre a constituição e os sistemas internacionais protetivos de direitos humanos contribuíram para o fortalecimento dos direitos fundamentais.

A sessão é concluída por Gustavo Müller, que contribui com o artigo ensaístico intitulado “Trinta anos nesta tarde: problemas endógenos e exógenos da trajetória democrática no Brasil pós-Constituição de 1988”. À luz dos preceitos constitucionais de 1988, o autor busca refletir sobre a atual crise vivida pelo sistema político brasileiro. Para Müller, fatores endógenos e exógenos explicam a atual crise e dificultam que os atributos da Carta Magna sejam capazes de impedir que o Brasil viva um processo de “des-democratização”.

Finalmente, o dossiê completa-se com a entrevista com Olivier Dabène, cientista político especialista em democracias na América Latina. A partir de um olhar comparado, o estudioso reflete sobre os trinta anos de democracia no Brasil, enfatizando os diferentes usos da chamada “constituição cidadã” em tempos de crise política.

Desejamos a todos uma excelente leitura!

Nota

1 Há uma farta produção tanto na Ciência Política, quanto na História sobre as diversas dimensões da constituinte e o seu papel para a compreensão do regime político. Entre elas, destacamos as seguintes: ARAÚJO, 2010; ARAÚJO, 2013a; ARAÚJO, 2013b; MONCLAIRE, BARROS FILHO, 1988; FIGUEIREDO, LIMONGI, 1999.

Referências

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Teresa Cristina Schneider Marques – Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pesquisadora do Centro Brasileiro de Pesquisa em Democracia (CBPD). E-mail: [email protected]

Fredéric Louault – Doutor em Ciência Política pelo Institut d’Études Politiques de Paris (Sciences Po – Paris), professor de Ciência política na Université Libre de Bruxelles (ULB). Pesquisador do Centre d’Études de la Vie Politique (CEVIPOL). E-mail: [email protected]


MARQUES, Teresa Cristina Schneider; LOUAULT, Fredéric. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 44, n. 2, maio / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Fotografia, Cultura Visual e História: perspectivas teóricas e metodológicas / Estudos Ibero-Americanos / 2018

Nos últimos 25 anos a fotografia consolidou-se, no campo dos estudos históricos, como fonte de pesquisa e objeto de análise. Ultrapassamos uma história da fotografia, tradicionalmente, concebida como história da técnica ou do gênero fotográfico, para incorporar as dimensões de prática social e de experiência histórica associadas aos modos de ver, dar a ver e representar fotograficamente o mundo social. Os dispositivos óticos associados à visão, os espaços de sociabilidade em que se desenvolveu uma cultura visual cada vez mais complexa, contemplando públicos e observadores com objetivos e propósitos diferentes, passaram a integrar as problemáticas de pesquisa história. As noções de visualidade, a ideia de observador, de público, de prática fotográfica, de experiência visual se tornaram familiares à oficina da História, embora o mundo das imagens não seja desprovido de conflitos, ganhamos muito com a adesão das imagens à causa historiográfica.

Os artigos reunidos nesse dossiê se debruçam sobre a relação entre fotografia e história em diferentes chaves de abordagem. Um primeiro conjunto de artigos aborda questões associadas aos debates teóricos, metodológicos, filosóficos e estéticos. A esse primeiro grupo de questões fundadoras se desdobram abordagens que se dedicam a compreender os percursos de algumas fotografias em seus deslocamentos no mundo das imagens, nos levando para os universos onde as imagens habitam e ganham materialidade, fotolivros, revistas ilustradas, séries fotográficas e exposições. Ressalta-se, entretanto, que na riqueza das diferentes abordagens que compõem o dossiê reside a sua melhor qualidade.

Os estudos sobre os gêneros fotográficos ganham especial atenção no artigo de John Mraz, “Analysing Historical Photographs: Genres, Functions, and Mehodologies”. Na proposta de Mraz, a análise histórica desempenha papel fundamental na definição dos gêneros fotográficos por meio da diferenciação das situações em que as fotografias foram produzidas. Na perspectiva do autor, trata-se de compreender que o fotojornalismo como um gênero se apresenta em diferentes funções: fotografia de imprensa, fotojornalismo, documentalismo e foto-ensaio, impondo a análise histórica como condição para que não se confunda gênero fotográfico com a sua função.

Em “Fotografia e Antropogenese: o melhor amigo do homem”, Mauricio Lissovsky nos proporciona uma reflexão singular sobre homens e cães. Escreve no ritmo das analogias visuais e vai buscando para cada um dos sintomas da imagem que permite a comparação, uma história, uma narrativa que afasta a semelhança entre os duplos nos remetendo para novas imagens. O resultado disso é uma fabulação em que a imagem se torna sujeito de uma aventura, em que humanos e caninos se duplicam e transmutam-se, revelando situações extraordinárias. Em suas reflexões a câmera fotográfica como máquina antropológica, segundo Agamben, desvelaria a humanidade de cada sujeito fotografado.

No potencial teórico-metodológico da fotografia de moda assenta-se a base de argumentação de Maria do Carmo Rainho em “Imagens encenadas? Atos performativos e construção de sujeitos nas fotografias de moda”. Sua reflexão apoia-se em uma larga trajetória com pesquisas sobre vestuário, circuitos de moda e representação do corpo tendo a fotografia como fonte e objeto de análise, o que a possibilita traçar percursos possíveis para pesquisas em que a fotografia de moda ilumine questões sobre a sociedade que a produz e a consome. O valor epistemológico dos estudos sobre imagem da moda, na concepção de Rainho, reside em tomar sua dimensão estética como agente de representações sociais, o que permite transcender o valor utilitário da moda como mercadoria, e da fotografia de moda como ilustração.

Nos deslocamos das questões teóricas e metodológicas operadas em marcos mais amplos, para a análise de trajetórias de imagens particulares e individualizadas. No artigo, “Circuitos e potencial icônico da fotografia: o caso Aylan Kurdi”, as pesquisadoras Solange Ferraz de Lima e Vania Carneiro de Carvalho tomam a fotografia de Aylan Kurdi, produzida pelo fotógrafo Nilfüfer Demir, como ponto de partida para refletir sobre a materialidade da imagem na era digital, seu potencial icônico e sua capacidade de guardar marcas do acontecimento registrado. O exercício de análise apoia-se na consagrada abordagem de Ulpiano Bezerra de Meneses, em uma das suas brilhantes referências para o estudo da imagem, em especial, da imagem fotográfica. Entretanto, mais do que fazer valer uma metodologia de análise fotográfica, as autoras nos proporcionam uma profunda reflexão sobre o papel da imagem na cultura contemporânea das mídias digitais em rede.

Os estudos visuais sobre fotografia, em chave interdisciplinar, se fazem presentes na abordagem de Cleopatra Barrios e Mariana Giordano, em “Violencia, memoria y mito. Espectacularización de la muerte en la fotografía de Isidro Velázquez (Argentina)”. Em sua análise, a espetacularização da morte e da violência são operados por meio do estudo da relação entre fotografia pública, representações iconográficas do corpo morto e a cultura visual Latino-Americana. Avalia-se os circuitos e os percursos das fotografias de Isidro Velázquez de registro policial à santificação popular.

Ainda na linha das trajetórias das imagens se insere a abordagem de Marcos Felipe de Brum Lopes, no artigo “Migrantes e fantasmas: imagens e figuras de Benjamin Constant”. A imagem heroica do fundador da República Benjamin Constant é analisada pelo autor através do mapeamento das trajetórias das figuras de diferentes tamanhos e formatos em que essa imagem foi materializada. Ao analisar os significados históricos das imagens em trânsito por diferentes suportes, Lopes, defende a ideia de que o movimento positivista buscou configurar, no final do século XIX, um observadorcidadão, que acreditava no poder das imagens seculares e heroicas. Ponderar sobre o poder de mobilização das imagens em situação de crise política é o desafio que o artigo nos coloca ao final.

Das imagens dotadas de corpo para as imagensmeio, os artigos que se somam ao dossiê abordam um conjunto de questões que envolvem: os objetos-meios em que as fotografias circulam; o papel da imprensa na consolidação dos espaços públicos visuais; da fotografia como mensagem de amplo alcance; os circuitos sociais das fotografias e seus usos públicos. Em “Cornucópia visual mexicana: as fotografias do livro México seus recursos naturais, sua situação atual, 1922”, Carlos Alberto Sampaio Barbosa, analisa o discurso visual criado pelo corpo diplomático mexicano como forma de propaganda da cultura e da política do México no Brasil. A publicação em formato de livro, amplamente ilustrado com fotografias, foi elaborada como parte dos preparativos da comitiva mexicana na Exposição do Centenário da Independência do Brasil em 1922, constituindo-se uma narrativa visual sobre o México que se complementava com outros aspectos da participação mexicana no evento.

Em “Imagens da desigualdade em fotolivros do Rio de Janeiro: a visualidade na história de um conceito”, Maria Inez Turazzi reune a abordagem da história dos conceitos à da história visual para problematizar a natureza complexa das narrativas visuais e textuais que compõem os fotolivros. No caso em estudo, a cidade do Rio de Janeiro torna-se palco em que se encenam representações de desigualdade, o meio de circulação da mise-en-scène são livros-objetos, fotolivros, sobretudo um especialmente produzido sobre o Rio de Janeiro (Zauberhaftes Rio / Strolling through Rio, 1958) pelo fotógrafo alemão Hans Mann, como parte de seu trabalho sobre a América do Sul realizado entre as décadas de 1940 e 1950. Em sua análise, Turazzi busca problematizar a visualidade da pobreza na representação da “paisagem carioca”, compreendida nas dimensões de construção simbólica e patrimonial.

As revistas ilustradas merecem destaque no artigo de Cora Gamarnik, “La fotografía en la revista Caras y Caretas en Argentina (1898-1939): innovaciones técnicas, profesionalización e imágenes de actualidad”. A revista Caras y Caretas, publicação argentina, atua como plataforma para Gamarnik avaliar as profundas transformações que a imprensa passou com a introdução massiva de fotografias como forma de registrar as notícias, eventos sociais, políticos e acontecimentos em geral, atraindo novos leitores e ampliando seus públicos por meio da imagem. Paralelamente, a autora avalia as mudanças operadas na dinâmica da imprensa com a valorização da fotografia tanto como atrativo e estratégia de venda, como meio de figurar a modernização nacional e os conflitos políticos que esse processo envolveu. Apoiada em minuciosa análise das fontes, o estudo revela aspectos importantes sobre a consolidação sul-americana de um espaço público visual nos primeiros trinta anos do século XX.

O potencial indiciário da fotografia é explorado no artigo de Marco Antonio León León, “Pesquisas visuales – Representación e identificación criminal a través de revistas policiales chilenas (1934-1961)”, que tem como objeto três revistas publicadas pela Polícia de Investigação chilena entre 1934 e 1961. Em sua análise, León centra-se na seção “galeria de delicuentes” para descortinar os sentidos atribuídos visualmente aos criminosos e delinquentes para que o público pudesse identificar, em registro lombrosiano, os inimigos sociais. Em diálogo com as tradições francesas de identificação criminal, o autor avalia o papel da fotografia de registro criminal para a conformação de um discurso de controle social no Chile.

A fotografia humanista no pós-Segunda Guerra é o tema do artigo “As famílias dos homens. Os trânsitos do humanismo na fotografia internacional e brasileira”, de Erika Zerwes. Parte-se de uma das primeiras séries fotográficas realizada por Claudia Andujar, sobre famílias brasileiras (1960-62), para em registro comparativo com a série de fotorreportagens intitulada People are people the world over (1948-49) e a exposição Family of Man (1955), avaliar os percursos da fotografia humanista. As imagens em trânsito, movidas por impulsos diferentes, mas com o mesmo propósito: documentar a experiência humana fotograficamente. Da busca de compreender o outro por meio da linguagem universal da fotografia, no caso de Claudia Andujar, passando pelo registro de como viviam as pessoas mundo a fora, no caso da fotorreportagem publicada no Ladies’ Home Journal, e chegando ao apelo universalista da exposição do MOMA, afirma-se uma prática fotográfica de viés humanista, que nos leva a indagar sobre o destino das imagens em um mundo de contrastes e desigualdades em dimensões globais.

Nosso dossiê completa-se com uma entrevista com a historiadora da arte e professora Annateresa Fabris, enfatizando as relações entre fotografia, artes e estudos da imagem como parte da trajetória de uma das mais importantes autoras sobre o tema em âmbito nacional e, não seria exagero dizer, internacional. Concluindo-se com duas resenhas de livros voltados para a problemática da fotografia na pesquisa histórica e em arquivos – “Más allá de la simple imagen: fotografía e investigación” – e para a os itinerários históricos da fotografia na América Latina – “Notas sobre uma história da fotografia na América Latina”, escritos respectivamente por duas especialistas em estudos sobre a fotografia, Núria Rius e Carolina Etcheverry.

Boa leitura!

Ana Maria Mauad – Professora titular do Departamento de História e pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (UFF. E-mail: [email protected]

Charles Monteiro – Professor adjunto do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: [email protected]


MAUAD, Ana Maria; MONTEIRO, Charles. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 44, n. 1, jan. / abr., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Amor Mundi: atualidade e recepção da obra de Hannah Arendt / Estudos Ibero-Americanos / 2017

Em meados do século passado, o historiador Fritz Ringer publicou a monumental obra O Declínio dos Mandarins Alemães (RINGER, 2000), na qual descreve o ambiente acadêmico alemão no período guilhermino e na República de Weimar. Em seu trabalho, a ressaca da Primeira Guerra Mundial e os perenes sentimentos de angústia, pessimismo e ansiedade conduzem a um progressivo sectarismo e isolamento da Academia alemã, que facilitará a adesão ao Nacional-socialismo por boa parte dos professores universitários a partir da ascensão de Hitler. Entretanto, ainda que esse momento trouxesse o declínio da influência desses mandarins sobre a sociedade alemã, não há dúvidas de que continuava a ser, entre ortodoxos e modernos, um grupo de letrados e eruditos de enorme prestígio. Herdeiros diretos do Iluminismo e do Idealismo alemão, formados por um rígido currículo e moldados na disciplina diletante, os acadêmicos alemães do período ganham reconhecimento do mundo inteiro.

Hannah Arendt é fruto dessa tradição. Com uma formação densa, pautada na erudição, no conhecimento da História e de vários idiomas, versada na tradição clássica que tanto irá influenciar seu trabalho, Arendt parece ter sido preparada por toda sua vida para o destino que a encontrou. Em seu caminho, errante e muitas vezes turbulento, entrou em contato com alguns dos maiores nomes da Academia do período pós-guerra, como Martin Heidegger, Karl Mannheim e, principalmente, Karl Jaspers, que viria a orientar sua tese de doutorado, O Conceito de Amor em Santo Agostinho (1997), e seria um interlocutor constante. Marcada pela fuga do nazismo e pelo exílio, tendo atuado como jornalista, ensaísta e professora, Hannah Arendt é conhecida pelos historiadores principalmente por suas obras Sobre a Revolução (2011), Eichmann em Jerusalém (1999) e Origens do Totalitarismo (2012), que é considerada seu Magnum Opus. A relação da autora com a História vai ainda além1 : ela utilizou constantemente conceitos históricos para discutir fenômenos políticos presentes e, em alguns de seus escritos, desenvolve a sua crítica da história monumental de Hegel e Marx, apontando para uma historiografia que deixa em aberto o espaço de eventos imprevisíveis e de contingência (“Todo aquele que, nas ciências históricas, acredita honestamente na causalidade, nega o objeto de estudo de sua própria ciência” [ARENDT, 2002, p. 50]). Mas foi mesmo com suas reflexões acerca do fenômeno totalitário que Arendt se tornou conhecida, primeiro nos Estados Unidos, onde se refugiara durante a guerra, depois no mundo.

Esse reconhecimento, entretanto, não foi imediato no meio acadêmico. De fato, como demonstra Kathryn Densberger (2008), até a década de 1980 eram poucos os estudiosos e as publicações que refletiam sobre sua obra, um panorama que começou a mudar na década seguinte, seguindo a publicação e alguns volumes de correspondências da autora, em particular suas cartas trocadas com Karl Jaspers (1992), Mary McCarthy (1995) e Martin Heidegger (1998). Isso despertou um novo interesse na obra da teórica em todas as áreas das Humanidades, que alcançou novo impulso a partir de 2002, com leituras e pesquisas voltadas à compreensão do fenômeno do terrorismo e da violência no campo público, e com as comemorações em torno do centenário de Arendt, em 2006.

Esse progressivo interesse pela obra de Hannah Arendt não ocorre sem críticas. Não são poucos os que a identificam como uma não acadêmica e não intelectual, para além daqueles que a ignoram solenemente após a rotularem como “liberal” – seja lá o que entendam com esse adjetivo. Arendt tem enfrentado, tanto em vida quanto após sua morte, críticas que abarcam não apenas as ironias feitas ao seu relatório Eichmann em Jerusalém (retratadas no filme de Margarethe Von Trotta, de 2012). Ela também é criticada por seu uso da polis grega como base de sustentação para sua argumentação, o que é apontado como uma suposta nostalgia conservadora ou um idealismo desapegado da realidade. Seu método também é alvo de censuras: sua teoria política carece de normatividade, de acordo com Seyla Benhabib (1996); sua escrita da História não apresenta a objetividade necessária, como aponta Eric Voegelin (1998); e a sua filosofia não tem rigor, de acordo com Axel Honneth (2014). Até mesmo sua representação do colonialismo europeu na África já foi acusada de eurocentrismo, quando não de racismo (KING; STONE, 2007).

Mas contra essas percepções críticas, a obra de Arendt vem ganhando espaço nas pesquisas e reflexões de acadêmicos nos últimos anos. A recepção de seus escritos tem a característica de ser naturalmente interdisciplinar, carregando consigo elementos da Teoria Política, da História e da Filosofia, abrindo novos campos e lançando novos olhares nas diferentes áreas das Humanidades. Arendt é uma pensadoraponte, ela facilita nossa inserção em terras vizinhas, mas cujo acesso nem sempre é tranquilo.

Também no Brasil, poucos foram os pensadores que ganharam a importância e que exerceram influência maior sobre as produções acadêmicas dos últimos anos que Hannah Arendt. A obra da filósofa alemã é uma referência constante nas reflexões e nos estudos brasileiros produzidos por especialistas das mais diversas áreas. Dentre os principais frutos que as sementes arendtianas geraram em Terra Brasilis encontramos trabalhos e pesquisas diversificados, desde as reflexões pioneiras de Celso Lafer (1979; 1988) passando por contribuições como a de Ricardo Benzaquen de Araújo (1988) e Eduardo Jardim (2007; 2011) até os recentes trabalhos de Edson Teles (2013), André Duarte (2000; 2010), Renata Schittino (2015) e Bethânia Assy (2008; 2015), entre muitos outros nas mais diversas áreas das Humanidades.

Tais esforços colocam a obra de Hannah Arendt no primeiro plano da produção brasileira, fornecendo uma estrutura de base fenomenológica para o pensamento da política e dos fenômenos políticos dos séculos XX e XXI. É no diálogo com Arendt, com seus conceitos de Autoritarismo, Totalitarismo, Liberdade, Ação, Política e, talvez sua contribuição mais disseminada, de Banalidade do Mal, que vários pesquisadores de primeira linha brasileiros encontram sustentação e inspiração para o desenvolvimento de seus próprios trabalhos.

Diante desse retrato, o presente dossiê busca apresentar um panorama da produção atual sobre e acerca da obra de Arendt, sendo dividido em duas partes: os primeiros quatro artigos, de autorias europeias, abordam temas e debates que demonstram exemplarmente as discussões mais atuais nos círculos arendtianos no velho continente; na segunda parte, os quatro artigos são de autoras latino-americanas, buscando apresentar uma amostra dos interesses e das apropriações da teoria arendtiana deste lado do Atlântico.

O texto que abre o dossiê é de autoria de Frauke Kurbacher, da Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Nele, a filósofa dá importante contribuição para o entendimento da faculdade do juízo e de sua relação com a ação e o pensamento de Arendt, buscando suas origens nas Críticas kantianas. É na dimensão estética do julgamento que Kurbacher encontra a base para o pensamento arendtiano – e também, por extensão, para o agir. O agir é também o objeto do segundo texto, de autoria de Alexey Salikov e Alexey Zhavoronkov, ligados à Universidade de Kaliningrado / FU-Berlin e à Academia Russa de Ciências / Universidade de Erfurt. Aqui, a proposta de análise recai sobre o texto Da Revolução, de Hannah Arendt, e sua aplicabilidade na arena pública moderna.

Os dois artigos seguintes se referem a um tema de extrema importância e de grande debate na Academia europeia nos últimos anos. A crise dos refugiados ganhou os noticiários no ano de 2015, quando grandes levas de imigrantes tentaram adentrar o continente e as imagens de suas perigosas travessias – e das mortes que ocorreram em decorrência – consternaram o mundo inteiro. Os refugiados, como nos ensina Arendt (2009), se encontram em uma zona cinzenta, sem amparo de leis nacionais, sem uma estrutura internacional que os proteja. Tornam-se, para os Estados nacionais, uma massa de incertezas. Sobre essa situação atípica – mas tão típica de nossos tempos – discorrem Vlasta Jalušič, do Peace Institute for Contemporary Social and Political Studies e da Universidade de Ljubljana, e Helgard Mahrd, da Universidade de Oslo.

A segunda parte do dossiê, formada por autoras latino-americanas, tem como carro-chefe o artigo de Claudia Hilb, da Universidade de Buenos Aires. Aqui as reflexões de Arendt servem de ponto de partida para uma incursão sobre a memória da ditadura militar argentina, com particular ênfase sobre os aspectos da responsabilidade, do perdão e do mal. A ditadura chilena e a memória do período pinochetista é o tema da contribuição de María José López Merino, da Universidade do Chile, que reflete sobre o princípio da violência e o conceito de Totalitarismo e suas aplicações ao caso chileno.

O dossiê conta ainda com duas contribuições importantes para as pesquisas arendtianas da América do Sul: a primeira é de autoria de Claudia PerroneMoisés e Laura Mascaro, ambas da Universidade de São Paulo, e gira em torno do lugar da palavra e da narrativa na (re)constituição da história, assim como suas implicações nos tribunais de crimes contra a humanidade. Suas considerações, apesar de centradas no caso de Eichmann e levando em consideração também o de Barbie, serve como ponto de reflexão para os casos das ditaduras do Conesul. A segunda contribuição é de Julia Smola, da Universidade Nacional de General Sarmiento, da Argentina, que traz uma reflexão sobre o livro Da Revolução e suas implicações e relações com a teoria da ação de Arendt. É particularmente interessante em uma leitura combinada com o texto de Salikove Zhavoronkov, observando-se as motivações e pontos de partida de cada uma das contribuições.

O fechamento do dossiê traz a inestimável contribuição de Adriano Correia, da Universidade Federal de Goiás, que apresenta suas considerações sobre o livro essencial de Bethânia Assy, Ética, Responsabilidade e Juízo em Hannah Arendt.

Boa leitura!

Nota

1Para uma reconstrução da concepção de história em Hannah Arendt, ver Schittino, 2015.

Referências

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VOEGELIN, Eric. Hannah Arendt. In: Über den Totalitarismus: Texte Hannah Arendts aus den Jahren 1951 und 1953. Dresden: Hannah Arendt Institut für Totalitarismusforschung, 1998.

Wolfgang Heuer – Professor livre-docente no Instituto Otto-Suhr de Ciência Política da Freie Universität Berlin. É historiador e doutor em Ciência Política pela Freie Universität Berlin. Entre suas principais publicações então os livros Hannah Arendt (Rowohlt, 1987), Citizen: Politische Integrität und politisches Handeln (Akademie, 1992), Couragiertes Handeln (zu Klampen, 2002) e a organização, com B. Heiter e S. Rosenmüller, do dicionário Arendt Handbuch: Leben – Werken – Wirkung (J. B. Metzler, 2011). E-mail: [email protected]

Vinícius Liebel – Historiador, doutor em Ciência Política pela Freie Universität Berlin. Autor de Politische Karikaturen und die Grenzen des Humors und der Gewalt (Budrich, 2011) e Humor, Propaganda e Persuasão: As Charges na Propaganda Nazista – uma análise dos jornais Der Stürmer (Alemanha) e Deutscher Morgen (Brasil) (NEA, 2017). Pesquisador associado do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes (Niej), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected]


HEUER, Wolfgang; LIEBEL, Vinícius. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 43, n. 3, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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História, cotidiano e memória social – a vida comum sob as ditaduras no século XX / Estudos Ibero-Americanos / 2017

Por uma história do cotidiano dos regimes autoritários no século XX

Em língua portuguesa, os dicionários comportam pelo menos duas definições para a palavra cotidiano: primeiramente, significa o “conjunto das ações que ocorrem todos os dias”, mas é também aquilo que “não é extraordinário; comum ou banal”. Já no idioma inglês, as palavras everyday e daily aparecem como sinônimos podendo significar, de acordo com o Oxford English Dictionary, “happening or used every day”. O vocábulo daily, por sua vez, se tem uma definição muito próxima da de everyday (“one, produced, or occurring every day or every weekday”), comporta também outros sentidos. É o que verificamos, por exemplo, na expressão daily life, a qual possui acepção bastante similar ao segundo significado que a palavra cotidiano possui em português: “the activities and experiences that constitute a person’s normal existence”. Na língua espanhola, também é possível distinguir dois termos diferentes: cotidiano, para se referir ao que “ocurre con frecuencia, habitual” e cotidianidad, entendido como a “característica de lo que es normal porque pasa todos los días”. Assim, o cotidiano pode estar ligado, ao mesmo tempo, às ideias de repetição e rotina e à de normalidade.

O dossiê História, cotidiano e memória social: a vida comum sob as ditaduras no século XX, que ora apresentamos ao leitor, tem como proposta justamente a reflexão sobre o cotidiano. A rigor, uma dupla reflexão: pretende, em primeiro lugar, debater as possibilidades, os contornos e os limites do que podemos denominar uma história da vida cotidiana e sua inscrição no âmbito dos múltiplos significados que o termo pode admitir. Assim, trata-se de refletir sobre o cotidiano como objeto historiográfico a partir daquilo que ele representa em termos de repetição, de rotina, ou antes, de rotinização da vida; mas também como aquilo que pertence ao universo do ordinário, de uma “existência normal”. Ao mesmo tempo, a proposta se concentra principalmente nas possibilidades de se pensar o universo do cotidiano em um quadro de exceção; o ordinário no contexto do extraordinário. Dito de outra forma, trata-se de questionar: é possível pensar a reprodução da vida cotidiana no quadro dos diversos regimes autoritários que tiveram lugar no século XX? Como podemos elaborar uma reflexão sobre os fatos banais da vida daqueles que não se sentiram concernidos por tais regimes, os quais tinham como base o terror de Estado e a disseminação do medo? Como se davam as reivindicações de uma “existência normal” em conjunturas excepcionais, de violência política e de ditaduras?

Para as ciências sociais, para a história, em particular, tratar o cotidiano pode constituir desafiadora empreitada, na medida mesmo em que o interesse historiográfico pelo objeto reside justamente nas possibilidades de articular a reflexão a partir de ambas as dimensões: a análise das atividades do dia-a-dia como aspecto decisivo para a compreensão de determinada sociedade no tempo; bem como as perspectivas de elaborar historicamente este sentido que o vocábulo comporta do que não é extraordinário, do que é banal e comum. Michel de Certeau, em seu estudo pioneiro, A invenção do cotidiano, fala das pesquisas que desenvolveu sobre o tema como uma “interrogação sobre as operações dos usuários, supostamente entregues à passividade e à disciplina” (CERTEAU, 1998, p. 37). Dialogando, então, com o que eram as recentes pesquisas de Michel Foucault, Certeau questiona:

Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também “minúsculos” e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados”?) dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política (CERTEAU, 1998, p. 41).

Assim, Certeau descreve seu trabalho como uma tentativa de constituir certo aparato metodológico para que se possa delimitar um campo, refletindo sobre o estudo do cotidiano a partir da ideia de práticas comuns, introduzindo-as “com as experiências particulares, as frequentações, as solidariedades e as lutas que organizam o espaço onde essas narrações vão abrindo caminho” (CERTEAU, 1998, p. 35). A delimitação do campo, no entanto e apesar da vigorosa proposta metodológica de Certeau, não é algo simples. Como bem lembrou Peter Burke, citando Norbert Elias, do ponto de vista das ciências sociais, “a noção de cotidiano é menos precisa e mais complicada do que parece. Elias distingue oito significados atuais do termo, desde a vida privada até o mundo das pessoas comuns”. O historiador continua, sinalizando para o fato de que

Igualmente difícil de descrever ou analisar é a relação entre as estruturas do cotidiano e a mudança. Visto de seu interior, o cotidiano parece eterno. O desafio para o historiador social é mostrar como ele de fato faz parte da história, relacionar a vida cotidiana aos grandes acontecimentos, como a Reforma ou a Revolução Francesa, ou a tendências de longo prazo, como a ocidentalização ou a ascensão do capitalismo. O famoso sociólogo Max Weber criou um termo famoso que pode ser útil aqui: “rotinização” (Veralltäglichung, literalmente “cotidianização”). Um foco de atenção para os historiadores sociais poderia ser o processo de interação entre acontecimentos importantes e as tendências por um lado, e as estruturas da vida cotidiana por outro (BURKE, 1992, p. 23).

Burke considera, portanto, o cotidiano como um objeto dentro do amplo espectro da História Social. Nesse sentido, o desafio seria justamente refletir sobre a articulação entre os grandes acontecimentos e a rotinização da vida; a estrutura e a mudança; o eterno e o repetitivo de um lado e o instante e a ruptura de outro. Assim, caberia a pergunta: existe, como campo ou como área de estudos uma História do Cotidiano? Se existe, como e de quê ela se constitui? Luis Castells nos lembra que “no existe una corriente que se englobe tras esta denominación, con la excepción de Alemania, donde el movimiento Al [1] tagsgeschichte se ha constituido como un referente de aquella historiografia” (CASTELLS, 1995, p. 11).

Na Alemanha, desde pelo menos a década de 1970, historiadores como Richard van Dülmen, Hans Medick, Alf Lüdtke ou Dorothee Wierling vêm encarando, “o desafio de fundar uma antropologia histórica”, a qual por sua vez, se distancia do estruturalismo, dando lugar à subjetividade dos atores e às suas experiências pessoais. Daí a apropriação do conceito de habitus caro a Pierre Bourdieu, que concilia determinações sociais e oportunidades de desenvolvimento individual. Isso explica também a preferência, por exemplo, por estudos que se concentram em processos locais e regionais, bairros ou até mesmo algumas famílias. É sob este aspecto que a Alltagsgeschichte alemã se aproxima e dialoga com a micro-história praticada na Itália por Giovanni Levi e Carlo Ginzburg (LE MOIGNE, 2005, p. 30).

Analisando os processos a partir dos quais a Alltagsgeschichte tomou corpo na academia da República Federal da Alemanha ao longo da década de 1970, Nicolas Le Moigne explica que, no contexto alemão daquele período, tais premissas não estavam isentas de “implicações universitárias e mesmo políticas”. Também Alf Lüdtke, um dos grandes expoentes da Alltagsgeschichte alemã, reconhece que em fins dos anos 1970, formaram-se na RFA, grupos locais, preocupados com a Geschichte von unten (História dos de baixo) e com a Geschichte vor Ort (História local). Para o historiador, tais iniciativas partiam, frequentemente, dos fortes conflitos surgidos a partir de 1968 em centros de ensino, em meios burocráticos de conformação de políticas culturais e outros espaços públicos em torno do tema de um novo ensino de História (LÜDTKE, 1995, p. 54). Assim, se na França análises de micro-história encontraram espaço propício para se desenvolver no âmbito de uma História Social que se renovava, o mesmo não se passou na Alemanha com a Alltagsgeschichte: determinados historiadores passaram a “acusar os defensores da Alltag de fazerem pouco da tradição iluminista, colocando emoções e subjetividades no coração da análise histórica” (LE MOIGNE, 2005, p. 31). Sobre a Alltagsgeschichte alemã, Lüdtke explica:

La Alltagsgeschichte no es una disciplina especial. Se trata más bien de un enfoque específico del pasado. Este punto de vista no se limita a las ‘acciones de los dirigentes y de hombres de Estado’ tal y como se hacía predominantemente en la historia política y militar de antes. Por otro lado, esta visión de las experiencias y actuaciones del pasado no se reduce tampoco a coacciones anónimas de mecanismos estructurales. En el centro se encuentra más bien la conducta diaria de los hombres: tanto los prominentes como los supuestamente anónimos son considerados como actores históricos. Se reconstruyen las formas de la práctica en las que los hombres se ‘apropiaban’ de las situaciones en las que se encontraban. Este enfoque insiste en que cada hombre y cada mujer ha ‘hecho historia’ diariamente (LÜDTKE, 1995, p. 50).

Nesse sentido, a Alltagsgeschichte, embora tributária em alguma medida desta se afasta da History from below inglesa(LÜDTKE, 1995, p. 54). O conceito remete às questões da reprodução da vida dos indivíduos anônimos ou não, de origem popular ou das elites, buscando na dinâmica entre as esferas pública e privada elementos que possam contribuir para a compreensão dos modos de pensar e agir das pessoas em seu cotidiano. Nesse sentido, a amplitude do conceito pode resultar em problemas de delimitação do objeto ou da natureza mesma da História do Cotidiano. Luis Castells chama atenção para o fato de que:

Buena parte de sus problemas a la hora de precisar lo que se entiende por historia de la vida cotidiana deriva de su imprecisión, de sus vagos contornos, así como de su escasa teorización, cuando menos desde la perspectiva de los historiadores (CASTELLS, 1995, p. 11).

Não obstante, Castells relembra também que tais problemas são inerentes ao próprio campo da História Social. O que não se pode perder de vista quando se trata deste objeto ou campo de estudos, supostamente de contornos imprecisos, é justamente suas relações com o público. Dedicando-se ao estudo dos aspectos talvez mais triviais do dia-a-dia dos atores sociais, a História do Cotidiano não pode, no entanto, ser pensada separadamente da esfera política. Ao contrário, ao centrar as atenções no quadro microssocial, os historiadores do cotidiano concebem a história como um processo multidirecional, em constante transformação, em uma tentativa de apreender em sua complexidade os comportamentos coletivos (KOSLOV, 2010).

Ainda sobre a corrente alemã, Le Moigne explica que a Alltagsgeschichte deu prioridade a três campos de pesquisa: em primeiro lugar, os “parâmetros gerais da vida humana” que tendiam a ser considerados “a-históricos” na Alemanha: a sexualidade, o nascimento, as doenças, o amor, a morte; depois, ela se ocupou dos meios desenvolvidos pelos homens para gerir seu cotidiano: o vestuário, a habitação, nutrição e o trabalho. Por fim, a História do Cotidiano voltou-se para os comportamentos e as formas de adaptação em situações excepcionais, notadamente a Guerra, a crise econômica, as privações de liberdade, as ditaduras (LE MOIGNE, 2005, p. 32).

Aplicado ao caso do nazismo, a História do Cotidiano ajudava a melhor perceber a atração que o regime exerceu sobre a sociedade e as maneiras a partir das quais as “emoções se combinaram com interesses materiais e necessidades individuais durante o processo que possiblitou que a política de destruição e perseguição nazista fosse colocada em marcha” (KOSLOV, 2010). Em 1989, Alf Lüdtke publicava na Alemanha um trabalho com uma série de estudos sobre História do Cotidiano1. Especificamente no que concernia ao período do nazismo, o autor evocava algumas vezes o sofrimento dos atores e a necessidade por parte do historiador de elaborar – social e historicamente – tal sofrimento. Não obstante, no caso do nazismo, compreender as penúrias impostas pelo regime significava igualmente refletir sobre os comportamentos que as produziram ou que, de maneira mais recorrente, ao menos coexistiram com elas. Tratava-se de compreender aquilo que o autor chamou de fascismo comum (REVEL, 1995, p. 805-808).

Não obstante, Lüdtke reconhecia as dificuldades e controvérsias que as propostas da Alltagsgeschichte poderiam suscitar especificamente quando dedicadas a refletir sobre o nazismo (LÜDTKE, 1994, p. 2). Sob este aspecto, é fundamental nos colocarmos diante das questões levantadas por Detlev J.K. Peukert também para o caso alemão:

podemos, ou mesmo devemos, falar de “vida cotidiana” em uma era que, para as vítimas de perseguição e guerra, significou um perpétuo estado de emergência? Em face da monstruosidade dos crimes do nacional-socialismo, não deveríamos ficar em silêncio sobre as rotinas diárias banais da maioria que não sente que foi afetada ou envolvida? (PEUKERT, 1987, p. 21)

Assim, se a ênfase nos estudos dos fatos da vida cotidiana sob um regime criminoso pode colocar o historiador diante de importante questão ética, o mesmo Peukert nos lista uma série de razões pelas quais o estudo de um regime autoritário – o nazismo, no caso – sob a perspectiva da História do Cotidiano pode também fornecer bases interessantes para uma historiografia crítica, na medida em que retira o seu objeto de interesse justamente das contraditórias e complexas experiências da “gente comum”.

Também Alf Lüdtke defende que

apenas um estudo detalhado dos comportamentos e das tomadas de consciência individuais pode identificar as contradições com as quais lideram indivíduos e grupos sociais sob o nazismo. Assim, pode-se entender o funcionamento do movimento de massas que esteve na origem do triunfo e da manutenção do regime nacional-socialista (KOTT; LÜDTKE, 1991, p. 153).

Mas, as reflexões em torno da vida cotidiana sob regimes autoritários no século XX não ficaram, evidentemente, restritas ao caso alemão. A historiografia sobre tais experiências vem passando por um processo de renovação desde pelo menos as décadas de 1970 e 1980 na Europa e, mais recentemente, processo similar se verifica para o caso da América Latina. Nesse sentido, o trabalho com categorias como memória, opinião, consenso, consentimento e resistência têm sido fundamentais para compreender os regimes autoritários do século XX, em suas mais diversas essências e temporalidades em ambos os continentes. No mesmo movimento, o cotidiano foi tomado como objeto, interrogando sobre a pluralidade das atitudes coletivas e sobre as formas a partir das quais se teceram as relações sociais em seus ambientes cotidianos, moldadas pelos pressupostos dos Estados autoritários que as governavam.

Assim, é importante destacar, dentre tantos outros, o estudo realizado por Sheila Fitzpatrick sobre a vida cotidiana sob o stalinismo. Nele, a autora avalia que existem inúmeras teorias sobre a forma de se escrever a história da vida cotidiana. Algumas delas consideram que o cotidiano abrange essencialmente a esfera da vida privada: a família, o lar, a educação das crianças, os lazeres, as relações de amizade e a sociabilidade. Outros voltam suas atenções para o mundo do trabalho, os comportamentos e atitudes nos locais de trabalho. Já os especialistas da vida cotidiana sob regimes autoritários se interessaram principalmente pelas diferentes formas de resistência – ativa ou passiva – elaboradas pelos cidadãos ou pela questão da resistência cotidiana, no campo ou nas cidades (FITZPATRICK, 2002, p. 13).

É o que ocorre, por exemplo, no caso do Brasil, onde apenas muito recentemente verifica-se um processo de renovação historiográfica que busca refletir sobre a ditadura como um processo de construção social [2]. No que se refere aos debates a respeito das reflexões sobre o cotidiano e, especificamente, sobre as problemáticas em torno da articulação entre uma reflexão sobre as possibilidades de uma História do cotidiano sob ditaduras, os trabalhos existentes retomam, em primeiro plano, as questões que envolvem o dia-a-dia dos grupos de resistência e oposição ao regime.

Neste caso, trabalho pioneiro foi a reflexão desenvolvida por Maria Hermínia Tavares e Luiz Weiz a respeito do cotidiano de oposição da classe média brasileira durante a ditadura e que compõe o volume 4 da coletânea História da vida privada no Brasil. Os autores estudaram especificamente setores a que chamaram “classe média intelectualizada”: “estudantes politicamente ativos, professores universitários, profissionais liberais, artistas, jornalistas, publicitários, etc” e a vasta gama de comportamentos que definiam a oposição durante a ditadura (TAVARES; WEIZ, 1998, p. 327-328).

Tavares e Weiz chamam atenção, nesse sentido, para os diferentes modos de se relacionar com o espaço urbano que a clandestinidade impunha: o isolamento social em alguns casos, as dificuldades por parte das famílias de jovens militantes em “retomar uma existência cotidiana regular” e, por fim, a transformação do medo e da insegurança em “sensações básicas cotidianas e comuns a quem quer que tenha feito oposição à ditadura, marcando a fundo a vida privada dos oposicionistas” (TAVARES; WEIZ, 1998, p. 328).

É importante, no entanto, considerar que não foi apenas a vida cotidiana da oposição à ditadura que sofreu profunda alteração. Tampouco as sensações de medo e insegurança ficaram restritas a tais meios. Ao contrário, a temática da violência política e a sensação de que se poderia estar sob vigilância teria caracterizado o dia-a-dia de parcelas muito mais expressivas da sociedade e não apenas daqueles que se opuseram ao regime. A própria Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que ao fim forneceu a justificativa para o golpe e para a manutenção da ditadura, ao operar a partir de noções como as de guerra permanente e guerra total, contribuía de forma expressiva para moldar a vida cotidiana sob a ditadura. O dia-a-dia do “cidadão comum” foi, dessa maneira, invadido por tais noções e estes incorporaram, sob muitos aspectos, a essência da DSN, a qual residia mesmo “no enquadramento da sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica anti-subversiva contra o inimigo comum” (BORGES, 2007, p. 29).

Não obstante e de maneira geral, se em um primeiro momento a ideia de tomar o cotidiano sob regimes autoritários como objeto esteve vinculada às possibilidades de ampliar os estudos sobre as diversas formas de resistência, trabalhos mais recentes vêm propondo transcender este âmbito. Ainda de acordo com Fitzpatrick, tais análises buscam “dar ênfase às práticas, ou seja, às formas de comportamento e estratégias pessoais elaboradas para fazer face à condições sociais e políticas particulares” (FITZPATRICK, 2002, p. 14).

Sobre tais práticas e estratégias, talvez seja interessante ter em vista, de um ponto de vista teóricometodológico, aquilo que o historiador Andrew Stuart Bergerson observa para o caso alemão. Em seu estudo sobre alemães comuns em tempos incomuns, que toma como base as relações de vizinhança e em outros espaços cotidianos na cidade de Hildesheim, Bergerson busca compreender justamente “como pessoas comuns buscaram manter uma cultura de normalidade enquanto, não obstante, transformavam amigos e vizinhos em judeus e arianos” (BERGERSON, 2004, p. 6) [3]. Por “cultura de normalidade”, o historiador explica que não se refere a um estado natural, mas a um subproduto da cultura humana: “uma experiência gerada por uma forma específica de ser, acreditar e se comportar”. Nesse sentido, a cultura de normalidade fornece os elementos a partir dos quais as pessoas comuns se autodefinem como tais, tendo em vista ideias de impotência e insignificância, reforçando a construção de uma percepção sobre si mesmo que os aparta da História com H maiúsculo, mas que, de fato, apenas os habilita a “moldar a história” enquanto os envolve em uma autoilusão de inocência (BERGERSON, 2004, p. 6).

Sob este aspecto e como a ideia de homem comum ou de uma vida ordinária estão presentes e ligadas de certa maneira às possibilidades e questionamentos em torno da História do Cotidiano, é importante destacar que tais termos são entendidos aqui de maneira similar à proposta de Bergerson e relaciona-se, antes de tudo, à uma autoimagem ou autodefinição de si mesmos. Assim, para o autor, o termo comum [4] serve

não tanto para descrever um conjunto de pessoas que permaneceram fora dos círculos do poder público e da responsabilidade histórica. Ser comum era engajar-se em uma estratégia cultural específica de sobrevivência. Uma resposta criativa às rápidas e perturbadoras transformações históricas, essa forma de comportamento foi caracteristicamente moderna, mais que especificamente alemã, um hábito de vida diário (BERGERSON, 2004, p. 6).

Por fim, o que pretendemos ao propor este dossiê temático, considerando os pressupostos e as discussões em torno da chamada História do Cotidiano, foi chamar atenção para as possibilidades – e os limites – de se tomar como objeto de estudos a vida cotidiana sob regimes autoritários e / ou situações de guerra no século XX.

Nesse sentido, indagamos sobre como as vidas de pessoas não implicadas diretamente nos embates políticos em questão foram modificadas – ou não – por eles. Mais que isso, como estas pessoas perceberam, reagiram e se adaptaram a tais regimes em seus espaços de vivência cotidiana. Como segmentos sociais diversos lideram com os regimes políticos em questão, naturalizando, em níveis distintos, suas práticas e linguagem próprias? Quais comportamentos e “estratégias pessoais” utilizados diante das novas situações? Por outro, consideramos importante também pensar atores não tão “comuns” e seus espaços cotidianos: meios de comunicação, participantes de organizações armadas, ídolos musicais. Como veremos nas páginas que seguem, o conceito de cotidiano é ampliado, enriquecendo os questionamentos aqui apresentados.

Esta edição conta com quinze artigo, três resenhas e duas entrevistas. Abrindo o dossiê, o artigo de Fernando Perlatto “Svetlana Aleksiévitch, a Grande Utopia e o cotidiano: testemunhos e memórias do Homo Sovieticus”, analisa a obra da escritora bielorrussa a partir da reflexão da vida cotidiana dos homens e mulheres “comuns” ao longo dos anos de autoritarismo soviético. A autora contribui para pensarmos a relação entre grandes acontecimentos e a vida cotidiana do “Homo Sovieticus”. Por sua vez, Daniel Lvovich em seu texto “Vida cotidiana y dictadura militar en la Argentina: Un balance historiográfico” faz um levantamento e uma análise dos estudos que tomam como objeto a questão do cotidiano durante a última ditadura militar argentina (1976-1983).

Em “Mortes no mar, dor na terra. Brasileiros atingidos pelo ataque do submarino alemão U-507 (agosto de 1942)”, o terceiro artigo de nosso dossiê, Jorge Ferreira parte do ataque de retaliação do governo nazista a navios brasileiros para trabalhar as reações das vítimas e seus familiares sobre o referido episódio a partir de cartas publicadas em jornais. Também no contexto da década 1940, mas em Portugal, Carla Ribeiro em “A educação estética da Nação e a “Campanha do Bom Gosto” de António Ferro (1940- 1949)” analisa a iniciativa cultural durante o Estado Novo e sua proposta de criar uma consciência estética entre os portugueses, assim como as marcas que essa campanha deixou na identidade do país no século XX.

Os artigos de Lorena Soler e Diogo Cunha trabalham o cotidiano e questões de sociabilidade no contexto sul-americano: em “Sociabilidad y vida cotidiana. Los rituales del festejo de amistad durante el stronismo en Paraguay”, a autora também utiliza a imprensa como caminho de análise das formas de recreação cotidianas que geravam adesões ao autoritarismo stronista, com foco na organização civil Cruzada Mundial de la Amistad, apoiada pelo regime. Já Diogo Cunha em “Sociabilidade, memórias e valores compartilhados: o cotidiano na Academia Brasileira de Letras durante a ditadura militar através da Revista da Academia Brasileira de Letras” propõe, através da análise da revista citada no título, pensar como esta instituição pode ter servido como espaço de legitimação da última ditadura em nosso país. O autor destaca a intensa sociabilidade entre os membros da ABL e representantes do regime como parte desta legitimação.

Nina Schneider também trabalha o regime brasileiro em “Propaganda ditatorial e invasão do cotidiano: a ditadura militar em perspectiva comparada”. A historiadora propõe uma reflexão sobre os impactos da propaganda governamental no cotidiano sob ditadura, assim como os limites no respeito à vida privada por parte do regime. Para a autora, diferente dos casos do varguismo e do nazismo, a última ditadura brasileira não procurou politizar e mobilizar a sociedade através da propaganda.

Os trabalhos que seguem de Marcos Napolitano e Rodrigo Patto Sá Motta têm como foco a análise da grande imprensa como ator durante a ditadura civilmilitar no Brasil. Em “A imprensa e a construção da memória do regime militar brasileiro (1965-1985)”, Napolitano parte da análise desse ator para pensar o cotidiano ditatorial. Analisando os editoriais de quatro jornais da grande mídia (O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e O Globo) no aniversário do Golpe de 1964, o autor trabalha com a hipótese de que foi a linhagem ideológica, das guinadas e revisões da memória liberal sobre o regime presente nestes editoriais, que definiu as bases da memória hegemônica de “resistência democrática” sobre o período. Já Rodrigo Motta propõe em seu trabalho “Entre a liberdade e a ordem: o jornal O Estado de São Paulo e a ditadura (1969-1973)” pensar as representações políticas divulgadas pelo citado jornal para tentar compreender suas estratégias frente à ditadura que, segundo o autor, variaram entre a adesão e a acomodação.

Retornando à Argentina em “Vida cotidiana, violencia política y represión. La Argentina de los años setenta y de la post-dictadura a partir del Archivo Marshall T. Meyer”, Sebastián Carassai parte de um arquivo pessoal para analisar as diversas experiências da sociedade do país no contexto de violência política dos anos 1970 e 1980, incluindo o pós-ditadura. Com uma interessante variedade de fontes o autor reflete sobre a partir da experiência concreta de uma comunidade judia de classe média em Buenos Aires.

No artigo que segue, Ana Maria Mauad trabalha as últimas ditaduras na América do Sul em um contexto regional, a partir da análise de imagens particulares. “Imagens que faltam, imagens que sobram: práticas visuais e cotidiano em regimes de exceção 1960-1980” vai do contexto privado das fotografias familiares e sua migração para o espaço público e propõe a discussão do papel da fotografia na elaboração da imaginação civil na contemporaneidade. Também no campo das manifestações culturais, “Entre a política e o prazer: ditadura, arte e boêmia através do filme “Garota de Ipanema” (Leon Hirszman, 1967)”, de Carlos Eduardo Pinto de Pinto, o autor usa a obra cinematográfica citada para analisar as tensões entre política e prazer no cotidiano do Rio de Janeiro no último período ditatorial, trazendo ao debate imaginários como a boemia, a arte e a despolitização na época.

Já o artigo de Cláudia Cristina da Silva Fontineles: “O cenário esportivo como arena de disputas políticas: entre a memória recitada e o apagamento de rastros” utiliza uma vasta seleção de fontes históricas para discutir que papel nas disputas entre dois grupos políticos majoritários tiveram o estádio de futebol “Albertão” e o time de futebol Tiradentes no Piauí, entre as décadas de 1970 e 1980. O artigo aponta as disputas de memórias entre as múltiplas leituras do espaço esportivo feitas por aliados como parte da euforia desenvolvimentista e por opositores pelo uso como reafirmação da presença do governo de Alberto Silva (1971-1975).

Em mais um trabalho que tem a imprensa como objeto de análise, Nataniél dal Moro utiliza o periódico Correio do Estado para abordar conflitos de classe no artigo intitulado “Conflitos entre elite e povo comum na cidade de Campo Grande (décadas de 1960-70)”. O autor destaca que as matérias produzidas pelo periódico representam um discurso próprio do mesmo, e por isso um interessante meio de análise dos conflitos cotidianos da cidade.

Finalmente, o trabalho de Gustavo Alves Alonso Ferreira: ”Os Vandrés do sertão: Música sertaneja, ufanismo e reconstruções da memória na redemocratização”, fecha a seção de artigos desse dossiê. Alonso discute a imagem de apoiadores da ditadura que carregam os artistas sertanejos. Se por um lado muitos deles de fato apoiaram a ditadura em determinado momento, como tantos outros artistas de gêneros musicais distintos, no período da redemocratização os sertanejos se engajaram no processo de transição, o que parece “esquecido” nas disputas de memória.

Essa edição conta com três resenhas. A primeira delas, feita por Maurício Santoro, intitulada “Memória familiar, identidade e ditadura”, sobre a obra A Resistência, de Julian Fuks (Companhia das Letras, 2015). Em “A casa dos horrores e seus agentes: o DOI-Codi de São Paulo e o trabalho sujo na ditadura”, Laurindo Mekie Pereira resenha o livro Na casa da vovó – Tempos da ditadura (o que vi e vivi) (Revan, 2015), de Francisco Antônio Doria. Finalmente, a obra Sinais de Fumaça na Cidade: uma sociologia da clandestinidade na luta contra a ditadura no Brasil (Lamparina, 2015), de Henri Acselrad, deu origem à resenha “O Cotidiano sob a Ditadura Civil-militar: o espaço de interação entre a militância clandestina e os habitantes do subúrbio”, de Keila Auxiliadora Carvalho.

Fechando o dossiê, duas entrevistas que trazem como tema diferentes experiências autoritárias no século XX. A primeira delas realizada por Lívia Gonçalves Magalhães com a cientista política Pilar Calveiro, argentina sobrevivente de centros clandestinos de detenção durante a última ditadura civil-militar argentina. Vivendo no México desde seu exílio em 1979, Calveiro possui diversos trabalhos que procuram entender o cotidiano autoritário tanto em ditadura como em democracia. A entrevista de Janaina Martins Cordeiro foi feita com Antonio Cazorla Sánchez, espanhol e hoje professor de História Contemporânea no Canadá. Autor de uma biografia do general espanhol Francisco Franco, Cazorla é hoje um dos maiores especialistas no período do primeiro franquismo.

Esperamos que este dossiê gere novos debates e reflexões sobre o tema, que de forma alguma se esgota nas páginas que seguem.

Boa leitura!

Notas

1. Cf. a edição francesa do livro: LÜDTKE, 1994.

2. Cf., dentre outros, AARÃO REIS, 2000; GRINBERG, 2009; ROLLEMBERG e QUADRAT, 2010; MAGALHÃES, 2014; MOTTA, 2014; ALONSO, 2015; CORDEIRO, 2015.

3. Grifos no original.

4. O termo utilizado no original em inglês é ordinary.

Referências

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Janaina Martins Cordeiro – Professora Adjunta de História Contemporânea do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela mesma instituição, é Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ, 2015-2018) e autora de A ditadura em tempos de Milagre: comemorações, orgulho e consentimento (FGV, 2015) e Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil (FGV, 2009). E-mail: [email protected]

Lívia Gonçalves Magalhães – Professora Adjunta de História do Brasil Republicano do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela mesma instituição e Mestra em Estudos Latino-Americanos pela Universidad Nacional de San Martín (UNSAM, Argentina). Possui Pós-Doutorado em História pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES, CAPES, 2014-2016). É autora de Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina (Lamparina, 2014) e Histórias do Futebol (APESP, 2010). E-mail: [email protected]


CORDEIRO, Janaina Martins; MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 43, n. 2, maio / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Atores e Trajetórias do Campo Indigenista nas Américas / Estudos Ibero-Americanos / 2017

Actores y trayectorias del campo indigenista en las Américas*

Podría decirse que también el indigenismo está afectado por aquel célebre equívoco de Cristóbal Colón, que pretendió haber encontrado, singlando hacia el oeste, la inmensa India. Sin ese equívoco, que dio una ilusoria unidad a su “descubrimiento”, quizás éste se hubiese desdoblado en varios “descubrimientos”, y no hubiese un término común para todos los habitantes originarios de un continente que abarca casi toda la latitud de la tierra, desde el límite de Alaska (donde los Inuit, nunca incluidos dentro del término “indio”, constituyen la excepción) a la Tierra del Fuego. De hecho, el término “indio” tardó en fijarse en Brasil, donde los nativos fueron durante un tiempo llamados “negros da terra”, como si los portugueses hubiesen llegado a una segunda África. Pero el término “indio” (después amalgamado con “indígena”, en buena parte gracias a una falsa etimología) acabó por imponerse en todas partes, sugiriendo una unidad que ningún otro criterio justifica, entre historias, culturas, lenguas, modos de vida enormemente diversos. Y, también, una política indigenista que, a pesar de las grandes diferencias de país a país, se puede entender como una serie de variaciones sobre algunos temas comunes. En el indigenismo se solapan y mezclan diversas corrientes de pensamiento, varias generaciones de políticas públicas y contradictorios procesos de construcción de las naciones americanas. Una historia que abarca conceptos y actitudes sobre el “otro” o los “otros”, de los habitantes originarios de la tierra o previos a la colonización exterior, que son menester convertir en elemento de una nueva comunidad imaginada. También una historia que trata sobre la producción de saberes y organizaciones con desarrollos más o menos autónomos según las épocas y sus vínculos con otras áreas de las sociedades nacionales e internacionales.

El objetivo del dossier que aquí presentamos fue desde el principio explorar del modo más amplio posible todo ese panorama, evitando la concentración en los países y en los temas clásicos de la reflexión sobre el indigenismo – México, Perú y Brasil. Las limitaciones de espacio, y la disponibilidad o no de los autores, han recortado esa ampliación geográfica que pretendíamos, pero aun así han permitido una ampliación en los temas. En los artículos que aquí presentamos, podremos saber sobre las novedades del movimiento indígena en Canadá (Isabel Altamirano y Julián Castro-Rea), sobre los conflictos entre indios y colonos en el Chaco de la época colonial (Guilherme Galhegos Felippe) sobre las vicisitudes de la condición indígena en los códigos penales y jurisprudencia de los países andinos (Lior Ben David); sobre las políticas brasileñas dedicadas a los “indios aislados” (Barbara Arisi y Flipe Milanez) y sobre el auge de los museos indígenas en México (Manuel Burón). Los últimos artículos se vuelven hacia los dominios más clásicos del pensamiento indigenista, abordando la creación del indigenismo positivista (el del mariscal Rondon, tratado por Fernando da Silva Rodrigues), su política conmemorativa (Laura Giraudo), sus relaciones con revoluciones triunfantes (Max Piorsky) o fallidas (Emilio Gallardo Saborido).

La entrevista que cierra el volumen se sirve de los debates del Congreso INTERINDI 2015, celebrado en la EEHA-CSIC de Sevilla en noviembre de ese año, para enmarcar las principales líneas de investigación y discusión que desarrollan los textos aquí incluidos.

Esta presentación no pretende –sería difícil y redundante– resumir el contenido de los artículos, sino localizarlos dentro del amplísimo campo abordado y sugerir conexiones y puntos de debate.

El régimen multiculturalista construido en Canadá en las últimas décadas suele ser citado elogiosamente desde otros países americanos, como Brasil, donde una reivindicación mucho más modesta de los derechos originarios enfrenta resistencias mucho más violentas. A pesar de ello, como muestra el artículo de Altamirano y Rea, los pueblos indígenas de Canadá siguen deparándose con el mismo (falso) dilema que se impone a todas las poblaciones indígenas. Por un lado, el voluntarismo de la diversidad cultural y los derechos étnicos (incluso, en una alianza insegura con lo uno y lo otro, de la defensa del medio ambiente). Por el otro, un imperativo vago pero vigorosamente “natural” y “universal” de explotar exhaustivamente los recursos. La expansión de la industria extractiva, mineral o energética consigue constar siempre –qué decir de los periodos de crisis– en la lista de las necesidades, mientras que los derechos de la diversidad cultural permanecen como aspiraciones éticas que, según el momento, pueden llegar a parecer un lujo. El movimiento Idle no More revitalizó la lucha de los pueblos indígenas del Canadá contra el enésimo proyecto de “emancipación” liberal de los indios: su transformación en propietarios individuales, capaces de alienar su propiedad y de transferirla a la iniciativa capitalista –una política ya puesta en práctica por Bolivar en los inicios de la Independencia americana y por los Estados Unidos en los años treinta, y ensayada en los setenta por la dictadura militar brasileña. La firme y ruidosa campaña de los indígenas y sus aliados frustró el proyecto, y es interesante observar que la venganza vino en una forma característica de la contemporaneidad: una ley de transparencia sobre el uso de los recursos, apta para crear numerosas controversias en el campo de la política étnica.

El artículo de Guilherme Galhegos Felippe sobre los conflictos entre indígenas y colonos en la región chaqueña durante el siglo XVIII podría parecer fuera de foco en un dossier sobre indigenismo: tales conflictos son temas habituales en estudios de etnohistoria, mientras que el indigenismo suele rastrearse en políticas oficiales explícitas, leyes, misiones y otros instrumentos del orden. Podemos ver, sin embargo, que asaltos y saqueos –de un lado y otro– mantienen afinidad con los procesos de integración de los indígenas en un sistema económico de un modo tan efectivo como ese comercio que representa su alternativa “pacífica” (las comillas sirven para recordar que los medios coercitivos del “comercio” fueron a menudo considerables). Dígase lo mismo de la conversión religiosa: los misioneros, en la región chaqueña como en la mayor parte de América son conscientes de que su actividad mercantil (el suministro de bienes manufacturados a pueblos indígenas sin siderurgia) es parte indisociable de su actividad evangelizadora, y en la práctica la suplantan. De ahí esa fórmula –que el artículo recoge, y que raramente despierta la perplejidad necesaria– de civilizar a los indios “por la codicia”, o sea mediante uno de los pecados capitales que la religión de los buenos misioneros pretende combatir. La distancia temporal (y temática) entre este artículo y el resto del dossier es valiosa porque muestra la considerable continuidad entre las prácticas coloniales y religiosas y todo lo que mucho más tarde se ha presentado como nuevo indigenismo de cariz laico y nacional.

El artículo de Arisi y Milanez trata de un caso límite del indigenismo, que invierte una parte importante de la política indigenista tradicional, esforzándose en mantener el aislamiento de los raros grupos indígenas que en algunos rincones de la Amazonia continúan viviendo al margen de la sociedad nacional y global. Esa política, concebida en décadas recientes, y coincidiendo con la instauración de los regímenes multiculturales, invierte la política tradicional del órgano indigenista brasileño, que otrora buscaba activamente el contacto con los grupos “arredios” (aislados o no contactados). Marca del sector más idealista y dedicado del indigenismo, esa tendencia no es inmune a las críticas externas ni menos aún a sus paradojas internas. Evitar el contacto acaba suponiendo, en general, monopolizar el contacto (el Estado se asume así como una entidad aséptica, independiente de la sociedad que lo sustenta) y por otra parte se justifica en una imagen fuerte –que el artículo ilustra con esa anécdota de la isla perdida en el Océano Índico– de las comunidades indígenas como mónadas primigenias. So capa de proteger un aislamiento ideal, los indigenistas tienden a controlar o ahogar la autonomía de los “aislados” a la hora de establecer esas relaciones con los otros que, pese a las ilusiones primitivistas, nunca faltaron.

Lior Ben David aborda el tema de la circunstancia indígena en los códigos penales de Perú y Bolivia. La condición de “indio” como atenuante en los juicios se remonta a los tiempos coloniales. Fue restaurada a comienzos del siglo XX por el pensamiento indigenista, después de un intervalo liberal que consagró una igualdad (bien sabemos cuán formal y cuán ilusoria) ante la ley. Desde entonces, la condición de “semicivilizado” o de “degradado por la servidumbre y el alcoholismo” (criterios que pueden presentarse juntos pero son de tenor muy diferente) ha servido como circunstancia atenuante en los procesos criminales. Como apunta el autor, ese discreto detalle jurídico contiene todo un discurso de gran alcance sobre lo que la Nación supone ser y supone que debe ser. Y al mismo tiempo que introduce una dicotomía entre indios andinos, a la vez semi-civilizados y degradados, y amazónicos, supuestamente exteriores a la historia nacional y menos considerados por los atenuantes, amalgama en una misma categoría a sujetos indígenas provenientes de historias muy diversas. La protección jurídica, por lo demás, tiene un doble filo –y un alto costo– en la medida en que proporciona su amparo a costa de un grave estigma.

El texto de Manuel Burón Díaz opone algunos matices a la narrativa heroica del multiculturalismo y de la antropología crítica en su controversia con el indigenismo oficial clásico. El auge reciente de los museos indígenas se ha presentado como un proceso de recuperación, por parte de las comunidades, de un patrimonio otrora confiscado por arqueólogos y antropólogos al servicio del estado nacional. La lectura de la vasta documentación de instituciones como el Instituto Nacional de Antropología e Historia (el INAH, una de las principales instituciones indigenistas oriundas de la revolución mexicana) recuerda lo que debería ser obvio: que el patrimonio no estaba dado allá en el campo. Fue construido en un proceso en el que las comunidades ya contaban con una idea de lo que constituía el tesoro de su pasado, que no coincidía exactamente con lo que después se ha definido como patrimonio, y que se reelaboró y amplió en una interacción triangular entre ellas, los agentes del gobierno federal y la codicia de traficantes y coleccionistas. En ese proceso, los sujetos y corporaciones locales no fueron parte excluida ni pasiva, y establecieron alianzas con los agentes del indigenismo; es difícil, como recuerda el artículo, imaginar qué habría sido de ese patrimonio sin tales alianzas.

Laura Giraudo elabora un retrato del indigenismo clásico del siglo XX a partir de un detalle aparentemente menor: la instauración de un Día del Indio, el 19 de abril, propuesto para todos los países americanos como una fecha en que los indígenas pudiesen celebrar cosas tan esenciales como “el espíritu de su raza”. El 19 de abril conmemora la fecha en que delegados indígenas participaron en el Congreso Indigenista Interamericano de 1940 en Pátzcuaro, México: la fecha marca así una transformación, al menos formal, del movimiento “indigenista” en movimiento también indígena. El calendario festivo, sea religioso o civil suele escoger fechas marcadas por la cosmología o por el martirologio, o por ambos –pensemos en el Primero de Mayo, que rememora a los héroes de la lucha obrera de Chicago, sin dejar por ello de aludir a la arcaica celebración de la primavera. El indigenismo, renunciando a simbolismos mayores, sacó la fecha de las actas de sus reuniones, y propuso una celebración –que tuvo un éxito desigual pero bastante amplio a todo lo largo y ancho de las Américas– en la que bajo el nombre del Indio celebraba también, o principalmente, a sí mismo como entidad burocrática y como ideología.

Fernando da Silva Rodrigues traza un panorama general del proyecto indigenista del Mariscal Cándido da Silva Rondon, principal arquitecto y ejecutor de la política indigenista de la República Brasileña. El retrato oficial de Rondon se ha fijado siempre en su doctrina humanitaria y pacifista, destinada a proteger a grupos indígenas amenazados de exterminio. Pero nunca ha sido un misterio que esa protección era para Rondon una pieza en un proyecto mucho mayor de construcción de la nación, en sus aspectos más concretos: establecimiento de vías de comunicación y transporte, y consolidación de las fronteras. La labor de protección y civilización de los indios tiene, en ese contexto, un sentido que va mucho más allá de un positivismo genérico, dominado por ideales de crecimiento y progreso, y recupera una política secularmente puesta en práctica desde los primeros tiempos de la colonia de reclutar a los indios –por medio de la “codicia”, según la larga tradición– como fuerza de trabajo nacional y muy especialmente como guardianes de sus zonas fronterizas.

El Mariscal Rondon, pese a sus orígenes familiares en parte indígenas –siempre recordados en las hagiografías– era un perfecto exponente de una república ideológicamente positivista y socialmente conservadora. Pero con mucha frecuencia el indigenismo oficial ha sido de izquierdas, lo que pocas veces se tiene en cuenta – quizás porque confrontadas con la temática indígena los idearios de izquierdas acababan por asumir u marcado aire de familia con idearios opuestos. El indigenismo de Salomón Nahmad, un antropólogo poco conocido en Brasil del que trata el artículo de Max Piorsky, pertenece a esa estirpe de activistas instaurada por la Revolución Mexicana. El estado revolucionario tenía un compromiso: hacerse presente en la vida de una población indígena “aislada” en un sentido muy opuesto al de los “aislados” amazónicos: aislados del estado, ya que no de una sociedad regional rapaz y abusiva que lo expolia. En la descripción que Nahmad hace de los Mixes podemos identificar la completa inversión de lo que décadas más tarde ha sido el relato multiculturalista: la diferencia se subsume en la desigualdad, la diversidad cultural es un vago telón de fondo atrás de la miseria física y la vulnerabilidad extrema de pueblos olvidados por la nación. Escoger entre desigualdad y diferencia es peligroso. El peruano Víctor Zavala, cuya obra analiza Emilio GallardoSaborido, representa un tipo de indigenismo en las antípodas del liberalismo multicultural. Su teatro pone en escena al campesino andino, enfrentado a gamonales, jueces y políticos, y al sistema económico general al que todos ellos contribuyen. Zavala lleva a los Andes el teatro político de Bertolt Brecht, y el elemento étnico le sirve a la vez como signo de identidad –el indigenato es el proletariado– y como recurso dramático, de paradójico distanciamiento. Sin conocer la lengua quechua, hace hablar a sus héroes un español alterado bajo el que se perciben las estructuras de la lengua indígena,mientras sus adversarios se expresan en general en un castellano pomposo y relamido. Pero estamos aquí en uno de los casos límites del indigenismo. Por mucho que Zavala haya bebido también en la tradición de la literatura indigenista andina, él se decanta por caracterizar a sus héroes como “campesinos”, no como “indios” ni “indígenas”. El punto, subrayado por Gallardo Saborido, como marca de su rechazo de un exotismo discriminatorio, tiene una relevancia que va más allá. Zavala se encuentra (al menos hasta este año de 2016, término de su condena) preso por sus relaciones con el Partido Comunista del Perú – Sendero Luminoso, grupo que asumió, junto a una interpretación socialista del imperio incaico, algo del viejo antagonismo de ese imperio con los indios fuera de sus fronteras, especialmente los antis de la alta Amazonia– “salvajes” ajenos, entre otras cosas, al sistema productivo nacional. En ese concepto del indio como trabajador –y en la preferencia del término “campesino” para denotarlo– se sintetiza un núcleo del indigenismo de izquierdas, que diverge de la política liberal y del tipo de indigenismo que ella practíca, pero comparte con ella una noción básica sobre el lugar que el trabajo y la producción tienen en la definición del ser humano.

La entrevista que cierra el dossier ocupa, de algún modo, un espacio de síntesis entre los diversos textos: el entrevistador propuso a cuatro reconocidos especialistas en política indigenista, antropología e historia de México, Colombia, la Amazonia y los Países Andinos (Guillermo de la Peña, Joanne Rappaport, Núria Sala i Vila y Víctor Bretón Solo de Zaldívar) una serie de preguntas que representan los puntos de interrogación aparecidos durante el Congreso INTERINDI 2015, sobre las políticas indígenas e indigenistas y de la propia labor de los especialistas en ese campo. Uno de ellos alude a esa palabra, “indio”, con la que empezábamos esta presentación. Insulto en unos países, bandera en otros, pero siempre presente como categoría manifiesta u oculta bajo algún tipo de eufemismo, el término, como manifiesta Nuria Sala i Vila, esconde mucho más de lo que revela: la historiografía necesita en todo momento tomarlo como antagonista para subrayar actores más matizados o para aclarar los procesos que llevan a identidades genéricas. El rótulo “indio” puede ser el lema de movimientos panindígenas o ser substituido por términos sacados de un cuadro etnonímico local; puede reivindicarse contra las ideologías del mestizaje que gozan de un status oficial en muchos países del área, o abandonarse en un cuadro en que categorías híbridas y la historia a ellas aneja se recupera como parte de un movimiento de subalternos. Como expresa el concepto de “papelrealidad” usado por Rappaport, todos esos movimientos ocurren en un contexto en que la coagulación burocrática de las identidades, crucial en los siglos coloniales, tiene una importancia creciente: en los últimos años, ha fomentado por doquier la etnificación y la fragmentación identitaria, adecuada al modo en que los recursos y los derechos se ven asegurados. La categoría “indígena” por lo demás, como aparece claramente en la entrevista a Guillermo de la Peña (que inició su carrera de investigador entre gitanos españoles) se ve perseguida de cerca por la categoría “indigente”: en la mayor parte de la América indígena, estudiosos / activistas se alternan de modo no poco esquizoide entre la “clase” y la “etnia”, y paradójicamente es en la acción indigenista donde definiciones más esencialistas (y culturalistas) triunfan, mientras la producción académica se mantiene mucho más escéptica al valor de esos conceptos tradicionales de la antropología. La relación entre el régimen multicultural y el neoliberalismo es a todas luces evidente: son movimientos coetáneos, y la explosión de las ONG es perfectamente coherente con el imperativo neoliberal de disminución del Estado y la tercerización –en este caso, la creación de todo un “tercer sector”. Por ello mismo, es del campo multicultural de donde surgen, quizás, las críticas más afiladas contra la cosmología del capitalismo contemporáneo –en nombre, por ejemplo, de esa tradición de reciente invención del “bien vivir”– sin que el tipo de política en él propuesto sea, sin embargo, un adversario efectivo de ese régimen. Tal vez, como señala Víctor Bretón, ese multiculturalismo haya resultado, mediante la “esencialización de sus discursos y / o cooptación de parte de sus dirigencias [¿indígenas?]– en su paulatino encuadramiento dentro del campo de juego del proyectismo”.

Los movimientos indígenas, sus dirigencias, sus intelectuales, son otro tema de flagrante interés, escasamente tratado por la propia tendencia a imaginar el mundo indígena como un agregado de comunidades igualitarias y primigenias. Pero su papel, siempre difícil, de mediadores destinados a salvar la “brecha cultural” sustituyendo la acción de los tristemente célebres mediadores del colonialismo, es quizás el punto crítico de cualquier historia indígena reciente. El acervo conceptual y retórico que manejan y sintetizan –híbrido de tradiciones locales, ideologías políticas refugiadas en el indigenismo, credos religiosos recibidos de la misión, conceptos académicos que muchas veces resurgen en su discurso precisamente cuando los universitarios los abandonan, como en el caso notable y reciente de la “cultura”– proporciona a los especialistas un tema inagotable de investigación, y más aún de reflexión.

Entre esas posibles líneas de investigación y discusión podemos destacar algunas cuestiones que saltan de unos artículos a otros en este dossier. Una primera es la siempre recurrente y tantas veces nominalista polémica sobre los nombres y los atributos que definen a las identidades colectivas. Ya fuera por las confusiones con la geografía (incógnita para descubridores y algo menos para nativos) o por las tradiciones intelectuales que polarizan las relaciones humanas entre los nosotros y los otros, la sociohistoria de los nombres y de las realidades sociales a las que pretenden representar ha sido y es en toda América plural y dinámica, histórica en tanto condiciones y resultados de la vida de las personas que usan esos nombres y crean esas realidades. Los términos indio o indígena, originario o ancestral… compactan y asemejan realidades sociales casi inasibles. Los debates sobre lo dignificador o estigmatizador de unos u otros términos son importantes y requieren especial atención de los investigadores, no tanto para resolver dichos debates como para mostrar la historia de los mismos y sus vínculos con las administraciones de todo tipo, jurídicas como las analizadas en el artículos de Ben David o rituales como las del artículo de Giraudo: los nombres son buenas pistas para estudiar las relaciones humanas, pero sólo si no olvidamos que lo que nombran son los usos de esas relaciones y no supuestas identidades pre-nominales. En este sentido, nos queda mucho que discutir, con análisis históricos fundados, sobre los reduccionismos que conlleva la dicotomía nosotros-otros (usualmente en este orden, el nosotros por delante).

Una segunda cuestión es la relación entre el desarrollo de los saberes “expertos” (científicos, académicos, burocráticos, religiosos…) que integran el campo indigenista y las organizaciones con las que se desarrollan (muchas veces como elementos fundadores e indisociables de esas organizaciones). El Mariscal Rondon, el antropólogo Nahmad o el dramaturgo Zavala son ejemplos de saberes normativa y organizacionalmente contradictorios, en las que las obligaciones con los indígenas de referencia y con el proyecto o la organización de pertenencia se desarrollan en modos próximos a la psicosis, entre la exaltación del misionero y la previsibilidad del plan burocrático. También los líderes indígenas que desarrollan organizaciones para movilizaciones sociales muy ajustadas a la coyuntura política y que luego devienen entidades organizacionales en sí mismas viven este desarrollo conflictivo entre los saberes expertos y las comunidades para las que trabajan. La historiografía y los estudios sociológicos y antropológicos recientes están poniendo cierta atención en estos problemas, incluso están creciendo los estudios sobre el lado menos explorado de la relación, el del protagonismo que las organizaciones juegan en el campo indigenista. Han aparecido estudios sobre algunas instituciones indigenistas relevantes, a nivel nacional como internacional, así como sobre organizaciones no estatales. Pero aún queda mucho que indagar y discutir para poder mostrar mínimamente el papel jugado por las organizaciones modernas, en el sentido que le da el sociólogo Charle Perrow, en el desarrollo del campo indigenista como parte de la sociohistoria más amplia de las sociedades contemporáneas. Las más de las veces los estudios sobre el indigenismo son autorreferenciales, como si se tratara de una realidad especial, de un mundo escindido del resto, con el que sólo tiene relación en el papel de subproducto, de víctima, de instrumento funcional al servicio de una integración sistémica superior o como ejemplo de heroísmo, resistencia y alternativa igualmente sistémica para propios y ajenos. Para estudiar los indigenismos como parte y muestra de las historias colectivas en que se han desarrollado necesitamos un mejor análisis de la trama organizacional en la que y con la que indigenistas, indígenas y profanos han construido sus saberes y sus relaciones.

El tercer y último asunto que destacaremos en esta presentación tiene que ver con un viejo reproche o crítica al indigenismo, el de ser ajeno al protagonismo de los propios indígenas. No faltan discursos, proyectos, rituales, organizaciones, saberes, políticas y políticos donde encontrar magníficos ejemplos que sustentan estas críticas y reproches, desde el Manuel Gamio del Día del Indio hasta la preservación del aislamiento de esas comunidades no contactadas o apenas influidas por la colonización exterior (en este sentido podríamos decir que se trata de comunidades pre-indígenas al estar en una situación previa a la colonización). Para repensar y discutir la relación entre el indigenismo y los indígenas necesitamos conocimientos y marcos conceptuales que escapen de las dicotomías y los denominadores comunes tan habituales en el lenguaje de los nosotros y los otros, de los colonizadores y los colonizados, de los indigenistas y los indígenas. Y no es que estas dicotomías y reducciones no hayan sido reales y tenido un peso importante en la historia que aquí queremos debatir, sino que aceptar ese lenguaje nos obliga a sumir sus conclusiones antes de haber realizado la mínima observación, descripción y análisis de los procesos sociales a los que decimos referirnos. Incluso nos lleva a aceptar como obvias realidades humanas para que, sencillamente, apenas tenemos elementos que observar y describir, y que sólo devienen indígenas con la colonización exterior (exterior a lo que hoy conocemos como América, conocimiento nada obvio por otra parte) y varios siglos de regímenes sociales compuestos, en los que las representaciones actuales apenas tuvieron cabida si es que la tuvieron, por ejemplo todo el reiterado análisis de dominación de “castas” y “razas”. En este escenario, es interesante como los museos se han convertido en lugares de disputas entro lo autóctono y lo ajeno y, más importante, de alianzas que desestabilizan esas disputas y al propio museo mismo. Los indígenas siempre han estado en el indigenismo, justo como eso, como indígenas, cuya preservación e integración fue siempre su objetivo marco; cabría preguntarse sobre el papel no de los indígenas en el indigenismo o la inversa, la influencia del indigenismo en la conformación de la historia indígena, sino preguntarse por las tramas humanas que construyeron y se movieron entre esas y otras posiciones sociales alternativas, como las de ciudadanía, las de clase, las de pueblo, etc., así como por las muchas transformaciones empíricas (menos ajustadas a esas posiciones normativas) con las que batallan y concilian las personas en sus vidas colectivas.

El dossier que aquí se ofrece es otro resultado, esperamos que no redundante y sí provocador, de nuestros esfuerzos académicos por contribuir al desarrollo del conocimiento y de las respectivas carreras profesionales. No somos ajenos a las líneas de fractura y debate que antes hemos señalado. Todo lo contrario. También el lector de estos artículos se hará cargo de las mismas.

Nota

* Este dossier es parte de los resultados del proyecto de investigación: “Los reversos del indigenismo: socio-historia de las categorías étnico-raciales y sus usos en las sociedades latinoamericanas” (RE-INTERINDI), Ref. HAR2013-41596-P, Ministerio de Economía y Competitividad, Secretaría de Estado de Investigación, Desarrollo e Innovación (Proyectos de I+D, Programa Estatal de Fomento de la Investigación Científica y Técnica de Excelencia, Subprograma de Generación del Conocimiento).

Oscar Calavia Sáez – Doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo, Professor no Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Pesquisador do CNPq. Atualmente desenvolve pesquisas sobre os intelectuais indígenas no Brasil. Autor, entre outros, de O nome e o tempo dos Yaminawa. Etnologia e história dos Yaminawa do Alto Acre (Editora da Universidade do Estado de São Paulo, 2006), Las formas locales de la vida religiosa. Antropología e historia de los santuarios de La Rioja (Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2002) e Fantasmas falados Editora da UNICAMP, 1996).E-mail: [email protected]

Juan Martín Sánchez – Profesor del Departamento de Sociología de la Universidad de Sevilla, España. Doctor en Sociología y Ciencias Políticas por la Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), Madrid. Autor, entre otros, de La revolución peruana: ideología y práctica política de un gobierno militar, 1968-1975 (CSIC, 2002) y editor, con Laura Giraudo, de La ambivalente historia del indigenismo. Campo interamericano y trayectorias nacionales 1940-1970. Áreas de investigación: sociedad y política en América Latina del siglo XX, con especial atención a Perú, socio-historia del indigenismo, representación política, discurso y ritual político. Participa en la red internacional de investigadores RED-INTERINDI (http: / / www.interindi.net ). E-mail: [email protected]


SÁEZ, Oscar Calavia; SÁNCHEZ, Juan Martín. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 43, n. 1, jan. / abr., 2017. Acessar publicação original [DR]

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40 anos de independência em África / Estudos Ibero-Americanos / 2016

Quatro décadas de independência: da cartilha ideológica às contingências políticas e sociais nos PALOP

Em nosso texto de chamada de artigos para esse dossiê [1] destacamos o fato de que, decorridos 40 anos das independências de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, estes países enfrentaram profundas mudanças em seus regimes políticos, assumindo colorações ideológicas diversas, quando não antagónicas, e uma acelerada e, em alguma medida, imprevisível, transformação social. Por tudo isso, tais países assumem hoje perfis muito diferentes das sociedades colonizadas de outrora, mas também dos ideais de dirigentes nacionalistas e, ainda, das análises de vários estudiosos que se lançaram a interpretar as dinâmicas dos processos independentistas.

Mais do que um balanço exaustivo da vida política desses países ao longo dos quatro decénios de independência, os textos a seguir propõem posicionamentos e perspectivas diversas quanto à observação de suas múltiplas vivências. Reflexões sobre as trajetórias políticas, económicas, sociais e culturais, mas também acerca do saber histórico elaborado em relação a estes países.

Ainda assim, apesar dos olhares diversos presentes no dossiê, alguns temas serão recorrentes, mesmo que nem sempre explicitados, dadas as abordagens originais e singulares. Exatamente por isso acreditamos ser importante destacar alguns deles e estabelecer um diálogo inicial, com questionamentos e aproximações que podem ajudar o leitor a perspectivar novas abordagens e a refletir a partir de ângulos que o tempo e o processo histórico sugerem ou permitem. Dessa forma, nossa proposta é a de nos debruçarmos, nesse momento inicial, em três temas que atravessam a maior parte das discussões que serão travadas a seguir. São eles o nacionalismo, o Estado e o socialismo.

O nacionalismo, no caso dos países contemplados nesse dossiê, tem dois momentos: o da luta de libertação nacional e o da sua concretização em políticas atinentes à construção das entidades políticas. É sobre este segundo momento que os textos a seguir irão se deter. De fato, o caminho da vinculação entre a edificação da nação e a construção do Estado foi trilhado demasiadas vezes. E é preciso ter atenção a essa postura de sobreposição. Embora a construção do Estado possa albergar um forte nacionalismo, em determinadas circunstâncias, o nacionalismo ou estratégias políticas também nacionalistas podem assumir posições de confronto em relação ao Estado em questão. Portanto, não devemos confundir o processo de construção do Estado com o forjar de uma identidade nacional, política e cultural entre populações amiúde heterogéneas [2].

Por outro lado, passados 40 anos das independências é possível admitir que alguns elementos centrais da ideologia do Estado colonial passaram para o seu sucessor [3], como é o caso das prerrogativas de mando dos europeus, presumidamente superiores porque portadores de uma qualquer ideia de ‘civilização’, e que foram transferidas para os africanos letrados da geração nacionalista, a quem – pela vitória das armas, quando foi o caso, ou pela ausência de concorrentes ou fragilidades desses – coube governar os seus concidadãos iletrados.

A vitória na guerra, ou na diplomacia, resultou numa ocupação do espaço político, que passou a ser definida por seus detentores como o equivalente da legitimação popular aos movimentos independentistas. O acesso ao poder ficou resolvido mas, apesar da reivindicada liderança política e da (arrogada e, ao tempo, pouco questionada) consonância de objetivos com o povo, o mesmo não sucedeu com a representatividade política e social, sobretudo com o passar do tempo e o fim da alegria prenhe de esperança que as independências inauguraram. Os anos subsequentes às independências alargaram o fosso entre as intenções políticas e as percepções populares acerca da sua segurança, dos seus sonhos e até mesmo da sua sobrevivência.

Uma vez decretada a adopção do socialismo, este, rapidamente, se traduziu num rebaixamento das expectativas e na aplicação voluntarista de preceitos inadequados às diversidades sociais existentes. Não se verificou um processo de construção de novos horizontes, mas, sim, a imposição de metas e normas concebidas nos distantes gabinetes governamentais. A antevisão ou a intuição da possibilidade do fracasso estiveram presentes desde o início, como confirmam as fissuras nos partidos únicos e os malabarismos intelectuais, tentando teorizações sobre transições políticas heterodoxas, a fim de dar conta do socialismo africano.

Não por acaso, todo o esquema interpretativo da luta de classes subjacente à luta contra a opressão colonial foi abandonado. Não se considerou mais existir nem a desigualdade nem a divergência ou a colisão de interesses, em razão da nova determinação quanto a uma suposta homogeneidade social. Só o estrangulamento da expressão da dissenção pela ampliação do único partido auxilia no entendimento do baixo volume do descontentamento por mais de uma década nas zonas territoriais sobre o alcance dos governos. Vale lembrar que Angola e Moçambique enfrentariam ainda uma prolongada guerra civil, que apesar de ser uma demonstração da insatisfação interna, precisa ser compeendida também, e de forma incontornável, como fruto da lógica perversa da Guerra Fria.

Porventura, apenas se preservou, mesmo que formalmente, a ideia do suicídio da pequena burguesia – implicitamente tida como aliada do Estado colonial – que deveria renascer pela adesão aos fins do povo. Tal tese, conveniente para a tomada do Estado, articulava-se a ideia de desenvolvimento económico e a necessária transformação sociocultural. Porém, o Estado logo passou a estar sujeito à discricionariedade dos mandantes. Assim, e de modo ambíguo, a pequena burguesia citadina, mais próxima ao Estado e respectivas ramificações, acabou beneficiada em detrimento dos camponeses a quem supostamente se destinava a revolução – em grande medida, mesmo se forçadamente, os obreiros das lutas. Numa síntese simplista, prevaleceram as alianças dos partidos históricos da libertação com os quadros urbanos necessários para a gestão de um Estado.

Para assegurar a unidade nacional fortaleceu-se a figura do povo, assim mesmo, no singular, atropelando os particularismos, transformados em demandas regionalistas ou étnicas [4], quando não, obscurantistas. Desejos, vivências, ritos e línguas anteriormente cantadas em verso como africanas e, por isso, anticoloniais e libertárias, passaram a ser exemplos de posturas tribais, antinacionalistas. Previsivelmente, cerceava-se o espaço para se discutir sobre qual nacional se estava falando.

Os movimentos triunfantes enjeitaram as clivagens étnicas. Mas esta rejeição – alavancada na retórica e nos propósitos socialistas – não equivaleu à supressão de fronteiras internas, por vezes, claramente percebidas como tal por segmentos de governados. Na Guiné Bissau, por exemplo, a indicação de juízes para sectores com os quais não tinham nenhuma relação podia corresponder a uma salutar tentativa de homogeneidade e equidade por parte do novo Estado. No entanto, não deixava de ser entendida como intrusiva e fonte de arbitrariedade por aqueles a quem o juiz se dirigia.

Os princípios do “socialismo científico”, como era pregado nos Palops, eram estranhos para as populações rurais, a esmagadora maioria da população dos novos países, e, por isso mesmo, seu coletivismo e sua forma impositiva e centralizada quanto à distribuição dos produtos lembravam tanto a arregimentação quanto a violência do tempo colonial. A adesão aos projetos e aos planos de produção agrícola seria pequena. Em resposta, o caminho mais fácil para os dirigentes era o de acusarem os camponeses de serem reacionários.

Por outro lado, a política de viés urbano e nacionalista, assim como o socialismo, não eram de todo estranhos aos jovens das gerações citadinas, com acesso ao pequeno crescimento da educação formal na última fase colonial. Sobretudo, se tivermos em consideração que alguns desses jovens passaram por um período de intensa agitação política a partir do 25 de abril. Travaram contato com algumas correntes e tendências políticas, quase sempre de orientação socialista, apresentadas até mesmo pelas forças militares portuguesas que se preparavam para regressar a Portugal. Essa efervescência prolongou-se, pelo menos até que se proclamasse a independência, quando, então, os horizontes políticos começam a se reduzir rapidamente.

É preciso referir ainda que apesar das independências dos Cinco terem ocorrido mais de uma década após a grande onda de 1960, quando 18 países africanos ficaram independentes, a lógica política permanecia polarizada entre socialistas e capitalistas. Mais do que isso, apesar das evidências quanto à crescente distância entre discurso político e prática política, o contexto de enfrentamento presente no continente não favoreceu o surgimento de sinais de alerta acerca de possíveis correções de rota. Os regimes africanos, que não só os dos Palops, aspiravam ao desenvolvimento e afirmavam que esse seria alcançado pela mão forte do Estado, conduzido pelo partido único, fosse qual fosse a linha ideológica. Noutros termos, a ênfase no Estado não foi um atributo dos que se apresentavam como socialistas.

Em especial na década de 80, os erros internos e as alterações na arquitetura das trocas comerciais internacionais foram minguando sonhos e capacidades. Os Estados não conseguiam mais dar conta das necessidades elementares de seus cidadãos. Nos anos 90, a crise política e econômica desses países resultaria numa maior liberdade para os indivíduos, primeiro, insinuada e, depois, confirmada com a institucionalização de eleições regulares, ainda que não em todos os níveis, mais do que com uma observância estrita do Estado de direito democrático.

Ora, o processo de institucionalização da democracia representativa aprofundou a apartação dos Estados, apropriados por pequenos grupos, relativamente às sociedades. Dessa forma, a relação entre governantes e governados, mediada pelo Estado, tornou-se rala, quando observada na lógica da representação e da imagem de defensores eleitos para a defesa de determinadas práticas e ideias. Mas, ao mesmo tempo, é esse Estado o ente que divulga, mais do que promove, o sentimento de unidade e é ele que concentra o principal da renda nacional. Podemos assim melhor entender o disperso sentimento na população de raiva e atração em relação a esse Estado e aos políticos que se assenhorearam dele.

Como persuasivamente o demonstrou Messiant [5], o curso da política em Angola pautou-se pela construção de um Estado que, graças às rendas do petróleo, logrou sobreviver independentemente da falência ou precarização da restante economia e do empobrecimento social. Mais do que a ideologia socialista depreciadora de idiossincrasias culturais, ditas tribalistas e étnicas, foi a extrema concentração de poder escorada nessas rendas e justificada pelo conflito militar, que fez com que o MPLA não se pautasse pela clivagem étnica, apontada de forma simplista por alguns estudiosos como estando na origem das divergências entre as correntes nacionalistas antes da independência e da guerra civil que lhe sucedeu. De resto, finda esta guerra em 2002, as eleições não comprovaram a existência de uma fidelidade étnica, ao invés, tenderam, a atenuar a respectiva importância [6]. A descompressão política e social e o desafogo dos réditos do petróleo levaram a amplas vitórias eleitorais do MPLA, concretamente nas eleições de 2008.

Na esteira de outras análises sobre a atomização dos indivíduos e da dificuldade de afirmação da sociedade civil, pressionados pelo poder político [7], o texto de Nuno Vidal foca-se na rigidez e na relação hierárquica que parecem fazer parte da estrutura de poder construída pelo MPLA, independentemente dos oportunos e inteligentes enunciados do partido quanto a uma necessária humildade no reconhecimento dos erros, sempre mirando com tal estratégia futuras vitórias eleitorais [8].

A coberto do centralismo democrático, a consolidação e a centralização do poder nas figuras dos dois presidentes – Agostinho Neto e Eduardo dos Santos – cingiram os procedimentos decisórios a um núcleo assaz restrito, no qual, todavia, se evidenciou uma tensão entre duas perspectivas sobre as opções políticas para o país. Desde praticamente os primórdios da independência, ao mesmo tempo que se proclamavam os objectivos socialistas, abdicava-se de tais políticas, abrindo-se espaço à informalidade que se tornaria a norma das práticas não só dos diversos actores sociais como dos agentes públicos, corroendo decisiva e definitivamente o ideário socialista. Poucos anos após a independência, já a ambiguidade se tornava corriqueira.

O caminho foi o da construção de um poder personalizado, baseado, entre outras práticas, na exemplar punição dos agravos à figura do Chefe, como é mister num sistema hegemonizado pela racionalidade patrimonial, como assinala VIDAL.

Com o apoio involuntário da ameaça externa e da guerra movida pela UNITA, assistiu-se a uma trajectória de crescendo de poder de Eduardo dos Santos. Em diferentes fases, o acúmulo de poder pela sua pessoa passou pela submissão dos próximos do MPLA – que se digladiavam entre si em nome de lemas ideológicos que o tempo tornaria irrelevantes para o devir da hegemonia política em Angola –, pela cooptação de dissidentes e adversários e, ainda, pelo “apertado controle [d]os novos espaços de liberdades civis e políticas” formalmente criados nos anos 90.

Para os defraudados com os trilhos dos países por cuja independência lutaram ou a que aderiram de forma exaltada, quatro décadas, que correspondem a uma vida, são mais do que suficientes para um balanço.

Relativamente a Moçambique, considerando o lapso temporal desde 1975 como suficiente para uma avaliação do caminho percorrido e tendo presentes as promessas da luta pela independência, Sheila KHAN pergunta acerca da concretização das esperanças, começando pela conclusão de que o país se traiu a si mesmo, citando os que perguntam se quem traiu a nação não foram aqueles que por ela lutaram.

Não só as promessas de equidade e de progresso não se realizaram como o país esteve sujeito a uma atroz guerra civil, cujo espectro ressurgiu ao cabo de cerca de 20 anos para, em 2014, parecer ser arredado e de novo aflorar em 2015.

Neste ambiente, ao mesmo tempo que se cultiva a memória da heroicidade no tempo da luta contra o colonialismo [9], os silêncios sobre a guerra civil são ainda pesados e muito mais facilmente se fala do recurso às armas do que das soluções para se lhes colocar um termo. Refira-se, as hostilidades parecerão à Renamo a única forma de se fazer ouvir e, em última análise, à Frelimo um meio de se manter no poder. A avaliar pelos episódios bélicos desde 2013, dir-se-ia que ambos pretendem ou só aceitam negociar em função da avaliação das vantagens da situação militar.

A propósito das actuais negociações para sanar o conflito entre a Frelimo e a Renamo [10], Sheila KHAN refere a incapacidade que a Frelimo tem demonstrado no tocante ao processo de descentralização do poder [11] e, em especial, à governação das províncias, com isso criando obstáculos à integração política da Renamo e avolumando as tensões políticas e sociais.

Dir-se-á que nenhuma democracia pode brotar destes expedientes tácticos. De resto, é possível pensar numa democracia de que um dos integrantes é a guerra intermitente ou de baixa intensidade, em todo o caso, de intensidade bastante para transmitir insegurança e levar as pessoas a escolher, não programas políticos, mas os chefes mais poderosos, de quem esperam protecção e auxílio?

Se quatro décadas bastam para um balanço, então, para as conclusões a retirar do caso de Moçambique, importa pensar que o povo mudou e que para parte significativa desse povo o ideário nacionalista ou os pergaminhos da luta não dizem nada. Já no campo dos governantes, pouco mudou, por vezes só a retórica com que se justificam no poder, o qual tendencialmente opera à margem dos mecanismos institucionais de tomada de decisão, mormente, os da democracia representativa adoptada na década de 1990.

Relativamente a Cabo Verde, Cláudio FURTADO revê as quatro décadas desde a independência da perspectiva da disputa pela imposição de um sentido para a história recente do arquipélago, sentido a inscrever numa memória histórica nacional. Aludir a essa disputa pelo triunfo na imposição de um sentido para a história de Cabo Verde corresponde, afinal de contas, a uma outra forma de falar das divergências em torno da independência, desdobradas seja na incomum mudança da bandeira, seja na pugna pela regionalização reivindicada pela ilha de S. Vicente, ilha que, após 1975, perdeu protagonismo para o centralismo da capital. Em parte, as divergências do momento da independência ficaram por resolver até ao presente.

A independência de Cabo Verde acabou por ser negociada com o PAIGC, tendo as outras organizações sido preteridas em vista da sintonia entre o Movimento das Forças Armadas e o PAIGC, em parte resultante da conjuntura e do reconhecimento internacional do PAIGC.

De resto, independentemente do acordo de Lisboa em 1974 não prever a transferência do poder para o PAIGC, preconizando, antes, a preparação as eleições para o futuro parlamento cabo-verdiano, com poderes constituintes e a quem incumbiria a declaração da independência de Cabo Verde, dificilmente se poderá pensar que não estivesse no horizonte das partes signatárias a assunção do poder pelo PAIGC, considerada inevitável mas para a qual, a dado passo, também o MFA contribuiu.

Ainda assim, no dizer de Cláudio FURTADO, desde a revolução de Abril em 25 de Abril de 1974 à independência, em 5 de Julho de 1975, assistiu-se a intensa movimentação política, a disputas por hegemonia de projetos políticos e de sociedade. Cumpre dizê-lo, tal não era o desígnio do PAIGC, como, aliás, não era de nenhum dos movimentos de libertação das colónias portuguesas. Anos de guerra e a conjuntura internacional, com eco num Portugal exaurido pela guerra colonial, ditaram a edificação de regimes monolíticos como o modelo mais apropriado para a reconstrução política e social nos Cinco. Seus dirigentes quiseram crer que tal processo seria diverso do histórico de conflitos e tensões que atravessara o continente desde as independências.

Nem o tendencial monolitismo sobrevindo à independência, nem os progressos económicos e sociais fizeram calar as diferenças, as divergências e a multiplicidade de visões de mundo e de projetos políticos para a sociedade cabo-verdiana. FURTADO elenca o affair trotskismo, a progressiva dissonância do monolitismo do regime entre a diáspora, a disputa geracional em finais da década de 1980 que, por efeito da conjuntura internacional pautada pelo desabamento a Leste, levou a que Cabo Verde enveredasse pela implementação da democracia representativa [12], depois generalizada pelo continente africano. No caso de Cabo Verde, a democracia inaugurou-se com a emergência do debate em torno da configuração política do arquipélago, debate que a hegemonia do PAIGC cerceara em 1975.

Dos Cinco, Cabo Verde era o país potencialmente mais pobre, razão, aliás, para que, entre camadas populares e mais vulneráveis de Cabo Verde, grassar a ideia de que a independência constituía um risco desnecessário, atenta, ademais, a disposição do colonizador em não deixar voltar a repetirem-se as tragédias das fomes dos anos 40. A tal pessimismo de parte da população, a elite política impôs a sua certeza voluntarista no desenvolvimento que, alcançável com a independência, vergaria a pobreza crónica. Na realidade, as apreciações sobre Cabo Verde padeciam de um erro, a saber, o de não considerar o avanço que o arquipélago levava no domínio da instrução e do que, vagamente, se definiria como um substrato cultural sedimentado por décadas de emigração pelas várias partes do mundo. Tenha sido, ou não, por causa da criteriosa aplicação dos recursos ditada pela pobreza, a verdade é que Cabo Verde alcançou indicadores impensáveis ao tempo da independência. Menos por via da evolução política do que pelo curso dos debates parecerá que a independência está em causa. Ou, segundo Cláudio FURTADO, pelo menos o seu questionamento estaria subjacente aos dilemas cultural-identitários [13] que, no plano político, constituem os desafios para o presente e o futuro de Cabo Verde.

O texto de Victor MELO fala-nos de realizações do pós-independência num domínio menos conhecido, o do desporto, encarado como manifestação cultural na qual se espelha o percurso do país. Ele foca o caso do golfe que, levado para a ilha de São Vicente por ingleses, aí se pratica até aos dias de hoje, depois de um processo de adopção e de apropriação pelos nativos. Como foi encarado o golfe, desporto de contornos elitistas, pelos dirigentes do PAIGC? Na resposta a esta questão inscrevia-se a aplicação do projecto político do PAIGC e, ainda que de forma subliminar, o confronto entre uma nova capital política e uma ilha considerada avessa aos propósitos de homogeneização social do PAIGC triunfante em Cabo Verde em 1974-1975.

A despeito do monolitismo ideológico e do consequente viés classista à luz do qual se encaravam as manifestações desportivas, as mudanças na política desportiva começaram ainda na vigência do partido único, no início da década de 1980, e, como assinala Victor MELO, elas prenunciavam a renúncia à modelação ideológica pelos dirigentes de todas as vertentes socioculturais e de todas as solidariedades horizontais no arquipélago. Basicamente, tal mudança consistia em deixar renascer o golfe, na esteira do que, argumentando com o enraizamento popular da modalidade, os defensores da modalidade ensaiavam dignificá-la, considerando o golfe como uma prática de afirmação do cabo-verdiano forçosamente contra o colonizador. Deste modo, e ainda que de forma circunscrita, relativizavam-se os feitos na guerra na Guiné-Bissau.

A implementação da democracia representativa trouxe maior abertura para o mundo e, associada à maior liberdade de expressão e de identificação com referentes do mundo – sobretudo, clubes do país outrora colonizador – acarretou debates sobre o enraizamento da identidade cabo-verdiana. Diferentemente do futebol, o golfe, mormente na ilha de S. Vicente, seria o campo de afirmação de um desporto local, cabo-verdiano, contra uma projectada alienação de bens ao capital estrangeiro. Tal seria um item de uma discussão mais vasta sobre o lugar do turismo no desenvolvimento e, afinal, de inserção do país no fluxo de capitais e na circulação de pessoas.

Não por acaso, cabo-verdianos de diferentes quadrantes perfilharão a necessidade de inserção do país no mundo pelo que tem de mais singular, a sua vertente cultural, que, como nos diz MELO, constitui “uma forte construção identitária que vem do período colonial, sofre abalos no início do período da independência, se ajusta nos anos 1980, é reconfigurada no momento de adoção do multipartidarismo, entra em crise na primeira década do século XXI, mas, de fato, jamais é abandonada e funciona com um importante esteio para a nação”.

Retornando à relação entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau, em que se forjou a independência do arquipélago, não se descarte a sugestiva ideia de Havik de que o projecto de unidade entre Cabo Verde e Guiné Bissau derivou da própria concepção colonial [14]. A admitirmos como possível esta proposta, o pensamento nacionalista e de libertação da África, esgrimido pelo PAIGC, teria servido de nova roupagem para o sentimento de superioridade e o paternalismo dos cabo-verdianos para com os guineenses, atitudes decantadas ao longo de séculos.

Como teria sido a evolução política se em vez de um projecto político utópico conducente à criação de um Estado bi-nacional se tivesse à época da sua emancipação criado um governo de uma entidade política una, Guiné e Cabo Verde? Certamente, a separação não seria tão fácil como a ocorrida com o golpe de Novembro de 1980, em razão do qual o projeto de construção de um Estado bi-nacional conheceu seu termo, pelo que, a partir de então, os cabo-verdianos se sentiram livres para desabafar nas ruas que eles nada tinham a ver com os da Guiné… com o que talvez exprimissem de forma subliminar a sua dissonância em relação ao regime.

Ao tempo, que Estado e que nação se construíam, ou não, no continente, no território da Guiné-Bissau? Para TRAJANO FILHO, a noção relevante de nação na Guiné-Bissau é a da nação crioula em decantação há séculos por força da constante interacção entre os recém-chegados, europeus ou africanos, e os habitantes das praças existentes nos rios das costas do território.

Se a avaliação da construção da ideia de nação ou do fortalecimento e estruturação do Estado na Guiné-Bissau se pautar por critérios funcionais ou pelos critérios político-ideológicos fundadores da luta, para TRAJANO FILHO, a avaliação do tempo transcorrido pelas promessas da era da independência só pode conduzir à constatação de um fracasso. Tal sentença aplicar-se-á aos resultados quer da procura de uma sociedade igualitária e homogénea, deduzida dos pressupostos marxistas da ideologia nacionalista, quer da sucedânea concepção de sociedade liberal determinada pelo mercado, uma e outra conducentes à concentração de riqueza, à desigualdade e à violência. Ora, para TRAJANO FILHO, o polimórfico projecto crioulo (noção distinta de mestiço ou de cabo-verdiano) da nação na Guiné-Bissau refere-se a uma profundidade histórica plurissecular e, sendo assim, por exemplo, a luta de libertação foi um momento e, podemo-lo supor, a ideologia nacionalista foi uma roupagem ou um instrumento.

Sendo a luta pela independência o destino necessário da sociedade crioula, uma vez renascido na década de 1950, o desejo de autonomia, que o avanço colonialista soterrara nos primeiros decénios de novecentos, leva TRAJANO FILHO a afirmar que “uma contradição se consolidou no coração do projeto para a nação do PAIGC ou, o que dá no mesmo, da sociedade crioula desde o início do movimento nacionalista: confronto paradoxal entre o retorno às origens idealizado na utopia de Cabral (1973), que sugeria um devir igualitário e horizontal para a futura nação, e a estrutura verticalizada da sociedade crioula, sempre supondo formas de incorporação da diferença que geravam hierarquias do tipo gerontocrático e patrimonialista”.

A luta trouxe uma quantidade imensa de gente desejosa de incorporação no mundo crioulo, cuja capacidade de absorção era escassa. Assim, nas precárias condições de vida e de escassez de recursos, a incorporação nem sempre passou pela adesão à comunidade de sentimento que é a nação, mas, lembra o autor, a corporações organizadas em redes ralas, encabeçadas pelos novos “homens grandes”, gerando, por exemplo, frustrações e ressentimentos.

Segundo TRAJANO FILHO, o projecto de nação crioulo, polimórfico ao longo do tempo, depende da capacidade de determinação das fronteiras de absorção de elementos europeus e africanos ou indígenas. Se a sociedade crioula perder esse controlo da absorção desses elementos acabará como que descrioulizada, isto é, subsumida a um dos elementos que, durante séculos, a constituíram, a saber, o mundo africano tradicional ou as formas de vida europeizadas. Em todo o caso, da perspectiva da nação construída da base para o topo, com ou sem interferência do Estado, para TRAJANO, a nação, mesmo que não mais a crioula, está em construção na Guiné-Bissau, facto comprovado pelo facto de o crioulo ser cada vez mais a língua nacional. Também formas de sociabilidade crioulas como o carnaval começam a ser celebradas e vividas fora das praças.

Uma das dificuldades na Guiné Bissau traduz-se na incapacidade de falar da clivagem relativamente aos cabo-verdianos. Como se aludiu, enquanto projecto da sociedade crioula, a nação guineense ergueu-se da base para o topo para sacudir os agentes coloniais e os “sempre imprevisíveis cabo-verdianos”, a cuja presença e às clivagens dela decorrentes, TRAJANO FILHO não atribui as dificuldades de desenvolvimento do projeto nacional na Guiné-Bissau.

Como o autor aduz acerca dos balanços possíveis desde a independência, a “resposta com alguma dimensão de razoabilidade passa necessariamente (…) pelos enquadramentos de hipóteses subjacentes, na maior parte das vezes implícitas e, com alguma recorrência, furtivas”. Tal também vale, podemo-lo supor, para a discussão acerca dos cabo-verdianos, cuja presença na Guiné-Bissau era discutida mais abertamente entre os vários movimentos e grupos nacionalistas do que passou a ser depois de o PAIGC se tornar o movimento hegemónico e, naturalmente, desde a independência até aos dias de hoje [15].

Também encontramos cabo-verdianos em São Tomé e Príncipe, descritos por Marina BERTHET, sobretudo como atores de uma história invisível, enquanto trabalhadores agrícolas num arquipélago que, significativamente, passou de uma colónia dedicada à exportação da monocultura do cacau a um país independente que ensaiou impulsionar o seu desenvolvimento económico no acréscimo de produção e de produtividade nessa mesma monocultura.

Nestas circunstâncias, aflora a pergunta: no arquipélago, a independência significou uma rutura com as instituições coloniais? Para responder a esta questão, Marina BERTHET foca a sua atenção na permanência das roças e da monocultura do cacau, segundo ela, um dos fatores da apartação entre os políticos independentistas e o comum dos ex-contratados, após a independência cidadãos – como, sublinhe-se, já o eram no fim do período colonial, por oposição ao pretérito regime de privação de direitos civis e políticos denominado indigenato – mas cuja condição social manteve similitudes com a prevalecente no tempo colonial.

Para o MLSTP, que implementou um regime de partido único de coloração socialista para a governação do arquipélago após a independência, a questão passou a ser a de manter as roças operacionais e de tentar fixar aí a mão-de-obra contratada no tempo colonial [16]. O MLSTP também tentou, no quadro dos trabalhos cívicos, lograr a prestação da mão-de-obra citadina. Após a adesão inicial devida à exaltação da independência, a mão-de-obra citadina passaria a aderir de forma algo contrafeita, pelo que não só se revelaria pouco útil mas até improdutiva ou improfícua. Já em relação aos trabalhadores das roças, ex-serviçais contratados ou seus descendentes, uma vez desmentida a crença na maior entrega ao trabalho em resultado da nacionalização das roças, os políticos recorreriam à coerção através da aplicação de disposições disciplinares arbitradas por directores ilhéus aos trabalhadores.

Assim, em torno da ideia de que a manutenção das roças foi o motivo de desafeição dos trabalhadores importados que ficaram por São Tomé e Príncipe relativamente aos políticos são-tomenses, importa indagar o conteúdo laboral e social da preservação das roças enquanto instituição totalizante. Independentemente da nacionalização ter quebrado uma promessa de acesso à terra, implícita nas palavras de ordem que aludiam à terra a quem a trabalha, os antigos serviçais viram as roças ser destruídas por práticas ruinosas de directores ilhéus que tinham substituído os patrões brancos, práticas que os antigos serviçais não poderiam deixar de considerar dolosas, mesmo se não o podiam dizer publicamente.

Paralelamente à anunciada ruína das roças, desde os anos 80 foram-se esboçando intentos de uma reforma agrária que, alterando a estrutura da propriedade, deveria permitir não apenas a reprodução da cultura cacaueira mas igualmente a diversificação da agricultura, proporcionando uma acumulação interna e diferenciações económicas indutoras de ascensões sociais. Porém, a divisão e atribuição das terras fez-se segundo critérios de conveniência política – e de conveniência económica, de lógica rentista, dos elementos da nomenclatura política –, pelo que, uma vez mais, os antigos serviçais contratados permaneceram como os desapossados de terra numa terra onde, a despeito da proclamada irmandade africana, não deixavam de ser estrangeiros.

Gerhard SEIBERT foca as várias débacles – as da reforma agrária e a do petróleo – com consequências na pobreza tornada endémica e na permanente dependência do país da ajuda externa desde 1975, justamente o oposto da promessa de desenvolvimento anunciada pela independência.

No tocante à evolução política de São Tomé e Príncipe, Gerhard SEIBERT realça as questiúnculas entre os independentistas, antes e depois do 25 de Abril, de que saiu triunfante Pinto da Costa. Após 1975, na senda do acúmulo de poder no quadro do regime de partido único de coloração socialista, Pinto da Costa logrou afastar Miguel Trovoada, sujeito a prisão e a exílio, donde voltaria para arrebatar a vitória na eleição presidencial aquando da adopção da democracia representativa em 1990.

Enquanto factor de insucesso do país, SEIBERT salienta a instabilidade política, que atribui ao continuum de conflitos pessoais, sem conteúdo ideológico ou político, antes derivados das disputas pelas oportunidades e recursos disponibilizados pelo Estado. Daí decorrem a volatilidade dos engajamentos políticos e o permanente rearranjo das alianças e dos antagonismos, materializado no trânsito dos indivíduos pelos vários partidos. Porém, e sem embargo de tentativas abortadas de golpe de Estado, os conflitos vêm sendo resolvidos dentro de uma aparente normalidade institucional. Por regra, os resultados eleitorais têm sido aceites e respeitam-se os direitos humanos e as Frelimos cívicas e políticas.

Enquanto isso, o desempenho económico não podia ser mais frustrante. Ainda que os dirigentes tenham delineado uma política em torno da agricultura, esta não terá concitado muitas esperanças entre os ilhéus, cujas expectativas, na linha da tradicional demarcação dos filhos das roças – também a seus olhos, cidadãos de segunda –, estavam colocadas no Estado.

Por algum tempo, o ‘surgimento’ do petróleo na década de 1990 fez renascer os sentimentos nacionalistas, dada a expectativa de uma rentável exploração petrolífera. Mas até agora a prospecção não conduziu a quaisquer resultados, cerceando uma exaltação nacionalista fundada, já não na promessa da homogeneidade social de há quarenta anos, mas na mirífica riqueza advinda do petróleo.

Em meados da década de 1970, quando as colónias portuguesas lograram aceder à independência, já parecia passar o tempo da euforia das independências africanas. Porém, a luta ideológica reflectida na bipolaridade estava no seu clímax. Também por isso, os Cinco pareciam depositar crença na sua solução socialista.

Com diferença de caso para caso, observaram-se sucessivos distanciamentos dos resultados relativamente aos propósitos iniciais, fossem os do tempo da luta, fossem os dos princípios programáticos. As dificuldades económicas – na década de 1980, sentidas em toda em África mas, em particular, nos países de economia centralizada e de orientação socialista [17] – e a conjuntura internacional levaram à adoção da democracia representativa. Com maiores ou menores dilações e dificuldades, este foi o caminho nos Cinco que trocaram as veredas socialistas pela via da economia de mercado, expectavelmente condicionado à tentativa de preservação e reprodução da posição hegemónica dos políticos.

Como assinalou FALOLA, a razão pela qual líderes africanos responderam positivamente às pressões no sentido da boa governação e da democracia foi, não um sincero desejo de mudança ou progresso, mas o estarem pressionados pelas consequências do fim da Guerra Fria. Porém, atualmente, já se assiste a um movimento no sentido do autoritarismo [18]. Com efeito, parece ecoar em várias partes do continente a via autoritária que, implicitamente, se identifica com o crescimento económico (cujo expoente deixou de estar alojado nas sociedades democráticas). Apesar da salvaguarda formal dos mecanismos democráticos, parecem já distantes os tempos da arrebatada crença na democracia, no respaldo dos anos de sufoco dos regimes ditos socialistas. Entre as liberdades e o crescimento económico, a balança parece inclinar-se para este e para a governação de pulso forte, resignadamente aceite por não se distanciar do comum da experiência de governação das sociedades.

Não sabemos quanto tempo vigorará o actual desenho político em África e no mundo. Mas, onde os Estados (fortes e fracos, falhados ou adaptados) fracassaram na criação das nações ainda em gestação – como o denunciam a angolanidade, a cabo-verdianidade, a moçambicanidade, a são-tomensidade –, nasceram países e nacionalidades que parecem referentes para a vida dos cidadãos.

Notas

1. Além dos textos abaixo referenciados, este dossiê compõe-se da entrevista concedida por David BIRMINGHAM a Alexsander GEBARA, A historiografia de David Birmingham, da entrevista feita por Ana Cristina PEREIRA e Rosa CABECINHAS ao cineasta Licinio AZEVEDO sobre Moçambique, Um país sem imagem é um país sem memória… e, ainda, pela resenha A descolonização portuguesa e as batalhas da memória do livro O Adeus ao Império da autoria de Maria Inácia REZOLA.

2. Cf.: SMITH 1995, p. 33.

3. Cf.: YOUNG 2004, p. 29.

4. Cf.: MAMDANI 1996, p.183.

5. Cf.: MESSIANT 2006, p. 145.

6. Cf.: BITTENCOURT 2015: 244

7. Por exemplo, Vidal 2007.

8. Por exemplo, http: / / expresso.sapo.pt / internacional / 2016-08-17- Eduardo-dos-Santos-exortaMPLA-a-assumir-erros-do-passado-para-ganhar-eleicoes, acesso: 23 ago. 201

9. Em particular em Moçambique, assinale-se a profusão de testemunhos e memórias sobre a guerra colonial.

10. Não será difícil encontrar quem opine pelo fracasso das negociações, mormente após o assassinato de Jeremias Pondeca (cf. http: / / www.verdade.co.mz / destaques / democracia / 59729-jeremiaspondeca-membro-senior-do-partido-renamo-assassinado-na-capital-de-mocambique, acesso: 22 de outubro de 2016), que se segue a outros de que nunca se apuraram os autores. Jeremias Pondeca era conselheiro de Estado e o Presidente Filipe Nyusi esteve presentes nas cerimónias fúnebres (http: / / www.voaportugues.com / a / mocambique-rende-homenagem-jeremias-pondeca / 3547812 html, acesso: 22 de outubro de 2016). Contudo, parte dos moçambicanos inculpará a Frelimo pelo sucedido. Outra parte dos moçambicanos considerará essa responsabilidade como decorrente do exercício de poder que se deve nortear pelas garantias de segurança da população, aliás, corriqueiramente uma das razões de adesão ao partido no poder.

11. Fincando-se no texto constitucional, a Frelimo tem rejeitado entregar à Renamo a governação das províncias onde esta teve uma votação maioritária. Diversamente, encetou um processo de criação paulatina de autarquias locais (de momento, 53), para cujas eleições tem obtido uma esmagadora maioria de vitórias. Assim, de permeio com a observância dos mecanismos de democracia representativa (e independentemente de alegações sobre fraudes, alegações que não encontram respaldo nas missões internacionais de observação eleitoral), a partilha de poder tem-se revelado mínima. Enquanto isso, tem-se verificado a rotação na titularidade dos cargos de poder detidos por elementos da Frelimo, incluindo o de Presidente da República.

12. Após a recusa de tal passo no congresso do PAICV de 1988 e das críticas em Cabo Verde, e não só, às intenções de Pinto da Costa de democratização política em São Tomé e Príncipe, Cabo Verde acabaria por ser o primeiro dos Cinco a realizar eleições democráticas.

13. Não deixa de ser interessante este dilema identitário que percorre cabo-verdianos – sobretudo, os intelectuais – e que parece dividir ilhas, como o indiciam, por exemplo, as movimentações em torno da regionalização. Independentemente do que esta proposta contém de instrumental no tocante à capitalização de dividendos políticos contra a macrocefalia da Praia, ela pode ser também uma forma implícita de negar a vocação africana resultante da ligação ao continente (NASCIMENTO 2016). Porventura, muitos cabo-verdianos anuirão a que a inserção no contexto regional africano e nas estruturas políticas do continente não preenche toda a matriz identitária cabo-verdiana. Apesar da reafricanização dos espíritos coetânea da luta, por conta da qual a africanização parecia incrustar uma matriz identitária autêntica, parte dos cabo-verdianos teria muitas dúvidas quanto a tal africanização dos espíritos. De outra forma, não se entenderia a acrimónia que perpassou nas trocas de acusações entre responsáveis guineenses e cabo-verdianos após o Movimento Reajustador de 1980 na Guiné-Bissau (que TRAJANO elencou como o “outro paradigmático”). Se assim foi, e é, sem se negar uma identificação difusa de parte dos cabo-verdianos com África, poder-se-ia perguntar que África polariza tais sentimentos.

14. Citado por NEWITT 2015: 32. Em todo o caso, para passar de sugestiva a convincente, tal hipótese demandaria uma acurada investigação sobre o curso e a metamorfose de sentidos políticos dos referentes culturais, a começar pela própria memória da presença de cabo-verdianos na Guiné.

15. Opiniões de senso comum defendem com vigor que na base dos problemas da Guiné-Bissau não estão as clivagens étnicas ou socio-culturais, mas a presença do crioulo. Avaliar opiniões de rua como esta requereria profundo trabalho de investigação, desde logo para situar essa figura do mestiço, que, podemos alvitrar, é uma metonímia de “cabo-verdiano” que o pudor académico ou a conveniência política impede de nomear. A este respeito, consulte-se, entre outras obras, DJALÓ 2013.

16. Note-se, algumas das políticas ensaiaram beneficiar os trabalhadores, com destaque, como a autora assinala, para o aumento dos salários logo após a independência. Porém, cumpre dizer que o MLSTP ensaiou igualmente repor o comando autoritário (KEESE 2011) em nome do povo mas exercido por ilhéus a quem os trabalhadores imigrados não reconheceriam nem competência nem idoneidade. Tal gerou a corrosão das relações laborais e o abandono das roças. Para uma perspectiva de conjunto sobre a evolução das roças no pós-independência, veja-se EYZAGUIRRE 1986.

17. Por exemplo, CHABAL 2002: 90.

18. Ver, por exemplo, FALOLA 2004: 273

Referências

BITTENCOURT, Marcelo. Nacionalismo, Estado e Guerra. In: FERRERAS, Norberto O. (Org.). As tradições nacional-estatistas no Brasil, na América Latina e África. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015.

CHABAL, Patrick. A history of postcolonial lusophone Africa. Londres: Hurst, 2002.

DJALÓ, Tcherno. O mestiço e o poder. Identidades, dominações e resistências na Guiné. Lisboa: Veja, 2013.

EYZAGUIRRE, Pablo. Small Farmers and Estates in Sao Tome, West Africa, Ph. D. dissertation, Yale University, 1986.

FALOLA, Toyin. Nationalism and african intellectuals. University of Rochester Press: Rochester, 2004.

KEESE, Alexander. Early Limits of Local Decolonization in São Tomé and Príncipe: From Colonial Abuses to Postcolonial Disappointment, 1945-1976. In: International Journal of African Historical Studies, v. 44, n. 3, 373-392, Boston: University African Studies Center, 2011.

MAMDANI, Mahmood. Citizen and subject: Contemporary Africa and the legacy of late colonialism. Princeton University Press: Princeton, 1996.

MESSIANT, Christine. Transição para o multipartidarismo sem transição para a democracia. In: VIDAL, Nuno; ANDRADE, Justino Pinto de (Org.). O processo de transição para o multipartidarismo em Angola. Lisboa: Edições Firmamento, 2006, p. 131-161.

NASCIMENTO, Augusto. Estados, poderes locais e representatividades políticas: das experiências socialistas aos multipartidarismos nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa”. In: Municipalismo e poderes locais. Maputo: Alcance Editores, 2015. p. 215-290.

NEWITT, Malyn. Os partidos nacionalistas africanos no tempo da revolução. In: ROSAS, Fernando; MACHAQUEIRO, Mário; OLIVEIRA, Pedro Aires (Org.). Adeus ao Império – 40 anos de descolonização portuguesa. Lisboa: Nova Vega, 2015. p. 25-43.

OLIVEIRA, Pedro Aires. O ciclo africano. In: COSTA, João Paulo Oliveira; RODRIGUES, José Damião; OLIVEIRA, Pedro Aires (Coord). História da expansão e do império português. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2014. p. 341-545.

______. A descolonização portuguesa: o puzzle internacional In: ROSAS, Fernando; MACHAQUEIRO, Mário; OLIVEIRA, Pedro Aires (Org.). Adeus ao Império – 40 anos de descolonização portuguesa. Lisboa: Nova Vega, 2015. p. 60-77.

SMITH Anthony D. Nações e nacionalismo numa era global. Oeiras: Celta, 1995.

VIDAL, Nuno. Social neglect and the emergence of civil society in Angola. In: CHABAL, Patrick; VIDAL, Nuno (Ed.). Angola. The weight of history. Londres: Hurst Publishers, 2007. p. 200-235.

YOUNG, Crawford, The end of the post-colonial state in Africa? Reflections on changing Africa political dynamics. African Affairs, Londres, v. 103, n. 410, p. 23-49, 2004.

Augusto Nascimento – Investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa (Portugal). É colaborador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto e do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Foi cooperante em São Tomé e Príncipe entre 1981 e 1987. Doutor em Sociologia na especialidade de Economia e Sociologia História pela Universidade Nova de Lisboa e Agregação em História, na especialidade História Contemporânea, pela Universidade Nova de Lisboa. É autor dos livros O fim do caminhu longi (Ilhéu Editora, 2007); Ciências sociais em São Tomé e Príncipe: a independência e o estado da arte (Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2007); Vidas de S. Tomé segundo vozes de Soncente (Ilhéu Editora, 2008); Atlas da Lusofonia. São Tomé e Príncipe (Prefacio, 2008); Histórias da Ilha do Príncipe (Oeiras, 2010), Desporto em vez de política no São Tomé e Príncipe colonial (7letras2013). Tem como principais áreas de interesse a história recente de África e, em particular, a de São Tomé e Príncipe.

Marcelo Bittencourt – Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador do Núcleo de Estudos Africanos da UFF (NEAF). Possui Graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestrado em Antropologia pela Universidade de São Paulo e Doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense. Suas pesquisas estão relacionadas com os seguintes temas: Angola, África Austral, colonialismo, lutas de libertação e esportes. Publicou, entre outros, Dos jornais às armas. Trajectórias da contestação angolana (Vega, 1999); Estamos juntos! O MPLA e a luta anticolonial 1961-1974 (Kilombelombe, 2008).


NASCIMENTO, Augusto; BITTENCOURT, Marcelo. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 42, n. 3, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Corporativismo Histórico no Brasil e na Europa / Estudos Ibero-Americanos / 2016

O tema do corporativismo, seja em termos teóricos ou de sua práxis, é fortemente associado pela historiografia aos regimes fascista e parafascistas do período entre guerras, não apenas no clássico caso italiano ou mesmo no modelo português de Oliveira Salazar, mas também, por exemplo, no caso dos regimes menos conhecidos de Dolffus, na Áustria, e do rei Carol II, na Romênia. No Brasil, de igual forma, seus estudiosos associam o corporativismo ao autoritarismo do Estado Novo de Vargas, especialmente destacando suas influências fascistas e o caráter incompleto do corporativismo estatal brasileiro, mero instrumento de dominação de classes.

A esse respeito, observa-se que muitos desses estudos foram realizados entre as décadas de 1970 e 1990, período que coincide, de um lado, com o fim das ditaduras na Europa (Portugal e Espanha) e América Latina (Brasil, Argentina e Uruguai) e a crise do comunismo e, de outro, com a implantação de reformas políticas e econômicas de tipo liberal ou neoliberal nesses mesmos países. Em outras palavras, por hipótese, talvez se possa dizer que esses estudos sobre o corporativismo estavam diretamente ligados às preocupações dos historiadores e demais cientistas sociais, em tempos de transição democrática, de compreender as raízes e o modo de funcionamento do autoritarismo em seus países. Em sentido oposto, portanto, talvez se possa afirmar também que o tema do corporativismo teria deixado de ser relevante para esses mesmos estudiosos em tempos democráticos.

Já a partir de princípios do século XXI, entretanto, observa-se uma retomada do corporativismo como objeto de estudo de historiadores, cientistas políticos, sociólogos e economistas, mas, dessa vez, não apenas no sentido de revisitar o chamado corporativismo histórico e suas relações autoritárias, mas também de compreender suas novas formas de manifestação nas democracias contemporâneas, seja em termos teóricos ou na ação de grupos de interesse e as novas formas de articulação entre o Estado e a sociedade civil.

O presente dossiê, portanto, está em perfeita sintonia com o seu tempo presente, como bem ilustram os textos a seguir publicados de importantes pesquisadores brasileiros, portugueses, italianos e espanhóis sobre a teoria e a práxis do corporativismo, desde os anos 1930 até hoje. Nesse mesmo sentido, de modo a enfatizar também sua atualidade e proximidade com os mais recentes debates internacionais sobre a temática do corporativismo, deve-se ainda destacar que este dossiê está diretamente vinculado às ações da Rede Internacional de Estudos do Corporativismo – International Network for Studies on Corporatism and the Organized Interests (NETCOR), criada em Lisboa em princípios de 2015. Além disso, este dossiê da revista Estudos Ibero-Americanos também dialoga com outro já publicado pela revista Espacio, Tiempo y Forma1, da Universidade Nacional de Educação à Distância (UNED), de Madri, e com o dossiê a ser publicado ainda nesse ano pela Universidade de Coimbra.

O primeiro texto, de Álvaro Garrido, toma como referência o caso português para propor uma discussão teórica sobre a questão do corporativismo. Segundo ele, há uma recente revitalização teórica do corporativismo pelas Ciências Sociais, mas com abordagens que tendem a dispensar a categoria da historicidade. Em geral, como bem demonstra o autor ao longo do seu estudo, os estudiosos da temática têm se ocupado especialmente da teoria e ação dos grupos de interesse, da questão dos corpos sociais intermediários e das formas de articulação entre o Estado e a “sociedade civil”, vendo o corporativismo como um “fenômeno total” e o desvalorizando enquanto fenômeno histórico.

A seguir, Alessio Gagliardi e Marco Zaganella analisam a teoria e a práxis do corporativismo italiano, respectivamente nas décadas de 1920 e 1930 e após o período do fascismo, durante a Primeira República italiana (1948-93). Gagliardi se propõe não apenas a analisar a estrutura institucional do corporativismo fascista, seu sistema de leis, regulações e procedimentos, mas também suas reais ações e atividades, destacando as “reais” consequências desse modelo italiano, diferentes do seu viés ideológico. Zaganella, por sua vez, propõe o que diz ser uma análise do corporativismo depois do corporativismo, ou seja, indo além das por ele chamadas colunas de Hércules do Fascismo e atendo-se no seu estudo durante a Primeira República italiana.

Os demais textos, de Francisco Palomanes Martinho, Marco Aurélio Vannucchi, Larissa Rosa Correa e Valéria Lobo se dedicam ao estudo de diferentes perspectivas do corporativismo brasileiro. Martinho revisita em seu estudo o período de criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-45), não apenas no sentido de analisar seu processo de criação e institucionalização do mundo do trabalho no Brasil, mas também de compreender o papel desempenhado por suas elites políticas e intelectuais na definição desse modelo. Vannucchi, por sua vez, toma como referência a representação profissional dos advogados no Brasil para analisar um aspecto próprio do corporativismo nacional, a duplicidade dos organismos de representação profissional dos grupos que ele define como classe média profissional perante o Estado, dividida entre seus conselhos profissionais e sindicatos. Nesse sentido, em sua opinião, o corporativismo brasileiro de classe média se aproximaria mais da modalidade societal que da estatal. Já Larissa Correa propõe uma nova discussão sobre as instituições que compõe o sistema corporativista no Brasil – Justiça do Trabalho, sindicatos e Ministério do Trabalho, mas a partir das experiências acumuladas dos trabalhadores em seus contatos com esses órgãos, com o objetivo de analisar como estes teriam sido capazes de ressignificar sua linguagem corporativista ao longo dos anos 1950 e 1960, durante os chamados períodos do populismo e da ditadura militar. Valéria Lobo, por fim, embora admitindo que a gênese do corporativismo no Brasil e seu desenvolvimento estão diretamente associados ao autoritarismo do Estado Novo, se propõe a analisar as relações contemporâneas entre corporativismo e democracia. Segundo ela, apesar de ser alvo de críticas à direita e à esquerda, nenhum dos seus críticos teria revelado “uma preferência intensa pela superação do modelo”. Sendo assim, questiona-se a autora, não seria mais pertinente postular-se o aprimoramento dos dispositivos corporativos ainda presentes com vistas ao aperfeiçoamento da democracia no Brasil?

Por fim, ao final do dossiê, deve-se ainda mencionar a realização de uma entrevista com o historiador Fernando Rosas, um dos principais estudiosos do Estado Novo e do corporativismo português, abordando desde questões sobre o regime e seu modelo de organização social e econômica até uma comparação entre os chamados corporativismo histórico e neocorporativismo.

Nesses termos, portanto, espera-se que os textos ora editados possam não apenas contribuir para a revisão e aprofundamento do debate historiográfico sobre o corporativismo histórico e sua ocorrência no Brasil, sua teoria e práxis, mas também para a proposição de novas formas de abordagem (temática e teórica) acerca dessa temática e de um olhar mais contemporâneo sobre suas novas formas de manifestação em tempos democráticos.

Nota

1 Espacio, Tiempo y Forma. Construindo o Estado Corporativo: as experiências históricas de Portugal e Espanha. Madri: UNED, año 2015, n. 27.

Luciano Aronne de Abreu – Professor do Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutor em Estudos Históricos Latino Americanos pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas: História do Rio Grande do Sul, Era Vargas e Autoritarismo. É autor dos livros Getúlio Vargas: a construção do mito (Edipucrs, 1997) e Um Olhar Regional sobre o Estado Novo (Edipucrs, 2007).

Paula Borges Santos – Investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (IHC / UNL), onde coordena o Grupo de Investigação Justiça, Regulação e Sociedade e realiza o pós-doutoramento, com apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Doutora em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, publicou: Igreja Católica, Estado e Sociedade (1968-1975): o caso Rádio Renascença (Imprensa de Ciências Sociais, 2005), que recebeu o Prêmio Fundação Mário Soares; A Questão Religiosa no Parlamento (1935-1974) (Assembleia da República, 2011) e A Segunda Separação. A Política Religiosa do Estado Novo (Almedina, 2016).


ABREU, Luciano Aronne de; SANTOS, Paula Borges. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 42, n. 2, maio-ago., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Pensamentos e Práticas Políticas Conservadoras no Século XX / Estudos Ibero-Americanos / 2016

Quando se abre uma chamada para artigos de um dossiê temático, em uma revista, há diversas formas de proceder em relação aos textos encaminhados por autores. Entre as alternativas, uma é a de – além da correção, do ineditismo, da amplitude de pesquisa etc. – verificar em que medida o conteúdo coincide, ou, ao menos, se aproxima da concepção que o editor da revista ou o organizador do dossiê tem sobre o tema proposto. Outra é a de – mais uma vez atendidas as exigências de qualidade como tais – publicar um leque de contribuições que, na opinião dos autores, correspondem ao tema proposto para o dossiê. Neste caso, ele reflete as concepções – eventualmente bastante diversificadas, até muito divergentes – sobre o tema entre os estudiosos que atenderam ao chamado. No primeiro caso, estamos diante de uma concepção mais “dogmática”, enquanto no segundo caso prevalece uma prática acadêmica mais “liberal”, pluralista. E foi esta última que aqui se adotou.

Estamos vivendo no Brasil e em alguns outros países da Ibero-América uma polarização política, na qual o mundo, muitas vezes, é apresentado como dividido em duas facções antagônicas, até mutuamente excludentes, entre o bem e o mal, entre direita e esquerda, entre elite e povo, entre interesse nacional e submissão ao imperialismo, e assim por diante. Óbvio, isso não é novidade. Para o caso do Brasil, basta lançar um olhar para os anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, quando havia uma tendência a classificar pessoas, grupos, partidos, formas de pensar, de maneira mais ou menos maniqueísta, como “nacionalistas” ou “entreguistas”. Naquele momento, no entanto, o panorama internacional esteve marcado pelo confronto acirrado entre “leste” e “oeste”, enquanto agora estamos vivendo numa situação em que a “queda do muro” já completou um quarto de século, com alguns outros problemas e algumas outras tensões no horizonte global, e ouvimos falar muito do “fim das ideologias”, que marcaram o confronto de então.

Mesmo assim, alguns conceitos continuam carregados com tamanho viés “ideológico” que é bom cuidar para não ser enquadrado em alguns deles. Um exemplo bem concreto é o conceito de “liberal”, sobretudo em sua forma atualizada para “neoliberal”. Hoje em dia, esta é uma classificação que, em alguns ambientes, possui conotação totalmente negativa – até abjeta. No entanto, numa análise mais fria, “isenta”, somos obrigados a reconhecer que sem o “liberalismo” – do qual o adjetivo deriva – muitas das pessoas que hoje o condenam com tanta veemência não poderiam estar dizendo aquilo que dizem. Convém destacar que ele, nas suas origens, está ligado à “tolerância”, quando a multiplicidade de confissões religiosas decorrentes das reformas protestantes do século XVI, na Europa, levou a tentativas de estabelecer uma base mínima de convivência civilizada, com o reconhecimento do direito à diversidade, a partir do século XVII, e, mesmo com uma eventual condenação às religiões, pelo Iluminismo, no século XVIII. Muitas das pessoas que dizem abominar o “liberalismo” fazem uso inflacionário do termo “liberdade” – aparentemente sem se dar conta de que esta é inseparável daquele, ao menos lá nas suas origens.

Esses fatos sugerem que o mínimo que intelectuais responsáveis devem fazer é definir com clareza se abominam o “liberalismo” em si, ou apenas algum aspecto, alguma tendência ou algum derivado dele. Este é um exemplo típico da necessidade de reavivar a memória em torno de outros conceitos – e é isso que se teve em mente ao propor um debate sobre um conceito intimamente vinculado ao anterior, ainda que contraposto, o de “conservadorismo” político. E isso não num âmbito abstrato, teórico, mas, sim, dentro do contexto concreto do mundo político ibérico e ibero-americano.

Dentre os artigos encaminhados para este dossiê, estão oito textos submetidos a pareceristas, e aprovados pelo Conselho Editorial da revista. Consciente dos riscos que sempre se corre ao tentar resumir ideias ou afirmações de outrem, a intenção, aqui, é a de dar ao menos uma ideia daquilo que os diversos autores apresentaram sob a rubrica de “pensamento e práticas políticas conservadoras”, no século XX. Os resumos também pretendem evidenciar semelhanças e / ou diferenças entre os diversos casos abordados.

O primeiro dos artigos de nosso dossiê, de Olga Echeverría, trata de intelectuais de direita frente à nação e ao popular, na Argentina das primeiras décadas do século XX. Diante da suposta ou efetiva ampliação do eleitorado, e da consequente ascensão de novas forças políticas, intelectuais representativos de uma direita autoritária e antidemocrática reagiram, através da construção de um inimigo comum à nação, que se propuseram a combater. Nesse contexto, atribuíram papel importante às forças armadas, e colocaram sob suspeita a democracia liberal, que estaria viabilizando o suposto ou efetivo avanço de forças plebeias. Heterogêneos entre si, sem uma organização formal que os congregasse, marcaram presença nos 15 anos que antecederam o golpe de 1930, o qual resultou na ascensão de José Félix Uriburu à presidência da Argentina. Apesar de presentes no panorama argentino durante muitos anos, não tiveram muita influência no cotidiano da evolução política do país, mostrando-se sua influência antes difusa – aliás, em consonância com as posições que defendiam, isto é, que deveriam agir fora e acima da política. Esse fato também explicaria, ao menos em parte, suas próprias concepções, em especial naquilo que diz respeito aos temas nação e nacionalismo. Não pensaram o nacionalismo como um programa socioeconômico nem de inserção do país no contexto internacional, mas sim como um elemento emocional, patriotismo, no qual se discutiam coisas como a língua e a religião que deveriam caracterizar a nação argentina – quanto à religião, obviamente, a ênfase recaiu sobre o catolicismo. Em resumo, tratou-se muito mais de uma tentativa de mobilização intelectual que de uma atuação propriamente política, dentro das estruturas institucionais do Estado argentino.

No artigo de Ernesto Bohoslavsky sobre organizações e práticas anticomunistas na Argentina e no Brasil, há um deslocamento cronológico, especificamente para o período de 1945 a 1966, um dos momentos mais marcantes da guerra-fria, em nível internacional. Além disso, no momento anterior – analisado no artigo precedente –, o comunismo como elemento a combater não estava tão claramente definido e nominado quanto agora. Mesmo assim, há semelhanças, pois o autor destaca que o anticomunismo que aparece em sua análise não é necessariamente aquele propagado e praticado por partidos e instituições representativas de determinadas classes sociais, de grupos profissionais ou doutrinários, como partidos de direita, forças armadas ou igrejas. O anticomunismo de que se trata aqui são manifestações e ações de longo prazo que perpassam o tecido social, numa tentativa de conter o propalado desmoronamento de um mundo ordenado. Segundo o autor, esse processo sofreu uma intensificação a partir da revolução cubana, em 1959. Apesar de haver muitas semelhanças nos dois países, há também diferenças, caracterizadas, por exemplo, pela maciça presença feminina no Brasil, por um lado, e de um moralismo católico bem mais marcante na Argentina, por outro lado.

O tema apresentado por Élio Catalício Serpa e José Adilçon Campigoto, em seu artigo “Portugal no Brasil: ‘topografia’ da embaixada universitária de Coimbra”, se distingue dos anteriores, na medida em que nos dois primeiros textos foram abordados um pensamento e uma ação mais difusos, mais diletantes, mais “jornalísticos”, em princípio, não institucionalizados, enquanto aqui entra em jogo ninguém menos que uma das mais antigas universidades do planeta, e seu reitor, a serviço explícito do governo autoritário de António de Oliveira Salazar. Presença assídua no pensamento e na prática de regimes autoritários, o nacionalismo também foi parte importante no Estado Novo português. Só que ele apresentou algumas peculiaridades. Uma delas foi a preocupação com a defesa da política colonialista portuguesa na África, a qual, por sua vez, se estribava na elaboração de uma ideologia sobre a qualificação especial dos portugueses para colonizar diferentes regiões do mundo. E como país territorialmente mais marcante dessa ação colonizadora era apresentado o Brasil, considerado uma das maiores evidências das boas qualidades desse “mundo que o português criou”. E a visita de uma missão estudantil da Universidade de Coimbra, em 1951, acompanhada de seu reitor, visava a capitalizar dividendos para essa concepção. Interessante, neste caso, é que nem sempre os fatos se adaptaram às boas ou más intenções dos seus idealizadores, de forma que – apesar de alguns dividendos – essa empreitada também registrou alguns constrangimentos: o Brasil real visitado pelo grupo apresentava mazelas que não correspondiam àquilo que se idealizava para o “mundo português”, os próprios brasileiros (artistas, por exemplo) poderiam ter concepções diferentes sobre o impacto lusitano no país, em determinadas regiões as marcas portuguesas poderiam estar obscurecidas pela presença de pessoas e instituições originárias de outras tradições colonizadoras, e até algumas das solenidades acabaram ocorrendo não em ambientes de tradição portuguesa, mas de tradição espanhola.

Se o texto anterior tematiza o nacionalismo português, em sua forma peculiar de “mundo português”, durante o regime salazarista – portanto posterior à década de 1930 –, Ana Isabel Sardinha Desvignes, em “Hispanismo e relações luso-brasileiras: a última cruzada contrarrevolucionária de António Sardinha” analisa o pensamento de um político e intelectual português que faleceu – muito jovem –, em 1925, e tentou pensar uma latinidade peculiar, centrada em Espanha, Portugal e Brasil. António Maria de Souza Sardinha foi um dos expoentes do integralismo lusitano, um exemplo típico do pensamento contrarrevolucionário, monarquista, daquele momento histórico. Segundo ele, a calamidade que assolava o mundo de seu tempo iniciou com as reformas religiosas protestantes, do século XVI, alcançando, porém, seu ápice com a Revolução Francesa. Sob essa perspectiva, sua proposta de uma latinidade salvífica se restringiu à Península Ibérica, excluindo a França, e mesmo a Itália, incluindo, porém, áreas ainda não totalmente contaminadas, originárias de colonização ibérica. A história comum e o catolicismo teriam dado origem a uma unidade espiritual aos povos ibéricos, cujas tradições medievais – como as corporações – caberia recuperar. E o Brasil apresentaria um aliado potencial muito importante na construção de um bloco capaz de salvar o Ocidente de sua decadência, pois resultado da capacidade de colonização universal dos ibéricos. Apesar de já republicano, naquele momento, o país se caracterizava por um passado monarquista, o qual lhe teria conferido estabilidade, e guardava profundos vínculos históricos com Portugal – até apresentava a vantagem de ter assimilado a população indígena, que em outros lugares (com nos EUA) teria sido massacrada.

Além de commodities, o Brasil tem exportado, nas últimas décadas, instituições religiosas, aqui criadas. Gisele Zanotto, em “‘Ver, juzgar y actuar’: um manifesto em prol da ‘Argentina Católica Conservadora’ (1971)”, apresenta um antecedente muito conhecido representado por uma instituição que, na mesma época, também registrou intensa atividade de rua no Brasil – a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, mais conhecida pela sigla TFP. Criada aqui em 1960, lançou seus tentáculos para vários outros países, entre eles a Argentina, onde se instalou em 1967. Avaliando que a política argentina estava tomando um rumo esquerdizante, na virada da década de 1960 para a de 1970, a TFP local desencadeou intensa campanha anticomunista, destacando que a destruição do tradicional mundo cristão iniciou com as reformas protestantes, que depois desembocaram no Iluminismo e na Revolução Francesa. Para contrapor-se a essa decomposição, mais recentemente aprofundada com a expansão do comunismo, seria necessário implantar governos fortes, dispensando os governos liberal-democráticos, condescendentes com a infiltração sub-reptícia de fatores deletérios na sociedade, revigorando a tradição católica, combatendo, para isso, as perigosas tendências progressistas dentro da própria Igreja Católica. Quem viveu como adulto no Brasil daquele tempo, lembrará da intensa campanha contra o presidente Eduardo Frei, acusado de “Kerensky chileno”. No artigo, a autora mostra uma campanha semelhante contra o então presidente argentino Alejandro Lanusse.

Por caminhos aparentemente tortuosos, Ágnes Judit Szilágyi estabelece uma relação entre a Hungria comunista e o Brasil dos anos 1950 / 1960, em seu artigo “A Revolução Húngara de 1956 e a argumentação anticomunista no discurso público no Brasil no tempo da formação da Política Externa Independente”. Como se sabe, o levante húngaro de 1956 foi uma das várias tentativas de rebelião contra a dominação soviética, em países do leste europeu, durante a guerra-fria. Aquilo que a autora faz no seu texto é apresentar uma das mais destacadas figuras de um anticomunismo ferrenho, no Brasil, o almirante Carlos Pena Boto, que criara, em 1952, a Cruzada Brasileira Anticomunista. Como se sabe, a concepção e a prática de uma “política externa independente” tinham como um dos principais objetivos justamente o reatamento de relações diplomáticas com o “bloco soviético”, rompidas no final da década de 1940. Nesse sentido, o levante popular húngaro serviu de argumento para o almirante tentar mostrar o caráter opressivo do regime comunista, contra o qual povos por ele atingidos se rebelavam, e denunciar a propalada “política externa independente” como um processo de infiltração comunista no país.

Localizado cronologicamente no mesmo período, Magadalena Broquetas estudou o processo de cristalização de uma violência praticada por grupos de direita, no Uruguai. O texto se intitula “Entre la reacción y la restauración. Derechas y violencia en Uruguay en los inicios de la crisis de la decada de 1960”. A autora se debruçou sobre as reações ao processo de mobilização da sociedade uruguaia, no período, destacando que, como em outros países, havia dois grupos que tentaram frear esse processo: partidos, instituições e grupos relativamente moderados, por um lado, e grupos expressamente contrarrevolucionários, de extrema direita, por outro. Entre estes últimos, constata-se um nacionalismo muito forte, que combatia a ordem liberal-democrática, e o próprio capitalismo, alguns integrantes formaram esquadrões que recorriam à violência não institucionalizada, quando consideravam que a expansão dos órgãos de repressão do aparelho de Estado não era suficiente. Aliaram-se à política anticastrista dos Estados Unidos, e apresentaram como característica adicional um forte componente antissemita.

O dossiê termina com um artigo de Marly Vianna sobre “Hierarchia e Estudos e Conferências – a direita em revista”, ao analisar dois periódicos editados com chancela oficial do governo brasileiro – sob Getúlio Vargas –, respectivamente, no início das décadas de 1930 e de 1940. A autora mostra que, além da louvação ao presidente da República, ambas as publicações combateram o comunismo, fizeram referências benevolentes aos sucessos do fascismo, na Europa, pregaram a necessidade de um Estado forte, criticaram o federalismo. Aquilo que chama atenção na análise dessas fontes é certa insegurança na tomada de posição de boa parte dos intelectuais brasileiros diante da realidade nacional, nas duas décadas localizadas entre as guerras mundiais – fato que talvez explique a sobrevivência de intensa polêmica entre os historiadores atuais a respeito do Estado Novo brasileiro –, um regime que, no mínimo, apresentou “afinidades eletivas” com aquilo que os integrantes das citadas revistas propunham. Verificando os nomes dos intelectuais que exerceram algum papel nas duas revistas, constata-se que alguns deles, já naquela época, defendiam posições críticas em relação ao status quo, com propostas inovadoras (a autora cita como exemplos Anísio Teixeira e Cândido Portinari). Isso sugere que aquele período se caracterizou por certa “confusão mental” entre uma parte de nossa elite pensante, que, por um lado, tinha consciência das mudanças pelas quais o mundo e o país estavam passando, mas, por outro lado, ainda não conseguira desenvolver alternativas claras e coerentes frente às transformações em curso. No Brasil, conhecemos várias figuras que militaram neste campo de pensamento e ação, para, mais tarde, “trocarem de lado”.

Uma resenha de Jaime Valim Mansan sobre um livro que trata da política educacional na Espanha franquista também faz parte deste dossiê.

Ainda que nem todas as formas de pensar e de agir abordadas nos oito artigos apresentem características idênticas, pode-se nominar ao menos algumas tendências. A preocupação com o destino da “nação” é uma delas – mesmo que a definição daquilo que ela é ou deveria ser possa variar de caso a caso. Os destinos que o mundo vinha tomando desde o início da Era Moderna foram outra caraterística comum, com destaque para preocupações com as tendências revolucionárias verificadas desde o final do século XVIII. A ideia de que a Igreja Católica ou as forças armadas seriam as instituições a que se deveria recorrer para tentar estancar o avanço da revolução destruidora também foi recorrente. Ainda que se trate, claramente, de um pensamento e de uma ação políticos, nem partidos nem a estrutura estatal como tais constituíram a arena privilegiada dos atores, pois entendiam que deveriam mudar a sociedade como um todo – mesmo que não possa haver dúvida de que o fortalecimento do Estado fosse visto como um objetivo fundamental. A virulência verbal – que podia converter-se em violência física – é outro elemento que perpassa o referido espectro de “pensamento”.

Por tudo isso, talvez não seja de todo adequado classificar as formas de pensar e de agir apresentadas no presente dossiê como “conservadoras”. É possível que elas fossem, antes, “reacionárias”. Claro, também este conceito não resolve tudo, pois nem todo nacionalista é “reacionário”, da mesma forma que nem todo anticomunista, todo católico fervoroso o são. Pior, a tendência a defender o fortalecimento do Estado perpassa o espectro de “direita” / ”esquerda”, a ponto de ser notório que nos anos 1950 ideólogos que se apresentavam como de “esquerda” terem louvado o pensamento estatizante de “direita” dos anos 1930 – em termos de Brasil, estou pensando, por exemplo, nas louvações de Alberto Guerreiro Ramos ao pensamento de Azevedo Amaral.

Considerando que a tese de doutorado de Hélgio Trindade sobre o integralismo brasileiro está completando 45 anos, o desafiamos a conceder-nos uma entrevista a respeito. Agradeço de coração ao meu orientador de mestrado – e, portanto, ao meu iniciador na carreira de pesquisador de temas afins a este dossiê – por ter atendido ao desafio. A entrevista, obviamente, é parte importante do dossiê. Muito obrigado, Hélgio.

René E. Gertz – Organizador. Professor Titular do PPG-História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e professor associado (aposentado) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Ciência Política pela Freie Universität Berlin. Tem experiência na área de História do Brasil-República, com interesse especial por aspectos políticos do processo de imigração e colonização no sul do Brasil, por integralismo, por nazismo, por germanismo, por neonazismo, por protestantismo, por preconceitos étnicos e religiosos, pela política gaúcha do período em torno do Estado Novo (1937-1945). Além disso, tem dedicado atenção à historiografia alemã contemporânea, tentando divulgá-la no Brasil, principalmente, através de traduções. Autor de vários artigos científicos, publicou os livros O neonazismo no Rio Grande do Sul (EdiPUCRS; AGE, 2012), O perigo alemão (Editora da UFRGS, 1998) e O fascismo no sul do Brasil (Mercado Aberto, 1987).


GERTZ, René Ernaini. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 42, n. 1, jan. / abr., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Revoltas Populares Contemporâneas numa Perspectiva Comparada / Estudos Ibero-Americanos / 2015

A realidade é uma hipótese repugnante / fora de mim,

entrando por mim a dentro Solidão errante / órfã de centro.

(Manuel António Pina em La fenêtre éclairée)

O século XXI nasceu sob o signo da insurreição. Num mundo em desassossego, e um pouco por todo o lado, a ideia de que “nada será como dantes” parece ter vindo para ficar. As palavras cansam-se na tentativa de definir uma realidade que, de tão apressada, parece tropeçar sobre si mesma. Protestos, tumultos, revoltas, revoluções, contrarrevoluções sucedem-se, trocam de lugar, aparecem, desaparecem, teimosamente resistem, ou transformam-se em sombras que inspirarão num futuro que cada vez mais se confunde com um longo presente, outros protestos, outros tumultos, e outras revoltas. E a cabeça do ser humano neste nosso ainda jovem século roda, e gira, vertiginosamente à procura de um centro, de uma orientação, de um eixo, para um mundo que parece ter saído dos eixos.

A geografia da crise não tem um centro difusor, e ela, nas suas várias manifestações, tanto pode ser econômica, financeira, política, social, cultural ou todas ao mesmo tempo. A Oriente, ditaduras foram combatidas nas ruas, e enquanto umas caíram, outras resistiram, transformaram-se, ou revigoraram-se. A Ocidente, movimentos estudantis e sociais desafiam o Estado, a democracia-liberal, e a globalização capitalista, e muitos proclamam que um “outro mundo” não só é possível, como inevitável. E toda esta onda de protesto rebentou nas ruas, nas calçadas, nas avenidas, e nas praças, nas televisões, na Internet e nas redes sociais, lugares físicos e virtuais, onde se mobilizaram desejos e se celebraram indignações, inconformismos, e a rejeição do mundo tal como ele é. E no meio da ebulição, também irromperam guerrilhas urbanas, fizeram-se pilhagens e destruiu-se propriedade, surgiram terroristas e lobos solitários, e aperfeiçoaram-se técnicas avançadas de controlo, vigilância, e repressão de protestos por parte do poder público, sempre reforçando essa “lei” não escrita da História que nos diz que qualquer procura de emancipação popular tem sempre como hipótese latente, como via possível, a violência, seja de manifestantes, seja da ordem estabelecida.

Nesta geopolítica contemporânea do protesto, a força propulsora do ativismo deriva, mais do que de teorizações complexas, ou de programas detalhados para se revolucionar a sociedade, do fato desse mesmo ativismo ser visto, sentido, e experimentado, como um combate de todos aqueles que se encontram “em baixo” contra a minoria dos que se encontram “em cima”. Independentemente do contexto, o alvo a abater são sempre as elites; que podem ser personalizadas por tiranos, claro, mas também pelas oligarquias políticas e financeiras das democracias, por famílias todo-poderosas, pelos governantes, pela classe política, por grupos de media, e por toda uma rede de interesses e mecanismos, nacionais e transnacionais, que sustenta o poder e a soberania destes “príncipes” enquanto perpetua a destituição da “plebe”. Tudo isto é ainda mais notável quando se sabe, na senda dos trabalhos sobre protestos políticos de Charles F. Andrain e David Apter, que, ao longo dos tempos, a maioria das pessoas escolhem aceitar passivamente, e por razões pragmáticas, os regimes existentes e estabelecidos. A confrontação implica sempre custos, pessoais, familiares, profissionais, que fazem dela apanágio, sobretudo, de minorias. Mas hoje em dia, esta tendência para a resignação não parece ser suficientemente forte para impedir, em muitos países, a oposição mais vasta a regimes que, por uma miríade de razões, são vistos como ilegítimos.

Para muitos destes indivíduos, grupos, e movimentos de contestação, a avaliação sobre os males do mundo não deixa margem para dúvidas. O diagnóstico é pessimista. Mas isso não é desculpa para a inação. Esse desencanto é contrabalançado pela crença que os atuais sistemas político-econômicos podem ser superados, que a democracia pode ser revitalizada, e que a opressão, a injustiça e a desigualdade podem e devem ter um fim. Em suma, através da mobilização e do voluntarismo é possível provar como falsa a ideia que durante muito tempo foi corrente, sobretudo no Ocidente, de que “não há alternativa” para o mundo atual e que este é o melhor dos mundos possíveis. Não é assim de estranhar que muitos destes ativistas do século XXI falem de novo em palavras como “revolução” e “utopia”; e fazem-no sem vergonha ou inibição, mas com a consciência que o resgatar desta imaginação radical constitui um necessário primeiro passo para a transformação das nossas sociedades. Para muitos grupos, no fundo, é como se combatessem entre dois mundos, um no crepúsculo, e outro na aurora.

É assim o mundo de hoje: em fluxo, em movimento, e também imprevisível. E de uma maneira geral toda esta turbulência contemporânea apanhou as pessoas de surpresa. É verdade que pode-se afirmar que estamos perante a História como ela realmente é, e como sempre foi. Ou seja, como a emergência do novo, do nunca visto, daquilo que nunca se pensou que pudesse acontecer, do que causa espanto, horror, ou maravilha. Mas importa dizer que num passado não muito distante, ou seja, durante boa parte da segunda metade do século XX, e por razões históricas concretas, esta interpretação da História como devir permanente era vista com muito mais cautela, contenção e ceticismo. Afinal de contas, o século XX despertou com uma sucessão de tentativas de aplicação na prática de impulsos utópicos e de projetos de transformação coletiva que, cada um a sua maneira, tinha como fim libertar o ser humano das alienações e misérias da História. Assim, o mundo assistiu à tentativa soviética de fazer do ideal comunista uma realidade viva, ao projeto fascista de iniciar uma nova História (um “novo começo”) e de purgar a civilização da sua decadência (seja através da nação, seja através da raça), e mesmo muitos movimentos coloniais de libertação assentaram numa esperança radical de inaugurar não apenas um Estado-nação mas o começo de uma nova época na História (o revolucionário anticolonialista Frantz Fanon apontou mesmo como finalidade da descolonização “a substituição de uma espécie humana por outra… o mundo virado ao contrário, os últimos transformam-se em primeiros”). E no horizonte os amanhãs cantavam.

Mas esta narrativa de revolução e emancipação esbarrou contra um obstáculo. Algo correu mal. E esse “algo” foi a própria realidade. Desta forma, o programa de libertação marxista acabou por servir de justificação ideológica para regimes totalitários, o projeto fascista tornou-se sinônimo de brutalidade humana e extermínio, e mesmo regimes de Estados pós-coloniais, não obstante as esperanças de muitos, na prática foram durante muito tempo exemplos de exploração, repressão e guerras sem fim. A conjugação destas experiências falhadas, e as suas consequências (guerras mundiais e civis) provocaram uma hecatombe nos meios intelectuais e culturais da época. Na altura, e como sinal desse terremoto, foi lançado um livro por dissidentes comunistas, publicado nos anos 50, com o elucidativo titulo “O Deus que falhou”, testemunhando essa transformação de sonhos infalíveis em pesadelos reveladores da falibilidade humana. É exatamente neste contexto que se levanta todo um movimento intelectual contra os males das ideologias, contra o utopianismo e contra as tentativas irrealistas e perigosas de encontrar alternativas totalizantes para o estado das coisas, seja nas sociedades, seja nas nações, seja no mundo. A lógica, apoiada na experiência de tragédias recentes, parecia ser um prolongamento do senso-comum. Ou seja, mais valia manter as coisas como estavam, ou, no máximo, fazer mudanças progressivas e equilibradas, do que lançar-se em quimeras de transformação coletiva que inevitavelmente iriam deixar o mundo em pior estado.

Intelectuais antiutópicos do pós-guerra, de todos os quadrantes ideológicos, repudiaram qualquer possibilidade de emancipação coletiva. À direita, Karl Popper, o filósofo da sociedade aberta e uma das grandes referências do pensamento liberal, retratou projetos utópicos como inevitavelmente perigosos, perniciosos e autodestrutivos. Sociedades ideais emergem “apenas a partir de nossos sonhos e dos sonhos dos nossos poetas e profetas. Elas não podem ser discutidas, apenas proclamadas em cima dos telhados. Elas não apelam para a atitude racional do juiz imparcial, mas para a atitude emocional do pregador apaixonado”. A partir da esquerda, Hannah Arendt perguntou: “E o que mais, enfim, é este ideal [de emancipação] de sociedade moderna, senão o velho sonho dos pobres e miseráveis, que pode ter um charme próprio, desde que ele é um sonho, mas que se transforma em um paraíso dos tolos, assim que é realizado?” Aleksndr Solzhenitsyn, que teve experiência íntima com um desses “paraísos” (conheceu o Gulag soviético, e esteve oito anos em campos de trabalhos forçados) sabia de quem era a culpa: “Graças à ideologia, o século XX experimentou a maldade humana numa escala nunca vista. Isto não pode ser negado, não pode ser ignorado, não pode ser suprimido”. E a “lição” não foi esquecida.

Como consequência vai-se assistir a uma defesa vigorosa, sobretudo na Europa e na América do Norte, da política do equilíbrio, orientada para a gestão do real, fazendo ajustes e mudanças importantes no sistema político e social, mas sem impulsos de transformação total e potencialmente destrutiva. Em suma, uma política desprovida de excessos ideológicos e sem febres utópicas. O pensador francês Raymond Aron aplaudia este novo estado de espírito. Tinha chegado a hora de “desafiar os profetas da redenção” e de “celebrar a chegada dos cépticos”. É verdade que esta narrativa do “ fim das ideologias” foi contestada nos anos 1960 e 1970 por teologias da libertação, hippies, guerras de libertação nacional, lutas anti-imperialistas, subculturas alternativas, cruzadas pelos direitos civis, o ativismo antiguerra, protestos feministas e várias forças sociais de uma “nova esquerda” empenhada em derrubar o “sistema” e alcançar uma total transformação do mundo moderno. O conteúdo da sonhada utopia divergia em seus detalhes, mas geralmente incluía, entre outros elementos, a eliminação de tabus sexuais, o fim da violência, o estabelecimento de uma igualdade completa, a ascensão de comunidades abrangentes de amor e de partilha e o imaginário da emancipação. Contudo, para muitos intelectuais, a suspeita de que não havia possíveis alternativas positivas para o status quo permaneceu. Movimentos utópicos seriam apenas aberrações, que em breve seriam englobados na marcha inevitável em direção a um futuro racional. Essa perspectiva receberia seu aval com a desintegração da União Soviética, cujo colapso foi visto como evidência convincente de que o previsto “fim” da história havia de fato chegado, bem como o fim das ideologias e o fim da revolução. O historiador François Furet termina o seu livro “O passado de uma ilusão” com uma frase que é testemunho de toda uma mentalidade: “Aqui estamos nós, condenados a viver no mundo tal como ele é”. “Condenados”, portanto, a não haver alternativa.

Na verdade, parecia que o mundo ocidental tinha entrado em um período de endism (ou o período dos “fins”), em que as utopias de transformação já não podiam ser imaginadas, muito menos propostas. O racionalismo burocrático e uma suposta “tecnificação da política”, ao que parecia, tinha esmagado todos os rivais; a democracia representativa saía vitoriosa e o capitalismo era o triunfador. Os conflitos tormentosos sobre os sistemas políticos e económicos (para não mencionar os espirituais), que deviam reger os assuntos humanos, haviam sido, com uma ou outra exceção, resolvidos. Este sentimento era difuso na época e manifestava-se de várias formas. Havia até um triunfalismo sobre a globalização liberal-capitalista, como um quebrar definitivo de barreiras, e de fronteiras. E os próprios Estados-nação, para alguns, poderiam desaparecer debaixo desse magma do globalismo. E isto de certa forma também se relaciona com o entusiasmo de muitos estudos na década de noventa do século passado sobre a globalização, como uma Nova Ordem Mundial, assente na expansão por todo o globo de uma “democracia cosmopolita”, como inevitável, e em benefício das relações internacionais. Em suma, o melhor dos mundos possíveis.

Aliás, a própria transformação dos partidos políticos em “máquinas” de angariação de votos, dedicados a objetivos limitados e estreitos, de curto prazo, com o único objetivo de vencer eleições, revela esta dinâmica avassaladora do pragmatismo. Ao contrario dos partidos de massa de antigamente, que eram autenticas escolas de doutrinação e refúgio espiritual, e que tinham um numero enorme de militantes, nos partidos contemporâneos a militância é cada vez menor, e guiada mais pelo interesse e carreirismo do que, francamente, pelo entusiasmo. A política, desligada cada vez mais dos grandes projetos mobilizadores de transformação da sociedade, foi-se progressivamente desencantando. Dai que a apatia, o desinteresse, e a abstenção, surjam quase como consequências naturais, e ainda sentidas, da política partidária de hoje.

E é neste contexto que a narrativa do “fim das ideologias” vai ser levada para um outro patamar, mais além: Francis Fukuyama foi o portavoz mais conhecido da ideia do “Fim da História”. Logo em 1989 ele melancolicamente observou que “o fim da história será um momento muito triste”. No entanto, a luta ideológica mundial que apelava para a ousadia, a coragem, a imaginação, a criatividade e o idealismo era uma coisa do passado. Havia sido “substituída pelo cálculo econômico, a resolução interminável de problemas técnicos, as preocupações ambientais e a satisfação das exigências dos consumidores mais sofisticados”. O seu livro chamar-se-á “O fim da História e o último Homem”. E quem é o “último Homem”? É o homem liberal. E é a sua política do pragmatismo, do real contra a abstração, da moderação, do debate razoável e racional e da gestão de interesses. Numa política que é esvaziada de antagonismo, de intensidade e de paixão. É por isso que, como nos avisa o filósofo político americano Michael Walzer, para um liberalismo que assenta a sua razão de ser na domesticação das paixões (vistas como irracionais, e abstratas) o excesso de entusiasmo na política é potencialmente subversivo, e leva facilmente ao que é visto como o inimigo mortal do liberalismo: o fanatismo, seja de esquerda, seja de direita. Não estranha portanto, que, na passagem do século XX para o século XXI o sociólogo Zygmunt Bauman reclamasse que estávamos todos a viver numa vergonhosa era “pós-ideológica” e “pós-utópica”, sem grandes projetos, exceto para o indivíduo (o centro absoluto do liberalismo), e a busca incessante do autointeresse e da felicidade individual.

Mas, quando caminhamos para a terceira década do século XXI, terá esta “acusação” razão de ser? Os movimentos sociopolíticos renunciaram mesmo aos elementos utópicos em seus modos de vida e imaginários? Não existem projetos, lúcidos ou não, de transformação da sociedade? Os “grandes” sonhos e a ousadia de imaginar, e tentar por em prática, o mundo imaginado não estarão de volta (assumindo como verdadeira a ideia improvável de que alguma vez desapareceram)? Qualquer observador, por mais desatento que esteja, sabe qual a resposta a dar a estas interrogações. A verdade é que o Zeitgest (essa palavra alemã que significa “o espírito dos tempos”) da nossa época é decididamente menos conformado, mais combativo, e acima de tudo, com uma crença difusa da insustentabilidade de muitos dos arranjos políticos, econômicos, sociais e até culturais do mundo de hoje. A mobilização popular, seja quais forem as razões, e em contextos geográficos e culturais diferentes, encontra-se em alta no mundo. Uns fazem-no para derrubar ditaduras ou regimes vistos como ilegítimos, outros para por um fim à exploração econômica das elites sobre as massas, contra a austeridade, por educação e transportes gratuitos, pela defesa da qualidade de vida ou simplesmente (e muitas vezes paralelamente) por uma nova política, uma nova democracia, uma nova sociedade. Se há pouco tempo imperava a ideia do fim, agora muitos destes grupos de contestação são galvanizados pela ideia de começo (início de novas relações políticas, sociais, humanas, e de novas experiências). Da ideia de que “não há alternativa” para as sociedades liberais-capitalistas passou-se, em muitos casos, para a ideia que não existe outra alternativa senão imaginar, e lutar, por um status quo distinto do de hoje.

O sociólogo Daniel Bell, um dos antigos defensores da ideia do “fim das ideologias”, deu uma marcha-ré no ano 2000, reconhecendo que talvez esse paradigma se tenha esgotado e que o “recomeço da história” se tenha iniciado. É sobre esta mudança de paradigma, e sobre este “recomeço”, que este dossiê encontra a sua razão de ser no início do século XXI.

A Estrutura do Dossier

Através da discussão dos seus episódios mais marcantes, das ideias, formas de pensamento, quadros mentais, ações coletivas, e propostas, assim como das suas possíveis consequências, a ideia deste dossiê é a de mapear, percorrer e dar uma visão abrangente – ainda que obviamente limitada a um número concreto de exemplos – deste ciclo global de protestos. Não há, nem pode haver uma única narrativa para capturar uma onda de protestos que é diversa, e que não obedece a um único guião. Todos os protestos dependem de contextos nacionais, e de especificidades próprias. Não há, aliás, um único movimento, mas vários que, contudo, obedecem a um mesmo fio condutor, ou seja, a ideia de protesto, e a sua rejeição do status quo através da intensa mobilização nas ruas e, também nalguns casos, através do ciberativismo. Este dossiê reflete essa ausência de uma interpretação unívoca. Optimismo e pessimismo percorrem, em igualdade, as suas páginas. Se estamos ou não numa mudança de paradigma civilizacional ainda esta por confirmar, mas os contributos deste dossiê tem em atenção tanto a influencia da hegemonia dos velhos hábitos de pensar e de fazer a política, como as novas esperanças, experiências, e quem sabe, futuras hegemonias que se avistam no horizonte.

Revoltas populares contemporâneas numa perspectiva comparada está dividido em duas partes. A primeira, constituída por seis artigos, centra-se sobre as lições mais gerais – e de vários contextos geográficos – que se podem tirar deste ciclo global de protestos. Partindo do exemplo da América do sul, Carlos de la Torre descreve a ascensão da “política das ruas”, e da ideia, cada vez mais difundida, de que a “verdadeira” democracia é direta, comunal e nos antípodas da democracia representativa. Ele descreve as dinâmicas desta visão, assim como os seus perigos. Importante também notar que este ciclo de protestos populares não é exclusivo de países com economias em queda, ou em dificuldade. Por exemplo, novas potências económicas como a Turquia e o Brasil também foram abaladas por uma massiva onda de contestação. Para Bulent Gokay e Farzana Shain, os protestos turcos de 2013 foram acima de tudo uma reivindicação de melhor qualidade de vida nos centros urbanos, contra a privatização dos espaços comunitários, num ambiente político progressivamente repressivo e antidemocrático. Muitas destas revoltas foram estudantis, tornando-se símbolos de mobilização popular, nas ruas, por um futuro diferente para a educação. No Québec, como retrata Cayley Sorochan, assistiu-se a mais longa greve estudantil na história do Canadá, com o sindicalismo estudante a clamar, através de uma greve geral, e da desobediência cívica, pelo fim do aumento dos custos da educação para os alunos. Se uma característica fundadora destes protestos global é a contraposição permanente entre o povo e as elites, a inclusão do Tea Party neste volume não deve causar estranheza. Como refere George Michael, o Tea Party procura uma renovação conservadora da cultura política americana, em termos fiscais, mas também culturais, e a sua ação coletiva, a sua política das ruas, o seu ativismo na Internet, refletem o desejo de tomar de assalto um sistema visto como injusto e não-representativo dos interesses dos “verdadeiros” americanos. De certa forma, tem-se assistido a revoltas contra o Estado. Na forma dos tumultos ingleses de 2011, por exemplo, em que a destruição, os saques, e as pilhagens são um sintoma, como escreve Daniel Briggs, de exclusão social e, ao mesmo tempo, de excessiva dependência de uma cultura de consumo como a única capaz de dar identidade a vidas sem sentido. A contestação popular também emergiu fortemente (e mediaticamente) no movimento espanhol dos Indignados, e Carlos Taibo refere que o movimento de 15 de Maio (a denominação preferida dos ativistas) criou uma nova “identidade contestatária” (primariamente anticapitalista) em Espanha assim como novas experiências de fazer política através de assembleias populares e espaços autónomos.

Já a segunda parte do dossiê foca o caso português e, numa perspectiva histórica e contemporânea, aborda as dinâmicas de contestação popular desde as ultimas décadas do século XX à segunda década do século XXI. Tiago Fernandes argumenta que a democracia portuguesa – que teve a sua origem numa revolução social – revela maiores índices de mobilização da sociedade civil (como organizações de base popular, associações e partidos) do que as democracias (como a espanhola) que resultaram de uma trajetória de reforma política. Mas também Portugal, como retratado por Guya Accornero e Pedro Ramos Pinto, conheceu um ciclo de protestos populares (e um movimento de Indignados), nomeadamente com os protestos da Geração à Rasca em 2011, que mobilizaram e depois desmobilizaram. Para estes autores, no entanto, existiram consequências no mapa político: a emergência de novos atores políticos e de possíveis colaborações entre eles e atores tradicionais na esquerda do espectro político. Finalmente, Riccardo Marchi, mostra como esse impulso revolucionário não é exclusivo da esquerda mais à esquerda, persistindo e manifestando-se também na direita radical, sobretudo na sua versão contemporânea de um nacionalismo étnico e exclusivista. Ela visa tirar partido das contradições das democracias modernas, mas, em termos eleitorais, continua sem conseguir, em Portugal, os mesmos resultados dos populismos identitários em voga noutros países europeus. O dossier fica completo com a entrevista aos historiadores António Manuel Hespanha e Ernesto Castro Leal, centrada exatamente nesse temática do “Poder e Resistência na História de Portugal: do Antigo Regime à Primeira República”, mostrando a evolução das manifestações de resistência aos poderes instituídos, assim como a sua repressão, num período histórico alargado. Finalmente, na resenha ao livro Presos Políticos e perseguidos estrangeiros na Era Vargas (Rio de Janeiro: Mauad X; Faperj), Maurício Parada, releva como seu grande mérito a sua chamada de atenção para a tradição autoritária do Estado brasileiro, que no caso da Era Vargas, se manifestou numa política acentuada de repressão da (variada) oposição.

Referências

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ARENDT, Hannah. A condição humana. Lisboa: Relógio D’Água, 2001.

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BAUMAN, Zygmunt. In search of politics. Cambridge, UK: Polity Press, 1999.

BELL, Daniel. The end of ideology: on the exhaustion of political ideas in the fifties. Revista. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2000.

CROSSMAN, Richard (Org.). 1949. The God that failed. Columbia, NY: Columbia University Press, 2001.

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FUKUYAMA, Francis. The end of history? The National Interest, n. 16, p. 3-18, Verão 1989.

FURET, François. O passado de uma ilusão: ensaio sobre a ideia comunista no século XX. Lisboa: Editorial Presença, 1996.

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PINA, Manuel António. Todas as palavras: poesia reunida. Porto: Porto Editora, 2013.

POPPER, Karl. 1947. Utopia and violence. In: Conjectures and Refutations: the growth of scientific knowledge. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1969. p. 355-363.

SOLJENITSINE, Alexandre. Arquipélago de Gulag. Tradução de Francisco A. Ferreira, Maria M. Llistó e José A. Seabra. Amadora: Bertrand, 1973.

WALZER, Michael. Politics and passion: toward a more Egalitarian Liberalism. New Haven, CT: Yale University Press, 2004.

José Pedro Zúquete – Organizador. Investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS / UL). Tem experiência na área de História Contemporânea e Ciência Política, atuando principalmente nas pesquisas sobre nacionalismo, assim como aos estudos sobre antiglobalização e geopolítica. Doutor em Política Comparada pela University of Bath, possui pós-doutoramento na Harvard University. Faz parte da rede europeia COST sobre populismo. Autor de vários artigos científicos, publicou os livros Missionary Politics in Contemporary Europe (Syracuse University Press, 2007) e The Struggle for the World (Stanford University Press, 2010). Coeditou também A vida como um filme (Leya, 2011) e Grandes Chefes na História de Portugal (Leya, 2013), além de ter colaborado na obra Dimensões do poder: história, política e relações internacionais (EdiPUCRS, 2015).

António Costa Pinto – Coorganizador. Investigador Coordenador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS / UL) e Professor Convidado no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). Doutorado pelo Instituto Universitário Europeu e Agregado pelo ISCTE. Foi Professor Convidado na Universidade de Stanford e Georgetown, Investigador Visitante na Universidade de Princeton e na Universidade da California – Berkeley. Entre 1999 e 2003 foi regularmente Professor Convidado no Institut D’Études Politiques de Paris. As suas obras têm incidido sobretudo sobre o autoritarismo e fascismo, as transições democráticas e a “justiça de transição” em Portugal e na Europa. A longevidade do Estado Novo português levou-o inicialmente ao estudo comparado dos sistemas autoritários. Mais recentemente dedicou-se ao estudo do impacto da União Europeia na Europa do Sul. Outro tema a que se tem dedicado é o das elites políticas e as mudanças de regime. É autor de dezenas de artigos em revistas académicas portuguesas e Internacionais, publicou vários livros, dentre os quais destacam-se: Os camisas azuis: Rolão Preto e o Fascismo em Portugal (EdiPUCRS, 2015).


ZÚQUETE, José Pedro; PINTO, António Costa. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 41, n. 2, jul. / dez., 2015. Acessar publicação original [DR]

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Laços Sociais, Laços Transnacionais – da construção de vínculos na história / Estudos Ibero-Americanos / 2015

Laços sociais, familiares, geracionais, de amizade; laços de grupo, laços políticos, ideológicos, laços legais e laços diplomáticos. A história se movimenta com base em conjuntos e interações, onde mesmo o herói hegeliano, ainda que guiado pelo Espírito do Mundo, encontrará sua sustentação e palco de ação no coletivo – para o próprio Hegel, no Estado (HEGEL, 2001). Nas bases de todo poder está uma coletividade, pois, como nos ensina Hannah Arendt (1970, p. 44), ninguém, nem mesmo o tirano mais absoluto, governa realmente sozinho. Da mesma forma, ideias são formadas e aperfeiçoadas em conversas, sentimentos são desenvolvidos a partir do convívio, para cada aprendizado um professor ou um modelo é necessário. O ser humano não prescinde de seu semelhante, e o estabelecimento de laços surge como um desenvolvimento natural, uma condição inerente a esse animal social.

A escrita da História, os estudos e análises de períodos, fatos e conjunturas as mais distintas apontam para o protagonismo dos laços sociais, ainda que eles sejam por vezes tomados como autoevidentes. Tomemos o caso dos laços entre jovens europeus no século XVI, quando se observa a formação daquilo que se convencionou chamar de adolescência. Essa fase da vida dos jovens adultos passa a ganhar uma nova dimensão diante da reforma dos costumes, do aumento da idade para se contrair matrimônio e da diminuição das liberações. Criam-se assim elos entre os membros dessa faixa etária, acuados que são pela nova realidade. Tais laços resultarão em uma identidade de grupo / geração com consequências sociais de longa duração, dentre as quais a identificação desses jovens com um comportamento errático, rebelde, por vezes violento, “tipicamente adolescente”, em especial entre os jovens “machos” (MUCHEMBLED, 2012). As estruturas de dominação, por sinal, costumam ser gatilhos e reforços privilegiados para a criação e manutenção de laços. É nesse sentido que, no mesmo século XVI, o “ímpeto civilizador” age pela coibição do infanticídio na difusão de um discurso e de um imaginário moralizadores, reforçando a importância dos laços maternos. Isso se mostrou uma estratégia voltada não apenas para a contenção do assassínio das proles, mas também para inculcar uma responsabilidade materna nas mulheres e perpetuar estruturas de dominação masculinas naquela sociedade (LIEBEL, 2013).

A natureza dos laços sociais, assim se verifica, está estreitamente vinculada ao desenvolvimento de sentimentos e de emoções. Não por acaso, é em torno do sentimento de empatia que Lynn Hunt (2009) vai encontrar o sentido propulsor para a redação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, talvez a tentativa mais sólida da história de pensar o laço mais primordial que nos une a todos: a natureza humana. Não se trata, é claro, de localizar no século XVIII as origens da empatia. Como Ute Frevert (2013) argumenta, a própria bíblia, na parábola do bom samaritano, já mostra não ser esse sentimento uma novidade setecentista. Entretanto, é no século XVIII que se humaniza e se discute a positividade da empatia. Não é por acaso que filósofos como Schopenhauer, já na virada do século XIX, podem pensar o humanismo em sentido amplo, com reflexos, por exemplo, nas relações entre humanos e animais1. Tais laços são fundamentados em termos éticos, e Schopenhauer (2006, p. 128 et seq.) acaba por declarar: quem faz mal a um animal não pode ser boa pessoa (könne kein guter Mensch sein).

Não por acaso, tais reflexões fornecerão aos séculos XIX e XX boa parte do combustível para novas teorias, ideologias e revoluções. Ao mesmo tempo em que se “descobrem” novos laços, os mesmos laços são responsáveis pela formatação de identidades cada vez mais fragmentadas. Com exceção dos laços generalizantes (universalismo, cosmopolitismo, humanismo), cada novo elemento que se agrega à identidade (coletiva ou individual) deixa de formar pontes para começar a criar muros cada vez maiores2. Dessa forma, laços nacionais, transnacionais, religiosos, raciais, ideológicos ou de classe assumem lugar central e cada vez maior como motores da história, levando o século XX a ser descrito, como tantas vezes o foi, o século da violência.

O dossiê que o leitor tem em mãos tenta lidar com essa estranha dicotomia existente quando pensamos os laços sociais: suas forças centrífuga e centrípeta, seus princípios agregadores e delimitadores. O mesmo laço que une pode também servir para separar, e a formação de grupos, identidades e imaginários acaba sendo seu produto mais evidente – e fonte de estudo e interpretação dos historiadores. Na composição do presente dossiê, os textos foram separados em duas seções: Laços Políticos e Laços Sociais. Ainda que elementos sociais e políticos tenham a tendência a se mesclar e se confundir, optou-se por essa distinção que privilegia o campo do político, do pensamento e da ação conjunta e institucional, das paixões e ideologias políticas, frente a temas diversos, como os laços familiares, os laços culturais e os laços corporativistas.

Abrindo o primeiro grupo de artigos, a professora Claudia Viscardi traça um importante panorama conceitual envolto às ideias de república e de democracia na primeira década do período republicano brasileiro. Período ainda conturbado, marcado pela insegurança dos próprios republicanos quanto ao sucesso do novo regime, os anos que se seguem a 1889 assistem a uma constante busca por uma nova identidade e formatação da estrutura política. Nesse contexto, a definição conceitual se torna um imperativo, e a construção e remodelação do discurso andam de mãos dadas com a própria construção das novas instituições. É nesse sentido que Viscardi toma a Constituição de 1891 como base de estudo, analisando as estruturas discursivas envoltas em sua promulgação e as subsequentes modificações e (re)interpretações conceituais que vão possibilitar a manutenção do poder das elites – em uma demonstração sutil dos muros que alguns laços podem construir – e resguardá-las de sua “demofobia”. É também a formatação – filosófica, conceitual e ideológica – do movimento fascista espanhol e do Primeiro Franquismo que é objeto de análise de Xosé Manoel Núñez Seixas. Sua abordagem, entretanto, é marcada fortemente por uma perspectiva transnacionalista, buscando vislumbrar os reflexos germânicos que despontam, entre 1930 e 1940, em terras espanholas. Os laços intelectuais, ideológicos e diplomáticos ganham espaço no texto de Seixas. É a influência da Academia alemã, da ideologia nacional-socialista e da estrutura – e propaganda – do Terceiro Reich sobre jornalistas e intelectuais conservadores espanhóis que se converte no tema central do artigo do professor galego da Universidade Ludwig-Maximilians, de Munique.

Seguindo o mote da temática das ditaduras, Augusto Nascimento toma São Tomé e Príncipe, um dos PALOP que sofreram a dominação colonial salazarista, e o jornal “A Voz de S. Tomé” como objetos de seu estudo. Mais especificamente, o autor analisa a configuração do espaço e a dinâmica da opinião pública em um país que, apesar de colonizado, encontrava-se longe, em variados sentidos, da realidade da metrópole. Longe e perto são adjetivos importantes também na leitura do texto de Maria Letícia Mazzuchi Ferreira e Francisca Ferreira Michelon, que escrevem sobre a exposição de fotografias de vítimas de ditaduras sul-americanas em acervos de museus. A distância temporal para os regimes opressivos é encurtada pela imagem, trazendo para o observador o que as autoras bem descrevem no título de sua contribuição como “cicatriz da memória”. A sensibilidade, a empatia e os laços humanos da memória se mostram elementos fundamentais na reflexão que as autoras instigam sobre as relações entre retrato e presentificação, ou, em um sentido warburguiano, sobre as relações fantasmáticas da imagem. Finalizando a primeira seção da revista, o texto de Fábio Chang de Almeida reflete sobre a nova direita política de Portugal, enfatizando seu caráter grupuscular (GRIFFIN). Tal aspecto tem uma dupla consequência em termos de laços políticos: a primeira é o caráter diminuto desses novos agrupamentos políticos extremistas, que não ganham representatividade por seu caráter massivo; a segunda é a sua capacidade extrema de comunicação (com as novas mídias sociais) e de coligação, proporcionando oportunidades para que sua influência e relevância aumentem.

A segunda seção, Laços Sociais, conta ainda com quatro artigos que focam suas análises em questões diversas dos relacionamentos interpessoais e grupais, bem como nas tramas tecidas na organização e ordenamento de diferentes campos e aspectos do tecido social. Rodrigo Ceballos, em sua contribuição, apresenta uma análise dos laços (familiares e comerciais) e das heranças deixadas pelos portugueses na região do Rio da Prata, de onde foram expulsos no século XVII. Dois séculos adiante é situada a baliza temporal fixada por Mateus Fernandes de Oliveira Almeida para analisar os laços corporativistas i.e. associativistas durante o Segundo Reinado brasileiro. O texto de Almeida, situado no grande campo da História do Trabalho, abrange o tema fundamental da identidade dos trabalhadores, a concepção de unidade e reconhecimento dentro de um métier, além da subjetividade inerente a esses laços, como a noção da moralidade e da solidariedade para com seus pares. A identidade e a solidariedade são também temas centrais do texto de Érica Sarmiento e Lená Medeiros de Menezes, que tomam o caso dos imigrantes ibéricos no Brasil da Primeira República para analisar aspectos variados da vivência na capital nacional do período. A complexidade da identidade servia, a um só tempo, para aproximar e afastar lusitanos e galegos, formando redes intrincadas de relações de apoio e de hostilidade. A condição de imigrante favorecia também, em alguns casos, a entrada no mundo dos pequenos delitos, dentre os quais as autoras destacam os jogos de azar (especialmente o jogo do bicho). Tais atividades colocam os imigrantes ibéricos na mira da polícia brasileira, revelando alguns de seus mecanismos e táticas de repressão. Finaliza a seção de artigos o texto de Daniel Melo, que também trata de aspectos identitários ao destacar, enquanto peças basilares das identidades culturais brasileira e portuguesa, as marchas populares de Lisboa e o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Em um exercício de História Comparada, aspectos transnacionais de mútua influência são destacados pelo autor, que faz ainda inferências acerca do papel dos regimes ditatoriais na configuração dessas festas.

O dossiê conta ainda com uma resenha, escrita por Rodrigo Santos de Oliveira, da obra La trama autoritária. Derechas y violência en Uruguay (1958-1966). O livro de Magdalena Broquetas é, ele também, um estudo sobre as construções de laços políticos e a atuação das alas conservadoras uruguaias até o momento anterior à implantação da ditadura militar no país. Por fim, o presente dossiê traz o lançamento de uma nova seção na EIA com a publicação de entrevista, conduzida e traduzida por Vinícius Liebel, com o professor Wolfgang Heuer, da Freie Universität Berlin (FU-Berlin). Nela o pesquisador alemão responde a perguntas pertinentes ao dossiê e a discussões historiográficas atuais, falando sobre a ascensão das direitas no mundo, movimentos contestatórios e ações coletivas e individuais no cultivo e preservação de nossa dignidade humana.

Notas

1 Sobre o processo de constituição desses laços entre homens e animais, ver: Thomas, 2010.

2 Lembremos do estudo de Norbert Elias e John Scotson (2000) que analisa, no microcosmo da cidade de Winston Parva, o lugar dos laços sociais na constituição de uma dinâmica opressora e delimitadora. Com bases na tradição e no carisma, configuram-se dois grupos essenciais de cidadãos que os autores denominam estabelecidos e outsiders. É com base nessa caracterização que toda a carga envolvida nos valores de pertencimento e de exclusão servirá ao domínio e à conservação do status quo na comunidade.

Referências

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ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na História: uma introdução geral à filosofia da História. São Paulo: Centauro, 2001.

HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.

LIEBEL, Silvia. Les Médées Modernes: la cruauté féminine d’après les canards imprimés (1574-1651). Rennes: P.U. Rennes, 2013.

MUCHEMBLED, Robert. Uma História da Violência – do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

SCHOPENHAUER, Arthur. Preisschrift über die Grundlage der Moral. Hamburg: Felix Meiner, 2006.

THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural – mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Cia. das Letras, 2010.

WARBURG, Aby. Histórias de Fantasmas para Gente Grande. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.

Equipe Editorial – Formada por: Leandro Pereira Gonçalves (editor); Charles Monteiro (editor executivo); Vinícius Liebel e Luciana da Costa de Oliveira (gestão editorial); Daniela Garces de Oliveira, Geandra Denardi Munareto e Waldemar Dalenogare Neto (assistentes editoriais).


GONÇALVES, Leandro Pereira; MONTEIRO, Charles; LIEBEL, Vinícius; OLIVEIRA, Luciana da Costa de; OLIVEIRA, Daniela Garces de; MUNARETO, Geandra Denardi; DALENOGARE NETO, Waldemar. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 41, n. 1, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]

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História, Literatura e Mito: viajantes europeus na América do Sul / Estudos Ibero-Americanos / 2012

Essa coletânea começou na cidade de Nantes, em 2009, quando surgiu a ideia de formar um grupo internacional, de caráter interdisciplinar, constituído por italianistas. A ideia foi levada adiante na Europa a partir das Universidades de Nantes e Groningen e, na América do Sul, através da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Naquela ocasião, em Nantes, realizava-se um primeiro Colóquio que discutia processos de emigração italiana. Era uma maneira formal para que estudiosos de vários países apresentassem e discutissem determinado tema. A troca de ideias entre os participantes do grupo foi sendo ampliada nos anos sucessivos e, em 2011, outro colóquio foi realizado, desta vez em Porto Alegre, quando os estudos estiveram concentrados em torno de relatos de viajantes como fontes à historiografia. Desde então, o contato permanente entre colegas de diferentes continentes permitiu que o presente livro fosse organizado com textos inéditos que também revelam, no Brasil, autores que se destacam em universidades estrangeiras. São textos que analisam diferentes olhares de viajantes, em narrativas que podem se transformar em fontes à História.

Não se trata de uma novidade temática, porque é muito antigo o uso de relatos de viajem como fontes à História. Mas a discussão sobre este uso da viagem como fonte passava por fase recessiva. Estava na hora de revisitar o assunto com outros olhos, ou seja, com os olhos do nosso presente, quando houve avanços metodológicos importantes.

Leed sublinha a importância da viagem lembrando as metáforas que suscita; em todas as latitudes essa viagem é um manancial de símbolos que podem exprimir a vida e a morte. Morte é passagem, passamento, enfim, mobilidade ou deslocamento para regiões desconhecidas. Vida é trajetória, caminho, peregrinação. Viagem, vida e morte são deslocamentos.[1]

Outro aspecto a justificar uma revisita ao tema tem a ver com o estranhamento ou distanciamento como forma de conhecer, questão que entra em debate na década de 1990, tendo como aporte fundamental o pensamento de Ginzburg. [2] O viajante, que é um estrangeiro, fornece inícios que fortalecem o paradigma ginzburguiano: tais indícios funcionam como chaves para o conhecimento de realidades. Leituras mais antigas de determinados relatos desprezaram, com frequência, minúsculas partes, por preservação de hábitos.

Ainda justificando esse retorno ao tema, lembra-se que metodologias de análise têm sido aperfeiçoadas em tempos recentes, sobretudo no âmbito da Comunicação, facilitando o trabalho de historiadores, sobretudo quando não desenvolvem formação em linguística, como é o caso dos profissionais sul-americanos. Dentre tais metodologias, destaca-se a Análise Textual Discursiva, definida como metodologia que envolve conjunto de técnicas de pesquisa, em abordagem interdisciplinar, tendo como primeiro objetivo buscar sentido ou sentidos no texto, produzir inferências.[3]

Portanto, a leitura proposta no presente volume é um convite para percorrer trajetórias de viajantes muitas vezes desconhecidos ou pouco conhecidos, à luz de novas interpretações, isto é, buscando outros significados na velha literatura de viagem, nos relatos daqueles que estranharam e que apontaram para o exótico. Essa leitura ajudará principalmente a estranhar. Trata-se de uma publicação que se tornou possível graças aos esforços realizados por dois sucessivos coordenadores do Programa de pós-graduação em História da PUCRS, Professores Doutores Helder Gordim da Silveira e Charles Monteiro, assim como pela permanente ajuda imprescindível de assessoria de Maria Cristina Fazzi Bortolini.

Os textos que compõem o volume foram analisados em termos de conteúdo e categorizados sob subtítulos que pressupõe algo em comum. No seu conjunto abordam, portanto, diferentes latitudes por diferentes ângulos, através das percepções de diferentes autores.

Assim, sob o título Olhares de Especialistas, Carla Monteiro de Souza aborda a narrativa do geógrafo norte-americano Alexander Hamilton Rice Jr (1875-1956) sobre a região do Rio Branco, descrevendo o território que viria a ser o estado brasileiro de Roraima, que visitou entre 1924 e 1925. Descrições do geógrafo italiano Agostino Codazzi sobre a Venezuela, publicadas entre 1840 e 1841, são assuntos de que tratará Maria Carmela D´Angelo. Os relatos do mineralogista e geólogo suíço Johann Von Tschudi sobre o Rio Grande do Sul, publicados em 1868, foram analisados por Martin Dreher.

A segunda parte trata das Palavras de Escritores e Jornalistas. Gabriella Romani analisa Edmondo De Amicis em Sull’Oceano (1889), livro de viagem que o autor dedicou ao tema da emigração italiana. Walter Zidarik detém-se nas cartas de Ercole Luigi Morselli à sua mãe, enviadas durante a longa viagem transoceânica que realizou, entre 1903 e 1904, quando ainda não era o escritor e dramaturgo de sucesso que viria a ser. Livros referentes a diversas viagens realizadas por SaintExupèry são analisados por Cláudia Musa Fay, na perspectiva da incipiente aviação nas décadas de 1920 e 1930. Autores-viajantes que escreveram sobre o Brasil em geral, em tempos bem diferentes, foram Friedrich Gerstäcker e Max Leclerc. A obra do primeiro, correspondente às primeiras décadas do século XIX, foi analisada por Gerson Roberto Neumann, enquanto Janete Silveira Abrão detém-se na obra de Leclerc, que corresponde aos primeiros anos do Brasil republicano.

Outra categoria estabelecida intitula-se Percepções de Músicos e Poetas. É iniciada por ensaio de Adriana Guarnieri Corazzol, trazendo ao texto memórias de músicos italianos sobre a América do Sul entre 1880 e 1920. Maria Lúcia Bastos Kern, concentra-se em dois livros do artista de vanguarda Joaquín Torres-García, escritos em 1939 e 1941, analisando percursos e particularidades dos lugares visitados entre o Velho e o Novo Mundo. Rosemary Fritsch Brum aborda “reverberações” da viagem que o futurista italiano Marinetti realizou à América Latina em 1926. Encerrando a terceira parte, Robert Ponge escreve sobre o poeta surrealista francês Benjamin Péret, que narrou o Brasil entre 1955 e 1956.

A quarta parte desse volume consiste Em Tempos de Colônia e de Reino Unido. Maria Izilda Matos analisa textos de cronistas de expedições que estiveram na Amazônia, recuperando as representações das Amazonas e do El Dorado. Paulo César Possamai analisa obras de viajantes sobre a Colônia do Sacramento, confluência entre os domínios portugueses no Brasil e os territórios espanhóis na região platina. Véra Lúcia Maciel Barroso analisa a crônica de Domingos José Marques Fernandes, enviada ao Príncipe Regente D. João, em 1804, onde expõe características do Rio Grande do Sul e propõe medidas a serem tomadas com relação ao território.

Uma quinta parte é constituída por Visões do Rio Grande do Sul. Valter Antonio Noal Filho disserta sobre os relatos do viajante milanês Enrico Ambauer, que visitou a Província em 1858. Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos detém-se na colônia, depois município de São Leopoldo, visitada e narrada por vários viajantes, entre1834 e 1906. Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, é um dos objetos de escritos do missionário belga Thomas Aquinas Schoenaers, relacionados ao período em que esteve no Rio Grande do Sul, entre 1901 e 1904; nessas terras de fronteira concentrou-se a análise de Beatriz Ana Loner e Lorena Almeida Gill. No litoral do Rio Grande do Sul está o foco do ensaio desenvolvido por Marcos Antônio Witt, que aprofunda o estudo dos textos de três viajantes que, em tempos diferentes, transitaram pela região costeira do Oceano Atlântico no extremo sul do Brasil. Vania Beatriz Merlotti Herédia analisou cartas do Frei Bruno de Gillonay, escritas quando visitava as colônias italianas no Rio Grande do Sul, com a finalidade de verificar as condições de espiritualidade nessas colônias.

Trata-se De Palavras e de Viajantes Italianos na última parte do presente volume. Tais viajantes são pouco conhecidos no Brasil e uma das intenções dos autores foi divulgar-lhes. Carla Brandalise disserta sobre a reescrita de uma história latino-americana, no período fascista, onde deveria ser reconhecido o papel imprescindível do povo italiano na formação da América Latina e a autora demonstra que, para tanto, viajantes são enviados para conhecer e relatar o continente. Núncia Santoro de Constantino analisa escritos de alguns viajantes italianos sobre o Brasil, destacando suas opiniões a respeito da imigração no país. Rejane da Silva Penna recolhe impressões de viajantes italianos sobre mulheres brasileiras, demonstrando como tais impressões auxiliam na percepção do papel feminino na sociedade. Os relatos do antropólogo Stradelli e do oficial da marinha italiana Gregório Ronca, que visitaram a Amazônia, são objeto da análise de Vittorio Cappelli. Por fim, encerrando a coletânea, apresenta-se um ensaio de Bob de Jonge, a tratar das viagens de palavras italianas para o Brasil, trazidas na bagagem de viajantes, especialmente quando são imigrantes.

Acredita-se que, com essa publicação, tenha sido possível ir além de uma re-leitura de livros de viagem, gênero extremamente difuso durante o século XIX, para realizar a divulgação de obras de viajantes pouco conhecidos e até mesmo desconhecidos. Espera-se que o dossiê seja de agradável leitura e que acrescente ao conhecimento dos leitores.

Notas

1. Richard Leed. La mente del viaggiatore: Dall´Odissea al turismo globale. Bolonha: Il Mulino, 1992. p. 36

2. GINZBURG, Carlo. Occhiacci di legno: nove riflessioni sulla distanza. Milano: Feltrinelli, 1998.

3. Leia-se MORAES, Roque e GALIAZZI, Maria do Carmo. Análise textual discursiva. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007.

Núncia Santoro de Constantino – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Walter Zidaric – Université de Nantes – França

Organizadores


CONSTANTINO, Núncia Santoro de; ZIDARIC, Walter. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 38, supl., nove., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Estado e Sociedade Civil: Ditaduras na América Latina / Estudos Ibero-Americanos / 2012

O presente Dossiê apresenta uma síntese das reflexões resultantes do diálogo estabelecido entre historiadores do Uruguai, da Argentina e do Brasil, e suas respectivas pesquisas desenvolvidas em torno do tema das Ditaduras latino-americanas e suas interfaces com o Estado e a Sociedade Civil. O diálogo desde então estabelecido entre eles proporcionou várias reflexões, das quais buscou-se uma síntese no conjunto de artigos que formam este Dossiê.

Pretendeu-se apresentar perspectivas diversas sobre alguns regimes ditatoriais que vigoraram na América Latina no século passado. Essa abertura à diversidade de interpretações que marca as pesquisas sobre o tema é percebida não apenas como decorrência da amplitude e heterogeneidade características do campo de investigações, mas sobretudo como um compromisso fundamental com o conhecimento.

O elemento central em todas as variadas análises aqui apresentadas é a abordagem histórica das relações estabelecidas entre Estado e sociedade civil naqueles contextos autoritários. Trata-se de questão chave para compreensões mais profundas dos modos pelos quais aqueles regimes foram estabelecidos, eventualmente transformados e por fim substituídos. As ditaduras passam assim a ser vistas como produtos sociais complexos, moldados por conflitos de interesses individuais e coletivos, disputas por poder, relações de forças dinâmicas, tradições autoritárias mais ou menos arraigadas, dentre outros fatores igualmente importantes.

Tal é o fio condutor a unir os diferentes artigos que compõem o dossiê ora apresentado. Nos textos, toma-se como objeto de análise determinados aspectos dos regimes ditatoriais instaurados no Uruguai, na Argentina e no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. Um balanço das mais recentes análises da historiografia uruguaia sobre o regime autoritário que vigorou naquele país entre 1973 e 1985 é apresentado por Jaime Gabriel Yaffé Espósito (Universidad de la República, Uruguai). Também abordando o caso uruguaio, Enrique Serra Padrós (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e Ananda Simões Fernandes (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul) debruçam-se sobre o tema do governo Bordaberry, avaliando o papel de setores militares em relação ao golpe de 1973. Miguel Ángel Taroncher (Universidad Nacional de Mar Del Plata, Argentina) examina a questão da opinião pública no contexto do golpe de 1966, na Argentina. Uma leitura comparativa das alianças entre civis e militares que resultaram nos golpes de Estado no Brasil e na Argentina é apresentada por Hernán Ramiro Ramírez (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil). Ainda em relação a Brasil e Argentina, mas privilegiando as relações entre imprensa e ideologia, Helder Volmar Gordim da Silveira (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil) propõe algumas reflexões sobre o modo como o diário argentino Clarín noticiou a crise política que envolveu o golpe de 1964 no Brasil. Tratando da mesma conjuntura, Jaime Valim Mansan (Ddo do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil) apresenta uma análise da atuação da Comissão Especial de Investigação Sumária instalada em maio de 1964, com objetivos repressivos, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Helder Gordim Silveira – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Miguel Ángel Taroncher – Universidad Nacional del Mar Del Plata

Organizadores


SILVEIRA, Helder Gordim; TARONCHER, Miguel Ángel. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 38, n. 1, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Bicentenário das Independências da América Latina / Estudos Ibero-Americanos / 2010

O ano de 2010 marca o bicentenário da deflagração dos movimentos pela independência na América espanhola. Um observador menos atento poderia dizer “na América Latina”, para aí incluir também o Brasil. Temos, porém, bons argumentos para dizer que o Brasil é um caso à parte, inclusive no que respeita ao seu processo de emancipação política. A propósito, para aqueles que compartilham da ideia de que a deflagração do processo de independência no Brasil pode ser datada de 1808, com a vinda da família real, as comemorações da independência no Brasil começaram efetivamente há dois anos. E com qual alarde! Esse “acontecimento histórico” foi não apenas ensejo de um sem número de atividades acadêmicas, de congressos e publicações, mas também ocupou grande espaço na mídia e na agenda de governo, ministerial e diplomática. Quem não concorda que espere por 2022!

Esse furor comemorativo não é novo, data pelo menos da década de 1980, quando a história-disciplina foi sensivelmente tocada com essa mudança de perspectiva, da história à memória. A celebração atual de acontecimentos “históricos” seminais no sentido da construção (o uso, a manipulação, o abuso) da memória sempre existiu; porém, a maneira como é feita em nossos dias, começou a ser praticada e teorizada a partir da década de 1980 pela historiografia francesa da geração do bicentenário da revolução. Para uma historiografia fortemente conservadora, muito incensada pelos historiadores brasileiros até hoje, importa menos a história (que é experiência vivida, mudança, transformação) do que a comemoração (que é memória, representação, reiteração seletiva, preservação). De modo que essa perspectiva fez-se conveniente tanto para os policy makers (vide o afã com que os agentes de Estado assumem entusiasticamente a celebração das efemérides) como para a grande mídia, que incorporou as efemérides em seu calendário – basta lembrarmos como a mídia e os governos apropriaram-se de 1808. Outro fator para o estardalhaço comemorativo é o contexto histórico em que vivemos, marcado pela mercantilização de todas as esferas e relações humanas, tornando a própria história mais uma mercadoria nas prateleiras ao acesso do grande público. As efemérides, e o que se veicula em torno delas, constituem consciências.

De modo que, nos próximos quinze anos, haverá muita comemoração aqui e acolá pela América Latina adentro e afora (posto que na Europa e nos Estados Unidos essas datas redondas também não passam em branco). E se devêssemos apontar pelo menos um aspecto positivo das efemérides diríamos que, junto com toda publicidade e uso político, elas acabam fomentando a boa reflexão acadêmica. A produção deste dossiê temático da Revista Estudos Ibero-Americanos caminha neste sentido, de acrescentar uma contribuição ao debate dos processos de independência na América Latina.

O assunto é vastíssimo e por certo que estes Organizadores não tiveram qualquer pretensão de “esgotar” o tema. Mesmo que optássemos por um recorte mais específico – por exemplo, regional –, lacunas sempre permanecerão. Por isso, definimos nossa estratégia de constituir este dossiê a partir de uma perspectiva continental, cara especialmente à historiografia brasileira, ainda carente de produção significativa e em chave comparada do processo brasileiro com o do mundo hispano-americano.

Neste dossiê “comemorativo”, motivado por uma efeméride, chama a atenção que nenhum dos ensaios reunidos tenha foco na questão da memória, mas sim da História – propriamente dita. Abre-se o volume com uma análise “ao telescópio”, em perspectiva comparada, das revoluções de Independência da América Latina, por Stefan Rinke e Frederik Schulze (Universidade Livre de Berlim). Os sucessos na Grã Colômbia são abordados por Marixa Lasso (Case Western Reserve University, EUA), a partir das questões racial e nacional. Christon Archer (Universidade de Calgary, Canadá) discute a questão das forças armadas no cenário mexicano. A região platina é contemplada em dois artigos, que depositam muita ênfase na participação popular nos movimentos de independência, escritos por Raúl O. Fradkin (Universidad Nacional de Luján e da Universidad de Buenos Aires) e Gabriel Di Meglio (Universidad de Buenos Aires-Conicet). Justo Cuño Bonito (Universidad Pablo de Olavide, Espanha) aborda aspectos do processo político em Cartagena de las Índias, a partir do julgamento de Don Governador Gabriel Torres de Velasco. Por fim, dois aspectos do caso brasileiro são oferecidos nos artigos de Luiz Geraldo Silva (UFPR), em co-autoria com João Paulo Pimenta (USP), e Valdei Lopes Araújo (UFOP). Os Organizadores assinam um balanço deste conjunto no final do volume, que traz ainda resenha da coletânea organizada por Ivana Frasquet e Andréa Slemian, De las independencias iberoamericanas a los estados nacionales (1810-1850), assinada por Alex Jacques da Costa.

Há um universo de temas relativos aos processos de independência na América Latina a serem pesquisados e debatidos e, por certo, não caberiam todos eles em um único volume. Temos aí, contudo, mais umas duas décadas para comemorar deste modo, publicando e discutindo material de ponta da historiografia. Outros dossiês temáticos virão.

Hendrik Kraay – Departamento de História Universidade de Calgary

Jurandir Malerba – Departamento de História Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Os Organizadores


KRAAY, Hendrik; MALERBA, Jurandir. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 36, n. 1, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]

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História econômica argentina / Estudos Ibero-Americanos / 2008

Industria y empresas en la Argentina, siglo XX

La historiografía sobre el sector industrial en la Argentina tiene ya una larga tradición aunque no es abundante. Destacan algunas obras generales que han pretendido presentar una visión de largo plazo del desarrollo manufacturero local; los trabajos de Adolfo Dorfman, Aldo Ferrer, Jorge Katz y Bernardo Kosacoff, y Jorge Schvarzer representan hitos de indudable valor, independientemente de sus enfoques de análisis no necesariamente convergentes.[1]

Con todo, resulta notoria la falta de interés por la problemática industrial a partir de mediados de los años setenta y hasta prácticamente el cambio de siglo. Ello fue consecuencia, en parte, de la crisis de los paradigmas estructurales y del cuestionamiento de su valor explicativo, y, en parte del mismo proceso de desindustrialización que se manifestaba en la Argentina y otros países latinoamericanos. La escasa institucionalización académica de esa área de estudios ha sido quizás también uno de los factores que impidieron un mayor desarrollo.

En la última década una serie de investigaciones históricas ha logrado reinsertar la discusión sobre las características que asumió el sector manufacturero principalmente durante el período denominado “industrialización por sustitución de importaciones” (ISI), entre 1930 y 1976. Esta renovación historiográfica ha permitido focalizar en períodos específicos y contribuir desde nuevos relevamientos empíricos a matizar y, en algunos casos, a rebatir parte de las consideraciones más generales que sobre el sector habían brindado las interpretaciones estructurales o de largo plazo. En efecto, novedosos estudios sobre la industria e instrumentos de la política industrial durante el peronismo llamaron la atención sobre lo escaso que era el conocimiento sobre uno de los momentos más emblemáticos de la política argentina, identificado con la “era de las manufacturas”.[2] Otros períodos, en particular la maduración de la ISI hacia los años sesenta y primeros setenta, han sido menos “revisados”, no obstante allí también despuntan algunas indagaciones promisorias. Por ejemplo, recientemente se han abordado los mecanismos que la intervención estatal tuvo para promover grandes emprendimientos industriales que se ubicarían en la cúpula de la elite empresaria local, si bien esta era una línea de investigación ya presente en los años ochenta y noventa.[3]

Más descuidado ha resultado el estudio del sector manufacturero para el período previo al surgimiento de políticas industriales en la década de 1940, precisamente sobre la etapa en la que cierta renovación de los años setenta había indagado más. No obstante, nuevas líneas de investigación pueden encontrarse en los últimos años, referidas a problemáticas novedosas como el consumo, el mercado de capitales o vinculadas a temáticas ya antiguas como la inversión extranjera en el sector.[4]

Pese a estos avances, la carencia de análisis sectoriales es significativa en la literatura especializada argentina. Prácticamente no hay estudios de largo plazo sobre ramas o actividades específicas que permitan una revisión desde esa perspectiva de las problemáticas más generales de la industria. Significativamente, la renovación más importante del campo de la historia de la industria en la Argentina ha provenido desde la historiografía de empresas. En efecto, la efervescencia de esta disciplina en los últimos años ha permitido un notable enriquecimiento de los enfoques y de los saberes heredados respecto al sector industrial. Dado que la historia de empresas se focalizó principalmente en compañías y conglomerados manufactureros, el análisis micro permitió incluir temas relacionados a las estrategias empresariales en torno a la incorporación de tecnología, la necesidad de integración, el desarrollo de una red de proveedores o la capacitación de mano de obra, independientemente de los mecanismos específicos de gestión.[5] La perspectiva también insufló nuevos aires para la revisión de las políticas estatales respecto al sector, de la importancia de los entornos macroeconómicos y de las relaciones intrasectoriales.[6]

Este dossier se propone contribuir al estudio del sector manufacturero argentino desde las dos perspectivas mencionadas. Por una lado presentamos algunos estudios sectoriales que prestan atención a su vez a la dinámicas empresariales; y por otro un conjunto de estudios que focalizan en las trayectorias de empresas industriales pero que no descuidan su inserción dentro del conjunto de la rama o actividad empresarial; ambas dimensiones de análisis se entrelazan con las políticas industriales desarrolladas. La selección de estos estudios no es caprichosa; ellos cubren, un espacio temporal amplio, el transcurso del siglo XX, y variadas experiencias del sector manufacturero (algunas actividades “vegetativas”, características de los primeros años de industrialización, y otras “dinámicas”, propias de la maduración del sector) con el propósito de aportar a una visión más estilizada de la trayectoria del conjunto.

Los primeros tres trabajos recorren actividades tradicionales de la industria argentina en las primera mitad del siglo XX. Las artes gráficas, la industria textil y la producción tabacalera constituyen sectores de larga trayectoria y pueden considerarse “pioneros” en el avance de la sustitución de importaciones, aún durante la vigencia del modelo de extraversión económica que predominó hasta los años treinta.

El artículo de Silvia Badoza analiza el proceso de integración de la Compañía General de Fósforos, una de las más grandes empresas locales en las primeras décadas del siglo XX. Esta empresa avanzó en su proceso de integración hacia la actividad gráfica inicialmente con el propósito de garantizar la provisión de insumos a su producción principal. La autora presenta un estudio de la rama industrial de artes gráficas primero para focalizarse luego en las estrategias empresariales que tendieron a una integración vertical y a la diversificación productiva. El análisis de los ciclos de inversiones permite identificar una fuerte apuesta productiva con el propósito de adquirir un lugar preponderante en el mercado gráfico, una estrategia que resultó exitosa y abrió toda una nueva línea de oportunidades de negocios.

Claudio Belini nos presenta un estudio del sector textil para un período clave en la historia de la industria argentina que comprende la década de 1920 y los primeros años de la Gran Depresión. Discutiendo algunas de las hipótesis más tradicionales sobre el sector, el autor sostiene que antes de los años treinta se observaron progresos en la sustitución de importaciones. Esos avances fueron notorios tanto en la industria lanera como en la fabricación de tejidos de seda artificial, que logró abastecer niveles significativos de la demanda interna. El análisis de la evolución de la rama se completa con un estudio de los principales instrumentos de política económica que afectaron el desempeño de esa industria, en particular del régimen de tarifas aduanero.

El estudio de Noemí Girbal-Blacha aborda también un sector de consumo masivo y tradicional de la industria argentina, pero significativamente muy poco investigado. La autora entrelaza el análisis del sector con las políticas estatales de protección y las características del mercado; allí destacaban unas pocas grandes empresas y una gran cantidad de productores de materia prima, cuyas demandas frente a los poderes públicos no eran necesariamente coincidentes. El análisis de la industria tabacalera en la Argentina, antes y después de la crisis de los años treinta, permite además incorporar la dimensión regional, descuidada en la literatura especializada, salvo las honrosas excepciones de la producción azucarera o vitivinícola.

Los cuatro trabajos siguientes avanzan temporalmente sobre la última mitad del siglo XX, y recorren actividades industriales vinculadas a lo que se ha denominado la “segunda fase” del proceso ISI. En estos trabajos las políticas públicas de promoción, que han desbordado ya sobradamente la aplicación de pautas arancelarias, adquieren especial relevancia para entender el desempeño productivo de sectores manufactureros enteros y de algunas empresas en particular. Algunos sectores productivos más complejos como la siderurgia, automotriz, química y petroquímica son analizadas aquí combinando la perspectiva de la rama con los estudios de empresas y de las políticas estatales.

El estudio de Marcelo Rougier focaliza en el desempeño productivo de SIAT una empresa del grupo Di Tella creada para fabricar tubos de acero durante los años peronistas. El autor analiza cómo las demandas del sector público en el área de infraestructura estimularon la instalación de la planta y condicionaron luego las estrategias empresariales. El desempeño productivo y el proceso de diversificación que ensaya la firma a partir de los años cincuenta constituyen un resultado de ese vínculo estrecho con el estado que, a su vez, permitió un significativo avance de la sustitución de importaciones en rubros básicos y más intensivos en capital. Adicionalmente, el trabajo presenta información que permite avanzar hacia una mayor comprensión de las políticas industriales durante el peronismo.

Valeria Ianni aborda la instalación y desarrollo de las empresas transnacionales que protagonizaron la fuerte expansión de la rama automotriz en Argentina a comienzo de los años sesenta. La autora destaca el desarrollo de tramas productivas y los eslabonamientos multiplicadores sobre otros sectores industriales de esa implantación, así como una modernización del proceso productivo y de gestión que esas empresas provocaron sobre la estructura industrial local. No obstante, también señala los límites de la experiencia que, en palabras de Ianni, reprodujo el desarrollo desigual en lugar de lograr homogeneizar las condiciones de producción. Un proceso que en definitiva estaba condicionado fuertemente por las estrategias de las empresas transnacionales y dejaba escaso margen de acción a las políticas de promoción locales.

El artículo de Juan Odisio explora un caso específico de promoción industrial en el segundo lustro de los años setenta, cuando el estado, a través de distintos mecanismos, pretendió impulsar algunos grandes proyectos en la producción de insumos básicos, a la vez que favorecer la desconcentración regional. El trabajo estudia en particular la conformación del complejo industrial de Petroquímica Bahía Blanca y desentraña el entramado específico que permitió, luego de numerosos avatares, la consolidación de ese polo industrial en el sur de la Provincia de Buenos Aires. Odisio destaca, asimismo, los problemas que tuvo el estado en el desarrollo industrial, tanto en su faz empresarial como en la de promotor del surgimiento y consolidación de empresas privadas.

Finalmente, el trabajo de Graciela Pampin también recala en un caso particular de promoción industrial y regional, aunque mucho menos exitoso que el anterior. Se trata de la empresa Alpat SA, destinada a producir soda solvay, un insumo clave para vastos sectores industriales. El proyecto fue promovido por el estado a fines de los años sesenta y encarado por empresarios privados con fuerte asistencia crediticia pública. Sin embargo, jaqueada por los cambiantes marcos institucionales y legales, la empresa no entró en producción hasta entrado el siglo XXI. El caso ilustra no sólo la falta de coherencia del sector público a la hora de impulsar un proyecto industrial, si no también el nocivo comportamiento empresarial en esas condiciones.

Si bien la fragmentación y la heterogeneidad predominan aun en los estudios industriales y empresariales en la Argentina, el resultado de estas investigaciones que se presentan en conjunto es sin duda alentador. No sólo porque se trata de estudios novedosos en sectores y espacios temporales poco explorados, sino porque sus aportes permiten rediscutir varias de las hipótesis más tradicionales heredades de la literatura especializada. La incipiente renovación de la historia industrial, que se evidencia también en la profusa utilización de fuentes primarias y secundarias prácticamente ausente en los estudios generales, alienta a esperar prontamente nuevas síntesis superadoras en este campo historiográfico.

Notas

1. Dorfman, Adolfo. Historia de la industria argentina. Buenos Aires: Solar, 1970; Ferrer, Aldo. El devenir de una ilusión. Buenos Aires: Sudamericana, 1989; Katz, Jorge y Kosacoff, Bernardo. El proceso de industrialización en la Argentina. Buenos Aires: CEAL, 1989; Schvarzer, Jorge. La industria que supimos conseguir. Buenos Aires: Planeta, 1996.

2. Véase por ejemplo Rougier, Marcelo. La política crediticia del Banco Industrial durante el peronismo. Buenos Aires: CEEED, 2001; Girbal-Blacha, Noemí. Mitos, paradojas y realidades en la Argentina peronista (1946-1955). Bernal: UnQui, 2004; y Belini, Claudio. La industria durante el primer peronismo (1946-1955). Tesis de doctorado, Buenos Aires: UBA, 2004.

3. Por ejemplo, Rougier, Marcelo. Industria, finanzas e instituciones. La experiencia del Banco Nacional de Desarrollo. Bernal: UnQui, 2004; y Castellani, Ana. La ampliación del complejo económico estatal-privado y su incidencia sobre el perfil de la cúpula empresaria. Argentina 1966-1975. H-industri@, año 2, n. 2, primer semestre, Buenos Aires, 2008.

4. Véase, entre otros, Rocchi, Fernando. Consumir es un placer: la industria y la expansión de la demanda a la vuelta del siglo pasado. Desarrollo Económico, n. 148, enero-marzo de 1998; y Pineda, Yovanna. Sources of Finance and Reputation. Merchants Finance Groups in Argentine Industrialization, 1890-1930. Latin American Research Review, n. 2, 2006.

5. Véanse principalmente Kosacoff, Bernardo, y otros. Globalizar desde Latinoamérica. El caso Arcor. Bogotá: Mc Graw Hill, 2001; Gilbert, Jorge. Empresario y empresa en la Argentina Moderna. El Grupo Tornquist, 1873-1930. DT n. 27, Buenos Aires: UDESA; Castro, Claudio. Política industria y empresa. El fracaso de Propulsora como polo siderúrgico integrado, 1958-1976. Anuario del CEH “Profesor Carlos Segreti”, n. 5, Córdoba, 2005; Rougier, Marcelo y Schvarzer, Jorge. Las grandes empresas no mueren de pie. El (o)caso de SIAM. Buenos Aires: Norma, 2006.

6. Véanse como ejemplo los trabajos incluidos en Rougier, Marcelo (dir.). Políticas de promoción y estrategias empresariales en la Argentina. Buenos Aires: Ediciones Cooperativas, 2007.

Marcelo Rougier.


ROUGIER, Marcelo. Presentación. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v.34, n.2, dez., 2008. Acessar publicação original [DR]

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História, tempo e memória / Estudos Ibero-Americanos / 2006

Colocamos à disposição dos leitores um número especial de Estudos Ibero-Americanos que trata de História, tempo e memória. Esses temas representam um domínio de estudos muito vasto em que se interceptam diferentes caminhos de análise, isto é, situa-se no cruzamento de diversas vias da pesquisa histórica. A história das idéias, como uma via de pesquisa, permite observar a ressonância da propagação das idéias sobre o tempo e a memória na cultura ocidental. Embora as perguntas sobre essas questões se constituam como complexidades perenes, a forma de respondê-las vem se modificando sem, no entanto, haver respostas conclusivas, o que permite novas pesquisas. Ao “aproximar” o passado e o presente, as experiências existentes no âmbito acadêmico possibilitaram realizar, no Programa de Pós-Graduação em História, um ciclo de conferências sobre História, tempo e memória objetivando ampliar a discussão que embora povoe desde um passado bastante distante os debates, o mesmo se presentifica e se torna cada vez mais importante para os historiadores.

Os artigos reunidos neste volume cruzam diversas perspectivas, apresentam olhares vários, propõem maneiras diferentes de analisar e de compreender o encontro entre o texto e seus autores. Fernando Catroga, através da história dos conceitos, propõe investigar a idéia de História como mestra da vida, desde os seus primórdios com Cícero – historia magistra vitae – até o mundo contemporâneo, quando a História passa por uma crise de sentido, crise que legitima a pergunta pela História como mestra da vida. Wolfgang Heuer relata a utilização da memória pela História e nos remete à questão da confiabilidade, e, com isso, “ao voto de confiança” (Ricoeur) à testemunha. Em contraste com as formas usuais de tentar impedir ou impor a memória, o interesse público contemporâneo por depoimentos pessoais tem levado a vários casos de falsificação da memória, entre os quais o mais famoso é a história de “Wilkomirski”. O artigo se dedica às formas atuais de auto-vitimização, procurando entender por que a maioria dos historiadores falhou em reconhecer a falsificação, por que mentir traz mais vantagens do que dizer a verdade, e qual a função do julgamento crítico como pré-requisito para a confiabilidade. Marion Brepohl de Magalhães apresenta uma proposta de refletir sobre o papel da memória e da História em nossa cultura contemporânea, através de uma aproximação ao pensamento de Hannah Arendt e de Walter Benjamin. Salo de Carvalho avalia as práticas punitivas como mnemotécnicas, aproximando a perspectiva filosófica de Nietzsche e a teoria agnóstica da pena. A hipótese desenvolvida na investigação é de que a ritualização e institucionalização dos castigos, através dos primitivos procedimentos penais, atuam como mecanismos de manutenção da memória dos delitos, da “culpa moral” e do “sentimento de dever”. Carlos Henrique Armani traz um estudo ao pensamento de alguns intelectuais que viveram durante a Primeira Guerra Mundial e testemunharam um período histórico profundamente conturbado pela violência e morte – a experiência da temporalidade. Marçal de Menezes Paredes focaliza a polêmica entre dois intelectuais que marcaram a cena cultural luso-brasileira: Silvio Romero e Teófilo Braga. O estudo da intensidade, abrangência e extensão dessa polêmica possibilita o delineamento dos termos nos quais se davam as trocas, debates e críticas culturais entre Brasil e Portugal no final do século XIX, além de possibilitar uma reflexão sobre a dimensão escalar da nação como critério histórico utilizado na compreensão de interfaces culturais, imagens que funcionam como instrumentos taxonômicos de memórias nacionais.

Ruth M. Chittó Gauer – Organizadora

GAUER, Ruth M. Chittó. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, Edição Especial, v.32, n. 2, 2006. Acessar publicação original [DR]

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Relações internacionais / Estudos Ibero-Americanos / 2008

SILVEIRA Helder Gordim da (Org d), RECKZIEGEL Ana Luiza Setti (Org d), SVARTMANN Eduardo Munhoz (Org d), Relações internacionais / Estudos Ibero-Americanos / 2008, Relações Internacionais (d), Estudos Ibero-Americanos (EId)

Apresentamos neste número de Estudos Ibero-Americanos um dossiê reunindo artigos de autores brasileiros, uruguaios e argentinos acerca das relações internacionais e políticas externas destes países nos contextos hemisférico e global.

Os artigos privilegiam os campos econômico, político e estratégico daquelas relações, vistas em cenários bilaterais e multilaterais, envolvendo, direta ou indiretamente, a inserção da sub-região sul-americana na sociedade internacional, em diferentes conjunturas históricas nos séculos XIX e XX, e considerando o papel desempenhado pelos centros hegemônicos britânico e norte-americano naquelas conjunturas.

As temáticas variam de abordagens teóricas e conceituais gerais a análises de aspectos históricos específicos, os quais, entretanto, nunca deixam de ser notavelmente elucidativos ao representarem a concretização de tendências históricas conjunturais e mesmo estruturais da inserção internacional do Brasil, da Argentina, do Uruguai e dos demais países da sub-região.

Desejamos a todos uma excelente leitura.

Helder Gordim da Silveira

Ana Luiza Setti Reckziegel

Eduardo Munhoz Svartmann

Organizadores desta edição


SILVEIRA, Helder Gordim da; RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti; SVARTMANN, Eduardo Munhoz. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v.34, n. 1, jun., 2008. Acessar publicação original [DR]

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Imagens da modernidade: arte, fotografia e tecnologia / Estudos Ibero-Americanos / 2005

O presente número da revista Estudos Ibero-Americanos tem em vista publicar uma série de ensaios que focalizam as “Imagens da modernidade: arte, fotografia e tecnologia”. Os autores analisam a imagem a partir de diferentes olhares, considerando a modernidade, as ideologias do modernismo, as práticas culturais e os avanços científicos e tecnológicos como fios condutores dos processos de interpretação das mesmas. Como esses ensaios são efetuadas por historiadores da arte e da cultura, as imagens são tratadas não apenas por suas representações enquanto fenômenos positivos, mas levando em conta os seus aspectos estéticos e os diálogos que os artistas estabelecem entre si ou entre distintas categorias artísticas, em diferentes momentos históricos. Os diálogos entre pintores ou destes com fotógrafos e a cultura visual em geral fornecem também outros subsídios para a interpretação das imagens e suscitam novas questões. Fora esses aspectos de caráter metodológico assinalados, os estudiosos têm ainda o objetivo de considerar a espacialidade e a temporalidade da imagem, fazendo conexões com fenômenos próprios ao momento em que ela foi concebida e com outros tempos históricos com os quais ela se relaciona.

A imagem na arte moderna exige do historiador um longo processo de reflexão a respeito das questões internas e externas à mesma, visto que essa é resultante de múltiplos saberes, nos quais se confrontam, de forma interdependente, diferentes campos de conhecimento, o imaginário do artista, a cultura visual e as práticas próprias da sociedade em que ele vive. As imagens da modernidade são fecundas, pois evidenciam as suas mudanças de estatuto, bem como expressam as teorias com as quais elas são produzidas. Com isto, elas são resultantes do cruzamento de vários domínios do saber do mundo moderno, associados à memória, ao imaginário, à sensibilidade, às convicções pessoais e práticas culturais.

A inserção da fotografia no elenco de ensaios tem a finalidade de explicitar a sua importância na contemporaneidade, o impacto tecnológico exercido e a construção de novas percepções de mundo que esta evidencia, sobretudo, a partir da sua produção mecânica no século XIX e, mais recentemente, com a imagem numérica. Com isto, visa-se destacar a importância da cultura visual como fator significativo a ser considerado no processo de interpretação da imagem pelo historiador. Conforme Jean-Claude Schimit, todas as imagens interessam ao pesquisador, pois todas têm razão de ser, exprimem e comunicam sentidos, são dotadas de valores simbólicos e se prestam aos mais distintos usos.1

Este número da revista apresenta ensaios mais teóricos relativos à tradição / modernidade das imagens pictórica e fotográfica e a outros estudos que se pautam em análises de casos, que se estendem da pintura à arquitetura. Eles fogem das metodologias tradicionais da História da Arte, que trabalhou durante muito tempo com abordagens idealista, formalista e positiva, trazendo novos enfoques e problemáticas, bem como da História Cultural que identificou a imagem enquanto documento visual enquanto representação do real.

Nota

1. POIRRER, Philippe. Les enjeux de l’histoire culturelle. Paris: Seuil, 2004. p. 310.

Maria Lúcia Bastos Kern – Professora Doutora.

Cláudia Musa Fay – Professora Doutora.

Coordenadoras


KERN, Maria Lúcia Bastos; FAY, Cláudia Musa. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v.31, n.2, dez., 2005. Acessar publicação original [DR]

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História comparada / Estudos Ibero-Americanos / 2003

Conforme anunciado, estamos entregando um número de Estudos Ibero-Americanos dedicado ao tema “história comparada”. Ficamos satisfeitos com a resposta ao nosso convite. Como os leitores poderão verificar, a compreensão do que seja e a prática da comparação são bastante diferentes de autor para autor.

Ao contrário da tradição desta revista de publicar número reduzido de artigos de caráter teórico-metodológico e de fazê-lo nas páginas finais, iniciamos, desta vez, com dois artigos teóricos, para depois passarmos aos textos mais empíricos. Nesta segunda parte adotamos o critério cronológico, de forma que os artigos que tratam de temas mais recentes ficaram para as páginas finais – sem que nisso esteja embutido qualquer julgamento sobre a qualidade dos respectivos artigos.

Mais uma vez – como já aconteceu no número anterior – gostaríamos de destacar que está abaixo do desejável a oferta de textos para a seção “resenhas”. Esperamos que isso mude.

Cabe também destacar que a revista está aberta a sugestões para temas ou até a publicação de conjuntos de textos produzidos em eventos temáticos. Claro que essa situação dependerá de negociações, mas não está excluída. O objetivo sempre foi – e continua sendo – o de servir à Ciência História no terreno específico dos estudos do mundo ibero-americano.

Esperamos que os leitores tirem algum proveito dessa nova edição de Estudos Ibero-Americanos.

René E. Gertz


GERTZ, René Ernaini. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v.29, n.2, dez., 2003. Acessar publicação original [DR]

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Estudos Ibero-Americanos | PUC-RS | 1975

Estudos Ibero Americanos 2 História Pública

Fundada e idealizada pelo professor Braz Augusto Aquino Brancato, a Revista Estudos Ibero-Americanos (Porto Alegre, 1975-) integra-se ao projeto do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História, organizado em 1973 e em funcionamento desde 1974 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

É um periódico destinado ao público acadêmico tanto da área de História como das Ciências Humanas em geral.

Periodicidade semestral

Acesso livre

ISSN 0101-4064 (Impresso)

ISSN 1980-864X (Online)

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