Urbanidades / Mnemosine Revista / 2015

Em boa hora chega este Dossiê Temático, o qual surge em atendimento a duas exigências: de um lado, para fins de manter periodicidade da Revista Mnemosine e, de outro, para criar um canal de reflexão em torno dos estudos acadêmicos sobre o urbano, um campo que vem ganhando cada vez mais força no seio da comunidade historiadora e que ocupa um lugar garantido na historiografia brasileira nos dias que correm.

A Revista Mnemosine, ainda que tenha sido criada para ser uma espécie de caixa de ressonância das pesquisas orientadas nas linhas de pesquisa do PPGH / UFCG, sempre foi além desse caráter endógeno, abrindo-se desde o momento de sua criação para as devidas interações e trocas historiográficas, extensivo a outros saberes no âmbito das humanidades, isto em termos regionais e / ou nacionais, imprimindo, por assim dizer, uma linha de editoração também de caráter exógeno. A prova está neste Dossiê, em que, como veremos abaixo, comporta não só um conjunto significativo e diverso de contribuições de pesquisadores de diversas partes do país sobre o urbano, como pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, História, Geografia, Recursos Naturais.

Dossiê também chega numa hora propícia se se considera que se trata de uma proposição da Linha de Pesquisa I, do PPGH / UFCG, denominada Cultura e Cidades, em que seus pesquisadores têm em mente, com esta publicação, duas metas: contribuir para o enriquecimento do debate interno com os pós-graduandos da Linha; criar um canal permanente de diálogo com pesquisadores do urbano Brasil afora, em especial com os que estão vinculados ou estiveram vinculados aos inúmeros cursos de pós-graduação em história e áreas afins nas diversas regiões do país. De resto, para que se conheça e ganhe maior visibilidade o que tem sido feito em Campina Grande, desde que o nosso Mestrado foi criado, no tocante à afirmação de um corpo de pesquisadores em história urbana com forte acento na História Cultural e na História Social, aos quais vieram se somar, em anos recentes, profissionais que pesquisam sobre o urbano com recortes temáticos sugeridos pelos Estudos Culturais.

O fato é que a linha de pesquisa Cultura e Cidades, do PPGH / UFFG, ainda que profundamente marcada por toda uma diversidade temática e epistemológica – fruto das muitas influências que marcaram seus pesquisadores nos cursos de pós-graduação em História e áreas afins na UNICAMP, UFPE, UFPB, entre outras IFES -, tem funcionado com um mínimo de coesão interna, significando, com isto, que diversidade na unidade tem sido o leitmotiv dos que a fazem. Portanto, foi com base nessa perspectiva de pluralidade temática e epistemológica que este Dossiê foi pensado, em que se garante um mínimo de autonomia autoral e textual para cada um dos trabalhos, mas sem perder de vista certa convergência no trato do urbano em sintonia com o espírito da linha de pesquisa referida, a saber, seus inúmeros recortes sobre o urbano, seus vínculos epistemológicos com a História Cultural, a História Social, a História Política, os Estudos Culturais, seu lugar-comum no tocante à ideia de que não existem ilhas de história e, por conseguinte, sua apreensão da vida cotidiana e seus devidos nexos com dimensões totalizantes, holísticas etc.

Os dez artigos que compõem este Dossiê formam sem dúvida um conjunto multifacetado. Provenientes de diversas partes do país ou do próprio PPGH / UFCG, os artigos em questão comportam diferentes recortes temáticos associados à história urbana e diferentes olhares em termos de epistemologia e / ou aporte teórico. Também diversas são as fontes pesquisadas por cada autor, com o consequente uso dos métodos hoje na ordem do dia para fins de bem processá-las.

O artigo intitulado CIDADE SOB A ORDEM SANITARISTA (JACOBINA – BAHIA – 1955- 1959), de autoria de Edson Silva, focaliza um conjunto de ações normativas e disciplinares, em âmbito público e privado, no cotidiano da cidade mencionada no título. Trata-se, entre outras coisas, de demonstrar as práticas de resistência e / ou rebeldia da população jacobinense às exigências de certa gestão municipal, com o beneplácito de profissionais da imprensa, no tocante à adoção de hábitos de feição médico-sanitarista.

O artigo com o título CORPO, SAÚDE E TRABALHO: O(S) DISCURSO(S) ANARQUISTA E SOCIALISTA EM RELAÇÃO AO(S) CUIDADO(S) DE HIGIENE EM PORTO ALEGRE (1900-1910) é de autoria de Eduardo da Silva Soares e Glaucia Vieira Ramos Konrad. Texto se debruça sobre periódicos anarquistas relativamente à cidade de Porto Alegre do início do século XX, confrontando-os em seguida com a bibliografia corrente acerca do tema. Desses usos e confrontos, emerge uma proposta de análise preocupada, entre outros, com os fatores que seguem: detecção dos sonhos anarquistas no tocante a uma sociedade livre dos poderes constituídos e, consequentemente, da opressão; identificação das precárias condições de vida e trabalho da gente oprimida em contraste com a vida burguesa; mapeamento das doenças, a tuberculose incluída, que afetam o bem estar físico e mental dos trabalhadores; enfoque de todo um universo imagético, com destaque para as linhas críticas de caráter anarquista, com vistas ao fomento de uma consciência de classe, vale dizer, ao modo como os trabalhadores traçam de forma consciente os caminhos da luta contra a opressão.

O artigo IMAGENS DA MODERNIZAÇÃO NO CONTEXTO TEATRAL: SERTÃO, URBANIZAÇÃO E PROGRESSO NA CUIABÁ DOS ANOS 1940 PELA OBRA DE ZULMIRA CANAVARROS é de autoria de Antonio Ricardo Calori de Lion. Voltado à análise dos traços arquitetônicos da Cuiabá – capital matogrossense – dos anos 1940, o texto explora, por meio de um vínculo visível com a História Cultural, os elementos sensíveis, esteticamente falando, da nova arquitetura implicada no processo de modernização da cidade, e tudo isto com base na apropriação / recepção da produção cultural de Zulmira Canavarros, que, segundo palavras do próprio autor, “se firmou enquanto personalidade influente no cenário cultural cuiabano”.

O artigo assinado com o título de AS SOMBRAS DAS IMAGENS: A GUERRILHA URBANA NO CARIRI CEARENSE EM 1967 é de autoria de Assis Daniel Gomes. A guerrilha urbana contra a ditadura militar no Brasil, como é público e notório, tem sido costumeiramente recortada como objeto de estudo no tocante ao eixo Rio – São Paulo. Tanto é assim que existe uma significativa historiografia a respeito. Poucos sabem da existência de guerrilha urbana em outras áreas do país, menos ainda em se tratando do Cariri cearense. Pois é exatamente de guerrilha urbana na região caririzeira cearense que trata este trabalho. Por meio do periódico intitulado “Jornal Unitário”, relativo ao ano de 1967, o autor colige todo um feixe de discursos e imagens visuais presentes em suas páginas, com vistas à demonstração do modo como forças da repressão entraram em ação para, nas palavras do autor, “desorganizar e exterminar a formação de guerrilheiros nesse território”. De resto, um jornal a serviço do regime ditatorial recém-implantado, deixando claro sua pretensão, devidamente explorada pelo autor, no tocante ao convencimento de que os guerrilheiros eram inimigos da nação, devendo prevalecer na região, por isso mesmo, uma espécie de lei do silêncio.

O artigo FORMAÇÃO DAS FAVELAS NUMA CAPITAL PLANEJADA: Belo Horizonte e Região Metropolitana, assinado por Francis Albert Cotta e Wellington Teodoro da Silva, analisa as contradições do planejamento da capital mineira, um planejamento incapaz de comportar / incomodar toda uma massa empobrecida. O resultado não poderia ser outro, favelização em meio ao propalado planejamento e tentativa de ordenamento urbano. O corolário de tudo isso? Uma cidade cujo projeto de racionalização da ordem urbana, que se queria higienizada / disciplinada, se desfaz ante toda uma torrente de gente empobrecida que, em sua maioria oriunda do êxodo rural, se vê obrigada a morar nas favelas, à margem de qualquer política pública, praticamente desamparada no que se refere à presença do Estado.

O artigo intitulado ITINERÁRIOS CAMPINENSES NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX: PERCURSOS, MEMÓRIAS E TERRITÓRIOS, de João Paulo França, se propõe a descortinar os possíveis itinerários das vivências cotidianas nas ruas, becos e logradouros da Campina Grande da primeira metade do século XX. Lançando mão de fontes como jornais, propagandas e fotografias, o autor rastreia os percursos, territórios e memórias dos campinenses e / ou forasteiros que eram atraídos pela cidade na temporalidade referida. E mais: ainda que não tenha certezas à mão, o autor aceita o desafio de explorar o passado campinense, com o que é possível explorar, o mais proximamente possível, isto é, em termos verossímeis. Ademais, comparando-se a um flâneur, que sentia-se em casa ao adentrar a flanerie, o autor parece estar a exigir do leitor uma certa cumplicidade para fins de que ele, leitor, também sintase igualmente em casa ao percorrer esses itinerários da vida campinense à época mencionada.

O artigo ÍNDICE DE SUSTENTABILIDADE URBANA MUNICIPAL: UMA ANÁLISE DA GESTÃO URBANA DE CAMPINA GRANDE-PB, de Maria de Fátima Martins e Gesinaldo Ataíde Cândido, tem a pretensão de refletir sobre o quanto um espaço urbano dado precisa de mecanismos de sustentabilidade para tornar a cidade minimamente viável em termos econômicos, urbanísticos e ambientais. Com este fim, os autores lançam mão do Plano Diretor da cidade de Campina Grande relativo ao ano de 2006, estabelecido pela Lei Complementar n° 003, de 09 de outubro, em conformidade com o que estabelece o Estatuto da cidade. Partindo do pressuposto de que os espaços urbanos carecem de mecanismos de sustentabilidade, os quais devem ser geridos por políticas públicas adequadas devidamente monitoradas, os autores se debruçam sobre o Plano Diretor referido para verificar até que pontoo Índice de Sustentabilidade Urbana em Campina Grande tem pontos positivos. Enfim, um modelo de análise criado, a partir de certos indicadores, para avaliar a experiência de Campina Grande, mas que, como admitem os autores, poderia ser aplicado a outras realidades, desde que se atente para as peculiares de cada local. No caso em apreço, a parte da vida urbana campinense que requer mais atenção em termos de sustentabilidade, é a dimensão urbanística, isto em decorrência “da cidade dispor de infra-estrutura básica de funcionamento com sistemas de abastecimento de água, energia, coleta de resíduos, esgotamento sanitário, transporte público, espaços públicos com áreas de lazer, entre outros”. Mas claro, nada disso pode ser melhorado a contento; nada disso pode ser incrementado de modo dinâmico; nada disso, enfim, tornar-se-á realidade se o Plano Diretor Municipal não puder contar, para fins de viabilizar políticas públicas para tornar a cidade sustentável, se não estiver associada a uma gestão democrática e participativa. Ora, sem uma estrutura institucional e política que dê garantias democráticas no tocante à participação dos munícipes, nenhum plano diretor viabilizará a cidade em termos sustentáveis.

O artigo A SOCIONATUREZA DOS RIOS URBANOS: A EVOLUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DO RIO COMO INTANGÍVEL NO IMAGINÁRIO DA CIDADE, da autoria de Luiz Eugênio Carvalho, volta-se à explicação da reconstrução conceitual em se tratando das ações de drenagem urbana. Ao invés das antigas apreensões dicotômicas entre homem e natureza ou entre materialidade e representação, o texto chama a atenção para o caráter híbrido dessas relações. Portanto, nada de colocar construção material de um lado, representações do outro. Com a própria palavra o autor: “a construção material de cidades ambientalmente mais adequadas passa pela transformação das representações que temos de seus elementos componentes, neste caso com destaque para os rios urbanos”. Se posicionando contra certa noção naturalizada acerca dos rios que cortam as cidades, o autor esclarece não são tão intangíveis assim como nos quer fazer crer a legislação

Gervácio Batista Aranha – O autor é doutor em história pela UNICAMP e professor da UFCG.


ARANHA, Gervácio Batista. Apresentação. Mnemosine Revista. Campina Grande, v.6, n.3, jul. / set., 2015. Acessar publicação original [DR]

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