Protagonismo indígena e ensino de História: identidades, ação política e território | Revista Historiar | 2017

O presente dossiê da Historiar tem como tema o protagonismo indígena e o ensino de História, trazendo ao público trabalhos inovadores e relevantes realizados por pesquisadoras e pesquisadores em diferentes locais institucionais e momentos de sua formação. O conjunto de artigos que agora publicamos representa a vitalidade e a complexidade da temática indígena no campo da História, que vem se renovando desde o início dos anos 2000 com o aumento de pesquisas de excelência desenvolvidas em diversas universidades do país. Esses trabalhos mais recentes têm apresentado o foco em debates interdisciplinares, prezando pelo diálogo com a Antropologia histórica e construindo análises sobre identidades coletivas, ações políticas dos indígenas motivados por necessidades e interesses próprios e reelaboração de territórios das antigas aldeias coloniais. Os artigos deste dossiê apontam para períodos e objetos que vêm ganhando visibilidade na área, tais como o ensino de História voltado para a temática indígena, a prática de governos provinciais a partir da legislação indigenista do início do século XIX e a participação política dos índios nos debates políticos do Oitocentos e na defesa de suas terras.

A Lei 11.645 de 2008, que tornou obrigatória a temática indígena no ensino básico, com especial ênfase nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras, impulsionou várias novas pesquisas para a grande problemática de inserção da participação dos diversos povos indígenas na formação do Brasil, para além do viés culturalista. Apesar da temerosa reforma do ensino médio executada em 2017, que diminuiu drasticamente o espaço e a importância da disciplina de História para esse segmento da formação, a obrigatoriedade do ensino da temática indígena foi mantida. No contexto de constantes ataques à democracia, intensificados após o golpe jurídico-parlamentar de 2016, o ensino de História sobre os indígenas em escolas não indígenas, principalmente, tornou-se um dos espaços para reflexão sobre preconceitos, racismos, estereótipos e sobre a pluralidade étnica e histórica do Brasil. Nesse sentido, o artigo que abre o dossiê, dos pesquisadores Giovani José da Silva e Vitor Ferreira da Silva, demonstra como a interpretação e o uso de mitos indígenas em sala de aula ajudam a desconstruir preconceitos no ensino básico, indicando “diferentes pontos de vista sobre determinados eventos” (p.17). Como estudos de caso que exemplificam essa afirmação, os autores analisam a interpretação própria elaborada pelos Kadiwéu (MT) sobre a Guerra do Paraguai e o mito Wajãpi (AP) sobre a construção da Fortaleza de São José de Macapá (ou Mairi) no período colonial. Assim, indicam a necessidade urgente de revisão de grades curriculares, conteúdos e materiais (como os livros didáticos) das escolas não indígenas para se tornar possível trabalhar em sala de aula o lugar dos povos indígenas na História do Brasil.

Ainda no campo do ensino de História, Felipe Nobre analisa duas obras voltadas para o ensino fundamental indicadas pelo Programa Nacional do Material e do Livro Didático (PNLD), acompanhando as alterações nos conteúdos sobre a temática indígena em função da Lei 11.645 de 2008. Nobre percebe como, aos poucos, algumas questões levantadas e debatidas no meio acadêmico, frutos de pesquisas recentes, estão sendo incorporadas em livros didáticos e coleções entre os anos de 2008 e 2014. Além dos conteúdos, Nobre também realça os históricos, as relações e as linhas de publicação das editoras responsáveis pelas obras, apontando para a inserção no mercado editorial desse tipo de produto.

Em outra dimensão sobre a abordagem da temática indígena no ensino de História, Maria da Penha da Silva faz uma análise sobre o papel da universidade na formação dos professores que irão atuar no ensino básico diante da obrigatoriedade colocada pela Lei 11.645 de 2008. A autora faz um estudo sobre o curso de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e as ações para a implementação da lei, analisando a grade curricular e a legislação em vigor. Silva afirma a necessidade de um componente específico sobre a temática indígena no curso, já que a abordagem sobre a área ainda depende de esforços individuais de professores em disciplinas variadas.

No grupo seguinte de textos, são apresentados resultados de pesquisas relativas ao processo de transição entre o Antigo Regime e o sistema político liberal no século XIX, o que implicou na reconfiguração da condição do indígena de vassalo do monarca português a cidadão, e a participação de diversos grupos indígenas no processo de construção do Estado nacional, principalmente através de seu envolvimento em conflitos armados. No cerne dessa complexa transição estava a instituição da tutela e, por outro lado, o reconhecimento da capacidade de os indígenas se autogovernarem, o que pode ser observado ao acompanhar os debates parlamentares e as leis em voga.

Abrindo essa parte do dossiê, temos o artigo de Maico Oliveira Xaiver, que trata dos levantes armados de indígenas de aldeamentos localizados no entorno de Fortaleza e na Serra da Ibiapaba, no sertão do Ceará, durante os conflitos que precederam a Independência. Xavier procura demonstrar o protagonismo indígena nessas ações armadas, bem como a flexibilidade manejada pelos envolvidos entre as condições de indígena e de cidadão. Em seguida, analisando o mesmo período, João Paulo Peixoto da Costa aprofunda o estudo sobre as relações entre indígenas e não índios nos aldeamentos do Ceará. O autor consegue mapear as redes de alianças e inimizades criadas e recriadas nas localidades devido às disputas por terras, pela administração das aldeias e pelos embates políticos originados com as Cortes de Lisboa e, posteriormente, com a Independência do Brasil.

Sobre a primeira metade do século XIX, há um debate relativo à legislação indigenista que antecedeu o Regulamento das Missões de 1845 e sobre a autonomia dos indígenas no que diz respeito à administração de seus bens, terras e força de trabalho. Propondo um importante avanço no referido debate, Vânia Moreira empreende um estudo sobre a abolição do Diretório de Índios no Espírito Santo e a reintrodução da figura do diretor de índios nas aldeias. A Carta Régia de 1798, que findou o Diretório de Índios, deu início a um período atípico da política indigenista ao estabelecer o autogoverno para os índios estabelecidos nas vilas e nos povoados. Assim, de acordo com Moreira, os indígenas tornaram-se livres da instituição da tutela. No entanto, no contexto do Espírito Santo no início do Oitocentos, o cargo de diretor de índios foi recriado em 1806, trazendo novamente as imposições da tutela e a exploração da mão de obra indígena pelo governo da capitania. A pesquisadora enfatiza que a reintrodução do cargo não significou a continuidade oficiosa do Diretório dos índios, situação que demanda pesquisas e análises mais detalhadas.

Em Pernambuco, os diretores de índios também continuaram atuando, como demonstra a pesquisa de Carlos Fernando dos Santos Júnior, autor do artigo seguinte deste dossiê. Ao analisar as aldeias de Assunção e Santa Maria, no sertão de Pernambuco, entre o final do século XVIII e o início do XIX, o autor demonstra a movimentação dos indígenas com o objetivo de defender suas terras em face dos avanços de autoridades e fazendeiros locais.

Avançando um pouco cronologicamente, Tatiana Gonçalves de Oliveira elabora uma análise sobre os debates políticos sobre a civilização dos indígenas, o uso de sua força de trabalho e o destino de suas terras, que resultou na legislação indigenista do Império a partir da década de 1840. A partir da abordagem sobre as leis, Oliveira demonstra como a política indigenista foi aplicada e adaptada no contexto do vale do Mucuri, em Minas Gerais, conferindo ênfase à atuação dos próprios indígenas da região.

No artigo seguinte, Ayalla Oliveira Silva demonstra o processo de criação e desenvolvimento da aldeia de São Pedro de Alcântara, em Ferradas (Sul da Bahia), no início do século XIX e os interesses particulares do ouvidor de Ilhéus sobre as terras coletivas. Os indígenas da região, como os camacãs, lidaram com o novo empreendimento por meio de estratégias próprias de alianças, negociações ou enfrentamentos, inclusive quando a sua mão de obra era requisitada de maneira forçada.

Encerrando o dossiê, Edson Silva e Deisiane da Silva Bezerra propõem uma abordagem sobre a mobilização de diferentes grupos indígenas no Nordeste no início do século XX, entre eles os Fulni-ô, Xukuru e Xukuru-Kariri, que conseguiram êxito em suas demandas ao se aliarem ao padre Alfredo Dâmaso. Por meio do cruzamento das informações fornecidas em entrevistas e das encontradas em jornais e documentos da época, os autores conseguiram acompanhar a movimentação dos indígenas em prol de seu reconhecimento frente ao Estado brasileiro.

Com diferentes interpretações, as pesquisadoras e os pesquisadores colaboradores deste dossiê apresentaram trabalhos em diferentes áreas relacionadas à História e à presença dos indígenas na formação do Brasil. Como já afirmamos, a variedade de temas indica a vitalidade e a complexidade do campo de estudos sobre os índios na História, temática que precisa ganhar força e impulso no contexto de Estado de exceção que vivemos atualmente. Com este dossiê da Historiar, intentamos mostrar a pluralidade de ações e posicionamentos praticados pelos indígenas, moldados por suas culturas, experiências e identidades diversas, bem como demonstrar a necessidade de incluí-los de maneira ativa e definitiva na História do país.

Boa leitura!

Mariana Albuquerque Dantas – Professora da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. E-mail: [email protected]


DANTAS, Mariana Albuquerque. Apresentação. Revista Historiar. Sobral, v. 9, n. 17, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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