Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas – KOCH (RED)

KOCH, Ingedore Villaça. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Contexto, 2015. 173 p. Resenha de: SEARA, Isabel Roboredo. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2016.

Introdução à linguística textual: Trajetória e grandes temas é o livro mais recente de uma das figuras incontornáveis da Linguística brasileira: Ingedore Villaça Koch. Essa obra pioneira teve sua primeira edição em 2004, publicada pela editora Martins Fontes. A edição atual, de 2015 (Contexto), foi revista e reformulada.

Nela a autora partilha, com todo o seu vasto público-leitor, a sua concepção de Linguística Textual, assumindo uma postura científica distante das gramáticas tradicionais e perscrutando, de forma inovadora, os contributos das ciências cognitivas e sociais para a fixação deste novo campo disciplinar. Koch procede a uma resenha dos principais trabalhos mundiais que estão na base desta nova ciência, evidenciando como, ao longo das últimas décadas, têm sido várias as concepções de texto e como estas têm repercutido na evolução dessa disciplina linguística, que se iniciou a partir de uma perspectiva de base gramatical, passando posteriormente por uma abordagem discursivo-pragmática, até se ancorar, nos dias de hoje, numa dinâmica sociocognitivista e interacional.

A obra divide-se em duas grandes partes: na primeira, a autora traça o panorama da trajetória da Linguística Textual, detendo-se principalmente em análises interfrásicas e gramaticais do texto (nomeadamente a visão da pura gramática de texto e a visão semântica), para expor detalhadamente a virada pragmática e, posteriormente, a sociocognitivo-interacionista. Nessa parte inaugural, ela aborda ainda os princípios da construção textual de sentido, designadamente os processos de construção da coesão textual do sentido e da coerência.

Na parte II, a linguista aborda os principais objetos de estudo da disciplina: referenciação; formas de articulação textual; estratégias textual-discursivas de construção do sentido; marcas de articulação na progressão textual; a intertextualidade e, por fim, os géneros do discurso.

Essas duas partes capitais da obra situam-se, naturalmente, entre a introdução e a conclusão, que merecem uma atenção especial, na medida em que, diferentemente da maior parte dos manuais de Linguística, que apresentam nesses itens de abertura e fechamento simples apresentações e resumos do explanado, em Introdução à linguística textual: Trajetória e grandes temas, isso não acontece.

Na Introdução, Koch desperta e cativa a nossa atenção ao enunciar algumas perguntas muitíssimo pertinentes que atestam o lugar e o papel da Linguística Textual, comprometendo-se a esclarecer ao longo do texto a centralidade dessa ciência ou teoria da linguagem, que a autora prognostica encontrar-se numa fase de inegável consolidação. Na sequência desse desafio que nos é colocado, procede à recensão das várias concepções de texto que, ao longo dos tempos, fundamentaram os estudos de Linguística Textual, elencando, desde logo, a sua evolução por décadas e anotando, a par e passo, os nomes cimeiros, quer da Linguística europeia, quer da Linguística brasileira, que contribuíram para a evolução da análise transfrásica e gramatical do texto para o processamento de base sociognitiva e interaccional.

Na Parte I, intitulada Análises Interfrásicas e Gramáticas de Texto, traça-se a fase inicial da Linguística Textual, cujos contributos pioneiros datam da segunda metade da década de 60 do século passado até aproximadamente à década de 70, em que a atenção era privilegiadamente dada aos mecanismos interfrásicos, de cunho gerativista, estruturalista e funcionalista, em que o texto era entendido como uma sucessão de unidades linguísticas, constituídas mediante uma concatenação pronominal ininterrupta. São referidos, a esse propósito, os contributos de Halliday & Hasan (Cohesion in Spoken and Written English. London: Longman, 1976), sobre os processos correferenciais anafóricos e catafóricos, e dos linguistas alemães Isenberg (Der Begriff “Text”. In: der Sprachteorie. ASG- Beritch, n. 8 Berlim, 1968) e Vater (Determinantien. Trier: Laut, 1979), sobre anáforas de tipo associativo, que se limitavam, porém, a porções textuais de maior ou menor dimensão, sem ousarem outros avanços. Nessa fase titubeante da Linguística Textual surgiu a necessidade de elaboração de gramáticas textuais, à semelhança das já existentes gramáticas de frase, a partir do pressuposto de que existe uma competência textual para além da competência linguística, de base chomskiana. A virtualidade desse novo olhar foi a de encarar o texto como uma unidade linguística hierarquicamente superior (ou mais elevada, nas palavras da autora). Em prol dessa perspetiva surgiram as gramáticas textuais de Weinrich (Tempus: besprochene und ezahtle Welt. Sttütgart: Koklhammer, 1964. [1971: edição modificada]), Petofi(Zu einer Grammatischen Theorie spralischer texte. LiLi, ano 2, fas.5, 1973, p.31-58) e Van Dijk (Some Aspects of Textgrammars. The Hague: Mouton,1972).

A essa primeira fase seguiu-se a abordagem semântica, em que se defendia que apenas à semântica do texto cabia explicar a estrutura dos significado de um texto e as relações de sentido, tendo sido esses pressupostos amplamente desenvolvidos por Dressler (Einführung in die Textlinguistik. Tübingen: Niemeyer, 1972), Charolles (Introduction aux problèmes de la cohérence des textes. Langue Française, 38, 1978, p.7-41) que, em 1978, apresenta as macrorregras de coerência textual, e Fillmore (The Case for Case. In: BACH, E. & HARMS, R.T. (eds.). Universals in Linguistic Theory. New York: Rinehart & Winston, 1968, p.1-88.1969), entre outros.

Todavia, a partir da metade da década de 1970, a perspectiva pragmática acaba por se impor a partir quer das teorias de base comunicativa, quer a partir dos postulados da teoria dos atos de fala e da teoria da atividade verbal, subscrevendo-se com esse novo olhar a necessidade de encarar o texto como produto de uma atividade mais complexa, como instrumento de realização de intenções comunicativas e sociais do falante, tal como foi preconizado nomeadamente por Heinemann, em 1982. São realçados os contributos de alguns linguistas europeus: do linguista alemão Wunderlich, subscritor da Teoria da Atividade Verbal, que introduziu uma série de questões de cariz enunciativo, particularmente o conceito de dêixis; de Isenberg (Einige Grundbegriffe für eine linguistische Textherorie. In: DANÉS, F. & VIEHWEGER, D. (eds.). Probleme der textgrammatik. Berlim: Akademic Verlag, 1976, p.47-146), que defende a importância dos planos de texto e dos propósitos comunicativos; de Schmidt (Textheorie. Probleme einer Linguistik der sprachichen Kommunication. München: Fink, 1973) que, por seu turno, sublinha a necessidade de entender o texto na sua dimensão sociocomunicativa; as ideias subscritas por Heinemann&Viehweger (Textlinguistik: eine Einführung. Tübingen: Niemeyer, 1991), que se centram no conceito pragmático de “ação verbal” e que alicerçam a ideia do texto como resultado de um processo de comunicação; e, por fim, van Dijk que, nomeadamente na sua obra Studies in the Pragmatics of Discourse (Studies in the Pragmatics of Discourse. Berlim: Mouton 1981) e em outras posteriores, subscreve a necessidade de ter em linha de conta “as relações funcionais do discurso” que estão na base da coerência pragmática.

Seguindo esta démarche cronológica, segue-se a apresentação da virada cognitivista que ocorre na década de 80, em que se entende que todo texto passa a ser considerado como resultado de operações mentais, sendo fundamental para sedimentar essa ideia a obra de Beaugrande e Dressler (Einfhrung in die Textlinguistik. Tübingen: Niemeyer, 1981), que postulam essa multiplicidade de operações cognitivas interligadas que subjazem à elaboração e produção textuais. A novidade dessa abordagem reside, pois, na percepção de que o processamento textual é estratégico e não é indissociável das características dos usuários da língua e do conhecimento episódico e enciclopédico que convocam na construção textual. As estratégias interacionais afirmam-se, nesse sentido, como estratégias socioculturalmente determinadas, com o objetivo do sucesso da interação verbal, destacando-se as estratégias de preservação das faces, que envolvem o uso de formas de atenuação e de polidez, entre outras.

Na sequência dessa visão, surge a perspectiva sociocognitivo-interacionista, com base na interiorização de que os processos cognitivos não são exclusivamente individuais, mas concomitantemente sociais. Essa ideia foi, de resto, subscrita amplamente por Koch em trabalho conjunto anterior (Koch, I. e Lima, M. Sócio-cognitivismo. In: MUSSALIN, F. & BENTES, A.C. Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos, filosóficos e modelos de análise. São Paulo: Cortez, 2004) que, defendendo a abordagem interacionista, considera as ações verbais como “engajamento” em contextos sociais, com finalidades sociais e com papéis distribuídos socialmente, reforçando a dimensão sociointeracionista da linguagem.

No último capítulo da I Parte da obra, a autora procede, com todo o rigor, a uma recensão dos princípios de construção textual do sentido a partir da obra de Beaugrande e Dressler (1981), explicitando o conceito de coesão textual e ilustrando com exemplos significativos de elementos que podem ter, no texto, função coesiva. A autora explicita igualmente os conceitos de coerência, situacionalidade, informatividade, intertextualidade, intencionalidade, aceitabilidade que estão presentes nas postulações de Beaugrande & Dressler para, em seguida, os poder questionar, criticando, por exemplo, a separação tecida pelos autores entre fatores centrados no texto e no usuário e defendendo a introdução de outros fatores. Subscreve, a partir de Marcuschi (Linguística do texto: o que é e como se faz. Recife: Universidade Federal de Pernambuco. Série Debates 1, 1983), a introdução de “fatores de contextualização”, que contribuem para a ancoragem do texto em determinada situação comunicativa. Apresenta, por outro lado, os conceitos de consistência e relevância, a partir dos trabalhos de Giora (Segmentation and Segment Cohesion: on the Thematic Organization of Text. Text, 3 (2), 1983, p.155-181) e acrescenta a relevância do conceito de “focalização”, que a autora trabalhou em estudo conjunto desenvolvido com Travaglia (A coerência textual. São Paulo: Contexto, 1987) para subscrever que, na abordagem sociocognitiva e interacionista, a coerência deve ser encarada como uma construção “situada” dos interlocutores.

Na Parte II, o leitor depara-se com a explicitação detalhada dos conceitos anteriormente abordados, sendo agora explanados com a clareza e a sabedoria que advêm da longa e marcante experiência docente de Ingedore Villaça Koch, convocando, por isso, par e passo, exemplos pertinentes que, seguindo com fidelidade os conselhos da retórica clássica, prendem a atenção do leitor.

Detém-se primeiramente na referenciação como atividade discursiva, tema que, de resto, foi amplamente trabalhado por Koch e Marcuschi em múltiplos trabalhos e que se sustenta na ideia-chave de que a discursivização ou textualização do mundo é, ela-própria, um processo de (re)construção do real. Quer para as formas de ativação de referentes no modelo textual, quer para a progressão referencial, a autora esclarece as diferentes estratégias de referenciação, sistematizando e exemplificando com textos curiosos e atualizados da imprensa brasileira.

A sistematização é um dos recursos pedagógicos mais eficientes, convocado por Ingedore Koch para recensear, por exemplo, as funções cognitivo-discursivas das expressões nominais referenciais, permitindo-lhe demonstrar que os “referentes” são objetos do discurso, construídos e reconstruídos continuamente na interação verbal.

Para abordar as formas de articulação ou progressão textual, a autora, denotando de novo o seu saber enciclopédico, ilustra com exemplos de versos do consagrado poeta português Fernando Pessoa, convocando, de seguida, poemas do carioca Olavo Bilac, excertos literários de Machado de Assis e do Padre António Vieira, mostrando como o ecletismo literário pode conviver com os exemplos de enunciados do quotidiano, confirmando, assim, que os processos e estratégias linguísticas estão presentes em todo tipo de textos.

É de interesse capital nesta obra o capítulo dedicado às estratégias textual-discursivas de construção do sentido, que desempenham uma série de funções cognitivo-interativas e que subjazem à facilitação da compreensão e descodificação dos enunciados, visando, por isso, assegurar o sucesso da interação. Os exemplos que a autora convoca, como já anteriormente sublinhamos, atestam a variabilidade das fontes, que nesse ponto são completados com exemplos da língua falada, retirados do corpus do projeto NURC. São, pois, criteriosamente definidas as estratégias formulativas, como as inserções, as repetições e parafraseamento retóricos e deslocamento de constituintes, sempre ilustradas com exemplos esclarecedores, de que nos permitimos destacar as repetições e os parafraseamentos retóricos e que, como curiosamente, a linguista justifica, visam seguir o velho ditado português (“água mole em pedra dura”), na medida em que contribuem para o reforço da argumentação.

Por sua vez, quando a autora aborda a questão das estratégias metadiscursivas, parte da proposta de outros autores para conceber, com mais clareza e simplicidade, a sua proposta de classificação em três categorias, as metaformulativas, em que inclui as correções, as paráfrases e repetições saneadoras; as modalizadoras ou metapragmáticas, que têm como objetivo preservar a face do locutor e recorrem sobretudo a estratégias de atenuação e de desresponsabilização ilocutória; e, por fim, as metanunciativas, em que o enunciador autocomenta o seu próprio dito.

Para a eficácia das estratégias, é naturalmente necessário o uso de articuladores textuais ou marcadores discursivos, pelo que a autora se fixa, nesse momento capital da obra, na descrição pormenorizada e sistematizada dos diferentes tipos de marcadores, categorizando-os com base nas suas funções: marcadores de conteúdo proposicional, discursivo-argumentativos, textuais e metadiscursivos. Criteriosamente definidos e exemplificados, tornar-se-á fácil para qualquer estudante interiorizar esses conteúdos centrais da Linguística Textual.

No final da Parte II, a autora faz uma pequena incursão em dois temas centrais para a Linguística Textual: o da intertextualidade e o dos gêneros do discurso, temas que foram já abordados em anteriores trabalhos da pesquisadora. Convoca os principais trabalhos de linguistas franceses para debater as questões de intertextualidade implícita, esclarecendo e ampliando a centralidade da noção de “détournement” (GRÉSILLON, A.; MAINGUENEAU, D. Polyphonie, proverbe et détournement. Langages 73, 1984, p.112-125) e interligando com o conceito de polifonia, que a autora subscreve como de maior amplitude do que o de intertextualidade.

A derradeira reflexão sobre gêneros textuais é uma súmula brilhante dos trabalhos anteriores, desde os estudos pioneiros de Bakhtin até aos mais recentes trabalhos da Escola de Genebra, para defender a importância do conhecimento e da interiorização da multiplicidade de gêneros existentes que contribuem para habilitar os sujeitos na aquisição de uma maior competência linguística, comunicacional e, sobretudo, interacional.

A obra se encerra com uma reflexão sobre o futuro da Linguística Textual, em que Koch, como uma das suas principais fundadoras no Brasil, reflete, com competência e autoridade, sobre a necessidade crescente de a Linguística Textual construir pontes, não apenas com as ciências ditas humanas, mas com outros campos de conhecimento, visando, desse modo, a edificação de uma ciência integrativa, multi e transdisciplinar, em diálogo permanente com todas as outras disciplinas que têm como objeto de estudo a construção social dos sujeitos, o conhecimento e a linguagem, em suma, a interação social.

Em suma, há obras cuja leitura devemos recomendar e que, pelo rigor, transparência e poder de síntese, configuram o que comummente apelidamos de “bíblia”. Esta é indubitavelmente a ‘bíblia’ para todos os que queiram conhecer e aprofundar os seus conhecimentos sobre Linguística Textual. A sua forte difusão no Brasil e em Portugal atesta já a sua relevância nos estudos linguísticos em língua portuguesa.

Isabel Roboredo Seara – Universidade Aberta e Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal; [email protected].

Estudos discursivos à brasileira: uma introdução – BARONAS (RED)

BARONAS, R. (Org.). Estudos discursivos à brasileira: uma introdução. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015. 190p. Resenha de MARCHEZAN, Renata Coelho. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2016.

Estudos discursivos à brasileira: uma introdução, organizado por Roberto Leiser Baronas, reúne, com prefácio de Diana Luz Pessoa de Barros e posfácio de Kátia Menezes de Souza, seis estudos sobre o discurso, em diferentes abordagens teóricas, praticadas por pesquisadores brasileiros: a análise do discurso e a semiótica, ambas de orientação francesa, e a análise dialógica do discurso.

O título do livro com a expressão “à brasileira” e o da introdução – “Ciências brasileiras de lingua(gem): teorias de discurso” -, assinada pelo organizador, despertam curiosidade e perplexidade, que vão se resolvendo com a leitura.

Segundo Baronas, a proposta da obra é inspirada, principalmente, no artigo de divulgação científica, Uma teoria brasileira do idioma, de Marcelo Módulo e Henrique Braga (Revista Língua Portuguesa. n. 78, 2012), que dá destaque às pesquisas de Ataliba Teixeira de Castilho, em particular sua Nova gramática do português brasileiro ( São Paulo: Editora Contexto, 2010), e na conferência de Rodolfo Ilari que, no GEL de 2013, homenageia o professor brasileiro Isaac Nicolau Salum, apreciando a originalidade de seu método de análise sintática do texto por meio de esquemas em garfos.

Considerando essas reflexões uma afirmação da “existência não só de uma linguística no Brasil, mas também de uma linguística do Brasil” (BARONAS, 2015, p.16), Baronas detém-se na área do discurso para destacar as “teorias brasílicas do discurso”.

Como se sabe, há correntes na área do discurso, de base francesa, em cuja denominação se costumou acrescentar o adjetivo pátrio como uma espécie de sobrenome que, no entanto – vale lembrar, não é atribuído pelo pai ao filho que nasce, mas a ele já em idade madura, pelo outro, que o institui e legitima. Mesmo assim, parece quase inevitável que, também no domínio do conhecimento, para não dizer da ciência, se respondesse ao chamamento, do nosso contexto atual e suas forças centrífugas, para a afirmação das identidades, das diferenças, das heterogeneidades.

O próprio Baronas reconhece o “tom de manifesto” de sua introdução, em que, fazendo referência à gramatiquinha de Mário de Andrade, defende que nas pesquisas sejamos brasileiros, sem sermos nacionalistas.

Em relação a essa brasilidade, no entanto, a primeira nota de rodapé da introdução é elucidativa e oportuna: “Quando utilizamos a designação Ciências brasileiras de lingua(gem), não o fazemos com o intuito de negar o caráter universal da ciência, mas buscamos dar destaque à singularidade das ciências desenvolvidas por pesquisadores brasileiros no âmbito da linguagem” (BARONAS, 2015, p.15).

E é esse mesmo o objetivo atingido: a compilação de trabalhos indica a singularidade de pesquisas brasileiras já consolidadas na área do discurso. Baronas convida estudiosos que trabalham, em ordem de publicação, com a Teoria do silêncio, de Eni Orlandi, a Semiótica da canção, na esteira de Luiz Tatit, a Semântica do acontecimento, formulada por Eduardo Guimarães, a Teoria dos estereótipos básicos e dos estereótipos opostos, de Sírio Possenti, a Análise dialógica do discurso verbo-visual, desenvolvida por Beth Brait, e a Abordagem foucaultiana do discurso, proposta por Maria do Rosário Gregolin e seu grupo de estudos, o GEADA (BARONAS, 2015, p.22). As reflexões, caracterizadas como introdutórias nessas teorias, oferecem também apurados desenvolvimentos, sempre acompanhados de exemplificação analítica.

O silêncio existe para poder (não) dizer, de Lucília Maria Abrahão e Sousa, assinala que, em As formas do silêncio, o movimento dos sentidos, Orlandi (Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997) abre um campo, na teoria discursiva fundada por M. Pêcheux, para problematizar e refletir sobre as formas do silêncio que operam na constituição do sujeito e do sentido. Nesse contexto teórico mais amplo, e em relação com seus conceitos, entre eles, posição-sujeito e formação discursiva, Orlandi propõe três formas de silêncio: o silêncio fundador, o silêncio constitutivo e o silêncio local. Diferentes modos de significar o silêncio, que a autora do capítulo apresenta e exemplifica.

Em Semiótica e canção: uma paixão brasileira, Flávio Henrique Moraes e Mônica Baltazar Diniz Signori consideram a semiótica da canção, desenvolvida por Tatit (cf. Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo: Escuta, 1994), “um importante e original ramo da semiótica greimasiana”, um avanço na teoria. Assim sendo, com o objetivo de expô-la, percorrem, com rigor e clareza, um caminho teórico que vai das bases da semiótica, principalmente com F. Saussure e L. Hjelmslev, à consolidação da teoria, com A. J. Greimas, às recentes contribuições da semiótica tensiva, de C. Zilberberg, até chegar à semiótica da canção, de Tatit, que, com a marca da coerência teórica, permite descrever conjuntamente a melodia e a letra da canção.

Soeli Maria Schreiber da Silva e Carolina de Paula Machado, em Semântica do acontecimento: princípios teóricos, metodológicos e análises, apresentam o percurso de constituição da Semântica do acontecimento, realizado por Guimarães (Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas, SP: Pontes, 2002), em interlocução, principalmente, com a Análise do Discurso de orientação francesa e com as teorias enunciativas de E. Benveniste e O. Ducrot. Trata-se de uma análise interpretativa dos sentidos, que tem como conceito central a enunciação, entendida como acontecimento histórico, social e político.

Fernanda Góes de Oliveira Ávila e Roberto Leiser Baronas, em Teoria dos estereótipos básicos e dos estereótipos opostos: a piada levada a sério, destacam, da ampla contribuição de Possenti para o estudo do discurso, sua formulação dos estereótipos (Humor, Língua e Discurso. São Paulo: Editora Contexto, 2010), que desdobra o conceito de simulacro de Dominique Maingueneau e expõe o funcionamento do humor, da piada. Os autores do capítulo buscam explorar a teoria dos estereótipos em análises de uma série de piadas do Joãozinho, conhecido personagem de piadas que circulam entre nós.

No capítulo De presidentes a presidenciáveis: verbo-visualidade na esfera jornalística e político-partidário, Maria Helena Pistori mostra a pertinência de uma análise dialógica da verbo-visualidade. Retoma diversos trabalhos em que Brait (cf., por exemplo, Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana. Revista de estudos do discurso. São Paulo, v. 8, n. 2, p.43-66, Jul./Dez. 2013) propõe e defende essa tese, seja evidenciando a concepção ampla de linguagem do Círculo de Bakhtin, seja elencando os diversos momentos em que, aí, se considera o visual (mas não o verbo-visual), seja investigando os trabalhos bakhtinianos de temática vizinha. Pistori, engajando-se também na análise dialógica da verbo-visualidade, consegue apresentar, no espaço reduzido de um capítulo, uma densa caracterização da análise dialógica do discurso e, igualmente, mostrá-la em atividade, na análise de um objeto verbo-visual.

No último capítulo do livro, Por uma análise arquegenealógica do discurso, Pedro Navarro situa-se no domínio de pesquisa tão fomentado por Gregolin (cf., por exemplo, GREGOLIN, M. Discurso, história e a produção de identidades na mídia. In: FONSECA-SILVA, M. C.; POSSENTI, S. (org.). Mídia e rede de memória. Vitória da conquista: Edições UESB, 2007, p.39-60), o que traz as reflexões de M. Foucault para a análise do discurso. É essa mesma a proposta do texto: examinar o método arquegenealógico como uma possibilidade de estudo do discurso, e explorá-lo em análises de capas de revista. Para tanto, o autor orienta-se por obras de Foucault e expõe a relação que as reflexões estabelecem entre história e poder. Nesse caminho, detém-se em questões como o descentramento do sujeito, a consideração da história como monumento, a constituição de séries enunciativas e os processos de subjetivação.

Os capítulos reunidos na obra mostram, assim, diferentes correntes teóricas que têm o discurso como objeto. Diante dessa diversidade – também tratada, recentemente, em obra organizada por Brait e Souza-e-Silva (Texto ou discurso? São Paulo: Contexto, 2012) -, pode-se perguntar o que possibilita o reconhecimento do campo de estudo, além da unidade conferida pelo nome. Barros inicia seu prefácio refletindo sobre isso: os estudos do discurso “recuperam a instabilidade própria da linguagem”. Situam-se, assim, em um ponto de inflexão da linguística, o da problematização de seus axiomas (manifestados na eleição de um dos pares de suas dicotomias: língua vs. fala, competência vs. performance, enunciação vs. enunciado, linguístico vs. extralinguístico). Continuando a reflexão de Barros, considera-se aí também o questionamento de um nível de abstração que não mais satisfaz. O interesse pelo instável, além do estável, pelo acontecimento (termo que, aliás, está presente na configuração de todas as teorias discursivas aqui mencionadas), além da estrutura, não é, evidentemente, apanágio apenas do objeto discursivo (nem mesmo da disciplina linguística), mas, certamente, se trata de um objeto mais sujeito às instabilidades e, portanto, à necessidade de apreendê-las.

Concordando ainda com as reflexões de Barros, no prefácio (Estudos do texto e do discurso no Brasil. DELTA. Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada. São Paulo, v. 15 (n. especial), p.183-199, 1999), os estudos do discurso no Brasil têm raízes institucionais e retribuem, com a constante formação de profissionais, com produção de incontestável importância para o âmbito do discurso e para a teoria da linguagem, de modo geral. Ao examinar o quadro da área no Brasil, Barros ainda aponta nossa disposição para alargar os objetos construídos, para encarar novos corpora, para inovar os métodos, em outras palavras, para enfrentar as instabilidades. Entende que é assim que temos caminhado, sem criar outra teoria, outro paradigma, mantendo o rumo, em “adequada conciliação entre a novidade e a tradição”.

O conjunto de capítulos, organizados por Baronas, oferece um balanço dos estudos discursivos no Brasil, expondo teorias adotadas, suas interlocuções frutíferas com outros centros, seus desenvolvimentos e avanços. É, certamente, uma obra representativa, que merece leitura atenta dos pesquisadores da área.

Renata Coelho Marchezan – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Araraquara, São Paulo, Brasil; [email protected].

Linguística chomskyana e ideologia social – PONZIO (RED)

PONZIO, Augusto. Linguística chomskyana e ideologia social.Trad. Carlos Alberto Faraco. Curitiba: Editora UFPR. 2012. 323 p. Resenha de: POSSENTI, Sírio. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.7 n.2, São Paulo July/Dec. 2012.

Em 1976, encontrei na livraria Pontes, em Campinas, um livro de Augusto Ponzio, cujo título era Gramática transformacional e ideologia política. Foi na mesma livraria, aliás, e na mesma época (se não no mesmo dia), que também comprei um livro de Voloshinov que acabara de chegar de Buenos Aires: El signo ideológico y la filosofia del lenguaje.

Naqueles tempos, encontrar algum livro de ou sobre linguística que confrontasse o estruturalismo ou a gramática gerativa era mais ou menos raro. Lembro-me de Adam Schaff, de Rossi-Landi, de Ponzio e de Voloshinov, que acabei citando em minha dissertação de mestrado, talvez um pouco ingenuamente, no afã de combater um Chomsky quase completamente dominante, sobretudo em termos ideológicos, com seu inatismo e sua gramática com universais (que líamos simplesmente como universal).

Em meu mestrado, queria combater Chomsky por dentro (pertenci a uma geração que só queria mudar o mundo e achava que estava a ponto de fazê-lo), e por isso adotei as teses da fonologia natural – não havia uma fonologia marxista (ainda bem que Lisenko não mexeu nisso). Mas, como disse, descambei para uma crítica ideológica direta, feita com as armas fornecidas pelo quarteto acima mencionado.

O que mais me impressionou em Ponzio foi uma análise que mostrava coincidências nada fortuitas entre passagens da obra de Chomsky e da declaração da Independência dos Estados Unidos e de Thomas Jefferson – que citei nas conclusões de minha dissertação. Ponzio queria mostrar que se trata do mesmo discurso (digamos que eram quase paráfrases). E é cada vez mais claro que se trata mesmo!

Lembro também que o volume que li e rabisquei era verde e pequeno, publicado pela Nueva Visión, de Buenos Aires, que não encontro mais entre meus livros (alguns colegas acharam que eu tinha livros mais adequados para pertencerem a eles do que a mim e decidiram ficar definitivamente com alguns dos empréstimos… que ainda podem devolver; moro no mesmo endereço). No meio deles, está, no entanto, uma obra de Ponzio que se chama Producción linguística e ideologia social; para una critica marxista del lenguaje e de la comunicación, publicada por Alberto Corazón, em Madrid, cujo primeiro capítulo, de cerca de 100 páginas, tem exatamente o mesmo título do livro que citei acima (e na bibliografia de minha dissertação), e que contém a tal “análise de discurso” que Ponzio levou a cabo comparando textos de épocas diferentes, cujo fundo ideológico é o mesmo.

Pois agora este livro está à disposição dos leitores brasileiros, traduzido por Carlos Alberto Faraco, precedido de uma Introdução e de longo Apêndice do próprio autor, e acompanhado de uma apresentação do tradutor (que, sóbria e competentemente, expõe as teses fundamentais do livro) e de orelha de João Wanderley Geraldi, chamando atenção para o fato de que Ponzio leva em conta toda a obra de Chomsky, e não só sua linguística, exatamente porque avalia que são os mesmos os fundamentos de sua teoria gramatical e os de sua militância política (que alguns linguistas brasileiros não levam em conta, assinala Geraldi).

O volume contém, além dos textos mencionados, três capítulos: I. Linguística chomskyana e ideologia política, II. Gramática gerativa, biologia e cibernética e III. Produção linguística e sistema social. O último faz o debate mais direto com Chomsky a partir de postulados marxistas, por um lado, e, por outro, propõe a consideração mais radical dos pontos de vista sociais, destacando a diferença de estatuto das “anormalidades linguísticas” quando vistas apenas a partir de uma maquinaria gramatical “interna” e quando consideradas à luz dos fatores sociais. Sumariamente, Ponzio reivindica que a caracterização da linguagem esquizofrênica, por exemplo, leve em conta “parâmetros pelos quais, na comunicação intersubjetiva, ela se apresenta como patológica”, exatamente porque nenhum traço isolado (paralogismos, neologismos etc.) é suficiente para caracterizar uma patologia. Vê-se aqui, claramente, a demanda pela consideração de fatores de ordem social (ideológica), e não apenas de uma gramática interna.

Algumas ideias acabam sendo repetidas, como é inevitável, seja nos quatro paratextos, seja nos diversos capítulos do livro. Se Ponzio precisasse reduzir seu livro a um tuíte, por uma razão qualquer, talvez escolhesse a seguinte passagem: “… a linguagem não é algo apenas natural, como não é também algo de não natural: ela é, como todo fato humano, um fenômeno fundamentalmente histórico-social” (p.203).

É em torno dessa questão, explicitando e combatendo teses e pressupostos, e agregando fatos e fatores não considerados por Chomsky, que o livro vai sendo construído. Na época, foi um petardo contra as teses chomskyanas, nas mãos de quem já tinha esta posição e apenas precisava de mais (ou de alguns) argumentos, ou, alternativamente, foi simplesmente desconhecido, porque não falava das mesmas coisas de que tratava Chomsky.

Sabe-se que há duas formas de combater uma teoria: contestar os fatos de que trata (não são bem como você os apresenta) ou sua análise (significam isso e não aquilo), ou, então, tentar pôr abaixo todo o projeto, atacando sua metafísica (é / não é um fato biológico, há / não há universais, a sintaxe é / não é central ou autônoma).

É o que ainda hoje faz a fortuna ou produz o desconhecimento de obras como esta, e também de suas antípodas. De fato, qual é o chomskyano que lê Bakhtin, Pêcheux ou Foucault? E qual é o leitor desses autores (exceto eles, claro, cada um a seu tempo) que frequenta obras “formalistas”, gerativistas ou não?

Sabe-se que a gramática gerativa é uma teoria fundada na competência dos falantes, isto é, no fato de que sabem produzir e compreender sentenças novas (ou nunca ouvidas). Ponzio pergunta o que significa compreender enunciados como “Os operários ameaçam a ordem pública quando fazem greve pelas suas reivindicações” (e mais quatro do mesmo jaez). É bastante claro que estão em jogo dois sentidos de “compreender”. E que certamente, se houver um debate sobre o tema, cada lado sairá ainda mais convencido de que é o outro que não compreende o que significa “compreender”.

Este tipo de confrontação marca o livro todo: a teoria de Chomsky é exposta (talvez um adepto não concorde com a apresentação) e criticada, seja por seus limites (como não incluir uma pragmática), seja por não levar a sério o que diz, como no caso acima ou em outros do mesmo quilate, trate-se de compreender ou de falar – atividade que também está submetida a numerosas condicionantes externas, que a teoria de Chomksy ignora ou relega a domínios paralelos, quando não as inclui entre os mistérios.

Seja sobre a natureza das línguas, seja sobre a questão da competência, seja sobre a questão dos sentidos, seja sobre a questão das patologias linguísticas, o livro pretende mostrar que a linguística de Chomsky é limitada e, eventualmente, equivocada em seus próprios termos.

Acaba por expor à luz do sol que o debate ou é interno (discutindo as soluções nos termos das hipóteses propostas sobre objetos definidos) ou externo, e diz respeito a como definir os objetos (no caso, a língua). O livro de Ponzio se dedica bem mais ao segundo do que ao primeiro, seja pelo espaço dedicado a ele, seja pelos autores citados, seja pelos argumentos evocados, seja pelas contrapropostas. Mas, principalmente, esta posição fica absolutamente clara pelo fato de que não apresenta uma teoria sintática (ou fonológica) que deveria ocupar o lugar da chomskyana e que fosse compatível com suas exigências para uma teoria linguística. Nem esclarece se isso seria ou não necessário.

O que o livro faz, fundamentalmente, é cobrar de Chomsky uma posição menos alienada, do ponto de vista ideológico, mais complexa, do ponto de vista da produção e da interpretação dos enunciados, que não reduza a gramática a uma espécie de programa (cibernético, nos termos da época), que reconheça seus compromissos idealistas (e que os abandone, em nome da evidência de outros fatores!).

Por mim, assino tudo isso. Mas é preciso reconhecer que se trata de um combate que segue as regras feitas por uma das bancadas. Se fosse possível olhar para o debate de fora e se fosse lícito valer-se de uma metáfora “esportiva”, provavelmente se poderia dizer que os contendores praticam esportes diferentes, e que, além de quererem vencer, com suas regras e seus golpes, pretendem fazer com que, depois dessa luta, só uma das “modalidades” possa sobreviver.

Trata-se, portanto, de um livro que todos deveriam ler, para considerar tanto o que ele diz, o que critica e o que propõe, mas também para compreender melhor as políticas dos campos, as relações das teorias com as instituições e com os poderes, dos quais nenhuma escapa, embora cada uma prefira o papel de acusador.

Para quem gosta de debates, trata-se de um prato cheio. Para quem quer um aliado para suas posições, de um livro para ser celebrado ou para ser desdenhado.

Sírio Possenti – Professor da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil; [email protected].