Deleuze e Guattari: uma filosofia para o século XXI | Antonio Negri

Antonio Negri 2 Deleuze e Guattari
Antonio Negri | Foto: Christian Werner e Alexandra Weltz

Deleuse e Guatari uma filosofia Deleuze e GuattariTextos de Antonio Negri, marcados por intensos diálogos com o trabalho de Gilles Deleuze e Félix Guattari, bem como entrevista concedida pelo próprio Negri a Jeferson Viel, caracterizam este livro como uma notável radiografia histórica da incessante transformação do pensamento filosófico.

A partir do “Prefácio”, e mais especificamente, no decorrer da apreciação do Capítulo “Gilles-felix”, constata-se, com interessantes nuanças de sensibilidade, que, além de inspiração e parceria profissional, Negri encontrou em Deleuze e Guattari um fundamental suporte de natureza pessoal. A dinâmica da convivência dessa distinta tríade de filósofos, expõe laços de amizade fortalecidos essencialmente, a partir do apoio dispendido a Negri (de modo singular por Deleuze) durante seu exílio na França, em consequência de perseguições políticas sofridas em solo italiano. Certamente, louváveis peculiaridades da carreira de Negri, a exemplo de seu estilo de escrita, foram forjadas a partir da lealdade apreendida no que ele próprio retrata: “a arte de escrever a quatro mãos”. Tal habilidade foi por ele inauguralmente experimentada durante a concepção do livro As verdades nômades, em conjunto com Félix Guattari. Negri conta, com provável saudosismo, que a época compartilhada com seus companheiros guardava dias de infindáveis discussões sobre política, direito, modelos sociais disfuncionais e a latente necessidade de alterar ideais solidificados de há muito. O respeito mútuo existente entre amigos tão generosos uns com os outros, torna evidente que ambos não hesitariam em contribuir mutuamente, com suas épicas jornadas, nos rumos inquietantes daquela que lhes é uma obsessão: a filosofia.

Dentre as páginas dos capítulos intitulados “Crônica de uma transição”, “Prefácio a uma ontologia materialista”, passando por “Sobre Mil Platôs”, Espinosa e Deleuze: o momento propício”, até o primoroso capítulo: “Deleuze e Guattari: uma filosofia para o século XXI”, há a perscrutação realizada por Negri acerca da história da filosofia, assevera que essa não se exprime como uma totalidade monoteísta, mas em um complexo de singularidades. Em determinado momento dessa plural perspectiva, as concepções filosóficas passaram a compreender que as subjetividades configuram um incontestável dinamismo, podendo-se afirmar, portanto, que são nômades. Contudo, embora a subjetividade possa ser livre, os sujeitos, a seu turno, estão inseridos e, de modo mais contundente, imersos num emaranhado de sistemas, que não cessam de produzir signos. Esses signos tendem a enquadrar os indivíduos em padrões de toda ordem, geralmente inalcançáveis, corolários de angústias quase, ou totalmente, indomáveis.

Observando-se o prisma multicolor da filosofia ao longo do tempo, não seria plausível pensar na contribuição de Deleuze e Guattari como referência imanente à determinada época. O legado que ambos deixaram é pertinente à evolução dos contextos sociais para os quais a filosofia, inevitável e constantemente, lança novos olhares. Consoante a lucidez de Negri, a invenção de um pensamento afirmativo e de um pensamento de potência é algo singularmente fundamental; provavelmente, a pérola dos ensinamentos de Deleuze e Guattari.

Foi no ano de 1968, marcado por efervescências sociais que traduziram um tempo de influxos, sobretudo, políticos, que Deleuze e Guattari escreveram O anti-Édipo e Mil platôs. É demasiado salutar o vislumbre de que as manifestações desse período inspiraram futuras mobilizações, a exemplo do ambientalismo, do pacifismo, da promoção da equidade de gêneros, da defesa dos direitos das minorias, etc.

O anti-Édipo, na ilibada opinião de Negri, foi absolutamente revolucionário. A obra desafiou os paradigmas estruturantes da psicanálise, concedendo ao desejo um papel de destaque, reconhecendo-o como uma característica incessante do âmago humano. Essa acepção concebe o inconsciente analogamente a uma máquina, nesse caso, uma máquina produtora de desejos, e não mais um mero palco abstrato ocupado por atores irrelevantes. Guattari criticava, veementemente, a possibilidade de desatrelar o inconsciente da linguagem. Para ele o inconsciente diz respeito a toda a seara social, política e econômica, logo, pertinente aos fatores identificadores do homem como membro de uma sociedade.

Dando sequência às teses de O anti-Édipo, Mil platôs condensa todos os componentes da filosofia clássica, abordando elementos, tais como: física, lógica, psicologia, moral, política, estética, etc. Mil platôs ilustra, magistralmente, o cenário político-social daquela época, especialmente ao propor que fugir do Estado (compreendendo que ele não se transforma, ou mesmo destrói) seria paradoxalmente a única maneira de destruí-lo. Mas não se trata de uma fuga passional, e sim, de uma estratégia fomentada pela criatividade do desejo, por uma pragmática que se reinventa em aderência à evolução do cosmo social, buscando atemporal e incansavelmente, a conquista do bem comum. Aqui se encaixa o conceito de multidão no sentido de um conjunto de singularidades.

Seguindo nesse contexto, em “Kaosmos”, “O devir revolucionário e as criações políticas”, Deleuze destaca a formaEstado contemporânea, como a sociedade de controle, e não mais a sociedade disciplinar de outrora. Nessa percepção, a dominação, mesmo que permanente, é friamente abstrata, vazia e parasitária. Negri, por sua vez, faz remições ao pensamento de Foucault, que também tinha a nítida visão de que, por meio do controle contínuo e da comunicação instantânea, e não mais utilizando-se dos meios de confinamento, estamos cabalmente inseridos em uma sociedade de controle.

O anti-Édipo, indubitavelmente, aborda o escopo das lutas sociais, desde o combate ao assujeitamento até o combate à exploração, além de dar guarida à crítica aos espaços de poder e salientar a ideia de multiplicidade. Mil platôs numa ideal sequência, pode, conforme Negri, ser reconhecido como um livro de filosofia política, que, por seu turno, analisa a política como a edificação de muitas redes moleculares, em que o desejo pulsa e se desenvolve. Aqui, portanto, há a devolução da política àqueles que realmente lhe proporcionam sentido, as multidões, o povo, o real titular da política, que, diga-se de passagem, acaba por ser vulgarmente manipulada e conduzida em conformidade com os gananciosos ideais dos representantes políticos, que, amiúde, visam à chegada ao poder e à sua precípua manutenção.

Singular percepção de Negri (ainda em: O devir revolucionário e as criações políticas) diz respeito à seara do Direito. Segundo o autor, a fonte verdadeira e essencial da Ciência Jurídica habita na jurisprudência, sendo que essa deveria ser engendrada com a influência direta dos usuários do Direito, ao invés de permanecer detida ao alvedrio dos tribunais. No momento em que se viabilizasse a participação efetiva daqueles aos quais as normas são direcionadas, estaríamos nos aproximando da perfeita conexão entre Direito e política. Não à toa, a política recebe generosa atenção de Negri, afinal, ele chancela com segurança a exuberante importância que ela exerce no cotidiano da humanidade, interferindo e provocando o movimento das multidões e a constelação de singularidades que as compõem.

Em “Para além do retorno a zero”, outro memorável capítulo, Negri identifica o ser humano, não mais como aquele ser, definido pelo S maiúsculo, mas como matéria optativa sujeita a mutações incessantes. No âmago da subjetividade, residem infinitas ambiguidades, a citar de modo didático: alegria e tristeza. Tais oposições são aflitivas à jornada humana? Sim, certamente, mas é a forma por meio da qual os sujeitos lidam com suas questões internas que lhes proporcionará, ou não, sustentar tamanhos universos dicotômicos dentro de si mesmos. Hodiernamente, a sociedade ocupa-se em oferecer formas de alienação que possam, ainda que fugazmente, ocultar tais questões demasiadamente intrínsecas à mente humana. Isso, uma vez mais, nos remete à temeridade dos meios encontrados pelas sociedades de controle, para embriagar os sujeitos com abundantes fluxos de informações rápidas e superficiais, ou mesmo, de entretenimento banal, que possa aliená-los da realidade fatidicamente encontrada à porta todos os dias. Passagem marcante da entrevista de Negri a Jefferson Viel (pertencente ao bloco de encerramento deste livro, identificado como: “Ulisses Deleuze e Aquiles Guattari: Negri, sobre Gilles e Félix”) é a proposição do tema da fronteira como uma das discussões centrais dos séculos XIX e XX; a saber: “Para se definir a fronteira, é preciso erguer muros, mas as pessoas ultrapassam muros buscando o comum.” Por maior voracidade que o capitalismo possa externar, não é, por si só, capaz de anular a capacidade humana de desejar, de buscar a realização de seus anseios. As multidões podem ser contidas, mas jamais sufocadas, pois, ainda que lentamente, sempre encontram o fluxo natural que as instiga a lutar por uma sociedade onde a dignidade da pessoa humana seja uma condição tangível, e não somente um valor abstrato.

Como ora dito, as multidões munidas por ideais de transformação, e, sobretudo, por desejos de ver seus semelhantes tratados com isonomia, na exata medida de suas distinções, necessita de robustos instrumentos que lhes proporcionem a pavimentação dessas estradas rumo ao mundo que se pretende conquistar. Nesse diapasão, devemos reconhecer a filosofia como um dos meios mais eficazes para alterar realidades postas e impostas.

Atemporalmente, a filosofia nos impele a questionar, a sair do lugar comum, instigando a construção do pensamento crítico tão necessário neste tempo de desigualdades abissais e inversão de valores caros ao bem-estar da humanidade como um todo complexo e multifacetado. Atualmente, e, como brasileiros, podemos afirmar isto categoricamente: a filosofia, a partir de seus estudos, compreensão e apreciação se faz urgente. Ela nos traz questionamentos de toda ordem, em especial, no tocante às realidades políticas e sociais que determinam, fatalmente, a vida dos cidadãos. Negri, Deleuze e Guattari jamais arrefeceram em suas justas pretensões de abalar conceitos até então petrificados, propondo novos olhares a horizontes que jaziam esgotados pela marcha evolutiva da sociedade e, especialmente, de suas necessidades vistos como sujeitos que compartilham espaços, meios de produção e sistemas de consumo.

Todos os pensamentos devem ser considerados, e é partindo das diferenças que se chega aos consensos. A perspicaz análise desse livro comprova tal proposição. Os filósofos aqui mencionados buscaram modificar parâmetros conceituais, aprimorar percepções, encontrar novos métodos analíticos, num imparável trabalho de observar, pensar e repensar o mundo e, essencialmente, a humanidade.

Voltando à temática da fronteira, tão bem proposta por Negri, depreende-se, ainda, que o imenso desafio de nosso tempo consiste na capacidade de coexistir. Sim, coexistir em termos de meio ambiente, de índices financeiros, de sistemas e planos de governo… Encontrar a medida aristotélica de justiça que impeça a distância abissal entre realidades cruelmente diferentes em aspectos tão amplos de nosso existir.

“Uma filosofia para o século XXI” é, também, um estudo que nos revela o traçado riquíssimo que ajudou a moldar nossas sociedades por meio do incansável esforço de mentes que se propuseram questionar e entender incontáveis porquês ao longo do tempo. Ao finalizar sua leitura, torna-se visceral a sensação de que estaremos sempre a buscar respostas, e, se pudermos estimular o pensamento crítico (seguindo o honrável exemplo de Negri, Deleuze e Guattari) a empreender novas perguntas, estar-se-á liberando o desejo e engendrando novas formas de vida e de vivências em busca da construção do comum.


Resenhista

Darlan Silvestrin – Doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestre em Filosofia pela UCS. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

NEGRI, Antonio. Deleuze e Guattari: uma filosofia para o século XXI. Tradução e Organização Jefferson Viel. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019. Resenha de: SILVESTRIN, Darlan. Conjectura: Filosofia e Educação. Caxias do Sul, v.26, 2021. Acessar publicação original [DR]

 

 

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.