O Brasil na História Global / Revista Brasileira de História / 2014

O polêmico e polissêmico conceito de globalização se impôs como a caracterização mais difundida das transformações mundiais ocorridas desde a última década do século XX. Tem cabido aos historiadores, frequentemente, o papel de relativizar o ineditismo da conjuntura atual, identificando-a como um novo momento em um processo de longo prazo de expansão e aceleração dos múltiplos fluxos que integram os mais distantes pontos do planeta. Ainda assim, o corrente foco na perspectiva global tem gerado questionamentos e debates relevantes para o nosso ofício.

Sabe-se que a institucionalização da disciplina histórica transcorreu intimamente articulada ao desenvolvimento dos modernos Estados nacionais e desempenhou papel fundamental na construção de suas bases simbólicas de legitimação. Até que ponto o enquadramento no espaço nacional limita a definição dos objetos e perspectivas de análise na pesquisa histórica? Em que as diversas correntes e metodologias associadas à ideia de História Global podem contribuir para redefinir as abordagens sobre temas tradicionalmente recortados nos limites de fronteiras nacionais? A chamada História Global representa um paradigma radicalmente inovador, um campo de diálogo entre diversas perspectivas, ou apenas um modismo intelectual influenciado pelo “espírito da época”? Até que ponto a História Global pode alterar nosso entendimento sobre o Brasil e seu lugar no mundo em diferentes momentos históricos? Ou seria justamente a ênfase nas particularidades dos fenômenos históricos no interior de um Estado nacional pós-colonial como o Brasil uma forma de romper com o eurocentrismo de narrativas “mundiais” ou “globais”?

Essas foram algumas das indagações propostas aos autores que apresentaram artigos para integrar o dossiê temático “O Brasil na História Global”, contido neste número da Revista Brasileira de História. Os trabalhos selecionados oferecem um panorama significativo da diversidade de abordagens abarcadas sob o conceito de História Global.

Em “‘O maior incêndio do planeta’: como a Volkswagen e o regime militar brasileiro acidentalmente ajudaram a transformar a Amazônia em uma arena política global”, Antoine Acker relata a surpreendente história da ascensão e queda do projeto que visava transformar o Brasil em exportador de carne bovina empregando as modernas técnicas de gestão da multinacional alemã. José Juan Pérez Meléndez, por sua vez, valendo-se de pesquisa inovadora, oferece novas perspectivas sobre um tema clássico da história brasileira do século XIX em “Reconsiderando a política de colonização no Brasil Imperial: os anos da Regência e o mundo externo”. Gênero, literatura e crítica à sociedade escravista são os temas que se conectam nos relatos analisados por Ludmila de Souza Maia em “Viajantes de saias: escritoras e ideias antiescravistas numa perspectiva transnacional (Brasil – século XIX)”.

Maria Verónica Secreto explora as possibilidades inovadoras abertas pelas correntes historiográficas que buscam transcender o recorte do espaço nacional para entender as relações entre nosso país e seu maior vizinho em “Histórias conectadas: histórias integradas. Brasil e Argentina em busca de um terceiro no século XIX”. Em “‘Como abelhas polinizando flores’: gerência e racionalização do trabalho no complexo coureiro-calçadista de Franca-SP no século XX”, Vinícius de Rezende situa a experiência de um importante setor industrial brasileiro no quadro global do desenvolvimento das técnicas de gestão empresarial. Helenice Aparecida Bastos Rocha e Flávia Eloisa Caimi, por sua vez, levam a temática do nosso dossiê à sala de aula, com “A(s) história(s) contada(s) no livro didático hoje: entre o nacional e o mundial”.

Completando esse quadro, publicamos entrevista inédita com Patrick Manning, da Universidade de Pittsburgh, pesquisador consagrado e pioneiro no estudo da diáspora africana e dos fluxos migratórios globais na perspectiva da História Mundial. O professor Manning tem se destacado ao longo das últimas décadas na articulação de redes continentais de pesquisadores interessados em explorar os potenciais da História Global.

A seção de avulsos também traz um conjunto de trabalhos marcados por grande diversidade, tanto do ponto de vista da temática quanto no escopo cronológico.

Ela se abre com “Descontruindo mapas, revelando espacializações: reflexões sobre o uso da cartografia em estudos sobre o Brasil colonial”, de Tiago Kramer de Oliveira. Victor Melo apresenta uma abordagem original sobre a história africana do século XX em “O esporte na política colonial portuguesa: as iniciativas de Sarmento Rodrigues na Guiné (1945-1949)”. A história ­po­lítica britânica do século XVI é o campo de análise de Eoin O’Neill em “A inglória ilha de Gloriana: Elizabeth I, responsabilidade e honra na Guerra dos Nove Anos na Irlanda”.

Temas clássicos nos estudos sobre economia e da política no Brasil colonial são reexaminados por Thiago Alves Dias em “O Código Filipino, as Normas Camarárias e o comércio: mecanismo de vigilância e regulamentação comercial na capitania do Rio Grande do Norte”. As linhas de continuidade e ruptura na história do trabalho no Brasil entre os séculos XIX e XX são abordadas em “Greve como luta por direitos: as paralisações dos cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906)” de Paulo Cruz Terra.

Já Bruno Bontempi Jr. e Carlota Boto oferecem uma contribuição original para a reflexão sobre a relação entre políticas educacionais, identidade nacional e construção do Estado brasileiro em “O ensino público como projeto de nação: A ‘Memória’ de Martim Francisco (1816-1823)”. Finalmente, trazemos um trabalho sobre história política nacional no período recente: “Informação, política e fé: o jornal Mensageiro da Paz no contexto de redemocratização do Brasil (1980-1990)”, de André Dioney Fonseca.

O volume se conclui com quatro resenhas. Flávio Limoncic comenta A Justiça do Trabalho e sua história, organizado por Ângela de Castro Gomes e Fernando Teixeira da Silva. Denise Soares de Moura analisa Governabilidade nas fronteiras da América portuguesa, de Nauk Maria de Jesus. Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris, de Robert Darnton, é a obra examinada por Luís Felipe Sobral. Por fim, Magda Rita Ribeiro de Almeida Duarte apresenta A Reforma Papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história, de Leandro Duarte Rust.

Alexandre Fortes


FORTES, Alexandre. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.