A história ou a leitura do tempo | Roger Chartier

Mais um livro do professor Roger Chartier disponível para o público brasileiro. Na Nota Prévia da edição, consta que o título é “o décimo que publico em Português”, em que o autor admite recordar as mutações da História desde quando, em 1988, publicara A História Cultural entre Práticas e Representações. O presente livro é tradução de La Historia o la lectura del tiempo, publicado na Espanha em 2007, encomenda da editora Gedisa por ocasião do aniversário de 30 anos de criação da maison d’édition. Segundo o professor Chartier, A história ou a leitura do tempo lhe permite continuar as reflexões de A beira da Falésia, de 2002, quando então discorria sobre algo que, segundo ele, “obcecava os historiadores”: uma “crise da história”, suposta ou não.

O livro é pequeno, com 77 páginas no total, com 7 partes não-numeradas. O número de páginas em que se trata de conteúdo propriamente dito é, a rigor, 61, porque se contam no total de páginas capa, contra-capa e referências bibliográficas. Um livro de formato pequeno (21×13) – um quase livro de bolso – com mancha de texto com margens relativamente grandes, o que garante um livro de leitura rápida que vai passar quase como num sopro pelo leitor. Isso tudo não é fortuito, e muito provavelmente o professor Chartier goste da situação de poder ser lido com celeridade a se levar em conta mesmo uma das questões mais candentes que atormentam livreiros e editores no mundo todo, e para qual o autor é regularmente convocado para ajudar a pensar: a crise do livro impresso ante o avanço do livro digital. Segundo o professor Chartier, o ritmo de produção de leitores de livros digitais não é tão rápido quanto à evolução das técnicas de edição, e o número de leitores que lêem na tela tout court é bem minoritário. Há, na realidade, uma “obsessão” quanto ao tema da revolução eletrônica no discurso sobre os leitores, visto que as práticas de leitura estão “apegadas aos objetos impressos e que não exploram senão parcialmente as possibilidades oferecidas pelo digital” (p.63). O virtual não é real como se propala, e mesmo quando a imprensa foi inventada foi muito lentamente que os homens abandonaram o manuscrito. O professor Chartier lembra o grande número de editoras de livros eletrônicos que desapareceram insistindo na premissa de que o virtual é real.

O autor está, e sempre esteve, envolvido em questões candentes e para elas sempre foi convocado para dirimir dúvidas e/ou prestar esclarecimentos de estudioso que lhe vale a distinção de ser, talvez, o historiador francês mais traduzido para o Brasil. Acontece com a História o que acontece com qualquer campo de pensamento ou atividade: autores que “caem na moda” não podem ficar de fora de conversações intelectuais e de planos de cursos. Pela relevância das questões de que trata – em que à História da Leitura e dos Livros, e das Práticas Culturais, se junta uma firme reflexão sobre o estatuto epistemológico que confere especificidade ao conhecimento de tipo histórico – o professor Chartier nega a idéia de que alguns nomes são passageiros e estão na moda. Houve muitos que, no início dos anos 1980, disseram que Foucault “estava na moda”, e que logo deixaria de ser falado e sairia do cenário. A história mostrou que no território da História virou moda apressada dizer que “é moda”. Muitos nomes vêm para ficar.

Lógico que envolvido por essas considerações, motivado pelos reclames da indústria editorial e sua necessidade de ganhar em torno de nomes pouco vulgares, poderíamos ser levados a pensar que A história ou a leitura do tempo – ou La Historia o la lectura del tiempo – seja mais um livro de textos repetidos do professor Roger Chartier. Sim e não! Sim, pelo que o livrinho soa de discussão já feita e lembrada pelo que são os temas recorrentes da reflexão do autor, e não, já que é livro em que, de fato, estão agregadas novas afirmações e palavras aos temas recorrentes do autor. E alguma coisa do que o professor Chartier agrega ali é de fato novidade no repertório de suas reflexões.

Mas comecemos pelo início, a seguir uma ordem linear. Porque acompanhar as publicações de Roger Chartier no Brasil, requer cuidado para não se cair em algumas repetições. Qualquer texto de novo livro de Roger Chartier visto na livraria deve ser cotejado antes com textos em livros já publicados, porque alguns deles já estão lá praticamente sem modificação em outras edições e isso pode ser comprar textos que já conhecemos.

Isso não tira em nada o valor de A história ou a leitura do tempo. Senão vejamos quais os temas e reflexões de que o livrinho trata.

A primeira parte é “História, entre relato e acontecimento”, e dá notícia do debate sobre o estatuto científico da História, marca o “regime específico de conhecimento” da História, para o que recorre ao desafio lançado, nos anos 70, por três obras perturbadoras: de Paul Veyne, Como se escreve a história (1971), de Hayden White, Metahistória (1973) e, de Michel de Certeau, A Escrita da História (1975). Embalado pelo debate sobre o caráter narrativo da história, o professor Chartier alega que tais obras obrigaram os “historiadores a abandonar a certeza de uma coincidência total entre o passado tal como foi e a explicação histórica que o sustenta”. (p.11/12). Reitera ainda questões já desenvolvidas em outras ocasiões sobre ser possível o conhecimento histórico verdadeiro, baseado nas “técnicas e operações específicas” da disciplina e pela erudição, que separa o verdadeiro do falso. As seis páginas que compõem essa parte do livro são o ponto de vista do historiador profundamente ancorado no suposto de que as “provas e controles” mobilizados pelos historiadores de ciência podem trazer a verdade à luz, não importa se o texto tem a estrutura de uma narração compreensiva ou de uma argumentação explicativa.

Já em “A instituição histórica”, o autor discorre sobre o “lugar social” de onde se escreve a História. Como já fez de outras vezes, o autor postula que a História envolve “objetos próprios”, “modalidades de trabalho intelectual”, “formas de escrita”, “técnicas de prova e persuasão”. Nesse momento, lança analogia esclarecedora entre história tal como se escreve hoje e já se escreveu antes. Para Chartier, na história sempre houve lugares de onde se fazia escrita da história, e a oposição entre “historiografia dos príncipes” e de “eruditos antiquários” ainda é-nos útil, porque estabeleceu uma coexistência ou concorrência ainda mais ou menos válida entre “histórias gerais, sejam nacionais ou universais, e os trabalhos históricos dedicados ao estudo de um objeto particular” (p.18).

Nas 15 páginas que são essa segunda parte do livro, há ainda dois tópicos sobre “as relações do passado”, em que, utilizando-se de Roland Barthes e Paul Ricouer, o professor Chartier afirma os fatores envolvidos nas diferenças entre História, Memória e Ficção. Breve e instigante exposição de motivos se desenvolve aí, principalmente pelas distinções feitas por Ricouer entre documento e testemunho, e reconhecimento e representação do passado. Chartier adverte das “diversas situações” em que a distinção entre História e Ficção tem sido ofuscada, sempre fiado no suposto científico da verificabilidade da verdade histórica por documentos e técnicas disciplinares. Essa parte do livro soa como uma pequena profissão de fé criadora na ciência da História. Como todo lugar social, “há determinações que regem [a] escritura [da História]” que “remetem a práticas estabelecidas pelas instituições técnicas das disciplinas, que distribuem (…) a hierarquia dos temas, as fontes e as obras” (p.20). Nem por isso os limites daquelas determinações impedem a “capacidade de conhecimento do saber histórico” do historiador de ciência, garante o professor Chartier.

A terceira parte, “do Social ao Cultural” trata de tema corriqueiro com que se identifica o autor: a história da Leitura, e ele o faz aqui como já fez em outros livros, esclarecendo o conceito de cultura que envolve as práticas, gestos e representações dos processos apropriativos de leitores no consumo material e intelectual de textos e livros.

Discutindo com as teorias da recepção (Jauss), da fenomenologia (Iser) e da criação estética (Greenblat), Chartier assegura que a História Cultural compreende a relação do leitor com os livros a partir dos “efeitos de sentido” das obras, os “usos e significados” impostos pela publicação e a circulação” e “das concorrências e expectativas que regem a relação que cada comunidade mantém com a cultura escrita” (p.43). Não há grandes novidades nessa parte, mas condensação de questões e abordagens convincentes.

Com oito páginas, “Discursos eruditos e práticas populares”, a quarta parte de A história ou a leitura do tempo, repisa discussão já encetada. Relativiza o pensamento sobre a cultura que durante muito tempo julgou cultura popular e erudita como sistemas fechados. O argumento critica a linguistic turn, que fecharia a linguagem em si mesma alheia às vicissitudes sociais, e popular e erudito são postos em complexa relação, onde atores sociais dão sentido a vida na tensão entre “capacidades inventivas dos indivíduos” e “restrições e convenções que os limitam” (p.49). Em “Micro-História e Globalidade”, a quinta parte em cinco páginas, o professor Chartier refere-se às dificuldades de se escrever histórias globais desprezando-se os contextos. Menciona as “variações de escala” entre local e global, e sugere – num enunciado que soa novo – que uma das práticas possíveis para a História Global é, mesmo se apegada a “passagens entre mundos muitos distantes uns dos outros”, reconhecer nas situações locais “as interdependências que as ligam ao longe, sem que necessariamente os atores tenham clara percepção disso” (p.57).

Outra parte, a “história na era digital” traz reflexão sobre impactos epistemológicos na História com o advento do livro digital. É texto pequeno, de cinco páginas. Ciência cujo estatuto ontológico se construiu pela exegese e investigação do livro impresso guardado em série em bibliotecas e arquivos, a História seria perturbada pelo livro digital nos parâmetros que firmaram a convicção de verdade, verificabilidade e validade do conhecimento histórico. O que é novo na reflexão é o fato de que ela está estruturada no princípio de que há muito de discurso sobre realidade do livro digital do que realidade propriamente dita, como já assinalamos no início.

Fecha o livro, a parte “os tempos da História”, em quatro páginas. E aqui há a proposição de uma atitude metodológica nova. Chartier discute a categoria constitutiva “tempo” e lança questionamentos ao modelo braudeliano dos tempos históricos curto, médio e longo superpostos. O autor faz indagações por três questões que de certa forma desancam a idéia consagrada no modelo de Braudel. O tempo é uma “propriedade social” e envolve questões de poder. Segundo Chartier, as temporalidades não devem ser consideradas “envoltórios objetivos de fatos sociais: são o produto de construções sociais que asseguram o poder de uns (…) e levam os outros à desesperança” (p.68). A “arquitetura braudeliana deve ser repensada” assegura taxativamente Chartier. É de se conferir o porquê.

Por fim, diríamos que A história ou a leitura do tempo é um ótimo panorama da História Cultural a ser adotado por professores em cursos universitários de alunos ansiosos por livros que condensam temas programáticos de um campo de estudo. O livro pode valer como boa plataforma para se começar a discussão sobre questões-chave que atravessam a História Cultural. Assim é que, na Nota Prévia do livro, o autor localiza nos anos 1980 o movimento de renovação perpetrado pela História Cultural, e menciona seu livro de 1988 Entre Práticas e Representações como texto-chave. Ele lembra que, lá, em 1988, já advertira para “gestos e comportamentos, e não apenas idéias e discursos, e considerava as representações (individuais ou coletivas, puramente mentais, textuais ou iconográficas) não como simples reflexos verdadeiros ou falsos da realidade, mas como entidades que vão construindo as próprias divisões do mundo social” (p.7).

A história ou a leitura do tempo é livro que aprofunda temas de discussão dentro da disciplina Teoria da História, ou mesmo para a disciplina História Cultural. Roger Chartier é historiador imprescindível, significativo, hoje. Esse seu livro não está isento do recurso moderníssimo do copiar-colar da era digital de que, certamente, o autor lança mão para satisfazer as diversas demandas que lhe chegam. Reiteremos então: nesse A história ou a leitura do tempo, para o leitor que acompanha a obra teórica do professor Chartier, muito do que está ali não é novidade. Para os que não o acompanham, é ótima condensação. Mas é justo que se diga: é livro que em boa parte repete outros, trazendo reflexões que, embora já conhecidas, feitas por outras palavras e frases, dão a sensação, às vezes, de que trazem idéias novas, reflexões postas lado a lado com outras que são novidades mesmo.


Resenhista

Bruno Flávio Lontra Fagundes – Doutor do programa de Pós- Graduação em História–UFMG E-mail: [email protected].


Referências desta resenha

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Tradução  de  Cristina  Antunes.  Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2009. 77 p. Resenha de: FAGUNTES, Bruno Flávio Lontra. Livros, leitura, História cultural, Teoria da História – Reflexões. Revista de Teoria da História n. 4, dezembro/ 2010.

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