Mulheres, Feminismos e Gênero: diálogos (in)tensos na História / História Revista / 2014

Os estudos de gênero ganham importância na academia, em fóruns de debates, nas agências de fomento à pesquisa e espaço no mercado editorial. A desigualdade de gênero e racial é profundamente questionada, o combate à violência contra as mulheres toma a cena pública, as sexualidades se rebelam e há uma desconfiança no ar a sinalizar que o binarismo (homes x mulher) no qual fomos forjados não responda à complexidade de ser no mundo hodierno. Assim, esse dossiê está em plena sincronia com as questões do presente e aposta numa sociedade melhor ao publicizar as pesquisas que falam das nossas travessias históricas de ser quem somos, onde as fronteiras normativas entre o feminino e o masculino são cada vez mais tênues.

A ideia desse dossiê surgiu em 2012 quando as professoras Alcileide Cabral e Ana Carolina Coelho se articularam para propor um simpósio temático no XXVII Simpósio Nacional de História que aconteceria em Natal, capital do Rio Grande do Norte, em 2013. O Simpósio intitulado “Mulheres, Feminismos e Gênero: diálogos (in)tensos na História” teve por objetivo discutir os significados históricos dos feminismos e da problematização das relações de gênero na virada do século XIX e nas décadas iniciais do século XX, buscando compreender como as mulheres questionaram a profunda desigualdade com os homens, ao mesmo tempo em que construíram possibilidades de inserção nos espaços públicos, redefinindo a dimensão do privado. Neste sentido, convidamos os / as pesquisadores / as a apresentarem seus trabalhos nas múltiplas direções abertas no âmbito dos estudos feministas e da história cultural a partir de fontes diversas como periódicos, revistas, fotografias, narrativas autobiográficas, ficção literária, discutindo a tensa e conflituosa relação entre feminino e o masculino, solo de uma episteme sobre as novas relações de e entre os gêneros e da emergência dos feminismos. Esse Simpósio rendeu bons frutos que agora chega ao público com este dossiê e temos a certeza de que nosso Grupo tem mesmo assumido a questão dos estudos de gênero como uma de nossas preocupações investigativas.

O estudo das relações de gênero abrange pesquisas acadêmicas interdisciplinares que procuram compreender as relações entre os gêneros – masculino e feminino – na cultura e na sociedade humanas. Essa compreensão entende que homens e mulheres estão numa perspectiva relacional e, ao mesmo tempo, são diferentes uns em relação aos / às outros / as e entre si. Considera-se ainda que essas relações são construídas historicamente, marcadas pela cultura e pelas relações de poder que fundamentam uma hierarquia e uma assimetria social entre homens e mulheres (SCOTT, 1991).

Esses esforços investigativos desde o último quartel do século XX, passaram a contar com a criação do Grupo de Trabalho de Gênero (Gt de Gênero Nacional) vinculado à Associação Nacional do Professores de História (ANPUH) em 25 de julho de 2001. Esse foi o ano da institucionalização dos Grupos de Trabalho vinculados à Associação, durante o XXI Simpósio Nacional da ANPUH, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Buscando fortalecer a pesquisa, o ensino e a extensão, O Gt de Gênero definiu como objetivos consolidar um espaço de intercâmbio científico-acadêmico sobre estudos de gênero e temas afins, no âmbito da história e das diferentes disciplinas; proporcionar um balanço do alcance de teorias e metodologias geradas pelos estudos de gênero e temas afins e de suas repercussões sobre o conhecimento, com vistas ao aperfeiçoamento do ensino da história em seus diferentes níveis; estimular no espaço universitário iniciativas de ensino, pesquisa e extensão voltadas para perspectivas teóricas e metodológicas abertas pelos estudos de gênero. Desde então, estimulou-se a criação dos Gt’ regionais com idênticos objetivos. Temos hoje nove Gt’s em diferentes regiões do Brasil.

Assim, este dossiê representa uma importante parceria entre o Gt de Gênero Nacional, coordenado por mim, em conjunto com Gt de Gênero de Goiás, sob a coordenação da Profa. Ana Carolina Eiras Coelho Soares [3] e dá concretude a um dos seus objetivos: implementar dossiês / revistas temáticas e publicação de coletâneas articulados com os desejos e problemáticas do presente.

Neste dossiê temos a confirmação da relevância e preocupação com as temáticas de gênero nas discussões intelectuais do Brasil. Pesquisadoras / es de várias regiões do país contribuíram para essa publicação com questões instigantes e demonstrando o aprofundamento e o refinamento das pesquisas sobre Gênero.

Lídia Possas nos brinda com um artigo excelente sobre a trajetória do GT Estudos de Gênero / ANPUH, recompondo através da memória, de documentos e falas, os fatos e acontecimentos deste grupo entre 2001- 2014. Em uma tentativa de pensar essa caminhada, nos damos conta do esforço da consolidação de espaço de um campo que lida justamente com as disputas de poder e as desigualdades na história.

Ana Carolina Eiras Coelho Soares debate as narrativas visuais e as práticas de gênero nas artes gráficas criadas para a seção “O Menu do meu marido” veiculada pela Revista Feminina entre (1914-1936). No texto, as artes gráficas foram intencionalmente produzidas para criar símbolos e signos associados à modernidade, enquanto a seção ensinava a produzir refeições feitas pela esposa para o marido e seus filhos. As mudanças e contradições das relações de gênero, as práticas de viver, sentir e pensar e as ideias de modernidade, progresso e civilização convivem nas páginas de uma revista que era voltada para o público feminino.

Em “Notas sobre as representações do “feminino” nas páginas da revista Brasil-Oeste” de Eduardo de Melo Salgueiro incursionamos pelas páginas da publicação da revista Brasil-Oeste, mensário que circulou entre o período de 1956 e 1967, pensando nas representações das mulheres e da feminilidade deste periódico nacional que obteve até 1.500.00 exemplares editados.

Ana Maria Marques e Andréia Márcia Zattoni avançam no tempo, para discutir o feminismo e os debates no Centro da Mulher Brasileira (CMB) de 1975 e sua representação nas páginas da revista de informação semanal Veja no mesmo ano. A participação das mulheres e a resistência à ditadura militar são as temáticas que tornam esse artigo interessante, seja pelas contradições presentes nos diferentes órgãos de atuação, seja pela inevitabilidade da discussão da existência e participação de mulheres, inclusive exiladas, em um contexto de ditadura, mesmo que os discursos se apresentem de maneiras bastante diferenciadas.

A revista Veja é também pensado em outro artigo de Silvia Maria Fávero Arend e Douglas Josiel Voks intitulado: Revista Veja, masculinidades e consumo (década de 1970), na qual as masculinidades – categoria conceitual que se refina com as discussões sobre as relações de gênero e o feminismo – aparecem nas páginas da revista na década de 1970 através de uma indústria que vestia e gerava / dialogava com valores / produtos que passavam a representar os homens da classe média dos centros urbanos do país.

O tempo, esse senhor da narrativa do passado, volta para outra discussão feminista fundamental no texto de Elisângela Barbosa Cardoso, intitulado “Sufrágio, educação e trabalho: o feminismo na imprensa em Teresina nas décadas de 1920 e 1930”. O debate em Teresina nos mostra o alcance nacional das discussões feministas no Brasil, o que reforça o título deste dossiê, debates tensos e intensos na História de nosso país. O feminismo, muitas vezes, obliterado por uma narrativa tradicional, luta nas pesquisas atuais para ganhar espaço e visibilidade como fator de importância crucial para as mudanças sociais e das relações de gênero no país.

Acreditamos que esse dossiê veio para reafirmar nossa legitimidade enquanto campo de pesquisa e espaço de trabalho historiográfico. “tomar la palabra!”. Esperamos que todas / os aproveitem os debates e que estes gerem novas palavras, discussões e escritas sobre mulheres e homens que na experiência de suas vidas, criaram padrões, valores e uma lógica de existir cuja dimensão política requer mudanças na perspectiva de um mundo mais igualitário para homens e mulheres.

Nota

3. O GT Goiás é coordenado com a Profª. Dr.ª Eliane Martins de Freitas que não participa desta organização de dossiê em específico, mas é igualmente atuante em outros projetos desenvolvidos em Goiás.

Referências

HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, São Paulo, v.24, n.1, p.77-98, 2005.

RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o Gênero. Cadernos Pagu, Campinas / SP, n.11, p.89-98, 1998.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.20, n.2, p.71-99, jul. / dez. 1995.

Alcileide Cabral do Nascimento – Professora Doutora em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco; Coordenadora Nacional do Gt de Gênero ANPUH; Coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Gênero / NUPEGE / UFRPE / CNPq.

Ana Carolina Eiras Coelho Soares – Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em História e da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás; Coordenadora do GT regional de Gênero – Seção Goiás; Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero / FH-UFG / CNPq.


NASCIMENTO, Alcileide Cabral do; SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 19, n. 2, 2014. Acessar publicação original [DR]

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