Paulistas e emboabas no coração das Minas – ROMEIRO (VH)

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008, 431 p. Resenha de: STUMPF, Roberta. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Publicado em 2008, este livro da professora Adriana Romeiro, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, tem como tema a Guerra dos Emboabas, como ficou conhecido o levante ocorrido na capitania das Minas Gerais em 1708-1709. Já nas primeiras páginas retoma as análises historiográficas de um episódio que foi exaustivamente estudado até a segunda metade do século XX, perguntando-se o que de novo poderia dizer sobre a matéria. E não é preciso avançar demasiadamente na leitura para observar que apresenta uma visão claramente inovadora, ao adotar uma perspectiva analítica que privilegia a história política “à luz de uma perspectiva cultural” (p.26).

É esta mesma proposta a de seu livro anterior, publicado em 2001, Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais,1 pelo que se pode dizer que a trajetória de investigação da autora apresenta um percurso homogêneo, não obstante a diversidade dos temas aos quais se dedica. Neste livro anterior, estuda um personagem fascinante, o português Pedro de Rates Henequim, que ao voltar ao Reino, depois de viver nas Minas, foi acusado de heresia pelo Santo Ofício e queimado em um auto de fé, em 1744. Em ambos os livros, a análise recai não tanto na história de vida dos personagens ou na descrição dos eventos, por si só interessantes ao leitor. O que lhe importa analisar são as práticas e as idéias de acentuado cunho político que coexistiram nas Minas do século XVIII e que tinham diferentes matrizes: uma portuguesa e outra, original, inovadora, mestiça, sertaneja, popular….

Sobre a última obra publicada, o que nos importa explorar é a tese principal de Romeiro, que permeia todos os capítulos, embora se apresente com maior clareza no quinto, “Idéias e práticas políticas”, o qual segundo a própria autora é “o âmago do livro”. Neste caso, não opta por seguir uma seqüência cronológica linear, comum aos historiadores mais interessados na descrição dos eventos. Antes opta por um percurso narrativo que vai da dimensão imperial ao nível local das Minas, atenta sempre às idéias e às práticas daqueles que atuaram neste contexto particularmente importante na história das Minas e de todo o Império português: a década inicial do Setecentos.

As diferentes propostas administrativas que eram gestadas para as Gerais são compreendidas mediante a análise dos imaginários políticos que coexistiram e que acabaram por explicar o confronto que teve a capitania como palco. O posicionamento da Coroa e de seus representantes é cuidadosamente analisado porque foi determinante para o sucesso ou o fracasso das estratégias adotadas por paulistas e emboabas, que irão se enfrentar ao longo das diferentes etapas que constituíram este processo de descobrimento e colonização das Gerais.

Longe de apresentar uma atuação uniforme, a política governamental foi determinada muitas vezes pelos interesses pessoais de governadores gerais e governadores da Repartição Sul assim como pelas diferentes percepções que dividiam as autoridades no Reino em relação à importância estratégica do ouro e das Minas para a monarquia portuguesa. As incertezas em relação aos benefícios da extração aurífera e à importância do estabelecimento de um aparato administrativo consolidado beneficiou, nos primeiros anos do século XVIII, os paulistas que encontraram naqueles sertões recém descobertos um terreno propício para agirem. A valentia destes homens, guiados por valores como a honra, que mais do que ninguém sabiam vencer os perigos de um território povoados de índios e súditos rebeldes, foi útil à empresa colonizadora nas Minas, como haviam sido, na figura de Domingos Jorge Velho, na luta contra o quilombo dos Palmares (p.197). Pelo que nos primórdios a Coroa aproveitou-se da ambição dos paulistas pelas distinções para cooptar seus serviços, provendo-os em cargos políticos importantes e beneficiando-os com o primeiro Regimento que regularizava a distribuição das datas.

É verdade que muitas autoridades não eram favoráveis a esta tendência pró-paulista, pois a outra face da “legenda negra”, associada a estes, e que eles próprios contribuíram para consolidar, prejudicava a consolidação de uma ordem nos moldes desejados pela monarquia. Quando a riqueza proveniente do ouro despertou a cobiça régia e a monarquia julgou necessário controlar a região, a imagem dos paulistas como homens inclinados à autonomia ganhou maior acolhimento. A forma particular que tinham em negociar com as instâncias políticas centrais, a adoção de uma tática de “guerra brasílica”, o sangue mestiço, ou mesmo a violência utilizada em defesa da honra, sustentavam a desconfiança, por exemplo, dos conselheiros ultramarinos que resistiam cada vez mais lhes conceder mercês.

A semelhança do que ocorria em outras paragens da América, onde os primeiros descobridores ou restauradores de um território ocupado por inimigos julgavam-se beneméritos de mercês régias, também os homens do Planalto se apropriaram da retórica do “direito da conquista” para “pleitear as mais valiosas honras e mercês” (p.38). Mas a vertente detrativa da imagem atribuída aos mesmos dificultou seus intentos favorecendo, por sua vez, os emboabas, como eram chamavam pelos paulistas aqueles que não descobriram as Minas, mas que para lá se dirigiam para tirar proveito de suas riquezas e de seus cargos ainda por ocupar. Mas se estes forasteiros não podiam se valer do fato de terem sido os primeiros a desbravar os sertões, esforçavam-se por serem vistos como fieis súditos do monarca que restaurariam o poder régio na região comandada pelos tirânicos paulistas. Trata-se de duas retóricas distintas, e igualmente legítimas para a cultura política vigente, adotadas por dois grupos que tinham estratégias diversas que visavam o mesmo fim e que traduziam, como evidencia com sucesso a autora, imaginários políticos em confronto, que terão repercussões duradouras naquele território.

É este talvez o maior contributo desta obra: o destaque dado a um conflito que não teve como principal palco o campo de batalha. Os vencedores não foram os que sabiam melhor guerrear ou os que tinham as armas bélicas mais eficazes. Mas sim aqueles que percebendo a realidade, e agiam nesta, de forma mais conveniente aos interesses régios, foram eleitos como sendo os mais dignos de receberem as recompensas, cargos ou honras, que ambos os grupos almejavam conquistar. A economia moral do dom não fora apenas um instrumento que permitiu a consolidação dos laços entre súditos e monarcas. Foi um sistema tão atrativo aos desejos de ascensão social que determinou muitas vezes que súditos envolvidos em embates na disputa de recursos e mercês utilizassem retóricas distintas e conflitantes para verem-se agraciados pelas autoridades.

Por vezes somos levados a pensar que Romeiro atribui à naturalidade dos vassalos um fator essencial para explicar o posicionamento régio e consequentemente o desfecho do levante, contrariando assim as análises historiográficas mais recente que insistem na pouca relevância da oposição entre naturais da América e do Reino, ao menos até o final do século XVIII. Se os paulistas possuíam uma identidade cultural que os singularizava, ou mesmo “étnica” como afirma a autora, eram reconhecidos evidentemente como sendo os naturais de São Paulo. Porém, no que compete aos em-boabas, se há indícios de que os conselheiros ultramarinos lhes atribuíam uma naturalidade reinol, provavelmente assim faziam para salientar as diferenças em relação aos paulistas, a quem faziam fortes ressalvas. A autora, no entanto, cita outros documentos coevos que comprovam o quanto a naturalidade dos emboabas era uma questão controvérsia, que tampouco deve ser resolvida. Assim, embora a dimensão paulista seja sempre enfatizada, ao mostrar que os emboabas eram tanto americanos como reinóis, a autora critica as análises que deram ao levante um cunho nativista. Se no contexto de 1708-9 a naturalidade paulista estava associada a uma postura contestadora e autonomista, no decorrer da centúria nada indica que esta associação continue a ter a mesma intensidade, ao menos é o que percebemos no teor das solicitações de mercês efetuadas pelos habitantes das Minas nas quais a naturalidade não aparece nos pareceres como um critério a legitimar ou não a justiça das súplicas.

Se o levante emboaba, como se infere no título do livro, é crucial para entender todo o século XVIII mineiro, não o é por esta razão. Seu maior legado, como afirma a autora nas conclusões, são as formulações políticas que naquele contexto eclodiram e que serão essenciais ao imaginário político da população local (p.317). Ao longo do Setecentos as idéias e as práticas políticas, que traduzem matrizes da tradição insurgente e também não insurgente, sobreviverão, muitas vezes com um conteúdo remanejado. Tanto o discurso embasado no “direito da conquista” como o “restauracionista”, defendidos respectivamente por paulistas e emboabas, legitimaram motins e sedições, entre os quais o mais importante deles ocorrido em 1788-9. Talvez fosse interessante saber, seguindo a sua própria linha de raciocínio, se ao longo desta centúria os súditos interessados em fazer valer seus direitos pelas vias consideradas legítimas, se apropriaram destes discursos para solicitar mercês ao Conselho Ultramarino.

A autora, porém, apesar de mencionar na introdução a importância de se evitar uma análise da Guerra dos Emboabas que se restrinja à curta temporalidade, ou seja, ao episódio em si, só analisará rapidamente a permanência destas retóricas nos movimentos sediciosos na última página do quinto capítulo, voltando a lhe dar destaque nas conclusões. Romeiro não despreza a importância do tema, mas não o aprofunda, quase como se estivesse a sugeri-lo para uma investigação futura, de sua autoria ou de outro historiador, disposto a aproveitar esta dica tão valiosa.

Esta obra foi bem acolhida pela historiografia brasileira, e deve continuar a sê-lo pelo que nela foi dito e exaustivamente analisado, ou pelo que foi apenas sugerido, já que a consistência das sugestões também se deve ao rigor e à originalidade da pesquisa que apresenta.

1 ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

Roberta Stumpf – Pesquisadora do Centro de História de Além Mar/Universidade Nova de Lisboa Rua Berna, 26C, gabinete 2.19, Edifício DRM Lisboa, Portugal, CEP1069-061, robertastumpf@gmail.com.

 

 

 

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