Religião e Religiosidades / Locus – Revista de História / 2015

O presente dossiê da Revista Locus reúne contribuições de dez diferentes especialistas no estudo das práticas e representações religiosas elaboradas no mundo católico, com ênfase nas regiões de colonização ibérica, entre os séculos XVI e XIX. A organização do número constitui um desdobramento das atividades do Grupo de Pesquisa Ecclesia que tem se debruçado sobre uma variedade temática, que pode ser encontrada, a título de exemplo, nos seguintes campos de investigação historiográfica: as manifestações sagradas dos fiéis e do clero, em consonância ou em tensão com as normas institucionais; as formas de ação coletiva dos fiéis no campo religioso, especialmente a partir das irmandades e ordens terceiras; as marcas deixadas pela sociedade escravista e de Antigo Regime na formação do clero e nas vivências devocionais; os mecanismos de imposição da disciplina social católica aos fiéis, por meio da ação do episcopado e do padroado; e as representações acerca da morte e da santidade.

Muitos dos referidos campos de investigação têm sido renovados por contribuições recentes da historiografia. No que diz respeito, por exemplo, à ação dos bispos e do clero secular, José Pedro Paiva, em particular, mostrou a variedade de papéis assumidos pelos bispos diocesanos, que ocupavam um papel chave na supervisão das práticas religiosas dos fiéis e do clero, complementando e auxiliando as atividades do Santo Ofício da Inquisição. Além disso, o episcopado se encontrava muito próximo da órbita do poder monárquico, que escolhia criteriosamente os candidatos às vagas nas dioceses. Nas áreas de colonização, onde a manutenção do culto e a escolha de sacerdotes e bispos se encontravam sob a jurisdição dos padroados ibéricos, identificou-se com clareza a ação complementar das autoridades régias e dos bispos. Quanto ao clero diocesano, a historiografia se abriu a uma pluralidade de investigações, que faz ressaltar o papel central ocupado pelo pároco em uma sociedade do Antigo Regime que tinha o catolicismo como religião oficial: os estudos e a formação; as atividades rituais e de instrução religiosa; a análise do meio familiar e das origens étnicas; o envolvimento do clero em práticas morais ilícitas e em crenças heterodoxas.

As devoções, as sensibilidades religiosas e as correntes de espiritualidade de fiéis e de membros do clero têm sido também contempladas e renovadas pela historiografia. O culto à Paixão de Cristo, à Sagrada Família e ao Menino Jesus, derivado da devotio moderna, difundiu-se enormemente ao longo do período, estimulado pelo clero e contando com a participação ativa de fiéis reunidos em irmandades e ordens terceiras. A devoção ao Santíssimo Sacramento e às Almas do Purgatório recebeu igualmente grande incremento. Os vínculos entre os fiéis e os santos de proteção continuaram sólidos, em uma aliança sustentada pela prática da promessa e pela realização dos milagres. Sob o impulso do Concílio de Trento, a Igreja passou a interferir mais de perto na referida relação, procurando fazer do santo um modelo de conduta para o fiel, apoiando-se para isso na ação do clero nos sermões e na difusão da literatura devocional. Um sinal da ação controladora do clero, particularmente do Santo Ofício, foi o crescimento das acusações de “falsa santidade” dirigidas a leigos.

A partir de alguns campos de investigação expostos acima, é possível identificar maiores afinidades entre os autores. Deve-se chamar inicialmente a atenção para os estudos dedicados à temática da morte, analisada sob diferentes perspectivas, reunidos neste dossiê. Obedecendo a uma sequência cronológica, situa-se em primeiro lugar o artigo de Adalgisa Arantes Campos, intitulado “A iconografia das Almas e do Purgatório: uma releitura bibliográfica e alguns exemplos (séculos XV ao XVIII)”. Em diálogo com as obras de Jacques Le Goff, Michell Vovelle e Flávio Gonçalves, entre outros autores, Campos escolhe três fontes iconográficas para trabalhar as representações das Almas do Purgatório: a Coroação da Virgem pela Santíssima Trindade de Engerand Quarton (século XV); o Julgamento das Almas atribuído a Gregório Lopes (século XVI); e a portada dedicada a São Miguel e Almas da Capela do Senhor Bom Jesus, em Ouro Preto (século XVIII). A partir de uma análise comparativa, a autora constata o descompasso existente entre a fixação da doutrina do Purgatório no século XIII e a lenta alteração das representações iconográficas, que resistiram em assimilar um terceiro lugar no post-mortem.

Em seguida, encontra-se o texto de Claudia Rodrigues, “Estratégias para a eternidade num contexto de mudanças terrenas: os testadores do Rio de Janeiro e os pedidos de sufrágios no século XVIII”. No artigo em pauta, Rodrigues dialoga com ampla produção especializada a respeito da temática da morte, da qual extraiu elementos para analisar as fontes básicas de sua pesquisa: os registros de óbito, os testamentos e as contas testamentárias correspondentes à Freguesia do Santíssimo Sacramento da Sé do Rio de Janeiro, que se encontram no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Em diálogo com a obra de João Fragoso e de Roberto Guedes, atentos aos efeitos socioeconômicos das doações testamentárias, a autora revela no contexto em foco o “domínio dos mortos sobre os vivos”, característica de uma economia da salvação marcada pelo acúmulo de encomendas de missas, gastos funerários e doações de caridade, em detrimento do benefício de parentes vivos. A situação começa a mudar após as restrições dos gastos pro anima estipulados na legislação pombalina da década de 1760 que procurou favorecer os interesses dos herdeiros vivos dos testadores. Nesta conjuntura, a autora identifica as diferentes respostas contidas nas declarações de últimas vontades, desde as mais conformadas com as limitações impostas pelas Leis Testamentárias até os subterfúgios encontrados pelos testadores para continuarem a privilegiar o objetivo soteriológico do testamento.

Utilizando uma amostra documental mais reduzida, constituída pelas contas testamentárias de irmãos terceiros franciscanos e carmelitas que tiveram suas últimas vontades fiscalizadas pelo Juízo Eclesiástico do Rio de Janeiro, William de Souza Martins chega a conclusões semelhantes às de Cláudia Rodrigues, no que diz respeito ao impacto da legislação pombalina na economia da salvação do período, no artigo intitulado “Os irmãos terceiros franciscanos e carmelitas e a Justiça Eclesiástica do Rio de Janeiro (c. 1720-1820)”. Não obstante, antes e depois das restrições oriundas das medidas de Pombal, o autor identificou testadores que possuíam grandes patrimônios, vinculados ao comércio de grosso trato, cujas doações a favor da salvação das almas ficavam em patamar inferior aos benefícios materiais concedidos à parentela, inclusive a parentes mais afastados. Paralelamente, o autor observou a existência de um forte espírito de corpo entre os irmãos terceiros, que tendiam a favorecer as próprias ordens e os frades carmelitas e franciscanos com diferentes tipos de doações e despesas funerárias.

Deixando o período colonial e adentrando o período da Independência e afirmação do Estado nacional, o artigo de Gabriela Alejandra Caretta, “Y el Cielo se tiñó de rojo… Muerte heroica y Más allá en las Provincias Des-Unidas del Río de la Plata (1820-1852)” analisa as conexões existentes entre os funerais extraordinários de líderes de facções em disputa na região do Rio da Prata e a História Política da região no pós-independência. Neste estudo, em que representações fúnebres assumiam uma função importante na fundação de determinadas memórias e narrativas políticas, a autora verificou, nos quatro estudos de caso que analisa, que houve uma atualização da tradição católica da “boa morte”, que passou a incluir temas não desenvolvidos no período colonial, como o discurso heroico do “enfrentamento da morte”.

Para além da temática da morte, das suas práticas e representações, o dossiê contempla também estudos que analisaram o modo como a difusão de narrativas piedosas contribuiu para moldar as práticas de determinados fiéis, assim como potencializou a veneração e o culto de indivíduos cuja fé era considerada heroica. Seguindo novamente a ordem cronológica, situa-se em primeiro lugar o artigo de Eliane Cristina Deckmann Fleck, intitulado “De Apóstolo do Brasil a santo: a consagração póstuma e a construção de uma memória sobre o padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597)”. Partindo da análise de três narrativas de vida do jesuíta Anchieta, elaboradas nos séculos XVI e XVII por diferentes membros da Ordem, a autora constata o esforço crescente dos cronistas da Companhia de Jesus em apresentar testemunhos autênticos da fé e das virtudes heroicas de Anchieta, com vistas a favorecer a causa de beatificação, aberta em 1624. Devido à presença de componentes hagiográficos, tais narrativas não podem ser consideradas propriamente biográficas. A autora analisa também os inúmeros obstáculos ao longo do processo de beatificação de Anchieta, que somente foi concluído em 1980. Por fim, analisando diversos outros escritos sobre o jesuíta, publicados nos séculos XIX e XX, a autora também lança luz sobre diferentes apropriações da trajetória de Anchieta, aproximando-a, por exemplo, do projeto de afirmação da unidade nacional.

Inserido na mesma temporalidade do artigo acima, mas tratando do outro extremo do império português, situa-se o texto de Margareth de Almeida Gonçalves, intitulado “‘Despozorios divinos’ de mulheres em Goa na época moderna: eloquência e exemplaridade no púlpito do mosteiro de Santa Mônica (frei Diogo de Santa Anna, 1627)”. No texto em questão, a autora examina um sermão pregado pelo referido frade agostinho durante a inauguração do Mosteiro do ramo feminino da sua Ordem, na capital da Índia portuguesa. No sermão, frei Diogo de Santana aponta para as características exemplares das mulheres que haviam feito os votos solenes da vida religiosa e se tornado “esposas de Cristo”. A narrativa é construída a partir das convenções da oratória sagrada do período, particularmente de analogias retiradas das escrituras sagradas. Assim, o Mosteiro de Santa Mônica aproxima-se do antigo Templo de Salomão, em Jerusalém.

O texto de Célia Maia Borges, intitulado “Os leigos e a administração do sagrado: o irmão Lourenço de N. Sr.ª e a Irmandade Nossa Senhora Mãe dos Homens – Minas Gerais, século XVIII” apresenta a notável trajetória de um irmão da Ordem Terceira de São Francisco que abraça a vida eremítica, tornando-se um ermitão leigo na Serra do Caraça. Desconstruindo uma visão historiográfica tradicional, segundo a qual o irmão Lourenço era fugitivo das perseguições de Pombal, a autora aprofunda a análise das inclinações religiosas do ermitão, próximas das correntes da Devotio Moderna, representadas exemplarmente naquele contexto pelos missionários apostólicos varatojanos, os quais pretendeu atrair para a Serra do Caraça. Paralelamente, a autora analisa as tensões existentes no campo religioso, em que se opunham o projeto do ermitão e as desconfianças do bispo de Mariana, que acabou autorizando apenas a fundação de uma irmandade leiga na Serra do Caraça. Sem dúvida, o texto da autora contribui para preencher uma importante lacuna nos estudos sobre a atuação dos ermitães na América portuguesa, particularmente no que diz respeito ao envolvimento dos mesmos na gestão de lugares de culto.

Passando a tratar das questões atinentes ao clero secular, deve-se mencionar primeiramente o texto de Anderson José Machado de Oliveira, “A administração do sacramento da ordem aos negros na América portuguesa: entre práticas, normas e políticas episcopais (1702- 1745)”. No artigo em pauta, o autor apresenta novas análises a respeito da temática a qual vem se dedicando há alguns anos, a da habilitação à carreira sacerdotal de descendentes de africanos, a partir da pesquisa de centenas de processos existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. A permissão para que os negros tivessem acesso ao sacramento sacerdotal era rigidamente controlada pela hierarquia eclesiástica, representada pela própria Santa Sé, como também pelos bispos diocesanos, os quais recebiam do papa autorizações temporárias para as dispensas do “defeito da cor”. Conforme assinala o autor, a lógica casuística das dispensas, efetuadas caso a caso, e que levavam em conta as singularidades e qualidades dos ordinandos e das redes de sociabilidade que acionavam, funcionava como um mecanismo de reforço das hierarquias da sociedade escravista e de Antigo Regime. Vale a pena chamar a atenção também para o fato de que a concessão de dispensas variava conforme diferentes políticas episcopais, mais favoráveis a tais concessões no episcopado de D. Francisco de São Jerônimo, e mais raras nos bispados de D. Fr. Antônio de Guadalupe e D. Fr. João da Cruz.

Fundamental para compreender a projeção do poder episcopal sobre o clero secular e os fiéis no Antigo Regime, os juízos eclesiásticos dos bispados têm sido ainda pouco estudados pela historiografia, um hiato que tem sido corrigido pelas pesquisas de Pollyana Gouveia Mendonça Muniz. Em “O Juízo Eclesiástico do Maranhão colonial: crimes e sentenças”, o texto apresentado pela autora para o presente dossiê, Muniz revela a amplitude das esferas de atuação do tribunal diocesano, que incluíam a fiscalização sobre a realização de matrimônios; libelos de divórcio; investigação de delitos de natureza moral, como concubinato e incesto; autos de testamento, conforme foi também analisado nos textos de William de Souza Martins e Claudia Rodrigues, entre outras atividades. A autora mostra como a ação dos juízos eclesiásticos complementou, em cada diocese, o funcionamento do Santo Ofício da Inquisição, atuando como um mecanismo adicional de imposição da disciplina católica às populações do Antigo Regime.

Por fim, dedicando-se ao tema de sua maior especialidade, isto é, a análise das procissões e dos rituais religiosos no Antigo Regime, Beatriz Catão Cruz Santos apresenta o texto “Os ofícios mecânicos e a procissão de Corpus Christi no Arquivo Municipal de Lisboa – séculos XVII e XVIII”. A autora analisa diversos detalhes presentes na organização da procissão, de caráter oficial, do Corpo de Deus, como a convocação do Senado da Câmara de Lisboa e da Irmandade de São Jorge. Na medida em que revelava a aquisição de prestígio social, a participação de diferentes agentes era regulada na procissão por meio de um sistema de precedências, o que não impedia a existência regular de conflitos, cuja ocorrência era por vezes provocada pela manutenção de antigos costumes locais em oposição às normas escritas, conforme se mostrou na contenda entre os oficiais de ourives e o Cabido de Lisboa.

Acreditamos que a reunião destes artigos contribui significativamente para a compreensão das dimensões do catolicismo na América ibérica, entre os séculos XIV e XIX, ao trazer abordagens de questões ainda pouco investigadas, de arquivos e fontes ainda por explorar, demonstrando as potencialidades que a temática das práticas e representações católicas possui na historiografia ibero-americana.

William de Souza Martins

Claudia Rodrigues

Anderson Machado de Oliveira

Célia Maia Borges


MARTINS, William de Souza; RODRIGUES, Claudia; OLIVEIRA, Anderson Machado de; BORGUES, Célia Maia. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.21, n.2, 2015. Acessar publicação original [DR]

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