Cultura escrita moderna: entre múltiplos saberes | LaborHistórico | 2016

Nas últimas décadas os referenciais teóricos e metodológicos que abrangem os estudos da cultura escrita no período moderno vem passando por pontos de inflexão, motivados, sobretudo, pelo diálogo entre os distintos campos do conhecimento. A questão central tornou-se o aprofundamento da problematização da escrita como objeto de reflexão, em meio às distintas especificidades desta prática social e cultural que agrupa letrados e iletrados. Diante da ebulição da temática, o primeiro número de 2016 da revista LaborHistórico apresenta o dossiê “Cultura escrita moderna: entre múltiplos saberes” e reúne um grupo de especialistas, filiados a diferentes saberes – Filologia, Linguística Histórica, Paleografia e História –, que refletiram as atuais inquietações das análises concernentes à Cultura Escrita moderna no Brasil, na Península Ibérica e em algumas partes da América hispânica. Além disso, a revista apresenta a tradução ao português de um texto clássico de Antonio Castillo Gómez em parceria com Carlos Sáez – renomados especialistas sobre a temática – intitulado Paleografía versus Alfabetización. Reflexiones sobre Historia Social de la Cultura Escrita, publicado originalmente na Revista SIGNO (Revista de Historia de la Cultura Escrita), Universidade de Alcalá de Henares, 1994, pp. 133-168.

Ler e analisar a escrita como ampla fonte de informação sobre os tempos pretéritos, na busca por responder a demandas variadas, é uma metodologia já consagrada em muitos meios científicos. No entanto, tê-la como a centralidade da pesquisa é um método que vem se aprimorando desde a segunda metade do século passado – período no qual grande parte das ciências sociais e humanas redirecionou seus temas, métodos e interesses de estudo. Entre disputas por privilégios de apreciação, nas quais alguns saberes eram considerados mais auxiliaristas e técnicos do que outros, a história da cultura escrita emergiu de forma renovada e demandou, acima de tudo, um viés de análise que integrou diferentes áreas1. Deste modo, os atuais estudos voltados ao tema têm se apresentado fora do domínio de um único saber, pois os atos de ler e escrever são múltiplos e envolvem variados setores de uma sociedade, especialmente quando se intenciona problematizar o acesso e a difusão de tais práticas sociais que são permeadas por relações díspares de poder e controle que incluem ou excluem, de modo parcial ou integral, os sujeitos.

Para o italiano Armando Petrucci, seguindo a linha de pensamento do francês Jean Mallon, a Paleografia, para ser considerada não somente um saber que decifra caracteres antigos e/ou em desuso, precisa ser vista como uma autêntica História da Cultura Escrita (2002, p. 7)2. Neste sentido, o autor reivindica as seguintes problematizações: o estudo da história da produção, a análise das características formais e reflexões sobre os usos sociais da escrita e de seus testemunhos por uma determinada sociedade, independentemente das técnicas e materiais utilizados (2002, p. 7-8). Este conjunto de questões consideradas pelo autor como essenciais aos estudos paleográficos requer, acima de tudo, uma perspectiva de pesquisa apta ao diálogo e desvencilhada dos esquematismos hierárquicos. Mas, isso não indica que a Paleografia seja sinônimo de História da Cultura Escrita, já que a segunda solicita um viés de análise dialógico e que mostre que a escrita não pode ser compreendida se distanciada do contexto social onde foi produzida, distribuída e consumida, de acordo com o espanhol Antonio Castillo Gómez, em consonância com Petrucci (2015, p. 3)3. Para o pesquisador ibérico, é necessário ponderar as desigualdades quanto ao acesso e ao uso da escrita, assim como os fatores “que propician y explican estos, así como las ideologias y prácticas que concurren en cada expresión escrita” (2015, p. 3). Ou seja, as reflexões voltadas a este campo de análise precisam considerar os embates de forças que permeiam as relações de poder e saber nas sociedades, integrando, sempre que possível, os aspectos materiais, discursivos, linguísticos, textuais, de contexto, dentre outros.

Quando se pondera a escrita como o objeto, a interpretação e a compreensão do texto vêm acompanhada pelos diferentes processos que envolvem a produção, o uso, a circulação e a conservação textual e material, o que permite análises linguísticas, históricas, paleográficas, diplomáticas, filológicas, dentre outras. Portanto, os artigos que compõem este dossiê não se preocuparam em atender a todas estas demandas interpretativas, para acolher a uma perspectiva que se requer interdisciplinar, mas trouxeram o diálogo entre as disciplinas como uma característica essencial às investigações sobre a Cultura Escrita.

A palavra registrada, como manifestação comunicativa, é permeada por uma caraterística fundamental: “un deseo de duración”, conforme destacou Francisco Gimeno Blay (2001, p. 360) 4. A comunicação escrita, como “palabra fosilizada, frente a la oralidade” (BLAY, 2001, p. 360), carrega este desejo de duração e permanência, de acordo com as formas como as sociedades articulam os signos gráficos no Tempo e no Espaço, como, por exemplo: os usos e variações da língua; os diferentes tipos de livros; as representações visuais; o registro das relações políticas e de trabalho; o sentido de História e de escrita da mesma; a formação de bibliotecas; as múltiplas formas de uso, produção e conservação de impressos e manuscritos; as práticas de escrita de cartas; a produção textual em meio aos variados gêneros textuais; os confrontos de poder pelo acesso às letras; a pretensão humana pela vontade de memória – aspectos que marcam as ações convergentes e divergentes das práticas culturais da escrita e que aparecem nos artigos presentes neste dossiê. Portanto, as autoras e os autores dedicaram-se a um viés interpretativo que se propõe aberto ao diálogo, à partilha de inquietações e às possibilidades de distanciar e aproximar questões epistemológicas e pertinentes às áreas que usam a escrita como fonte de conhecimento. Desta maneira, cada texto, ao seu modo, problematizou-a como objeto de análise.

O dossiê Cultura escrita moderna: entre múltiplos saberes reúne dez contribuições que dialogam com os referenciais teóricos e metodológicos da História da Cultura Escrita e os possuem como a base da reflexão, da qual partem em consonância com os aspectos que são indispensáveis às análises paleográficas, linguísticas, filológicas e históricas.

Dentro do universo dos signos gráficos, as escrituras expuestas têm sido alvo de pertinentes problematizações, sendo definidas por Armando Petrucci como a escrita registrada em uma superfície exposta, para ser usada em espaços abertos ou fechados, permitindo, assim, uma leitura plural (2013, p. 25) 5. Este tipo de produção foi o objeto de pesquisa selecionado por Isabel Castro Rojas. A autora aponta as dificuldades de se estudar estes materiais devido ao caráter efêmero que possuem e por terem “una validez determinada y cuyo débil formato y amplia distribución, unido a la lógica archivística de conservar solo lo necesario, contribuyeron a su desaparición” (p. 18). No artigo Ordenar el universo de los signos. Bandos, pregones y espacio urbano en España y América durante la Edad Moderna, Rojas apresenta políticos e socioculturais do império castelhano através do estudo de tipologias e de discursos produzidos para ocuparem o espaço urbano e serem recepcionados por meio da leitura, assim como por manifestações orais que, muitas vezes, acompanhavam a ritualidade deste tipo de escrita. A autora teve como objetivo investigar as estratégias utilizadas pelo poder monárquico, na península e na América, para chegar à população, formada em maioria por analfabetos, através da “escritura expuesta y, más concretamente, si fueron estos documentos un reflejo de la mayor presencia de la misma en el espacio citadino en la Edad Moderna” (p. 26). Portanto, utilizando-se de apurados pressupostos teóricos, Rojas procura evidenciar metodologias de análise para este tipo de signos que ocuparam a urbanidade moderna e que reforçam a presença da escrita enquanto produto cultural das sociabilidades de letrados e iletrados.

Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, é uma figura constantemente presente nos estudos sobre a arte no império luso-brasileiro, sobretudo, destacando-se as esculturas ainda presentes em cidades mineiras. Entretanto, Márcia Almada – no seu artigo intitulado “E para verdade passo este de minha letra e sinal” – uma breve análise sobre cultura escrita e os recibos assinados por Antônio Francisco Lisboa (1772-1802) – não se deteve sobre o entalhador e o escultor, mas sobre o artista que assinou dezenas de recibos. Tais papeis certificam ou não a autoria de determinadas obras de Francisco Lisboa. Assim, o interesse da leitura de Almada foi problematizar a dimensão destes registros nas “práticas da escrita de fins do século XVIII na Capitania de Minas Gerais” (p. 32). A autora analisou as características materiais e textuais dos recibos, dos quais destacou elementos como a caligrafia, a ortografia e a adequação do texto às tratadísticas do período. Com estas questões, Almada levantou problematizações sobre os diferentes níveis de letramento presentes no período colonial e concluiu que Francisco Lisboa “esteve envolvido ativamente com a cultura escrita” (p. 41). A autora reuniu um conjunto de informações quanto às particularidades gráficas do escultor para afirmar que, diante da fluência, do ritmo ordenado, da legibilidade, do uso livre de vários tipos gráficos, do domínio do espaço do papel, os recibos foram produzidos “por um sujeito hábil na escrita, que o fazia sem preocupação com modelos caligráficos, adotando um estilo pessoalizado” (p. 39) – interpretação que requereu de Almada manejar diferentes saberes que são necessários a uma investigação integral sobre a História da Cultura Escrita.

A história do império luso-brasileiro sofreu importantes pontos de inflexão no início do século XIX, o que afetou a cultura escrita de ambos os lados do Atlântico. A produção de impressos passou a ser autorizada no Brasil, com a vinda da família real portuguesa em 1808, assim como a produção e a circulação de manuscritos tomou novos rumos6. Neste contexto, a contribuição de Adriana Angelita da Conceição e Juliana Gesuelli Meirelles, Papeis em travessia: o bibliotecário Luís Joaquim dos Santos Marrocos e os Manuscritos da Coroa – século XIX, problematizou a transferência da Livraria Real e do setor de Manuscritos da Coroa para o Rio de Janeiro – nova sede da corte lusa. Em meio a estes papeis em travessia a figura do bibliotecário Luís Joaquim dos Santos Marrocos foi expressiva, sobretudo, pela conservação das cartas que enviou ao pai e que relatam os primeiros anos de fixação e reconfiguração da monarquia em solo americano. Junto ao trabalho que desenvolveu no estabelecimento e na organização da biblioteca, Marrocos foi encarregado para também cuidar dos manuscritos reais – cargo que requeria grande responsabilidade e a observância do segredo. As autoras estudaram o documento manuscrito produzido por Marrocos: Índice geral dos Manuscriptos da Bibliotheca da Coroa disposto alfabeticamente, custodiado na Biblioteca da Ajuda em Lisboa. A partir deste, debateram questões ligadas aos sentidos simbólicos e práticos da materialidade dos papeis escritos à mão, vistos como “importantes instrumentos da cultura política portuguesa” e inseparáveis “das práticas, discursos e representações da escrita moderna – na qual, impressos e papeis de punho conviveram dentro de suas especificidades, sem sobreposições, isto é, reconfiguraram-se após a ascensão da tipografia” (p. 54).

Através de uma observação linguística que pondera características sociais, Vanessa Martins do Monte e Phablo Fachin, em Saibham quantos este estormento de contrato virem: análise das terminações nasais em contratos dos séculos XV e XVI, estudaram um conjunto de contratos presentes no fundo da Colegiada de Santa Maria de Guimarães, Noroeste de Portugal, custodiados pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo e datados entre os séculos XV e XVI. A escolha por documentos não-literários certifica, segundo os autores, baseados em rico debate bibliográfico, a eficácia destes tipos textuais nos estudos linguísticos. Monte e Fachin problematizaram a questão da variação das terminações nasais e sua posterior convergência em “-ão” para levantar novas questões quanto aos limites temporais de periodização da língua portuguesa – “Os contratos analisados espelham uma realidade linguística muito particular e, apesar de produzidos no período do português médio, revelam características que os aproximam de um estado de língua mais antigo” (p. 56). Ao discutirem tais aspectos, Monte e Fachin reuniram elementos para a historicidade da língua portuguesa que teria vindo para o Brasil, junto aos colonizadores, intensificando as apreciações referentes à história do português brasileiro.

No artigo El Ciego Callejero en la España Moderna: balance y propuestas, Abel Iglesias Castellano apresenta a atuação dos ciegos callejeros como agentes culturais. Através de uma pertinente revisão bibliográfica, indica os principais estudos sobre a temática e indaga sobre o papel desses agentes como mediadores culturais, atuantes na difusão da cultura escrita entre centenas de letrados e analfabetos espanhóis. Castellano indica duas linhas de investigação: a dos que “han optado por adentrarse en la obra de los ciegos copleros autores” e a dos que discutem “las hermandades y el rol que desempeñaron los invidentes en la difusión de pliegos sueltos” (p. 76-77). Dentro destas duas frentes que considera como complementares, apresenta a pergunta que justifica sua pesquisa: “¿quiénes fueron los ciegos callejeros y qué papel tuvieron en la cultura escrita de la España Moderna?” (p. 77). Sem o compromisso de esgotar o assunto, aponta que para as práticas nas quais os ciegos callejeros estavam envolvidos a oralidade era essencial para a difusão pública e privada do tipo de escrita que produziam e/ou comercializavam. Portanto, as demandas apresentadas pelo autor encontram-se com as portas abertas por ser uma temática ainda pouco visitada e que indica um importante viés de contribuição para o questionamento da difusão da cultura escrita moderna – que também passava pelas mãos e bocas dos ciegos callejeros espanhóis no período moderno.

No texto Brasil e Portugal no Antigo Regime: a correspondência pessoal como veículo da cultura iluminista (1808-1817) – uma abordagem a partir do arquivo pessoal do Conde da Barca, Abel Rodrigues e Renata Munhoz estudaram uma importante figura de um momento singular da história do império luso-brasileiro: o diplomata e ministro António de Araújo de Azevedo, o conde da Barca, no contexto da instalação da monarquia portuguesa no Brasil. O texto enfatiza os sentidos do Iluminismo na passagem para o século XIX, com ênfase nas práticas do conde da Barca, que ficaram registradas em sua correspondência particular, ou seja, a que circulou fora dos âmbitos burocráticos do governo, mas trocada entre destinatários comuns aos seus círculos públicos. O arquivo de Araújo de Azevedo é vasto e reúne “um total de 1.900 documentos provenientes de cerca de 490 remetentes, por meio dos quais é possível cartografar as redes de sociabilidade entre Portugal, Brasil e a Europa” (p. 101). Rodrigues e Munhoz refletiram sobre os principais temas presentes nas cartas recebidas pelo conde da Barca, ao ponderarem suas relações sociais em meio ao que chamam de cultura iluminista. Por fim, o viés analítico dos autores contextualiza a cultura escrita do período ao destacar três aspectos basilares: a) a formação da grandiosa biblioteca do conde que após sua morte foi comprada por D. João VI e incorporada à Livraria Real; b) as relações de Araújo de Azevedo com a prática epistolar; e c) o fato de ter instalado a primeira tipografia autorizada no Rio de Janeiro.

A pesquisadora Renata Ferreira Costa, no artigo intitulado Procedimentos de retextualização para o disfarce da cópia no século XVIII: o caso da Memória Histórica da Capitania de São Paulo, selecionou para sua investigação o livro manuscrito Memória Histórica da Capitania de São Paulo, de autoria de Manuel Cardoso de Abreu, datado de 1796. A obra foi lida por historiadores do início do século XX que a classificaram como o resultado de uma ação plagiária. A autora historicizou o conceito de autoria textual e de escrita da História e, deste modo, consultou um conjunto de cinco obras, também produzidas no século XVIII, para compreender os procedimentos usados por Cardoso de Abreu para compor seu manuscrito – o que Costa denominou como retextualização. A pesquisa valeu-se dos referenciais teóricos e metodológicos da Crítica de Fontes e da Crítica Textual – ligados à Filologia – para estudar o disfarce da obra de Cardoso de Abreu, identificando o processo de retextualização elaborado por meio de adição ou eliminação de dados e de elementos linguísticos, pela “reordenação da ordem de palavras e orações, a substituição de palavras ou construções gramaticais e a reelaboração de frases, trechos ou parágrafos” (p. 105) – aspectos que foram exemplificados no artigo. A análise de Costa permite que se compreenda a composição da Memória Histórica da Capitania de São Paulo vinculada à Cultura Escrita da qual o autor fazia parte e na qual o procedimento de compilação de obras era legitimado.

A movimentação de papeis impressos e manuscritos carregados das mais variadas notícias durante o século XVII é um assunto que desperta grande interesse entre os pesquisadores do período moderno, dentre os quais incluímos Caroline Garcia Mendes, que escolheu um momento de profunda transformação em território lusitano: a coroação de D. João IV – a Restauração Portuguesa –, como seu contexto de análise. No texto “Por ser nova de grande alegria para este reino, se pôs nessa Gazeta”: A circulação de notícias e a Gazeta ‘da Restauração’ em Portugal (1641-1647), o objeto de sua investigação foi a Gazeta da Restauração, publicada, em uma primeira fase, de novembro de 1641 a julho de 1642, quando ganhou um novo formato e se manteve até setembro de 1647. Neste sentido, a autora problematiza a produção e a circulação da Gazeta entre as redes de editores e impressores portugueses, ponderando a mobilidade de impressos e quais eram as novas consideradas dignas de serem noticiadas naquele momento de restruturação política da monarquia lusa. Para Mendes, a principal função da Gazeta da Restauração era “exaltar a nova dinastia e ao mesmo tempo desmerecer os castelhanos” (p. 135). Consequentemente, a autora estuda o periódico a partir das atuais análises da História da Cultura Escrita, nas quais é imprescindível pensar o contexto social de composição vinculado às estratégias de uso e movimentação das notícias impressas.

No artigo A retórica da história no século XVII, o corpus escolhido foram duas obras impressas e de grande circulação no período: Ásia portuguesa, de Manuel de Faria e Sousa, e História de Portugal Restaurado, de D. Luís de Menezes, 3° conde da Ericeira. Diferentemente de muitos dos estudiosos do Seiscentos, André Sekkel Cerqueira ofereceu menos atenção ao corpo textual dos livros e deteve-se sobre os textos preambulares, de modo a analisá-los por uma perspectiva retórica e que não deixou de ser, sobretudo, histórica. O autor inquiriu sobre dois aspectos pertinentes ao gênero histórico na época: o uso de prerrogativas pertencentes à retórica e o sentido de verdade – elementos que frequentemente eram reivindicados por Manuel de Faria e Sousa e D. Luís de Menezes, ao recorrerem à autorização do discurso de Cícero (do século I a. C.), Luciano de Samósata (século II d. C.) e Agostino Mascardi (século XVII), conforme mostra Cerqueira. Por conseguinte, pondera que “o conhecimento das técnicas retóricas do período estudado é extremamente relevante para a reconstituição das práticas de escrita anteriores ao século XVIII — momento no qual percebe-se um uso menos intenso delas” (p. 138). Através do estudo de textos preambulares, o autor destaca a existência de determinadas normas gerindo a produção do texto – tal constatação permitiu que reunisse em seu artigo elementos para uma maior compreensão sobre a Cultura Escrita no Seiscentos e, em especial, a prática de escrita do gênero histórico.

As autoras, Mariana Fagundes de Oliveira Lacerda e Zenaide de Oliveira Novais Carneiro, uniram os antigos saberes da Filologia às atuais propostas de edições digitais no artigo Edição filológica e digital do Livro do Gado e do Livro de Razão do arquivo do Sobrado do Brejo (Bahia setecentista e oitocentista). Os objetos de investigação foram dois manuscritos: o Livro do Gado e o Livro de Razão do Brejo do Campo Seco, produzidos no sertão da Bahia, por diferentes gerações de uma família, entre o final do século XVIII e o terceiro quartel do século seguinte. Trata-se de práticas de escrita ligadas ao ambiente doméstico e que reúnem informações sobre os procedimentos da administração familiar, assim como em relação à gerência do espaço da fazenda. No primeiro momento, as autoras pesquisaram os usos e as funções deste tipo de escrita no contexto histórico de produção, para, de modo interdisciplinar, compreenderem o universo sociolinguístico dos manuscritos, quando então partiram para a definição dos processos de edição. Unindo a Filologia às ciências computacionais, a edição digital abre espaço para a concepção de uma e-philology e/ou Humanidades Digitais, conforme apresentam em debate com diversos especialistas sobre o assunto. Deste modo, para Fagundes e Carneiro este tipo de edição não serve apenas aos estudos da história do português culto e popular do Brasil, mas também às problematizações referentes à cultura escrita, em meio aos aspectos históricos, políticos, culturais e econômicos do período – em especial, pela interação das informações que proporciona, ou seja, uma “hipermídia capaz de incluir, no mesmo ambiente, edições convencionais (crítica, diplomática, fac-similar, etc.) e diversos tipos de documentos iconográficos, filmográficos, sonoros e textuais, com recursos de zoom, hipertexto e animação” (p. 160).

Junto ao editor da revista LaborHistórico, Leonardo Lennertz Marcotulio, selecionamos e traduzimos ao português o texto Paleografía versus Alfabetización. Reflexiones sobre Historia Social de la Cultura Escrita, de autoria de dois importantes especialistas na temática: Antonio Castillo Gómez e Carlos Sáez, publicado em 1994. O texto expõe uma minuciosa revisão da paleografia como ciência da escrita, ao modo do pensamento de Armando Petrucci. Além disso, incorpora uma das mais pertinentes discussões historiográficas da década de 90, as reviravoltas da nova história social e cultural, período no qual os estudos sobre a cultura escrita definiam com mais precisão suas principais problemáticas. Neste sentido, os autores destacam a interdisciplinaridade como um ambiente mais seguro para se falar em História da Cultura Escrita e, consequentemente, em História da Alfabetização. Ao traduzir este texto, almejamos tornar mais acessível aos leitores em língua portuguesa reflexões teóricas e, acima de tudo, metodológicas sobre uma temática que vive um “esplêndido momento” na produção científica brasileira, conforme destacou Antonio Castillo Gómez (2014, p. 22) 7, mas que ainda carece de produções que tomem os procedimentos metodológicos como objeto de análise. Portanto, trata-se de um texto indispensável aos que pretendem se aventurar pelo assunto, ao se considerar a discussão de método, a vasta bibliografia referenciada e por colocar o contexto ibérico em evidência.

Por fim, as pesquisadoras e os pesquisadores – do Brasil, Espanha e Portugal – que integram este dossiê produziram seus artigos intencionando contribuir com o atual dinamismo analítico da História da Cultura Escrita. Esperamos que essa proposta de investigação continue revigorando-se, permitindo que velhas e novas fontes de pesquisa – livros, cartas, recibos, inventários, contratos, libelos, bulas, gazetas, relações, livros de razão – possam oferecer outras leituras sobre o universo das letras e dos signos gráficos: espaço no qual se conformam relações de poder e desigualdades sociais que se estabelecem por meio dos diferentes graus de domínio e acesso à escrita e à leitura.

Notas

1 Conferir BLAY, Francisco Gimeno. Las llamadas ciencias auxiliares de la Historia ¿Erronea interpretacion? (Consideraciones sobre el método de investigación en Paleografía). Zaragoza/Disputación Provincial: Institución Fernando el Católico, 1986.

2 PETRUCCI, Armando. La ciencia de la escritura: primeira lección de paleografía. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica Argentina, 2002.

3 GÓMEZ, Antonio Castillo. ¿Qué escritura para qué historia? In: GÓMEZ, Antonio Castillo (editor). Culturas del escrito en el mundo occidental: del renacimiento a la contemporaneidad. Madrid: Casa de Velázquez, 2015.

4 BLAY, Francisco Gimeno. Conservar la memoria, representar la sociedad. SIGNO. Revista de Historia de la Cultura Escrita, Universidad de Alcalá, n. 8, p. 359-378, 2001.

5 “Escritura expuesta: cualquier tipo de escritura concebido para ser utilizado en espacios abiertos o cerrados, para permitir la lectura plural (en grupo, masiva) y a distancia de un texto escrito sobre uma superficie expuesta; condición necesaria para que sea efectivo su uso es que la escritura expuesta sea suficientemente grande, y presente el mensaje del cual es portadora de manera (verbal y/o visual) evidente y clara”, em PETRUCCI, Armando. La escritura: Ideologia y representación. Trad. María Beatriz Raffo. Buenos Aires: Ampersand, 2013, p. 25.

6 A instalação das primeiras máquinas tipográficas na cidade do Rio de Janeiro também foi abordada pelo texto de Renata Munhoz e Abel Rodrigues – integrante deste Dossiê.

7 GÓMEZ, Antonio Castillo. Livros e leituras na Espanha do século de ouro. Ateliê Editorial: Cotia (SP), 2014.


Organizadora

Adriana Angelita da Conceição – Professora Colaboradora – PPGH-UFAM.


Referências desta apresentação

CONCEIÇÃO, Adriana Angelita da. Apresentação. LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.2, n.1, p. 10-15, jan./jun. 2016. Acessar publicação original [DR]

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